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Patrimônio Cultural e Planejamento Urbano: Reflexões sobre Intervenções Integradas no Centro de São Paulo 1989-1992 Cultural Heritage and Urban Planning: Reflections on Integrated Interventions in the Center of São Paulo 1989-1992 Thales Marreti, Mestrando FAU---USP, [email protected]

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PatrimônioCultural ePlanejamentoUrbano:ReflexõessobreIntervençõesIntegradasnoCentrodeSãoPaulo1989-1992

CulturalHeritageandUrbanPlanning:ReflectionsonIntegratedInterventionsintheCenterofSãoPaulo1989-1992

ThalesMarreti,MestrandoFAU---USP,[email protected]

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SESSÕES TEMÁT ICA 7 : C IDADEE H ISTÓRIA

DESENVOLVIMENTO,CRISEERESISTÊNCIA:QUAISOSCAMINHOSDOPLANEJAMENTOURBANOEREGIONAL? 2

RESUMO

Aolongodadécadade1980podeserobservadaaincorporaçãodenovosconceitosepráticasde atuação em relação ao patrimônio cultural no Brasil. Com o alargamento do antigoconceito de monumento histórico, restrito a grandes obras edificadas e consideradas deexcepcionalvalorhistóricoeartístico,nosúltimosanosseoperacomumasignificaçãomaisabrangente: patrimônio cultural urbano. Esta concepção de patrimônio possibilitou umaaproximação entre os camposdapreservação, junto com seus órgãos responsáveis, e o doplanejamentourbano.Opresenteartigo temcomoobjetivoumareflexãosucintadealgunsprocessos e projetos que buscaram aliar intervenções urbana à questões patrimoniais nacidadedeSãoPaulo.ForamidentificadaspropostasdeprojetosdeintervençãonocentrodacidadeduranteagestãodeLuizaErundinanaprefeitura,quebuscavamjustamenteconciliaraquestão patrimonial com o planejamento urbano. O projeto de restauro do Palácio dasIndustrias;oProjetoEixoSé---Arouche;aOperaçãoUrbanadoValedoAnhangabaúeoConcursoNacional de Ideias para a Renovação e Preservação do Bexiga, foram sobretudo planos eobras que compartilharamuma visão política de cidade porém operalisaram---naa partir dediferentesprocessoseinstrumentos.

Palavras Chave: Planejamento Urbano; Patrimônio Cultural; Direito à Memória; CidadaniaCultural;SãoPaulo.

ABSTRACT

Throughout the 1980s, it was possible to observe the incorporation of new concepts andpractices in relation to cultural heritage in Brazil.With the extension of the old concept ofhistorical monument, restricted to large buildings considered of exceptional historical andartistic value, in recent years the tendency is to operate with a more comprehensivemeaning: urban cultural heritage. This conception of heritage made possible anapproximationbetweenthefieldsofpreservation, togetherwith its responsibleorgans,andthatofurbanplanning.Thisarticleaimsatabriefreflectionofsomeprocessesandprojectsthat sought to combine urban interventions with heritage issues in the city of São Paulo.Proposalsforinterventionprojectswereidentifiedinthecitycenterduringtheadministrationof Luiza Erundina in the city hall,which sought precisely to reconcile the patrimonial issuewithurbanplanning. The restorationproject of thePalaceof Industries; The Sé---AroucheAxisProject; TheUrbanOperationof theValleyof theAnhangabaúand theNationalContestofIdeas for theRenovationandPreservationof theBexiga,weremainlyplansandworks thatshared a political vision of the city but that nevertheless that operated it from differentprocessesandinstruments.

Keywords/Palabras Clave: Urban Planning; Cultural Heritage; Right to Memory; CulturalPolicy;CulturalDemocracy.

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INTRODUÇÃO

Apreocupação coma proteçãodopatrimônio cultural urbano sempre esteve presente naspautas de reinvindicações urbanas. Na cidade de São Paulo podemos observar, desde adécadade1980,umaumentodeaçõesdemovimentosdemoradoresemtornodotombamento de parques, dos chamados bairros---jardins e de exemplares da arquiteturamodernista.Emanosmais recentes tivemosaorganizaçãodegruposde frequentadoresdoCine Belas Artes contra seu fechamento em 2011, que culminou no tombamento peloCondephaat em 2012; a insurgência de um movimento em defesa da criação do ParqueAugusta; e a discussão dos possíveis usos de uma Vila Itororó restaurada. A questãopatrimonial está, portanto, intrinsicamente relacionada com a questão do direito à cidade,sendo que constitui umadas bases reivindicatórias de poder se apropriar criativamente debensconstruídosquesãosocialmentevalorizadoscomoindicadoresdamemória.

Autores como Figueiredo (2014), Lino (2010) e Souza (2011), abordam algumas questõesrelativasaatualsituaçãodosmecanismosdepreservaçãopresentesnacidadedeSãoPaulo,alémdealgunsparadoxosrelativosàssuasaplicações.Comoalargamentodoantigoconceitodemonumentohistórico, restritoagrandesobrasedificadase consideradasdeexcepcionalvalorhistóricoeartístico,nosúltimosanosseoperacomumasignificaçãomaisabrangente(Choay, 2001). Atualmente patrimônio cultural urbano, como aponta Ulpiano Bezerra deMenezes,deveserconsideradocomo

“(...) um sistema de objetos socialmente apropriados, percebidos comocapazesdealimentarrepresentaçõesdeumambienteurbano(...)Trata---sedepaisagens,espaços,construções,objetosmóveistambém,cujosentidosemanifestanãoporsi,maspelasarticulaçõesqueentresiestabelecemequelhesdásuporte(...)todaadefiniçãodepatrimônioambientalurbanoésemprehistóricaesociológica”(Menezes,1978apudPrata,2013,p.60).

Estaconcepçãodepatrimôniopossibilitaumaaproximaçãoentreoscamposdapreservação,juntocomseusórgãosresponsáveis,eodoplanejamentourbano.AssimpodemosobservarainclusãodapreocupaçãopreservacionistanosPlanosDiretoresdacidadedeSãoPaulo,tantode2004quantode2014.Nesteúltimoestãopresentesdoisprincipaismecanismos:asZonasEspeciais de Preservação Cultural (ZEPEC) e a indicação de criação de dois Territórios deInteresseCulturaledaPaisagem(TICP).Estesinstrumentosrecentesdeplanejamentourbanojuntam---se a outras formas de acautelamento mais tradicionais como o tombamento, osinventários,registroselistagens.

Inserindo no planejamento urbano as dimensões do patrimônio cultural, esta perspectivapode auxiliar na superação da visão negativa do patrimônio cultural como um modo de“congelamento” de formas e usos, associado principalmente ao tombamento, que acabaprejudicando um efetivo reconhecimento do patrimônio cultural urbano. A questão que secoloca, portanto, seria compreender como os instrumentos efetivam---se, ou não, em açõesconcretas e mais ainda, como ocorrem as articulações (tensões e convergências), entre osdiversosagentesesetoressociaisenvolvidoscomsuasmúltiplasperspectivaspolíticas.Outroelementorelevantequeseinserenadinâmicaurbanacontemporânea,equeemmuitoscasosserelacionacomaquestãodopatrimôniocultural,seriamosprojetosde“revitalização”deáreascentrais.

