olavo de carvalho - a nova era e a revolução cultural (1)

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3 a edição, revista e aumentada. The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere The ceremony of innocence is drowned; The best lack all conviction, while the worst Are full of passionate intensity. William Butler YEATS, The Second Coming. Índice Introdução geral à Trilogia Prefácio à Segunda Edição e Nota prévia [da 1ª Edição] Capítulo I: Lana Caprina, ou: A sabedoria do Sr. Capra Capítulo II: Sto. Antonio Gramsci e a salvação do Brasil Capítulo III: A Nova Era e a Revolução Cultural Apêndices: A Nova Era e a Revolução Cultural - Índice http://www.olavodecarvalho.org/livros/neindex.htm (1 of 2) [10/10/2002 07:36:32]

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Page 1: Olavo de Carvalho - A Nova Era e a Revolução Cultural (1)

 

3a edição,revista e aumentada.

 

 

The blood-dimmed tide is loosed, and everywhereThe ceremony of innocence is drowned;The best lack all conviction, while the worstAre full of passionate intensity.

William Butler YEATS,The Second Coming.

 

 

 

 

Índice

Introdução geral à Trilogia●

Prefácio à Segunda Edição e Nota prévia [da1ª Edição]

Capítulo I: Lana Caprina, ou: A sabedoriado Sr. Capra

Capítulo II: Sto. Antonio Gramsci e asalvação do Brasil

Capítulo III: A Nova Era e a RevoluçãoCultural

Apêndices:●

A Nova Era e a Revolução Cultural - Índice

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I. As esquerdas e o crime organizado❍

II. O Brasil do PT❍

Observações finais●

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3a edição,revista e aumentada.

 

 

INTRODUÇÃO GERAL À TRILOGIA

MANUAL DO USUÁRIO

de O Imbecil Coletivo: Atualidades InculturaisBrasileiras

e dos volumes que o antecederam: A Nova Era e aRevolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci eO Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição deCésar – Ensaio sobre o Materialismo e a Religião

Civil.

Texto lido no Lançamento de O Imbecil Coletivo.Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 22 de agosto de

1996.

 

 

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O Imbecil Coletivo encerra a trilogia iniciada com ANova Era e a Revolução Cultural ( 1994 ) eprosseguida com O Jardim das Aflições ( 1995 ).

Cada um dos três livros pode ser compreendido sem osoutros dois. O que não se pode é, por um só deles,captar o fundo do pensamento que orienta a trilogiainteira.

A função de O Imbecil Coletivo na coleção é bastanteexplícita e foi declarada no Prefácio: descrever,mediante exemplos, a extensão e a gravidade de umestado de coisas – atual e brasileiro – do qual ANova Era dera o alarma e cuja precisa localização noconjunto da evolução das idéias no mundo foradiagnosticada em O Jardim das Aflições.

O sentido da série é, portanto, nitidamente, o desituar a cultura brasileira de hoje no quadro maiorda história das idéias no Ocidente, num período quevai de Epicuro até a "Nova Retórica" de ChaimPerelman. Que eu saiba, ninguém fez antes um esforçode pensar o Brasil nessa escala. Meus únicosantecessores parecem ter sido Darcy Ribeiro, MárioVieira de Mello e Gilberto Freyre, o primeiro com atetralogia iniciada com O Processo Civilizatório, osegundo com Desenvolvimento e Cultura, o terceiro comsua obra inteira. Separo-me deles, no entanto, pordiferenças essenciais: Ribeiro emprega uma escalamuito maior, que começa no Homem de Neanderthal, masao mesmo tempo procura abranger esse imensoterritório desde o prisma de uma determinada ciênciaempírica, a Antropologia, e fundado numa basefilosófica decepcionantemente estreita, que é omarxismo nu e cru. Vieira de Mello, com muito maisenvergadura filosófica, não se aventura a remontaralém do período da Revolução Francesa, com algumasincursões até o Renascimento e a Reforma. Quanto aGilberto, o ciclo que lhe interessa é o que se iniciacom as grandes navegações. De modo geral, osestudiosos da identidade brasileira deram porpressuposto que, tendo entrado na História no períodochamado "moderno", o Brasil não tinha por que tentarenxergar-se num espelho temporal mais amplo. Estou,portanto, sozinho na jogada, e posso alegar em meufavor o temível mérito da originalidade.

Temível porque originalidade é singularidade, e amente humana está mal equipada para perceber assingularidades como tais: ou as expele logo do

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círculo de atenção, para evitar o incômodo deadaptar-se a uma forma desconhecida, ou as apreendesomente pelas analogias parciais e de superfície quepermitem assimilá-las erroneamente a alguma classe deobjetos conhecidos. Entre a rejeição silenciosa e oengano loquaz, minha trilogia não tem muitas chancesde ser bem compreendida.

Mas a singularidade, nela, não está só no assunto.Está também nos postulados filosóficos que afundamentam e na forma literária que escolhi paraapresentá-la, ou antes, que sem escolha me foiimposta pela natureza do assunto e pelascircunstâncias do momento.

Quanto à forma, o leitor há de reparar que difere nostrês volumes. O primeiro compõe-se de dois ensaios detamanho médio, colocados entre duas introduções,vários apêndices, um punhado de notas de rodapé e umaconclusão. O todo dá à primeira vista a idéia detextos de origens diversas juntados pela coincidênciafortuita de assunto. A um exame mais detalhado,revela a unidade da idéia subjacente, encarnada nosímbolo que fiz imprimir na capa: os monstrosbíblicos Behemot e Leviatã, na gravura de WilliamBlake, o primeiro imperando pesadamente sobre omundo, o maciço poder de sua pança firmemente apoiadosobre as quatro patas, o segundo agitando-se no fundodas águas, derrotado e temível no seu rancorimpotente. Não usei a gravura de Blake por boniteza,mas para indicar que atribuo a esses símbolosexatamente o sentido que lhes atribuiu Blake. Detalheimportante, porque essa interpretação não é nenhumaalegoria poética, mas, como assinalou Kathleen Raineem Blake and Tradition, a aplicação rigorosa dosprincípios do simbolismo cristão. Na Bíblia, Deus,exibe Behemot a Jó, dizendo: "Eis Behemot, que crieicontigo" ( Jó, 40:10 ). Aproveitando a ambigüidade dooriginal hebraico, Blake traduz o "contigo" por fromthee, "de ti", indicando a unidade de essência entreo homem e o monstro: Behemot é a um tempo um podermacrocósmico e uma força latente na alma humana.Quanto a Leviatã, Deus pergunta: "Porventura poderáspuxá-lo com o anzol e atar sua língua com uma corda?"( Jó, 40:21 ), tornando evidente que a força darevolta está na língua, ao passo que o poder deBehemot, como se diz em 40:11, reside no ventre.Maior clareza não poderia haver no contraste de umpoder psíquico e de um poder material: Behemot é opeso maciço da necessidade natural, Leviatã é a

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infranatureza diabólica, invisível sob as águas – omundo psíquico – que agita com a língua.

O sentido que Blake registra nessas figuras não é uma"interpretação", na acepção negativa que Susan Sontagdá a esta palavra: é, como deve ser toda boa leiturade texto sacro, a tradução direta de um simbolismouniversal. Para Blake, embora Behemot represente oconjunto das forças obedientes a Deus, e Leviatã oespírito de negação e rebelião, ambos são igualmentemonstros, forças cósmicas desproporcionalmentesuperiores ao homem, que movem combate uma à outra nocenário do mundo, mas também dentro da alma humana.No entanto não é ao homem, nem a Behemot, que cabesubjugar o Leviatã. Só o próprio Deus pode fazê-lo. Aiconografia cristã mostra Jesus como o pescador quepuxa o Leviatã para fora das águas, prendendo sualíngua com um anzol. Quando, porém, o homem se furtaao combate interior, renegando a ajuda do Cristo,então se desencadeia a luta destrutiva entre anatureza e as forças rebeldes antinaturais, ouinfranaturais. A luta transfere-se da esferaespiritual e interior para o cenário exterior daHistória. É assim que a gravura de Blake, inspiradana narrativa bíblica, nos sugere com a forçasintética de seu simbolismo uma interpretaçãometafísica quanto à origem das guerras, revoluções ecatástrofes: elas refletem a demissão do homem ante ochamamento da vida interior. Furtando-se ao combateespiritual que o amedronta, mas que poderia vencercom a ajuda de Jesus Cristo, o homem se entrega aperigos de ordem material no cenário sangrento daHistória. Ao fazê-lo, move-se da esfera daProvidência e da Graça para o âmbito da fatalidade edo destino, onde o apelo à ajuda divina já não podesurtir efeito, pois aí já não se enfrentam a verdade

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e o erro, o certo e o errado, mas apenas as forçascegas da necessidade implacável e da rebeliãoimpotente. No plano da História mais recente, isto é,no ciclo que começa mais ou menos na época doIluminismo, essas duas forças assumem claramente osentido do rígido conservadorismo e da hübrisrevolucionária. Ou, mais simples ainda, direita eesquerda.

O drama inteiro aí descrito pode-se resumiriconograficamente no esquema em cruz que coloqueidepois em O Jardim das Aflições, mas que já estásubentendido em A Nova Era e a Revolução Cultural,pois constitui a estrutura mesma do enfoque analíticopelo qual procuro aí apreender a significação dasduas correntes de idéias mencionadas no título: oholismo neocapitalista de Fritjof Capra e oempreendimento gramsciano de devastação cultural.

Nesse primeiro volume, a forma adotada inicialmentenão podia ser mais clara e foi imposta pela naturezamesma do assunto: uma introdução, um capítulo paraCapra, outro para Gramsci, um retrospecto comparativoe uma conclusão inescapável: as ideologias, quaisquerque fossem, estavam sempre limitadas à dimensãohorizontal do tempo e do espaço, opunham o coletivoao coletivo, o número ao número; perdida a verticalque unia a alma individual à universalidade doespírito divino, o singular ao Singular, perdia-sejunto com ela o sentido de escala, o senso dasproporções e das prioridades, de modo que asideologias tendiam a ocupar totalitariamente ocenário inteiro da vida espiritual e a negar ao mesmotempo a totalidade metafísica e a unidade doindivíduo humano, reinterpretando e achatando tudo nomolde de uma cosmovisão unidimensional.

As notas e apêndices, que aparentemente colocam

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alguma desordem na forma do conjunto, servem aí adois propósitos opostos e complementares: de um lado,indicar as bases mais gerais que o argumentoconservava implícitas, mostrando ao leitor que aanálise de Capra e Gramsci era apenas a ponta visívelde uma investigação muito mais ampla que, àquelaaltura, só meus alunos conheciam através das aulas eapostilas do Seminário de Filosofia, mas que, nascondições de uma vida anormalmente agitada, eu nãoestava certo de poder redigir por completo algum dia;de outro lado, indicar que minhas análises nãopairavam do céu das meras teorias, mas que seaplicavam à compreensão de fatos políticos que sedesenrolavam na cena brasileira na hora mesma em queeu ia escrevendo o livro – daí as arestas polêmicasque dão a trechos desse ensaio uma aparência dejornalismo de combate. Se alguns leitores não viramno livro mais que essa superfície – como outros nãoverão em O Imbecil Coletivo senão a crítica deocasião a certos figurões do dia e em O Jardim dasAflições um ataque ao establishment uspiano –, nãoposso dizer que perderam nada, pois o restante e omelhor do que se contém nesses livros não foi feitorealmente para esses leitores e é bom mesmo quepermaneça invisível aos seus olhos.

Se no primeiro volume permiti que a idéia centralfosse apenas esboçada em fragmentos, um tanto àmaneira minimalista, para que o leitor, antespressentindo-a do que percebendo-a, tivesse otrabalho de ir buscá-la no fundo de si mesmo em vezde simplesmente pegá-la na superfície da página, nosegundo, O Jardim das Aflições, segui a estratégiainversa: ser o mais explícito possível e dar àexposição o máximo de unidade, obrigando o leitor aseguir uma argumentação cerrada, sem saltos ouinterrupções, ao longo de quatrocentas páginas. Mas,para não dar a ilusão de que essa forma completaabrangesse a totalidade do meu pensamento a respeitodo tema, espalhei ao longo do texto centenas de notasde rodapé que indicavam os pressupostos teóricosimplícitos, as possibilidades de aprofundamentos porrealizar ( ou já realizados só oralmente em aula ), emil e uma sementes de desenvolvimentos possíveis einteressantes, que eu realizaria se tivesse uma vidasem fim, mas que os leitores inteligentes bem podemir realizando por sua conta. A unidade deargumentação de O Jardim das Aflições, que na minhaintenção, confirmada por alguns leitores, dá a esse

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livro não obstante pesadíssimo e complexo alegibilidade de um romance policial, mostra assim nãoser a unidade cerrada de um sistema, mas a unidade deum holon, como diria Arthur Koestler: algo que, vistode um lado, é um todo em si, e, de outro lado, éparte de um todo mais vasto. Esta homologia de partee todo repete-se, por sua vez, na estrutura internado livro, onde o evento aparentemente insignificanteque lhe serve de ponto de partida já contém, na suaescala microcósmica, ou microscópica, as linhasgerais da interpretação global da história doOcidente, que é apresentada nos capítulos restantes.Aqueles leitores que se queixaram de que um livro tãosubstancioso começasse pelo comentário polêmico de umacontecimento menor, mostraram não compreender bemuma das mensagens principais do livro, que é a deque, à luz de uma metafísica da História, não hápropriamente acontecimentos menores – o grande e opequeno estão coeridos na unidade orgânica de umSentido que tudo pervade. Aquilo que nada pesa naordem causal pode muito revelar na ordem dasignificação.

E, na verdade, se houvesse acontecimentosperfeitamente insignificantes, que nada merecessemsenão o desprezo e o silêncio, o terceiro volume dasérie, O Imbecil Coletivo, não poderia sequer tersido escrito: pois o que nele apresento é ummostruário comentado de banalidades culturais quemuito significam precisamente na medida em que nãovalem nada. E, se decidi reuni-las num volume,dando-lhes a dignidade de serem lembradas quando seusautores já nada mais forem senão sombras no Hades,que é o sepulcro do irrelevante, foi precisamenteporque entendi que, partindo de cada uma delas, egirando em círculos concêntricos cada vez maisamplos, se poderia chegar a visões de escalauniversal semelhantes àquela em que, partindo de umapicuinha cultural ocorrida no Museu de Arte de SãoPaulo em 1990, mostrei aos leitores de O Jardim dasAflições o combate de Leviatã e Behemot no horizonteinteiro da história Ocidental. E, não podendo refazertamanho esforço hermenêutico a cada nova babaquicecultural que lesse nos jornais, decidi reunir algumase oferecê-las aos leitores como amostras para fins deexercício. O Imbecil Coletivo é, portanto, o livro detarefas que acompanha o texto-base trazido em OJardim das Aflições, ficando A Nova Era comoabreviatura para principiantes. Quem leia assim O

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Imbecil Coletivo, buscando ali as lições de casa parareconstituir, desde três dezenas de exemplos, oslineamentos da visão da História e do métodointerpretativo exposto nos volumes anteriores, ebuscando sempre a unidade orgânica entre a parte e otodo, entre a visão filosófica de uma cultura milenare as amostras da incultura momentânea de um paísesquecido à margem da História, esse terá conquistadopara si a melhor parte do que lhe dei. Pois é assimque se lêem os livros dos filósofos, mesmo quando setrate apenas de um filosofinho como este que lhesfala.

Admito que, se em qualquer dos três livros tivesseadotado uma forma expositiva mais ao gosto acadêmico,eu não precisaria estar agora chamando a atenção parauma unidade de pensamento que transpareceria àprimeira vista. Mas essa visibilidade custaria aperda de todas as referências à vida autêntica e oaprisionamento do meu discurso numa redomalingüística que não combina nem com o meutemperamento nem com a regra que me impus alguns anosatrás, de nunca falar impessoalmente nem em nome dealguma entidade coletiva, mas sempre diretamente emmeu próprio nome apenas, sem qualquer retaguarda maisrespeitável que a simples honorabilidade de um animalracional, bem como de nunca me dirigir acoletividades abstratas, mas sempre e unicamente aindivíduos de carne e osso, despidos das identidadesprovisórias que o cargo, a posição social e afiliação ideológica superpõem àquela com que nascerame com a qual hão de comparecer, um dia, ante o Tronodo Altíssimo. Estou profundamente persuadido de quesomente nesse nível de discurso se pode filosofarautenticamente.

Ademais, existe algum mérito pedagógico em não serbem arrumadinho, em poder dispor os dados não naordem mais costumeira em que os desejaria oespectador preguiçoso, mas em desarrumá-losinteligentemente de modo a obrigar o leitor a tomarparte ativa na investigação. E há um prazer imenso emmisturar os gêneros literários quando se é autor deum livreto que antes os distinguiu e catalogou comrequintes de rigidez formal1.

Estou imensamente satisfeito de ter podido concluiresta trilogia e de poder estar aqui hoje, nestacelebração que para mim é menos a do lançamento de umlivro que a da conclusão de uma parte, de uma etapada tarefa que me cabe nesta vida. Tarefa que é, em

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essência, a de romper o círculo de limitações econstrangimentos que o discurso ideológico temimposto às inteligências deste país, a de vincular anossa cultura às correntes milenares e mais altas davida espiritual no mundo, a fazer em suma com que oBrasil, em vez de se olhar somente no espelhoestreito da modernidade, imaginando que quatroséculos são a história inteira do mundo, consiga seenxergar na escala do drama humano ante o universo ea eternidade. Tarefa que é, no seu mais elevado eambicioso intuito, a de remover os obstáculos mentaisque hoje impedem que a cultura brasileira receba umainspiração mais forte do espírito divino e possaflorescer como um dom magnífico a toda a humanidade.

 

22/08/96

NOTAS

V. Os Gêneros Literários: Seus FundamentosMetafísicos ( Rio, Stella Caymmi / IAL, 1993 )Voltar

1.

 

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PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO 

DECORRIDOS alguns meses da primeira edição,rapidamente esgotada, os acontecimentos não fizeramsenão confirmar com igual rapidez os diagnósticos queapresentei neste livro.

O Brasil vive, de um lado, uma crise profunda dainteligência, de que é reflexo o deslumbramentoapalermado com que recebemos e enaltecemos, comoaltas produções do espírito, as idéias mais sonsas edescabidas que nos chegam do estrangeiro. O sr. Capranão foi o último da série. Depois dele recebemos avisita e as luzes do sr. Richard Rorty, cujaproposta, filosoficamente indecorosa e moralmenterepugnante, os pensadores locais não ousaram criticarsenão com precauções e desculpas que raiavam oservilismo1.

A Nova Era e a Revolução Cultural - Prefácio à segunda edição

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Esse fenômeno é, em parte, efeito passivo da crise dainteligência norte-americana, como explico num outrolivro que deverá sair logo após esta segunda edição2.

Mas, de outro lado, ele é também o resultado de umapolítica deliberadamente conduzida pelos movimentosde esquerda, interessados em reduzir toda a vidaintelectual brasileira a um coro unanimista dereclamações. O rebaixamento das artes, da filosofia eaté de algumas ciências à condição de megafones dapropaganda revolucionária, que os melhores pensadoresmarxistas sempre rejeitaram como uma tentaçãoaviltante, tornou-se a praxe estabe lecida, queninguém ousa contestar, menos pelo temor de um revideexplícito do que pela certeza absoluta de que seusouvintes já não poderão compreendê-lo, tão longeestão de imaginar que a cultura possa ter outros emais elevados fins. Pois o dogma da cultura militantenão se adotou como opção consciente, vencedora noconfronto com outras concepções possíveis, mas seinfiltrou sorrateiramente, como um pressupostoimplícito, aproveitando-se da ignorância das novasgerações, que ao despertarem para o mundo da"cultura" já a encontram identificada à propagandaideológica como se este fosse o seu estado natural eseu destino eterno. O pior é que essa propaganda jánão transmite sequer idéias ou símbolos de umadoutrina revolucionária, mas limita-se a repetir, demaneira rasa, literal e direta, as reivindicações dodia: fora Collor, morte aos corruptos, viva oBetinho, queremos sexo. Todos os anões do Congresso,reunidos e somados, não fizeram tanto mal a este paísquanto essa prostituição completa da inteligência àsambições políticas imediatas e às paixões maiscorriqueiras. O dinheiro perdido pode-se ganharnovamente; o espírito, quando se vai, não volta mais.Os templos abandonados — é a experiência universal —tornam-se para sempre covis de feiticeiros ebandidos.

Pelo efeito conjugado da decadência norte-americana eda ação local tendente a amassar e fundir todos oscérebros deste país na fôrma sem rosto do"intelectual coletivo" gramsciano, o fato é que ainteligência nacional está indo ladeira abaixo, aomesmo tempo que sobe, das ruas e dos campos, o rumorsombrio de uma revolução em marcha.

Sim, o Brasil está inequivocamente entrando numaatmosfera de revolução comunista. A imbecilização nãoé senão um sintoma: o temporário obscurecimento da

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luz, mencionado pelo I Ching, no qual se geram, entreas dobras da noite, os monstros que irão povoar asvisões de um despertar temível.

Esses monstros já não são tão pequenos para que umolhar atento não consiga enxergá-los e espantar-secom a velocidade com que vão crescendo no ventre dainconsciência nacional.

O próprio unanimismo da intelectualidade é um dossinais. Mas outro, aparentemente contraditório, é aproliferação das reivindicações gremiais, do espíritode divisão, na hora em que o país mais necessita dosacrifício das partes pelo bem do todo. Em cadaclasse, em cada região, em cada sindicato, em cadaempresa, em cada família, em cada alma, o que se notaé um sentimento agudo e exasperado dos própriosdireitos e o completo amortecimento do senso dodever. É o predomínio desastroso do reivindicar eprotestar sobre o criar e oferecer. Quanto menoscumpre sua obrigação, mais cada um se crê no direitode acusar o próximo. O governo reprime os aumentosabusivos de preços enquanto protege as elevadas taxasde juros e alimenta a gigantesca tênia petrolíferaque pela majoração periódica dos combustíveis vaimarcando o compasso para a subida generalizada docusto de vida. O pai de família vocifera contra acorrupção dos políticos enquanto solicita a umcontador que "dê uns retoques" na sua declaração derendimentos para tornar mais verossímil a mentira queo isentará do imposto. As empresas censuram o governono instante mesmo em que elevam os preços de seusprodutos e serviços acima de tudo quanto permite alei e recomenda a decência. A esquerda clama contraas oligarquias enquanto promove greves defuncionários públicos voltadas diretamente contra osdireitos da população. Os intelectuais e artistasclamam contra as injustiças enquanto levam vida depríncipes às expensas do erário público. A imprensaacusa, delata, aponta homens e instituições aoopróbrio, enquanto discretamente, em congressos deprofissionais longe dos olhos da multidão, confessasua própria falta de decoro, ética e dignidade. Ossem-terra exibem diante das câmeras sua pobrezacomovente enquanto gastam fortunas em operaçõesparamilitares que o próprio exército não teria verbapara sustentar. O discurso do unanimismo , como ocoro entusiástico das torcidas durante a Copa, não ésenão um Ersatz, a ostentação de uma unidade postiçaque encobre a luta covarde e sem regras de todos

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contra todos. O egoísmo, a inconsciência, a maldadeganham terreno a cada nova investida da "campanhapela Ética".

Quia bono? A quem aproveita o crime? Quem lucra com adilaceração da alma nacional num confronto vil detodos os egoismos e de todas as inconsciências? Aspesquisas de opinião respondem que, de todos osbrasileiros, o único que não tem medo de ser feliz jáganhou quarenta por cento das intenções de voto paraa Presidência.

Poderia ser uma coincidência, o efeito acidental deuma conjuntura. Mas, recuando em busca das suasraízes, vemos que esse efeito foi longamente desejadoe meticulosamente preparado pela mais hábil etalentosa geração de intelectuais ativistas jánascida neste país. A geração que, derrotada peladitadura militar, abandonou os sonhos de chegar aopoder pela luta armada e se dedicou, em silêncio, auma revisão de sua estratégia, à luz dos ensinamentosde Antonio Gramsci. O que Gramsci lhe ensinou foiabdicar do radicalismo ostensivo para ampliar amargem de alianças; foi renunciar à pureza dosesquemas ideológicos aparentes para ganhar eficiênciana arte de aliciar e comprometer; foi recuar docombate político direto para a zona mais profunda dasabotagem psicológica. Com Gramsci ela aprendeu queuma revolução da mente deve preceder a revoluçãopolítica; que é mais importante solapar as basesmorais e culturais do adversário do que ganhar votos;que um colaborador inconsciente e sem compromisso, decujas ações o partido jamais possa serresponsabilizado, vale mais que mil militantesinscritos. Com Gramsci ela aprendeu uma estratégiatão vasta em sua abrangência, tão sutil em seusmeios, tão complexa e quase contraditória em suapluralidade simultânea de canais de ação, que épraticamente impossível o adversário mesmo não acabarcolaborando com ela de algum modo, tecendo, comoprofetizou Lênin, a corda com que será enforcado.

A conversão formal ou informal, consciente ouinconsciente da intelectualidade de esquerda àestratégia de Antonio Gramsci é o fato mais relevanteda História nacional dos últimos trinta anos. É nela,bem como em outros fatores concordantes econvergentes, que se deve buscar a origem dasmutações psicológicas de alcance incalculável quelançam o Brasil numa situação claramentepré-revolucionária, que até o momento só dois

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observadores, além do autor deste livro, souberamassinalar, e aliás mui discretamente3.

A expectativa, a esperança, o anseio da revolução sãotão velhos, tão arraigados na alma da intelligentzianacional4 que, mesmo diante do fracasso mundial dosocialismo, ela não terá forças para resistir àtentação de fazê-la, agora que a conjuntura local,pela primeira vez na nossa História, lhe oferece osmeios de chegar ao poder. O Brasil, de fato, tem umdescompasso crônico em relação ao tempo da Históriauniversal. O reconhecimento mundial da debacle docomunismo ecoou neste país — paradoxalmente, segundoa lógica humana, mas coerentemente, segundo a linhaconstante da História nacional — como um toque deesperança: chegou a nossa vez de conquistar aquiloque já ninguém mais quer.

