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1 Lei de Abuso de Autoridade (PLS 85/2017 PL 7.596/2017) frente ao direito à independência judicial Abuse of Authority Act (PLS 85/2017 - PL 7.596/2017) facing the right to judicial independence REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFRGS NÚMERO 37 Claudia Maria Barbosa Pontifícia Universidade Católica do Paraná Gilberto Andreassa Junior Pontifícia Universidade Católica do Paraná

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Lei de Abuso de Autoridade (PLS 85/2017 – PL 7.596/2017) frente

ao direito à independência judicial

Abuse of Authority Act (PLS 85/2017 - PL 7.596/2017) facing the

right to judicial independence

REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFRGS

NÚMERO 37

Claudia Maria Barbosa Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Gilberto Andreassa Junior Pontifícia Universidade Católica do Paraná

264

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

Lei de Abuso de Autoridade (PLS 85/2017 – PL 7.596/2017) frente ao direito à independência

judicial

Abuse of Authority Act (PLS 85/2017 - PL 7.596/2017) facing the right to judicial independence

Claudia Maria Barbosa*

Gilberto Andreassa Junior**

REFERÊNCIA

BARBOSA, Claudia Maria; ANDREASSA JUNIOR, Gilberto. Lei de Abuso de Autoridade (PLS 85/2017 – PL

7.596/2017) frente ao direito à independência judicial. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n.

37, p. 263-277, dez. 2017.

RESUMO ABSTRACT

O presente artigo aborda a complexidade que envolve a

independência judicial em contraposição ao projeto de lei

que define os crimes de abuso de autoridade. Após um

histórico acerca da teoria da separação dos Poderes, foi

descrito o modo como foi recepcionada a independência

do Poder Judiciário no ordenamento jurídico brasileiro.

Neste contexto, ao final do texto foram analisados os

tópicos mais importantes do PLS 85/2017 (PL

7.596/2017). Assim, diante da referida problematização,

buscou-se, com base na doutrina e na lei, ainda que

sucintamente, evidenciar a importância de uma nova lei

que limitará, tão somente, atuações políticas e ilegais por

parte dos magistrados. No que tange ao método utilizado

(hipotético-dedutivo), este ocorre com revisão

bibliográfica e estudo de casos.

This article addresses the complexity surrounding judicial

independence as opposed to the act that defines crimes of

abuse of authority. After a history about the theory of the

separation of Powers, it was described how the

independence of the Judiciary was received in the

Brazilian legal system. In this context, the most important

topics of PLS 85/2017 (PL 7.596/2017) have been

analyzed at the end of the text. Thus, given the

aforementioned problematization, it was sought, based on

legal doctrine and on the aforementioned act, although

succinctly, to highlight the importance of a new act that

will restrain, only, political and illegal actions by the

magistrates. Regarding the method used (hypothetical-

deductive), it is applied with a bibliographic review and

case study.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS

Abuso de autoridade. Independência judicial. Separação

dos Poderes.

Abuse of authority. Judicial Independence. Separation of

Powers.

SUMÁRIO Introdução. 1. Independência judicial aos olhos da Teoria do Estado e do Direito. 1.1. A teoria da separação dos

Poderes: do estado liberal ao estado democrático de direito, do positivismo à politização da justiça. 1.2. A

independência judicial no Brasil. 2. Lei de Abuso de Autoridade (PLS 85/2017 – PL 7.596/2017). Conclusão.

Referências.

* Pós-doutora em Direito pela York University, Canadá. Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa

Catarina (UFSC). Professor titular de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). ** Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Mestre em Direito pela UniBrasil.

Membro honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil.

265

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

INTRODUÇÃO

Ultimamente, muito se discute acerca do

projeto de lei que define os crimes de abuso de

autoridade. Há, na visão de muitos, uma

incompatibilidade entre o projeto apresentado e

aprovado no Senado Federal, e a prerrogativa

dos magistrados à independência em face de

aspectos externos e internos.

O artigo procura responder ao seguinte

questionamento: com a promulgação da lei de

abuso de autoridade (PLS 85/2017 – PL

7.596/2017), restará afetada a independência

judicial?

Em momento inicial, através de uma

análise histórica, será abordada a teoria da

separação dos Poderes, isto é, será descrito o

movimento do Estado Liberal ao Estado

Democrático de Direito, do positivismo jurídico

à politização da justiça.

Constata-se que a atividade política da

jurisdição constitucional se realiza, na

atualidade, a partir de um desenho institucional

que viabiliza o exercício desta atividade.

Mais à frente, busca-se demonstrar como

funciona a questão da independência judicial no

Brasil.

A partir da segunda metade do século XX,

foi de fundamental importância assegurar aos

magistrados total independência em suas

decisões, sobretudo porque muitas delas teriam

impacto nos demais Poderes.

A independência das Cortes de Justiça foi

influenciada pela Declaração Universal dos

Direitos Humanos e é resultado de uma longa

construção que teve como objetivo a garantia do

direito de minorias e a concretização de direitos

fundamentais.