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Muitos

“[...] projetos de revitalização urbana atuais propõem a valorização dosmarcossimbólicosehistóricosdeáreasdascidadesapartirdereferenciaiscoletivos e comunitários. Na maioria dos casos, as revitalizaçõesurbanasseexecutamsobreáreaspontuaisdoespaçourbano–sobretudo,áreas centrais – visando a readequação funcional (em vista deparâmetroseconômicosecomerciais),oincrementodeatividadesdelazere turismo e a valorização imobiliária desses locais. Por intermédio definanciamentoseparceriascomasiniciativasprivadas,multiplicam---seessesprojetos de revitalização urbana com base no restauro e ‘reciclagem’ deedifícios antigos. Tais revitalizações urbanas, voltadas ao incrementoturístico de conjuntos urbanos e a difusão da imagem promocional decidades, produzem resultados bastante questionáveis. Muitas vezes,esses modelos que procuram ‘passar a limpo’ áreas caracterizadasideologicamente como degradadas, também incidem na expulsão dapopulaçãoquehabitaoufrequentaesseslocaisrevitalizadosou,ainda,naintroduçãodenovasatividadesqueacabamsetornandohegemônicasemrelaçãoàsanteriores.”(Nigro,2001,p.34)

Se,comoafirmaNigro,amaioriadosprojetosderevitalizaçãourbana“turistificam”eacabamporoperar comanoçãodepatrimônio comomonumento,mesmo incidindo sobreespaçosalargados da cidade, se faz necessário analisar experiências diversas que trabalhem comoutraspremissas.

Paratrazerestaspreocupaçõesparaumplanomaisconcreto,opresenteartigopropõe---seumareflexão sucinta de alguns processos e projetos que partem de outras premissas distintas dassupracitadasdeintervençãourbanaaliadasaquestõespatrimoniaisnacidadedeSãoPaulo.ForamidentificadaspropostasdeprojetosdeintervençãonocentrodacidadeduranteagestãodeLuizaErundina na prefeitura, que buscavam justamente conciliar a questão patrimonial com oplanejamento urbano. O projeto de restauro do Palácio das Industrias; o Projeto Eixo Sé---Arouche; aOperaçãoUrbana doVale doAnhangabaú e o ConcursoNacional de Ideias para aRenovação e Preservação do Bexiga, foram sobretudo planos e obras que compartilharam umavisãopolíticadecidadeporémoperalisaram---naapartirdediferentesprocessoseinstrumentos.

ASPOLÍTICASDECIDADANIACULTURAL EDO DIREITOÀMEMÓRIAEMSÃOPAULO

Possuindoumatrajetóriademilitânciajuntoaosmovimentossociais,LuizaErundinafoieleitaprefeitadeSãoPaulopeloPartidosdosTrabalhadoresem1988.Suagestãofoimarcadaporprogramas direcionados principalmente à classe trabalhadora, buscando inverter a lógicaqueaindaimperavadeexclusãodapopulaçãodasdecisõespolíticasmunicipais.Constituindoa primeira gestão petista na maior cidade brasileira, formou---se uma equipe de especialistasrenomados emdiferentes áreas para compor as secretariasmunicipais e órgãos correlatos,entre eles acadêmicos, técnicos especialistas e líderes de movimentos sociais.1Apesar decontar com uma forte oposição na Câmara de Vereadores, onde sua base aliada eraminoritária, e internamenteemseupartido (Couto,1994), foram realizadasdiversasaçõesquematerializavamapropostadepolíticaparticipativadagestão.Exemplosdepolíticassãoa

1Paracitaralgunsnomes:PauloFreire,secretáriodaEducação;CarlosNeder,secretáriodaSaúde;HélioBicudo,secretáriodos Negócios Jurídicos; Lucio Gregori, secretário de Transportes; e Ermínia Maricato, secretaria de Habitação eDesenvolvimentoUrbano.

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construção de habitações de interesse social por mutirões autogeridos, a criação dosMovimentos de Alfabetização, a modernização da frota de ônibus municipal e na área daculturaaimplementaçãodapolíticadeCidadaniaCultural.

A Secretaria Municipal de Cultura (SMC) foi comandada pela filósofa Marilena Chauí,indicandoadiretrizpolíticaadotadapelaSecretariacomosendo

“aideiaeapráticadaCidadaniaCulturalquedefineaculturacomodireitodo cidadão e determina esse direito sob três aspectos: como direito deacesso à informação e de fruição da criação cultural; com direito deproduçãodasobrasculturais;ecomodireitodeparticipaçãonasdecisõesdepolíticacultural.”(Chauí,1992,p.39).

Estavisãoampliariaoentendimento tradicionaldecultura– identificadoprincipalmentecomasbelas---arteseaartedita“erudita”---,operandoassimcomdoissentidos.Emprimeirolugarcomoum fato ao qual todos possuem direito como agentes, e, em segundo, como um valor ao qualtodos possuem direito, encontrando---se “numa sociedade de classes que exclui uma parte deseus cidadãos do direito à criação e à fruição das obras de pensamento e das obras de arte.”(Chauí,1992, p.39).

“AestruturaçãodoprojetodaSecretariapartiudarecusadetrêsposturasencontradasdasformulaçõesdaspolíticasculturaisbrasileiras:arecusaàculturaoficial(EstadoNovoeditaduramilitar,apartirde1964),segundoaqual o Estado coloca---se como produtor de cultura; a recusa à tradiçãopopulista (anos 50 e 60), segundo a qual os órgãos públicos de culturaatuamcomoagentesda‘salvaçãosociopolítica’que,ao‘resgatar’aculturapopular, polarizadaem relaçãoà culturadeelite, e após reelaborar seussignificados,devolve---aparaasociedadecomsignificadosdistorcidos,comoode‘redenção’dosvaloresdomercadocultural;e,finalmente,arecusaàtradiçãoneoliberal (apartirdosanos80)quepropõeumEstadomínimonocampodacultura,eguiasuaatuaçãopeladinâmicada indústriaedomercado, transformandoa culturanum ‘bomnegocio’” (Kara José,2007:92)

A partir das diretrizes estabelecidas e das recusas às tradicionais políticas culturais, a SMCprocurou ampliar seus horizonte de atuação. Buscou---senovas possibilidades através de suainserçãonocotidianodavidasocial,porcompreenderquedentrodeumasociedadedeclasseseoperavaumadesvalorizaçãodestaesfera.

“Compreende---se (embora nãos e justifique) a desvalorização do trabalho,associadaaumaltopadrãodedesperdício,numasociedadequeaindatemmuitooquefazerparasuperarsuaherançaescravocrata.Odesprezopelafunção de habitar tem a ver com a exclusão da cultura no horizonte docotidiano e se agrava em relação ao trabalho (...) Quanto ao cotidiano,observa---se, ainda, o desconforto inconsciente que ele provoca, já que,muitomaisdoqueinofensivarepetiçãodesimesmonodiaadia,eleéporexcelência a instancia em que concretamente se instituem as relaçõessociais, em que as prática s sociais dão corpo a corpo e efeito aosinteressesemjogo.”(Menezes,2006:37)

Através desta visão de cultura tentou---se uma aproximação da Secretaria de Cultura com asdiscussõesdepolíticaurbana---umdesejopolítico expressadotanto por Chauí quantopelostécnicosdadivisãodePreservaçãodoDepartamentodoPatrimônioHistórico(DPH).AinserçãodefatosedeupelaparticipaçãodaSMCnasdiscussõesdeoutrassecretariasmunicipaisdiretamenteligadasaoplanejamentourbanoerealizaçãodeobras–SecretariadoPlanejamento,daHabitação,

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Departamento de Parques e Áreas Verdes, Departamento de Uso do Solo e a EmpresaMunicipaldeUrbanização.