Durante algum tempo, nutri a insensata esperança deque o PT expeliria de si o veneno gramsciano e setransformaria no grande partido socialista, outrabalhista, de que o Brasil precisa para compensar,na defesa do interesse dos pequenos, o avançoneoliberal aparentemente irreversível no mundo, epropiciar, pelo sadio jogo de forças, o movimentoregular e harmônico da rotatividade do poder que é apulsação normal do organismo democrático. Movido poressa ilusão, votei em Lula para presidente. Hoje nãovotaria nele nem para vereador em São Bernardo. Éque, pela sucessão de acontecimentos desde a campanhado impeachment, o PT mostrou sua vocação, para mimsurpreendente, de partido manipulador e golpista,capaz de conduzir o país às vias fraudulentas da"revolução passiva" gramsciana, usando para isso dosmeios mais covardes e ilícitos — a espionagempolítica, a chantagem psicológica, a prostituição dacultura, o boicote a medidas saneadoras, a agitaçãohistérica que apela aos sentimentos mais baixos dapopulação —, e de adornar esse pacote de sujidadescom um discurso moralista que recende a sacristia. Opartido que, para sabotar um candidato, promove nolançamento da nova moeda algo como uma "grevepreventiva" sob a espantosa alegação de umapossibilidade teórica de danos salariais futuros,sabendo que essa greve resultará em aumento do preçodos combustíveis e em retomada do cicloinflacionário, dando facticiamente confirmaçãoretroativa aos danos anunciados, é que, francamente,decidiu imitar o capeta: produz o mal para no ventredele gerar o ódio, e no ventre do ódio o discurso de

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acusação. A greve dos petroleiros não deu certo, masela é o mais puro exemplo do que o povo denomina"apelação": o recurso extremo usado para finslevianos.

Se o PT faz isso, é porque perdeu sua confiança nofuturo majestoso a que o destinava a nossa democraciaem formação, e, excitado por indícios de um sucessomomentâneo que teme não repetir-se nunca mais,resolveu apostar tudo no jogo voraz e suicida do it'snow or never. Não quer mais apenas eleger opresidente, governar bem, submeter seu desempenho aojulgamento popular daqui a cinco anos, fazer Históriano ritmo lento e natural dos moinhos dos deuses: quertomar o poder, fazer a Revolução, desmantelar osadversários, expelir da política para sempre os quepoderiam derrotá-lo em eleições futuras. Nos termosda poesia de Murillo Mendes, preferiu, às "lentassandálias do bem, as velozes hélices do mal". Amitologia gramsciana, diagnosticando pomposamente a"transição para um novo bloco histórico", deu umalegitimação verbal a essas pretensões, e eis que oBrasil, mal tendo ingressado no caminho dademocracia, já se apressa a abandoná-lo pelo atalhoda Revolução. Aonde ele leva, é algo que o mundosabe, mas que importa o conhecimento do mundo àshordas de menores-de-idade que a lisonja esquerdistaconsagrada em norma constitucional transformou naparcela decisiva do eleitorado, dando-lhes poderantes de lhes dar educação? O que importa éaproveitar o momento, levar a todo preço o Lulalá,carregado nos ombros de garotos raivosos, insolentese analfabetos, e, antes que o "consenso passivo" dapopulação tenha tempo de avaliar o que se passa,atrelar irreversivelmente o país ao carro-bomba quese precipita, morro abaixo, no rumo da Revolução.

A geração que atingiu a idade adulta no momento emque a ditadura fechava as portas de acesso à vidapolítica está agora com cinqüenta anos. Ao longo dosúltimos trinta ela esperou, sonhou, planejou,desejou, cobiçou entre lágrimas de rancor impotente,e, sobretudo, leu muito Antonio Gramsci. Que aRevolução socialista já tenha mostrado ao mundo suaverdadeira face, que ela já tenha provado cabalmenteque não vale a pena, isto pouco interessa. A geraçãodos guerrilheiros fará o que longamente se preparoupara fazer. Pouco importa que, pelo relógio do mundo,tenha passado a hora. O fim da festa é, para ocatador de lixo, o sinal de que a sua festa está para

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começar.

Por essas razões é que este livro, aparentementeconstituído de pedaços inconexos, começa a mostrar,pela força dos acontecimentos externos, a unidadeque, no plano literário, o autor não teve o tempo ouo engenho de lhe dar. Sob a aparência comprometedorade uma salada histórica que mistura Lênin, o I Ching,Max Weber, Freud e o Comando Vermelho, ele aponta,pela ordem e, segundo creio, com lógica, o sintoma ea causa da doença da intelectualidade brasileira: aorigem ao menos parcial da nossa vulnerabilidade àfalsa mensagem do sr. Capra está nas idéias deAntonio Gramsci, transformadas em prática pelageração de intelectuais esquerdistas que, na IlhaGrande, fez ofício de parteira do Comando Vermelho, eque agora dá o tom da vida mental neste país. Se, naprimeira edição, não consegui dar desse fenômeno umaexposição seguida e coesa, tendo de adotar, em vezdisso, um enfoque prismático e desnivelado, antessugerindo em fragmentos do que declarando por extensoo sentido do conjunto, não foi por nenhuma intençãoprofunda: foi por autêntica incapacidade de fazer deoutro modo. Mas não creio, por isto, merecer censura:afinal, aqui foi dito aos trancos e pedaços o queninguém mais disse de maneira alguma. Do primeiro aesboçar a unidade de um quadro confuso, não se exigeque seja completo; e do primeiro a anunciar um perigoterrível, não se exige que fale claro e ordenadosegundo o bom estilo. Esbaforido e gaguejante,semilouco e abstruso, ele afinal presta um serviço deemergência. Como diz um provérbio árabe: "Não reparesem quem sou, mas recebe o que te dou."5

Rio de Janeiro, junho de 1994.

 

 

NOTA PRÉVIA [ DA 1A EDIÇÃO ]

 

A "NOVA ERA" da qual Fritjof Capra se tornoufestejado porta-voz e a "Revolução Cultural" deAntonio Gramsci têm algo em comum: ambas pretendemintroduzir no espírito humano modificações vastas,profundas e irreversíveis. Ambas convocam à rupturacom o passado, e propõem à humanidade um novo céu e

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uma nova terra.

A primeira vem alcançando imensa repercussão noscírculos científicos e empresariais brasileiros. Asegunda, sem fazer tanto barulho, exerce há trêsdécadas uma influência marcante no curso da vidapolítica e cultural neste país.

Nenhuma das duas foi jamais submetida ao mais breveexame crítico. Aceitas por mera simpatia à primeiravista, penetram, propagam-se, ganham poder sobre asconsciências, tornam-se forças decisivas na conduçãoda vida de milhões de pessoas que jamais ouviramfalar delas, mas que padecem os efeitos do seuimpacto cultural.

Para os adeptos e propagadores conscientes das duasnovas propostas, nada mais reconfortante do que apassividade atônita com que o público letradobrasileiro tudo recebe, tudo admite, tudo absorve ecopia, com aquele talento para a imitação maquinalque compensa a falta de verdadeira inteligência.

Mas a Revolução Cultural de Gramsci e o movimento da"Nova Era" não são simples modas, que se possamadotar e abandonar à vontade, com a despreocupação dequem troca de cuecas. São propostas de imensaenvergadura, que, uma vez aceitas, mesmoimplicitamente, mesmo informalmente, mesmohipoteticamente, levam a conseqüências de alcanceincalculável. Essas conseqüências não pouparão,decerto, aqueles que tiverem aderido às suas causaspor mero passatempo, sem uma clara consciência dasresponsabilidades em jogo. Não pouparão ninguém queesteja dentro do seu raio de ação. E todos estamos.

É, portanto, uma leviandade suicida absorver idéiascomo essas sem um exame crítico preliminar. É esteexame que inauguro no presente livreto, ciente deque, ao fazê-lo, me adianto a uma lerda opiniãopública que nem de longe levantou ainda as questõesaqui discutidas, mas nem por isto o faço com menoratraso em relação às exigências de minha própriaconsciência, que me cobra este trabalho desde quepela primeira vez falei em público sobre estesassuntos, em l987. Falador prolífico, sou tardo emescrever, motivo pelo qual meu sentimento de urgênciase transforma, às vezes, em sentimento de culpa. Aurgência, no caso, era a de esclarecer a ligaçãoentre aquelas duas correntes de pensamento; ligaçãoque, uma vez percebida, revela a inconsistência deambas, e de ambas nos liberta. Por não percebê-la, a

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mente brasileira gira hoje em falso em torno do eixobalizado por esses dois pólos. Pelo número de adeptose pelos postos estratégicos que alguns destes ocupamna sociedade, Capra e Gramsci dominam as duascorrentes mentais mais atuantes deste país. O fato deque jamais tenham sido confrontados e de que a idéiamesma de confrontá-los soe estranha mostra apenas queo país não tem clara consciência das alternativas emque se debate, e que a vida mental nele tende acindir-se em devoções estanques a deuses que sedesconhecem mutuamente e que mutuamente se hostilizamnas trevas, como espadachins vendados. Trata-seportanto, aqui, de esclarecer um conflitosubconsciente, em que o destino de um país se decideentre as sombras de um sonho. Brasil sonâmbulo: paraque sustentas com dinheiro e lisonjas os teusintelectuais, se não é para te revelarem a ti mesmo,para te dizerem o que se passa contigo para além dasuperfície do noticiário?

Os três capítulos que compõem este livro reproduzem,tanto quanto possível, o conteúdo de aulas econferências que dei sobre os respectivos temas, sejano Seminário Permanente de Filosofia e Humanidades,que dirijo no Instituto de Artes Liberais, seja foradele. O capítulo sobre Fritjof Capra foi redigido edistribuído aos meus alunos em setembro de l993,quando se anunciava a próxima vinda ao Brasil do guruda Nova Era, promovida pela Universidade Holística deBrasília. Os outros, seus naturais complementos comose verá, foram escritos agora em fevereiro de l994,especialmente para este livro. Os apêndices ilustramdetalhes que importam à compreensão do Cap. II.

Reconheço que, ao menos quanto a Gramsci, o exame queapresento é superficial, que haveria ainda milharesde coisas a dizer que aqui não foram ditas.6 Masalguém tem de começar, e, na falta de melhorescérebros que se dispusessem a digerir o assunto, acoisa sobrou para mim. Quanto a Capra, ele está longede representar a "Nova Era" na sua totalidade; emboraalguns vejam nele uma síntese desse movimento, eleconstitui apenas um seu sintoma, ainda que agudo esonante. Que ninguém me censure, portanto, aincompletude destas análises: minhas amostras levam orótulo de amostras, com altiva modéstia. Também nãotem, este trabalho, a menor pretensão de interferirno curso das coisas. Seu único anseio é fornecer, aosque tenham um sincero desejo de compreender osacontecimentos, alguns meios de fazê-lo. Ora, os que

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têm esse desejo são sempre poucos, no meio dovozerio, entusiástico ou ameaçador, dos que crêem jásaber tudo e que não aguardam senão com impaciênciaque o mundo se curve às suas propostas. Àquelespoucos e silenciosos, portanto, é dedicado estetrabalho. Dentre eles, destaco o romancista HerbertoSales, que leu em versão datilográfica o primeirocapítulo e lhe fez referências generosas, queagradeço comovido. Tanto mais comovido porque, se eutivesse de escolher um guru estilístico, ele nãoseria outro, na presente fase da nossa literatura,senão Herberto Sales. Destaco ainda o valente grupode alunos e ouvintes que há anos acompanha meutrabalho com um interesse que me reconforta.

Rio, fevereiro de l994

Olavo de Carvalho

 

NOTAS

V. José Arthur Gianotti, "Conversa com RichardRorty", Jornal do Brasil, 26 de maio de 1994. Éno mínimo estranho que um homem como Gianotti,tão valente ao expor idéias políticas mesmoquando lhe atraiam a ira dos sumos-sacerdotes daesquerda nacional, se cubra de cautelas aocriticar um pensamento tão vulnerável como o deRorty. Explica-se, talvez, pela crônica timidezuspiana, inibição intelectual que se tornou, emversão fetichizada, a caricatura tupiniquim do"rigor" ensinado pelos primeiros mestres —franceses — fundadores da USP. O "rigor" uspianoé na verdade moleza, tremor da geléiaterceiromundana ante a autoridade dos ídolos damoda — compensação junguiana pela petulância anteo legado espiritual do passado. Mesmo em suaversão original européia, herdeira de nobrestradições filosóficas, um rigorismo acadêmicoinibitório torna-se muitas vezes o refúgiocomunitário onde o intelecto mal dotado vaiabrigar-se contra os perigos da investigaçãosolitária — vale dizer, contra o exercício mesmoda filosofia. O verdadeiro rigor filosófico, aocontrário, é pura coragem interior, não se curvasenão ante a evidência e não tem nada de temorreverencial adolescente ( ou colonial ) ante osprestígios acadêmicos do dia. Com a ascensão daintelectualidade paulista ao primeiro plano davida nacional, a inversão uspiana do rigor, que

1.

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devota ao prestígio o culto que nega à verdade,ameaça contaminar o pensamento brasileiro como umtodo, selando a morte da inteligência nesta partedo mundo. Nada vai aqui contra Gianotti, homemcapaz e correto, que só peca por admirar quem nãomerece — ou por fingir admirar, talvez, já que ofloreio bajulatório involuntariamente irônico éoutra marca registrada do estilo uspiano, ondefaz as vezes de polidez acadêmica. Voltar

O Imbecil Coletivo. Atualidades InculturaisBrasileiras, Rio, IAL & Stella Caymmi Editora,1994, que forma, com o presente volume e com OJardim das Ilusões. Epicuro e a RevoluçãoGnóstica, que também virá a público em breve, umatrilogia dedicada ao estudo da patologia culturalbrasileira na presente fase da nossa História.Voltar

2.

Um deles foi Fernando Henrique Cardoso ( Jornaldo Brasil, 11 nov. 93 ), um homem que conhece asesquerdas muito bem e que, por isto mesmo, sentiuo dever de se opor a elas no momento em que maispoderia ajudá-las. O outro foi Oliveiros da SilvaFerreira, que vem explorando o assunto em váriosartigos publicados em O Estado de S. Paulo.Voltar

3.

O mito da Revolução Brasileira é um componenteativo do pathos esquerdista desde a década de 30."Fadado a um grande destino, o Brasil seria aterceira grande revolução neste século. Aprimeira, a União Soviética, segunda a RepúblicaPopular da China, e a terceira, a RepúblicaDemocrática Popular do Brasil" ( Luís Mir, ARevolução Impossível, São Paulo, Best Seller,1994, p. 10 ). Voltar

4.

Nada retirei nem alterei do original nestaSegunda Edição, apenas corrigi erros de grafia,acrescentei este Prefácio, uns quantos adendos, eadendos de adendos, e muitas notas de rodapé. Oleitor austero achará que são excrescênciascomplicatórias, mas gosto delas justamente porisso, porque eliminam do texto a enganosalinearidade e lhe dão aquele aspecto vivente derede nervosa, de trama vegetal, que faz com que,precisamente, um texto seja um texto. Voltar

5.

Limito-me ao estudo da estratégia e, maisbrevemente, de alguns aspectos da gnoseologia,

6.

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sem tocar por exemplo na sociologia gramsciana,que mereceria — não por seu valor científico, maspela força persuasiva da sua alucinantefalsificação da realidade — um exame mais atento.Prometo fazê-lo no livro O AntropólogoAntropófago. A Miséria das Ciências Sociais, asair no ano que vem. Também não pude senãomencionar de longe as concepções estéticas eliterárias de Gramsci, tão influentes até hoje,mas sobre as quais não pretendo escrever nadanunca, se os deuses me pouparem esse castigo. [Nota da 2a. ed. ] Voltar

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3a edição,revista e aumentada.

 

 

I

LANA CAPRINA,OU: A SABEDORIA DO SR. CAPRA

 

NO COMEÇO de novembro7 estará chegando ao Brasil osr. Fritjof Capra, chamado pela UniversidadeHolística de Brasília para falar sobre a Nova Era queele anuncia no seu livro O Ponto de Mutação.

A voz do sr. Capra não clamará no deserto. AUniversidade Holística já reuniu uma congregação deintelectuais locais para dizer-lhe amém. Entre osacólitos contam-se Frei Betto e o ex-reitor da UnB,Christovam Buarque. O sr. Capra, já se vê, não é umescritor como os outros: é um líder, uma autoridadeespiritual e, admitamos logo, um profeta.

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O conteúdo de suas profecias é bastante conhecido: OPonto de Mutação anda até nas mãos das crianças, queo debatem nas escolas. Mas, segundo a UniversidadeHolística, isso não basta. O sr. Capra tem de serouvido por todos os amigos da espécie humana. Pois,embora homônimo de um cineasta que se celebrizoupelas fitas de happy end, ele não garante nenhumfinal feliz para o nosso século a não ser que ahumanidade siga os seus conselhos. Passemos portantoa examiná-los, com a urgência requerida pelo caso.

Segundo o sr. Capra, a história do mundo chegou a umturning point, e deve mudar o seu curso. As trêsprincipais mudanças em pauta são as seguintes:primeira, a humanidade deixará de consumircombustíveis fósseis ( petróleo ); segunda, opatriarcado vai acabar; terceira, o paradigmacientífico vigente será substituído por um outro, debase holística. Estas três coisas já estãoacontecendo, mas, assegura o sr. Capra, urge apressara sua consumação, que marcará o advento da Nova Era.

Ao falar do primeiro item, o sr. Capra é muito breve,como convém aos profetas. Em vez das longas análisesque concede aos dois outros temas, ele emite apenasesta profecia: "Esta década será marcada pelatransição da era do combustível fóssil para uma novaera solar, acionada por energia renovável oriunda doSol." Tendo o livro sido publicado em 1981, a décadaa que o sr. Capra se refere terminou em 1990. Bem,nem todos os profetas dão sorte. Mas, se a mencionadaprofecia vier a cumprir-se com quatro, cinco ou novedécadas de atraso, o sr. Capra sempre poderá alegarque S. João Evangelista também não foi muito precisoquanto à data do Apocalipse.

Como muitos outros profetas, o sr. Capra podequeixar-se de ser um incompreendido. Eu, por exemplo,não compreendo como é que o mundo poderia ter saltadodireto da era dos combustíveis fósseis para a daenergia solar, sem passar pela era atômica, na qualjá estávamos na data de emissão da profecia e na qualcontinuamos a estar após a data do seu vencimento.Mas talvez a intuição profética do sr. Capra opere àvelocidade da luz, saltando etapas. Eis aí aliás umbom motivo para saltarmos logo para o item seguinte,já que o primeiro capítulo da mutação não teve umhappy end.

O patriarcado consiste, segundo o sr. Capra, num

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complexo de três elementos: primeiro, o domínio dohomem sobre a mulher; segundo, o domínio da espéciehumana sobre a natureza; terceiro, o predomínio darazão ( faculdade masculina ) sobre a intuição( feminina ). São três lados de um fenômeno único,que o sr. Capra resume como a supremacia do yangsobre o yin.

É, como se vê, um tipo especial de patriarcado, bemdiferente daquele que podemos encontrar nos livros dehistória e sociologia. Pois estes nos dizem que oaumento do poderio técnico sobre a natureza abalou oregime de propriedade rural no qual se esteava opatriarcado; e que o advento do Império da Razão,trazido no bojo da Revolução Francesa, promoveu logoem seguida a igualdade de direitos para homens emulheres, desferindo o golpe de misericórdia naautoridade do pater familias. Em suma, que das trêscoisas que o sr. Capra reúne sob o rótulo comum de"patriarcado", duas são precisamente o contrário. Masos profetas não ligam para as ciências profanas. Nonenim cogitationes meae cogitationes vestrae, já nostinha advertido a Bíblia. O sr. Capra, com efeito,não pensa como nós.

Mas há algo nele que pelo menos alguns de nós podemcompreender perfeitamente bem. Sendo a lógica, no seuentender, uma expressão do abominável patriarcadocujo fim ele deseja, ele não poderia mesmo obedecê-lasem tornar-se, ipso facto, ilógico. É então por umasimples questão de lógica que ele opta por serilógico. Qualquer bebê de colo pode compreender isto.O difícil é compreendê-lo quando já não se é um bebêde colo. Para ser admitido nos céus da Nova Era, oleitor deve portanto tornar-se como os pequeninos.

Eis aqui um caso típico. Para livrar-se do odiosopatriarcado, diz o nosso profeta, a humanidadedeveria inspirar-se no exemplo da civilizaçãochinesa, cuja concepção da natureza humana, expressasobretudo no I Ching, "está em flagrante contrastecom a da nossa cultura patriarcal". Buscando agoramunição antipatriarcal nas páginas do I Ching, oleitor encontrará, no hexagrama 37, as seguintesrecomendações: "A esposa deve ser sempre guiada pelavontade do senhor da casa, isto é, pelo pai, pelomarido ou pelo filho adulto. O lugar dela é dentro decasa." A vida que Betty Friedan pediu a Deus. Aliás,segundo informa Marcel Granet no clássico La

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Civilisation Chinoise8, o feudalismo chinês, períodono qual se redigiu o grosso dos comentários do IChing, "repousa sobre o reconhecimento do predomíniomasculino". A China a que o sr. Capra se refere nãodeve portanto ser a mesma que os geógrafos profanosconhecem por esse nome.

O que o sr. Capra não pode mesmo é ser acusado defacciosismo sinófilo. Pois, se ele rejeita a lógicaocidental, nem por isto se curva às exigências daoriental. Segundo ele, o yang representa a razãoanalítica, que divide, e o yin a intuição, queunifica. Os chineses, nada entendendo destassutilezas, representaram o divisivo yang por um traçocontínuo, e o unificante yin por um traço dividido aomeio. Na Nova Era, as edições do I Ching virãodevidamente retificadas.

Enquanto essas edições não aparecem, o sr. Capra jávai tratando, por conta, de introduzir no pensamentochinês umas modificações mais sérias. Ele diz, porexemplo, que na civilização chinesa o homem nãoprocura dominar a natureza, mas integrar-se nela.Novamente, a sabedoria chinesa do sr. Capra pegou aChina desprevenida: um chinês nem mesmo entenderiaessa frase, pela razão de que na sua língua não háuma palavra que signifique "natureza" no sentidoocidental, isto é, ao mesmo tempo o mundo visível e aordem invisível que o governa ( ambiguidade que aslínguas modernas herdaram do grego physis ). O chinêsé nisto, com o perdão da palavra, mais "analítico":tem um termo para designar o mundo visível ( khien ),e um outro ( khouen ) para a ordem invisível. Paracompensar, o mundo visível ou khien abrange,"sinteticamente", tanto a natureza terrestre quanto asociedade humana. O sr. Capra não diz a qual das duas"naturezas" o homem deveria integrar-se, mas é claroque ninguém poderia integrar-se em ambassimultaneamente e de um mesmo modo. Os antigoschineses já haviam advertido isto, e resolveram acontradição propondo uma dualidade de atitudes parafazer face a esse duplo aspecto da natureza: o sábio,diz o I Ching, deve buscar ativamente integrar-se naordem invisível ou khouen ( chamada por isto"perfeição ativa" ) e contornar suavemente as

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exigências da natureza terrestre ( khien ou"perfeição passiva" ). Dito de outro modo:integrar-se na ordem celeste, integrando em si esuperando dialeticamente a ordem terrestre ( eportanto absorvendo-a, por sua vez, na ordemceleste ). O "celeste" e o "terrestre", nessesentido, identificam-se respectivamente ao dharma eao kharma da tradição hindu. O homem não se "integra"no kharma, porém "absorve-o" na medida em que seintegra no dharma: livra-se do peso da terra namedida em que atende ao apelo celeste. Exatamente nomesmo sentido diz o cristianismo que o homem vence anecessidade natural na medida em que segue as vias daProvidência. Não é bem o que diz o sr. Capra.

O ideograma Wang ( "o Imperador" ) esclarece issomelhor. Ele constitui, por si, um compêndio decosmologia chinesa. Compõe-se de três traçoshorizontais — o Céu em cima, a Terra em baixo, oHomem no meio, formando a tríade Tien-Ti-Jen,"Céu-Terra-Homem" — cortados por um traço vertical, oTao, que se traduz um tanto convencionalmente por Leiou Harmonia. A Harmonia consiste em que cada coisafique no lugar que lhe cabe, de modo que, por trás detodas as mudanças por que passa o mundo, a ordemsuprema não seja violada ( embora neste mundo deaparências ela o seja necessariamente, pois, comodizia o Evangelho, "é necessário que haja escândalo";mas no fim todas as desordens parciais sãoreintegradas na ordem total ).

Na Tríade chinesa, o homem é chamado "filho do Céu eda Terra". Sendo o Céu o pai, já se vê, pelohexagrama 37, quem é que manda. O homem governaportanto o mundo visível, mas não o faz por arbítriopróprio, e sim em nome de uma ordem transcendente.Tien não significa o "céu" no sentido material, mas a"perfeição celeste" ou mais propriamente a "vontadedo Céu"; em inglês, que o sr. Capra compreendemelhor, não o sky, mas o heaven, morada do EspíritoSanto. O sábio ou imperador apreende no invisível avontade do Céu e a põe em execução na Terra. Na salacentral do seu palácio, ele cumpre diariamente ritosde um complexo simbolismo geométrico e numerológico( similar ao do pitagorismo ), mediante os quais osarquétipos celestes "descem" ( exatamente como namissa "desce" o Espírito Santo ) para trazer à Terraa ordem e a harmonia. Se o imperador pára de fazer osritos, a Terra — sociedade e natureza ao mesmo tempo

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— entra em convulsão, espalham-se por toda parte aignorância, o medo, a violência, a fome, a peste.

Não era só a interrupção dos ritos que podia trazer acatástrofe. "O imperador — escreve Max Weber em AReligião da China — tinha de se conduzir segundo osimperativos éticos das escrituras clássicas. Omonarca chinês permanecia basicamente um pontífice.Ele tinha de provar que era mesmo 'filho do Céu', oregente aprovado pelos Céus, para que o povo, sob oseu governo, vivesse bem. Se os rios arrebentavam osdiques ou a chuva não caía apesar de todos os ritos,isto era prova — acreditava-se expressamente — de queo imperador não tinha as qualidades carismáticasrequeridas pelo Céu."

O homem governa a Terra, mas em nome do Céu. Governacomo pontifex, "construtor de pontes", que liga aTerra ao Céu através do Reto Caminho, o Tao. Caso seafaste do Reto Caminho, ele perde de vista a Vontadedo Céu e já não pode governar senão em nome próprio,como tirano e usurpador. Aí, num choque de retorno,ele perde seu poder e cai sob o domínio das potênciasterrestres que antes comandava. Como a Terra designaao mesmo tempo a natureza física e a sociedadehumana, o choque pode significar tanto uma revoluçãocivil ou golpe militar, quanto uma tempestade outerremoto. O monarca que cai representa, poranalogia, qualquer homem que, rompendo com a ordemceleste, perca de vista o seu destino ideal e caiapresa das paixões abissais. É a situação descrita nohexagrama 36, O Obscurecimento da Luz: "Primeiro elesubiu ao Céu, depois mergulhou nas profundezas daTerra." O comentário tradicional, resumido porRichard Wilhelm, é o seguinte: "O poder da trevasubiu a um posto tão alto que pode trazer dano aquantos estejam do lado do bem e da luz. Mas no fim opoder das trevas perece por sua própria obscuridade."