Promulgada em 1979, a Lei Orgânica da

Magistratura Nacional reforçou a ideia de que a

atuação dos juízes deveria ser imparcial e

independente. Ademais, já estando em vigor a

Constituição Federal de 1988, tem-se a

independência judicial como algo inerente e

fundamental para atuação da magistratura.

Neste contexto, e adentrando ao final do

ensaio, procura-se analisar os aspectos mais

relevantes da lei de abuso de autoridade,

chegando-se à conclusão de que não há, em um

único artigo do projeto, dispositivo que

prejudique e interfira na independência judicial,

ou fundamento que desrespeite normas

constitucionais e infraconstitucionais.

No que toca ao método adotado para a

investigação (hipotético-dedutivo), este se dará

com revisão bibliográfica e estudo de casos.

1 INDEPENDÊNCIA JUDICIAL AOS

OLHOS DA TEORIA DO ESTADO E DO

DIREITO

É possível afirmar que a independência

judicial, nos moldes que é vista atualmente,

surgiu de uma nova ordem constitucional

delineada, principalmente, no período pós-

guerra. Verificou-se, após um tempo de defesa

ao positivismo jurídico, ou melhor, à legalidade

extrema, a necessidade de interpretação das

normas por parte dos magistrados, a fim de

garantir direitos de minorias e de se concretizar

direitos fundamentais.

Esta possível interpretação da lei gera a

necessidade de uma efetiva independência aos

juízes, fato constatado e defendido na Lei

Orgânica da Magistratura Nacional (Lei

Complementar nº 35/1979) 1 e na própria

Constituição Federal de 1988. 2 Referido tema,

1 Ex. Artigo 41, da Lei Complementar nº 35/1979: Salvo

os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o

magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas

opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que

proferir. 2 Aqui, não há previsão expressa. Todavia, através de uma

leitura moral da Constituição Federal, percebe-se que,

implicitamente, esta foi a ideia da Constituinte. Nas

palavras de PETER RUSSELL, fato semelhante ocorre no

Reino Unido, Israel e Nova Zelândia. (RUSSELL, Peter H.

Toward a general theory of judicial independence.

Judicial independence in the age of democracy: critical

266

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

inclusive, possui íntima relação com o que se

chama de ativismo judicial, judicialização da

política3 e politização da justiça.

Pois bem. Feita a introdução, faz-se

necessário um breve relato histórico acerca da

separação dos Poderes. Após, será analisada a

independência judicial no Brasil.

1.1 A teoria da separação dos poderes: do Estado

Liberal ao Estado Democrático de Direito, do

positivismo à politização da justiça

A atividade política da jurisdição se

realiza, hodiernamente, a partir de um desenho

institucional que viabiliza o exercício desta

atividade. Porém, nem sempre foi assim,

conforme se verifica a seguir.

O princípio da separação dos Poderes

foi elaborado, como teoria política, na obra de

John Locke (1689).4 Em período próximo e com

parecidos ideais, nasce o discurso de

Montesquieu (1748). 5 Para ambos, a teoria da

separação dos Poderes foi concebida para

assegurar a existência de um governo moderado,

mediante distribuição das atividades do Estado e

perspectives from around the world. The University Press

of Virginia, 2001, p. 22). 3 “A judicialização, como demonstrado acima, é um fato,

uma circunstância do desenho institucional brasileiro. Já o

ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e

proativo de interpretar a Constituição, expandido o seu

sentido e alcance”. (BARROSO, Luís Roberto. O controle

de constitucionalidade no direito brasileiro. 6. ed. rev. e

atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 372). Ainda, “não

obstante ser um fenômeno atual, o discurso muitas vezes

confunde a ideia de judicialização da política com a ideia

genérica de ativismo judicial, tanto que se tem utilizado o

termo de judicialização de megapolítica (ou de

macropolítica) para distingui-lo da judicialização da

política genérica”. (BARBOZA, Estefânia Maria de

Queiroz; KOZICKI, Katya. Judicialização da política e

controle judicial de políticas públicas. Rev. direito GV

[online], v. 8, n.1, p. 61, 2012). 4 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução

de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 5 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de. O

espírito das leis. Tradução de Pedro Vieira Mota. 9. ed.

São Paulo: Saraiva, 2008.

consequente controle recíproco entre suas formas

de expressão.

A teoria somente foi concebida em

contraposição ao absolutismo defendido por

Thomas Hobbes (1651).6 Para o autor, o poder é

exercido pelo soberano (monarca) mediante a

submissão dos indivíduos e é usado para reprimir

os conflitos humanos.

Superando a ideia de Hobbes,

Montesquieu afirma que nenhuma sociedade sem

governo pode subsistir, discorrendo sobre a

importância das leis para a garantia da vida em

sociedade.7

Portanto, a teoria da separação dos

Poderes foi concebida para assegurar a existência

de um governo moderado, mediante distribuição

de atividades do Estado e consequente controle

recíproco entre suas formas de expressão. Trata-

se da tentativa de contenção do poder pelo poder.

