revista subversa volume 2 | n.º 5 | mar 2015
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SUBVERSA
ERIC COSTA | ROBERTA SANTIAGO | DANIEL
WASHOWICZ | FREDERICO ROCHA | FERNANDO
CARVALHO | JUKKA ANDRADE | JORGE PEREIRA
MAURICIO GOLDANI LIMA | NATHALIA AFFEL | PEDRO
PAULO DE ARAÚJO JÚNIOR | JOSÉ EUGÊNIO BORGES
DE ALMEIDA | JOSÉ VIEIRA
EDIÇÃO ILUSTRADA | KAROLINA WHO
SUB 13
V. 2 | N.º 5 | Março de 2015
WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
Subversa | literatura luso-brasileira |
V. 2 | n.º 5
© originalmente publicado em 16 de Março de 2015 sob o título de Subversa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Ilustrações:
Karolina Who
https://www.behance.net/karolinawho
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores
desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos
ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.
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ROCHA OLIVEIRA | © A KATANA PRATEADA | 5
MAURICIO LIMA | © NOVO TELL|13
ERIC COSTA | © MONÓLOGO DA TURBULÊNCIA | 18
FERNANDO CARVALHO | © CÁRCERE | 21
JUKKA ANDRADE | © CONVERSA DE DESJEJUM | 23
PEDRO PAULO DE ARAÚJO Jr. | © PORQUE NÃO FUI PRA LÁ NÃO | 30
JORGE PEREIRA |© ESTAS VEIAS QUE NUNCA FECHAM| 32
ROBERTA SANTIAGO | © DE UM PULSAR DESBOTADO | 36
NATHALIA AFFEL | ODEIO SUPORTE PARA COPOS | 38
DANIEL WASHOWICZ | © A ÚLTIMA OBRA | 43
ESPECIAIS
JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA | © CARTA ESCONDIDA | 46
JOSÉ VIEIRA | © O VELHO SEBASTIÃO | 50
SUBVERSA
SUB 13
V. 2 | N.º 5 | MARÇO DE 2015
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EDITORIAL
E aqui estamos, diante de mais uma Subversa, que vem delinear mais um
pouco, entre nós, o seu papel de revista literária. Esta é a primeira da nova forma
de numerar cada SUB. A partir de hoje, com a complexidade que a revista já
atingiu, o antigo número de edição atenderá, com muito prazer, à exigência de
uma nova forma de nomear a sua periodicidade.
Afinal, não se trata apenas de apostar na expressão contemporânea da
literatura atual, mas questionar este espaço dentro da sociedade. A Subversa,
feliz, encontrou os seus leitores. E, juntos, comprovamos e cultivamos, diariamente,
a existência deste espaço.
Este é um reflexo natural, que só é possível com o apoio e o envolvimento
de todos. Em primeiro lugar, sempre, dos autores que confiam na revista para a
divulgação dos seus trabalhos e, consequentemente, na nossa capacidade
avaliativa para tal. Muito mais por este motivo do que pela suposta ideia de que
vamos classificar um texto como bom ou ruim, é que temos prazer em manifestar
uma pequena opinião (ainda que muito breve e geral) sobre aquilo que, com
gosto, lemos. É corresponder minimamente à confiança depositada em nós e na
linha editorial da Subversa.
Nesta edição, contamos com as imagens originalíssimas da Karolina Who,
de São Paulo, que faz um trabalho super diferente de colagens digitais inspiradas
em glitch art.
Desejamos a todos uma boa viagem por estas páginas!
As editoras.
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-
A KATANA PRATEADA
Rocha Oliveira
São Gonçalo, RJ
O mar sempre o encantou sobremaneira. Desde o influxo amniótico,
ao apreciar, já no refluxo da madureza, as ondas suicidarem em plena
arrebentação. Gilvan ora espia a orla da janela; espraiando ora os olhos
pela areia, ora a derivar o olhar em alto mar. Por amar o mar, dinheiro e a
boa carreira, achou por bem sonhar meter-se na marinha: via-se, quem
sabe, o almirante. E, em não tendo vocação pro belicismo, cortejou a
ideia de abraçar a marinha mercante. Porém aqui está o Gilvan, na
Alfândega do Porto de Santos... Que um sonho pode mesmo ir a pique,
sem, no entanto, fazer náufrago o sonhador. Gilvan achou na alfândega
uma ilha, e a “terra à vista!” ora o faz mirar o mar.
A despachar alguns papéis de embargo, em verdade pensa em
chopes e em torresmos. Porém os ossos do ofício são amargos; mais que o
agro da cerveja e, evidente, bem menos que o amargor do
desemprego... Recusara hoje mesmo um suborno, que a propina não lhe
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paga o salário e nem há de comprar o seu caráter. Em contrapartida, a
sua esposa o intimara a um jantar. Jantar no qual se recusava a “bater
ponto”, e como fosse um cálice de agrura. Que não mereceria – assim
entende – compartir a mesa com os Buarque, e assim rachar a conta de
sua própria indigestão. A mulher do “amigo” fora quem os convidou, que
o outro, decerto, era incapaz de tal convite. E a esposa até simpatizava
com a outra, porém os dois (e se assim lhes permitisse a Sociedade)
trocariam todo e qualquer prato belo ou chique por uma porção de
mútua antropofagia. Gilvan, pois, cotejava entre o chá de boldo e os
dissabores de u'a mulher contrariada...
— O Tavares, disse ela, pode até não ser lá um grande amigo, mas
sempre que precisamos de verdade, foi com os dois que pudemos contar.
Onde estava o seu irmão e a minha família? que, aliás, se mal tem onde
cair morta, tem também a boa vontade d’um carrasco.
Gilvan não tendo mais que argumentar, disse-lhe: Hum. Que assim
fala a eloquência de quem, em não querendo consentir, diz algo mais; e
mesmo que este algo seja nada. Era inevitável ao aduaneiro não deixar
de ruminar sobre um e outro empréstimo que lhe fora concedido pelo
“amigo”; cujos quais, e para todos os efeitos, lhes valeram mais uns meses
de um bom teto e a escusa à usura de um mau fiador. E muito embora o
Tavares só o fizesse com o fito de aparentar solicitude em se fazer mui bem
solicitado... Demais que lhe era lisonjeira – se diga mais – a inconfessa
inveja do amigo. Era o gosto da desventura alheia – e pois no presto
amparo dado ao “ombro amigo”. Tavares, malgrado a profissão avessa, –
era bacharel e não doutor –, possuía em si a alma do bom médico: que
em amar demasiado o seu ofício, bem lá no fundo ama, no enfermo, a
enfermidade.
E este nosso bom alfandegário, longe de ser cobaia humana, é,
outrossim, impaciente; e tamborila sobre a mesa o agastamento: maestro
a reger horas de tédio, tem, em todo arruído, elegia. Gilvan faz de sua
caneta u'a batuta, e as horas, em u'a desatenta sonolência, seguem
sempre mornas e maçadas. Vê ao longe um cargueiro em cujo casco lê
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um nome ao qual distingue ser Yamaguchi. Embora ignorando sua origem,
este nome o remete ao embargo – por ele autenticado – a uma carga de
salmões e outros mais frutos do mar. E por algum motivo igualmente
ignorado, o aduaneiro sente na barriga um frio súbito...
Regelaram-se-lhe as tripas; e por quê? O Gilvan não saberia nos
dizer. Riu-se apenas do sintoma e, recostado ao espaldar de sua cadeira,
derreou sua cabeça na parede. Perdeu-se a olhar pro teto, bastante
entretido com o forro em branco-pérola. Ao centro deste mesmo teto
pende uma antiga luminária, ainda da década de 30, como fosse um
pêndulo imóvel, a marcar, com a precisão d’um Swatch1, a cruel
inalterabilidade do marasmo. Num relance, e como em um lapso de
tempo, Gilvan vê tudo escurecer ante os seus olhos! Estremece. Freme em
sobressalto. Sente encapuzar-se de inopino! também, se amordaçar num
só instante. Não houve tempo sequer de gritar. Se debate a procurar
desvencilhar-se. E nada... Todo esforço é inútil quando não se é tão forte
quanto três ou quatro homens a opor-lhe impetuosa resistência. E o Gilvan
não é robusto e nem franzino, porém se gaba de dar boas braçadas.
Ouve então um intrincado burburinho, que se faz ouvir à sua volta. Parece-
lhe, pois, uma incendida discussão entre quatro ou mais indivíduos
japoneses.
O nosso aduaneiro sente regelar-se a espinha, e um temor horrendo
do acaso: o receio a um só tempo do perigo, e, por outro lado, do
improvável. Por um momento acha mesmo ser piada; decerto uma piada
de mau gosto; alguma peça pregada, a contragosto, pelos seus colegas
de trabalho. Todavia estranha muito não ouvir, além das vozes indistintas,
nenhum riso sequer, uma risada. Ninguém a lhe acudir; nada de nada...
Ouve só o doce sussurrar do mar sereno. E isto enquanto vê-se coagido a
levantar-se da cadeira com violência, e impelido a deixar seu gabinete
aos empurrões. E, aos trambolhões, Gilvan segue a andar a passos
trôpegos rumo à “sabe lá pra onde”.
