revista subversa vol 4 nº10 jun2016
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Encerrando o Volume 4 e preparando os novos rumos!TRANSCRIPT
WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
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SUBVERSA
DOUGLAS SIQUEIRA MARTA CORTEZÃO
GABRIEL AUGUSTO TAYLANE CRUZ
PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ TAÍS BRAVO
MARCEL VIEIRA LEONARDO CAMARGO FERREIRA
ALEXANDRA TORRES YURI CLARO
Vol. 4 | n.º 10 |maio de 2016 ISSN 2359-5817
Ilustração | A. MIMURA
WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
Subversa | literatura luso-brasileira |
V. 4 | n.º 10
© originalmente publicado em 01 de junho de 2016 sob o título de
Subversa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Ilustrações
A. MIMURA
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados
como autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos
textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem
com a realidade.
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ALEXANDRA TORRES | ARQUEÓLOGOS DO NOSSO PRÓPRIO
PASSADO | 6
DOUGLAS SIQUEIRA | CRIADOR | 8
GABRIEL AUGUSTO | SENSÍVEL CENSOR | 10
LEONARDO CAMARGO FERREIRA | INDECISÃO SOCIAL | 14
MARCEL VIEIRA | MEIO-DIA E MEIA | 16
MARTA CORTEZÃO | ALGOZ | 21
PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ | CONFESSO QUE MORRI | 24
TAÍS BRAVO | GUIA| 26
TAYLANE CRUZ | CLANDESTINO | 30
YURI CLARO | O PRAZER DE TERMINAR LIVROS | 35
A. MIMURA | 38
SUBVERSA
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EDITORIAL
“Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre a fazer-
se, que extravasa toda a matéria vivível ou vivida. É um processo, quer dizer,
uma passagem da Vida que atravessa o vivível e o vivido.”
Gilles Deleuze "A literatura e a vida"
Todo o final anuncia um começo. A Subversa encerra mais um Volume
e mais um semestre de trabalho que trouxe novas ideias, novos autores e
leitores, sempre alcançando alguns pequenos objetivos e mantendo outros em
nossos planos, sonhos e aspirações mais altas. Daremos uma pausa nos
números, para descansar um pouco e avaliar como tem sido a nossa
experiência por aqui e os passos que a revista tem dado, sem deixar de
publicar os textos dos colunistas e algum material eventual.
Queremos dedicar esse número a todos que nos ajudam a fazer a
Subversa diariamente e que ajudam a torná-la uma revista de todos. Todo o
tipo de incentivo nos motiva e confirma a importância desse tipo de trabalho
em diversos contextos.
O número é ilustrado por A. Mimura, nosso colaborador visual
permanente, autor de obras belíssimas que já são parte da revista. Somos
muito felizes por essa parceria.
Esperamos anunciar, em breve, notícias que movimentem os ânimos de
todos e que a Sub seja a companhia de leitura na praia, na lareira, sob sol ou
chuva.
Desejamos uma ótima leitura a todos!
As editoras.
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Em breve, Subversa versão impressa #2
6
ALEXANDRA TORRES | Lisboa, Portugal.
ARQUEÓLOGOS DO NOSSO PRÓPRIO
PASSADO
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Desenterrar e pincelar os fósseis da nossa própria história, dependendo
da era a que se referem, pode ser um exercício doloroso se estes
evocam memórias que preferiríamos ter soterradas para sempre ou
prazenteiro se celebramos ter vivido as experiências fossilizadas.
Se é recorrente descobrirmos memórias que nos inspiram mágoa,
pegadas jurássicas que moldaram a pedra - a natureza de um
comportamento - parece que perpetuamos a melancolia procedente
do passado.
Porém, se olharmos para essas peugadas como parte do nosso
crescimento - lições aprendidas - então, talvez possamos apreciar os
nossos fósseis como peças de museu, cuja história marcou um caminho
mas não a forma de caminhar. Porque caímos e soubemos erguer-nos,
e continuámos a andar.
A evolução tem sempre um ponto de partida. Por vezes, parte da dor.
Outras vezes, da alegria. Mas sempre, sempre, parte da vontade. E a
isso chama-se: sobreviver.