Percebe-se, nos estudos de Locke e

Montesquieu, que a teoria da separação dos

Poderes foi elaborada e sustentada a fim de

conferir proteção aos direitos fundamentais de

primeira geração contra as iniciativas arbitrárias

do Estado. Ou seja, as concepções dos autores

acabaram por influenciar as Constituições

liberais.

O modelo do constitucionalismo liberal

preocupava-se exclusivamente em proteger o

indivíduo da ingerência do Estado:

A teoria do Estado com poderes divididos

conquistou prestígio na doutrina constitucional

do liberalismo porque se consolidou como

importante mecanismo de garantia das

liberdades individuais ou mais precisamente

como penhor dos recém-adquiridos direitos

políticos da burguesia frente ao antigo poder das

realezas absolutas. O liberalismo foi a doutrina

política que fundamentou a construção da teoria

do Estado e do Direito. Um Estado

juridicamente limitado pela Constituição e

ideologicamente assumido pela doutrina liberal.

6 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret,

2006. 7 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de. op.

cit., p. 83-86.

267

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

Cuidava-se de garantir a liberdade do indivíduo

e da sociedade frente ao Estado (...). Ao Estado

liberal, sempre juridicamente controlado, não

cabe exercer mais do que as seguintes

atividades; manter a ordem interna e conduzir a

política exterior.8

Não obstante, o pensamento abordado

foi alterado com a Revolução Industrial e com o

surgimento do sufrágio universal. Na realidade, o

enfraquecimento do Estado Liberal começa

quando as grandes empresas começam a ser

monopolistas e aniquilam a concorrência. Neste

ponto surge o proletariado que prega um Estado

Social - também chamado de Estado

Providência, Estado de Serviço, ou Welfare State

- contra a autorregulação do mercado.9 A ação

do Estado torna-se imprescindível para a

correção dos desvios existentes no meio social.

Na visão da doutrina, “a transição entre

Estado Liberal e o Estado Social promove

alteração substancial quanto à concepção de

Estado e de sua finalidade”.10

Junto com este Estado social nasce um

novo sistema ético de referência, baseado na

proteção dos direitos humanos. Inclusive, a partir

de 1948 – época em que já se fazia presente em

diversos países o Estado Social –, com a

assinatura da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, os Estados se comprometeram a

assegurar novos bens da vida, indispensáveis

para a sobrevivência da humanidade.11

Destarte, a estabilidade objetivada no

Estado Liberal é substituída pelo dirigismo

8 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do

Poder Executivo. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2011, p. 34-35. 9 “A crise recorrente do capitalismo, o sufrágio universal,

as reivindicações da classe operária, as revoluções

socialistas, a passagem da empresa individual para a

coletiva e da concorrência para o oligopólio, a emergência

da sociedade de massas e a consequente urbanização pela

qual passou o mundo, esses dados todos, somados a outros,

concluíram por forçar o nascimento de um novo tipo de

Estado”. (Ibidem, p. 40). 10 CANELA JUNIOR, Osvaldo. Controle judicial de

políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 70. 11 Ibidem, p. 71.

estatal, alterando-se a concepção da teoria da

separação dos Poderes:

No Estado liberal, o objetivo da teoria da

separação dos poderes, consoante já assentado,

era o de evitar a concentração do poder estatal, a

fim de que os direitos fundamentais de primeira

geração fossem assegurados. O Estado, na

premissa liberal, é um elemento catalisador do

poder, instrumento para a sua contenção, em

estrito respeito à liberdade individual. No

Estado social, este objetivo permanece, mas a

ele é acrescentado o desiderato de realização

dos direitos fundamentais de segunda e outras

gerações, com o propósito de se assegurar a

igualdade substancial entre os cidadãos. De uma

conduta meramente negativa, passiva, o Estado

assume, também, uma conduta pró-ativa.12

Como consequência deste Estado

Social, surge a nomenclatura do Estado

Democrático de Direito, a qual perdura até a

presente data no Brasil.13

Percebe-se que “a separação foi

historicamente necessária quando o poder pendia

entre governantes que buscavam recobrar suas

prerrogativas absolutas e pessoais e o povo que,

representado nos parlamentos, intentava dilatar

sua esfera de mando e participação na gerência

dos negócios públicos”14.15

Outra teoria da separação dos Poderes

foi elaborada por Alexander Hamilton, James

Madison e John Jay, os quais escreveram e

publicaram 85 artigos argumentando

favoravelmente em relação à promulgação da

Constituição Norte Americana. A coletânea

destes trabalhos deu origem ao livro “O

12 Ibidem, p. 72. 13 Estado Democrático de Direito: Fundado não mais no

princípio da legalidade, mas no princípio da

constitucionalidade. Ademais, não só procura garantir a

liberdade, mas também a igualdade. 14 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. 13.

tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 146. 15 Percebe-se, pela leitura histórica, que no Estado Liberal

havia uma preeminência do Poder Legislativo, enquanto

que no Estado Social havia uma supremacia do Poder

Executivo. Já no Estado Constitucional, prevalece, de certa

forma, os mandamentos do Poder Judiciário.

