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Pensar o ensino de ciências e o campo a partir da agroecologia: uma experiência com alunos do sertão sergipano Thinking about the science’s teaching and the field from the agroecology: a field experience with students from the Sergipe’s hinterland MELO, Juliana Franco de Melo 1 , CARDOSO, Lívia de Rezende 2 1 Universidade Federal de Sergipe, Aracaju/SE - Brasil, [email protected]; Universidade Federal de Sergipe/DEDI, Aracaju/SE - Brasil e Universidade Federal de Minas Gerais/FAE, Belo Horizonte/MG - Brasil, [email protected] RESUMO A agroecologia é uma ciência em construção que surgiu da necessidade de repensar a forma de como o ser humano se relaciona com a natureza, assim como o sistema de produção de alimentos. Nesse sentido, esta pesquisa buscou desenvolver conceitos e ferramentas da Agroecologia para auxiliar na reflexão das práticas cotidianas dos alunos do campo. Através da pesquisa participante, a pesquisa ocorreu em uma escola do campo junto aos jovens da 6ª série do ensino fundamental. Durante os encontros, foram desenvolvidas práticas agroecológicas e jogos educativos que ao fim trouxeram diversas questões que se relacionam diretamente ao ensino de ciências nas escolas do campo. Observou-se que a Agroecologia pode e deve ser utilizada como importante ferramenta em diversos momentos no Ensino de Ciências, auxiliando no estudo de diferentes variáveis. PALAVRAS-CHAVE: Educação do Campo; Agroecologia; Ensino de Ciências. ABSTRACT Agroecology is the science that arose from the need to rethink how humans relate to nature, as well as the system of food production, rising with the expansion of agriculture. Thus, this research has developed concepts and tools to assist in Agroecology reflection of the everyday practices of students in the field. Through participatory research, the research developed into a school camp with youth from the 6th grade of elementary school. During the meetings have developed farming practices and games that brought to an end several issues that directly relate to science teaching in schools in the field. It was observed that the Agroecology and can be used as an important tool in several moments in Science Teaching, assisting in the study of different variables. KEY WORDS: Rural Education; Agroecology; Science Teaching. Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 6(1): 37-48 (2011) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 04/04/2011

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Pensar o ensino de ciências e o campo a partir da agroecologia: umaexperiência com alunos do sertão sergipanoThinking about the science’s teaching and the field from the agroecology: a fieldexperience with students from the Sergipe’s hinterland

MELO, Juliana Franco de Melo 1 , CARDOSO, Lívia de Rezende 2

1 Universidade Federal de Sergipe, Aracaju/SE - Brasil, [email protected]; Universidade Federalde Sergipe/DEDI, Aracaju/SE - Brasil e Universidade Federal de Minas Gerais/FAE, Belo Horizonte/MG -Brasil, [email protected]

RESUMOA agroecologia é uma ciência em construção que surgiu da necessidade de repensar a forma de como oser humano se relaciona com a natureza, assim como o sistema de produção de alimentos. Nessesentido, esta pesquisa buscou desenvolver conceitos e ferramentas da Agroecologia para auxiliar nareflexão das práticas cotidianas dos alunos do campo. Através da pesquisa participante, a pesquisaocorreu em uma escola do campo junto aos jovens da 6ª série do ensino fundamental. Durante osencontros, foram desenvolvidas práticas agroecológicas e jogos educativos que ao fim trouxeramdiversas questões que se relacionam diretamente ao ensino de ciências nas escolas do campo.Observou-se que a Agroecologia pode e deve ser utilizada como importante ferramenta em diversosmomentos no Ensino de Ciências, auxiliando no estudo de diferentes variáveis.

PALAVRAS-CHAVE: Educação do Campo; Agroecologia; Ensino de Ciências.

ABSTRACTAgroecology is the science that arose from the need to rethink how humans relate to nature, as well as thesystem of food production, rising with the expansion of agriculture. Thus, this research has developedconcepts and tools to assist in Agroecology reflection of the everyday practices of students in the field.Through participatory research, the research developed into a school camp with youth from the 6th gradeof elementary school. During the meetings have developed farming practices and games that brought toan end several issues that directly relate to science teaching in schools in the field. It was observed thatthe Agroecology and can be used as an important tool in several moments in Science Teaching, assistingin the study of different variables.

KEY WORDS: Rural Education; Agroecology; Science Teaching.

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 6(1): 37-48 (2011)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 04/04/2011

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IntroduçãoAtualmente, a Agroecologia é bastante debatida

em diversos segmentos e conceituada a partir dediferentes olhares. Pouco a pouco, seu campo deconhecimento vem se ampliado, dentro e fora daacademia, desenvolvendo concepções que vãoalém de uma atividade agrária equilibrada e seconforma muitas vezes como um paradigmanecessário para os desafios da produção dealimentos. Diversos autores, tais como Caporal,Costabeber & Paulus (2005), pontuamfundamentais princípios agroecológicos como, porexemplo, o resgate dos saberes, conhecimentos eexperiências dos agricultores e agricultoras,indígenas, dos povos das florestas, bem comodiversos outros atores sociais envolvidos emprocessos de desenvolvimento rural.