“Ascontradiçõeseasfronteirastênuesentrepreservaçãoe,porexemplo,ozoneamento,deixamclaroumdescompassoessencial:aproblemáticadopatrimônioambientalurbano–pornatureza,urbanística–nuncapoderiaser resolvida a contento por uma legislação de patrimônio culturalautônomaeindependentedeumalegislaçãodeusoeocupaçãodosolo.”(Menezes,2006:40)

A questão cultural deveria ser contemplada dentro de todas as políticas públicas urbanas,como foi afirmadoemcertomomentopelaprópriaprefeita “atéoatodeasfaltaruma ruadeveria ser um ato cultural” (Fenelon, 1995: 135). Esta declaração poderia ser consideradacomo uma confirmação do direito à participação e produção da cidade, sendo tambémculturaldentrodeumaperspectivaantropológicadecompreenderacidadecomosendoumprodutosocial.

Dentro desta perspectiva de participação democrática da classe trabalhadora nas açõesdesenvolvidaspelaprefeitura,aquestãodopatrimôniocultural foicompreendidacomoumpontocentralparaodesenvolvimentodacidadanianacidade.AtravésdoDepartamentodoPatrimônio Histórico (DPH)2, órgão ligado à SecretariaMunicipal de Cultura, buscou---se iniciarum “transbordamento do patrimônio” em outras áreas institucionais da municipalidades.AssimseinstituiuoprojetoDireitoàMemória,cujapremissaeraalutacontra

“uma sociedade destituída de cidadania em sentido pleno, se por estapalavraentendermosaformação,ainformaçãoeaparticipaçãomúltiplasnaconstruçãodacultura,dapolítica,deumespaçoeumtempocoletivos.[...] Fazer com que nossa produção incida sobre a questão da cidadaniaimplicafazerpassarahistóriaeapolíticadepreservaçãoeconstruçãodopassado pelocrivodesuasignificaçãocoletivaeplural.[...]Aconstruçãodeumoutrohorizontehistoriográficoseapoianapossibilidadederecriaramemóriados queperderamnãosóopoder,mastambémavisibilidadedesuasações,resistênciaeprojetos.[...]énecessárioterclaroqueoespaçoda cidadania, que permite a produção histórica e de uma políticademocráticadepatrimôniohistórico,nãonecessitaserpreenchidoporumnovoherói”(Paoli,1992,p.24)

Deste modo, foram realizadas diversas ações voltadas para a produção e difusão de umaoutra compreensão da memória, não mais percebida de forma una, linear, contínua eprogressiva,masumamemóriaentendidacomoplural.Memóriasehistóriasquepudessemrevelardeterminaçõesdeclasse,etnia,gênero,entreoutrosmarcadoressociaisdediferença(Chauí,2006,p.125).

“Amemória é sempre transitória, notoriamentenão confiável e passíveldeesquecimento;emsuma,elaéhumanaesocial.Dadoqueamemóriapúblicaestá sujeitaamudanças–politicas, geracionaise individuais ---, elanãopode serarmazenadaparasempre,nemprotegidaemmonumentos(...)”(Huyssen,2000:37)

Aconstruçãodestesnovossentidoseracompreendidacomoumapráticasocialedeveriaserfrutodeumtrabalhocoletivoentreopoderpúblicoeasociedade.Assim,oprojetoDireitoà

2ODepartamentoeraestruturalmenteorganizadoemtrêsprincipaisdivisões:adePreservação,adeIconografiaeMuseuseoArquivoHistóricoMunicipal.

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Memória não era concebido apenas como um convite realizado à sociedade paracompartilhar,apreender ousereducadadeformapassivasobresuaprópriahistória,comomuitosprogramasdeeducaçãopatrimonialaindasãoconcebidos(Sviero,2015).Oindividuodeveria ser um agente condutor no processo da construção coletiva da cidadania. AtravésdestavisãoumdostrabalhosdesenvolvidospeloDPHfoiarealizaçãodaschamadasOficinasda Memória. Estas eram constituídas por atividades voltadas para a socialização deconhecimentos.Nestesespaços,eramoferecidos“subsídiostécnicosaosmovimentossociaise populares, no sentido de registro e preservação de sua memória, suas tradições e suasreferencias culturais próprias, assegurando a autonomia dos memorialistas" (Chauí, 2006,p.125). As oficinas foram realizadas em diversos coletivos e espaços da cidade, como porexemplo,comosantigossindicalistasdaantigaFábricadeCimentodePerus,comex---operáriosdefábricasdetecelagemdaZonaLesteecomantigoummovimentosocialpelasaúde(PaolieAlmeida,1996).

A historiadora Déa Ribeiro Fenelon, então diretora do DPH, esclarece a preocupação e aatuaçãodoórgãonaquestãopatrimonial:

“Quando propomos o debate e a reflexão sobre as políticas de patrimôniohistórico,queremostratá---lonãoapenasnoâmbitorestritodastécnicasdeintervenção ou dos critérios de identificação e preservação e seus conceitosoperacionais. Para além desses aspectos, é preciso politizar o tema,reconhecendo as condições históricas em que se forjaram muitas daspremissas – e articulando---as com as lutas pela qualidade de vida, pelapreservaçãodomeioambiente,pelosdireitosàpluralidadeesobretudopelodireito à cidadania cultural. Com isso esperamos retomar um sentido depatrimônio histórico que nos permita entende---lo como prática social eculturaldediversosemúltiplosagentes”3(Fenelon,1992,p.31)

AdefesadodireitoàMemóriaedodireitoàcidadaniacultural,destemodo,convergemparaoqueogeógrafoDavidHarvey(2014)compreenderiacomodireitoàcidade,comoalgoquenãopoderiaserentendidoapenascomooacessoeusufrutodacidade,aocontrario,comopoder de reinventá---la, participando de suas transformações. Não pretendendo recobrir atotalidade de ações desenvolvidas no período, serão destacadas quatro casos que serãoanalisadoaseguircomointuitodemonstrarcomoapolíticadeDireitoàMemoriaoperounocentrodacidadedeSãoPaulo.

ABUSCAPORUMNOVOSENTIDODECENTRALIDADE

AdecisãodeseinvestirrecursospúblicosemprojetosnocentrodacidadedeSãoPaulonãofoi isentadegrandesdebates internosnagestãoErundina.UmapartedosmilitantesdoPTnão concordava com as propostas por compreender que o centro historicamente já haviarecebido grandes investimentos públicos. Na visão destes, um governo eleito pelostrabalhadores deveria priorizar as ações nas regiões periféricas. Em contraposição, a lógicadefendida por Erundina era que o centro era um espaço majoritariamente ocupado pelossetoresmaispobresdapopulaçãoepelaclassetrabalhadoraquepassavagrandepartedodiano trabalho. O vice-presidente da Emurb na época, Robert Mac Fadden, afirmou sobre ointeressedaprefeituradeinvestirnocentro.

3EstetextoseencontranolivroDireitoàMemoria,queconsistenumacompilaçãodasdiscussõesrealizadasnoCongressoInternacionalPatrimônioHistóricoeCidadaniade1991.