268

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

Federalista”, razão porque os autores são

chamados de “Os Federalistas”.16

Referidos autores defendiam a harmonia

entre os Poderes e afirmavam que não seria

necessária uma independência, mas sim uma

interdependência entre as funções do Estado.

Na atualidade, parece claro que se deve

trabalhar com a máxima efetividade da

Constituição e com a harmonia (pesos e

contrapesos - check and balance) entre os

Poderes. Isto, inclusive, remete ao art. 2º da

Constituição Federal que descreve: “São Poderes

da União, independentes e harmônicos entre si, o

Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Paulo Bonavides afirma que

“numa idade em que o povo organizado se fez o

único e verdadeiro poder e o Estado contraiu na

ordem social responsabilidades que o Estado

liberal jamais conheceu, não há lugar para a

prática de um princípio rigoroso de separação”.17

Bruce Ackerman, na mesma linha

de pensamento, delimita que “a separação dos

poderes é uma boa ideia, mas não há nenhuma

razão para supor que os escritores clássicos

esgotaram a sua excelência”.18

Com base nas notas anteriores, em

especial na máxima efetividade da Constituição,

pode-se afirmar o porquê da

judicialização/ativismo ter se tornado parte

significativa e integrante do ordenamento

jurídico brasileiro.

A tendência para a

constitucionalização de direitos e a fortificação

do Judiciário demonstra-se como um produto

inevitável de uma universal priorização dos

direitos humanos após a Segunda Guerra

Mundial. Democracia não é equivalente à regra

16 HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON,

James. O Federalista. 2. ed. Campinas: Russel Editores,

2005. 17 BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p. 146. 18 ACKERMAN, Bruce. A nova separação de poderes.

Tradução de Isabelle Maria Campos Vasconcelos e Eliana

Valadares Santos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.

113.

da maioria. Em uma real democracia, as

minorias devem estar protegidas através de uma

Constituição escrita, cabendo aos juízes, que não

estão sujeitos às pressões dos partidos políticos,

aplicar estes direitos, ainda que de forma

ativista.19

Mauro Cappelletti discorre que a

criatividade constitui um fator inevitável da

função jurisdicional, o que não torna os

julgadores, necessariamente, legisladores. De

fato, os juízes estão constrangidos a ser criadores

do direito, law makers. “Efetivamente, eles são

chamados a interpretar e, por isso,

inevitavelmente a esclarecer, integrar, plasmar e

transformar, e não raro a criar ex novo o

direito”.20

Já adentrando ao século XXI – ao

que parece, ainda no Estado Democrático de

Direito –, percebe-se que o Poder Judiciário,

tomado por um sentido popular e midiático de

justiça, começa não só a atuar de forma ativista,

mas sim de forma política (politização da

justiça), ainda que em algumas situações isto

gere o afastamento da lei.21

1.2 A independência judicial no Brasil

Através de um formato constitucional

que possibilita o exercício ativista/político por

parte do Judiciário, se fez necessário, a partir da

segunda metade do século XX, assegurar aos

magistrados total independência em suas

19 HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and

consequences of the new constitutionalism. Harvard

University Press, 2007. 20 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto

Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 73-74. 21 Para PEDRO SERRANO, o Estado de Exceção “estará

presente na jurisdição quando suas decisões se

apresentarem como mecanismos de desconstrução do

direito, com finalidade eminentemente política, seja pela

suspensão da própria democracia, seja pela suspensão de

direitos da sociedade ou parcela dela, como de fato ocorreu

e ainda ocorre no Brasil em inúmeras situações”.

(SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e

golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e

exceção. São Paulo: Alameda, 2016, p. 104).

269

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

decisões, sobretudo porque muitas delas teriam

impacto nos Poderes Executivo e Legislativo.

A independência das Cortes de Justiça,

no Brasil, foi influenciada pela Declaração

Universal dos Direitos Humanos (1948) 22 e é

resultado de uma longa construção que teve

como desiderato principal a garantia do direito

de minorias e a concretização de direitos

fundamentais. Além disso, na origem, a

independência judicial significou a emancipação

do Judiciário face ao Executivo, na busca de uma

superação da chamada “justiça de gabinete”.23

A Lei Orgânica da Magistratura

Nacional, promulgada em 14 de março de 1979,

reforçou a ideia de que a atuação dos juízes

deveria ser imparcial e independente. Inclusive,

passado certo período histórico e já estando em

vigor a Constituição Federal de 1988, delimita-se

a independência judicial como algo inerente e

fundamental para atuação da magistratura.