Uma das vozes parece dar, então, voz de comando. Fosse o líder ou
1 Empresa de relógios suíços.
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algum capanga mais experiente. As outras, não obstante, parecem anuir
à imperativa. E assim, volvendo ora os passos à direita, igualmente forçam
a fazê-lo o nosso amigo; e, pois, senão sempre adiante, ora à direita ora à
esquerda. Sempre cosido o Gilvan a dois dos homens, atadas suas mãos
por u'a corda, segue puxado pelos braços e empurrado,
concomitantemente, pelas costas. O aduaneiro, atordoado, mal pode
acabar de crer no que lhe ocorre. Entretanto já não mais crê numa
suposta brincadeira. Ninguém leva um trote tão a sério! Por outro lado,
como ninguém os pôde ver? e então lhes obstar ou lhes deter? E entre
uma e outra conjectura, – suposições de sequestro e assassinato –, sente,
por fim, conquistar o pátio externo. A brisa marinha o consola, e ainda que
o frio os açoite.
Gilvan é agora arrastado, degraus abaixo, por uma pequena
escadaria. Seria, ao que parece, – é-lhe evidente –, o estreito cais da
alfândega do porto. Sente já a oscilação do píer a ondear sob seus pés; e,
a maresia a escumar o seu odor, converte-se no ópio que o Gilvan jamais
sequer sonhou tragar. Mas bem longe de fazer-se algo eufórico, o
aduaneiro faz-se é de horror, eletrizado. E sua, freme e arfa de pavor;
tremendo as pernas feito... vara verde? Vá! que seja “vara verde”; vez que
não me caberia analogia menos ofensiva à ilha nipônica. E o nosso amigo
sabe tanto do Japão quanto alguém que só assistiu a um longa sobre a
máfia japonesa... Mal saberia a que compare as próprias pernas.
É enfiado, pois, embarcação adentro. Tão logo esta arranca em
disparada. E por sinal há que notar que é veloz. O sacolejar da nau se lho
mareia, aliado ao seu extremo nervosismo. Porém Gilvan, já acostumado a
velejar, exime-se logo do engulho; restando-lhe engolir em seco. O
aduaneiro já então teme pela morte, em perdendo as esperanças de
viver. Fácil é associar este aperto ao embargo expedido horas atrás. O
nosso amigo, um funcionário exemplar, a despeito de tacharem-no
“caxias”, sempre fez cumprir a lei e as diretrizes de seu cargo. E muito
embora não vestisse a carapuça de algum exímio escrupuloso, nem por
isso resvalou ética afora.
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Mas vede ora o nosso Gilvan Mendes... Este, que não vê nada de
nada... Encapuzado, amedrontado e amordaçado; atado qual um
animal de corte. Arrepende-se, – verdade seja dita –, de ter preterido a
peita à consciência. Que “passassem” lá uns peixinhos de nada! umas
algas que fossem e, quem sabe, mesmo uma e outra bactéria... Que teria
ele que ver com a infecção intestinal d’algum pechincheiro de sushis? Tais
ideias iam e vinham quais marés, pois logo o aduaneiro repensava o seu
próprio pensamento, confrontado a razão com a emoção a remoer seus
atos frente à sina.
Mas em pensar neste seu fado, exasperou-se, e pôs-se a urrar em
desespero. Para a ira dos seus raptores, que o quiseram calar com
truculência. Gilvan sente um golpe seco no estômago e um, subsequente,
em sua cabeça. Se imagina a receber duas coronhadas. Teme que lhe
abriram o toitiço, e se põe na terrível expectância de sentir lhe escorrer o
sangue vivo.
— Dou-lhes tudo o que quiserem! – exclamou ele; ou ao menos
supusera assim dizer. Mas com a boca amordaçada nada disse, senão
balbuciou algo inda mais ininteligível que o idioma de seus interlocutores.
Entretanto ainda assim quis muito completar o seu apelo, ao falar algo
como: — “Inhauma inhu inhonhô!!!”
O que ele quis dizer não irei falar, e para não tirar o gosto ao ofício
de sua imaginação, caro leitor. Não demos azo à indolência... Porém o
líder, pois, pôs-se a ralhar com energia:
— Damare! Damare! (damaré)
Considerando-se a ignorância do amigo, que não pôde alcançar a
acepção e tão menos o significado da palavra, digamos tão-só tê-la
adivinhado quando a levar outra “coronhada”... Calou-se então de todo
e só chorava.
Poucos minutos se passaram e o nosso alfandegário sente aportar,
por fim, a embarcação. Travam-lhe do braço e conduzem-no hora ao
longo d’outro píer. Gilvan segue a deixar-se conduzir, já sem opor
nenhuma resistência, e pelo que parece um avarandado; um longo e
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estreito avarandado. Pensa agora em sua mulher e no seu filho, aos quais
houvera prometido voltar cedo. E verte hora então um choro acerbo... Já
não pensa em chopes, nem saquês; lhe bastaria um mero copo d’água
tendo aqueles dois por companhia. Demais que para escapar à do
Tavares não valeria a pena o seu velório. Porém o Gilvan considerou a
alternativa...
— Kutsuwonugu! (kutsuwonugú)
Assim dizem os homens com aspereza, enquanto – por fazer valer a
tradição – forçam-no a descalçar os pés. O aduaneiro adentra, ainda
encapuzado, o que se mostra ser um edifício. De meias, e embora
aturdido, sente sob os pés o assoalho – um soalho liso e polido. Caminha
entre o que parecem corredores, até por fim ser inserido num salão; e
assim lhe assevera o ar corrente. Os homens o obrigam a ajoelhar-se,
forçando o seu tronco para baixo e dando-lhe um chute nos joelhos (na
parte posterior dos mesmos). Destarte o amigo cai inapelavelmente de
joelhos... A dor que sentira fora tal que julgou esfaceladas suas rótulas.
Gilvan urra de dor e, todavia, engole a muito custo o seu lamento. De
golpe, enfim, arrancam-lhe o capuz.
Gilvan, por dor tamanha inda alheado, toma o ofuscar da claridade
pela vaga ilusão de ver estrelas. Firmada já a visão, o que vê ao seu redor
é sem dúvida nenhuma u'a vasta sala oriental, feita bem ao estilo japonês.
Do chão ao teto, – as paredes de permeio –, tudo em madeira, tatami e
papel. Aparte a situação adversa, Gilvan sente uma estranha quietude. E
quem sabe a explicasse o ambiente, ou ainda a explique o Feng Shui.
Mas, certo é que esta breve calmaria, encrespar-se-ia em tormenta...
— Inhãnhi inháinhe, exclama afoito o nosso amigo, inhaô! – era um
apelo.
À sua volta, quatro homens, outros mais à sua frente. Defronte a si, e
bem ao centro da sala, está um senhor de meia-idade; sentado
imponentemente em uma cadeira; as cãs lhe acentuando a altivez. Vê-se
bem que é o mandante, o mandachuva... Olha para o alfandegário com
desprezo, doando-lhe um sutil riso sardônico. O olhar do homem é frio e
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penetrante. E o nosso amigo sua e estremece. Teria assim Perseu fremido
ante a Medusa? Não se sabe. Porém, o Gilvan, petrificado, decerto
quereria parecer-lhes invisível, para assim esvanecer mansão afora. Mas,
reparando bem nos homens, – japoneses todos, ou, orientais ao menos –,
todos tendo boa compleição, o corpo recoberto por tatuagens; em não
sendo Yakuza2, caratecas... Um só bastava a lhe frustrar de todo a fuga.
O pressuposto líder se dirige respeitosamente ao mandachuva, que
parece responder com aprovação. Este último, voltando-se então pro
aduaneiro, diz-lhe algo em tom malicioso, que ele não entende todavia.
De repente, a dar um tapa pois no braço da cadeira, ergue-se a altear o
tom de voz. E berra e gesticula a babar-se. Célere e sôfrego, caminha em
direção ao nosso amigo, que nada faz senão mirá-lo abismado. O outro
berra, – e ao que é evidente –, a pragalhar e a fazer-lhe ameaças;
cobrindo-o, outrossim, de perdigotos. Gilvan, em desespero, apela aos
prantos pela sua compaixão. E o homem faz-lhe um gesto ríspido como a
exigir que se calasse. E sem mais, a enrolar as mangas da camisa, –
exibindo assim também suas tatuagens –, dá um brado a ecoar pelo
recinto:
— Nakamoto!!!
O nosso amigo freme, assustado, e arregala os olhos com espanto.
Abrindo uma porta corrediça, à lateral esquerda do salão, adentra – a
pisar duro, a passos rijos – nada menos que um bom e velho samurai... Sim!
paramentado a rigor! O Gilvan não sabe o que pensar. Que faz ali este
guerreiro à moda antiga!? Porém não houvera ensejo de juízos. Aquele,
que além de duas espadas postas à cintura, trazia outra mais em punho,
tão logo a ofereceu ao mandachuva. Ofertou-a com mesuras de um
súdito frente ao seu imperador: postou-se de joelhos, baixando
respeitosamente a cabeça, estendidos os braços com decoro; a espada
posta em transversal. O aduaneiro olha de esguelha para a arma, que
reluz sob o brilho das lanternas; um brilho assim argênteo e refulgente; e
por um momento fez-se fascinado. Bela, toda ela feita em prata, desde a
2 Membros das tradicionais organizações criminosas japonesas.
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empunhadura à bainha.