Outros autores como Enrique Leff (2002),Eduardo Gúzman (2001), Gliessman (2000) eMiguel Altieri (2000) são importantes nodesenvolvimento teórico e conceitual daAgroecologia e foram utilizados neste artigo parainspirar nossos olhares sobre a pesquisadesenvolvida. Todos eles discutem umaAgroecologia a partir da complexidade da relaçãoentre ser humano e a natureza, contextualizadacom as questões políticas e econômicas queterritório rural converge. Assim, como aAgroecologia possui princípios e técnicas quepodem contribuir para uma mudança dos modelosde produção agrícola, é interessante refletir qual opapel que as práticas pedagógicas possuem natransformação do atual modelo de campo,enxergando a educação nesse meio a partir deuma prática transformadora e emancipatória(CALDART, 2002).

Toda a problemática histórica de deslocamentodo centro de poder do campo para a cidade,mudança da agricultura para a indústria erecriação do campo pelo modelo exploratório eprodutivista do capitalismo, acarretou emmudanças sociais e educacionais. A partir de umprocesso dialético, a educação contribuiu para tais

modificações. A Educação do Campo, que é tantoalmejada pelos movimentos sociais do campo(MSC) e por organizações não-governamentais,trata de uma educação dos e não para os sujeitosdo campo. Isto é, essa educação opõe-se aoproblemático modelo de “educação rural” queimperou historicamente no Brasil. Uma educaçãoque seguia uma matriz curricular voltada para aperpetuação das desigualdades sociais, desoberania da cidade sobre o campo e deparadigma favorável ao agronegócio.

Por outro lado, a Educação do Campo que sealmeja é a implementada através de políticaspúblicas, construídas pelos próprios sujeitos. Éuma educação que tem a perspectiva de educaresses sujeitos para que assim eles possam searticular, se organizar e assumir a direção de seusdestinos (CALDART, 2002). Para Jesus (2004,p.3), a Educação do Campo possui uma claraintenção: “buscar alternativas a um paradigmaagrário capitalista imposto durante décadas emnosso país”. Ainda segundo essa autora, essaeducação cria condições não só de conseguirrealizar problematizações acerca das condiçõesde vida e do mundo, mas também de questionar omodelo produtivo e possibilitar a criação de novasmatrizes tecnológicas.

No âmbito do ensino de Ciências, umaeducação democrática deve refletir as formas dereelaborar didaticamente conteúdos pedagógicosespecíficos em relação à realidade doscamponeses de modo que esses não tenham quese adaptar a padrões estabelecidos por culturasurbanas distantes. O projeto político pedagógicode suas escolas deve respeitar as particularidadesdas comunidades, trabalhando conteúdosrelacionados com a realidade e respeitando ostempos locais, como por exemplo, a implantaçãodo calendário agrícola escolar (CARDOSO, 2009).É neste contexto que a Educação do Campo e omeio ambiente se cruzam. Não se pode trabalhar

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com Educação do Campo sem debater asproblemáticas do agronegócio e seus impactostanto no meio ambiente quanto nas comunidadestradicionais. Além disso, não se pode debater asproblemáticas do meio ambiente dissociada daEducação do Campo. Uma educaçãocontextualizada e pensada pelos próprios sujeitosdo campo permite que esses tornem-se indivíduoslivres, capazes de questionar a realidade e lutarpor transformação

Portanto, na presente pesquisa, objetivamosanalisar como os princípios da Agroecologia serelacionam com as experiências e saberes dosestudantes do campo e como as ferramentasagroecológicas foram experimentadas pelosalunos. A partir de tal análise, estabelecemos umdiálogo entre Agroecologia, ensino de Ciências eeducação do campo. Como trabalhamos com ajuventude campesina, que possui saberes eexperiências acerca dos modelos de agricultura,meio ambiente, educação e cultura, a metodologiaaplicada foi participativa e coletiva: a pesquisaparticipante.

MetodologiaEste trabalho foi desenvolvido no ano de 2009,

na Escola Municipal Dom José Brandão de Castro,localizado no município de Poço Redondo, altosertão em Sergipe – semi-árido nordestino,caracterizado por escassez de água, distribuiçãoirregular das chuvas e pelas desigualdadessocioeconômicas. Seu bioma, a caatinga, desdeque começou a ser ocupada e fragmentada, sofreintensas queimadas e desmatamentos para cederlugar a agricultura, pecuária e produção de lenhapara combustível, observando que atualmenteexiste pouca área ocupada pela vegetação nativa.A escola dista 3 km da sede do município, PoçoRedondo, e no mesmo prédio funciona também aEscola Agrícola Estadual Dom José Brandão deCastro, em período integral e, durante o períodonoturno, recebe os alunos do programa estadualPró-Jovem.