Já se vê que o conselho do sr. Capra, afetado pelaambiguidade da palavra "natureza", pode ter doissignificados opostos: com "integrar-se", pretende eleque obedeçamos à Vontade do Céu ou que mergulhemosnas profundezas da Terra? As falas dos profetas,quando obscuras, merecem interpretação.Interpretemos.

Na versão do sr. Capra, o Céu não é mencionado. Atríade fica reduzida a uma dualidade: de um lado ohomem, de outro a natureza visível. O macho e a

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fêmea. O yang e o yin. A cada um só resta aalternativa de subjugar o outro ou "integrar-se"nele. O homem da civilização industrial optou pelaprimeira hipótese. O sr. Capra advoga a segunda.

É verdade o que diz o sr. Capra, que a civilizaçãoocidental optou por dominar a natureza. Mas é verdadetambém que, desde o Renascimento ao menos, ela apagou( exatamente como o sr. Capra ) toda referência a umaordem transcendente ( Tien ) e deixou o homemsozinho, face a face com a natureza material. Desdeentão a história das idéias ocidentais tem sidomarcada por uma oscilação pendular entre asideologias da dominação e as ideologias da submissão:classicismo e romantismo, revolução e reação,historicismo e naturalismo, cientificismo emisticismo, ativismo prometéico e evasionismoquietista, marxismo e existencialismo e, last notleast, revolução cultural socialista versus ideologiada "Nova Era".

É neste último par de opostos que reside a chave paraa compreensão do nosso profeta. O sr. Capra acerta namosca ( nenhum profeta pode realizar o prodígio deerrar sempre ) ao dizer que sua visão da históriacultural é uma alternativa ao marxismo. Para Marx eseus epígonos, a natureza nada mais é que o cenárioda história humana. Está aí não como um ser, umasubstância ontológica que o homem deva contemplar erespeitar em sua constituição objetiva, mas comomatéria-prima a ser apropriada e transformadalivremente segundo o arbítrio humano. A natureza, emMarx, é ancilla industriae. O marxismo prossegue atradição de prometeanismo revolucionário doRenascimento, potencializando-a mediante a submissãocompleta e explícita da natureza à história. A isto éque se opõe a ideologia da Nova Era.

Mas ela não se opõe somente ao marxismo em geral, esim a uma forma específica de marxismo, que também,como ela, quis operar uma "mutação", um giro de centoe oitenta graus na orientação do pensamento humano. Ofundador desta corrente marxista foi o ideólogoitaliano Antonio Gramsci ( 1891-1937 ). O gramscismopropõe uma revolução cultural que subverta todos oscritérios admitidos do conhecimento, instaurando emseu lugar um "historicismo absoluto", no qual afunção da inteligência e da cultura já não sejacaptar a verdade objetiva, mas apenas "expressar" acrença coletiva, colocada assim fora e acima da

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distinção entre verdadeiro e falso. É a totalsubmissão do "objeto" ( natureza ) ao "sujeito"( humanidade histórica ). Neste novo paradigma, aênfase da atividade científica já não cai noconhecimento objetivo da natureza ( descrição exatada sua aparência visível e investigação dosprincípios invisíveis que a governam ), mas sim nasua transformação pela técnica e pela indústria, aisto correspondendo, na esfera das idéias, umaespécie de "revolução permanente" de todas ascategorias de pensamento a suceder-se numa aceleraçãovertiginosa do devir histórico.

Contra isto levantou-se a ideologia da Nova Era. Aoprometeanismo revolucionário, ela opõe a "integraçãona natureza"; à aceleração da história, o equilíbrio"ecológico" da Nova Ordem Mundial; e, ao historicismoabsoluto, o "fim da História". Capra é inconcebívelsem Fukuyama. Capra é a casca da qual Fukuyama é omiolo. Todo o vistoso "esoterismo" da Nova Era, comsuas iniciações secretas, seus gurus, seus magos eseus ritos, não constitui senão o exoterismo, oaparato religioso externo e social, cujo interior,cujo "sentido esotérico" é na verdade uma ciência bemmoderna, racional e profana: o planejamentoestratégico. Fukuyama está para Capra exatamente comoo esoterismo está para o exoterismo, como a Igreja deJoão está para a Igreja de Pedro. Mas ambas, cadaqual no seu plano e pelos meios que lhe são próprios,combatem um mesmo adversário.

O gramscismo fez muito sucesso nos anos 60,inspirando a febre passageira do eurocomunismo erevigorando algumas esperanças comunistas. No Brasil,conquistou praticamente a esquerda inteira, e o PT éum partido essencialmente gramsciano, admita-o ou nãoexplicitamente. Mas o intento de renovação foi fracoe tardio: o comunismo acabou sendo derrotado pelaascensão mundial da ideologia da Nova Era. Afinal, amistura de física quântica e simbolismos orientais,experiências psíquicas e sexo livre, promessas de paze miragens de auto-realização, que essa ideologiaoferece, é infinitamente mais sedutora do quequalquer "historicismo absoluto". O Brasil, sempreatrasado, é um dos poucos lugares do mundo onde ocombate ainda prossegue, com um feroz núcleo deremanescentes gramscianos oferecendo uma quixotescaresistência local aos exércitos triunfantes da NovaEra.

Mas, se o prometeanismo revolucionário representou o

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máximo da hybris, da avidez dominadora do homem sobrea natureza, a ideologia da Nova Era não é outra coisasenão o choque de retorno anunciado pelo I Ching.

A Nova Era venceu a revolução gramsciana. Mas foi umateratomaquia: um combate de monstros. Diriam oschineses que foi um combate suicida: que, sem aobediência comum a Tien, a luta entre Ti e Jen sópode terminar pelo "Obscurecimento da Luz". A vitóriada Nova Era prenuncia, portanto, o próximo passo dociclo das mutações: a humanidade vai cair daautoglorificação prometéica na passividade inerme;vai integrar-se, "ecologicamente", no equilíbrio daNova Ordem Mundial, onde o conformismo coletivo seráassegurado mediante a justa repartição dos meios desatisfazer as paixões mais baixas e mediante umarremedo de religiosidade externa que dará a essaspaixões uma aura lisonjeira de "profundidade" e"autoconhecimento".

Pode-se interpretar isso psicanaliticamente. GérardMendel, no seu livro La Révolte contre le Père, umadas mais importantes contribuições das últimasdécadas à psicanálise freudiana, diz que, ao longo dahistória, o impulso do homem para superar o pai temsido, como pretendia Freud, um dos mais potentesmotores do progresso. Mas este impulso, prossegueele, pode tomar duas direções: ou o homem supera evence o pai carnal integrando-se na ordem racionalrepresentada pelo pai ideal, ou manda logo às urtigasa ordem ideal para, livre de toda trava moral, mataro pai carnal e tomar posse da mãe. Esta últimaalternativa é a revolta prometéica, a que se segue,num choque de retorno, a queda no irracional, aregressão uterina, a "integração" do homem nastrevas. Daí, segundo Mendel, a importânciaantropológica, e também psicoterapêutica, daspalavras da mais célebre oração cristã: a "revoltacontra o pai" só é saudável e frutífera quandoempreendida "em nome do Pai". Trocando em miúdoschineses: o pai carnal é, para o homem adulto( Jen ), nada mais que um aspecto de Ti, a Terra. Épreciso submetê-lo à ordem celeste, Tien ou paiideal, para aí então poder assumir, sem usurpação nemviolência, o governo justo e harmônico da Terra.Sempre achei que o dr. Freud tinha algo de chinês.

Nos termos de Mendel, a revolução gramsciana é arevolta destrutiva contra o pai, e a ideologia daNova Era, com seus apelos à fusão das consciências

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individuais numa sopa de miragens holísticas, é aregressão uterina que se lhe segue. Todas asregressões uterinas anunciam-se pela exacerbação dafantasia, pelo chamamento hipnótico das esperançasinsensatas, pela antevisão mediúnica de delícias semfim. Todas terminam na escravidão abjeta, napassividade inerme ante a agressão das forçasabissais, no obscurecimento da luz.

É inevitável que haja escândalo. A Nova Era venceu oprometeanismo gramsciano, e sai de baixo: lá vem ohexagrama 36. There's coming a shitstorm e FritjofCapra é o seu profeta. Mas, no fim, que por certo nãose anuncia breve, o poder das trevas sucumbirá porforça da sua própria obscuridade.

Findo o período das trevas, assegura o Apocalipse, aloucura dos novos profetas que arrastaram ahumanidade ao erro será exibida à plena luz do dia, etodos a verão.

Como a Nova Era ainda mal começou, não está na horade fazer o show completo. Por enquanto, tudo o que sepode fazer é dar umas amostras preliminares, queatestem, para as gerações vindouras, a realidade deum passado que lhes parecerá inverossímil. Como disseo sábio Richard Hooker ante o avanço do besteirolpuritano no séc. XVI, quando tudo isto tiver passado"a posteridade poderá saber que não deixamos, pelosilêncio negligente, as coisas se passarem como numsonho".

De amostras está cheio o livro do sr. Capra. Porémmanda a justiça que as selecionemos segundo agradação de importância que lhes dá o próprio autor.Devemos portanto agora examinar o terceiro "ponto demutação": a revolução do paradigma científico.

Neste terreno o sr. Capra não parece estar emdesvantagem como no mundo chinês, que só conheceu porfontes de terceira mão. Doutor em física pelaUniversidade de Viena, ele não pode ignorar ahistória da ciência ocidental como ignora acivilização chinesa. Mas quem disse que não pode? Aosprofetas tudo é possível.

Segundo o sr. Capra, "o paradigma ora emtransformação dominou a nossa cultura por muitas

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centenas de anos"; ele "compreende certo número deidéias" que "incluem a crença de que o métodocientífico é a única abordagem válida doconhecimento; a concepção do universo como um sistemamecânico composto de unidades materiais elementares;a concepção da vida em sociedade como uma lutacompetitiva pela existência". Essas concepções têm osnomes respectivos de: cientificismo, mecanicismo esocial-darwinismo ou darwinismo social. Repito:segundo o sr. Capra, elas dominam a nossa cultura hámuitas centenas de anos. Isto sugere duas perguntas.Primeira: Que é "dominar uma cultura?" Segunda:Quanto é "muitas centenas"?

Dizemos que uma certa idéia domina uma culturaquando: primeiro, ela é acreditada pelos intelectuaismais importantes de todos os setores; segundo, asidéias concorrentes ou já não são férteis, querdizer, já não se expressam em obras poderosas esignificativas, ou então desapareceram completamentede cena. Assim, por exemplo, o cristianismo dominou aIdade Média porque, de um lado, todos os filósofos eos homens cultos em geral eram cristãos e, de outrolado, as correntes de pensamento não-cristãs, aindaque persistindo vivas pelo menos no subconscientecoletivo, não produziram nesse período nenhuma obradigna de atenção. Dizemos que o marxismo dominou acultura soviética até a década de 60 porque nesseperíodo nenhum intelectual eminente que residisse naURSS produziu nenhuma idéia que saísse dos quadrosconceptuais do marxismo e porque as subcorrentesnão-marxistas ( exceto no exílio e em línguasocidentais ) nada criaram de significativo.

Nesse sentido estrito, nenhuma das três idéias quecompõem o "paradigma dominante" jamais foi dominanteem parte alguma do Ocidente. Desde que surgiram, astrês foram incessantemente contestadas, combatidas,refutadas, rejeitadas no todo ou em parte porintelectuais importantes. De outro lado, correntesabertamente hostis a essas idéias continuaram férteiso bastante para produzir algumas das obras maissignificativas de seus respectivos campos.

Vejamos o mecanicismo. Como pode ser "dominante" umacorrente que, desde seu nascimento, é rejeitada porgigantes como Leibniz, Schelling, Vico, Schopenhauer,Driesch, Fechner, Boutroux, Nietzsche, Weber,Kierkegaard e muitos outros, até ser derrubada noséculo XX pela teoria de Planck?

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A rigor, o mecanicismo só foi dominante, e mesmoassim com reservas, numa certa parte do mundo, quepara o sr. Capra é "o" mundo: os círculosuniversitários anglo-saxônicos. Que esse mundinhotradicionalmente presunçoso e seguro de si se abrahoje para novas idéias, que se disponha até a ouviros orientais sem a tradicional incompreensãocolonialista, é sem dúvida uma novidade auspiciosa.Mas uma novidade local. Não há meio mais seguro detornar provinciano um povo do que persuadi-lo de queele é o centro do mundo. Desde esse momento eledeclara inexistente ou irrelevante tudo o que saia doseu campo de visão, e quando finalmente descobre algoque todo o resto do mundo já sabia dá a estadescoberta uns ares de revolução mundial.

Quanto ao cientificismo, tanto se escreveu contraele, que é perfeitamente errado considerá-lodominante mesmo num sentido atenuado do termo. Paraisto seria preciso excluir do primeiro plano dacultura o marxismo, a psicanálise, a fenomenologia, oneotomismo e o existencialismo, pelo menos. Aqui,novamente, o sr. Capra toma como mundialmentedominante a opinião de um grupo restrito.

O darwinismo social, por sua vez, só chegou a serdominante, como crença pública, num único país domundo: nos Estados Unidos. Nunca entrou, por exemplo,nos países comunistas e no mundo islâmico, que,somados, completam quase dois terços da humanidade.Nos países católicos, foi recebido desde logo comoperversa anomalia, suscitando reações de escândalo deque dão testemunho as encíclicas sociais dos papasdesde pelo menos Leão XIII.

Mas, além de afirmar que essas três crenças "dominamo mundo", o sr. Capra ainda assegura que o fazem "hámuitas centenas de anos". Contemos a história.

A mais velha das três é o mecanicismo. Prenunciadopor Descartes, foi formulado plenamente por IsaacNewton ( Princípios Matemáticos da Filosofia Natural,1687 ), mas só se tornou conhecido daintelectualidade européia em geral a partir de 1738,quando Voltaire divulgou em linguagem compreensívelaos leigos os Elementos da Filosofia de Newton.

Não foi só fazendo divulgação científica que Voltairepromoveu a vitória de Newton. Ele tanto difamou comironias grosseiras o principal opositor de Newton,G.-W. von Leibniz, que os contemporâneos cessaram de

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prestar atenção ao que este dizia. Leibniz caiu emquase descrédito até o século XX, quando aredescoberta de suas idéias ocasionou avançosprodigiosos nas matemáticas, na lógica e nas ciênciasda natureza. A nova física de Planck e Heisenbergveio a dar razão a Leibniz contra Newton,substituindo o mecanicismo pelo probabilismo. Estasubstituição poderia ter ocorrido dois séculos antes,se Voltaire, imperador da opinião pública no séculoXVIII, não tivesse tecido em torno de Leibniz umateia de preconceitos duradouros. Por ironia, Voltaireentrou para a História como o inimigo de todo atrasoe de todo preconceito.

Mas, de qualquer modo, a opinião de Voltaire não sepropagou com a velocidade do raio. Demorou duas outrês décadas, pelo menos, para tornar-se crençadominante na Europa inteira. Por volta de l780, omecanicismo gozava de um prestígio invejável, e podeser dito, desde então, dominante, se dominante nãoquer dizer unanimemente aceito, ou aceito semreservas. Não se pode esquecer a oposição que lhemoveram o vitalismo de Goethe e Driesch, ocontingencialismo de Boutroux e muitas outrascorrentes, até o golpe de misericórdia desferido porPlanck e Heisenberg.

No momento em que o sr. Capra redigia O Ponto deMutação, o mecanicismo estava completando portantodois séculos de glória incessantemente contestada ede periclitante reinado sobre as facções majoritáriasdo mundo acadêmico. Isto é bem diferente de umdomínio de muitos séculos sobre todo o mundo.

Quanto ao darwinismo social, é um filhote dodarwinismo biológico e não poderia ter nascido antesdo pai. O princípio da "subsistência do mais apto"surgiu como uma teoria biológica e só depois, aospoucos, foi se transformando num argumento ideológicopara a legitimação retroativa da concorrênciacapitalista.

A Origem das Espécies é de 1859. Herbert Spencer, nosseus Primeiros Princípios, publicados em l862, ampliao alcance das idéias evolucionistas, fazendo delas umprincípio sociológico. Paralelamente, ocultistas comoAllan Kardec e Madame Blavatski pegam no ar o termo"evolução" e lhe dão um sentido místico, oumisticóide: já não são somente os anfíbios queevoluem em répteis, e estes em mamíferos; são as

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almas desencarnadas que, no outro mundo, evoluem em"seres de luz", subindo na escala cósmica enquanto osmacacos descem das árvores. Revestida de mil e umsentidos, a palavra "evolução" se dissemina, e surgemos debates públicos, que atraem a atenção dosintelectuais para o potencial político-ideológico doevolucionismo. Os debates alcançam um auge de sucessocom a conferência de Thomas Henry Huxley, "Evolução eética", em 1892. Aí está aberto o caminho para alegitimação do capitalismo liberal pela"sobrevivência do mais apto". O resto vem com oslivros de Gustav Ratzenhofer ( Natureza e Finalidadeda Política, 1893 ) e William G. Sumner ( Folkways,l906 ), que fundamentam explicitamente a noção de"evolução social", dando aos ideólogos capitalistas oprecioso slogan de que necessitavam. O darwinismosocial tem, portanto, pouco mais ou pouco menos doque um século. Tinha menos no momento em que o sr.Capra redigia o seu livro.

Finalmente, o cientificismo. A rejeição formal ecompleta, em nome da ciência, de qualquer explicaçãofilosófica ou teológica da realidade, foi proposta,pela primeira vez, por Augusto Comte ( Discurso sobreo Espírito Positivo, l844 ). Mas Comte aindareservava para a filosofia a tarefa de síntese eordenação do conhecimento científico, e Comte só foiaceito sem contestação num único lugar deste planeta:no Brasil! ( Em 1914, o positivista Alain atribuía aguerra mundial ao fato de nenhum outro país do globohaver seguido o exemplo do Brasil, que adotara nabandeira republicana o positivismo como doutrinaoficial do Estado: Ordem e Progresso é, com efeito, oresumo da filosofia comtiana. ) Uma declaração formale taxativa de cientificismo, com a completa demissãode todas as demais formas de conhecimento como vaziasou insignificantes, só veio mesmo em 1934, com RudolfCarnap, em Sintaxe Lógica da Linguagem. Mas Carnapnão era nenhum Voltaire, para contar com a imediataaprovação de um vasto público. A maioria dosfilósofos do século XX rejeitou categoricamente ocientificismo, que só exerceu domínio sobre gruposdeterminados, principalmente no mundo anglo-saxão.Contemporaneamente à declaração de Carnap, omatemático e filósofo Edmund Husserl, fundador dafenomenologia — escola que iria gerar Heidegger,Scheler, Hartmann, Sartre e Merleau-Ponty, entreoutros —, fazia na Universidade de Praga as célebresconferências depois reunidas no livro A Crise das

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Ciências Européias, em que negava o cientificismopela base e desde dentro: as ciências físicas, diziaele, haviam perdido o seu essencial fundamentocientífico e já não serviam como modelo deconhecimento da realidade. Husserl era e é pelo menostão influente quanto Carnap, embora não tanto nomundo anglo-saxônico que é o limite do horizontemental do sr. Capra.

Em suma, o cientificismo, que "domina a nossa culturadesde há séculos", está completando sessentaprimaveras neste ano de 1994. Mas, para cúmulo, suaprimeira manifestação ostensiva já foi posterior, detrês décadas, à publicação dos primeiros trabalhos deMax Planck, cujo indeterminismo viria a ser uma dasbases do "novo paradigma" cujo advento o sr. Capraveio agora nos anunciar. O novo paradigma é um tantoanterior ao velho.

O sr. Capra, como se vê, pouco entende dos assuntosem que exerce, para um público multitudinário, umaautoridade profética. Ele prima pela carência deinformação elementar sobre a cosmologia chinesa, naqual diz basear sua visão da história cultural, bemcomo sobre a história cultural mesma, que eleprocura, mediante generalizações grosseiras, eescandalosas alterações da cronologia, encaixar àforça num modelo preconcebido.

Não questiono, aqui, a validade da proposta holísticaem geral. Reservo-me o direito de fazê-lo num outrotrabalho. Apenas creio que ela deve ter defensores umpouco mais qualificados do que o sr. Capra.

Meu propósito foi dar um testemunho sobre um fato derelevância mundial, que acontece bem diante dasnossas barbas, e de cuja realidade as geraçõesvindouras terão o direito de duvidar. Pois, para arazão e o bom-senso, não é verossímil que milhares deintelectuais de prestígio, em seu juízo perfeito,possam aceitar e aplaudir como um marco da históriado pensamento uma obra como O Ponto de Mutação, quenão atende sequer aos requisitos mínimos deinformação fidedigna, de autenticidade das fontes ede rigor conceptual que se exigem de uma tese demestrado. Dentre tantos outros defeitos que um livropode ter, este padece do único que não se podetolerar em hipótese alguma: a ignoratio elenchi, a

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ignorância completa do assunto. O sr. Capra define oseu livro, pretensiosamente, como um novo modelo dehistória cultural baseado nas concepções chinesas dohomem e do universo. Mas ele não estudou o suficientenem a história cultural nem as concepções chinesaspara que sua opinião a respeito possa ter qualquerimportância objetiva, fora do seu círculo deconvivência pessoal. O conteúdo de sua propaladasabedoria do assunto é pura lana caprina.

O sucesso deste livro só pode ser explicado por umúnico fator, inteiramente alheio ao seu valorintrínseco: sua oportunidade. Ele diz o que aspessoas desejam ouvir, no momento em que o desejam.Ele oferece uma perspectiva sedutora a um público quepede para ser seduzido.

Que esse público não inclua somente popularesincultos, mas intelectuais de projeção, e que estesse prontifiquem a aceitar as promessas do autor sempedir-lhe sequer as credenciais científicas que seexigem de um estudante de faculdade, é realmente umacontecimento inverossímil.

Mas, dizia Aristóteles, não é mesmo verossímil quetudo sempre se passe de maneira verossímil. Oinverossímil aconteceu. Ele atesta que, após séculosde fúria iconoclástica voltada contra todas ascrenças do passado e os valores de outrascivilizações, a opinião letrada do Ocidente enfim secansou de ser arrogante; mas, em vez de umarrependimento sincero, está encenando diante de nósum arremedo de conversão, que deixa à mostra todas asmarcas do fingimento histeriforme. Estonteada pelavisão súbita de suas próprias culpas, ela abjurou detoda precaução crítica como quem repele um vício dopassado; e entregou-se, inerme e crédula, ao culto doprimeiro ídolo que lhe ofereceu uma promessa dealívio. Ela pensa ou finge pensar que esse ídolo é oseu salvador. Na verdade é a sua Nêmesis.

Mas não é só ela que está enganada. O profeta doengano também se engana: ele imagina trazer ao mundoa sabedoria, quando traz o obscurecimento e aconfusão. Imagina trazer uma nova profecia, quandotraz o cumprimento de uma velha maldição.

Mas não posso encerrar estas considerações sobre o

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profeta da Nova Era sem fazer, também eu, umaprofecia: nos séculos vindouros, quando puderemencarar o nosso tempo com alguma objetividade, ofenômeno da Nova Era será considerado um escândaloque depõe contra a inteligência humana.

É forçoso que venha o escândalo. Nada se pode fazerpara evitá-lo. Nem mesmo vou sugerir, como Jesus, quese amarre ao seu portador uma pesada pedra, parajogá-lo ao fundo do mar. Pois, como diria o hexagrama36, ele já está no fundo. Tudo o que posso fazer édeixar à posteridade, se vier a ter notícia destaspáginas, um testemunho pessoal destes temposobscuros: Nem todos, nem todos acreditaram no falsoprofeta9.

 

Adendo

Há no livro do sr. Capra uma infinidade de erros econtra-sensos, além dos mencionados. Apontá-los ecorrigi-los todos requereria um volumoso comentário:uma lei constitutiva da mente humana concede ao erroo privilégio de poder ser mais breve do que a suaretificação.

Mas vale a pena dar mais algumas amostras, para que oleitor veja quanto um erro nas premissas pode serfértil em consequências:

l. O sr. Capra combate o uso da energia nuclear,mesmo para fins pacíficos, mas, ao mesmo tempo, fazda física moderna um dos fundamentos do "novoparadigma" que propõe. Ele separa a física enquantomodalidade de conhecimento teórico e a natureza dassuas aplicações práticas, como se uma não decorresseda outra necessariamente.

O sr. Capra é, nisto, perfeitamente inconsequente como método holístico que advoga. Para o holismo, todaseparação estanque entre uma idéia e suasmanifestações práticas é nada mais que umabstratismo. Holisticamente falando, o efeitobenéfico ou destrutivo dos engenhos nucleares tem deestar arraigado no próprio modus cognoscendi que osproduziu. Se o sr. Capra enxerga ligações até mesmoentre o mecanicismo e a estrutura da famíliapatriarcal, como pode ser cego para as relações,muito mais próximas, entre o conteúdo teorético deuma ciência e suas aplicações práticas?

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2. Em nossa sociedade, afirma o sr. Capra, o trabalhoentrópico ( trabalho repetitivo que não deixa efeitosduradouros, como por exemplo cozinhar um jantar queserá consumido imediatamente ) é desvalorizado, e poristo é atribuído às mulheres e aos gruposminoritários. Esta desvalorização, diz ele, é típicada sociedade industrial.

Nesse caso, deveríamos considerar sociedadesindustriais as tribos do Alto Xingu, ascidades-Estado da antiga Grécia, a sociedade européiada Idade Média. Não existiu jamais uma sociedade emque os serviços entrópicos fossem mais valorizadosque os outros.

Mas, segundo o sr. Capra, existiu. Ele dá comoexemplos os mosteiros de monges budistas e cristãos,onde cozinhar é uma honra e limpar as privadas ummérito invejável. Será preciso explicar ao sr. Capraque uma ordem monástica não constitui uma"sociedade", mas uma comunidade minoritária quepressupõe em torno a existência de uma sociedade acujos valores possa se opor? Se, dentro de ummosteiro, o trabalho entrópico tem valor, éjustamente porque não o tem na sociedade maior emtorno. Os trabalhos humildes adquirem ali dentro umvalor espiritual e disciplinar justamente na medidaem que no "mundo" têm pouco prestígio social ou valoreconômico. A desvalorização social do trabalhoentrópico não é característica da sociedadeindustrial, mas da sociedade humana em geral;inversamente, a sua valorização espiritual é um traçodistintivo das minorias espiritualizadas envolvidasem alguma forma de rejeição religiosa do "mundo".

3. "Tradições como o vedanta, a ioga, o budismo e otaoismo assemelham-se muito mais a psicoterapias doque a filosofias ou religiões", diz o sr. Capra. Bem,se há um traço característico do Ocidente moderno,que o distingue radicalmente das tradições orientais,é justamente o desenvolvimento, nele, de umapsicologia como ciência independente de qualquerreferência mística ou religiosa; e, em decorrência, oesforço para dar uma explicação "psicológica" detodos os fenômenos espirituais. Ao englobar astradições espirituais do Oriente no conceito de"psicoterapia", o sr. Capra mostra a típicaincapacidade do cientificista moderno para apreendertudo quanto há nelas de puramente metafísico enão-psicológico.