Ora, exceto – é claro – a sua lâmina; esta que, de golpe, logo
emerge, a desembainhar-se pelo chefe. Ele a empunha com arte e
maestria. Ergue-a bem alto, na vertical. Gilvan, já a abdicar da vida,
fecha os olhos num reflexo involuntário. Era tentar amenizar a sua dor, e
pelo ignorar da punição. O que os olhos não veem... No entanto, antes de
cerrar de todo as pálpebras, Gilvan vê da lâmina um lampejo, um clarão
como a cortar suas pupilas. E tão fugaz quanto o clarão, moveu-se
velozmente o mandachuva, postando-se imediatamente à sua direita.
Solta então um grito enraivecido! O alfandegário encomenda pois aos
céus a sua alma, e a pedir também a proteção dos seus. E solta mais um
grito o mandachuva! O nosso amigo, em pensamento, revisita a sua
família inda outra vez; em cada lembrança que lhe acode, desde a mais
remota à derradeira. Faz descer o sabre o Yakuza. Gilvan sente, alfim, o
gume da espada...
O nosso amigo, por um breve instante, – tendo pois um olho
entreaberto –, vê pender de lado a sua cabeça. Vê-se, enfim, em um
recinto em branco-pérola... Desperta em sobressalto – um pesadelo!
Fecha a boca; abre os olhos; seca-se das babas. Uma dor horrenda no
pescoço! Leva a mão ao mesmo; espreguiça a alongar-se; dá meia-volta
com a cabeça a relaxá-lo. Ouve um murmurar na sala ao lado. Atila a
audição estonteada: confabulam entre si a sua lamúria alguns dos
coreanos embargados... Gilvan relembra o longa ao qual assistiu. Ri-se
hora do sonho e do assombro. Opta por torresmos e cervejas. E no
cargueiro lê-se, sim, Young-Chin...
FREDERICO ROCHA é romancista, contista e poeta. Inspirado especialmente em
obras clássicas, particularmente em Camões e Machado de Assis. Escreveu uma
obra de cunho místico-filosófico intitulada Das Contradições à Razão, a coletânea
de sonetos Como Nasce um Poeta, uma seleção de contos sob o título d'Outros
Rasgos. Está em fase de conclusão de um livro de poemas e outro de microcontos,
No momento, além de contos eventuais, trabalha, também, em três romances.
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NOVO TELL
Mauricio Lima
Novo Hamburgo, RS
Engarrafamento de sentimentos
na estrada em reforma
para o hotel das formas
das coisas deformadas que chamamos de coisas.
Atrasados, estressados, para trás,
todos chegam uniformemente individuais
no inferno dos pecados capitais
condenados por um céu artificial
© KAROLINA WHO
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de seres superiores
que são os mentores mentolados que engolimos como pastilhas.
E a matilha de cordeiros raivosos,
rancorosos,
resignados,
irresolutos,
onde reza o luto que a lenda atéia lutou para haver
onde a alcatéia de cordeiros para, a ver o que quer que os que
querem queiram que o que é que eu ia dizer mesmo??
Pois o engarrafamento de pensamentos na BR dos meus estados
desunidos europeus jaz queimando aziático no colo do meu esôfago
como um abacaxi que não posso pagar, logo jazo devido, deslogo...
DIZ LOGO!!
Desligo...
Escuro é o engarrafamento de minhas frustrações nesta fábrica
abandonada,
onde o bando de donos é Nada.
Agarro com medo e desdém o estofamento do meu carro
e olho cedo
para além da janela do hotel.
Oh, tell me what you see!!
Eu tussi
e vi outras pessoas tossindo em silêncio,
em um negro e lento movimento,
e tudo pareceu desacelerado, dilacerado,
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um desalento!
Todos lá sentados sem cabimento em seus aquis,
como zumbis ridículos
aprisionados em seus cubículos,
hipnotizados pela tela de seus laptops,
que nada continham além de uma luz artificial
iluminando a escuridão insubstancial de cada cela.
E cancela a noite de sono de quem é que não dormi,
pois fiquei como um zumbi olhando-as.
Ali...
Não sei se acordei.
Abri o laptop do meu coração,
não tinha bateria.
Se eu tivesse força até bateria nele até ligar,
mas nem estou lá,
e também nem ligo.
Ex-tou em todo lodo pingando lentamente do rodo parado do tempo
no ralo estagnado do Nada.
A gente nada,
Nada,
e afunda.
E MEU DEUS!!!!
O que foi?!
O que foi?!
Por que tão triste?
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Tão Carrancudo?
É o meu carro que não anda,
a dor que tu não viu,
o telefone que não sai do mudo,
a rua que não acho,
a guria que me faz de capacho,
e eu que não me mudo!
É quase tudo!
E a pilha de carros vai se acumulando horizontalmente,
assim como os corpos nas ruas,
mas ninguém percebe,
pois é sempre em lugares diferentes,
em dias diferentes,
com alguém diferente.
É sempre diferente e diferente é sempre igual que se fosse igual seria
diferente,
mas já não é diferente?!
É pouco alarde
para um saber tarde,
tardio,
vadio,
que não chega...
E CHEGA!
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É tanta certeza até na dúvida embebida de racionalizações
duvidosamente obtidas,
que tenho vontade de chamar “quarto” de “vaca”,
“pizza” de “abajur”,
você de Saidaqui,
eu de Jafui Javou de Javouir Nuncaforense.
Pense:
O que é o que é,
é uma coisa que não é todas as coisas que não a são?
Ou inverta a charada.
Aí encontrarás o propósito da vida,
que é roubar um rolo de papel higiênico,
ter uma diarréia e usar dois rolos para se limpar,
e nada estar conectado a nada.
Mas não há figuras de nada.
MAURICIO GOLDANI LIMA é gaúcho da cidade de Novo Hamburgo. Professor,
músico e poeta, amante e incentivador das artes. Escreve desde 2007, mas
participa de publicações em revistas gaúchas desde 2014. No momento,
trabalha para o lançamento de seu primeiro livro de poesias.
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MONÓLOGO DA TURBULÊNCIA
Eric Costa
Currais Novos, RN
Não há tranquilidade a 10.000 metros.
Diria eu, em mais uma inspiração profunda, que tenho mais
tempo pensando, conjecturando e comparando riscos que sequer
conheço do que tempo de viagem propriamente dita.
Sentir com inteligência e pensar com emoção? Mantra para os
de pés firmes nos chão. Mantra que se desfaz na extremidade de
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condições. Súbito, somos seres completamente indefesos em uma
cápsula que luta para não sair planando ao simples sabor do vento.
Há uma velha tendência – infinita, talvez - de nos preocuparmos
com aquilo que foge a nosso alcance. De fazer do imponderável
motivo de suspiros, suor e até tremores quando sobre ele nada
podemos fazer. Procurássemos o sentido das coisas como alguém em
um voo turbulento tenta explicar cada aceleração da turbina ou
balançar do veículo compreenderíamos o nosso redor de forma muito
mais plena.
Discurso alongado. Como sai texto de mãos nervosas com duas
horas restantes de voo sem qualquer previsão de céu de brigadeiro
sobre nós? Não sei. Talvez seja a necessidade de expressão. Procurar
um caminho alternativo em meio ao sentimento e lugar comum talvez
não pareça o mais lógico, mas talvez o mais sincero.
Meramente humano. Dadas as guerras, o humano buscou o
escapismo nos séculos passados. Dado um grande conflito de
ansiedade a dez mil metros, alguém pode fazer mais do mesmo. De
conflito de nações a conflito contra a insegurança da própria criação;
de poesias românticas a palavras banais em redes sociais. Os tempos
mudam, a fragilidade é real e as rotas de fuga vem com um quê de
surreal.
A poesia é talvez aquilo de que primeiro abrimos mão, nos disse
Gessinger. Ainda que entre sinais vermelhos e verdes do painel, entre
atar cintos e não atar, ainda que em “modo avião”...nossa mente
necessita dela . Todo lugar e todo ser é abrigo dela. Talvez por haver
mais poesia na fraternidade entre medrosos ao primeiro balançar entre
as nuvens do que em seis mil páginas de muitos livros por aí eu ando
escrevendo por agora.
Um beep há dez minutos me incomoda. Me incomoda desde o
primeiro parágrafo do texto.
Será uma falha da turbina? Perdemos altitude? Despressurização?
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Olho ao canto e constato: é apenas o fim da bateria do
notebook. Sinal simplório, mas magnificado pelo contexto.
Um som mais grave. Agora, o ronco dos vizinhos de poltrona. Eis
uma saída mais fácil e quase tão poética quanto: o sono e o sonho são
parte um do outro. O texto, sem contexto, agora perde o sentido. A
tranquilidade reina. A fragilidade, porém, sempre existe.