ALEXANDRA TORRES (1975, Lisboa) estudou Design de Moda no Citex e na
Academia de Moda, Artes e Técnicas do Porto. Durante o seu percurso
profissional nunca abandonou a sua verdadeira paixão, a escrita. É autora da
saga fantástica O Segredo dos Imortais, com as duas primeiras entregas,
Passado e Presente, publicadas; Ossos, um conjunto de poemas que
constituem pequenas reflexões sobre o pensamento, coração e alma; e de
participações nas antologias poéticas Enigma(s) I e II, e Utopia(s). |
[email protected] | Facebook
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DOUGLAS SIQUEIRA | São Paulo, SP
CRIADOR
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de todo movimento necessário
uma dança leve com o acaso
do grito preso indignado
uma canção de seis minutos afiados
de cada instante transitivo e raro
o eterno em movimento capturado
dos devires em mim em ato
um absurdo e surreal quadro a quadro
entre Pina Dylan -Bresson Buñuel
estou eu potente e perdido
ansioso por riscar o infinito
no espaço em branco deste papel
DOUGLAS SIQUEIRA tem 31 anos, é bacharel em Comunicação Social com
habilitação em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). É idealizador e escritor da página (autor ensandecido) desde 2013
e, além de escrever poemas, atua na área de Produção Audiovisual como
professor e realizador. | [email protected]
10
GABRIEL AUGUSTO| São Paulo, SP.
SENSÍVEL CENSOR
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Renato é um cidadão comum. tem vida comum habitação
comum família comum trabalho comum diálogos comuns costumes
comuns enfim, um cidadão comum. Renato tem um filho. Samuel.
Samuel não é comum. Samuel vê pequenezas.
Renato acorda cedo pra labuta. come seu matinal comum de
café com pão. disposição. margarina ou requeijão depende da
situação. vai para o trabalho. trabalho desses qualquer. porteiro
qualquer manobrista qualquer servente qualquer segurança qualquer
ou até vendedor de frutas, desses qualquer que ganha pouco pra
muita luta.
Renato enfrenta seu dia de maneira comum. o tempo de espera
na parada de ônibus depois da longa caminhada, já não incomoda.
viajar em pé na lotação, também. o nascer do sol durante esse
percurso passa despercebido. a ausência de dona Benedita
cantarolando diariamente ao amanhecer enquanto despeja litros e
mais litros de água na calçada, também. até o bom dia que bolinha lhe
abana enquanto futuca os lixos da rua se torna descabido. não por
maldade ou qualquer outro infortúnio, mas porque se tornou comum.
as horas de seu dia se arrastam de maneira comum. a disputa
pela sobrevivência também. hoje precisou dobrar as mangas da
camisa e sair na mão com um filho da puta que atravessou seu
caminho. mas nada de mais, apenas uma discussão comum. a marmita
fria comida na guia já nem é problema. o suco de limão amarga vida,
também. ouvir que seu trabalho pobre não presta já não importuna.
ficar até mais tarde sem extra, também.
os dias de Renato também terminam de maneira comum. a
viagem em pé na lotação. uns falam novela outros futebol e todos
televisão. tremenda falação. ontem precisou colocar pra fora um
vagabundo que entrou pela porta de trás dizendo não pagar a
passagem, onde já se viu andar de graça. hoje foi mais tranquilo. rolou
até samba na praça. nem percebe que dona Benedita cantarolando
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diariamente ao anoitecer enquanto despeja litros e mais litros de água
na calçada, já não está mais. nem parou pra ver o que a galera
juntada na rua falavam dela. os preços das coisas aumentaram
novamente. a cachaça barril de plástico já nem esquenta mais a
goela.
em casa o jantar é de arroz e feijão comum. a queda de energia
na hora do banho, também. hoje Renato precisou disciplinar sua mulher
que insistia em aporrinhar sua vida com a história de dona Benedita que
morreu não morreu depois do infarto. apenas uma palmada de leve
dessas comuns. nada demais, disse pra ela. reclamação é coisa de
novela.
e Samuel procura pedaços de papel. encontra e corre para seu
quase quarto no cantinho. Samuel procura restos de linha retalhos de
tecidos tampas de garrafa palitos de fósforo queimados. encontra e
corre para seu quase quarto no cantinho. isto é incomum. incomum
altera a vida comum de Renato. Renato pergunta Samuel o que faz?