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“(...) em nosso entender essa postura não era contraditória. É que ohabitantedaperiferiatrabalhanocentrodacidade.Eaanalisedessefatoproporcionou clareza ideológica que dava suporte à justificativa parainvestir na área central. Nesse quadro, constatamos que houve umequivoconagestãoMárioCovas,queabandouocentrodacidade,soboentendimento, errôneo, de que aqui estava tudo pronto e seriamelhor,portanto investirnaperiferia.Aadministraçãodelenãopercebeuqueosmoradores de uma metrópole como São Paulo ocupavam a cidadedinamicamente: de dia, em um lugar; à noite, em outro” (Mac Fadden,1991:52)

O objetivo de intervir no centro era, para além de garantir um espaço com qualidadeambiental e ofertas culturais acessíveis no cotidiano da população, garantir uma presençasimbólicadopoderpúbliconaregião.

OcentrodacidadedeSãoPaulopassouporum intensoprocessode transformaçãodesuamorfologiaurbanadesdeoiniciodoséculoXX,momentoemquetambémpodeserverificadona cidade uma constantemigração espacial de atividades e capitais financeiros. No centrodesdeosanos20 jáépossívelobservareste fluxo,quandoaocupaçãourbanaextrapolaosantigos limites do triangulo histórico – centro velho ---,e passou para outro lado do vale doAnhangabaú,noatualmentechamadocentronovo.Destemodoépossívelverificarnahistóriaurbana da cidade a expansão dos capitais imobiliários, juntamente com a elite, semprerumando para a região sudoeste (Frúgoli Junior, 2000). Centro Velho, Centro Novo,Higienópolis, regiãodaAvenidaPaulista,Avenida Faria Limae finalmenteAvenidaBerrini eMorumbi. Neste movimento espacial de capitais financeiros, investimentos públicos e daprópriaeliteparabairrosdistantesdocentro,estepassouaserocupadoprincipalmentepelossetoresmaispobresdapopulação,queencontramnocentronãosótrabalho,maslocaisdeconsumoelazer.

O conceitode “degradação”e “decadência”do centro segundoFlávioVillaça surgiria comouma desculpa ideológica das elites em relação ao seu deslocamento para outras áreas dacidade. Esta “ideologia da degradação” segundo o autor serviria para camuflar os reaismotivosdoabandonodocentro,adiminuiçãoderecursosfinanceirosparaaárea,tratandoosproblemas comoresultadodapoluição,docongestionamentosedoestadodeterioradodasconstruções (Villaça,1989).Asoluçãoencontradapelosgovernosmunicipaisapartirdadécada de 1970 estava ancorada da ideia de “revitalização” urbana. O principal plano derevitalizaçãorealizadonestadécadafoiduranteagestãodeOlavoSetúbal(1975---1979).Oplanopreviaa intervençãoemváriosbensnocentroafimdetorna---lomaisatrativoà investimentosprivados. As obras mais significativas foram a construção dos calçadões no centro velho(ruasDireita,SãoBento,ÁlvaresPenteado,entreoutras),daspraçasdometrô(Sé,RepúblicaeSãoBento)easrestauraçõesdoEdificoMartinelli,doViadutodoCháedoPátiodoColégio.

“Apesardedenominado ‘plano’,as iniciativas realizadasnãochegaramaconfigurarpropriamenteumconjunto integradode intervençõesvoltadasparaumcentro comoumtodo. Tratou---sedeumasériedeobraspontuaisque tinham como objetivo atrair para a área central os interesses quehaviammigradoparaoutras regiõesda cidade. (...)Outroaspecto críticono Plano de Revitalização do Centro residiu na total ausência depreocupação com a população residente na região, explicitada de formacabal com a intervenção realizada no Edifício Martinelli, em que apopulação encortiçada foi totalmente removida (...), Não se falavadiretamentenatrocadepopulação,masemnenhummomentoaquestãohabitacionalfoiabordada.”(KaraJosé,2007:52).

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Nas gestões seguintes o número de propostas diminuiu consideravelmente, fato em partecausadopeloimpactodacriseeconômicavivenciadanoBrasilapartirdofinaldadécadade1970. Durante a gestão de Reynaldo de Barros (1979---1982), destaca---se o projeto dereurbanizaçãodoValedoAnhangabaú,deautoriade JorgeWilheimeRosaKliass, realizadoapenasparcialmenteeretomadoposteriormentenagestãoErundina.NagestãoMarioCovas(1983---1985), os ganhos mais significativos relacionados à preservação foram a criação doConselhoMunicipaldePreservaçãodoPatrimônioHistórico,CulturaleAmbientaldaCidadedeSãoPaulo–Conpresp4---,napromulgaçãodaLeideTransferênciadePotencialConstrutivo5.

A eleição de Jânio Quadros (1986---1988), pode ser considerada um retrocesso em váriosaspectosnoplanourbanístico.Aatençãodaprefeituraconcentrou---senasgrandesobrasviáriase em ações que acentuaram a segregação socioespacial (Kara José, 2007). No campo dapreservação, apesar da promulgação de uma lei6que concedia descontos no IPTU paraproprietáriosque restaurassem imóveisdentrodeumperímetroestabelecidonocentro,asações de despejo de populações encortiçadas foram bastante frequentes. A mais notáveldestas ações foi realizada nas ruas da Assembleia e Jandaia, aonde um conjunto de casasforam demolidas para a construção de uma alça viária da avenida 23 deMaio, revelandoposteriormenteumconjuntodearcosestruturaisqueforamalcunhadosnaépocade“arcosdoJânio”.

“Apriorizaçãodessetipodeintervençãourbanagerouváriosconflitosemtorno da preservação do patrimônio histórico. Não que Jânio fossetotalmentecontraaproteçãoaopatrimônio,jáquefoiemsuagestãoqueo Conpresp foi realmente instalado, e que foi realizado primeirotombamento em esfera municipal. Tratava---se, no entanto, de uma visãomuito particular sobre o que devia ou não ser preservado, explicitadaatravésdemedidasautoritárias.(...)Emsuaposturaautoritária,oprefeitonão apenas vetava o debate sobre a intervenção nos bairros da áreacentral,masassociavaadestruiçãodopatrimôniocomlimpezasocial,nomoldesdasoperaçõesamericanasderenovaçãourbana.”(KaraJosé,2007:70).

As intervençõespropostasparaocentroduranteogovernoErundinaprocuravamtrabalharcom uma visão de “revitalização” distinta daquelas empreendidas nas administraçõesanteriores, embora algumas das propostas levaram este termo elas não operavam com aconcepçãodeespaçosdegradadose/ouesvaziadosdepessoasesignificadosconformeforamentendidos.

PROJETOSEPROCESSOS

Um primeiro movimento de retomada do centro pelo governo Erundina foi a decisão detransferirasedeadministrativaparaPaláciodasIndustrias, localizadodoParqueD.PedroII,movimentoenquadradodentrodaideiaderestaurartambémuma“centralidadesimbólicadopoder”(Fenelon:1995).Ocentrodacidadefoiapartirdadécadade1960perdendoassedesdospoderesadministrativos.Aprimeiraadeixarocentrofoijustamenteaprefeituraqueem1961foitransferidaparaoPavilhãoPadreManueldaNobreganoparquedoIbirapuera.Em1965éasededogovernodoestadoqueétransferidadoantigoPaláciodosCamposElísios,4Lei10.032,de27dedezembrode1985.5Lei9.725,de02dejulhode1984.6Lei11.773de1985.

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localizadonobairrohomônomo,paraonovoPaláciodoBandeirantesnobairrodoMorumbi.Eem1968AssembleiaLegislativaétransferidadoantigoPaláciodasIndustriaparaoPalácio9deJulhonoParqueIbirapuera.