O beep fica mais forte. Sou obrigado a abrir mão da poesia. Será
este sempre o fim do caminho das pedras? Ainda não. O pensamento é
livre e os neurônios não são exército de um só. São sinfônicos e cuja
música só se deve seguir.
Seguir sem hesitar. Só deixamos a poesia por limitação própria. Se
resistimos com a escrita defronte as turbulências, somos limitados pela
baixa autonomia de uma ou outra criação. Os carcerários do
pensamento são nossas próprias falhas. Amarram as mãos de cada
maestro que carregamos e desafinam a sinfonia com o tilintar das
chaves mentais.
Aqui do alto deve ser bonito? Daí do chão deve ser muito mais
legal.
ERIC DE MEDEIROS COSTA é acadêmico de Medicina da Universidade Federal
do Maranhão. Vê o escapismo de seus dias, às vezes solitários, no futebol, na
música, literatura e em sua própria introspecção.
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CÁRCERE
Fernando Carvalho
Rio de Janeiro, RJ
Eu queria cantar e compor em todas as línguas,
ser oriundo de todas as culturas,
nunca ter sotaque e não ser turista.
Ser professor de todas as artes, magias e ciências,
eu queria conhecer todos, encontrar tudo,
ter meninos e meninas na minha cama,
ser convidado e anfitrião em todas as festas,
habitar sonhos, habitar casas e habitar a rua.
Mudar de lugar muito rápido,
© KAROLINA WHO
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meditar com quem nunca precisa se mover,
sumir do mundo, criar outro mundo, visitar todos os planetas
e só depois visitar todos os países.
Visitar todas as pessoas, colher uvas, cortar cana, caçar pra sempre um
animal e nunca o achar.
Quero mergulhar sem equipamento.
Quero desafiar leões e depois viver com eles,
quero voar no vento e vender minha alma,
quero nunca ter visto alguém, quero não ser humano,
quero a saudade majestosa do nada, quero ser vazio,
quero viver mil anos e não ficar satisfeito, quero incorporar um deus,
quero ser um deus,
quero abraçar demônios e pedir que fiquem mais um pouco,
quero não ter resposta pra coisa nenhuma, quero que me entenda,
mas não quero que me olhe entendido.
Quero me enforcar e não morrer, quero morrer ao tropeçar, quero ser
burro, quero me calar, falar através de pensamentos, quero ter um filho
e ser filho de alguém de novo.
Quero confidenciar cartas longuíssimas,
quero conhecer a China,
quero nunca mais ter notícias de lá, quero não ter sorte, quero não ter
nome,
quero ser visto por todos os cegos, quero ser livre, quero nunca ter
desejado isso, quero nunca ter existido ou ao menos,
agora
desaparecer.
FERNANDO S. CARVALHO é estudante na Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
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CONVERSA DE DESJEJUM
Jukka Andrade
São Paulo, SP
- Num gosto de preto! Num gosto!... Preto é catinguento! Cruz
credo! Tem banho p’ra dá jeito na catinga deles? ‘Cê a sovaqueira de
longe!... Num gosto de nordestino também não! Uns cabeça chata
co’a cara de morto de fome, cara de pobre, que fala tudo errado,
co’um sotaque feio. Essa raça só presta p’ra comê’ aquelas tranqueira
fedorenta cheia de pimenta... bucho, calango, palma... E se juntá’
preto com nordestino é uma só sai favelado! ‘Cês acha qu’eu ia tê’
uma filha d’um favelado preto da cabeça chata? Deus me livre! Por
isso qu’eu vi aquele gauchinho, parecen’o artista de televisão, co’uns
olhos clarinhos, co’a branquinha e cabelinho lisinho, e já logo peguei e
fiquei engravidei dele! Eu num ia querê’ que a minha filha tivesse um
cabelo véio duro, de pixaim, que mais parece piaçaba grudada na
cabeça! De cabelo ruim já basta o meu! Não ia passá’ o desgosto de
sê’ neguinha p’ra minha filha! – disse, agitada, Fabiana.
© KAROLINA WHO
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As três mulheres tomavam café da manhã na cozinha. Depois das
palavras de Fabiana, Anastácia e Jussara ficaram caladas, um tanto
inexpressivas, entreolhando-se, quase sem respirar, desacelerando
gradualmente o mastigar do pão. Mas, logo depois, quando silêncio
que inundou a cozinha foi diluído por uma mistura de ruidosos exteriores
ao recinto no qual elas estavam, barulhos de motos, latidos e música
brega, as mulheres continuaram o desjejum, enchendo a cozinha com
os sons dos talheres batendo, da mastigação e dos goles café.
Anastácia sorriu, um sorriso de arco reflexo para reabrir o canal de
comunicação entre as três. Jussara se incomodou com o que Fabiana
disse, mas não fez qualquer objeção. Jussara não se sentia confortável
na situação de opositora, por isso, ela tentou mudar de assunto:
- Nossa! Como esta cozinha está horrível! É tão pequena e
bagunçada! Esse fogão velho, esse azulejo engordurado! A mesa
capengando, a pia é pequena e baixa...
Fabiana atropelou as palavras de Jussara:
- Ó, Juzinha, num sei o qu’eu faria se a Katinha nascesse pretinha
que nem eu. Só qu’a minha filhinha é linda! Loirinha, co’a pele
branquinha igual a sua. Minha filhinha é linda, num é?
- É! E graças a Deus tem saúde. – disse Anastácia, enquanto
mergulhava a ponta do pedaço de pão francês dentro da xícara de
café quente.
Jussara bebeu um gole de café e disse, com reticência:
- Sim. A Kátia é linda... mas... isso independe da cor dela, não é?
Fabiana cortava um pão francês. Ela desenterrou a faca do pão
e, fazendo gestos largos com a mão que segurava a faca, começou a
objetar energicamente:
- Deus me livre! Ainda bem qu’a minha filhinha num é encardida
que nem essa molecada qu’eu vejo por aí! Uma molecada feia e suja!
Quero nem qu’ela se misture co’esse pessoalzinho aí. Quem anda com
preto vira preto também! E preto só se lasca! Eu trabalho duro! Limpan’o
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chão, limpan’o banheiro e cozinhan’o p’ros outro p´ra juntá’ um
dinheirinho e mandá’ ela p’ra longe daqui! Aqui só tem lixo, nóia,
maloqueiro, vagabundo! Nem morta vô’ deixá’ minha filhinha vivê’ o
resto da vida dela aqui. Se a polícia passasse fogo nesses vagabundo,
até dava p’ra ela ficá’, mas, do jeito que tá...
- Fabiana, não fale assim! Você não pode desejar a morte dos
outros. Isso não é cristão! – falou Anastácia, mastigando um pedaço de
pão.
- Você não conhece todas as pessoas daqui. Não diga que todas
são ruins! – disse Jussara, desta vez, com a voz um pouco mais firme.
- Ah! Conheço muita gente aqui! E quase tudo aqui, quando num
vale um real, é falsa que nem nota de três. Eu vejo por aí, ouço o
falatório... Qué’ um exemplo? ‘Cê não ouve dizê’ que a filha da
Sebastiana é uma putona? Pois é sim! Dá p’ra todo mundo, é só chegá’
junto qu’ela dá. Vive de shortinho curtinho, vestida que nem periguete...
Só falta mostrá’ a chavasca p’ra todo mundo... Com’é o nome dela?...
é Jéssica? ... Ela tem a idade da minha filha! ‘Cê acha qu’eu vô’ querê’
essa vadiazinha perto da minha filha Jamais! Ela é novinha, só que trepa
mais que rama de chuchu na cerca! Já deve tê’ abortado uns cinco.
Nunca ninguém me, mas eu num duvido disso não! ... Fica andan’o de
roupinha curtinha por aí, pedin’o p’ra sê’ estuprada! Quem que qu’é
isso, gente?
- Espere aí! – interrompeu, rispidamente, Jussara. – Eu uso roupas
curtas e não quero que me estuprem!
- ‘Cê sabe ficá’ na sua, sabe a hora de usá’ uma roupa curta, cê
sabe se portá’, ‘cê é descente! Já a filha da Sebastiana é uma
neguinha safada! Eu num quero minha filhinha se envolven’o co’essa
gente que nem a Jéssica!... é Jéssica, né? – retrucou Fabiana.
- A fama dessa menina não é das melhores, realmente, Fabiana.
A Jussara tem cabeça, ela não é desmiolada, graças a Deus! Eu criei a
Jussara sozinha, ela não virou uma qualquer. A mulher virtuosa sabe se
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preocupar com o que as pessoas vão dizer dela, Fabiana! A filha da
Sabastiana, coitada, virou uma pessoa despudorada e imprudente!