A independência judicial é estabelecida

constitucionalmente de duas formas distintas:

objetivamente, a independência se dá com

fundamento no art. 2º, da Constituição Federal

(relação entre os Poderes); subjetivamente, a

independência se dá em relação aos seus

próprios membros. Aqui, pode-se estabelecer um

aspecto externo e outro interno. Exteriormente,

todo juiz é independente perante a administração

pública e os demais Poderes. Já internamente, os

juízes são independentes entre si, não havendo

subordinação – ressalvando-se os casos previstos

em lei onde os juízes devem seguir,

22 Art. 10º da DUDH: Toda a pessoa tem direito, em plena

igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente

julgada por um tribunal independente e imparcial que

decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de

qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja

deduzida. 23 Vale mencionar que a independência do Poder Judiciário

já era defendida por Rui Barbosa no fim do século XIX.

Extrai-se da revisão criminal nº 215 que a criminalização

da interpretação do Direito “faria da toga a mais humilde

das profissões servis”. (Rui Barbosa. Obras Completas. v.

XXIII, t. III, p. 228).

obrigatoriamente, orientação jurisprudencial dos

tribunais superiores.

Antoine Garapon já afirmara que,

“tradicionalmente, distinguem-se a

independência externa, qual seja, a liberdade de

que goza globalmente a magistratura em

comparação com outros órgãos políticos, e a

independência interna, aquela de que gozam os

membros dentro de sua corporação”.24

A Constituição Federal também garante

aos juízes e representantes do Ministério Público

as prerrogativas da vitaliciedade,

inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio

(art. 95). Ainda, classifica como crime de

responsabilidade os atos do Presidente da

República que atentem contra o livre exercício

do Poder Judiciário (art. 85, II).

Aprovado na 68ª sessão ordinária do

Conselho Nacional de Justiça, no dia 06 de

agosto de 2008, o Código de Ética da

Magistratura Nacional também confere alguns

itens acerca da independência judicial:25

Art. 1º O exercício da magistratura exige

conduta compatível com os preceitos deste

Código e do Estatuto da Magistratura,

norteando-se pelos princípios da independência,

da imparcialidade, do conhecimento e

capacitação, da cortesia, da transparência, do

segredo profissional, da prudência, da

diligência, da integridade profissional e pessoal,

da dignidade, da honra e do decoro.

Art. 4º Exige-se do magistrado que seja

eticamente independente e que não interfira, de

qualquer modo, na atuação jurisdicional de

outro colega, exceto em respeito às normas

legais.

Art. 5º Impõe-se ao magistrado pautar-se no

desempenho de suas atividades sem receber

indevidas influências externas e estranhas à

justa convicção que deve formar para a solução

dos casos que lhe sejam submetidos.

24 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o

guardião das promessas. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan,

2001, p. 60. 25 Disponível em:

<http://www.cnj.jus.br/publicacoes/codigo-de-etica-da-

magistratura>. Acesso em: 24 jul. 2017.

270

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

Art. 6º É dever do magistrado denunciar

qualquer interferência que vise a limitar sua

independência.

Art. 7º A independência judicial implica que ao

magistrado é vedado participar de atividade

político-partidária.

Art. 17 É dever do magistrado recusar

benefícios ou vantagens de ente público, de

empresa privada ou de pessoa física que possam

comprometer sua independência funcional.

Fica evidenciado que a independência

do Poder Judiciário brasileiro – e dos seus

próprios membros – constitui um pressuposto

para que a atividade jurisdicional alcance a

completa legitimidade democrática. Mais do que

resguardar uma classe específica, a

independência foi pensada com o fito de

beneficiar a sociedade, haja vista que

automaticamente gera maior imparcialidade do

julgador.26

2 LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE (PLS

85/2017 – PL 7.596/2017)

Pouco se questiona sobre a necessidade

de independência ao Poder Judiciário, sobretudo

porque algumas de suas decisões estão

intimamente ligadas aos demais Poderes

(Executivo e Legislativo). A vitaliciedade,

inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio

são peças primordiais para que o juiz atue livre

de interferências externas e internas.

O ponto de perigo na questão da

independência ocorre, primeiramente, quando o

processo de promoção na carreira –

especialmente na busca de uma cadeira no

Supremo Tribunal Federal – está vinculado às 26 MAURO CAPPELLETTI, em sua obra “Juízes

irresponsáveis?”, cita a opinião de Giovanni Pugliese

quando afirma que “a independência não é senão o meio

dirigido a salvaguarda outro valor – conexo certamente,

mas diverso e bem mais importante do que o primeiro –,

ou seja, a imparcialidade do juiz”. (CAPPELLETTI,

Mauro. Juízes irresponsáveis? Porto Alegre: Sérgio

Antonio Fabris Editor, 1989, p. 32).

indicações políticas. Ademais, quão

independente pode ser um Poder sem minar o

Estado de Direito?27 Quais seriam os limites à

atuação dos magistrados? Como se deve

proceder quando um agente público atua em

desacordo com a lei ou, simplesmente, de forma

abusiva/autoritária?28

Na ânsia de responder aos

questionamentos e buscando a efetiva

consolidação do Estado de Direito, em março de

2017 foi proposto no Senado Federal um projeto

de lei que define os crimes de abuso de

autoridade no Brasil. De autoria do Senador

Randolfe Rodrigues, o projeto foi autuado sob o

nº 85/2017 e teve ampla defesa da maioria dos

políticos.