nada, responde amiúde. na novela nada além do comum. a mulher
chorando no quarto, também. e Samuel continua seu trabalho,
quietinho. o que faz Samuel? nada, responde amiúde. como nada?
deixa eu ver. não está pronto, diz Samuel com a autoridade de sua
quase década de vida. Renato tenta manter a todo custo o conforto
que o comum lhe proporciona. Samuel continua procurando plásticos
usados cadarços de sapatos rebentados e, pedaços de papel.
encontra e corre para seu quase quarto no cantinho. isto é incomum.
quando o conforto é comum o incomum incomoda. muito perguntar e
ouvir está quase pronto, também. Renato rompe a barreira do comum
e caminha em direção a Samuel que arduamente se dedica a
convencê-lo aguardar um pouco mais, pois ainda não está pronto. no
incomum, empurrar uma criança já não afeta. ouvir o choro depois,
também. Renato retira bruscamente a tenda de tecido improvisada
que cobre o quase quarto no cantinho.
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Samuel constrói vidas. palitos de fósforo queimados com pedaços
de plástico morto dão vida a lindos cisnes. castelos caixas de leite se
erguem grandiosos com bandeiras reais e poderosos soldados tampa
de garrafa guardando a porta. formosos cavalos toco de vela galopam
a todo vapor por entre as camponesas moedas que colhem flores
tecido pelos campos verdejantes. frondosas árvores retalhos formam
densas florestas. mas, nada é tão belo quanto a revoada de pássaros
origami. centenas de todas as cores tamanhos texturas, livremente pelos
céus. uns rasantes outros altíssimos todos voantes. e Samuel acompanha
a mãe chorando em coro. Renato é convidado a voar. aceita. Renato
voa pela primeira vez. entre altos e rasantes convida Samuel e a mulher
a voar juntos. voam juntos.
Renato não é mais uma pessoa comum.
GABRIEL AUGUSTO, natural de São José dos Campos/SP, iniciou-se
artisticamente como músico da Orquestra Jovem da Fundação Cultural
Cassiano Ricardo. Designer Gráfico formado pelo SENAC, exerceu esse ofício
por vários anos. Em 2010, mudou-se para São Paulo para estudar teatro,
cursando HUMOR pela SP Escola de Teatro. Atualmente propõe como artista
projetos onde música, teatro e literatura se entrelaçam e constituem obra que
dialoga com a cidade em sua movimentação cotidiana. É ator no Coletivo
Nós, Palhaços!, músico e poeta das ruas. | [email protected] |
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LEONARDO CAMARGO FERREIRA | Vila Nova de Gaia, Porto,
Portugal.
INDECISÃO SOCIAL
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Na violenta cidade,
Que projetos se encontram
Na multidão desamparada?
Há sempre mau governo, má política,
Assim como nula é a consistente votação.
Cada vez mais, trabalha-se na impressão
Das vontades que não as próprias:
O papel sai tudo, exceto original.
E a cada dia, o medo das personalidades alastra-se,
Sem fim definido.
Mas numa outra dimensão dentro do próprio planeta,
O pensamento de retaliação é persistente, vicioso,
Parecendo nunca acabar revogado.
E assim vamos destruindo os que permanecem à nossa volta,
E os que seguem por arrasto.
"Todos, a não ser eu, são inúteis.", a simples reflexão diária.
Afinal, somos importantes,
Ou não passamos de escravos-sombra para os "superiores"?
Isto, sem nenhuma dúvida, é a indecisão social.
LEONARDO CAMARGO FERREIRA tem 16 anos e vive em Vila Nova de Gaia, no
distrito do Porto, Portugal. Frequenta a escola secundária Almeida Garrett.
Sempre adorou escrever e o mundo da literatura. Iniciou seu percurso nesta
fantástica arte aos 14 anos. Tem muitos escritos realizados. Continuará a
escrever até a sua respiração cessar. | LEONARDO-CAMARGO-
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MARCEL VIEIRA | João Pessoa, PB.