- É, Nastácia! A menina era uma gracinha, mas viu o que
aconteceu? Ficou no meio desse pessoal do bairro e deu nisso. A mãe,
que, diga-se de passagem, num é flor que se cheire, criou a menina
dentro do bar, onde só tem coisa que não presta! Ela era a dona do
bar, mas num precisava deixá’ a menina ali, no meio do pagode, nos
risca-faca. No meio d’uns negão sujo, d’uns cearence feio, d’uns véio
tarado feden’o a pinga... a filha dela virou piranha! E aqui só dá isso:
piranha e vagabunda. Não vô’ deixá’ minha filha aqui! É só ela terminá’
a escola qu’ela vai direto p’ra os Estados Unidos. Já tá tudo certo co’um
chegado meu lá de Governador Valadares. Ele vai ajudá’ a Katinha!
- Fabiana, isso é perigoso! Aqui não é tão ruim assim. Você só
precisa deixar a Kátia com gente direita. Não é preciso mandar a
menina para outro país. O Brasil é bom, o que falta aqui é gente
trabalhadora! Com essa cambada de preguiçosos este país não vai pra
frente! Meu pai me falava sobre o tempo da juventude dele aqui neste
bairro. Não faltava nada para a família dele, enquanto as outras
famílias ficavam passando necessidade. Mas nada era de graça! Eles
trabalhavam na roça o dia inteiro! – disse, orgulhosamente, Anastácia –
Ficou ruim quando invadiram as terras dos chacareiros. Tudo virou
favela! – lamentou Anastácia.
- Ouvi dizer que as famílias eram tão pobres, mas tão pobres, que
mal tinham dinheiro para comprar comida, quem dirá instrumentos para
trabalhar a terra... Não dá pra fazer lavoura usando as mãos! – disse
Jussara, que continuou a responder, mas a contragosto – Também
soube que muitas das terras daqui pertenciam a políticos,
comendadores e desembargadores que mal vinham para cá, elas não
pertenciam a chacareiros. As terras não eram utilizadas! Pô! As pessoas
precisavam morar em algum lugar! Por que não deveriam ocupar as
terras? Não se pode esquecer que a prefeitura expropriou os
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comendadores, mas eles receberam indenizações bem gordas.
Receberam muito mais do que as terras realmente valiam... E favela
não é uma coisa ruim... Eu acho a favela bonitinha. Parece um
mosaico. Casas de várias cores, vários formatos, umas sobre as outras...
Eu gosto.
- Cruz credo! Com’é qu’alguém pode gostá’ de favela! – disse
Fabiana em tom de escárnio.
- Somos favelados. Moramos na favela. – respondeu, mal-
humorada, Jussara.
- Não somos favelados! Nossas casas são bonitas! Nós somos
pessoas de bem, somos pessoas distintas... E o primeiro pessoal que
morou por aqui, na época do meu pai, era uma cambada de
preguiçosos! Meu pai dizia que que só tinham compromisso sério com a
garrafa e com a farra!... Ao menos, quando eu era pequena, moravam
longe da nossa casa. Agora não tem como fugir. Depois que o meu pai
foi para o interior, e eu herdei a casa, vieram mais e mais desses
desocupados. Foram invadindo tudo! Vagabundos, mal educados,
preguiçosos! Não tinham casa porque não deram duro na vida!...
Quando meus familiares vieram para o Brasil, eles tinham algum dinheiro
guardado, mas não era muito não. Minha família soube investir e
trabalhar! Não vou dizer que minha família nunca foi ajudada. Meu avô
recebeu uma ajuda de custo do governo. Ele já chegou ao Brasil com
uma concessão do governo para plantar em uma terra dada,
emprestada, sei lá... Mas isso não tira o mérito da minha família! Por que
quem estava aqui não prosperou?
- Porque era preto, Nastácia! Meu patrão sempre fala que preto
num gosta de trabalhá’! E eu concordo co’ele! E tem outra, pobre anda
muito cheio das ousadia, não sabe mais se por no lugar! Ele fala isso, e
eu dô’ razão. Pobre tá queren’o ganhá’ que nem médico e advogado!
Num pode isso! Se é p’ra trabalhá’ limpan’o chão, ou carregan’o
carga, fazen’o essas coisas que pobre faz, não tem que ganhá’ que
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nem empresário, advogado e médico! Qué’ sê’ milionário fazen’o
nada! Seu pai num tava errado não, Nastácia! ... Com’é mesmo que
fala o nome dele? Thomas Li...Limpkis...
- Era Lipke, Fabiana. Thomas Edmund Lipke.
- Gostaria de tê’ conhecido ele. Até o nome era bonito! Alemão
tem uns nome forte, né? Mas num é só vocês que é de raça não, viu?
Sô’ descendente de índio, co’espanhol e português! Meu cabelo é
ruim, eu sô’ assim, pretinha, mas sô’ limpinha! Eu tenho alma branca,
tenho pedigree! – disse, rindo, Fabiana – O pai do meu bisavô, da parte
de mãe, era espanhol, minha bisavó, da parte de pai, era portuguesa e
minha vó era índia pega no laço, no meio da kissassa braba!... Meu
patrão diz qu’eu sô’ exótica, Nastácia
- Mais ou menos... Seu patrão, como é o nome dele mesmo?
- Jardel.
- Isso!... Ele gostou da Jussara! Dava para ver nos olhos dele,
naquele dia que ele veio aqui buscar você, Fabiana... Como ele está?
Está bem?
- Mais ou menos. Processaram ele por injúria racial. – disse
Fabiana, indignada - Sabe a Amanda, filha da Reinalda do escadão?...
Ela trabalha no escritório do seu Jardel, e ‘cê sabe qu’ela só usa aquele
cabelo véio que mais parece uma vassoura de bruxa...
- É Black Power! – interrompeu Jussara.
- Tanto faz... – continuou Fabiana – Ele pediu p’ra ela cortá’ o
cabelo, p’ra ela ficá’ mais apresentável p’ra clientela dele, e ela num
quis! Daí ele disse assim: “se ponha no seu lugar, sua negrinha do
caralho! Você está aqui para me obedecer!”. Ela achô’ ruim e botô’
um processo no seu Jardel! Tomara qu’ela perca o processo! ... E ‘ces
sabiam qu’ela é lésbica?... Pois é! Num consegue macho! Tem que ficá’
colan’o o velcro. – caçou Fabiana.
- Ela não tem uma boa fama...
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Antes que Anastácia terminasse de falar, Jussara vomitou sobre a
mesa. Anastácia e Fabiana se levantaram, rapidamente, por nojo do
jato de vômito.
- O que é isso, Jussara? Vomitar sobre a mesa que Deus põe o
pão de cada dia é pecado! Respingou vômito em tudo! – esbravejou,
indignadamente, Anastácia.
- Tá grávida de quem, Ju? Quem é o papai? – perguntou,
fazendo troça, Fabiana.
- Me desculpem... Não é fácil engolir certas coisas logo pela
manhã... O café da manhã estava pesado... Eu já sabia que a Amanda
era lésbica... Eu transo com ela, já faz um tempo. – disse Jussara, que,
em seguida, saiu da cozinha.
JUKKA ANDRADE é natural de São Paulo, Brasil, tem 32 anos e possui algumas
graduações inconclusas, entre elas: Letras, Filosofia, Matemática Aplicada, Bio-
engenharia e Física. Costuma fazer intervenções em saraus da periferia de São
Paulo, sempre apresentando poemas autorais. Já escreveu artigos sobre
matemática elementar (publicados no sítio de internet "cola da web"), já foi
espancado na rua sem saber o porquê (sim, esta é uma informação
relevante), e, até o presente momento, não possui livros publicados.
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PORQUE NÃO FUI PRA LÁ NÃO
Pedro Paulo de Araújo Júnior
Itaí, SP
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Não fui pra lá não
Porque lá é contramão
Na contramão perco a razão
Fiquei aqui
Estático feito poste sem luz
Credo em cruz!
Chuvarada molhou-me todo
Vento abanando
Fiquei estático
Feito poste sem luz
Não fui pra lá não
Porque lá é contramão
PEDRO PAULO DE ARAÚJO JÚNIOR. 57 anos, cidadão itaiense, autodidata,
marido, pai, avô, vivendo tranquilo assim.
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ESTAS VEIAS QUE NUNCA
FECHAM
Jorge Pereira
Recife, PE
Sentiu um sopro feliz de eternidade quando viu cortar o céu a
aurora boreal. Sempre que estava sozinha e lhe ocorria presenciar
algum fenômeno especial, lembrara-se de seu pai e toda a sua busca
incansável de justificar a vida, o universo e todas as coisas mantendo-se
alheio a qualquer explicação divina ou mítica sobre a humanidade ou
natureza divina.
Para ela, que não seguira os seus moldes e pensamentos,
tornava-se bastante fácil aceitar a existência de um Deus todo-
poderoso que com suas mãos milagrosas criara o mundo e tudo o que
© KAROLINA WHO
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a ele pertence. Mas não justificava a sua sede de entendimento sobre a
vida. Helena era bióloga, estudara durante muitos anos o processo
evolutivo das espécies de anfíbios nas remotas ilhas indonésias, e
aplicava seus estudos principalmente no entendimento das atividades
cerebrais desses animais e suas circunvoluções.