27 Por mais paradoxal que possa parecer, a imunidade do

juiz – que não é saudável ao Estado de Direito – surge a

partir de uma absoluta proteção à independência diante de

pressões externa e internas. (Ibidem, p. 33). 28 Ainda em vigor, a Lei nº 4.898/65, que regula o direito

de representação nos casos de abuso de autoridade, em

seus artigos 3º e 4º, considera abuso qualquer atentado: a)

à liberdade de locomoção; b) à inviolabilidade do

domicílio; c) ao sigilo da correspondência; d) à liberdade

de consciência e de crença; e) ao livre exercício do culto

religioso; f) à liberdade de associação; g) aos direitos e

garantias legais assegurados ao exercício do voto; h) ao

direito de reunião; i) à incolumidade física do indivíduo; j)

aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício

profissional. Constitui também abuso de autoridade: a)

ordenar ou executar medida privativa da liberdade

individual, sem as formalidades legais ou com abuso de

poder; b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a

vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; c)

deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a

prisão ou detenção de qualquer pessoa; d) deixar o Juiz de

ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe

seja comunicada; e) levar à prisão e nela deter quem quer

que se proponha a prestar fiança, permitida em lei; f)

cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial

carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra

despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer

quanto à espécie quer quanto ao seu valor; g) recusar o

carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de

importância recebida a título de carceragem, custas,

emolumentos ou de qualquer outra despesa; h) o ato lesivo

da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica,

quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem

competência legal; i) prolongar a execução de prisão

temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando

de expedir em tempo oportuno ou de cumprir

imediatamente ordem de liberdade.

271

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

A proposta causou diversas

manifestações na sociedade e, acima de tudo, foi

criticada por representantes do Ministério

Público e da magistratura, pois estes acreditam

em uma tentativa de freamento da Operação

“Lava Jato”. Ainda assim, houve aprovação no

Plenário da Casa (54 votos a 19) e, no momento,

se encontra na Câmara dos Deputados (PL

7.596/2017).

Necessário ressalvar que a maioria das

críticas se fundava no chamado “crime de

hermenêutica” e na possibilidade de qualquer

cidadão aforar as demandas em face dos agentes

públicos.

Aberto ao debate, o Senado Federal

acatou alguns dos pedidos da Procuradoria-Geral

da República, isto é, houve concordância na

retirada de trechos do projeto que permitissem a

criminalização da hermenêutica, ou seja, a

punição de juízes cujas sentenças fossem

reformadas. Também foi retirada do texto a

possibilidade de vítimas de abuso de autoridade

ajuizar ação privada mesmo antes de eventual

ação penal pública.

Os principais crimes que estão presentes

no Projeto de Lei 7.596/2017 são os seguintes:

decretação de medida de privação da liberdade

em manifesta desconformidade com as hipóteses

legais; decretação de condução coercitiva de

testemunha ou investigado manifestamente

descabida ou sem prévia intimação de

comparecimento ao juízo; constranger em

depoimento, sob ameaça de prisão, pessoa que,

em razão de função, ministério, ofício ou

profissão, deva guardar segredo ou resguardar

sigilo; impedir, sem justa causa, a entrevista

pessoal e reservada do preso com seu advogado;

proceder à obtenção de prova, em procedimento

de investigação ou fiscalização, por meio

manifestamente ilícito; induzir ou instigar pessoa

a praticar infração penal com o fim de capturá-lo

em flagrante delito, fora das hipóteses previstas

em lei; divulgar gravação ou trecho de gravação

sem relação com a prova que se pretenda

produzir, expondo a intimidade ou a vida

privada, ou ferindo honra ou a imagem do

investigado ou acusado; demorar demasiada e

injustificadamente no exame de processo de que

tenha requerido vista em órgão colegiado, com o

intuito de procrastinar seu andamento ou retardar

o julgamento; e antecipar o responsável pelas

investigações, por meio de comunicação,

inclusive rede social, atribuição de culpa, antes

de concluídas as apurações e formalizada a

acusação.

Nas disposições finais o projeto ainda

traz os seguintes crimes: realizar interceptação

de comunicações telefônicas, de informática ou

telemática, promover escuta ambiental ou

quebrar segredo da Justiça, sem autorização

judicial ou com objetivos não autorizados em lei;

e violar direito ou prerrogativa de advogado.

Entre os efeitos da condenação

previstos estão obrigação de indenizar,

inabilitação para exercício de cargo público por

até cinco anos (reincidência) e perda do cargo

(reincidência) (Art. 4º). Também, as penas

previstas nesta lei serão aplicadas

independentemente das sanções de natureza civil

ou administrativa porventura cabíveis (Art. 6º).

Os crimes previstos na lei são de ação

penal pública incondicionada. Por outro lado,

será admitida ação privada se a ação penal

pública não for intentada no prazo legal (Art. 3º).