A Pesquisa Participante foi utilizada, aqui,como um instrumento pedagógico (e por assimser, político), participativo e científico, onde apesquisa social caminha para a transformação deuma prática. De acordo com Oliveira e Oliveira(1984), a pesquisa participante vem paracontrapor-se à pesquisa científica tradicional, quea partir da relação entre teoria e prática, e naconstrução de uma racionalidade própria, dialogacom outras formas de saberes, visando construiruma ciência popular baseada no discursoparticipativo. Tal pesquisa, baseou-se nametodologia de encontros.

No primeiro encontro foi realizada umadinâmica de Teia para a apresentação dapesquisa (LEITÃO; BARCELOS, 2005) com afinalidade de incentivar a criação de laços decompanheirismo e coletividade, necessários paraque os próximos passos ocorressem como oesperado. No segundo momento, uma ferramentade DRP (Diagnóstico Rural Participativo) foiutilizada com o intuito de que os estudantesrefletissem sobre como sua família serelacionavam com a agricultura, a forma deenxergar o mundo e debater a sua culturacamponesa (VERDEJO, 2006). Nesse caso, houvea utilização da ferramenta de “mapas depropriedade”, na qual os estudantes desenharam oambiente em que vivem, onde passam o dia etrabalham.

No segundo dia do encontro, foi desenvolvidauma atividade de ida à mata próxima à Escolacom o objetivo de trocar conhecimentos acerca doecossistema da caatinga. Nessa visita, os alunoscontaram histórias sobre o ambiente, como afamília utiliza algumas espécies e a importânciaeconômica e ambiental que elas possuem para ogrupo. Após a ida a campo, os desenhos foramobservados e relacionados com as informaçõestrocadas na caatinga, onde se observou qual arelação das espécies daquele ecossistema e suaspropriedades.

No encontro seguinte, construímos um

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“biofertilizante” que, segundo Gonçalves,Schiedeck e Schewengber (2009), são utilizadosnos sistemas de produção de base ecológica,podendo ter vários efeitos, como repelir insetos,controlar doenças e fertilizar plantas. Normalmente,são utilizados em hortaliças e fruteiras, podendoter relevância na utilização nos cultivares daprópria escola ou além de poder ser feito pelospróprios estudantes em suas propriedades. Aindaneste momento, foi construída uma composteiracom esterco de gado e matéria orgânica. Duranteessa construção, explicamos sua utilização eformas de fazer compostagens adaptadas adiferentes realidades.

No encontro posterior, foi aplicado um jogopedagógico para auxiliar no desenvolvimento deconceitos e técnicas da agroecologia. O jogopossuía cartas, com a delimitação de um sítio, comuma floresta vizinha, e um envelope com desenhosde práticas agroecológicas (trator vivo, sistemasagroflorestais, compostagem, horta orgânica),práticas industriais (queimada, desmatamento,transgênicos, agrotóxicos) e cartas neutras(galinhas, boi, vaca, árvores), ressaltando quecada carta possuía uma descrição no verso paraauxiliar a aplicabilidade dela. As cartas eramcoladas dentro do sítio de forma livre. O objetivo dojogo foi simular uma propriedade agroecológica.Cada prática – agroecológica ou industrial –possuía um valor, que era revelado apenas ao fimdo jogo de modo que cada grupo construiu seusítio de acordo com suas percepções e não deacordo com o valor das cartas. O grupo vencedorseria aquele que criasse a propriedade maisagroecológica. As cartas de práticas industriaispossuíam pontos negativos, assim os estudantespuderam debater entre si aquelas práticas e refletirestratégias que beneficiavam cultivo, ambiente esaúde da família.

Percepção acerca das propriedades e dacaatinga

Participaram da pesquisa quinze estudantes,sendo 6 meninos e 9 meninas. Os estudantesproviam de diversos assentamentos do município,como os assentamentos Cajueiro, QueimadaGrande, Barra da Onça e Che Guevara. Como jádescrito na metodologia, após a apresentação, foiproposto que os estudantes desenhassem suapropriedade a partir das ferramentas emetodologia do DRP. Os estudantes desenharamtanto os quintais domésticos, quanto os lotes, ondeeles tivessem uma relação mais próxima noambiente da sua casa.

Ficou claro na observação dos desenhos queas meninas têm menos ligação com o sistemaprodutivo da casa que os meninos. Esses, em suamaioria, desenharam o lote da família, onde serealiza a lavoura, e que, normalmente, fica distanteda residência. Todos os meninos afirmaram queajudavam o pai nos cultivos agrícolas. Por outrolado, as meninas tinham uma maior preocupaçãocom as pequenas características da casa, do quecom o ambiente externo. Além disso, não sabiam,em sua totalidade, identificar as plantas querodeavam a casa, como também não sabiam oque era produzido no lote e sua relevância para osustento da família.