Desde a infância, seus pensamentos eram permeados por
questões metafísicas, todas as noites após o jantar em família, seu pai
tomava numa mão a Bíblia e na outra A origem das espécies, do
célebre Darwin, e começava o seus discursos comparativos e provas
cabais do processo de criação e toda gênesis humana. Apesar de seu
ceticismo, não era um homem que gostava de influenciar o
pensamento religioso, inclusive se oferecia a acompanhar sua mãe nas
missas dominicais. Mas fora depois que sua mãe jogara-se de um fiorde
enquanto dirigia durante uma neblina muito forte, que seu pai mostrou-
se ainda mais descrente nas questões de Deus e deuses. Naturalmente,
houvera sido bastante trágico para ele entender as circunstâncias que
levaram uma mulher de Fé a tirar a própria vida. Naquele dia, eles
haviam discutido pela manhã sobre seus “artigos de fé” como ele
mesmo chamava os textos bíblicos, e ela descontente, saíra depois sem
lhe pronunciar uma palavra.
Já era tarde quando a polícia chegara à sua casa, Helena já
estava dormindo e foi acordada com seu pai aos prantos e um olhar
vazio. Eles nunca conseguiram encontrar o seu corpo, mas todos os
anos faziam uma peregrinação a pé ao local do acidente, e plantavam
flores no lugar mais alto do fiorde. Naquela noite, Helena pediu que eles
orassem juntos pela mãe, que deveria estar em algum lugar do universo
necessitando de luz e conforto, e assim o fizeram. Apesar da dor, aquele
fora um dos momentos mais recompensadores para seu pai, que de
súbito achou-se tomado por um vir-a-ser em perpétuo fluxo, uma
mansidão e calmaria em seu coração; como se fossem tomados pelo
toque divino, choraram abraçados.
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Com o passar dos anos, seu pai deixou-se entristecer por
completo, mas diferentemente de antes, passou os seus últimos dias de
vida dedicando-se ao estudo das religiões, deuses, karmas, seres
místicos e tudo aquilo que julgava importante para o exercício de suas
crenças. A partir de então, em diversas ocasiões lhe indagava sobre a
existência humana, até que num fim de tarde de outono boreal
enquanto estudava, saiu de casa e dirigiu-se ao mesmo local de
peregrinação de longos anos. Ajoelhou-se e chorou incansavelmente
por longos minutos, seu coração dava adeus a sua descrença e
apoderava-se de uma Fé nunca antes sentida. Por um momento
cessaram-se as lágrimas, suas mãos enxugaram-lhe a face e fez-se
abaixar o rosto ao chão, e ali ficou até que seus pulmões não mais
expiraram o ar frio do outono e que seus olhos não mais vissem a
paisagem do entorno.
Seu pai houvera entendido a necessidade da morte de sua mãe,
que viveu neste universo tremendamente enigmático - neste que era
apenas um planetinha na Via Láctea -, para lhe fazer resgatar a
necessidade humana de sentir existir-se. Não da necessidade de revelar
uma ou outra fé, não da necessidade de revelar um ou outro Deus, mas
sim da necessidade de mostrá-los que independentemente de todas as
forças divinas e das ciências naturais, o universo respirava cheio de
vida. E o fato dessas vidas estarem interligadas fazia com que todos os
sentidos das racionalidades humanas fossem exóticos e triviais, pois a
vida pulsava nas veias de todos os cosmos e todas as matérias, numa
filosofia perene de estar vivo e acreditar em algo.
Para Helena, o universo conspirava para as energias e as coisas
boas, para o sentimentalismo e as vivências espirituais e transcendentais
numa existência maior e mais genuína, na intuição e no acreditar. A
vida na Terra não se resumia apenas a um conjunto de moléculas de
carbono que dependem do sol e da água para viver, era mais do que
apenas a consciência e o toque providencial, existia o Amor e para ela
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isso já bastava. E naquele momento, ao ver a luz da aurora mais
vibrante, sentiu emanar uma força que lhe preencheu de vida e alegria,
eles estavam lá, no meio de toda aquela poeira da matéria que
formava o universo, pois para ela, a vida perpassa em veias que nunca
fecham.
JORGE PEREIRA, recifense, estudante de Bacharelado em Biomedicina pela
Universidade Federal de Pernambuco e bolsista de Iniciação Científica pelo
CNPq. Desenvolve projetos de pesquisa em Biologia Molecular com doenças
autoimunes no Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (LIKA).
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DE UM PULSAR DESBOTADO
Roberta Santiago
Porto Alegre, RS
palavras que devem ser ditas
mas morrem
ainda na esperança
de não precisarem nascer
o que afinal se sente
quantos metros cúbicos tem
o volume da dor
quantas letras formam
© KAROLINA WHO
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o nome do que sinto
e qual é o nome
se para nomes, pensa-se
e só sinto
como se chama a cor dos seus olhos
que se fecharam
e agora estão costurados
agulha e linha de nylon
fio a fio
cílio por cílio
até que eu possa decorar em memória
e enfim descosturar
o que havia guardado
no exato diâmetro da tua pupila
o problema é que os olhos
não ouvem só veem
o problema é que as palavras
tão somente significam
a palavra amor nunca aprendeu a amar
ROBERTA SANTIAGO nasceu no Rio de Janeiro e mora atualmente em Porto
Alegre, RS. Escreve poesias desde os 13 anos de idade. Seu primeiro livro,
"Anotações sobre o tempo e as cidades", foi publicado em 2014. Atualmente
está concluindo o projeto do seu segundo livro de poesias.
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ODEIO SUPORTE PARA COPOS
Nathalia Affel
São Paulo, SP
Carlos deu o primeiro passo. Pronto, agora não tinha mais volta. O
pedido foi feito e desfazê-lo ficaria muito feio para o seu lado. Não que
ele não quisesse, mas após dizer aquelas palavras, um terror e
desespero se apoderou dele. E agora? Qual seria o próximo passo?
© KAROLINA WHO
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Ajoelhar e fazer a boca mexer em um som de meia dúzia de palavras
foi fácil, até demais. Agora, colocar em prática a loucura que estava
prestes a iniciar era outro negócio. Ela vai dizer sim. Sim, caramba, sim, e
ainda complementar "Vou começar os preparativos amanhã!". Ele
conhecia a namorada, sabia o quanto ela ficava empolgada com esse
tipo de coisa e eles já estavam juntos há sete anos. Mas, também, ela
pode dizer qualquer outra coisa, "Vou pensar no caso", "Eu ainda não
tenho certeza", "Estamos indo rápido demais", "Não" ou simplesmente
"Carlos, não seja um completo idiota". Mas agora a placa de imbecil já
estava colada em sua testa. Ele tinha certeza de que em breve estaria
noivo.
E, para Carlos, neste frenesim de desespero, não só a sua vida de
solteiro estava terminada como a sua vida em geral estava destruída.
Nesse um minuto de pensamento que se seguiu entre a sua proposta e
a resposta da namorada, que no momento estava com uma cara de
espanto, da qual Carlos teria achado preocupante se não estivesse
tendo um surto interior. Todas as regalias que seriam cortadas
começaram a passar em sua cabeça como um filme. Cervejinhas
depois do trabalho, pizza pelo menos em quatro jantares por semana,
meias na gaveta de cuecas, andar nu pela casa cantando Guns N’
Roses com uma guitarra imaginária (não que ele fizesse isso, é claro).
Tudo estaria acabado. Como ela iria entender que ficar em frente ao
espelho imitando o Hulk ou saudando o bom e velho amigo ali debaixo
que muitas vezes lhe trouxe extremas alegrias, era perfeitamente
normal?
Ar, ele precisava de ar. Mas não dava para levantar dali
enquanto não houvesse uma resposta. E por que ela estava
demorando tanto? Ou ela realmente não estava, e aquela velha
história de que você vê toda a sua vida em um segundo antes de
morrer é totalmente verdadeira. Carlos então começou a pensar nas
desculpas e nas explicações que daria caso ela dissesse sim, como iria
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deixar claro que aquilo foi um erro, que o problema não era ela, mas a
vida com ela dali por diante. Como iria desfazer o que havia acabado
de fazer sem parecer um completo lunático bipolar ou um canalha de
quinta?
Respirou fundo e levantou. Mesmo porque àquela altura seus
joelhos já estavam pedindo socorro. E quando abriu a boca para falar
seja lá o que fosse, pois no fim resolveu fazer tudo no improviso, ela
respondeu “Não”. Ela disse: não. Passaram-se vários segundos de
choque enquanto os dois se olhavam e o resto do restaurante que ele
tinha escolhido com tanto carinho e dor no bolso, também esperava
uma reação, após a negativa inesperada. Finalmente, ele não teria de
arranjar nenhuma desculpa, inventar nenhuma explicação ou mentira.