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Dizer, ademais, que essas tradições "se baseiam noconhecimento empírico e, assim, apresentam maisafinidades com a ciência moderna" é pretenderenquadrar à força as idéias orientais numa molduraocidental e moderna, para torná-las aceitáveis aoprovincianismo acadêmico. Acontece que, nessaoperação, tudo que há nelas de essencialmenteoriental se perde por completo. O vedanta, porexemplo, afirma categoricamente que a experiência nãopode trazer conhecimento espiritual de espéciealguma, e esta afirmação é mesmo um dos pontosbasilares da doutrina, que o sr. Capra parecedesconhecer completamente: toda experiência é ação, ea ação, não sendo o contrário da ignorância, não podedestruí-la ( cf. Brihadaranyaka Upanishad, livro10 ).

Por esse exemplo, vê-se que o sr. Capra está muitomais preso a esquemas mentais de acadêmico ocidentalmédio do que desejaria deixar transparecer. Alguémmais próximo da perspectiva oriental jamaisprocuraria explicar as doutrinas sapienciais da Índiaou da China à luz da moderna psicologia ocidental,mas, ao contrário, emitiria sobre esta, em nomedelas, um julgamento bastante severo ( v., porexemplo, Wolfgang Smith, Cosmos and Transcendence,New York, l970, ou Titus Burckhardt, Scienza Modernae Sagezza Tradizionale, Torino, l968 ).

4. Após realçar o sentido holístico das concepçõesfisiológicas de Hipócrates, o sr. Capra insinua queesse sentido desapareceu completamente da medicinaocidental e agora temos de ir buscá-lo na tradiçãochinesa: "A noção chinesa do corpo como um sistemaindivisível de componentes inter-relacionados estámuito mais próxima da moderna abordagem sistêmica doque do modelo cartesiano clássico." Se o sr. Capranão seguisse o hábito ocidental moderno de saltardireto do pensamento grego para o Renascimento, teriareparado que a mesma concepção holística domina todoo pensamento médico e biológico do Ocidente medieval,com destaque para Sto. Alberto Magno e Roger Bacon.Na verdade, as concepções chinesas são muito maisparecidas com as da Idade Média que com a "modernaabordagem sistêmica".

5. Ao explicar a psicoterapia de Arthur Janov, o sr.Capra diz que, segundo este eminente psiquiatra, asneuroses são tipos simbólicos de comportamento que"representam as defesas da pessoa contra a excessiva

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dor associada a traumas de infância". Quem quer quetenha lido Janov sabe que, na teoria deste, aetiologia das neuroses não é de ordem traumática, masreside na frustração constante e habitual denecessidades básicas, frustração que às vezes não ésequer percebida no nível consciente. Um trauma, napsicopatologia de Janov, nada mais é que um fatorsuperveniente. A minimização da importânciaetiológica dos traumas é justamente o que singularizao sistema de Janov. Embora conhecendo o assunto deorelhada, o sr. Capra não se inibe de opinar arespeito com ar professoral: "O sistema conceitual deJanov não é suficientemente amplo para explicarexperiências transpessoais..." O que certamente não éamplo é o conhecimento que o sr. Capra tem do sistemade Janov.

 

Sugestões de Leitura

Além das obras citadas no texto, o leitor poderáconsultar com proveito as seguintes:

l. Quem aprecie o holismo e deseje ter uma informaçãoséria a respeito, sem aberrações caprinas e com maisensinamento valioso, leia o livro de Joël de Rosnay,Le Macroscope. Vers une Vision Globale ( Paris, LeSeuil, l975 ). O prof. de Rosnay ensinou no MIT etrabalha no Instituto Pasteur de Paris. Éinteressante ler também as obras de Edgar Morin, quefoi aliás quem lançou a expressão "novo paradigma".V. especialmente La Méthode, em dois tomos ( I, LaNature de la Nature, Paris, Le Seuil, l977; II, LaVie de la Vie, id., 1980 ).

2. O I Ching tem três traduções ocidentais famosas: ade James Legge ( versão brasileira de E. Peixoto deSouza e Maria Judith Martins, São Paulo, Hemus,l972 ), a de Richard Wilhelm ( versão inglesa de CaryF. Baynes, London, Routledge and Kegan Paul, l95l,várias reedições; versão brasileira de Lya Luft eAlayde Mutzembecher, São Paulo, Nova Acrópole ), e ade P.-L. F. Philastre: Le Yi:King. Livre desChangements de la Dynastie des Tsheou. Annales duMusée Guimet, t. huitième, 2 vols. ( Paris, AdrienMaisonneuve, l975 ). Um estudo sério do assuntorequer o exame das três. A de Wilhelm é mais didáticae fácil de consultar. Legge enfatiza muito asligações estruturais entre as partes e abre para um

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estudo mais aprofundado. Das três a de Philastre é delonge a mais interessante, pois é a única quetranscreve integralmente e pela ordem as glosas dasdez "gerações" de comentaristas chineses.

3. Sobre os símbolos da tradição chinesa, v. o livroclássico de René Guénon, La Grande Triade ( Paris,Gallimard, 1957 ). Convém recorrer ainda, quanto aosideogramas, à obra monumental do Pe. L. Wieger,Chinese Characters. Their Origin, Etimology, History,Classification and Signification. A Thorough Studyfrom Chinese Documents, transl. by L. Davrout, s. j.( New York, Dover, 1965; a primeira edição é de1915 ).

4. Sobre o pensamento chinês é ainda indispensável, aquem deseje aprofundar o assunto, estudar: quanto àsconcepções cosmológicas, Marcel Granet, La PenséeChinoise ( Paris, Albin Michel, l968 ) e La Réligiondes Chinois ( Paris, Payot, 1980 ). Quanto àsinstituições e ao governo, Granet, La CivilisationChinoise ( Paris, La Renaissance du Livre, 1929 ).Sobre a moral, o direito e as classes sociais, MaxWeber, The Religion of China, transl. by H. H. Gerthand C. Wright Mills ( New York, The Free Press,195l ).

5. Um "novo modelo de história cultural" baseado emconcepções orientais é algo que já estava realizadopelo menos desde l945, em Le Règne de la Quantité etles Signes des Temps, de René Guénon ( Paris,Gallimard ). Um monumento de sabedoria.

6. Sobre a disputa Leibniz-Newton pode-se ler: JoséOrtega y Gasset, La Idea de Principio en Leibniz y laEvolución de la Teoría Deductiva ( em ObrasCompletas, t. 8, Madrid, Alianza, 1983 ); PaulHazard, La Crise de la Conscience Européenne1660-1715 ( Paris, Gallimard, 1961 ); Edwin A. Burtt,As Bases Metafísicas da Ciência Moderna, trad. JoséViegas Filho e Orlando Araújo Henriques ( Brasília,UnB, 1983 ).

 

NOTAS

Escrito em setembro de 1993. Voltar7.

Livro I, Cap. III. Voltar8.

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Tendo enviado a Frei Betto uma cópia destecapítulo antes de sua publicação em livro, recebidele uma resposta em duas linhas, que é umsingular documento psicológico. Ela diz: "Apesardas suas reservas, o evento [ NB: recepção ao sr.Capra ] foi bom para quem lá esteve." Deve tersido mesmo um barato, imagino eu. Mas o ilustrefrade não me compreendeu. Longe de mim depreciaro evento em si — a organização do programa, oserviço de som ou o tempero dos salgadinhos. Oque eu disse que não presta é a filosofia do sr.Capra, subentendendo que celebrá-la num congressode intelectuais é jogar dinheiro fora; e quantomelhor o evento, mais lamentável o desperdício.Caso, porém, o missivista tenha pretendido alegara qualidade do evento como um argumento em favordo sr. Capra, isto seria o mesmo que dizer que opreço da vela prova a qualidade do defunto. Alémdisso, que opinião se poderia ter de um pensadorque argumentasse em favor de uma filosofiamediante a alegação de que ela lhe dá aoportunidade de freqüentar lugares agradáveis? [N. da 2ª ed. ] Voltar

9.

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3a edição,revista e aumentada.

 

 

II

STO. ANTONIO GRAMSCIE A SALVAÇÃO DO BRASIL

 

QUEM DESEJE reduzir a um quadro coerente o aglomeradocaótico de elementos que se agitam na cenabrasileira, tem de começar a desenhá-lo tomando comocentro um personagem que nunca esteve aqui, do qual amaioria dos brasileiros nunca ouviu falar, e queademais está morto há mais de meio século, mas que,desde o reino das sombras, dirige em segredo osacontecimentos nesta parte do mundo.

Refiro-me ao ideólogo italiano Antonio Gramsci.Tendo-se tornado praxe entre as esquerdas jamaispronunciar o nome de Gramsci sem acrescentar-lhe amenção de que se trata de um mártir, apresso-me a

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declarar que o referido passou onze anos numa prisãofascista, de onde remeteu ao mundo, mediante não seique artifício, os trinta e três cadernos de notas quehoje constituem, para os fiéis remanescentes docomunismo brasileiro, a bíblia da estratégiarevolucionária. Mas não está só nisso a razão da aurabeatífica que envolve o personagem. Da estratégia,tal como vista por ele, constituía um capítuloimportante a criação de um novo calendário dossantos, que pudesse desbancar, na imaginação popular,o prestígio do hagiológio católico ( uma vez que aIgreja, na visão dele, era o maior obstáculo aoavanço do comunismo ). O novo panteão seriainteiramente constituído de líderes comunistascélebres, e baseado no critério segundo o qual "RosaLuxemburgo e Karl Liebknecht são maiores do que osmaiores santos de Cristo" — palavras textuais deGramsci. Os seguidores do novo culto, com inteiralógica, puseram ainda mais alto na escala celeste oinstituidor do calendário, motivo pelo qual não sepode falar dele sem a correspondente unção. E eu,temeroso como o sou de todas as coisas do além, nãopoderia iniciar esta breve exposição do gramscismobrasileiro sem a preliminar invocação ao seu patrono,em quem se depositam, neste momento, muitasesperanças de salvação do Brasil. Digo, pois: SancteAntonie Gramsci, ora pro nobis.

Atendida esta devota formalidade, retorno aos fatos.Gramsci ficou, dizia eu, meditando na cadeia.Mussolini, que o mandara prender, acreditava estarprestando um serviço ao mundo com o silêncio queimpunha àquele cérebro que ele julgava temível.Aconteceu que no silêncio do cárcere o referidocérebro não parou de funcionar; apenas começou agerminar idéias que dificilmente lhe teriam ocorridona agitação das ruas. Homens solitários voltam-separa dentro, tornam-se subjetivistas e profundos.Gramsci transformou a estratégia comunista, de umgrosso amálgama de retórica e força bruta, numadelicada orquestração de influências sutis,penetrante como a Programação Neurolinguística e maisperigosa, a longo prazo, do que toda a artilharia doExército Vermelho. Se Lênin foi o teórico do golpe deEstado, ele foi o estrategista da revoluçãopsicológica que deve preceder e aplainar o caminhopara o golpe de Estado.

Gramsci estava particularmente impressionado com aviolência das guerras que o governo revolucionário da

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Rússia tivera de empreender para submeter aocomunismo as massas recalcitrantes, apegadas aosvalores e praxes de uma velha cultura. A resistênciade um povo arraigadamente religioso e conservador aum regime que se afirmava destinado a beneficiá-locolocou em risco a estabilidade do governo soviéticodurante quase uma década, fazendo com que, em reação,a ditadura do proletariado — na intenção de Marx umabreve transição para o paraíso da democraciacomunista — ameaçasse eternizar-se, barrando ocaminho a toda evolução futura do comunismo, como defato veio a acontecer.

Para contornar a dificuldade, Gramsci concebeu umadessas idéias engenhosas, que só ocorrem aos homensde ação quando a impossibilidade de agir os compele ameditações profundas: amestrar o povo para osocialismo antes de fazer a revolução. Fazer com quetodos pensassem, sentissem e agissem como membros deum Estado comunista enquanto ainda vivendo num quadroexterno capitalista. Assim, quando viesse ocomunismo, as resistências possíveis já estariamneutralizadas de antemão e todo mundo aceitaria onovo regime com a maior naturalidade.

A estratégia de Gramsci virava de cabeça para baixo afórmula leninista, na qual uma vanguardaorganizadíssima e armada tomava o poder pela força,autonomeando-se representante do proletariado esomente depois tratando de persuadir os apatetadosproletários de que eles, sem ter disto a menorsuspeita, haviam sido os autores da revolução. Arevolução gramsciana está para a revolução leninistaassim como a sedução está para o estupro.

Para operar essa virada, Gramsci estabeleceu umadistinção, das mais importantes, entre "poder" ( ou,como ele prefere chamá-lo, "controle" ) e"hegemonia". O poder é o domínio sobre o aparelho deEstado, sobre a administração, o exército e apolícia. A hegemonia é o domínio psicológico sobre amultidão. A revolução leninista tomava o poder paraestabelecer a hegemonia. O gramscismo conquista ahegemonia para ser levado ao poder suavemente,imperceptivelmente. Não é preciso dizer que o poder,fundado numa hegemonia prévia, é poder absoluto eincontestável: domina ao mesmo tempo pela força brutae pelo consentimento popular — aquela forma profundae irrevogável de consentimento que se assenta naforça do hábito, principalmente dos automatismosmentais adquiridos que uma longa repetição torna

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inconscientes e coloca fora do alcance da discussão eda crítica. O governo revolucionário leninistareprime pela violência as idéias adversas. Ogramscismo espera chegar ao poder quando já nãohouver mais idéias adversas no repertório mental dopovo.

Que esse negócio é tremendamente maquiavélico, opróprio Gramsci o reconhecia, mas fazendo disto umtítulo de glória, já que Maquiavel era um dos seusgurus. Apenas, ele adaptou Maquiavel às demandas daideologia socialista, coletivizando o "Príncipe". Emlugar do condottiere individual que para chegar aopoder utiliza os expedientes mais repugnantes com aconsciência tranquila de quem está salvando a pátria,Gramsci coloca uma entidade coletiva: a vanguardarevolucionária. O Partido, em suma, é o novoPríncipe. Como o sangue-frio dos homens fica maisfrio na medida em que eles se sentem apoiados por umacoletividade, o Novo Príncipe tem uma consciênciaainda mais tranquila que a do antigo. O condottiereda Renascença não tinha apoio senão de si mesmo, enas noites frias do palácio tinha de suportar sozinhoos conflitos entre consciência moral e ambiçãopolítica, encontrando no patriotismo uma solução decompromisso. No Novo Príncipe, a produção deanalgésicos da consciência é trabalho de equipe, enas fileiras de militantes há sempre uma imensareserva de talentos teóricos que podem ser convocadospara produzir justificações do que quer que seja.

Os intelectuais desempenham por isso, na estratégiagramsciana, um papel de relevo. Mas isto não querdizer que suas idéias sejam importantes em si mesmas,pois, para Gramsci, a única importância de uma idéiareside no reforço que ela dá, ou tira, à marcha darevolução. Gramsci divide os intelectuais em doistipos: "orgânicos" e "inorgânicos" ( ou, como eleprefere chamá-los, "tradicionais" ). Estes últimossão uns esquisitões que, baseados em critérios evalores oriundos de outras épocas, e sem uma definidaideologia de classe, emitem idéias que, ignoradaspelas massas, não exercem qualquer influência noprocesso histórico: acabam indo parar na lata de lixodo esquecimento, a não ser que tenham a esperteza deaderir logo a uma das correntes "orgânicas".Intelectuais orgânicos são aqueles que, com ou semvinculação formal a movimentos políticos, estãoconscientes de sua posição de classe e não gastam umapalavra sequer que não seja para elaborar, esclarecer

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e defender sua ideologia de classe. Naturalmente, háintelectuais orgânicos "burgueses" e "proletários".Estes são a nata e o cérebro do Novo Príncipe, masaqueles também têm alguma utilidade para a revolução,pois é através deles que os revolucionários vêm aconhecer a ideologia do inimigo. Gramsci mencionavacomo protótipos de intelectuais orgânicos burguesesBenedetto Croce e Giovanni Gentile: o liberalantifascista e o ministro de Mussolini.

O conceito gramsciano de intelectual funda-seexclusivamente na sociologia das profissões e, poristo, é bem elástico: há lugar nele para oscontadores, os meirinhos, os funcionários dosCorreios, os locutores esportivos e o pessoal do showbusiness. Toda essa gente ajuda a elaborar e difundira ideologia de classe, e, como elaborar e difundir aideologia de classe é a única tarefa intelectual queexiste, uma vedette que sacuda as banhas numespetáculo de protesto pode ser bem mais intelectualdo que um filósofo, caso se trate de um "inorgânico"como por exemplo o autor destas linhas.

Os intelectuais no sentido elástico são o verdadeiroexército da revolução gramsciana, incumbido derealizar a primeira e mais decisiva etapa daestratégia, que é a conquista da hegemonia, umprocesso longo, complexo e sutil de mutaçõespsicológicas graduais e crescentes, que a tomada dopoder apenas coroa como uma espécie de orgasmopolítico.

A luta pela hegemonia não se resume apenas aoconfronto formal das ideologias, mas penetra numterreno mais profundo, que é o daquilo que Gramscidenomina — dando ao termo uma acepção peculiar —"senso comum". O senso comum é um aglomerado dehábitos e expectativas, inconscientes ousemiconscientes na maior parte, que governam odia-a-dia das pessoas. Ele se expressa, por exemplo,em frases feitas, em giros verbais típicos, em gestosautomáticos, em modos mais ou menos padronizados dereagir às situações. O conjunto dos conteúdos dosenso comum identifica-se, para o seu portadorhumano, com a realidade mesma, embora não constituade fato senão um recorte bastante parcial efrequentemente imaginoso. O senso comum não"apreende" a realidade, mas opera nela ao mesmo tempouma filtragem e uma montagem, segundo padrões que,herdados de culturas ancestrais, permanecem ocultos e

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inconscientes.

Como o que interessa não é tanto a convicção políticaexpressa, mas o fundo inconsciente do "senso comum",Gramsci está menos interessado em persuasão racionaldo que em influência psicológica, em agir sobre aimaginação e o sentimento. Daí sua ênfase na educaçãoprimária. Seja para formar os futuros "intelectuaisorgânicos", seja simplesmente para predispor o povoaos sentimentos desejados, é muito importante que ainfluência comunista atinja sua clientela quando seuscérebros ainda estão tenros e incapazes deresistência crítica.

O senso comum não coincide com a ideologia de classe,e é precisamente aí que está o problema. Na maiorparte das pessoas, o senso comum se compõe de umasopa de elementos heteróclitos colhidos nasideologias de várias classes. É por isto que, movidopelo senso comum, um homem pode agir de maneiras que,objetivamente, contrariam o seu interesse de classe,como por exemplo quando um proletário vai à missa.Nesta simples rotina dominical oculta-se uma misturadas mais surpreendentes, onde um valor típico dacultura feudal-aristocrática, reelaborado e posto aserviço da ideologia burguesa, aparece transfundidoem hábito proletário, graças ao qual um pobrecoitado, acreditando salvar a alma, comete, narealidade, apenas uma grossa sacanagem contra seuscompanheiros de classe e contra si mesmo.

Aí é que entra a missão providencial dosintelectuais. Sua função é precisamente por um fim aessa suruba ideológica, reformando o senso comum,organizando-o para que se torne coerente com ointeresse de classe respectivo, esclarecendo-o edifundindo-o para que fique cada vez mais consciente,para que, cada vez mais, o proletário viva, sinta epense de acordo com os interesses objetivos da classeproletária e o burguês com os da classe burguesa. Aeste estado de perfeita coincidência entre idéias einteresses de classe, quando realizado numa dadasociedade e cristalizado em leis que distribuem acada classe seus direitos e deveres segundo uma claradelimitação dos respectivos campos ideológicos,Gramsci denomina Estado Ético. É a escalação finaldos dois times, antes de começar o prélio decisivoque levará o Partido ao poder. O público brasileirotem ouvido este termo, proferido num contexto decombate à corrupção e de restauração da moralidade.Mas ele é um termo técnico da estratégia gramsciana,

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que designa apenas uma determinada etapa na lutarevolucionária — uma etapa, aliás, bastante avançada,na qual a radicalização do conflito de interesses declasse prepara o início da etapa orgástica: aconquista do poder. Que, no caótico senso comumbrasileiro, o termo Estado Ético tenha ressonânciasmoralizadoras inteiramente alheias ao seu verdadeirointuito, mostra apenas que o público nacional ignoraa inspiração diretamente gramsciana do Movimento pelaÉtica na Política e nem de longe suspeita que seuúnico objetivo é politizar a ética, canalizando asaspirações morais mais ou menos confusas da populaçãode modo a que sirvam a objetivos que nada têm a vercom o que um cidadão comum entende por moral. OEstado Ético, na verdade, não apenas é compatível coma total imoralidade, como na verdade a requer, poisconsolida e legitima duas morais antagônicas einconciliáveis, onde a luta de classes é colocadaacima do bem e do mal e se torna ela mesma o critériomoral supremo. Daí por diante, a mentira, a fraude oumesmo o homicídio podem se tornar louváveis, quandocometidos em defesa da "nossa" classe, ao passo que adecência, a honestidade, a compaixão podem ter algode criminoso, caso favoreçam a classe adversária10.Que o tradicional discurso moralista da burguesiabrasileira tenha podido ser assim usado como armapara desferir um golpe mortal na hegemonia burguesa,mostra menos a esperteza da esquerda gramsciana doque a estupidez paquidérmica da nossa classedominante. Que, por outro lado, os próprios agentesdo gramscismo finjam acreditar no caráter apolítico epuramente higiênico da campanha moralizante —apaziguando assim os temores daqueles que serão suasprimeiras vítimas — é nada mais que uma expressão dalinguagem dupla, inerente a uma estratégia na qual acamuflagem é tudo. São lições de AntonioSó-a-Cabecinha Gramsci.

É quase impossível que, a esta altura, a expressão"inversão de valores" não ocorra ao leitor. Essainversão é, de fato, um dos objetivos prioritários darevolução gramsciana, na fase da luta pela hegemonia.Mas Gramsci é, neste ponto, bastante exigente: nãobasta derrotar a ideologia expressa da burguesia; épreciso extirpar, junto com ela, todos os valores eprincípios herdados de civilizações anteriores, queela de algum modo incorporou e que se encontram hojeno fundo do senso comum. Trata-se enfim de umagigantesca operação de lavagem cerebral, que deve

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apagar da mentalidade popular, e sobretudo do fundoinconsciente do senso comum, toda a herança moral ecultural da humanidade, para substituí-la porprincípios radicalmente novos, fundados no primado darevolução e no que Gramsci denomina "historicismoabsoluto" ( mais adiante explico ).

Uma operação dessa envergadura transcendeinfinitamente o plano da mera pregaçãorevolucionária, e abrange mutações psicológicas deimensa profundidade, que não poderiam ser realizadasde improviso nem à plena luz do dia. O combate pelahegemonia requer uma pluralidade de canais de atuaçãoinformais e aparentemente desligados de todapolítica, através dos quais se possa ir injetandoimperceptivelmente na mentalidade popular toda umagama de novos sentimentos, de novas reações, de novaspalavras, de novos hábitos, que aos poucos vá mudandode direção o eixo da conduta.

Daí que Gramsci dê relativamente pouca importância àpregação revolucionária aberta, mas enfatize muito ovalor da penetração camuflada e sutil. Para arevolução gramsciana vale menos um orador, umagitador notório, do que um jornalista discreto que,sem tomar posição explícita, vá delicadamente mudandoo teor do noticiário, ou do que um cineasta cujosfilmes, sem qualquer mensagem política ostensiva,afeiçoem o público a um novo imaginário, gerador deum novo senso comum. Jornalistas, cineastas, músicos,psicólogos, pedagogos infantis e conselheirosfamiliares representam uma tropa de elite do exércitogramsciano. Sua atuação informal penetra fundo nasconsciências, sem nenhum intuito político declarado,e deixa nelas as marcas de novos sentimentos, denovas reações, de novas atitudes morais que, nomomento propício, se integrarão harmoniosamente nahegemonia comunista11.

Milhões de pequenas alterações vão assim sendointroduzidas no senso comum, até que o efeitocumulativo se condense numa repentina mutação global( uma aplicação da teoria marxista do "saltoqualitativo" que sobrevem ao fim de uma acumulação demudanças quantitativas ). Ao esforço sistemático deproduzir esse efeito cumulativo Gramsci denomina,significativamente, "agressão molecular": a ideologiaburguesa não deve ser combatida no campo aberto dosconfrontos ideológicos, mas no terreno discreto dosenso comum; não pelo avanço maciço, mas pelapenetração sutil, milímetro a milímetro, cérebro por

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cérebro, idéia por idéia, hábito por hábito, reflexopor reflexo.

É claro que a mutação almejada não abrange somente oterreno das convicções políticas, mas visaprincipalmente às reações espontâneas, aossentimentos de base, às cadeias de reflexos quedeterminam inconscientemente a conduta. Condutassedimentadas no inconsciente humano há séculos oumilênios devem ser desarraigadas, para ceder lugar auma nova constelação de reações. É importante, porexemplo, varrer do imaginário popular figurastradicionais de heróis e de santos que expressemdeterminados ideais, pois essas figuras estãoimantadas de uma força motivadora que dirige aconduta dos homens num sentido hostil à propostagramsciana. Elas devem ser substituídas por um novopanteão de ídolos, no qual, como se viu acima, KarlLiebknecht, Rosa Luxemburgo, Lênin, Stálin eobviamente o próprio Gramsci ocupam os lugares de S.Francisco de Assis, Santa Terezinha do Menino Jesus etutti quanti. Gramsci copiou nisto uma idéia deAugusto Comte, de trocar o calendário dos santos daIgreja por um panteão de heróis revolucionários.Apenas, os ídolos de Comte eram os da RevoluçãoFrancesa: Gramsci atualizou a folhinha.