Nos quintais, havia a predominância deespécies frutíferas, como goiaba (Psidiumguajava), acerola (Malpighia glabra L.), côco(Cocos nucifera  L.), mamão (Carica papaya L.) eumbu (Spondias tuberosa Arr. Cam.). A grandemaioria desenhava árvores que denominavam “pé-de-árvore” ou “pé-de-pau”, as quais representavamespécies que não oferecem frutos comestíveis esão utilizadas para sombrear a região. Do universode nove desenhos das meninas, apenas trêsapontavam plantações de hortaliças e espécies deuso mais comum utilizadas para o consumofamiliar, como verduras e legumes. Foram citadosalface (Lactuca sativa L.), couve (Brassicaoleracea L.), tomate (Lycopersicon esculentumMill.), quiabo (Abelmoschus esculentus L.

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Moench), coentro (Coriandrum sativum L.) ecebola (Allium cepa L.), sendo que três desenhosapresentaram hortaliças plantadas em recipientese pneus. Esta informação é interessante parademonstrar o limitado uso da terra pelas famílias,como também a falta de diversidade, tanto nosquintais, como nos lotes. Apenas uma estudantedesenhou um cultivo de milho vizinho à casa.Todas apresentavam flores coloridas queornamentavam as casas, diferente dos estudantesdo sexo masculino que, dos seis desenhos, cincorepresentaram a produção agrícola da família,predominando cultivo de milho.

A família é o elemento central das atividades deprodução e de seus benefícios processados emuma agricultura de base familiar. Esse fato, aliadoà forma como a família se organiza, demonstra quea agricultura familiar é mais um modo de vida doque apenas um modo de produção (OLIVEIRA;ALMEIDA; GEHLEN; 2006). Além disso, essasdiferenças entre as percepções da propriedade dasestudantes do sexo feminino e os do sexomasculino refletem uma divisão sexual do trabalho,onde os homens são responsáveis pelo trabalhoprodutivo, que está associado ao mercado, e asmulheres pelo trabalho reprodutivo, que seria odoméstico, para o consumo próprio e reproduçãoda família. As relações entre mulheres e homensna família e na organização produtiva daspropriedades não só são objetivas, como tambémimpregnadas de valores morais, éticos e religiosos,que, via de regra, são naturalizados pelosindivíduos (OLIVEIRA, 2006). É interessanteressaltar que a divisão sexual do trabalho é umprocesso que não se limita apenas a indicar osperfis de qualificação, os tipos de postos detrabalhos e o lugar de homens e mulheres nassuas ocupações, mas explicita de forma geral asrelações sociais de gênero e a divisão sexualpresentes nas relações de trabalho (CRUZ, 2005).

A partir da grande divergência observada entreos desenhos que foram construídos pelos

estudantes das suas propriedades, cabe ressaltara presença do que Cruz (2005) chama de“experiência de gênero”. Isto porque homens emulheres vivenciam de forma diferente os fatos docotidiano, inclusive quando pertencem a mesmaclasse social. Portanto, enxerga-se relaçõeshierarquizadas que fogem às questõeseconômicas e se constroem no campo dasrelações sociais, com são as de gênero. Nessecaso, a identidade sexual, que é construída a todoo momento, funciona em um sistema de relaçõessociais e a representação dessa identidadedemonstra crenças e valores, como forma deconhecimento e de significados (CRUZ, 2005).

A diferença representada nos desenhosexprime, assim, a divisão social do trabalhocentrada na diferenciação entre produção ereprodução, separando a esfera produtiva ereprodutiva. Essa divisão de setores destina àsmulheres um papel subordinado à esferaprodutiva. Afinal, até o cultivo de hortaliças nosquintais construídos pelas mulheres era deexclusivo uso interno. Ou seja, a mulher éreprodutora de costumes e valores, nunca produzpara a venda, o que a transforma na provedora dafamília. Vale destacar, ainda, a presentediferenciação entre a valorização da mão-de-obrafeminina e masculina, bem como na divisão dostrabalhos domésticos. Esse fator relaciona-se aosdiscurso generificado que distingue a práticasexual dos papéis atribuídos a homens emulheres, de acordo com seu contexto histórico ecultural. No meio rural, especificamente, a mulherocupa um lugar de invisibilidade dentro daprodução e da reprodução social do modelo deagricultura familiar e do modo de vida,naturalizando as desigualdades de gênero(FERNANDES, 2008).