Ele não precisaria agir como um completo idiota que acaba de pedir a
namorada em noivado e, cinco segundos depois, muda de ideia como
se um pedaço de pau tivesse caído na sua cabeça e o trazido para a
realidade. Uma sensação estranha começou a tomar conta de Carlos,
ele estava livre, livre para ver Duro de Matar até enjoar da cara do
Bruce Willis. E quem é que enjoa da cara do Bruce Willis? Livre para não
combinar as meias com as cuecas e ignorar os suportes de copo. E daí
que a madeira vai marcar? Livre para fumar dentro do carro sem ter
que deixar as janelas abertas, em um frio de matar, só para o cheiro
não impregnar no estofado e ainda tendo que jogar as cinzas fora para
ela não descobrir esse seu mais novo e fedido hábito. Livre para jogar
vídeo game comendo pipoca, como um garoto de dez anos durante o
domingo sem ter que ouvir “CUIDADO PRA NÃO DERRUBAR NO SOFÁ,
MANDEI LAVAR AS ALMOFADAS ONTEM!”.
E, com essa sensação estranha tomando conta do corpo de
Carlos, finalmente ele teve coragem de dizer: “Não? Como não? Eu te
trago em um restaurante desses, te compro um anel que custa mais do
que a minha casa, tomo a decisão de passar a minha vida do seu lado
e tudo o que eu recebo em troca é um mísero NÃO? Como você pode
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fazer isso comigo, Ivete?”. Carlos estava tomado por uma raiva um
tanto quanto descontrolada, respirando tão fundo que gotinhas líquidas
saíam de seu nariz vez ou outra. Apertava o encosto da cadeira com
tanta força que, se fosse realmente o Hulk, já tinha transformado aquilo
em pó. Até que Ivete resolveu se pronunciar: “Eu não estou preparada
para isso, eu acho que estamos indo rápido demais, eu até posso
pensar no caso, mas não sei. Não estou preparada para abrir mão da
minha liberdade, não quero que minhas noites vendo novela com um
pote de sorvete sejam substituídas por partidas de futebol e gritos
frenéticos. Quero lavar as minhas calcinhas no banho e deixá-las
penduradas em qualquer lugar, não sei cozinhar e prefiro comer pizza
quatro noites por semana do que me dar ao trabalho de ir até a
cozinha. Não quero ter que bancar a esposa todas as noites esperando
você voltar do trabalho enquanto poderia estar em um happy hour
com as amigas enchendo a minha cara de cosmopolitan e falando mal
das assistentes. Não, Carlos, não. As almofadas vão ficar sujas de
sorvete a cada vez que eu resolver passar o domingo jogando vídeo
game e assistindo Duro de Matar, porque quem é que resiste ao Bruce
Willis? Não estou pronta para ser uma boa esposa e, acho que nunca
estarei. Me desculpe”.
Se vocês pudessem ver a cara do Carlos, como os clientes
daquele restaurante estavam vendo de camarote, estariam tão
embasbacados quanto eles. Tudo o que ele conseguiu fazer foi
caminhar até o barman e pedir uma dose de qualquer coisa que
trouxesse um pouco de realidade para o que acabou de acontecer.
Ele foi rejeitado, abandonado, negado em público pela mulher que
mais amou na vida e era isso que ele repetia para o barman a cada
dose a mais que ele trazia de alguma coisa que ele ainda não sabia o
que era. E, em algum momento entre estar sóbrio e em desespero por
ter feito um pedido de casamento e estar bêbado cheio de desgosto e
frustração, Ivete foi embora dizendo “Carlos, não seja um completo
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idiota. Aqui está o dinheiro para o táxi, você não está em condições de
dirigir, e eu preciso de um cigarro”. Ela disse isso segurando-o pela face,
e cruza o restaurante com todos os olhares a seguindo, parando na
mesa em que estavam para depositar a taça de champanhe que
vinha segurando desde então, deixando uma marca do anel do fundo
da taça na madeira, “Odeio suporte para copos”.
NATHALIA AFFEL nasceu em São Paulo e é atriz formada pela Escola de Atores
Wolf Maya. Fez parte de várias companhias teatrais amadoras, atendendo à
workshops e cursos livres, tanto em interpretação quanto em teatro musical.
Também cantora, faz parte de um projeto musical chamado Frente Verso, e já
cantou em eventos como a festa No Capricho e o programa Jovens Talentos.
Atualmente estuda comunicação social, escreve e mantém um blog
chamado Plástico Bolha, onde aborda o mundo do entretenimento, arte e
cultura.
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A ÚLTIMA OBRA
Daniel Waschowicz
São Paulo, SP
O Sol espiava pelos pequenos furos da janela. Lá dentro estava
tudo quieto, sendo o silêncio interrompido ora ou outra por uma leve
respiração.
A luz do abajur se misturava ao cheiro forte do cigarro, num
amarelado intoxicante que impregnava todo aquele ambiente e
parecia sufocar todos os objetos daquele espaço com seus afiados
dedos decadentes.
DESTAQUE
DA
SEMANA
© KAROLINA WHO
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Alheio a essa atmosfera de morte, sentado numa poltrona
desbotada com pequenos rasgos, havia um homem aparentando estar
na casa dos quarenta anos. Em sua mão estava um cigarro aceso que
era conduzido a sua boca de momentos em momentos, com uma
lentidão aparentando indiferença.
O Sol tentava buscar os olhos daquele homem, mas ao refletir sua
luz neles, tudo o que revelava era ausência, como se tivessem sido
tragados. A vida penetraria naquelas órbitas que pareciam vazias?
A fumaça do cigarro era a continuação daquele olhar e à medida
que se elevava pelo ambiente, acabava por apodrecer a luz solar. E
aqueles olhos fitavam toda aquela extensão do espaço moribundo que
lhe rodeava procurando tragar os restos de vida que ali houvesse.
Aquela pessoa, desbotada pela ação do tempo, levantou-se
lentamente de sua poltrona e foi até uma mesinha à esquerda de onde
estava e lá sentou, abriu uma gaveta, pegou um caderno e uma
caneta e pôs-se a observar esses objetos por alguns instantes.
Pouco tempo depois, começou a escrever alguma coisa. Sua letra
era um pouco tremida, quase beirando o ilegível, mas nada que um
pouco de esforço na leitura não consiga resolver. Isto provavelmente
deveria ser resultado de pouca prática no decorrer dos anos. Apesar
disso, todo um universo ia sendo criado. Cada palavra era
minuciosamente esculpida, formando um tecido que começava a
rascunhar o próprio ambiente que o rodeava, dando vida à matéria
morta que lhe cercava.
Escolhida a última palavra, não lhe restava outra coisa, a não ser
levantar-se, colocar o casaco, acender um cigarro e caminhar
silenciosamente por algumas horas naquelas ruas vazias, como era de
seu costume.
Uma vez mais o Sol espiou e pode ler aqueles versos sobre a mesa,
sendo o primeiro a ter acesso àquelas palavras, que diziam o seguinte:
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A Janela Fechada
A janela fechou.
O abajur apagado
É o sonho de outrora
que jaz esmagado
Na escuridão do quarto.
A cortina desbotada
Jamais mostrará
Seus desenhos delicados
Cobertos pelo silêncio.
Aqueles papéis espalhados
Na mesa, junto a algumas
Velhas fotos de infância
São restos de passados
Presos ao silêncio
Daquela escuridão, cujo ar
Solidificado entupiu
Toda extensão do quarto.
E a janela nunca mais se abrirá.
DANIEL WACHOWICZ é formado em Letras e professor de português e inglês,
tendo feito diversos cursos de produção literária. Recentemente, fez o
lançamento de seu primeiro livro de poesias, “Convite ao abismo” (Multifoco,
2014).
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CARTA ESCONDIDA
José Eugênio Borges de Almeida
Maragogi, AL
Repousei com tranquilidade a minha mão sobre o teu colo e
deixei que, imóvel, pudesse sentir o pulsar do teu coração. Ele começou
a pulsar mais rápido e a tua respiração ficou mais ofegante, como
quem procura o ar e não encontra. Senti o toque macio da tua pele e
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Reminiscências
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pensei que a idade não tinha ainda conseguido diminuir as sensações
que um simples toque pode provocar nos nossos corpos.
Nos olhares, quando eles se prendiam sem pressas nas nossas
figuras, pareciam penetrar no mais fundo que as almas escondem ou
tentam esconder, às vezes simplesmente por inibição, sem explicação,
ou por pura timidez.
As nossas vozes pareciam que se igualavam em tons e
intensidade conforme o entendimento das palavras se aninhavam no
discernimento aprazível dos anos.
Nossos prazeres gustativos, foram sendo apurados na justeza dos
ensinamentos saudáveis da medicina, mas aí, talvez, os nossos corpos
tenham obedecido ao apelo dos nossos genes e muitas das nossas
preferências permaneceram incólumes.
Os perfumes por nós inalados, nunca tiveram consonância, talvez
por isso conseguíssemos ter nossos aromas tão próprios e diversos.
Por isso a tua lembrança não sai das minhas circunvoluções
cerebrais e o teu rosto das minhas retinas, apesar de se terem passado
tantos anos da tua morte.
Só as lembranças dos acontecimentos por nós vividos, é que se
tem esfumado na memória dos tempos, Assim como quem apaga um
quadro negro todo escrito, bem devagar, retirando fragmentos da
história, deixando-a assim mambembe, coxa, sem equilíbrio lógico. Os
parágrafos se misturando, tornando tudo incompreensível. As memórias
aparecem em flashes muito rápidos sem me dar tempo de fixá-las.