Uma lavagem cerebral de tão vasta escala não poderia,certamente, limitar-se a extirpar da cabeça humanacrenças religiosas, imagens, mitos e sentimentostradicionais: ela deveria também estender-se àsgrandes concepções filosóficas e científicas. Aestas, Gramsci queria destruir pela base, todas deuma vez, para substituí-las por uma nova cosmovisãoinspirada no marxismo, ou antes, numa caricaturahipertrófica de marxismo que o próprio Marxrejeitaria com desprezo. Pois Marx considerava-se,sobretudo, o herdeiro de grandes tradiçõesfilosóficas como o aristotelismo, e construiu suafilosofia no intuito de torná-la uma ciência, umadescrição objetivamente válida das bases do processohistórico. Para Gramsci, as tradições filosóficasdevem ser todas varridas de uma vez, e junto com elasa distinção entre "verdade" e "falsidade". PoisGramsci não é um marxista puro-sangue. Através de seumestre Antonio Labriola, ele recebeu uma poderosainfluência do pragmatismo, escola para a qual oconceito tradicional da verdade como umacorrespondência entre o conteúdo do pensamento e umestado de coisas deve ser abandonado em proveito de

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uma noção utilitária e meramente operacional. Nesta,"verdade" não é o que corresponde a um estadoobjetivo, mas o que pode ter aplicação útil e eficaznuma situação dada. Enxertando o pragmatismo nomarxismo, Labriola e Gramsci propunham que se jogasseno lixo o conceito de verdade: na nova cosmovisão,toda atividade intelectual não deveria buscar mais oconhecimento objetivo, mas sim a mera "adequação" dasidéias a um determinado estado da luta social. A istoGramsci denominava "historicismo absoluto". Nestanova cosmovisão, não haveria lugar para a distinção —burguesa, segundo Gramsci — entre verdade e mentira.Uma teoria, por exemplo, não se aceitaria por serverdadeira, nem se rejeitaria por falsa, mas dela sóse exigiria uma única e decisiva coisa: que fosse"expressiva" do seu momento histórico, eprincipalmente das aspirações da massarevolucionária. Dito de modo mais claro: Gramsciexige que toda atividade cultural e científica sereduza à mera propaganda política, mais ou menosdisfarçada.

A "filosofia" de Gramsci resolve-se assim numceticismo teorético que completa a negação dainteligência pela sua submissão integral a um apelode ação prática; ação que, realizada, resultará emvarrer a inteligência da face da Terra, por supressãodas condições que possibilitam o seu exercício: aautonomia da inteligência individual e a fé na buscada verdade. Substituída a primeira pelaarregimentação de "intelectuais orgânicos" decarteirinha, e a segunda pela concentração de todasas energias intelectuais no nobre mister dapropaganda revolucionária, quê sobrará da aptidãohumana para discernir entre verdade e mentira?

Gramsci é, em suma, o profeta da imbecilidade, o guiade hordas de imbecis para quem a verdade é a mentirae a mentira a verdade. Somente um outro imbecil comoMussolini podia considerá-lo "uma inteligênciaperigosa". O perigo que há nela é o da malícia queobscurece, não o da inteligência que clareia; e amalícia é a contrafação simiesca da inteligência. Masa reação de Mussolini é significativa. Há nela atípica inveja mórbida do brutamontes de direita pelointelectual esquerdista, sua sombra junguiana que elenão compreende e que por isto mesmo lhe parece, porsuas habilidades vistosas, o protótipo mesmo dainteligência. A atração é mútua, como se vê peloculto de Nelson Rodrigues entre os esquerdistas queele achincalhou como ninguém. Entre a grossura

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direitista e a pseudo-intelectualidade esquerdista, arelação é o amor-ódio de um casamento sadomasoquista.Casamento entre le genti dolorose / C'hanno perdutoil ben dello intelletto... Non ragioniam di lor, maguarda e passa.

Para quem quer que pense com a própria cabeça, asteorias de Gramsci não apresentam o menor interesse,tanto quanto não o apresentam as velhas escolascéticas gregas, das quais o gramscismo é uma reediçãomal atualizada. A refutação do ceticismo é, como sesabe, o primeiro teste do aprendiz de filósofo. Talcomo se refuta o ceticismo — a negação de todacerteza — pela simples afirmação de que a negaçãotambém é incerta, o gramscismo igualmente não resistea um confronto consigo mesmo: tendo negado averacidade objetiva, ele se reduz a uma "expressão deaspirações". Tendo reduzido toda a cultura àpropaganda, ele próprio se desmascara como merapropaganda. Não tem sequer a pretensão de serverdadeiro: nada pretende provar nem demonstrar; querapenas seduzir, induzir, conduzir. O tipo dementalidade que se interessa por pensamentos dessegênero é certamente imune a qualquer preocupação deveracidade, mas é movido por uma ambição insaciávelque o faz revolver sem descanso as trevas, numa"ação" estéril, nervosa, destrutiva, da qual prometeem vão fazer nascer um mundo. Por uma inevitável etrágica compensação, quanto menos um homem é apto aenxergar o mundo, mais assanhado fica detransformá-lo — de transformá-lo à imagem esemelhança da sua própria escuridão interior12.

Se nos perguntamos, agora, como foi possível que umafilosofia assim grosseira alcançasse no Brasil tãovasta audiência a ponto de inspirar o programa de umpartido político, a resposta deve levar emconsideração três aspectos: primeiro, a predisposiçãoda intelectualidade brasileira; segundo, as condiçõesdo momento; terceiro, a natureza mesma dessafilosofia.

Ao longo da nossa história intelectual, somente trêscorrentes de pensamento lograram exercer umainfluência duradoura e profunda sobre as camadasintelectuais brasileiras: o positivismo de AugustoComte, o neotomismo de Leão XIII, o marxismo. O quehá de comum entre elas é que não são propriamente

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filosofias, mas programas de ação coletiva,destinados a moldar ou remoldar o mundo segundo asaspirações de suas épocas e de seus mentores. Opositivismo parte da constatação de que a RevoluçãoFrancesa, derrubando as concepções cristãs, deixousua obra pela metade, na medida em que não pôs nolugar delas uma nova religião; o positivismoconstitui esta nova religião, com templo, calendáriodos santos, ritual e tudo o mais; e as teoriasfilosóficas não são senão a sustentação do novoEstado teocrático que Comte pretende fundar. Oneotomismo é a reação que, ao novo Estado teocrático,opõe um apelo ao retorno do antigo, devidamenterevisto e atualizado. Finalmente, o marxismo é oprograma de ação do movimento socialista. Nos três,as idéias, as teorias, não têm um valor intrínsecomas servem apenas como retaguardas psicológicas daação prática. Os três não querem interpretar o mundo,mas transformá-lo. ( Cabe uma ressalva com relação aoneotomismo: não confundi-lo com o tomismo, se poresta palavra se entende a filosofia de Sto. Tomás deAquino. O tomismo é filosofia no sentido pleno; oneotomismo é, ao contrário, um movimento cultural epolítico — ideológico, em suma — votado à difusãodessa filosofia, tomada como solução pronta de todosos problemas e, portanto, esvaziada de boa parte desua substância filosófica. Afinal, tudo o que éneo-alguma-coisa é, por definição, apenas uma novacasca da qual essa coisa é o miolo. Observaçõessemelhantes poderiam fazer-se, com reservas, tambémdo positivismo e do marxismo: em ambos há na raizalgo de filosofia autêntica, sufocada pelodesenvolvimento hipertrófico de um programa de açãoprática, dela deduzido aos trambolhões. )

Filosofias que recuam da especulação teorética para aproposição de ações práticas são filosofias dadecadência; marcam as épocas em que os homens já nãoconseguem compreender o mundo e passam a agitar-separa escapar de um mundo incompreensível. A sofísticanasce, na Grécia, do fracasso das primeirasespeculações cosmológicas de Tales, Anaximandro,Anaximenes, Parmênides e Heráclito; incapaz deresolver as contradições entre as teorias, elatransfere o eixo das preocupações humanas para a vidaprática imediata: para a política do dia. Os sofistassão professores de retórica, que ensinam aos jovenspolíticos os meios de agir sobre as consciências. Àsofística opõe Sócrates a dialética e o ideal dademonstração apodíctica que orientará os esforços

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gregos em direção ao saber científico. Cinco séculosmais tarde, após o esquecimento das grandes síntesesteoréticas de Platão e Aristóteles, tornam-senovamente dominantes as escolas praticistas: oscínicos, os cirenaicos, os megáricos e, em parte, osestóicos. E assim prossegue a história do pensamentoOcidental, numa pulsação entre o empenho dacompreensão teorética e a queda no ceticismopraticista. O fundo comum de onde emergem opositivismo, o marxismo e o neotomismo é a dissoluçãodo racionalismo clássico, levado a um beco sem saídapela crítica kantiana e que tem no idealismo alemão oseu canto de cisne. Positivismo, marxismo eneotomismo são as filosofias de uma época que não temfilosofia nenhuma; de uma época que anseia portransformar o mundo na medida mesma em que é incapazde desempenhar o esforço teorético necessário paracompreendê-lo.

Num texto clássico — Crise da Filosofia Ocidental( l874 ) —, o filósofo russo Vladimir Soloviev previuque a filosofia, como atividade intelectualessencialmente individual, oposta ao pensamentocoletivo da religião e da ciência, estava em vias deacabar, para ceder lugar a algo de totalmentediferente. Ele esperava o advento de uma grandesíntese, mas o que se viu foi o advento do "séculodas ideologias". Ora, o Brasil entra no cursoespiritual do mundo justamente no momento em queSoloviev faz esse diagnóstico: recebemos maciçamenteo impacto das novas ideologias, antes de termospodido vivenciar a tradição filosófica que asantecedeu. Nosso contato com as fontes filosóficas dacivilização do Ocidente continuou superficial, aopasso que nos entregávamos de corpo e alma àsretóricas coletivistas. Passado mais de um século,ainda não temos uma boa tradução de Aristóteles, maspublicamos, já na década de 60, as obras completas deAntonio Gramsci.

De outro lado, toda tentativa nossa de penetrar maisfundamente no campo da filosofia mesma ficou limitadapela timidez, pela insegurança, que nos faziaapegar-nos como crianças à proteção de algum superegoestrangeiro da moda. Cinco décadas de atividadefilosofante na USP foram resumidas no títuloacachapante do livro recém-publicado de PauloArantes: Um Departamento Francês de Ultramar.Escritórios de importação, representantesautorizados, imitação, pedantismo, oscilação entre a

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falsa consciência e a consciência de culpa marcamtodos os nossos esforços filosóficos universitáriosno sentido de um pensamento independente. No fim, ointelectual com pretensões filosóficas só encontraalívio quando desiste delas e recai no pensamentocoletivo; quando, abdicando de interpretar o mundo,se alinha, contrito e obediente, numa das correntesque professam transformá-lo: as conversões aocatolicismo, ao comunismo e às ideologiascientificistas originadas do positivismo constituem —independentemente dos motivos pessoais em cada caso —um melancólico ritornello na história dos fracassosdas nossas ambições filosóficas. A queda nopensamento coletivo é vivenciada como um retorno daovelha desgarrada, como uma libertação das culpas,como um reencontro com a infância perdida. Aoreintegrar-se numa comunidade ideológica oex-filósofo arrependido encontra ainda um alívio parao isolamento que cerca o intelectual no meiosubdesenvolvido, e o ingresso no grupo solidárioarremeda a descoberta de um "sentido da vida".

A intelectualidade brasileira estava, por todos essesfatores, fundamente predisposta ao apelo gramsciano,onde a vida intelectual deixa de ser o esforçosolitário de quem cherche en gémissant, paratornar-se a participação num "sentido da vida"amparado pela solidariedade coletiva. O Partido é àsvezes chamado por Gramsci "intelectual coletivo". É oabrigo dos fracos. Aí a ascensão ao estatuto deintelectual é barateada: já não custa a penosaaquisição de conhecimentos, a investigação pessoal, aluta direta com as incertezas. Obtém-se pelo contágiopassivo de crenças, de um vocabulário comum, decacoetes distintivos13. A sociedade em torno legitimaa paródia: diante dessas marcas exteriores, obrutamontes de direita acredita piamente estar napresença de um intelectual. A mídia faz o resto.

O segundo fator, a situação do momento, pode-sedescrever mais ou menos assim: desde a derrota daluta armada, a esquerda andava em busca de umaestratégia pela qual se orientar. Não sendo capaz decriar uma nova e não encontrando no repertóriomundial uma outra à sua disposição, ela aderiu aGramsci quase por automatismo, sonambulicamente,levada pela carência de opções.

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De fato, o comunismo internacional só teve, ao longode sua história, um número pequeno de propostasestratégicas. Marx não apresentou nenhuma. A primeiraque fez sucesso foi a de Lênin. Consistia na formaçãode uma elite autonomeada, na tomada do poder por umgolpe súbito, na posterior conversão forçada doproletariado a uma causa vencedora que se apresentavacomo sua. A proposta de Lênin veio a predominar sobreo socialismo evolucionário de Edward Bernstein, o queprovocou o racha entre os partidos comunistas e asocial-democracia, que pregava a tomada do poder porvia pacífica, eleitoral e gradualista. Hoje em dia asocial-democracia é a grande vencedora, dominandotoda a Europa; mas, no tempo de Lênin, sua rejeiçãopelos comunistas parecia prenunciar o seu fracasso, oque a queda de governos social-democratas ante oavanço do nazismo aparentemente confirmou. A terceiragrande estratégia foi a de Mao Tsé-tung. Nascondições da China, não havia um proletariado urbanosuficiente sequer para dar apoio moral à guerrarevolucionária, e como, por outro lado, o exércitorevolucionário, banido dos grandes centros, acabasseiniciando uma "grande marcha" pelos campos, o apoiodas populações camponesas tornou-se fundamental, eMao teorizou a coisa a posteriori, transformando arevolução proletária em "guerra revolucionáriaoperário-camponesa" — o que teria provocado engulhosem Karl Marx, que via nos camponeses uma horda dereacionários incuráveis. Paralelamente, a submissãodo movimento comunista internacional aos interessesda política exterior soviética deu nascimento a umaquarta estratégia, que encontrou sua mais claraexpressão no Front Popular, e que consistiafundamentalmente numa aliança dos comunistas com os"elementos progressistas" de todas as outrascorrentes, direitistas inclusive. Aí, a pretexto deantifascismo, até Benedetto Croce ficou simpático.Finalmente, a quinta estratégia do movimentocomunista surgiu da revolução cubana e da guerra doVietnã. Sem um autor definido, resultando de enxertose mixagens de várias proveniências, ela fundia, numvasto plano de guerrilhas, o combate rural e ourbano. Uma de suas versões foi a "teoria foquista"difundida por um doidão de nome Régis Débray, queobteve ampla audiência na América Latina e propunha,para fazer face ao poder maciço do imperialismonorte-americano, a formação de variados e simultâneos"focos" de guerrilhas. A teoria resumia-se no sloganentão pixado nos muros de todas as universidades:

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"Um, dois, três, muitos Vietnãs". Deu no que deu.Dentre as muitas mixagens, uma particularmenteinteressante foi a que fundiu a estratégia comunista— até aí fundamentalmente proletária e camponesa, aomenos no nome — com as heresias de Herbert Marcuse,segundo o qual proletários e camponeses tinham-seintegrado ao "sistema" e a revolução não tinha outrosrepresentantes autorizados senão os estudantes eintelectuais, de um lado, e, de outro, a massa dosmiseráveis e marginalizados, o vastoLumpenproletariat, do qual o velho Karl Marxaconselhava que os militantes comunistas fugissemcomo se foge de um assaltante à mão armada. Um dosresultados locais deste enxerto foi que, após aderrota da luta armada, os militantes brasileirospresos passaram a alimentar uma vaga esperança nopotencial revolucionário do Lumpen, e, para adiantaro expediente, trataram de ir ensinando táticas deguerrilha aos bandidos com quem conviviam no presídioda Ilha Grande. ( Mais tarde ainda, a fusão dogramscismo com resíduos do marcusismo transformarianum dos pratos de resistência do cardápio esquerdistaa defesa da legitimidade do banditismo como "protestosocial", que, formando polaridade com a onda decombate moralista aos "colarinhos brancos",estabeleceria uma dupla moral para o julgamento doscrimes: brando para com o Lumpen, mesmo quando estemata ou estupra, rigoroso para com os ricos e aclasse-média, quando cometem delitos contra opatrimônio — a mais curiosa inversão já observada nahistória da moralidade. )

Nessa resenha das estratégias comunistas, onde entrao gramscismo? Não entra. Ele ficou de fora, restritoa círculos locais italianos, e só alcançou maiordifusão, mesmo na Itália, após a década de 50, com aedição das obras completas de Gramsci por Einaudi. Apartir de l964, a facção comunista brasileira aindafiel à orientação moscovita de aliança com aburguesia acreditou ver em Gramsci um potencialrenovador desta estratégia, com a qual ele coincideao menos no que diz respeito ao caráter eminentementenão-sangrento da luta revolucionária e na cuidadosaexclusão de quaisquer radicalismos que pudessemestreitar a base das colaborações possíveis.Porta-voz dessa corrente, o editor Ênio Silveiraempreendeu então a publicação ao menos das principaisobras de Gramsci: A Concepção Dialética da História;Maquiavel, a Política e o Estado Moderno; Os

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Intelectuais e a Organização da Cultura; Literatura eVida Nacional e Cartas do Cárcere.

Estas obras foram muito lidas, mas, numa atmosferadominada pela obsessão da luta armada, não exerceraminfluência prática imediata. Seu potencial ficouretido até a derrota da luta armada, que provocou,como não poderia deixar de ser, um retornogeneralizado às teses do combate pacífico ealiancista defendidas pelo PC pró-Moscou. Oreatamento do romance entre a esquerda armada e adesarmada deu-se, naturalmente, sobre um fundomusical orquestrado pelo maestro Antonio Gramsci.Simplesmente não havia outro capaz de musicar estacena. A esquerda tornou-se gramsciana meio às tontas,jogada pelo entrechoque dos acontecimentos, comobolas de bilhar que, impelindo umas às outras, vãodar todas enfim na caçapa.

Agora, a imprensa brasileira acaba de descobrir, comum atraso de dez anos, que o programa do PT égramsciano. Mas, além de tardia, esta descoberta éinexata: não é só o PT que segue Gramsci: todos oshomens de esquerda neste país o fazem há uma década,sem se dar conta. O gramscismo domina a atmosfera porsimples ausência de outras propostas e também por umarazão especial: atuando menos no campo do combateideológico expresso do que no da conquista dosubconsciente, ele se propaga por mero contágio demodas e cacoetes mentais, de maneira que põe a seuserviço informal uma legião de pessoas que nuncaouviram falar em Antonio Gramsci. O gramscismo contamenos com a adesão formal de militantes do que com apropagação epidêmica de um novo "senso comum". Suafacilidade de arregimentar colaboradores mais oumenos inconscientes é, por isto, simplesmenteprodigiosa.

Eis ai o terceiro fator a que me referi. O gramscismoé menos uma filosofia do que uma estratégia de açãopsicológica, destinada a predispor o fundo do "sensocomum" a aceitar a nova tábua de critérios propostapelos comunistas, abandonando, como "burgueses",valores e princípios milenares.

Que essa "filosofia", para se propagar, não contetanto com a persuasão racional como com a eficácia dapenetração sutil no inconsciente das massas, é o quese vê claramente pela sua ênfase na conquista dasmentes infantis — um terreno onde o avanço daesquerda vem causando um dano incalculável a milhões

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de crianças brasileiras, usadas como cobaias de umadesastrosa experiência gramsciana. Que, enfim, essacorrente haja alcançado sucesso no Brasil, é algo quetestemunha a miséria intelectual de um meio onde osletrados, incapazes de suportar o isolamento, buscammenos a verdade e o conhecimento do que umacarteirinha de intelectual orgânico, que lhes garantao apoio psicológico de um vasto grupo solidário e osaureole de um ambíguo prestígio aos olhos dosbrutamontes de direita, sua mal disfarçada paixão.

Isso não poderia acontecer senão aqui.

 

 

Adendos

 

1

O número dos adeptos conscientes e declarados dogramscismo é pequeno, mas isto não impede que eleseja dominante. O gramscismo não é um partidopolítico, que necessite de militantes inscritos eeleitores fiéis. É um conjunto de atitudes mentais,que pode estar presente em quem jamais ouviu falar deAntonio Gramsci, e que coloca o indivíduo numaposição tal perante o mundo que ele passa a colaborarcom a estratégia gramsciana mesmo sem ter disto amenor consciência. Ninguém entenderá o gramscismo senão perceber que o seu nível de atuação é muito maisprofundo que o de qualquer estratégia esquerdistaconcorrente. Nas demais estratégias, há objetivospolíticos determinados, a serviço dos quais secolocam vários instrumentos, entre eles a propaganda.A propaganda permanece, em todas elas, um meioperfeitamente distinto dos fins. Por isto mesmo aatuação do leninismo, ou do maoismo, é sempredelineada e visível, mesmo quando na clandestinidade.No gramscismo, ao contrário, a propaganda não é ummeio de realizar uma política: ela é a políticamesma, a essência da política, e, mais ainda, aessência de toda atividade mental humana. Ogramscismo transforma em propaganda tudo o que toca,contamina de objetivos propagandísticos todas asatividades culturais, inclusive as mais inócuas emaparência. Nele, até simples giros de frase, estilosde vestir ou de gesticular podem ter valorpropagandístico. É esta onipresença da propaganda que

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o singulariza e lhe dá uma força que seusadversários, acostumados a medir a envergadura dosmovimentos políticos pelo número de adeptosformalmente comprometidos, nem de longe podemavaliar.

Um detalhe que assinala bem as diferenças é a atitudedo gramscismo perante a arte engajada. Outrasestratégias exigem do artista que ele imprima às suasobras um sentido político determinado, ou que, pelomenos, sua visão do mundo, expressa em cada obra,seja coerente com a interpretação marxista. Aliteratura engajada do leninismo, do stalinismo ou domaoismo, é portanto uma coleção de obras das quaiscada uma, por si, é uma peça de propaganda, com valorautônomo. Já no gramscismo o que interessa é apenas oefeito de conjunto da massa de obras literárias emcirculação. Esse efeito de conjunto deve tender àmudança do senso comum desejada pelo Partido, poucoimportando que cada obra, tomada isoladamente, nadatenha de marxista ou seja mesmo destituída dequalquer valor propagandístico.

Graças a isto, o julgamento gramsciano de cada obra émuito menos rígido e dogmático que o de outrascorrentes marxistas — o que muito contribuiu paraelevar o seu prestígio entre intelectuais ansiosospor conciliar seus ideais marxistas com seu desejopessoal de liberdade.

No gramscismo, qualquer obra literária podecontribuir para a propaganda marxista, dependendoapenas do contexto em que é divulgada — tal como numjornal o teor das notícias tomadas individualmenteinteressa menos do que sua localização na página, aolado de outras notícias cujo efeito de conjuntoimprime um novo sentido a cada uma delas.

O objetivo primeiro do gramscismo é muito amplo egeral em seu escopo: nada de política, nada depregação revolucionária, apenas operar um giro decento e oitenta graus na cosmovisão do senso comum,mudar os sentimentos morais, as reações de base e osenso das proporções, sem o confronto ideológicodireto que só faria excitar prematuramenteantagonismos indesejáveis.

As mudanças aí operadas podem ser, no entanto, muitomais profundas e decisivas do que a mera adesãoconsciente de um eleitorado às teses comunistas.Mudanças de critério moral, por exemplo, têm efeitos

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explosivos. Essas mudanças podem ser induzidasatravés da imprensa, sem qualquer ataque frontal eexplícito aos critérios admitidos. Um caso queilustra isto perfeitamente bem, e que demonstra oalcance da estratégia gramsciana no Brasil, é o donoticiário sobre corrupção. A campanha pela Ética naPolítica não surgiu com um intuito moralizador, mascomo uma proposta política antiliberal. Numaentrevista ao Jornal do Brasil, um dos fundadores dacampanha, Herbert de Souza, o Betinho, deixou issoperfeitamente claro. A campanha surgiu numa reuniãode intelectuais de esquerda em busca de uma fórmulacontra Collor, muito antes de que houvesse qualquerdenúncia de corrupção no governo. Mais tarde, estasdenúncias vieram a dar à campanha uma forçainesperada, trazendo para ela a adesão de massas declasse-média moralista que, politicamente, teriamtudo para se opor a qualquer proposta explicitamenteesquerdista. Ora, a campanha exerceu uma influênciadecisiva na direção do noticiário nos jornais e naTV. Essa influência foi tal que introduziu nosjulgamentos morais uma mudança profunda.Impressionado pelo conteúdo escandaloso das notícias,o público nem de longe reparou que a edição delassubentendia essa mudança, que, conscientemente, elenão aprovaria. Ela consistiu em fazer com que oscrimes contra o patrimônio público parecesseminfinitamente mais graves e revoltantes do que oscrimes contra a pessoa humana. P. C. Farias, umtrêmulo estelionatário incapaz de dar um pontapé numcachorro, era apresentado como um Al Capone, ao mesmotempo que se minimizava a gravidade do banditismoarmado. Se de um lado jornalistas de esquerdapromovem um ataque maciço aos criminosos de colarinhobranco e de outro lado intelectuais de esquerda lutampara que os chefes de bandos de assassinos armadossejam reconhecidos como "lideranças populares"legítimas, o efeito conjugado dessas duas operações ébem nítido: atenuar a gravidade dos crimes contra apessoa, quando cometidos pela classe baixa eaproveitáveis politicamente pelas esquerdas, eenfatizar a dos crimes contra o patrimônio, quandocometidos por membros da classe dominante. Eis aí aluta de classes transformada em supremo critério damoral, desbancando o preceito milenar, arraigado nosenso comum, de que a vida é um bem mais sagrado doque o patrimônio.

Para que essas duas operações ocorramsimultaneamente, produzindo um resultado unificado,

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não é preciso que emanem de um comando centralorganizado. Basta que os intelectuais envolvidos numae noutra comunguem ainda que vagamente de um espíritorevolucionário gramsciano, para que, numa espécie decumplicidade implícita, cada qual realize sua tarefae todos os resultados venham a convergir na direçãodos fins gramscianos. Isto não exclui, é claro, ahipótese de um comando unificado, mas, para o sucessoda estratégia gramsciana, a unidade de comando, aomenos ostensiva, é bastante dispensável na fase daluta pela hegemonia.

É interessante saber que, na Constituição do Estadosoviético, o homicídio doloso era punido com apenasdez anos de cadeia e os crimes contra a administraçãopública sujeitavam o culpado à pena de morte. Nempoderia ser de outro modo, dado o pouco valor que, naperspectiva marxista, tem a vida individual quandonão posta a serviço da revolução. Ora, o noticiáriosobre corrupção conseguiu introduzir na mentebrasileira o hábito de julgar as coisas segundo umaescala moral soviética; e o fez com muito maiseficiência do que lograria em anos e anos de debatesexplícitos. Uma vez explicitada, essa mudança seriarejeitada com horror por um povo em que ainda sãovivos, no fundo, os sentimentos cristãos. Introduzidapor baixo, como critério subjacente, ela penetra àsocultas no senso comum e o perverte até a raiz,preparando-o para aceitar passivamente, no futuro,aberrações maiores ainda, que venham a ser impostaspor um Estado socialista14.