Seguindo a análise dos desenhos, percebemosum desenho demonstrando milho (Zea mays)consorciado à palma (Opuntia spp) e outrodemonstrou milho consorciado ao feijão

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(Phaseolus vulgaris L.). A presença de consórciosjá identifica uma maior diversidade biológica, o quediminui a problemática com “pragas” e com “ervasdaninhas”, aumentando a diversidade produtivafamiliar. Porém, também observamos monoculturasde palma (Opuntia spp) e de girassol (Helianthusannus L.). Poucos desenhos, apenas cinco,demonstravam a presença de animais, tendoquase que predominante a presença de galinhanos quintais. De acordo com Silveira, Petersen eSabourin (2002), quintais domésticos representamum importante mecanismo de sociabilidade entrevizinhos, já que é neste ambiente que plantas einformações são trocadas. No entanto, nossodiagnóstico mostrou uma pequena diversidade deespécies e uma baixa diversidade de cultivos parao uso doméstico.

Isso acontece porque a maior parte daprodução agrícola (monocultura) nessaspropriedades é vendida para gerar renda para acompra de alimentos para a família. Esse fato poderepresentar um caso de insegurança alimentarfamiliar. Isso é um fato preocupante visto que aagricultura deveria estar intimamente relacionada àprodutividade, sustentabilidade e segurançaalimentar: o acesso de toda a população aalimentos saudáveis e limpos de acordo comMaluf, Menezes e Valente (1996). Observa-se,nessa pequena análise, o efeito das monoculturasnas culturas das famílias agricultoras, onde elas seespecializam para produzir para o mercado decommodities e abdicam de uma segurançaalimentar, tornando-se vulneráveis ao mercadoalimentício.

No segundo encontro, fomos visitar a mata quefica próxima à escola. A caatinga aindaaparentava-se um pouco verde, mas adentrandopercebia-se que já havia plantas que para resistirao calor perderam suas folhas. Paramos à sombra,embaixo de uma catingueira (Caesalpiniapyramidalis Tul.) e a primeira pergunta feita causoucerto estranhamento: o que sentiam naquela mata

e se gostavam daquela sensação. Eles seentreolharam talvez imaginando o porquê daquelapergunta, mas logo em seguida, um garoto alto ecom rosto de rapaz já crescido respondeu quegostava daquele ambiente porque era silencioso edava para ouvir o barulho dos pássaros. Outragarota gostava porque ouvia o barulho do ventobatendo nas folhas. Outros afirmaram que era umambiente tranqüilo e bastante propício para pensarna vida.

O objetivo dessa pergunta era observar qualsentimento eles possuíam pelo ambiente em queviviam e assim relacionar esse sentimento com apredominância das espécies na propriedade delese no cotidiano. Em seguida, pedimos queobservassem a vegetação e pensassem nasespécies que existiam naquele meio que tambémpredominavam em suas casas. Em quase coro, amaioria respondeu catingueira. Outrossimplesmente responderam “mato”, o que excluitoda a diversidade presente no ecossistema,caracterizando as espécies diversas como apenasuma, uniformizando-as. Eles reconheciam asespécies da caatinga e sabiam seus usos, comomedicinal ou madeireiro, mas não davam o devidovalor àquele bioma como um espaço ricoculturalmente e biodiverso, necessário para asobrevivência dos seres vivos. Além disso, nãovalorizavam os saberes que possuíam acercadaquele ecossistema.

Uma planta herbácea bastante encontrada foi ovelame (Croton campestri) e a maioria afirmou quea possuía em casa, sendo ela utilizada comofitoterápica para a cura de hepatite e colesterolatravés da ingestão de chás. Outras plantascitadas foram o umbuzeiro (Spondias tuberosa Arr.Cam.), algaroba (Prosopis juliflora), juremas(Mimosa acustitipula, M. Verrucosa e M. cf.hostilis), aroeira (Astronium urundeuva) e capim.Pedimos para que caminhassem pela mata ecoletassem partes de plantas que conheciam esabiam sua utilidade, para que em seguida

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compartilhassem com todos. A grande maioriacoletou espécies que possuíam uma importânciamedicamentosa na região. Muitos estudantestrouxeram partes da catingueira e afirmaram quese fazia chá da flor e que curava inclusive umadoença de pele popularmente denominada “fogoselvagem”, que se caracteriza por lesões na pelecom sensação de ardência e queimação. É umadoença comum no meio rural, sua causa ainda éestudada e, somente pelos relatos dos alunos, nãopodemos identificar o tipo específico da doença eseu nome científico.

Outros trouxeram aroeira, afirmando que seuchá curava inflamação e dor de dente, ou poderiase fazer lambedores dessa espécie. Lambedoressão preparações que tem como base o açúcar,rapadura ou mel com plantas medicinais que sãoconhecidas pela cura de problemas respiratórios,usados popularmente no tratamento de dores degarganta, tosse e bronquite. Das juremasencontradas na região, a “rapa”, fragmentos docaule, é utilizada para banhos ginecológicos.Apenas um estudante trouxe o caule de umaespécie chamada de pinhão (Jatropha sp.),utilizada para parar sangramentos e coagular osangue.