Oprojetode restauraçãodoPaláciodas Industrias7foi realizadopelaarquiteta ítalo---brasileiraLina Bo Bardi. Além da restauração era prevista a demolição do viaduto Diário Popular, aconstrução de uma nova ala e a recuperação do parque D. Pedro II. O objetivo dasintervenções era a criação de um novo espaço público, onde a população era convidada afrequentarasededamunicipalidade.

“A Nova Ala será, com suas modernas instalações, o centro vital daPrefeituradacidade,comsuaformade‘êxedra’,abertadoladodacidadecom grande fachada de vidro; o lado voltado para o parque não temabertura nenhuma, constituindo---se num grande ‘jardim---vertical (...),enquanto o Palácio não será como são em geral os edifícios deadministraçãopúblicaqueimpedemaparticipaçãodavidapopularemumambienteque,afinal,édedicadoaela.

Terá,então, áreasparaa recreação infantil como teatrodebonecos,música,merenda, etc., grande restaurante---choperia, área de exposições variadas,auditório.Enfim,todaaNovaPrefeituraseráabertaàvisitaçãopública”(Bardi,2009:178)

AfinalizaçãodasobrasderestauraçãosóocorreunofinaldagestãodeErundina,sendooseusucessor Paulo Maluf (1993---1996) o primeiro ocupante da nova sede administrativa domunicípio. A demolição do viaduto Diário Popular chegou a ser iniciada, porém pordeterminaçãodaJustiçaasobrasforamsuspensas,Malufiriaposteriormente“restaurar”oviaduto e cercar a área envoltória do palácio (Fenelon, 1995), não dando continuidade aosplanosprevistos,destemodoanovaalaprojetadanãofoiconstruída.

OProjetoEixoSé---Arouche8foiidealizadocomoobjetivodemelhorarascondiçõesdosespaçospúblicosedapaisagemurbanadeumeixoviárioque iadaPraçadaSéao Largo do Arouche,propondoacriaçãodeumalinguagemdeintervençãourbanísticacontínuaentreocentrovelhoeocentronovo,bemcomoumdiálogocomasintervençõesurbanasqueestavamsendorealizadasnoValedoAnhangabaú.Inspirando---senaexperiênciadoCorredorCultural9doRiodeJaneiro,oprojetoSé---Arouchepropôsacriaçãodeparceriascomosmoradores,usuárioseproprietáriosdeimóveisdaregiãopararecuperaremanterosimóveisdevalorhistórico---cultural(Sant’Anna,2004).

“A tentativa de se construir um caminho de cooperação entre o poderpúblico eainiciativaprivadavisava,maisdoqueaobtençãoderecursos,àinstauração de um processo democrático e participativo de intervençãoque tivesse como fruto o envolvimento dos proprietários com apreservação,nofuturo,dasmelhoriasrealizadas.”(KaraJosé,2007:83)

7Durantea gestãoErundina também foram restauradosno centroda cidadeoTeatroMunicipal, aBibliotecaMariodeAndrade,aCasanº1,aCasadaMarquesadeSantos,aCasadasRetortaseoedifícioRamosdeAzevedo.

8InstituídopeloDecreto29.851de21de junhode1991erealizadoemconjuntocomdiversosórgãosmunicipais,entreelesoDPH,aSecretariadeHabitação,aComissãodeProteçãoàPaisagemUrbanaeaAdministraçãoRegionaldaSé.

9OCorredorCulturaléumprojetodamunicipalidadedoRiodeJaneiroe foicriadoem1983,noqualapreservaçãodopatrimônioéincentivadaatravéstantodemecanismosdeordenamentourbanoquantodeincentivosfiscaisaproprietáriosdeimóveisinteressadosvoluntariamenteemparticipardoprograma.

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Oprocessorealizouumacampanhadeconvencimentodosproprietários,sendoofertadosemtroca da adesão descontos no IPTU.O projeto foi apenas parcialmente completado, sendoque que as intervençõesmais significativas ocorreram na avenida Vieira de Carvalho e noLargodoArouche.Nesteslocaisoscomerciantes“arcaramcomoscustosderemanejamentodeanúncios,recomposiçõesdefachadasedoaçãodeplantas.Asdemaisintervenções,comorecomposição de calçadas, substituição de iluminação e paisagismo, ficaram a cargo daPrefeitura”(Sant’Anna,2004).Oprojetofoiinterrompidonofinaldagestão.

Importante ressaltar que para além dos motivos ideológicos da admiração petista houvetambémumapressão importantedeumgrupo de empresários da região central para quefossem retomados investimentos públicos na região e que desta forma pudesse ser contida afugadeempresasparaoutrasregiõesdacidade.Estegrupodeempresários,capitaneadospeloentão presidente do Bank Boston, Henrique Campos Meirelles, fundaram a Associação Viva oCentro10em1991.Inspirando---senarequalificação–termoinclusiveincorporadoemdetrimentode revitalização ---doQuincyMarket na área central de Boston, a associação manteve---sebastanteativaduranteoperíodoefoiumadasprincipaisarticularasentornodoprojetodereurbanizaçãodoValedoAnhangabaú(FrúgoliJunior,2000).

OprojetodereurbanizaçãodoValedoAnhangabaúiniciadoduranteogovernodeReynaldode Barros foi retomado durante a gestão Erundina, porém com algumas modificações. Aprimeiraaçãofeitafoiarenegociaçãodoscontratadosfirmadosnasgestõesanteriores,oquepossibilitou uma redução de cerca de 40% dos custos (Mac Fadden, 1992). A segundaalteração foi uma modificação no sistema de circulação do projeto original (que previa aconstrução de um viaduto sobre o vale), sendo este eliminado por ser consideradodesnecessário.

Diante da falta de recursos financeiros municipais para a conclusão das inúmeras obrasprevistas para o centro, a prefeitura implementou um novo instrumento urbanístico: aOperação Urbana Anhangabaú11. A leitura positiva que a Emurb fazia das vantagens desteinstrumentoestariaemseusupostoautofinanciamento

“(...)fazendocomqueosempreendedorespaguemporumaobradeseuinteresse, semdestinar ‘recursospúblicosparaumaobraquenãoéumaprioridade social para cidade.’ Em tese, seria essa a parceria: o poderpúblico atua como ‘indutor’ ou ‘regulador’, participa da valorização queconcede ao setor privado através dos incentivos ao receber comocontrapartida parte dos ganhos adicionais, utiliza esses recursos parapagarasobrasdemelhoramentonoprópriolocal,eassimosetorprivadocusteiaos investimentosurbanosquesãodeseupróprio interesse.” (Fix,2001:78)

Eram previstos três mecanismos para incentivar os investimentos privados e assim obterrecursosparaasobrasdaprefeitura:

“Oprimeirocriouapossibilidadedeflexibilizaçãodalegislaçãovigente,e,consequentementeummaioraproveitamentodosoloearegularizaçãodeintervenções,emtrocadopagamentodeumacontrapartidafinanceiraaomunicípio.Osegundoinstituiuatransferênciadopotencialconstrutivodeimóveis de valor histórico para outras zonas da cidade, condicionadas à

10AssociaçãoVivaocentro–SociedadePró---RevalorizaçãodocentrodeSãoPaulo.11Leinº11.090/91.