A atuação espontânea, aparentemente inconexa, demilhares de intelectuais — no sentido gramsciano — emsetores distintos da vida pública, pode serfacilmente dirigida para onde o deseja a revoluçãogramsciana, não sendo necessário para isto nem mesmoum oculto Comitê Central de super-cérebros a comandaro conjunto da operação. Basta que uma cumplicidadeinicial se estabeleça entre certos grupos, para que,sobretudo na ausência de qualquer confronto críticocom outras correntes, o gramscismo avance como sobretrilhos azeitados, na estrada que leva à conquista dahegemonia. Ele já penetrou fundo, por esse caminho,na mentalidade brasileira. Quando um partido políticoassume publicamente sua identidade gramsciana, é quea fase do combate informal — a decisiva — já estápara terminar, pois seus resultados foram atingidos.Vai começar a luta pelo poder. O que marca esta novafase é que todos os adversários ideológicos já foram

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vencidos ou estão moribundos; nenhum outro discursoideológico se opõe ao gramscismo, e os adversáriospolíticos que restam lhe dão ainda maior reforço, namedida em que, não possuindo alternativa mental,pensam dentro dos quadros conceituais e valorativosdemarcados por ele e só podem combatê-lo em nome delemesmo. Isto é hegemonia.

 

2

Gramsci jura que é leninista, mas como ele atribui aLênin algumas idéias de sua própria invenção dasquais Lênin nunca ouviu falar, as relações entregramscismo e leninismo são um abacaxi que osestudiosos buscam descascar revirando os textos comuma paciência de exegetas católicos. Uma dessasidéias é a de "hegemonia", central no gramscismo.Gramsci diz que ela foi a "maior contribuição deLênin" à estratégia marxista, mas o conceito dehegemonia não aparece em parte alguma dos escritos deLênin. Alguns exegetas procuraram resolver o enigmaidentificando a hegemonia com a ditadura doproletariado, mas isto não dá muito certo porqueGramsci diz que uma classe só implanta uma ditaduraquando não tem a hegemonia. As relações entre Gramscie Marx também são embrulhadas, como se vê no uso dotermo "sociedade civil": para Marx, sociedade civil éo termo oposto e complementar do "Estado", e, logo,se identifica com o reino das relações econômicas, ouinfra-estrutura. Em Gramsci, a sociedade civil,somada à sociedade política ou Estado, compõe asuperestrutura que se assenta sobre a base econômica.

Essas e outras dificuldades de interpretação dopensamento de Gramsci decorrem, em parte, do caráterfragmentário e disperso dos seus escritos. Talvezelas possam ser resolvidas, mas o que é realmenteespantoso é que, alguns anos após revelada ao mundo amaçaroca dos textos gramscianos, e antes mesmo quealgum sério exame produzisse uma interpretaçãoaceitável do seu sentido, ela já fosse adotada comonorma diretiva por várias organizações, começando aproduzir efeitos práticos sobre os quais ninguém,nessas condições, poderia ter o mínimo controle. Essaadesão apressada a uma idéia que mal se compreendeuassinala uma tremenda irresponsabilidade política, umdesejo ávido de atuar sobre a sociedade humana semmedir as consequências. É claro que ninguém adere aGramsci com outro propósito que não o de implantar o

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comunismo em alguma parte do mundo. Mas, sendo ogramscismo um pensamento obscuro e às vezesincompreensível, não há nenhum motivo para crer quesua aplicação deva produzir nem mesmo esse resultado,lamentável o quanto seja. Pode acontecer, porexemplo, que a estratégia gramsciana não gere outroefeito além de tornar os burgueses ateus, retirandoos freios que a religião impunha à sua cobiça e aoseu maquiavelismo. Algo muito parecido aconteceu naprópria terra de Gramsci: é impossível não haverconexão entre a decadência da fé católica e atransformação da Itália numa Sodoma capitalista. Anova cultura materialista e gramsciana que dominou aatmosfera intelectual italiana desde a década de 60muito contribuiu para esse resultado; apenas, não sevê que vantagem os comunistas puderam tirar disso. Osesquerdistas brasileiros deveriam pensar naexperiência italiana antes de atirar-se a aventurasgramscianas que, na educação como na política, podemlevar a resultados tão confusos quanto as idéias queas inspiram.

 

3

O termo "Estado ético" é ele mesmo um dos primores deambiguidade que se encontram na mixórdia gramsciana.Ora ele designa o Estado comunista, ora o Estadocapitalista avançado, ora qualquer Estado. De modomais geral, Gramsci denomina "ético" todo Estado queprocure elevar a psique e a moral de seus cidadãos aonível atingido pelo "desenvolvimento das forçasprodutivas", subentendendo-se que o Estado comunistafaz isto melhor do que ninguém. A idéia éintrinsecamente imoral: consiste em submeter a moralàs exigências da economia. Se, por exemplo, umdeterminado estágio do "desenvolvimento das forçasprodutivas" requer que todos os habitantes de umaregião sejam removidos para o outro extremo do país,como aconteceu muitas vezes na União Soviética,torna-se "ética" a conduta de um garoto que denuncieo pai às autoridades por tentar fugir para uma cidadepróxima. A asquerosa admiração que os brasileiros vêmdemonstrando nos últimos tempos pelos irmãos quedelatam irmãos, pelas esposas que delatam maridos, éíndice de uma nova moralidade, inspirada em valoresgramscianos. Não há dúvida de que o novo critério é"ético" no sentido gramsciano, isto é, economicamenteútil, já que a delação generalizada de pais, irmãos,maridos e amantes pode ressarcir alguns prejuízos

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sofridos pelo Estado. Mas isto não atenua suaimoralidade intrínseca.

 

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Em cursos e conferências, venho falando do gramscismopetista desde 1987 pelo menos, para platéias em quenão faltaram jornalistas. Mas a imprensa brasileira,refratária a tudo quanto seja novo, só em 1994informou ao público a inspiração gramsciana dopetismo, quando ela não era mais uma tendêncialatente e já se havia externalizado no programaoficial do partido. O primeiro a dar o alarma foiGilberto Dimenstein, na Folha de S. Paulo, logo apósa publicação deste livro que aliás nem sei se eleleu; mas limitava-se a mencionar o nome do ideólogoitaliano, sem nada dizer do conteúdo de suas idéias.Não teve a menor repercussão. Mais tarde li duas outrês frases alusivas a Gramsci, em outros jornais eem Veja. Tudo muito sumário, num tom de quem contassecom a compreensão de uma platéia versadíssima emgramscismo. É o velho jogo-de-cena do histrionismobrasileiro: dar por pressuposto que o ouvinte sabe doque estamos falando é um modo de induzi-lo a crer quesabemos do que falamos. Na verdade, fora dos círculosdo petismo letrado, só sabem de Gramsci uns quantosacadêmicos, entre os quais Oliveiros da SilvaFerreira, que defendeu uma tese sobre o assunto numaUSP carregada de odores gramscianos, na década de 60.Gramsci continua esotérico, lido só em família, asalvo de qualquer crítica exceto amigável — umacrítica dos meios, conivente com os fins, numaatmosfera de culto e devoção que raia a pura esimples babaquice. Mas pelo mundo civilizado circulamcríticas devastadoras, que provavelmente jamaischegarão ao conhecimento do público brasileiro.Assinalo as de Roger Scruton16 e Alfredo Sáenz17, quetomam o assunto por lados bem diferentes daquele queabordo neste livro, mas chegam a conclusões não menosreprobatórias.

Devo apontar como exceção notável, ainda que tardia,um artigo de Márcio Moreira Alves18. Ele resgataparcialmente a honra da imprensa brasileira,mostrando que há nela pelo menos um cérebro capaz desaber de Gramsci algo mais do que o nome e pelo menosum repórter que não foge da notícia. Ele explica emlinhas gerais a estratégia gramsciana e o estadopresente de sua aplicação pela liderança petista,

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levando à conclusão de que, em vez de criar umademocracia como o partido promete, ela vai produziraqui a ditadura de uma capelinha de intelectuais. Élamentável, apenas, que no reduzido espaço de suacoluna o sempre surpreendente Moreira Alves nãopudesse abranger assunto tão vasto senão emabreviatura pesadamente técnica, de difícilassimilação pelo público. O Globo deveria dar-lheduas páginas inteiras para trocar em miúdos osensinamentos ali contidos, talvez os mais importantese urgentes que a imprensa brasileira transmitiu aopúblico nos últimos anos.

Particularmente oportuna é ali a observação de que oprograma mesmo do PT reconhece — oficialmente, porassim dizer — a hegemonia da esquerda, principalmenteno campo cultural mas também na política, na medidaem que proclama o ingresso atual do Brasil num novo"bloco histórico" ( sistema cerrado de relações entrea economia e a superestrutura cultural, moral ejurídica ). É digna da maior atenção, no programa doPT, a parte referente à "revolução passiva". Apassagem ao novo "bloco histórico" será feita pelaelite ativista com base no "consenso passivo" dapopulação. Isto quer dizer, sumariamente, que o povonão precisará manifestar seu apoio ao programa do PTpara que este se sinta autorizado a promover atransformação revolucionária da sociedade. A simplesausência de reação hostil, para não dizer derebelião, será interpretada como aprovação popular:quem cala consente, em suma. A proposta é de umcinismo descarado. Ela investe o PT do direito divinode agir em nome do povo sem precisar ouvi-lo, já queo silêncio se tornará aplauso. Durante sete décadas osilêncio de um povo oprimido foi interpretado como"aprovação passiva" pelo governo da URSS. Emlinguagem técnica mas incisiva, Márcio Moreira Alvesmostra que por esse caminho não se pode chegar a umademocracia. Discordo dele só num ponto: ele acha quea estratégia petista é uma traição aos ideais deGramsci, e eu estou seguro de que ela é a mais puraencarnação do gramscismo universal19.

O mais lamentável em toda essa história é que a massados militantes do PT não tem a menor condiçãointelectual de compreender as sutilezas da estratégiagramsciana, e vai se deixando conduzirsonambulicamente pelos guias iluminados, sem fazerperguntas quanto à verdadeira meta da jornada.

 

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NOTAS

Para Karl Marx, aqueles que captam o sentido domovimento da História e representam as "forçasprogressistas" ficam ipso facto liberados dequalquer dever com a "moral abstrata" daburguesia; seu único dever é acelerar o devirhistórico em direção ao socialismo, poucoimportando os meios. Baseado nesse princípio,Lênin codificou a moral partidária, onde o únicodever é servir ao partido. Esta moral, por suavez, deu origem ao Direito soviético, quecolocava acima dos direitos humanos elementaresos deveres para com o Estado revolucionário. Adelação de corruptos ou traidores, por exemplo,era na União Soviética uma obrigação básica docidadão. Mas não é só na teoria que o comunismo éimoral. No Estado socialista, todos sãofuncionários públicos, e basta isto para que acorrupção se torne institucional. Na UniãoSoviética ninguém conseguia tirar um documento ouconsertar uma linha telefônica sem soltarpropinas: ao socializar a economia, socializa-sea corrupção. A desonestidade desce das camadasdominantes para corromper todo o povo. O mesmoaconteceu na China, país que ademais senotabilizou por ser o maior distribuidor detóxicos deste planeta. A justificativa, na época,era que os tóxicos enfraqueceriam a "juventudeburguesa" e facilitariam o avanço do socialismo,sendo, portanto, benéficos ao progresso humano.As drogas só se tornaram um problema de escalamundial graças ao comunismo chinês, que, comisto, se tornou culpado de um crime de genocídiopelo qual, até hoje, ninguém teve coragem deacusá-lo.

Ainda segundo a moral comunista, as pessoasprofundamente apegadas aos ideais burgueses sãodoentes incorrigíveis, devendo por isto serisoladas ou exterminadas. Sessenta milhões depessoas foram mortas, na União Soviética, em nomeda reedificação da cultura e da personalidade. NoCamboja, o genocídio foi adotado comoprocedimento normal e legítimo.

Foram os comunistas que, com base nas descobertasde Pavlov, desenvolveram o sistema de lavagemcerebral, para despersonalizar os prisioneiros e

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levá-los a confessar crimes que não haviamcometido.

Foi também o comunismo que instituiu o sistema deromper sem aviso prévio acordos internacionais,tratados de paz e compromissos comerciais,institucionalizando no mundo o do gangsterismocomo norma de conduta diplomática, depois copiadopor Hitler. Campos de concentração e deextermínio são também uma invenção comunistaimitada pelo nazismo.

O governo comunista da URSS criou o maior sistemade espionagem interna de que se teve notícia nahistória humana, a KGB, e por meio dela tornou-seo primeiro governo essencialmente policial domundo.

O comunismo foi ainda o primeiro regime ainstituir em escala continental a mentirasistemática como padrão de ensino público, e afalsificação da ciência como meio de controle daopinião.

Que tudo isso possa ser um enorme tecido decoincidências, que não haja nenhuma conexãointrínseca entre todos esses horrores e aideologia socialista, é somente mais uma mentirapropagada por intelectuais ativistas cujaformação marxista os tornou para sempre cínicos,hipócritas e incapazes de qualquer sentimentomoral.

A participação intensa de intelectuais marxistasna campanha pela "Ética na Política" é um sinalseguro de que essa campanha não moralizará apolítica, mas apenas politizará a ética,tornando-a uma serva de objetivos intrinsecamenteimorais. Quem viver, verá. [ N. da 2ª ed.. ]Voltar

Exemplo característico da mutação da escalamoral é a campanha contra a Aids. É mais do queevidente que a liberação sexual favorece adisseminação dessa doença. No entanto,jornalistas e agitadores culturais do mundo todoestão levando as pessoas a crer que oconservadorismo moral, particularmente católico,é o culpado pela difusão da Aids, na medida emque se opõe à distribuição de camisinhas. Fazer

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de um efeito desastroso da liberação sexual umargumento contra a moral conservadora é um truquesofístico que só ocorreria a mentalidadesinteiramente perversas. Os liberacionistas dãocom isso um exemplo horrendo de insensibilidademoral, de hipocrisia cínica. Ocultar suaspróprias culpas por trás da acusação lançada a uminocente é um dos comportamentos mais baixos quese podem conceber. Por outro lado, do ponto devista meramente prático, a esperança no poder dascamisinhas é uma insensatez, para dizer o mínimo.Junto com ela vem a recusa de enxergar a parcelade razão que têm os religiosos nessa questão.Qual a taxa de Aids entre católicos praticantes,evangélicos, monges budistas, judeus ortodoxos,mussulmanos devotos? É praticamente nula. Umabela campanha moralista, por desagradável quefosse ( e para mim também o seria, poispessoalmente sou mais pela liberação ), fariamais para conter o avanço da Aids do que adistribuição de trilhões de camisinhas. Nestemomento da história, qualquer campanha moralista,por boboca que nos pareça, é um empreendimentodigno de louvor, uma contribuição à salvação daespécie humana. Se amanhã ou depois a populaçãodo Brasil aderir em peso aos Pentecostais, aoBispo Macedo ou à Renovação Carismática, a Aidsestará vencida entre nós. Isto é uma obviedadeque só os intelectuais não enxergam. [ N. da 2ªed. ] Voltar

Querem um retrato moral de Antonio Gramsci?Podem encontrá-lo numa das fábulas que, daprisão, ele remetia para que fossem lidas à suafilha:

"Enquanto um menino dormia, um rato bebeu o leiteque a mãe lhe havia preparado. Quando o meninoacordou, pôs-se a chorar porque não encontrou oleite; a mãe, por seu lado, também chora. O ratotem remorsos, bate a cabeça contra a parede, masfinalmente percebe que aquilo de nada serve.Então, corre à cabra para conseguir mais leite.Mas a cabra diz ao rato que só lhe dará leite setiver capim para comer. Então, o rato vai até ocampo, mas o campo é árido e não pode dar capimse não for molhado antes. O rato vai à fonte, masesta foi destruída pela guerra e a água se perde;é preciso que o pedreiro conserte a fonte. Opedreiro precisa das pedras, que o rato vai

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buscar numa montanha, mas a montanha está todadesmatada pelos especuladores. O rato conta todaa história e promete que o menino, quandocrescer, plantará novas árvores na montanha. Eassim a montanha dará as pedras, o pedreirorefará a fonte, a fonte dará a água, o campo daráo capim, a cabra fornecerá o leite e, finalmente,o menino poderá comer e não chorará mais." (Laurana Lajolo, Antonio Gramsci. Uma Vida, trad.Carlos Nelson Coutinho, São Paulo, Brasiliense,1982. )

As fábulas sempre foram, ao longo dos tempos, umdepósito de símbolos portadores de um ensinamentoespiritual. Por meio delas, a criança tinha oacesso ao conhecimento das possibilidades humanasmais elevadas, e este conhecimento, tanto maispotente porque cristalizado numa linguagem mágicae alusiva, bastava para defender sua alma datotal imersão na banalidade esterilizante do meioadulto. Elas representavam, assim, o fio decontinuidade do núcleo mais puro da alma humanano meio da agitação alienante da "História".

Gramsci consegue aqui inverter a função dafábula, transformando-a num meio de ensinar àcriança, com realismo literal, o processo deprodução capitalista - da matéria-prima àcomercialização - e para lhe inocular, de um sógolpe, o ódio aos malditos especuladores e aesperança na futura utopia socialista, onde "tudoserá mais belo".

O que Gramsci fez com sua própria filha, por quenão o faria com os filhos dos outros? É precisoque a pregação comunista atinja os cérebrosenquanto ainda estão tenros e indefesos, e,fechando-lhes o acesso a toda concepção de ordemespiritual, os encerre para sempre no círculo deferro da mundanidade "histórica" ( v. adiante,Cap. III ).

Gramsci revela aqui toda a mesquinhez da suaconcepção do mundo, onde a economia é não só omotor da História, mas o limite final dohorizonte humano.

Que um tipo desses possa ser objeto de cultosentimentalista entre os militantes, isto mostraque a ideologia comunista traz em seu bojo uma

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perversão dos sentimentos, uma mutilação da almahumana. É preciso muito agitprop para fazer deGramsci um personagem digno de admiração. Masentre militantes esquerdistas já vi sujeitoscapazes de proferir toda sorte de blasfêmiascontra a religião alheia terem tremeliques deemoção religiosa ante o santo nome de AntônioGramsci. Essa sentimentalidade pseudo-religiosanão é um excesso de zelo: é a essência mesma dogramscismo, que beatifica o mundano para abafar eperverter o impulso religioso e transformá-lo emdevoção partidária. Querem ver no que dá?Narrando a morte de Gramsci, a hagiógrafa LauranaLajolo ( op. cit., p. 148 ) termina falando doscadernos "nos quais Antônio Gramsci haviadepositado, em sentido laico e historicista, aimortalidade da sua alma, a possibilidade desobrevivência intelectual na história". Só umgramsciano roxo é incapaz de enxergar o ridículoque há em teologizar a esse ponto a famaliterária. Se a idéia valesse, os imortais daAcademia já não seriam imortais figuradamente,mas literalmente - e nossas preces pela vidaeterna não deveriam dirigir-se a Jesus Cristo, esim à pessoa do sr. Josué Montello. [ N. da 2ªed. ] Voltar

O fenômeno da pseudo-intelectualidade é um dostraços mais marcantes do chamado Terceiro Mundo,e é ela, não o proletariado ou as massasfamintas, a base social dos movimentosrevolucionários. Eric Hoffer, que examinou oassunto com mais seriedade do que ninguém,explica esse fenômeno pelas condições peculiaresem que, nessa parte do globo, se deu, com areforma modernizadora empreendida pelas potênciasOcidentais, a quebra do modo de vidacomunitário-patriarcal. Escrevendo no começo dadécada de 50, e mencionando nomeadamente a Ásia,ele fala em termos que se aplicam com precisão aoBrasil de hoje: "Em toda a Ásia, antes do adventoda influência Ocidental, o indivíduo estavaintegrado num grupo mais ou menos compacto - afamília patriarcal, o clã ou a tribo. Donascimento à morte, sentia-se parte de um todoeterno e contínuo. Jamais se sentia sozinho,jamais se sentia perdido, jamais se via como umpedaço de vida flutuando numa eternidade de nada.A influência Ocidental [...] destruiu e corroeu amaneira tradicional de vida. O resultado não foi

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a emancipação, e sim o isolamento e o desamparo.Um indivíduo imaturo foi arrancado do calor esegurança de uma existência coletiva e deixadoórfão num mundo frio.

"O indivíduo recém-surgido pode atingir algumgrau de estabilidade [...] somente quanto lheoferecem abundantes oportunidades deauto-afirmação ou auto-realização. Somente assimele poderá adquirir a autoconfiança e auto-estima[...]. Quando a autoconfiança e a auto-estimaparecem inatingíveis, o indivíduo em formaçãotorna-se uma entidade altamente explosiva. Tentaobter uma impressão de confiança e de valorabraçando alguma verdade absoluta eidentificando-se com os atos espetaculares de umlíder ou de algum corpo coletivo - seja umanação, uma congregação, um partido ou ummovimento de massa.

"É necessário uma rara constelação decircunstâncias para que a transição de umaexistência comunitária para a individual siga oseu curso sem ser desviada ou invertida porcomplicações catastróficas. [...] O indivíduo emsurgimento na Europa, no fim da Idade Média,enxergou panoramas deslumbrantes de novoscontinentes, de novas rotas de comércio, de novosconhecimentos. O ar estava carregado de novasexpectativas e havia a sensação de que oindivíduo por si só era capaz de qualquerempreendimento. A mudança [...] produziu umaexplosão de vitalidade [...].

"Essa excepcional combinação de circunstânciasnão estava presente na Ásia. Ali, ao invés de serestimulado por perspectivas deslumbrantes eoportunidades jamais sonhadas, [ o indivíduo ] seviu enfrentando uma vida estagnada, debilitada, eextraordinariamente pobre. É um mundo onde a vidahumana é a coisa mais abundante e barata. É, alémdisso, um mundo analfabeto. [...]

"A minoria letrada é, assim, impedida de adquirirum senso de utilidade e de valor tomando parte nomundo do trabalho, e é condenada a uma vida depseudo-intelectuais tagarelas e cheios de pose.

"O extremista da Ásia é hoje geralmente um homemde certa instrução que tem horror ao trabalho

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manual e um ódio mortal pela ordem social que lhenega uma posição de comando. Todo estudante, todoescriturário e funcionário menos graduado sesente como um escolhido. É essa gente palavrosa efútil que dá o tom na Ásia. Vivendo vidasestéreis e inúteis, não possuem autoconfiança eauto-respeito, e anseiam pela ilusão de peso eimportância.

"É principalmente a esses pseudo-intelectuais quea Rússia comunista dirige seu apelo. Traz-lhes apromessa de tornarem-se membros de uma elitegovernante, a perspectiva de terem ação noprocesso histórico e, com seu falatóriodoutrinário, proporciona-lhes uma sensação depeso e profundidade." ( Eric Hoffer, The Ordealof Change, London, Sidgwick & Jackson, 1952;trad. brasileira de Sylvia Jatobá, O Intelectuale as Massas, Rio, Lidador, 1969, pp. 16 ss..) É adescrição exata da liderança petista. [ N. da 2a.ed.. ] Voltar

A proposta do PT, de dar prêmios aos cidadãosque delatem casos de corrupção, seria repelidacom horror se apresentada uns anos atrás, quandoa corrupção não era menor mas os sentimentosmorais da população brasileira conservavam unsvestígios de normalidade porque ainda não tinhamsido corrompidos pela "campanha da Ética". Hoje,é aceita com aplausos dos que não percebem nelaaquilo que ela verdadeiramente é: a instauraçãodo Estado policial em nome da moralidade, acorrupção de todas as relações humanas pelauniversalização da suspeita, o incentivo àespionagem de todos contra todos. Para que oEstado não perca dinheiro, será preciso que todosos brasileiros percam a dignidade e o respeitopróprio, transformando-se em alcagüetespremiados. [ N. da 2ª ed. ] Voltar

14.

Escrito para a 2a. edição. Voltar15.

Roger Scruton, Thinkers of the New Left, Harlow( Essex ), Longman, 1985. [ N. da 2a. ed. ]Voltar

16.

Alfredo Sáenz, s. J., "La estratégia ateísta deAntonio Gramsci", em Ateísmo y Vigencia delPensamiento Católico. Actas del Cuarto CongresoCatolico Argentino de Filosofía, Córdoba,Asociación Católica Interamericana de Filosofía,

17.

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1988, pp. 355-366. [ N. da 2a. ed.. ] Voltar

"A revolução passiva", O Globo, 28 de junho de1994. Voltar

18.

Há pensadores de quem a gente diverge com omaior respeito. Entre os marxistas, esse é paramim o caso de um Adorno, de um Horkheimer, de umMarcuse, ou mesmo de um Lukács. Mas por Gramsci,como o leitor já deve ter percebido, não consigosentir o menor respeito, porque ele não respeitanada e se porta ante dois milênios de civilizaçãocom a petulância dos ignorantes. Acho umababaquice ter ante um escritor qualquer umareverência maior do que a que ele tem anteMoisés, Jesus Cristo ou a Virgem Maria. Mas aatmosfera de culto em torno do nome de AntonioGramsci é tão carregada de zelo, que acabainibindo por contágio inconsciente até osmelhores cérebros, impedindo-os de chegar a umavisão objetiva e crítica do pensamento deGramsci. [ N. da 2a. ed. ] Voltar

19.

 

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3a edição,revista e aumentada.

 

 

III

A NOVA ERA E A REVOLUÇÃO CULTURAL 

AS IDÉIAS de Capra e de Gramsci são puras ficções,mas nem por isto as semelhanças entre elas são meracoincidência. A simples listagem basta para por àmostra uma raiz comum:

1 - Ambas essas correntes são radicalmente"historicistas" — quer dizer: para elas, toda"verdade" é apenas a expressão do sentimento coletivode um determinado momento histórico. O que importanão é se esse sentimento coletivo capta uma verdadeobjetivamente válida, mas, ao contrário, ele vale porsi como único critério do pensamento correto.

2 - Em ambas, o sujeito ativo do conhecimento não é a

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consciência individual, mas a coletividade. Elasdivergem somente, na superfície, quanto à delimitaçãodesse místico "sujeito coletivo": para Capra, é "ahumanidade", ou, mais vagamente ainda, "nós" ( écaracterístico dos doutrinários da Nova Era, comoCapra ou Marilyn Ferguson, dirigir-se a um auditóriouniversal na primeira pessoa do plural, de modo quenão sabemos se quem fala é um Autor divino ocultandosua supra-personalidade num plural majestático, ou seé a autoconsciência coletiva da humanidade ). ParaGramsci, o sujeito coletivo é o "proletariado", ou,mais propriamente, o conjunto dos intelectuaisorgânicos que o "representam", isto é, o Partido.

3 - Ambas insistem menos em provar alguma tese do queem induzir uma "mudança de percepção", uma viradarepentina que faça as pessoas sentirem as coisas deum modo diferente. Com Capra e Gramsci ninguém podediscutir, tese por tese, demonstração pordemonstração: a conversão tem de ser integral esúbita, ou não se realiza jamais: capristas egramscistas são "convertidos" ou "renascidos", quenum determinado instante de suas vidas "viram a luz"mediante uma rotação instantânea do eixo de suacosmovisão. O decisivo, em ambos os casos, não é aargumentação racional, mas uma adesão prévia,volitiva ou sentimental: o sujeito "sente-se" derepente, como um todo, identificado com a Nova Era oucom a causa do proletariado, e em seguida passa a veros detalhes de acordo com o novo quadro dereferência.