Constata-se, destarte, que não há, no

Projeto de Lei, qualquer artigo que prejudique

e/ou interfira na independência judicial. Atuando

dentro do que delimita a lei, 29 dificilmente

haverá qualquer tipo de sanção ao magistrado

responsável pelo processo.

A importância da Lei de Abuso de

Autoridade decorre quando, da análise da ação

mais relevante da história do país (Operação

Lava Jato), percebe-se o descumprimento à

29 Aqui, o termo “lei” em sentido amplo, contempla a

Constituição Federal e as leis ordinárias.

272

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

praticamente todos os artigos anteriormente

mencionados, sendo que a maioria deles já está

positivado – ainda que sem a possibilidade de

responsabilidade pessoal do juiz – no atual

ordenamento.30

A nova lei se faz necessária, ainda, pois

a atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

se mostra ineficiente e não se presta a inibir

eventual abuso de autoridade. Tal fato se deve à

composição do órgão fiscalizador, o qual possui

quinze membros, dos quais nove pertencem à

magistratura (art. 103-B, CF).

Além do que fora exposto, nos últimos

anos, o que se viu, foi uma crescente atuação

midiática por parte dos juízes, inclusive com

posicionamentos contra legem. Repita-se, um

sistema jurídico positivista passou a ser ativista

(ativismo/judicialização da política) e,

atualmente, é possível chamá-lo de político

(politização da justiça).31

Garapon, há mais de uma década, já

alertava para o fato de que esta alquimia

duvidosa entre justiça e mídia assinala uma

profunda desordem da democracia. A mídia

desmonta a própria base da instituição judiciária,

abalando a organização ritual do processo. A

igualdade de armas não existe na mídia. Ela

oferece um prêmio àquele que não só conta a

melhor história, mas também a conta melhor. Ela

reforça o efeito de verdade em detrimento da

verdade; a sedução, em detrimento da

argumentação.32

No Poder Judiciário não há uma leitura

moral da Constituição e das leis, como defende,

30 Como exemplo, tem-se o dever de motivação previsto

no art. 93, IX, da Constituição Federal. Ainda, a

impossibilidade de divulgação de gravação sem relação

com a prova que se pretende produzir no processo (Lei nº

9.296/96). 31 Como exemplo é possível citar um juiz do 3º Tribunal

do Júri do Estado do Rio de Janeiro, que concedeu

liberdade a dois policiais militares presos em flagrante por

conta de homicídio, invocando explicitamente em sua

decisão a “voz das ruas”. Cf.: Autos nº 0076306-

12.2017.8.19.0001. Juiz Alexandre Abrahão Dias Teixeira. 32 GARAPON, Antoine. Op. cit., p. 79.

por exemplo, Ronald Dworkin,33 mas sim uma

leitura com fulcro na moralidade pública, a qual

é volátil e dependente da exposição da mídia.

Juízes utilizam, por vezes, da doutrina

utilitarista,34 sob o enfoque de estar cumprindo

aos anseios da sociedade. Prova disso foi o

discurso apresentado pela presidente do Supremo

Tribunal Federal, Cármen Lúcia, quando do

encerramento das atividades do primeiro

semestre de 2017:

O clamor por justiça que hoje se ouve em todos

os cantos do país não será ignorado em qualquer

decisão desta Casa. As vozes dos que nos

33 De acordo com Dworkin, a Constituição está permeada

de direitos descritos de maneira demasiadamente vaga e

abstrata. Tendo em vista tal situação, sugere que estes

sejam interpretados com fundamento em uma leitura do

moral do texto constitucional. Esta leitura moral implica

que todos os operadores do direito façam uma leitura do

texto constitucional com referência a princípios morais de

decência e justiça. O autor defende que a leitura moral leva

em consideração que a linguagem nem sempre logra êxito

em alcançar a finalidade querida, e que esta leitura deve

respeitar a evolução histórica da sociedade, e também o

que o legislador quis dizer. A história é um elemento

essencial para esse projeto porque, para saber o que uma

pessoa quis dizer quando disse alguma coisa, temos que

saber algo acerca das circunstâncias em que ela se

encontrava quando disse aquilo. Assim, ao interpretar o

texto deve se levar em consideração não somente o que os

autores quiseram dizer, mas também a prática jurídica do

passado. Em suma, a interpretação moral tem dois limites:

através da história, entender o que eles queriam dizer e não

as outras intenções que tinham; exigência de uma

integridade constitucional, isto é, o juiz não pode dizer que

a constituição expressa suas convicções pessoais.

(DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura

moral da Constituição norte-americana. São Paulo:

Martins Fontes, 2006, p. 10-17). 34 O utilitarismo é uma doutrina ética que insiste no fato de

que devemos considerar o bem-estar de todos e não de

uma única pessoa. “A vulnerabilidade mais flagrante do

utilitarismo, muitos argumentam, é que ele não consegue

respeitar os direitos individuais. Ao considerar apenas a

soma das satisfações, pode ser muito cruel com o

indivíduo isolado. Para o utilitarista, os indivíduos têm

importância, mas apenas enquanto as preferências de cada

um forem consideradas em conjunto com as de todos os

demais. E isso significa que a lógica utilitarista, se aplicada

de forma consistente, poderia sancionar a violação do que

consideramos normas fundamentais da decência e do

respeito no trato humano”. (SANDEL, Michael J. Justiça:

o que é fazer a coisa certa. 23. ed. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2017, p. 51).