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restauraçãodobempreservado,eoterceiropossibilitouacessãoonerosadeespaçoaéreoesubterrâneonaáreadelimitada.”(Sant’Anna,2004)

Porém, a participação do setor privado não verificou---se. A prefeitura teve que arcar cominvestimentos próprios, e muitas das propostas de intervenção que seriam financiadasatravésdestaoperação,acabaramnãosendorealizadas.Umadaspossíveisinterpretaçõesdafalta de interesse domercado imobiliário naOperação seria a suamenor rentabilidade emrelação a outra áreas da cidade. A escolha de utilizar---sea OperaçãoUrbana como forma deobtençãoderecursosextraspelaprefeiturafoibastantecriticadapelabasepolíticadagestão,que compreendiam a operação como uma aliança da prefeitura com os interesses domercadofinanceiro.

Criadoem1989,oConcursoNacionaldeIdeiasparaaRenovaçãoePreservaçãodoBexiga,foiuma iniciativa da PrefeituraMunicipal de criar uma nova prática de intervenções urbanas,atravésdeumaexperiência local.NoeditalpublicadonoDiárioOficialdoMunicípio12foramdescritasalgumasdesuaspremissas:

“O Concurso [...] será o exercício de novas relações entre o poderinstitucional e os cidadãos, onde a prática da democracia caminhará nosentidodaafirmaçãodacidadaniaenquantoofazeracidade.[...]Aideiaéque a cidade é dos cidadãos e deve ser “construída” por eles. Isso trazcomoconsequência que o processo de reurbanização proposto deveter como ponto inicial a manutenção de seus atuais moradores etrabalhadoresnaárea, seessa foravontadeexpressadecadaumdeles.[...] A figura de consulta à população deve avançar para um amploprocessodeparticipaçãoedeliberação,queapontaráas característicasaserem adotadas para a evolução da área em questão, em suas váriasesferas.”(DPH,1990,p.11)

A iniciativa apresentou---se como uma proposta inovadora dentro das políticas urbanas,possuindo como singularidade a participação direta da população afetada – moradores,trabalhadores e proprietários de imóveis na região, desde a formulação dos requisitos queentrariamnoeditaldeconvocaçãodaspropostasatéaeleiçãofinal.

O processo foi constituído por várias etapas. Foram realizados dez seminários e debatespúblicoscomapopulaçãoparadefinirasdemandaslocaisquedeveriamsertrabalhadaspelosgrupos concorrentes. Estes debates temáticos13, que contaram com a exposição de váriosprofissionaisligadosasquestõesurbanasbemcomoliderançaslocais,foramrealizadosentreoutubroedezembrode1989emdiversosestabelecimentosnobairro.Nofinaldesseciclodedebates o DPH compilou as discussões, junto com outrosmateriais relativos ao concurso,num volume impresso14que foi entregue aos grupos participantes servindo como subsídiopara a elaboração das propostas. As equipes participantes, trinta no total, entregaram ostrabalhos em junho de 1990. Os trabalhos então foram analisados por um Júri de

12DiárioOficialdoMunicípiodeSãoPaulo,nº116,24dejunhode1989.13Ostemasdosdebatesforam:QuemsãoosdonosdoBexiga?;Bairrocentral;AmemóriadoBexiga;OBexigadofuturo;Odesenho do Bexiga; O bexiga dia e noite; O público e o privado; A gestão da cidade; Viabilidade de um plano; eTransformaçãoepreservação.14Ovolumeintitulado“ACidade,OHomem–umaidentidade”contémalémdasdiscussõescompiladas,oregulamentoeoeditaldoconcurso,bemcomoumtextosobreahistóriadobairro,ozoneamentovigentedacidade,osdadosdemográficosdobairroe11mapasdaáreadefinidaparaoconcurso.

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Profissionais15quedeveria verificar se os projetos se adequavam tanto ao edital quanto aoregulamentodoconcursoeporfimescolherentretrêsecincomelhoresprojetos,queiriamserpostosàvotaçãopopular.Apósaescolhadeapenas trêsprojetos finalistasestes foramesquematizados de forma didática através de uma cartilha distribuída aosmoradores, quecontinha também uma cédula de votação com oito itens e um espaço para sugestão daprimeiraáreaquedeveriareceberasmelhoriaspropostas.

OquarteirãodaIgrejadeNossaSenhoradeAchiropitafoioescolhidopelavotaçãoparaservircomomodelo das propostas de intervenção. Os três grupos foram definidos por cores –equipe azul coordenada pela arquiteta Amélia Reynaldo16de Recife/PE; equipe vermelhacoordenada peloarquitetoJoséMoraesdeSãoPaulocapital;eequipeamarelacoordenadaporDemetreAnastasakisdeRiodeJaneirocapital.Asequipespoderiamapresentaratéseispranchasque ficariam em exposição, contemplando os seguintes aspectos: Conceituação geral, planofísico--- territorial, instrumentos jurídicos, intervenções pontuais e viabilização das propostas.“Todasasequipespremiadasorganizaramotrabalhodeformasimilar,abordandoaindaumaleitura críticaaosdiversos tiposdeplanejamento,a caracterizaçãodobairroeaexplanaçãodametodologia utilizada”(Rodrigues,2007,p.92).Aequipeazul foivencedoraemtodosos8 itensavaliados pela população, porém o Júri resolveu premiar equitativamente os trêsfinalistas,apontando quenenhumdosprojetosteriaconseguidoalcançartodososobjetivos,julgandoportantoastrêspropostasdeintervençãocomosendocomplementares.

Osconflitosdeopiniõeseinteressessobreosdestinosqueobairrodeveriatrilharestiverampresentes durante toda a realização do Concurso.Dúvidas sobre a situação dosmoradoresencortiçados,apossibilidadedeseconstruirumcalçadãodepedestresnaTrezedeMaioeoque deveria ser feito com as edificações antigas. Nos boletins informativos sobre osandamentos dos debates que foram entregues à população podemos observar algumasdestas opiniões. TerezinhaRamos,moradora doBexiga, comenta: “Tenhomuitomedoqueessa reurbanização que estamos começando a debater abra espaço para a especulaçãoimobiliáriaeemconsequênciadissoo Bexigapercasuascaracterísticas.”17ApreocupaçãodaperdadeidentidadedobairrotambémépreocupaçãodeJosefinaScharanti“Nósitalianosedescendentesdeitalianos,jávimosobairroserparcialmentedescaracterizadocomainvasãodos nordestinos. [...] Creio que o Bexiga pertença aos italianos e os nordestinos deveriamvivernaperiferia.”18MariaAparecidaNeves,costureiraemoradoradeumcortiçotemeporsuaexpulsão“Entendoquealgumacoisadevaserfeitaparaalterarestarealidade,mastemoquenamudançasejamososprincipaisprejudicados.”19

Como comenta Cristina Rodrigues “O processo democrático de elaboração das bases desteconcurso jamais foi repetido. A seriedade e respeito com que o objeto de intervenção foitratado é um caso único. ” (Rodrigues, 2007, p.97). A autora também aponta quemesmocontandocomampladivulgaçãoaparticipaçãodapopulação foibastantetímida–umtotalde 892 votos. Talvez justamente por seu ineditismo, por não haver até o momento15O júrieracompostopor:AntônioCarlosSant’Ana,arquiteto---COHAB;OtíliaArantes, filósofa---USP;AzizAb’Saber, geógrafo---USP; Benedito Lima de Toledo, arquiteto---USP; José Paulo de Bem, arquiteto---EMURB; Ruth Zein, arquiteta---Revista Projeto;Ulpiano Bezerra deMenezes, antropólogo---Museu Paulista; JoaquimGuedes, arquiteto---USP; e Edgar De Decca, historiador---UNICAMP.16A arquiteta e urbanista havia sido coordenadora da primeira fase do Projeto de Reurbanização do Bairro do Recife,realizadoduranteagestãodeJarbasVasconcellosentre1986e1988.17Boletimnº1,primeiraquinzenadenovembrode1989.18Boleimnº2,de9/11a17/11/89.19Boletimnº3,de21/11a31/11/89.