Lembras-te do Antônio? Se ainda estivesses viva, irias ver a
deterioração mental dele, provocada pelo Alzheimer. Ele já não
consegue reconhecer ninguém, nem a si próprio, num declínio cognitivo
enorme. Além da confusão mental e irritabilidade. As alterações do
humor são frequentes, muitas vezes com agressividade. Já nem
consegue identificar objetos ou pessoas.
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Não consegue formular frases que tenham algum sentido.
Recusa-se a levantar da cama e na maioria das vezes não quer comer.
Um verdadeiro abjeto.
Corpo sem memória é só um corpo, sem personalidade, sem vida,
sem sentimentos. Nós somos a nossa memória, sem ela, somos nada.
E ele tem menos seis anos que eu. Fico imaginando que talvez
essa doença atinja quem tem muito medo da morte, pois assim há um
desligamento em vida da vida, deixa-se de se ter a percepção dela e
nada mais importa. Acaba-se o sofrimento psíquico e a antevisão da
morte deixa de existir. Fica-se como um animal acéfalo.
Mas existem aqueles que resistem às investidas do tempo, como o
arquiteto Oscar Niemayer, que ultrapassou os cem anos de idade. O
seu corpo deteriorou-se, mas a sua integridade mental e intelectual foi
fantasticamente preservada.
Creio que os apagamentos no encadeamento das minhas
memórias são seletivos. As partes mais fortes, mais intensas têm sido
preservadas. Por enquanto.
Tenho tido o cuidado de escrever as partes que me esqueço com
mais frequência, para que assim, substitua a perda da minha memória.
Só para me sentir mais apoiado de passados. O pior é que muitas vezes
quando releio o que escrevi, não me reconheço dentro daqueles
personagens. É como se eu estivesse a ler uma história de outra pessoa.
De modo que o esforço da preservação de memória acaba por não
funcionar e não ter nenhum sentido prático para mim.
Tenho tido apatia e já me foge a memória semântica, perdendo
a flexibilidade do pensamento abstrato.
Entrei por outro tipo de experiência: sento-me à frente da câmara
de vídeo e começo a ler as memórias escritas e a afirmar que é a
história da minha vida. Mas acabou também por não resultar, pois no
outro dia nem sequer reconheci o meu rosto como se fosse meu.
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Agora já ando com a tua fotografia no bolso, para que a tua
memória não me fuja. Mas no outro dia dei por mim a observar o teu
retrato sem te reconhecer.
Por vezes sinto-me tão desasado, tão sem memória, que a
sensação é dum turbilhão dentro da minha cabeça, com muitos sons
desconexos a habitá-la.
As tuas saudades, quando me lembro de ti, são tão grandes que
só me apetece estar contigo, estejas onde estiveres.
Fazes-me falta minha querida.
Sinto falta do teu toque, do teu cheiro, da tua voz, quando
consigo me lembrar disso tudo.
Se estivesses aqui, de certeza que irias repetir para mim vezes sem
conta as nossas vivências, tornando a minha vida mais
consubstanciada, mais crível, mais humana, mais lógica...
JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA é médico e começou a escrever há
quatro anos, com 64. Nesta jornada, já reuniu 39 prêmios em concursos
literários diversos, publicou o romance juvenil “Uma Luz no Fim do Túnel” e está
em fase final de edição de “Labirinto Eterno”, finalista do Prêmio SESC 2014, a
sair pela Editora W5).
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O VELHO SEBASTIÃO
José Vieira
Santa Cruz, Portugal
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Reminiscências
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Era velho e chamava-se Sebastião. Tinha mais de oitenta anos. A
pele enrugada e os cabelos brancos escondiam as amargas memórias
da sua existência. Vivia sozinho numa pequena casa, outrora herdada
de seus pais. A vila que o viu nascer era a que o tinha visto envelhecer.
Sebastião sabia de cor, como se da palma da sua mão se tratasse,
cada canto e recanto daquele lugar. Aquela vila era o seu lar.
Sebastião não era uma pessoa muito faladora. Não se reunia no
jardim para jogar xadrez, como faziam outros da sua idade. Não era
visto nos cafés, ao início da manhã e ao fim da tarde. Não ia à igreja.
Sebastião vivia na vila, mas não se relacionava com ninguém. Era como
se vivesse num outro mundo. Um mundo apenas seu. Como se estivesse
dentro de uma bolha e onde não deixava ninguém entrar. Os da sua
idade sabiam que ele era assim por causa dela.
Chamava-se Benedita. Há muito tinha partido da vila, para seguir
o seu sonho. Era a jovem mais bonita da terra. Não havia moça tão
formosa como ela. Era alegre e destemida. Benedita encantava
qualquer um. Tinha a mesma idade que Sebastião. Juntos brincaram na
meninice. Descobriram a paixão na juventude. E conheceram a dor de
um amargo amor.
Na vila sabiam que aqueles dois estavam enamorados. Pareciam
destinados. Todos esperavam que quando atingissem a maioridade se
casassem.
Enquanto isso, não ocorria os dois jovens saboreavam
vagarosamente a vida. Viviam para a paixão que nutriam. Estavam
como que escravos daquele sentimento. Tudo era feito para o outro e
em função do outro. Seguidamente viria o apaziguamento e com isso, o
amor. As borboletas outrora sentidas, quando se aproximava a hora de
estarem juntos, passaram à serenidade. O sentimento tinha evoluído.
Tinha crescido juntamente com eles. A loucura da paixão transformara-
se num tranquilo amor. Daqueles amores para a vida inteira, assim
suponham.
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Sebastião deixara a escola cedo. Não tinha cabeça, costumava
dizer, para os estudos. Fora logo trabalhar como carpinteiro. Adorava o
que fazia. Das suas mãos saíam autênticas peças de arte. Era usual
curiosos da cidade virem à procura dos seus trabalhos. As maravilhas de
Sebastião trespassavam aquela pequena vila. Benedita continuara a
estudar. Tinha gosto em ir à escola. Nutria grande entusiasmo em
aprender novos saberes. Para qualquer lugar que fosse tinha sempre um
livro nas suas mãos. Não se cansava de ler e de imaginar. A sua mente
voava e voava para lugares longínquos. Cabia a Sebastião trazê-la de
volta à vila.
Amavam-se. Sem dúvida que se amavam. No seu jeito
complementavam-se mutuamente. Porém os sonhos de cada um eram
distintos. Sebastião queria criar raízes. Ficar na vila. Aquela pequena
terra era o seu segundo amor. Era apaixonado por cada canto e
recanto. Nunca tinha saído daquele lugar mas em momento algum
pensara em fazê-lo. Era a sua casa. Fazia-o feliz. Benedita por sua vez
queria voar. Conhecer o mundo era o seu maior sonho. Queria sair dali
e descobrir novas pessoas, culturas e saberes. Queria a descoberta.
Abrir horizontes. Deixar para trás as superstições e a pequenez daquele
local, que a agudizava a cada dia.
Na época eram jovens. Embora soubessem das suas diferentes
formas de pensar, quanto ao futuro, preteriam não falar sobre o assunto.
Assumiam que no momento certo haveriam de reflectir sobre o mesmo.
Enquanto isso preferiam ir vivendo e saboreando aquilo que a vida
proporcionava.
Amavam-se! A cada pôr-do-sol mil e uma promessas de amor
eterno. Sebastião e Benedita iam crescendo envoltos num intenso e
profundo amor, sem pensar no amanhã.
Um dia uma companhia de teatro chegou à vila. Precisavam de
figurantes. Benedita nem pensou duas vezes e inscreveu-se. Fez as
provas e imediatamente foi contratada para a peça. A sua
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participação fora tão excepcional que logo surgiriam novas propostas e
com isso uma reviravolta na sua vida. Teria que partir para a cidade e
Benedita, novamente, não vacilou. Foi embora. O seu maior sonho
brotava. Não podia desistir. Sebastião nada fez. Apercebeu-se que era
o segundo amor de Benedita. Se a prendesse à vila com o tempo seria
uma mulher infeliz e frustrada. Deixou-a ir. Mostrou assim o seu amor.
Benedita tornou-se numa conhecida actriz de teatro. Sebastião
ficou na vila a elaborar as suas obras em madeira. Todas as noites,
sentava-se num grande cadeirão junto à lareira. Abria a caixa de
música, que um dia fez para Benedita. Iria oferecê-la com um anel de
noivado, no dia em que Benedita anunciou a intenção de partir. Ficava
a ver a boneca a rodar e a rodar. Fechava os olhos e pensava nela
enquanto uma melodia tocava. E a boneca rodava e rodava. Não saía
das suas mãos ao contrário de Benedita.
JOSÉ VIEIRA é o pseudónimo de Teresa Vieira Lobo. Jovem nascida na década
de 80, numa pequena localidade chamada Gaula, terra de amoras, padres e
doutores. Em 2014 estreou no mundo da escrita com o livro “Estranhas
Coincidências”.
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Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Recepção de originais:
Colaboração especial:
Karolina Who