273

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

antecederam e que velaram pela aplicação do

direito com o vigor de sua toga e o brilho de seu

talento, não deixam de ecoar em nossos

corações. Não seremos ausentes aos que de nós

esperam a atuação rigorosa para manter sua

esperança de Justiça. Não seremos avaros em

nossa ação para garantir a efetividade da

Justiça.35

Hodiernamente, poucas são as normas

que limitam a atuação dos magistrados, ainda

que reste caracterizado abuso de autoridade. É

importante “evitar que o bem comum da justiça

seja desviado por uma nova casta de assessores

tão ameaçadora para a democracia quanto os

burocratas de ontem”.36

Em síntese, ao buscar uma atualização

da obsoleta Lei de Abuso de Autoridade

(4.898/65), o Congresso Nacional apenas

procurar pautar a atuação da magistratura,

conforme mandamentos da própria Constituição

Federal. Não há, em um artigo sequer do projeto,

fundamento que desrespeite normas já

consagradas no ordenamento jurídico.

CONCLUSÃO

Após análise do trabalho é possível

perceber que a jurisdição constitucional

encontra-se em ebulição. Isto decorre, pois o

Poder Judiciário tem sido provocado a se

manifestar acerca de matérias controversas

perante a sociedade e de cunho estritamente

político.

Parte da doutrina defende e parte refuta

uma atuação ativista do Judiciário, sobretudo em

questões de políticas públicas. Alguns alegam

que ao se fazer menção ao ativismo judicial, o

que se está a referir é à ultrapassagem das linhas

demarcatórias da função jurisdicional, em

detrimento principalmente da função legislativa,

35 Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?i

dConteudo=348346>. Acesso em: 24 jul. 2017. 36 GARAPON, Antoine. Op. cit., p. 55.

mas, também, da função administrativa e, até

mesmo, da função de governo.37

Fato é que o sistema jurídico brasileiro

precisa da aprovação da lei de abuso de

autoridade; sem ela, e resguardados por uma

ampla independência, os juízes passarão a

“governar” o país, em evidente contrariedade ao

Estado Democrático de Direito. Não se pode

admitir que leis sejam descumpridas ou

interpretadas ao bel-prazer do magistrado, sem

qualquer tipo de consequência; seja na operação

Lava Jato, seja em uma simples demanda

indenizatória.

Por mais utópico que pareça, precisa-se

levar o Direito a sério. Talvez seja necessário

refletir o Direito sob o prisma da teoria da justiça

proposta por John Rawls. Para o autor,

combatente da tese utilitarista que prioriza o bem

comum em relação ao indivíduo,38 para que haja

justiça e igualdade entre os cidadãos, devem-se

acobertar as pessoas por um hipotético “véu da

ignorância” onde todos estariam em uma mesma

situação (posição original), sem quaisquer tipos

de vantagens econômicas ou sociais. E somente

desta forma seria possível descrever como o

direito pode ser aplicado com efetiva equidade.39

De forma pragmática, Eros Roberto Grau

ensina que “é necessário afirmar bem alto: os

juízes aplicam o direito, os juízes não fazem

justiça! Vamos à Faculdade de Direito aprender

direito, não justiça. Justiça é como a religião, a

filosofia, a história”.40 “É preciso levar o Direito

37 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial –

Parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 116. 38 “Convicções intensas da maioria, caso sejam mesmo

meras preferências sem sustentação nos princípios de

justiça previamente estabelecidos, não têm nenhum peso”.

Cf.: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 4. ed. rev. São

Paulo: Martins Fontes, 2016, p. 556. 39 Ibidem, p. 541-542. 40 “Explicitando: juízes decidem (= devem decidir) não

subjetivamente, de acordo com seu senso de justiça, mas

aplicando o direito (a Constituição e as leis)”. (GRAU,

Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes: (a

interpretação/aplicação do direito e os princípios). 8. ed.

São Paulo: Malheiros, 2017, p. 21).

274

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

a sério, o que significa libertá-lo dos grilhões da

exceção e devolvê-lo ao povo, único titular da

soberania”.41

Enfim, o juiz não é um auxiliar da

acusação. O seu papel não é demonstrar a todo o

custo a culpa do acusado que lhe é apresentado.

É preciso deixar claro: devido processo legal não

existe para defender bandido; existe para impedir

que o Estado se torne o bandido.

41 VALIM, Rafael. Estado de exceção: a forma jurídica do

neoliberalismo. São Paulo: Editora Contracorrente, 2017,

p. 56.

275

, Porto Alegre, n. 37, p. 263-277, dez. 2017.

Por uma política pública de acesso à justiça juvenil restaurativa: para além do Poder Judiciário

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