4 - Ambas são "revoluções culturais". Pretendeminaugurar um novo cenário mental para a humanidade,no qual todas as visões e opiniões anteriores serãoimplicitamente invalidadas como meras expressõessubjetivas de um tempo que passou. Como, de outrolado, a nova cosmovisão também não se apresenta comoverdade objetivamente válida e sim apenas comoexpressão de um "novo tempo", já não se podeconfrontar as idéias de hoje com as de antigamentepara saber quem tem razão: o critério de veracidadefoi substituído pelo da "atualidade", e como todaépoca é atual para si mesma, cada qual constitui umaunidade cerrada, com suas idéias que só são válidassubjetivamente para ela. Platão tinha as idéias do"seu tempo"; nós temos a do "nosso tempo" — cada umna sua.

5 - A dimensão "tempo" é assim absolutizada, reinandosozinha num mundo de onde foi extirpado todo senso de

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permanência e de eternidade. Em Gramsci, a amputaçãoé explícita; em Capra e na Nova Era em geral,implícita e disfarçada pela verborréia mística. Apósessa cirurgia, a mente humana torna-se incapaz decaptar o que quer que seja das relações ideais que,para além do real empírico, apontam para a esfera dopossível, da infinitude, do universal. O empírico, ofato consumado, o horizonte imediato das preocupaçõespráticas — pessoais ou coletivas — torna-se o extremolimite da visão humana. O "cosmos" de Capra e a"História" de Gramsci são campânulas de chumbo queprendem a imaginação humana num mundo pequeno,artificialmente engrandecido pela retórica.

6 - Com o senso da eternidade e da universalidade,vai embora também o senso da verdade, a capacidadehumana de distinguir o verdadeiro do falso,substituída por um sentimento coletivo de "adequação"ao "nosso tempo". A "supra-consciência" da Nova Era eo "intelectual coletivo" de Gramsci têm em comum amais absoluta falta de inteligência. Para ambos valeo que o jornalista Russel Chandler disse de um deles:

"A maior capacidade da mente humana é asua habilidade de discriminar entre oque é verdadeiro e o que é falso,distinguir o que é real do que éilusório ou aparente. Mas a‘supraconsciência’ da Nova Era estáprogramada para ignorar essasdistinções."

7 - Dissolve-se também a autoconsciência reflexiva ecrítica, pela qual o indivíduo humano é capaz desobrepor-se às ilusões coletivas e julgar o seutempo. Fechado na redoma do momento histórico, évedado ao indivíduo enxergar para além dele, exerceros privilégios de uma inteligência autônoma, terrazão contra a opinião majoritária — seja ela aopinião conservadora do establishment ou o anseiocoletivo dos ambiciosos insatisfeitos.

8 - A depreciação da consciência individual vem com anegação do critério da evidência intuitiva como basepara julgar a verdade. Reduzida a seu aspectopsicológico, imanente, a intuição torna-se apenas umaexperiência interna como qualquer outra, incapaz deevidência apodíctica. Confunde-se com o sentimento,com o pressentimento, com a vaga impressão e com afantasia. Daí a necessidade de um novo critério, queserá, na Nova Era, a fantasia mesma, adornada com o

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título de intuição mística, e na Revolução Culturalde Gramsci o sentimento coletivo do Partido, detentorprofético do sentido da História.

As semelhanças são tão substanciais que, perto delas,as diferenças se tornam meramente adjetivas. Afiliação comum remonta, no mínimo, ao mito maisquerido da ilusão moderna: o mito da Revolução, do"apocalipse terreno", que, num giro súbito de todasas aparências, transfigurará o mundo, inaugurando umCéu na Terra. O mito da Revolução é acenoura-de-burro que há séculos mantém a humanidadeno encalço do comboio da História disparado emdireção a uma miragem, sem poder atingir outroresultado senão a aceleração do devir, que, nãochegando a parte alguma, acaba sendo entronizado elemesmo como supremo objetivo da vida: o acontecer peloacontecer, a eternização do fluxo das impressões, aredução do homem ao ser empírico preso a umagirândola sem fim de "experiências" e "momentos"atomísticos. Em termos orientais, que o linguajar daNova Era repete sem compreender-lhes o sentido, é aabsolutização da Maya, a prisão eterna no círculo dosamsara.

Nem as idéias de Capra nem as de Gramsci necessitamde refutação. Sua interpretação ordenada e clara jávale como refutação. O simples desejo decompreendê-las basta para exorcizá-las. São idéiasque só podem prosperar sob a proteção de uma névoa deambiguidades, e só encontram terreno fértil nas almasque anseiam por ilusões lisonjeiras, em cujo colomacio possam esquecer sua própria miséria, a misériade toda vaidade.

 

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3a edição,revista e aumentada.

 

 

Apêndice I.As esquerdas e o crime

organizado 

Comando Vermelho. A História Secreta do CrimeOrganizado, de Carlos Amorim, é um trabalho de valorexcepcional, cuja leitura se recomenda a todos osbrasileiros que se preocupem com o futuro deste país.Futuro do qual se pode ter um vislumbre pelaspalavras de William Lima da Silva, o "Professor",fundador e guru do Comando Vermelho, citadas à p.255:

"Conseguimos aquilo que a guerrilha nãoconseguiu: o apoio da população carente. Vouaos morros e vejo crianças com disposição,fumando e vendendo baseado. Futuramente, elas

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serão três milhões de adolescentes, que matarãovocês [ a polícia ] nas esquinas. Já pensou oque serão três milhões de adolescentes e dezmilhões de desempregados em armas?"

A quem entenda isso como mera expressão de um delíriomegalômano, o livro de Carlos Amorim mostra que asinistra profecia já está em curso de realização: oComando Vermelho não apenas domina dois quintos doterritório do Grande Rio, desfrutando aí o monopóliodos sequestros, do comércio de carros roubados, dotráfico de drogas, mas exerce também nessa áreafunções de governo, por meio do terror alternado comlisonjas paternalistas, e tem ainda a liderança nocontrabando de armas pesadas, sendo hoje umaorganização mais equipada do que a polícia ou mesmodo que as guarnições locais do Exército. Asautoridades reconhecem que o poder da máfia dosmorros é absolutamente incontrolável, e elaprossegue, de vitória em vitória, atordoando apolícia, humilhando os governantes, e atribuindo àssuas operações criminosas, para cúmulo dedescaramento, o sentido épico de uma luta pelalibertação dos oprimidos.

Não vou aqui resumir o livro, pois pretendo que oleiam. Nas páginas que se seguem, concentrarei minhasobservações antes no que me parece o seu único pontofraco. Não farei isto para depreciar os méritos daobra, que são elevados, mas justamente para osrealçar; pois essa lacuna, que está no diagnósticodas causas e origens profundas do crime organizado,só poderia ser preenchida por uma investigação queiria muito além do seu escopo. O autor, de fato,alude a algumas causas prováveis, mas centraliza suaatenção no fenômeno do Comando Vermelho como tal, semestender seu exame ao conjunto dos fatores históricosque cercaram, propiciaram e finalmente determinaram oseu surgimento. Não se trata portanto de assinalaraqui algum defeito do livro, mas de sugeririnvestigações suplementares que dariam matéria paraoutro livro, ou vários.

Uma certeza o livro de Amorim parece deixardefinitivamente assentada: o Comando Vermelho nasceuda convivência entre criminosos comuns e ativistaspolíticos dentro do presídio da Ilha Grande, entre osanos de 1969 a 1978. Ali os militantes esquerdistas

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ensinaram aos bandidos as técnicas de guerrilha queeles viriam a usar em suas operações criminosas e osprincípios de organização político-militar sobre osquais viria a estruturar-se o Comando Vermelho, bemcomo a fraseologia revolucionária com que o bandohoje glamuriza suas façanhas.

O que não fica claro de maneira alguma é o grau e anatureza da participação das organizações de esquerdana criação do Comando Vermelho, a suaresponsabilidade histórica pela eclosão do fenômenoque hoje aterroriza a população carioca e põe emrisco a sobrevivência da jovem e frágil democraciabrasileira.

Quanto a esse ponto, o autor se contradiz: suanarrativa dos fatos aponta num sentido, suas opiniõesno sentido contrário. Eis uma dessas opiniões:

"Os revolucionários nunca pretenderamensinar criminosos a fazer guerrilhas. Emmais de uma década de pesquisas, nuncaencontrei o menor indício de que houvesseuma intenção — menos ainda uma estratégia— para envolver o crime na luta declasses."

Logo, na interpretação do autor, os ensinamentos deguerrilha teriam sido passados aos bandidos de umamaneira natural, espontânea, impremeditada, ao saborde contatos fortuitos entre indivíduos, e semqualquer responsabilidade das organizaçõesesquerdistas.

Mas os fatos narrados pelo próprio Amorim desmentemfrontalmente essa interpretação. Sem chegarem a darrespaldo à tese policial que vê no Comando Vermelhouma extensão ou um recrudescimento da velha guerrilharevolucionária, eles indicam, no entanto, que o quese passou na Ilha Grande foi algo de bem maiscomprometedor do que simples conversas casuais.Poderosos interesses vetam, hoje, uma investigaçãomais profunda desses episódios. Os prisioneirospolíticos de então tornaram-se gente importante,deputados, ministros, procuradores, com poderessuficientes para dissuadir qualquer olhar curioso quese lance sobre um passado que eles preferem manterprotegido entre névoas. Não duvido que a ambiguidadedo próprio Amorim tenha brotado do prudente desejo deevitar um confronto com essa gente, cujos partidáriose simpatizantes exercem uma completa hegemonia sobreo seu ambiente de trabalho: as redações de jornais.Da minha parte, porém, nada espero deles. No tempo em

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que eram perseguidos políticos, ajudei-os o quantopude, escondendo foragidos e armas, redigindo edistribuindo propaganda contra a ditadura, porque viaem seus rostos o emblema da verdade, hostilizada pelamentira oficial. Hoje, que estão a um passo do poder,já enxergo em seu semblante a máscara da hipocrisia,que anuncia para breve, neste país, um novo impérioda falsidade. Todo sacerdócio converte-se, mais cedoou mais tarde, num culto de si mesmo: tendo outroraservido à verdade, eles hoje tomam o lugar dela noaltar de um culto degenerado

Investigar o sentido dos episódios da Ilha Grande éromper um tabu, é violar o preceito consagradosegundo o qual a maldade, a baixeza, a hipocrisia sãomonopólio da direita.

A convivência entre presos políticos e bandidoscomuns é antiga no Brasil, reconhece Amorim. Vemdesde 1917, com as primeiras prisões de agitadoressindicalistas e anarquistas. Intensificou-se durantee após a rebelião comunista de 1935. Desde então foiconstante e sistemático o esforço dos comunistas paradoutrinar criminosos e enquadrá-los na luta política.Um dos líderes de 35, Gregório Bezerra, conta em suasmemórias como "transformou guardas penitenciários ebandidos em militantes comunistas". Durante os anosdo Estado Novo, conta Amorim, "o contato comintelectuais, militares radicais, políticos esindicalistas fez a cabeça de punguistas e escroques.A partir dessa convivência, muitos homens deixarampara trás as carreiras no crime e optaram pelamilitância revolucionária".

Nada disso no entanto provocou a menor alteração deconjunto no mundo do crime: "Nas ruas, o crimecontinuava o mesmo: avulso, violento, desorganizado.O fenômeno da conscientização e o surgimento dochamado crime organizado só vão aparecer na década de70."

Houve portanto aí a introdução de um fator novo, deuma diferença específica no tipo de influênciaexercido pelos militantes sobre os bandidos. Essadiferença residiu essencialmente no conteúdo dasinformações transmitidas: em vez de simplesdoutrinação ideológica, os bandidos receberamensinamentos práticos, que puderam por em ação tão

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logo saíram da cadeia. Que ensinamentos foram esses?

Primeiro, princípios de organização, que incluíamdesde a estrutura hierárquica e disciplinar do grupoarmado até sistemas de comunicação em código.

Em seguida, técnicas de propaganda ou agitprop, quelhes permitiram transformar assaltos e sequestros emespetáculos de protesto — "propaganda armada", nojargão esquerdista —, que ganham a simpatia ao menosparcial da população e da intelligentzia.

Terceiro, táticas de ação armada. Aqui a lista égrande. Dentre os procedimentos usados pela guerrilhae copiados pelo Comando Vermelho, pode-se destacar osseguintes:

1 - Realização de assaltos simultâneos em váriosbancos, para desorientar a polícia.

2 - Com o mesmo objetivo, bombardear os postospoliciais com dezenas de alarmes falsos, no dia dosassaltos planejados.

3 - Não sair para uma operação armada sem deixarmontado um "posto médico" para atender os feridos( que antes os bandidos deixavam à sua própria sorte,expondo-se à delação por vingança ).

4 - Em caso de emergência, invadir pequenas clínicasparticulares selecionadas de antemão, obrigando osmédicos a dar atendimento aos feridos.

5 - Planejamento e organização de sequestros.

6 - Designar para cada operação um "crítico", que nãoparticipa da ação mas apenas observa e assinala oserros para aperfeiçoar a ação seguinte.

7 - Planejar as ações armadas com exatidão, de modo aobter no mínimo de tempo o máximo de rendimento com omínimo derramamento de sangue. ( Hoje o ComandoVermelho consuma em quatro ou cinco minutos umassalto a banco. )

8 - Técnicas para o bando retirar-se do local da açãoem tempo record, aproveitando-se da conformação dasruas, do congestionamento, etc., ou provocandodeliberadamente acidentes de trânsito.

9 - Planejamento cuidadoso de todas as ações, segundoo princípio de Carlos Marighela: "Somos fortes onde oinimigo é fraco. Ou seja: onde não somos esperados."

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10 - Informação e contra-informação como base doplanejamento.

11 - Sistema de "aparelhos" — casas compradas empontos estratégicos da cidade, para ocultar fugitivosapós as operações, guardar material bélico etc.

O quarto e último grupo de ensinamentos diziarespeito à seleção das melhores armas para cada tipode operação, e ainda à fabricação de explosivosapropriados para o uso na guerrilha urbana, comocoquetéis-molotov com uma fórmula especial preparadapor estudantes de Química e "bombas de fragmentaçãocom pregos acondicionados junto à pólvora e enxofrenum tubo de PVC ou numa lata do tamanho de umacerveja".

O conjunto forma um curso completo de guerrilhaurbana, apoiado ainda numa bibliografiaespecializada, que incluía O Pequeno Manual doGuerrilheiro Urbano, de Carlos Marighela, Guerra deGuerrilhas, de Ché Guevara, e A Revolução naRevolução, de Régis Débray, além de A Guerrilha Vistapor Dentro, de Wilfred Burchett. Este último é apenasuma reportagem feita no Vietnã por um correspondentede guerra inglês; mas entre os militantes era tãoprezado quanto as obras de guerrilheirosprofissionais, e sua circulação chegou a ser proibidano Brasil durante os governos militares, porque"mostra como o vietcongue fabricava munição,inclusive com uma fórmula para se produzir pólvoracaseira. Explica também como funcionava o sistema detúneis para a fuga dos comandos guerrilheiros, comiluminação a partir de geradores movidos a roda debicicleta. O livro fala ainda dos códigos, do correiobaseado em bilhetes entregues de mão em mão, dealdeia em aldeia. Um manual de guerra revolucionáriaque contém longas explanações de tática e estratégia.Enfim, dinamite pura". Rematavam a bibliografiaclássicos da literatura marxista — Marx, Lênin — eobras menores de doutrinação.

Todos esses ensinamentos foram depois levados àprática pelo Comando Vermelho, que demonstrou possuiraté mesmo um domínio mais extenso deles do que aspróprias organizações guerrilheiras: "O crimeorganizado foi muito além do que a luta armada tinhaconseguido nos anos 70, tanto em matéria deinfra-estrutura quanto na disciplina e organizaçãointernas". Como bem resumiu o assaltante de bancos

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Vadinho ( Oswaldo da Silva Calil ), que viu tudo deperto na Ilha Grande, "os alunos passaram aprofessores".

Amorim opina enfaticamente que "não houve intenção"de ensinar guerrilha aos bandidos, que a transmissãodesses ensinamentos se deu de maneira "involuntária",em resultado espontâneo do "convívio eventual nascadeias". Diante dos fatos narrados, é difícilacreditar nessa opinião, é difícil mesmo admitir queo próprio Amorim acredite nela. Mais sensato é vê-lacomo uma concessão verbal: tendo ousado divulgarfatos que são profundamente comprometedores para asesquerdas, Amorim preferiu deixar que a narrativafalasse por si, sem endossar pessoalmente a conclusãoque ela impõe. Manha de repórter, que com muitaprudência teme mais as línguas de seus colegas deofício do que as balas do Comando Vermelho.

O que me faz interpretar as coisas desse modo é adesproporção entre a força da narrativa e a timidezdos argumentos em que Amorim sustenta sua opinião.Qualquer principiante do jornalismo sabe que aexposição dos fatos exerce sobre o leitor umainfluência mais profunda do que a opinião expressa. Averdadeira intenção de um jornal está na sua maneirade selecionar e ordenar as notícias, e não no que eleafirma nos editoriais. As cabeças dos repórteresfuncionam de modo análogo: inteligências antesnarrativas do que analíticas, expressam-se maisplenamente contando os fatos do que alinhandoargumentos.

O principal argumento que Amorim apresenta em defesade sua tese é que, ao longo de doze anos, nãoencontrou indícios ou provas "de uma intenção, menosainda de uma estratégia" no sentido de os militantesensinarem guerrilha aos bandidos.

O argumento destrói-se a si mesmo. Em primeiro lugar,não existe prova de intenção, a não ser a lógicamesma do ato, pela qual das consequências podemosremontar às causas. Todo ato humano que não possa serexplicado pela mera acidentalidade pressupõe umaintenção, e todo acidente é, por definição,momentâneo: não existem acidentes continuados; a meracasualidade não se prolonga, inalterada e uniforme,ao longo dos anos, como um par de dados não prossegue

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dando seis e seis incansavelmente ao longo dasrodadas. Qualquer ato reiterado é, por si mesmo,prova da sua intenção. Se um homem fica bêbado umavez, duas vezes, pode ser sem intenção e por meroefeito acumulado dos tragos mal medidos; mas sequatro ou cinco vezes por semana o encontramosvirando novamente o copo até trocar as pernas, serápreciso alguma outra "prova" para certificar que eleteve intenção de se embriagar? Ora, a transmissão deensinamentos de guerrilha prosseguiu, na Ilha Grande,por nada menos que nove anos. Que mais seránecessário para comprovar uma intenção?

Pode-se ver a coisa por um segundo ângulo. Umaintenção nada mais é do que a previsão de umaconsequência, somada ao desejo de provocar essaconsequência. Só podemos, portanto, supor ausência deintenção quando um homem não está em condições deprever as consequências de seu ato. Se um maridofurioso desfere um tabefe na esposa e a manda para ohospital, podemos admitir que o brutamontes não mediusua força; mas depois de uma longa série deinternações da infeliz, devemos supor que ele aindanão avaliou corretamente a proporção entre o empuxeda porrada e suas consequências hospitalares, ou queele teve a intenção de desencadear precisamente essasconsequências? Quanto aos nossos guerrilheiros, ahipótese da ausência de intenção pressupõe que fossemincapazes de atinar com o uso que os discípulosfariam de seus ensinamentos. Se um deles, uma vez ououtra, desse com a língua nos dentes, poderia sercoincidência. Mas vários deles transmitindoinformações seguidamente ao longo dos anos, semjamais atinar com as consequências do que faziam, émais do que a credulidade humana pode admitir.

Provas externas só são necessárias quando a lógicados fatos não fala por si, quando nos fatos há algode ambíguo que admite interpretações variantes, o quenão é o caso. Mas Amorim absolve os guerrilheirosjustamente com base na ausência desse tipo de provas.E acontece que mesmo estas não estão realmenteausentes. Querem ver?

Só existem no mundo três tipos de provas: materiais,documentais e testemunhais.

A prova material está lá: a presença dos livros, dosmanuais de guerrilha nas mãos dos bandidos é prova deque alguém os entregou a eles. Entregar um livrocomprova, manifestamente, o intuito de transmitir

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informações, e de fazê-lo de maneira mais completa doque se poderia em meras conversas de ocasião.

Os livros citados por Amorim eram obras raras, detiragem limitada e circulação proibida, que só seencontravam, quando se encontravam, nas mãos demilitantes diretamente envolvidos nas organizações daesquerda armada. O de Régis Débray circulou numvolume impresso clandestinamente pela alamarighelista do PC, e o de Guevara era uma apostilamimeografada, de pouquíssimos exemplares. Mesmo o deBurchett ( Amorim escreve "Bulcher", mas a grafiacerta é Burchett ), que saiu por uma editoracomercial ( Civilização Brasileira ), teve tiragemreduzida e logo foi apreendido, sobrando emcirculação uns poucos exemplares que os militantes deesquerda disputavam a tapa. Não eram, enfim, livrosde interesse geral, que se dessem a alguém para lerpor mero passatempo, mas manuais de ensino técnico,dirigidos a um público especializado. Transmitiresses livros aos bandidos é algo mais do quemanifestar uma intenção de ensinar guerrilha: érealizar essa intenção.

Quanto a provas documentais que atestassem umadecisão das organizações de esquerda de promover oensino de guerrilhas, só poderiam consistir em atasde reuniões dos comitês de presos políticos, quedeclarassem formalmente essa intenção. Mas osprisioneiros políticos teriam de ser doidos ousuicidas para registrar uma decisão desse teor ematas que certamente iriam parar nas mãos da direçãodo presídio mais dia menos dia. Aliás eles nuncafizeram ata de decisão nenhuma, pela mesmíssimarazão. Se o historiador fosse hoje depender de ataspara estudar esse período, não teria sequer uma provade que os comitês de presos políticos chegaram aexistir. Uma prova documental, no caso, não éexigível. Presos políticos não fazem atas, tal comonão se fazem atas de uma reunião de meliantes paraplanejar um assalto a banco. O argumento da falta deprovas não vale, portanto, para provas documentais.

Restam, ainda, as provas testemunhais. Estas sãoambíguas. Amorim aliás só cita duas. Vadinho afirmaque houve ensinamento. O então prisioneiro político edepois ( no governo Brizola ) diretor do mesmopresídio da Ilha Grande, José Carlos Tórtima ( hojeprocurador do Estado ), proclama que não:

"— É uma mentira essa história de que os

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presos comuns aprenderam como se organizare noções de guerrilha urbana com os presospolíticos. O conteúdo ideológico deles éde tal forma individualista que de maneiranenhuma poderiam absorver a proposta deapoio coletivo... Repudio claramentequalquer insinuação de que os presoscomuns foram formados pelos políticos.Isso é um mito veiculado pela direita."

O dr. Tórtima é, pelo visto, um desses devotosesquerdistas, para quem a sentença "É de direita!"constitui, em si e por si, uma prova fulminantecontra qualquer argumento. Algo assim como o Romalocuta, causa finita, um rótulo fatal que, colado auma idéia, basta para invalidá-la para todo o sempre.

Se ele não pensasse assim, teria procurado calçarmelhor seu testemunho, citando fatos em vez dedispensar-se de fazê-lo, confiado na forçaexorcizante da frase mágica.

Pois, na verdade, o seu não é um testemunho; é umparecer, uma opinião, que opõe à abominável tesedireitista um argumento de probabilidade lógica:individualistas ferrenhos não podem, em princípio,absorver uma proposta de ação coletiva, ou pelo menosé muito pouco provável que o façam.

De um ponto de vista hipotético e abstrato, devemosdar razão ao dr. Tórtima: a lei das probabilidadesestá com ele. Mas, em primeiro lugar, é estranho queuma testemunha, chamada a mostrar a falsidade de umaalegação, se limite a demonstrar sua improbabilidade.Raciocinamos por probabilidades quando não temosacesso aos fatos, quando, não sabendo o certo, só nosresta conjeturar sensatamente. Testemunhas nãoconjeturam: testemunhas narram.

Se passamos da conjetura para os fatos, a conversamuda. Hipoteticamente, a absorção da proposta deapoio coletivo pelos individualistas era de fatoimprovável; mas o próprio livro de Amorim mostra bemclaro que o improvável se realizou: que não somenteos marginais absorveram a proposta, como também apuseram em prática com mais rigor, eficiência eamplitude do que os próprios militantes políticos; e,organizando-se melhor do que eles, chegaram ainda acoordenar o "apoio coletivo" da população pobre dosmorros cariocas, superando tudo o que em matéria dearregimentação popular os guerrilheiros haviam sequersonhado: "Os alunos tornaram-se professores."

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De que vale o argumento de improbabilidade, diante daprova do fato consumado? Diante desse fato, o quevemos é o argumento do dr. Tórtima voltar-se a favorda tese que ele enfaticamente repudia, contra a quedefende. Se era pouco provável que os individualistasanárquicos absorvessem a proposta de apoio coletivomesmo quando esta lhes fosse transmitida por hábeis esolícitos professores de guerrilha, muito menor, paranão dizer nula, seria a probabilidade de que ofizessem tão-somente pelo esforço próprio e semnenhuma ajuda pedagógica. O esforço necessário paraaprender sozinho é significativamente maior do que orequerido para seguir as lições de um bom professor.Se, portanto, os individualistas desorganizados setornaram eficientes organizadores coletivos, o méritomuito provavelmente não é só deles, nem só deles aculpa pelo tipo de coisa que vieram a organizar.

De passagem, a desastrada argumentação do dr. Tórtimaderruba também as opiniões do próprio Amorim em favordo caráter fortuito e impremeditado dos ensinamentosde guerrilha. Se os bandidos comuns eram unsindividualistas anárquicos, como poderiam colocar emboa ordem fragmentos de informação colhidos aqui eali em conversações casuais, a ponto de compor comeles uma técnica racional apta a desenvolver-se emamplas e notáveis aplicações práticas? Seria precisoum QI fora do comum, mas mesmo gênios teriam algumadificuldade em aprender organização tãodesorganizadamente. Com toda a franqueza: pedir queacreditemos que homens primitivos, bárbaros,indisciplinados e volúveis conseguiram apreender oscomplexos princípios de organização político-militarda guerrilha urbana tão-somente ciscando aqui e aliuns pedaços de conversas e depois transformar essamaçaroca informe numa técnica de grande eficácia, érealmente fazer pouco da nossa inteligência.