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experiências de democracia participativa na cidade. O concurso apesar de ter sidoconsiderado inovadornãotevesuas ideiascolocadasemprática.Oprojetode leienviadoàCâmaradeVereadorescontendosuasresoluçõesnãochegouaservotadoecomaeleiçãodePauloMalufem1993foi“colocadonagaveta”.

CONSIDERAÇÕES

A gestão de Luiza Erundina pode ser simbolizada como uma importante referência empolíticasurbanasassociadasapreservaçãodopatrimôniocultural,tantopeloelevadonúmeroquanto pela qualidade das propostas de intervenção na área central, que pautaram amelhoria do ambiente e a valorização do patrimônio cultural, priorizando sobretudo apopulaçãoqueocupavaaregião:moradores,trabalhadoreseproprietáriosdeimóveis.Alémdasquatrointervençõesdescritas,foramrealizadasoutrascomoaqualificaçãodoBulevardaavenidaSãoJoão,oaprofundamentodapautadacriaçãodehabitaçãodeinteressesocialearestauraçãode inúmerosbenssignificativos,comoTeatroMunicipaleaBibliotecaMariodeAndrade.DiantedestecenáriotecemosalgunscomentáriosqueachamosimportantesparaofomentododebateemtornodastentativasconciliaraumsótempooplanejamentourbanoeapreservaçãodopatrimônioculturalnacidadedeSãoPaulo.

Pode---severificarqueapesardaquantidadeexpressivade intervençõesnuncahouveumplanointegrado para o centro. Talvez esta ausência tenha influenciado a concepção de diferentesabordagensqueforampropostas,evidenciadassobretudonosquatrocasosapresentados.Emboratodasseaproximemporteremumcaráterintersetorialepossuíremumapreocupaçãocoma questão patrimonial como um dos elementos centrais, elas acabam distanciando---seprincipalmenteporcontadosmétodosutilizados.

Autilizaçãodeumbemsimbólicocomoumrecursoparatransformaçãodeseuentorno;umprocessodeconsultaediscussãocomproprietáriosvisandoumaparceriaparatransformaçãourbana;autilizaçãodeuminstrumentojurídico---urbanísticoquegarantiriaumaparceriacomosetorprivado;e finalmente,acriaçãodeumconcursopúblicoque incluíaaparticipaçãodapopulação ---podemrevelarumatentativade buscar---senovas possibilidades de intervençãourbana mas também revelam certas ambiguidades da gestão diante das demandas dediferentes setores sociais. Esta ambiguidade pode ser explicada pelas diferentes visões dosdiversos atores que compunham tanto o governoquanto a própria sociedade.A sociedadenunca é una, tampoucoo Estado, sendo importante lembrar que a própria preservação debensconstruídoséumapráticasocioculturaldevalorpolíticoeheterogênea,porconseguintenãopossuiumcaráterintrinsicamenteconservadorouprogressista,poissuarealizaçãotendea reproduzir as contradiçõesda vida social (Arantes, 1987,p.53). Sendoobjetodepráticassociais, a preservação é resultado de conflitos entre inúmeros agentes que muitas vezespossueminteressesdíspares.

Destemodopodemserobservadosconflitosinternosàprópriagestão,demonstrandoqueaaproximação da Secretaria da Cultura com as instâncias responsáveis pelas intervençõesurbanasnãoocorreusematritos,comodemostraDéaFenelon:

“As discussões sobre o que é o direito a memória, o que é cidadaniaculturalnãoforamfáceisseserlevadasdentrodaperspectivadogovernoedaadministração,atéporqueaquestãodopatrimônioedapreservaçãoé uma discussão que se realiza quase que exclusivamente no meio

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acadêmico,nomeiotécnico,nasgrandesdiscussõesdepolítica”(Fenelon,1995:141).

NoConcursodoBexigaadecisãodoDPHdeabriroprocessodetombamento20departedobairrotambémnãofoibemrecebidapelostécnicosdaEmurb.Acoordenadoradoconcurso,CéliadaRochaPaes, afirmariaementrevista “Adecisãode se tombaroBexiga criaobstáculos para osprojetos. Esta iniciativa paralela não é muito saudável” e ainda segundo a arquiteta estamedidacriouumaincongruência“Seaprefeituradefendequeapopulaçãodecidaoquefazercomo bairro,comoessadecisãopodersertutelada?”21EmrespostaDéaFenelon,diretora doDPH, afirmaria que “A intenção é respeitar os trabalhos de preservação que estão sendoapresentados”22.De todomodo, pode---seafirmarquede fato se criou---se uma incongruênciadentrodosobjetivosdoconcurso,queprocuravajustamenteformular,entreoutrosobjetivos,formasalternativasdepreservação.

Além das disputas dentro da gestão houveram também desencontros dentro do próprioPartidodosTrabalhadoresbemcomodemonstraçõesderesistênciaporpartedojudiciárioedaCâmaradosVereadores,queatrasarammuitasvezesasvotaçõesdosprojetosdeleiqueimplementariamasmudanças(KaraJosé,2007).Ocenáriopolíticoeeconômicobrasileironofinal da década de 1980 era bastante paradoxal, se por um lado o processo deredemocratização alimentava grandes discussões sobre novas possibilidades de atuaçãopolítica e exercício da cidadania, por outro o processo de abertura econômica e aimplementação de uma agenda neoliberal trazia incertezas e dificuldades de uma efetivaimplementação das políticas sociais conquistadas. Ao assumir o cargo, Luiza Erundinaencontrouosfundosdaprefeiturabastantedebilitadosemdecorrênciadosgastosabusivoseempréstimos feitos emgestões anteriores, nãohavendo verbas suficientespara concluir oqueforaproposto.Atentativadeutilizaçãodasoperaçõesurbanas,porexemplo,foiumdosmeiosapontadosparaaresoluçãodaquestãofinanceira,porém,nãotiveramsucesso,comofoidemonstradonocasodoAnhangabaú.

A relação com o setor privado também demonstra certas ambiguidades. Se a prefeiturafomentouoincentivoàparticipaçãodeempresáriosemprojetoscomoodoEixoSé---Aroucheao mesmo passo que negociou com o setor empresarial sua participação na OperaçãoAnhangabaúenoConcursodoBexiga,buscandogovernabilidade,comoapontaCouto(1996),em outros momentos, por questões ideológicas, este setor foi visto com desconfiança,operando como um dos grandes obstáculos para efetuaram---se as políticas de ampliação dacidadania pretendidos pela gestão. Segundo Marilena Chauí, uma política efetiva depreservação do patrimônio ambiental urbano encontraria fortes obstáculos em São Paulo,principalmente por uma forte resistência dos empresários em aderirem ao programas depreservação propostos. Os protestos de proprietários e especuladores imobiliários, quedominamaspautaspolíticasemfavordeseusinteressesprivados,contraapreservação,sedájustamenteporestaserconsideradaantagônicaaseusanseios(Chauí,1992,p.38).