Segundo Drummond (2000), a caatinga tem umgrande potencial medicamentoso de uso popular.Isso se confirma com as falas dos estudantes, quesempre associavam o uso das plantas com a curade doenças. De acordo com esse autor, todas aspartes são utilizadas e comercializadas como asfolhas, o caule e as raízes. Dentre as espéciescitadas, também há outras espécies que possuemuma grande importância para os assentados, quesão as de grande potencial madeireiro. Essasespécies, normalmente lenhosas, são utilizadaspara a produção de carvão, lenha e estacas. Entreelas, destaca-se a catingueira, jurema, aroeira,umbuzeiro ou a algaroba.

Simulando uma propriedade agroecológica

Por saber do pouco tempo disponível,deixamos os materiais do biofertilizante e dacompostagem prontos e de fácil acesso. Orecipiente foi adquirido anteriormente na cidade eo esterco foi cedido por um agricultor da região. Aolongo da prática, fizemos questionamentos acercada utilidade daquela técnica, mas poucosresponderam, apesar de mostrarem-seinteressados pela alternativa apresentada.Fizemos, primeiramente, o biofertilizante aeróbico,que é composto apenas por esterco de gadobovino (25%) e água (75%). Ao utilizá-lo, orendimento da colheita pode aumentar entre 20 a30%, pois ele estimula o crescimento das plantas,ativa a biota do solo restabelecendo suafertilidade, fortalecendo-o contra doenças (LEGAN,2007). Durante a construção, debatemos como seaplica e para quê. A primeira impressão observadafoi a surpresa de se adquirir um fertilizante demaneira natural e sem custos adicionais.

Na compostagem, atividade seguinte, utilizou-se apenas matéria orgânica, esterco curtido eágua. Existem diversas formas de se fazer umacompostagem. É interessante fazê-la utilizando osmateriais disponíveis na área, evitando uma maiordependência externa. De acordo com Legan(2007), o composto é uma cultura viva, onde osmicroorganismos transformam a matéria orgânicamorta em uma matéria marrom, quebradiça que sepode chamar de húmus. Nessa construção, osestudantes se mostraram mais interessados efizeram sozinhos todas as camadas. Ao fim daspráticas, questionamos a utilidade delas e algunsestudantes responderam exatamente para queelas serviam. Entretanto, outros aindademonstravam pouca convicção de que aquilorealmente se tornaria um adubo orgânico rico emnutrientes. Portanto, para compreender aimportância das técnicas é necessário que osjovens vivenciem sua aplicabilidade e observem odesenvolvimento dessas em suas propriedades.

Em seguida, voltamos para a sala de aula e

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sentamos em círculo para que pudéssemosconversar sobre o uso de agrotóxicos em seuscultivos familiares. No momento de relatar como éa produção de alimentos de casa e dacomunidade, poucos se manifestaram. Duasestudantes afirmaram que em suas casas, desde otempo das avós, alguns resíduos orgânicos sãoincorporados ao solo e, com a terra bem nutrida,não era necessário usar adubos químicos nem“venenos” – os agrotóxicos.

Muitos estudantes disseram que seus paisutilizam “veneno” no milho, feijão e abóboraquando dá lagarta, porque não havia alternativa.Interessante ressaltar que a maioria que confessouusar agrotóxicos foram estudantes do sexomasculino. Poucas estudantes do sexo femininoafirmaram com convicção a utilização dessesprodutos. Mas quando perguntamos se elesachavam correto, todas elas afirmaram que não,mas alguns meninos ainda afirmaram que sim,porque se não havia alternativa, tinha que usar oagrotóxico, argumentando que, caso contrário, nãohaveria colheita, o que não passa de uma ideiaderivada da Revolução Verde e propagada pelaextensão rural1.

A grande maioria demonstrou uma certezaquando questionados se havia alguma alternativapara isso. Porém, para quê ter alternativa aoagrotóxico, que normalmente são desenvolvidasem meios acadêmicos, quando esta não chegaaos agricultores e às escolas? É fato que osestudantes conheciam as conseqüênciasprejudiciais dos agrotóxicos para os sereshumanos e para o meio ambiente, mas na falta deacesso às alternativas claras é quase impossíveldeixar de utilizá-los e sacrificar a colheita que ébase de sustento da família do campo.

É impossível uma transformação de enfoqueagroecológico no campo brasileiro sem analisar aextensão rural adotada atualmente. A assistênciatécnica, que é precária, provida aos trabalhadoresrurais, sempre contribuiu para a expansão dos

pacotes tecnológicos, criando a necessidadefundamental de se utilizar agrotóxicos empequenas culturas. Caporal e Costabeber (2000)afirmam que é necessário não se deixar levar peloimobilismo conservador que aprisiona asorganizações públicas de extensão rural, ou seja,é importante tomar ações que transformem ocenário do campo e tornar esta extensão ruralconservadora que atende aos grandes interessesem uma extensão rural sustentável.