Contar com a credulidade alheia é aliás um vício daesquerda brasileira, adquirido nos anos que seseguiram à queda da ditadura. A revelação dastorturas, dos cadáveres escondidos, confirmandodenúncias que antes a opinião oficial desqualificavacomo invencionices de agitadores, desmoralizou adireita e elevou às alturas a credibilidade daesquerda. Desde então esta vem abusando do créditopara nos fazer engolir patranhas e calúnias de todasorte, sem outra garantia senão a de terem sidoproferidas por quem nos disse a verdade uma vez. Atéquando as atrocidades da direita serão fiadoras das

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mentiras da esquerda?

O que o dr. Tórtima nos impinge como testemunho nãopoderia mesmo valer nada, pois a "testemunha" saiu dacadeia em 1971, antes, portanto, da fase decisiva deformação do Comando Vermelho, sobre a qual ele sabesó o que leu nos jornais, se é que os leu. Isto aliásconfirma o caráter muito provavelmente calunioso deinsinuações que o acusem de envolvimento pessoal noensino de guerrilha aos bandidos. Mas o fato de eleestar inocente não o qualifica para inocentar outros,dos quais nada sabe. Qual, no entanto, o esquerdistabrasileiro que recusará falar em público sobre umassunto do qual ignora tudo, se o convite lhe servirde ocasião para dar umas alfinetadas na "direita"?

Acreditar que o "testemunho" do dr. Tórtima bastepara absolver alguém além dele mesmo exigiria que anossa fé removesse montanhas. Destituídos da fé,façamos algo que, no Brasil de hoje, se tornou sinalde impiedade: raciocinemos.

Raciocínio I - O livro de Carlos Amorim informa queos militantes esquerdistas, uma vez encarcerados,procuraram fortalecer a unidade disciplinar de suasorganizações, para poderem resistir ao ambientehostil. De outro lado, o mesmo livro deseja queacreditemos que homens assim afeitos a uma disciplinaespartana deixaram escapar, em amenas conversasinformais com os detentos comuns, todos os segredosde técnica militar e de organização política queconstituíam o sangue e os nervos da revolução. Querque acreditemos que esses homens de ferro, capazes deresistir à tortura física e psicológica para nãoentregar nenhum segredo aos policiais, deram tudo aosbandidos, de mão-beijada, por mera desatenção; que deconversa em conversa foram deixando vazar teoriamarxista, princípios de agitprop, técnicas militares,métodos de organização, enfim todo o conhecimento deguerrilha urbana então disponível, sem jamais se darconta de que estavam ensinando guerrilha nem ter amais mínima intenção de fazê-lo. Nunca ouvi uma coisamais doida na minha vida.

Raciocínio II — Se, ao contrário dos presos comuns,individualistas anárquicos, os militantes eramsocializados, politizados e disciplinados, entãocertamente nada faziam de importante sem préviaconsulta ao "coletivo". Logo, das duas uma: ou atransmissão de ensinamentos de guerrilha aos bandidosfoi autorizada pelo coletivo, ou foi feita em

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flagrante desobediência à sua proibição. Nesta últimahipótese, devemos entender que, malgrado o alto graude politização ali reinante, reinava também a maiscompleta anarquia, de modo que o coletivo nãoconseguia controlar as veleidades individuais de seusmembros e os deixava à solta para que, comoverdadeiros individualistas anárquicos, fizesse cadaqual o que bem lhe desse na telha. É claro que, nesteúltimo caso, os presos políticos não teriam podidoresistir às pressões do ambiente nem muito menosfazer, como disse o dr. Tórtima, "que os bandidos seacomodassem às nossas regras". Então não há dúvida:transmitir aos bandidos ensinamentos de guerrilha nãopode ter sido uma decisão deixada ao arbítrioindividual. Amorim diz muito claro que, pelo menos apartir de 1975, etapa decisiva na formação do ComandoVermelho, as relações entre presos comuns e presospolíticos não se davam de indivíduo a indivíduo, masde comitê a comitê.

Raciocínio III — Se os livros, os manuais deguerrilha, estavam proibidos de circular em todo oterritório nacional, muito mais o estavam entre osmuros da prisão. Introduzi-los ali e fazê-loscircular, mesmo exclusivamente entre militantes, eragrande temeridade. Transferi-los a bandidos comuns,gente isenta de qualquer compromisso ideológico e detoda confiabilidade moral, era certamente expor-se arisco de delação, a não ser que houvesse um acordoprévio entre o comitê dos políticos e o dos presoscomuns, com previsão de graves sanções contra osfaltosos. Hipóteses contrárias, só há duas: ou ospresos políticos entregavam aos bandidos obras de ChéGuevara e Carlos Marighela por mero descuido,folgadamente como quem distribui a criançasexemplares de Luluzinha e Tio Patinhas; ou então ospresos comuns é que tinham um organizadíssimo serviçode espionagem capaz de burlar a vigilância dospolíticos e surrupiar uns quantos exemplares dasobras explosivas ciosamente guardadas. Mas, se eraimprovável que militantes tão descuidadossobrevivessem na Ilha Grande, muito mais o seria queos "individualistas" anárquicos lograssem montar umserviço de espionagem tão eficiente.

O testemunho de Tórtima e as opiniões de Amorim,portanto, caem por terra. O que fica de pé é a

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narrativa de Amorim, a sustentar, com eloquênciaterrível, a conclusão que o autor não quis endossarpessoalmente: ou os militantes de esquerda ensinaramguerrilha aos bandidos com um propósito deliberado,ou então a aquisição desse conhecimento pelos líderesdo Comando Vermelho é o mais prodigioso milagre deabsorção espontânea já registrado nos anais dapedagogia universal. Deixo esta hipótese para osadeptos da tese segundo a qual Deus é brasileiro.Quanto à outra, resta discutir se o propósito dosesquerdistas foi cooptar os bandidos para a lutaarmada sob seu comando ou simplesmente o de vingar-sepela derrota da guerrilha deixando para o governomilitar a semente do futuro tormento do banditismoorganizado. Pode ter sido uma mistura das duascoisas. Alguns policiais apostam na primeira, jurandoque o Comando Vermelho é uma extensão erecrudescimento da guerrilha urbana, um novo braçoarmado das esquerdas. Esta certeza tem o mesmofundamento daquela do dr. Tórtima: uma opçãoideológica prévia que faz ver tudo torto, ou tórtimo.Deixarei esta questão para outra oportunidade,advertindo apenas que ela não pode ser resolvida pelométodo das apostas sentimentais. Mas, qualquer quetenha sido o caso, uma coisa é certa: se osmilitantes da esquerda armada treinarambandidos-guerrilheiros dentro da prisão, os daesquerda desarmada, fora dela, estão dando seguimentocoerente à sua iniciativa, na medida em que ajudam oComando Vermelho a conquistar uma posição de forçacomo "liderança popular" legitimada artificialmente,e o integram assim na estratégia global da esquerda,já não como força militar, e sim política. Se osjovens guerrilheiros de l968 não tinham umaestratégia definida para aproveitar-se politicamentedo banditismo, os velhos políticos esquerdistas de1994 estão lhes dando uma, retroativamente. Não setrata de uma ponte entre gerações: é que estesvelhos, simplesmente, são aqueles jovens, adestradospelo tempo. Os jovens matavam e roubavam pelarevolução; os velhos tiram dividendos políticos deassaltos e homicídios praticados por outros.Servem-se do banditismo duplamente: ao protegê-lo eao denunciá-lo. No primeiro caso, ganham — ou pelomenos tencionam ganhar — os votos da população pobre,que supõem obediente ao Comando Vermelho; no segundo,servem-se dele como pretexto para denunciar acorrupção da sociedade capitalista. Alimentam o malpara poder acusá-lo, o que é, sem exagero, o tipo damalícia propriamente diabólica, imitando o tinhoso no

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seu duplo e inseparável papel de tentador e acusador.Se a idéia de cooptar os bandidos para a luta armadaera uma fantasia insensata, se o desejo de vingar-seda ditadura era uma pirraça juvenil, uma esquerdamais madura e experiente está sabendo reaproveitar etirar vantagem política daquilo que, entre névoas,foi gerado na Ilha Grande. A quem poderia ser doceesse fruto senão a quem, de olho no futuro, plantou asua semente?

 

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3a. edição,revista e aumentada.

 

 

Apêndice II.

O Brasil do PT 

A entrevista do teórico do PT, Marco Aurélio Garcia,no Jornal da Tarde de 12 de janeiro, mostra que, portrás de uma tranquilizante fachada moderninha, essepartido não tem nada a propor senão o bom e velhocomunismo.

l. Segundo o entrevistado, o governo do PT não serásocialista. Os ingênuos tomam esta promessa como umagarantia. Mas, prossegue Marco Aurélio, esse governoserá uma "democracia popular" e constituirá "umaperfeiçoamento do capitalismo" com vistas a "umhorizonte socialista" — um horizonte vago eindistinto o bastante para não alarmar o eleitorado.

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O que o eleitorado, novo e inculto, ignora porcompleto é que aperfeiçoar o capitalismo para chegarao socialismo não é nenhuma proposta nova, mas sim aúnica estratégia de governo comunista que já existiue a única que poderia existir, já que, segundo Marx,o socialismo não pode ser implantado antes que ocapitalismo desenvolva suas potencialidades até oesgotamento. A função do governo de transição,"democrático-popular", é acelerar esse esgotamento.Na Rússia, essa fase intermediária chamou-se NEP,Nova Política Econômica, implantada por Lênin logoapós a tomada do poder pelos comunistas. Se o próprioLênin, subindo ao poder no bojo de uma revoluçãoarmada, não implantou logo o comunismo, e sim apenasum "capitalismo aperfeiçoado", por que o PT haveriade fazer mais, levado ao poder pela via gradual epacífica do gramscismo?

2. Marco Aurélio Garcia, prosseguindo na linhatranquilizante, assegura que os empresários nadaperderão e terão tudo a ganhar no Brasil petista: "Sequeremos desenvolver um grande mercado de massas, éclaro que grande parte da burguesia vai tirarproveito disso." Mas é exatamente o que dizia Lênin:não se pode fazer a transição para o socialismo semque, na passagem, a burguesia ganhe um bocado dedinheiro com o incremento dos negócios. Nistoconsistiu precisamente a NEP. Mas não se pense que oscomunistas fiquem tristes com a súbita prosperidadedos seus desafetos. Ao contrário: acenando com apromessa de ganhos rápidos, o governo comunista faztrabalhar em favor da revolução a cobiça imediatistados burgueses, cumprindo a profecia de Lênin: "Aburguesia tece a corda com que será enforcada." Otruque é simples: com o progresso rápido docapitalismo, cresce também rapidamente oproletariado, base de apoio do governo comunista. Tãologo esta base esteja firme para sustentar o governosem a ajuda dos burgueses, o governo puxa o laço. Emseguida os burgueses mortos ou banidos sãosubstituídos em suas funções dirigentes por uma novaclasse de burocratas de origem proletária ao menosnominal.

3. Garcia diz que o PT quer um "Estado forte", dotadode "mecanismos de controle do Parlamento, da Justiça,do Tribunal de Contas e das estatais". Mas que diaboé isto senão o totalitarismo mais descarado? Nasdemocracias, a autonomia dos três poderes tem sido ummecanismo confiável e suficiente para o controle dopoder. O que o PT advoga é que dois desses poderes

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sejam controlados por um terceiro, o Executivo, desdeo momento em que este caia nas mãos do sr. LuísInácio Lula da Silva. Nesta hipótese, dará na mesmaque o Executivo policie os outros dois poderesdiretamente, numa ditadura ostensiva, ou que o façapor intermédio de organizações autonomeadasrepresentantes da sociedade civil — sindicatos, ONGs,grupos de intelectuais, grêmios estudantis — econtroladas, por sua vez, pela facção políticadominante, isto é, pelo PT: em ambos os casos, o queteremos será o crescimento hipertrófico do poder eseu absoluto descontrole.

4. Interrogado sobre o destino que o governo petistadará às Forças Armadas, Garcia responde, com toda aclareza de quem diz exatamente o que pensa: mudar aConstituição, para que as Forças Armadas deixem deter, entre suas atribuições, a de combater inimigosinternos, e passem a se incumbir exclusivamente dadefesa das fronteiras nacionais. Ora, mandadas para afronteira, desligadas do combate a inimigos internos,as Forças Armadas estarão duplamente impedidas — pelaobrigação constitucional e pela distância — de moverum só dedo contra o crime organizado, que, sobaplausos de uma certa intelectualidade esquerdista,já domina um Estado da Federação. Se, ampliando o quehoje acontece no Rio, uma aliança entre políticos edelinquentes atear fogo ao país inteiro, as ForçasArmadas nada poderão fazer contra isso, porqueestarão, fiéis ao dever constitucional, aquarteladasnum cafundó amazônico, velando contra a iminenteinvasão boliviana ou talvez dando nos marines umasurra de fazer inveja ao vietcongue.

Mas será estranho que um dirigente petista alimenteesse projeto insano, quando seu partido também tem,entre seus principais quadros teóricos, um tal sr.César Benjamin, biógrafo-apologista do fundador doComando Vermelho? Recordemos: escrito com a ajudadeste teórico petista, o livro em que o quadrilheiroWilliam Lima da Silva faz a apologia do crime foipublicado pela Editora Vozes, da esquerda católica, elançado, com noite de autógrafos e muita badalação,em cerimônia realizada na sede da ABI em 199l. Apesardo que dispõe o Art. 287 do Código Penal, ninguém foiprocessado. Alguns vêem em fatos como esse perigosossinais de ligações entre as esquerdas e o crimeorganizado. Se há ou não aí uma aliança políticasubterrânea, é algo que só o tempo dirá. Mas que asesquerdas estão ligadas ao Comando Vermelho pelo

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passado comum e por uma profunda afinidade"espiritual" baseada no culto dos mesmos mitos e dosmesmos rancores, é coisa que está fora de dúvida. Ecomo os senhores do crime não haveriam de sentir essaafinidade como um verdadeiro reconforto, diante dapromessa petista de tirar do seu caminho o únicoobstáculo que ainda pode inibir suas ambições?

A proposta petista de aumentar a dotação orçamentariadas Forças Armadas em troca de retirar delas aresponsabilidade pelo combate ao inimigo interno épuro suborno, em que o PT veste implicitamente acarapuça de inimigo interno. Se ainda existeconsciência estratégica entre os militares, aproposta indecente será repelida.

5. Enfim, se Marco Aurélio Garcia procura aplacar otemor ante o espectro comunista dizendo que o regimepetista não será socialismo e sim "democraciapopular", também nisto não há novidade alguma: todosos regimes comunistas se intitulavam "democraciaspopulares".

O PT, seguindo a lição de Hitler, não se dá sequer otrabalho de ocultar o que pretende fazer: anunciaseus planos abertamente, contando com a certeza deque o wishfulthinking popular dará às suas palavrasum sentido atenuado e inocente, sem enxergar qualquerpericulosidade mesmo nas ameaças mais explícitas.Afinal, quanto mais assoberbado de males se encontraum povo, mais ansioso fica de crer em alguma coisa emenos disposto a encarar com realismo a iminência demales ainda maiores. Nessas horas, a maneira maissegura de ocultar uma intenção maligna é proclamá-lacinicamente, para que, tomada como inverossímil emseu sentido literal, seja interpretadametaforicamente e aceita por todos com aquelabenevolência compulsiva que nasce do medo de termedo. Quando Hitler prometeu dar um fim aos judeus,também foi interpretado em sentido metafórico.

A predisposição da opinião pública para não enxergaro risco evidente nasce, por um lado, da própriahegemonia que as ideologias de esquerda exercem sobreo nosso panorama cultural, impondo viseiraspsicológicas mesmo a pessoas que, politicamente,divergem da esquerda. A política é apenas umasuperfície da vida social, e de nada adianta divergirna superfície se, no fundo — nas convicções morais,nos sentimentos básicos, nas atitudes vitaiselementares — copiamos servilmente o figurino mental

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do adversário.

Nasce, por outro lado, da ilusão de que o comunismoestá morto. É um excesso de ingenuidade — ou, talvez,medo de ter medo — supor que o fracasso do comunismono Leste europeu liquidou de vez as ambições doscomunistas em toda parte. O ressentimento movemontanhas, dizia Nietzsche. Particularmente noBrasil, é muito profunda nas esquerdas a aspiraçãomítica de alcançar uma vitória local que, pelo seupróprio caráter inesperado e tardio, possa resgatar ahonra do movimento comunista humilhado em todo omundo. Permitir que o PT realize seus planos de"democracia popular", sob o pretexto de que ocomunismo é um cavalo morto, é arriscar-se a um coiceque provará a vitalidade do defunto.

Ademais, o movimento das idéias no Brasil nãoacompanha pari passu a evolução do mundo, mas ficasempre atrás. Em 1930, quando o positivismo deAugusto Comte já era peça de museu no seu país deorigem, uma revolução tomou o poder no Brasilinspirada no modelo positivista do Estado. Oespiritismo, moda européia que morreu por volta daPrimeira Guerra sem nunca mais reencarnar, ainda é noBrasil quase uma religião oficial. Nossosintelectuais ainda estão empenhados no combate aolusitanismo em literatura, quase um século depois derompido o intercâmbio literário entre Brasil ePortugal. As velhas religiões africanas, que osnegros de todo o mundo vão abandonando para aderir aoislamismo, aqui vão conquistando novas massas decrentes entre os brancos. Enfim, o tempo nesta partedo mundo corre ao contrário. Por que o comunismo,morto ou moribundo em toda parte, não poderáressurgir neste país, fiel ao atraso crônico do nossocalendário mental? Pelo menos é o que nos promete aentrevista de Marco Aurélio Garcia: se depender dele,não falharemos em nossa missão cósmica de coletoresdo lixo refugado pela História.

Homens de formação arraigadamente marxista,insensíveis durante toda uma vida a quaisquer outrascorrentes de idéias, simplesmente não podem, no breveprazo decorrido desde a queda do Muro de Berlim, terfeito uma revisão profunda e séria de suasconvicções. Mudanças, se houve, foram epidérmicas,para não dizer simuladas. A força atrativa domessianismo comunista não acabou: refluiu para aobscuridade, de onde, vitalizada pelo apelo

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nostálgico e pela ânsia de um renouveautransfigurador, está pronta a ressurgir ao menorsinal de uma oportunidade. Declarações improvisadasde arrependimento nada significam, sobretudo emhomens que, habituados por uma praxe do cerimonialcomunista a utilizar-se de rituais de "autocrítica"como instrumentos de sobrevivência política, acabarampor assimilar profundamente o vício da linguagemdúplice, a ponto de torná-la uma segunda natureza. Umséculo de história do comunismo prova que nada igualaa capacidade da esquerda de tapar os próprios ouvidosà verdade, senão a sua habilidade de desviar dela osolhos alheios. A pressa mesma com que alguns prócerescomunistas compareceram ante as câmeras de TV paradeclarar a falência do comunismo é suspeita, uma vezque em nenhum deles a desilusão foi profunda a pontode fazê-lo desejar abandonar a política. Do dia paraa noite, desvestiram a camisa soviética, vestiram ummodelito novo, e sem mais delonga reapareceram,prontos para outra, com o maior vigor e animação,discursando com aquela certeza, com aquela segurançade quem jamais tivesse sido desmentido pelos fatos.Acredite nessa gente quem quiser.

Da minha parte, não duvido de todos os comunistas.Acredito em Antonio Gramsci, quando diz que o Partidoé o novo "Príncipe" de Maquiavel, e acredito emBertolt Brecht, quando diz que para um comunista averdade e a mentira são apenas instrumentos, ambosigualmente úteis à prática da única virtude queconta, que é a de lutar pelo comunismo.

 

Nota

Aos que, lido este apêndice, enxergarem no autor umhidrófobo antipetista, advirto que votei em Lula parapresidente e o faria de novo, com prazer, se eletomasse as seguintes providências:

l. Banir do seu partido o elenco de vedettesintelectuais que, formadas numa atmosfera marxista, eapegadas a ela como um bebê à saia da mãe, insistemem manter aprisionado nela o movimento socialista queanseia por novas idéias. Exorcizar de vez osfantasmas de Marx, Lênin, Débray, Althusser, Gramscie tutti quanti, e permitir que a idéia socialistacresça livre de gurus e totens. Quando Lula diz quenossas elites viveram "com os olhos voltados para aFrança e a bunda voltada para o Brasil", não percebe

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ele que isso é uma descrição exata da eliteintelectual petista, e esquerdista em geral?

2. Reprimir o uso de táticas de movimento clandestinoe revolucionário, que são indecentes num partido queprofessa conviver democraticamente com outrospartidos num Estado de direito. Infiltração,espionagem, delação, boicote moral podem sernecessários e inevitáveis a um movimento de oposiçãoque queira sobreviver numa ditadura. Em regime deliberdade, são práticas intoleráveis, principalmenteem políticos que posam de professores de ética.Quando os apóstolos da ética citam como um exemplopara o Brasil o que os americanos fizeram com Nixonapós o caso Watergate, esquecem de dizer que Nixonnão caiu por causa de um desvio de verbas, mas porcausa da prática de espionagem. Se a corrupção é umcrime, a espionagem é um ato de guerra, que destrói,pela base, o edifício democrático.

Lula é um homem decente e, como disse FranciscoWeffort, é alguém maior do que o seu partido. Se elese utilizar da tremenda força do seu prestígio paraexterminar esses dois vícios, o marxismo e oclandestinismo, o Partido dos Trabalhadores setransformará naquilo que seu nome promete, deixandode ser apenas o partido da nostalgia comunista.

 

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Observações finais 

Expondo em conferências as idéias que depois viria aregistrar neste livro, muitas vezes recebi dosouvintes a exigência de uma "definição política".Sentiam-se desconfortáveis ante um interlocutor semfiliação identificável, algo assim como um UFOideológico, e desejavam saber com quem estavamfalando.

Minha resposta, invariavelmente, tem sido a seguinte:

O pressuposto dessa exigência é que não se podecriticar uma ideologia senão em nome de uma outraideologia, dentre as reconhecidas no catálogo domomento. Esse pressuposto, por sua vez, funda-se numpreconceito meio historicista, meio sociologista,segundo o qual todo pensamento individual é apenas

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"expressão" de algum anseio coletivo, e deve a estesua validade. Em oposição a este preconceito e àquelepressuposto, estou profundamente convicto de quesomente o pensamento do indivíduo como tal pode tervalidade objetiva, pois não há verdade senão para aconsciência reflexiva, que só existe no indivíduo. Ascorrentes de pensamento coletivas apenas manifestamdesejos, anseios, temores, e jamais se levantam aonível de autoconsciência crítica no qual a distinçãoentre verdade e falsidade pode ter algum sentido.Somente a autoconsciência do indivíduo pode captaressa distinção, ascender à esfera dos juízosuniversalmente válidos e da veracidade objetiva.Logo, é ela quem é juiz do pensamento coletivo.

A monstruosa inversão que submete o juízo daconsciência individual ao critério das ideologiascoletivas provém de uma mutilação da mente moderna,incapaz de atinar com alguma "universalidade" que nãoseja meramente quantitativa, reduzida portanto à"generalidade" e, em última análise, à validaçãopuramente estatística. Como, de outro lado, todaprova estatística pressupõe a validade universal dasleis da aritmética elementar, cujo fundamento é aevidência apodíctica somente acessível à consciênciaindividual, o primado do pensamento coletivo repousanuma autocontradição pela qual nega sua própriavalidade.

Para piorar ainda mais as coisas, o pensamentocoletivista, não tendo acesso à esfera da validadeobjetiva, logo perde toda referência ao "objeto" comotal e se fecha num subjetivismo coletivo: daestatística dos "fatos" caímos para a estatística das"opiniões", e a contagem dos votos se torna o supremocritério da veracidade. Este processo, que se iniciana esfera da política, termina por contaminar aciência mesma, onde hoje em dia ouvimos apelosgeneralizados em favor da aceitação de critériospuramente retóricos de argumentação como fundamentoslegítimos da credibilidade cientítica. O marketing,em suma, é elevado a ciência suprema, modelo e juizde todas as outras ciências.

Ou aceitamos esse resultado, ou devemos negar pelaraiz o primado do pensamento coletivo, restaurando aconsciência individual no posto de dignidade que lhecabe. E, neste caso, deveremos admitir que oindivíduo humano possa elevar-se acima das ideologiase julgá-las, contanto que não o faça em nome de umprotesto pessoal e subjetivo, mas em nome da

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veracidade universal e apodíctica, da qual ele, comtodas as suas fraquezas, com todos os seuscondicionamentos limitantes, continua, afinal, oúnico representante sobre a Terra.

No século XX, a consciência individual sofreu, daspseudociências emergentes, os mais violentos ataques,que pretenderam negá-la, reduzi-la a um epifenômenodos papéis sociais introjetados, a uma projeção doinstinto de sobrevivência, a uma ficção gramatical, amil e uma formas do falso e do ilusório. De outrolado, no campo das técnicas psicológicas, nunca seinvestiu tanto na busca de meios para subjugar aconsciência individual, quebrar sua autonomia,forçá-la a repetir mecanicamente o discurso coletivo.Se o nosso é o século do marxismo, da psicanálise, doestruturalismo, é também o da hipnose, o das técnicasde influência subliminar, o da lavagem cerebral, o da"modificação de comportamento" e o da ProgramaçãoNeurolinguística. Se, por um lado, tudo se faz parademonstrar teoricamente a inanidade da consciênciaindividual, de outro lado não se poupam esforços parareprimi-la e subjugá-la. Ora, estas duas séries defatos, quando confrontadas, sugerem uma pergunta:para que tanto empenho em derrotar na prática algoque, em teoria, não existe? Se o cavalo está morto,para que açoitá-lo com tanta fúria?

Este é alíás o tema de um livro que estou preparando,A Alienação da Consciência. É uma resenha dos ataquesteóricos e práticos dirigidos pelas doutrinaspseudocientíficas, em aliança com os governostotalitários ou com o establishment tecnocrático,contra a autonomia da consciência individual. Foieste estudo, precisamente, que me levou à rejeiçãocompleta e taxativa de todo pensamento ideológico.Não me perguntem, portanto, em nome de que ideologiacombato esta ou aquela ideologia. Combato-a desde umplano que não é acessível ao pensamento ideológico, eque só existe para a autoconsciência individual,quando firmemente decidida a não abdicar de seudireito — e de seu dever — à verdade e àuniversalidade. Em consequência, também não me dirijoa ouvintes e leitores enquanto representantes destaou daquela facção ou grupo, mas enquanto portadoresde uma inteligência universalmente válida, capaz desobrepor-se ao discurso de facções e grupos ejulgá-lo objetivamente. Não converso com fantochescoletivos, mas com seres humanos, investidos dadignidade suprema da autoconsciência, que os torna

A Nova Era e a Revolução Cultural - Observações finais

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imagens de Deus. Se, enquanto apegada à identidadebiológica e sujeita portanto à ilusão passional, aconsciência do indivíduo é pura Maya, por outro ladoé somente o indivíduo, e não o aglomerado estatísticodas coletividades, que pode ascender ao plano dauniversalidade onde é lícito dizer: Eu sou Brahman.

Rio, março de 1994.

 

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