Asrealizaçõesdaprefeituranocentrodacidadeeasdificuldadesdeimplementa---laspodemserobservadasconformeocomentáriodopresidentedaEmurb, JoséVitorSoalheiroCouto,na

20Aaberturadoprocessoseiniciouem1990,resoluçãonº11/1990,sendopartebairrotombadapeloCONPRESPatravésdaresoluçãonº22de2002.21JornalFolhadeSãoPaulo,21denovembrode1990.22JornalFolhadeSãoPaulo,04denovembrode1990.

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revistaPolíticaseObrasFortalecemCidadania,publicaçãoquefaziaobalançodasrealizaçõesdoórgão

“Nossacapacidadedepensarascoisasquedeveriamserfeitasnacidadeésempre maior do que a real capacidade de fazer. Os orçamentos nãoacompanharamossonhos.Nãotivemos,aolongodessagestão,aportederecursosdeoutrasesferasdogovernoouaporteinternacional.Alémdisso,encontramos uma empresa demolida, colocada no chão. Então, anecessidade de fazer muitas coisa simultaneamente implicouextraordináriacargadetrabalho,tantoparaadireçãodaempresaquantopara o conjunto do pessoal. O importante é que houve avanço nacompreensãodagestãodeumaempresapública, colocadaa serviçodosinteresses da cidade. Jamais dos interesses de grupos.” (Couto apudPatarra,1996:565)

ParaMarcia Sant’Anna a década de 1980 acabou definindo---se como “(...) o período em quemais seproduzdiscursosobreoproblemadapreservaçãodoespaçourbano.Osavançosconcretosforam,entretanto,muitopoucos.(...)Oquepoderiatersidoummomentoricoemsoluções,capazdeinaugurar,defato,umanovaprática,caracterizou---seapenascomoumafasedeebulição”(Sant’Anna,1995:226).EstaafirmaçãoentraemconsonânciacomumafaladeRobertoMacFaddenextraídadeentrevistaconcedidaàMarianaFix;

“(...)umdosproblemasdaesquerdaéjustamenteofatodenãoconseguirimplantar os planos que por ela são elaborados: foi a gestão seguinte(Maluf)quepôsempráticaosprojetosurbanosdoPT,comoasOperaçõesUrbanasFariaLimaeÁguaEspraida,masdeformadistorcida,ouseja,comasuspençãodosfinssociais.(...)écaracterísticoofatodeosgovernosdeesquerdausaremasempresaspúblicascomo‘empresasdepensamento’eos governos de direita as usares como “instrumentos de ação”” (MacFaddenin:Fix,2001: 81)

Estas duas declarações mostram---se bastante interessantes quando nos deparamos com asintervenções propostas pela gestão Erundina: se elas possuem um lado bastante inovadortanto em suas concepções quanto nos instrumentos utilizados, por outro lado acabarammuitasvezesnãolograndooresultadoesperado.ÉigualmenterelevantenotaroaltonúmerodeintelectuaiseacadêmicosquecompuseramospostosdecomandodosórgãosmunicipaisenocasodoConcursodoBexigatambémnocorpodejurados.Apesardopresenteartigonãoter tal pretensão seria importante lançarparaodebate a reflexãoacercadasposiçõesqueocupam estes atores e as suas relações de aproximação ou distanciamento com outrossetoresdasociedade(políticosecivis),bemcomoentreossaberesacadêmicoseoscorpostécnicosdaprefeitura.Detodomodoa incorporaçãodesses intelectuaispelaadministraçãomunicipalpodeserdestacadapeloaltoníveldaproduçãoteóricadapolíticasdesenvolvidas.Atravésdeumasimplesanálisedoléxicoutilizadonaspolíticasanalisadas ---CidadaniaCultual,Direito à Memória, Oficinas da Memória, etc ---,percebe---se uma vontade política de garantirespaçoparademandasdesetoressociaishistoricamentemarginalizados.

“O principal foco da abordagens que tratam o ‘espaço publico’ comoesfera pública recai nas formasdeparticipaçãopolítica e organizaçãodasociedade civil no interior do debate sobre democracia e construção dacidadania. (...) De forma semelhante, as análises que utilizam o termo“espaço público” como espaço urbano desenvolvem, na outra ponta domesmodebate,amesmaangulaçãoanalíticaemtornodosmesmostemasque têm marcado a face excludente e autoritária da formação socialbrasileira: enfocando a dimensão espacial da desigualdade social, essasanálises recuperam o sentido de lugar e a dimensão pública do espaço

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urbano, traduzidos nas distintas formas de ocupação dos espaços dacidade,na construçãodos territóriosurbanosedos lugarespolíticosqueexpressamasdemandasdecidadaniaepertencimento”(Leite,2004:195)

Enfim, se faz necessária a reflexão sobre possibilidades de utilização coordenada deinstrumentosjáexistentesdeacautelamentocominstrumentosdeordenaçãoespacial,afimde se alcançar uma preservação efetiva de bens culturais urbanos com um incentivo àpluralidade sociocultural inscritano território.O tombamentoéum instrumentode sumaimportânciaparaaproteçãodebensurbanosdotadosdevalorescoletivos,masnãopodeseroúnicoinstrumentoutilizadoparaestefim.Elepossuilimites,seuscustospolíticosesociaissãobastanteelevadosepodemultrapassarsuasintenções,oquerecomendaousocriteriosodomesmo(Rodrigues,1996p.195).Istoposto,semostraumdesafiocadavezmaispresentenas dinâmicas urbanas recuperar momentos e propostas de atuação inseridas nestasarticulações.

Apesardascontradiçõesobservadasemalgumaspolíticasestabelecidas,comoasOperaçõesUrbanas,agestãodeLuizaErundinapodeserconsideradacomoummarconodebatesobreaspolíticascultuaisepatrimoniaisrealizadasnoBrasil.Observa---senesteperíodoumesforçodeexplorar novas metodologias de abordagem através do desenvolvimento de práticasintersetoriaisvoltadosparaàspoliticasurbanaseculturais,bemcomoavalorizaçãodosbenseespaçospúblicosdacidadevoltadosparaoaprimoramentodacidadania.

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SESSÕES TEMÁT ICA 7 : C IDADEE H ISTÓRIA

DESENVOLVIMENTO,CRISEERESISTÊNCIA:QUAISOSCAMINHOSDOPLANEJAMENTOURBANOEREGIONAL? 18

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SESSÕES TEMÁT ICA 7 : C IDADEE H ISTÓRIA

DESENVOLVIMENTO,CRISEERESISTÊNCIA:QUAISOSCAMINHOSDOPLANEJAMENTOURBANOEREGIONAL? 19

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SANT’ANNA,Márcia.A cidade---atração:anormadepreservaçãodoscentrosurbanosnoBrasildosanos90.Tese(DoutoradoemArquiteturaeUrbanismo),UFBA,Salvador,2004.

SIVIERO,FernandoPascuotte.Educaçãoepatrimôniocultural:umaencruzilhadanaspolíticaspúblicasdepreservação.RevistaCPC,SãoPaulo,jun.2015.

SOUZA, LaraMelo. Chaminés e arranha---céus: uma abordagem sobre processos e prática dapreservaçãonametrópolepaulista.DissertaçãodeMestradoFAU---USP.SãoPaulo,2011.

VILLAÇA,FlávioJoséM.SistematizaçãocríticadaobraescritapeloProf.Dr.FlávioJoséMagalhãesVillaçasobreoespaçourbano.SãoPaulo:UniversidadedeSãoPaulo/FAU,TesedeLivre---Docência.)