Durante o período de visitas à Escola e deatividades, notamos que os estudantes nãoassociam a propriedade da casa, os cultivosagrícolas e as práticas culturais comopertencentes à natureza. Isso pode ocorrer devidoa uma grande divisão reproduzida na própriaescola, onde as práticas ditas como EducaçãoAmbiental limitam-se a determinadas aulas deCiências. Mesmo considerada rural, a escolaaplica projetos pedagógicos elaborados emcentros urbanos, onde o meio natural é enxergadocomo um ambiente distante e pouco freqüentado.Nas escolas do campo, o ecossistema permeiatoda a vida dos estudantes, seja na escola ou emcasa, e, no caso do presente estudo, o bioma dacaatinga está presente a todo o momento. Mas,devido a essa forma de percepção que éreproduzida em todos os campos, os estudantes eos agricultores também a reproduzem em seuscultivares, não adaptando aquela forma deproduzir alimentos à realidade do ambiente.

Além disso, destacamos que essa forma deseparar o homem da natureza advoga a favor da“Revolução Verde”. Afinal, a idéia de que fomoscriados por Deus para explorar o meio naturalcomo recurso nos é incutida desde a revoluçãoindustrial, trazendo “intrinsecamente, em suaconcepção, valores antropocêntricos, consumistas,fragmentados e por consequência destrutivosambientalmente” (GUIMARÃES, 1995, p. 33).Assim, ao separarmos da natureza, incute-se aconcepção de que devemos dominá-la e explorá-la

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para um “aparente benefício”. Longe disso, hojesabemos que a problemática ambiental não éexclusivamente natural ou exclusivamente socialou cultural. A reflexão acerca da questão ambientalrequer uma nova concepção de homem/natureza(GONÇALVES, 2000).

Após o debate sobre agrotóxicos, iniciamos ojogo. Este, que tinha o objetivo de provocar nosestudantes uma reflexão e questionamentosacerca de novas alternativas e também dasproblemáticas que algumas práticas podem gerar,foi bem aceito e todos demonstraram grandeinteresse em jogar e ganhar. Vale destacar quejogos auxiliam no desenvolvimento cognitivo dafaixa etária pesquisada neste estudo por propiciarsituações-problemas que estimulam o aprendizado(MACEDO, PETTY e PASSOS, 2000). Com esseintuito, foram divididos quatro grupos, com cinco ouquatro estudantes em cada, e todos possuíam ocartaz que representava uma área de um sítio eum envelope com as cartas que representavam aspráticas.

Apesar das cartas possuírem uma ilustração nafrente e sua definição no verso, todos os grupostiveram questionamentos acerca do funcionamentode determinadas práticas. Deixamos livres paraque eles planejassem suas propriedades efornecemos giz de cera para que eles pudessemincrementar seus sítios, com cercas divisórias,celeiros, casas, etc. Apenas um grupo se limitouapenas às figuras e não desenhou nada além doque já havia no cartaz. Havia um grande númerode repetições das cartas para que eles pudessemrepetir e também optar em não utilizardeterminadas cartas.

Ao final do jogo, em um círculo, examinamoscada sítio e contamos os pontos em conjunto. Aocontarmos os pontos juntos, as cartas iam sendoexplicadas e sempre perguntávamos a eles qual afunção daquela prática apontada. Nos últimossítios, notamos que eles ainda não sabiam osnomes das práticas, mas sabiam perfeitamente asua aplicabilidade. Apenas um grupo utilizou

algumas práticas consideradas não-sustentáveis,como a monocultura de transgênicos e o trator. Acarta da queimada ou desmatamento não foiutilizada por nenhum grupo. Com esses bonsresultados, constatamos que é sempreinteressante a utilização de jogos, porque osestudantes podem vivenciar aulas diferentes,interagir entre eles, sendo necessária acoletividade para conseguir jogar. O empregodesses jogos motiva o aluno e é de grandeimportância no processo de ensino-aprendizagem.Segundo Bortoloto, felício e Campos (2003), jogospodem favorecer a construção pelos alunos deseus conhecimentos, num trabalho em grupo, bemcomo a socialização de conhecimentos prévios esua utilização para a construção deconhecimentos novos e talvez mais elaborados.

Com o uso de um jogo didático, podem seratingidos diversos objetivos que são relacionadosà cognição, que é o desenvolvimento dainteligência e da personalidade, fundamentais paraa construção de conhecimentos; afeição, sendoeste o desenvolvimento da sensibilidade e daestima e atuação no sentido de estreitar laços deamizade e afetividade; socialização, simulação devida em grupo; motivação, que envolve a ação, odesafio e a mobilização da curiosidade e por fim, acriatividade (BORTOLOTO; FELÍCIO & CAMPOS;2003). De acordo com Moratori (2003), um jogo,para que possa ser útil em um processoeducacional, ele deve promover situaçõesinteressantes e também desafiadoras para aresolução de problemas, permitindo que osestudantes se autoavaliem de acordo com seusdesempenhos e, neste caso, os alunos puderamrefletir como são os cultivos em seus terrenos ecomo gostariam que fossem com práticas maissustentáveis.

Ao término do jogo, fizemos uma avaliação dasaulas e a grande maioria dos estudantesparticipou. Questionamo-los sobre o que haviasido interessante, o que eles não gostaram e oque poderia ter sido feito nesses dias. Todos

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acharam pouco tempo e gostariam de terdesenvolvido na prática outras ferramentasagroecológicas, mas mesmo assim, demonstraramgrande prazer pelas atividades desenvolvidas. Aofinal, a professora da disciplina de Ciênciasmotivou-se e comprometeu-se a construir umahorta orgânica e de ervas medicinais com osestudantes para auxiliar na cantina da escola epara desenvolver atividades pedagógicas com osestudantes nas aulas de ciências. Além disso, foiuma atividade que possibilitou um debate sobreformas alternativas de se relacionar com aagricultura, já que esta é bastante presente nocotidiano das comunidades daquela região, eevidenciou o imperativo de se desenvolver umaagricultura integrada com o ambiente, semdependência de insumos químicos e que promovaa melhoria da qualidade de vida dos camponeses.

Considerações finaisOs resultados obtidos permitem-nos concluir

que a Agroecologia pode e deve ser utilizada emescolas do campo de maneira transdisciplinar enão apenas na disciplina de Ciências. AAgroecologia permite o estudo e a abordagem dediferentes variáveis, sociais, econômicas eambientais. Assim, a construção de umconhecimento agroecólogico para o semi-árido,pode ser uma ferramenta de transformação social.Observamos que os estudantes motivaram-se comas atividades porque estas correspondiam aosseus cotidianos e realidades, apesar de termosnotado, nessa turma específica, poucas práticassustentáveis.

Todo o saber tradicional e vontade que elesdemonstraram durante as atividades, podem servalorizados e utilizados para a construção deprojetos dentro da escola. Com a aprendizagem edesenvolvimento de novas técnicas aplicadas, bemcomo com a realização de estudos teóricos acercada Agroecologia, os estudantes poderão levar às

suas comunidades e famílias tais práticas,adaptando-as inclusive às diferentes realidades.Conseqüentemente, isso proporcionaria uma maiorautonomia no âmbito familiar na questão demedicina popular, sementes e do próprioautosustento com uma alimentação mais rica ediversificada. Claro que uma assistência técnicavoltada para práticas mais sustentáveis éfundamental nesse processo de transição. Assim,esse estudo evidenciou uma grandepotencialidade dentro deste contexto educacional.Os estudantes demonstraram um notório sabertradicional sobre a agricultura, o bioma da caatingae a região do sertão, mas que frequentemente énegligenciado nos currículos formatados, mas quecontribuiriam no processo de construção doconhecimento.

Entretanto, deve-se deixar claro que, para seconstruir uma Agroecologia que transforme asescolas rurais, é necessário que ocorra tambémuma educação transformadora. Ou seja, osconteúdos dos livros didáticos, que por mais quesejam produzidos em outra realidade, devem sersempre contextualizados e a formação do corpodocente precisa ser adequada. No caso do ensinode Ciências, deve-se ter mais atenção, pois osconteúdos devem ser abordados, refletidos econstruídos de forma crítica. Afinal, apesar de aescola estudada ser rural, ela não possuía umprojeto político pedagógico comprometido com osprincípios da Educação do Campo. Esse fatoesteve relacionado a algumas problemáticas: aprodução de conhecimento do território não serelacionava à cultura dele e ao seu ecossistema;as necessidades camponesas e seusquestionamentos não eram atendidos e debatidosno âmbito escolar.

A escola pesquisada não possuía recursos que,convencionalmente, auxiliam na produção doconhecimento, tais como laboratório deinformática, laboratório de ciências e recursos

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didáticos. Porém, queremos destacar, por fim, quea escola possuía uma grande área de caatingapreservada que pode ser, potencialmente, utilizadapelos educandos como laboratório natural eespaços para a implementação de projetos dentroda escola que atualmente permanecem ociosos.Desse modo, a problemática de implementação daAgroecologia e de uma Educação do Campotransformadora não perpassa uma questão deespaço físico ou de instalações. Pensar o ensinode Ciências e o Campo a partir da Agroecologiarequer a construção de um projeto pedagógico eda tão esperada vontade política.

Notas1 A inevitável utilização dos agrotóxicos sempre

foi uma bandeira da Revolução Verde, ratificadapelas atividades científicas e disseminada pelaextensão rural e assessoria técnica, que suprimemos saberes tradicionais agrícolas acerca dafertilidade do solo e do controle de espécimes(que podem provocar impactos na produtividadedas culturas agrícolas), e impõem o uso de umpacote tecnológico, dificultando a transferência detecnologias alternativas.

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