MEIO-DIA E MEIA
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O avô assiste de longe a tevê, sentado numa cadeira de balanço junto
à porta do quintal, o cabo Robério explicando o caminho da
perseguição, primeiro o meliante assaltou o mercadinho e na saída a
viatura da PM passava no local, vagabundo, o avó rumina do seu
canto, e houve então uma troca de tiros entre os soldados e o meliante,
que conseguiu ainda fugir na garupa da moto do comparsa, ferro
nesses vagabundos!, o avô grita mais excitado, e da sala a menina
responde, é o quê, vô?, deitada no sofá calorento com as pernas pra
cima e os dedos no celular, hj vai ter a festa, né ;), mas o avô retruca,
ainda mais alto, é nada não, abestalhada, a ronda seguiu a moto até
interceptar os dois já na descida da Tancredo Neves, sentido
Mandacaru, e os dois foram presos e agora estão à disposição do
delegado, o avô rosna insatisfeito, falando grosso, oxe, e não matou
essas pragas?, uma decepção que toca fundo dentro dele, uma raiva,
a cadeira indo e vindo nervosa, empurrada pelos pés enrugados numa
havaiana azul encardida, vagabundos, o repórter agora explicando os
procedimentos, depois de interrogar, o delegado vai dar baixa no
flagrante e encaminhar os bandidos para o presídio do Roger, ao que o
avô contesta, ainda mais indignado, mata logo esses porras!, e tá
falando comigo, vô?, a menina berra da sala, sem se mover do sofá, no
fundo até achando graça do esperneio do velho, meu vô tá ficando
doido, kkk, escreve na mensagem, rindo consigo mesma, e o avô,
irritado, brada a plenos pulmões, uma voz grave e engasgada, né
contigo não, sua miséria, e a menina acha mais graça, escrevendo pra
Maikesuel, to com saudade, mlk, e espera ansiosa a resposta, o
celular imóvel, silencioso, e a tela brilhante de repente se apaga, a
menina cansada de esperar, impaciente, começam então os
comerciais, bicicleta caloi de doze marchas, de quinhentos e noventa e
nove, por apenas quatrocentos e noventa e nove, em doze vezes no
carnê, só no armazém paraíba, o avô então se apoquenta, o controle
remoto em cima da mesa, lá longe, isso é uma merda!, ainda se queixa
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acabrunhado, e pra espanar o desconforto grita pra sala, ei, sua
quenguinha, venha preparar o meu almoço, e a menina, já habituada
aos xingamentos, aproveita aquela demanda pra acalmar a
ansiedade, Maikesuel, to com saudade, mlk, e calça então as sandálias
cor de rosa, o desenho da hello kitty já desgastado, e põe o celular no
bolso de trás do shortinho jeans, ei, bora, preguiçosa!, o avô continua
nas exigências, mas a menina se irrita, vixe, tenha calma, vô, e o velho
revida rabugento, quem já viu, sua maleducada, não me arremede
não, e a menina avança pela cozinha, soltando num muxoxo a sua
indiferença, pega então um prato do armário, põe duas conchas de
feijão, arroz branco, uma rodela de inhame, pedaços miúdos da
galinha guisada, pescoço e asa, e um punhado de alface, rodelas de
tomate, cenoura ralada, e mais uma banana madura ainda com
casca, e põe então na cabeceira da mesa, oxe, venha me ajudar aqui,
infeliz, o avô exige, apoiando com esforço as mãos nos braços da
cadeira, e a menina se achega junto e pelo braço levanta o velho, mas
o avô, uma vez erguido, empurra a menina pra longe, agora precisa
mais não, e então segue numa passada lenta, sem equilíbrio,
procurando logo no que se apoiar, e a menina fica olhando de perto,
torcendo no fundo pro avô cair, enquanto lá fora passa barulhento o
caminhão de gás, e o programa do Samuka volta do intervalo, e a
menina irritada vê o avô sentar-se à mesa, na cabeceira, e lamenta
consigo a queda que não houve, velho miséria, faz ela também o seu
prato, mas pouco, to com saudade, mlk, e senta na outra ponta da
mesa, de costas para a tevê, pega o celular e repara não ter nada
novo, só a hora acesa no alto, meio-dia e meia, e no fundo uma foto
dela e Maikesuel, da primeira vez juntos, a menina olha a foto e se
agonia, bloqueia o celular e devolve pro bolso, mlk, mlk, to com
saudade, vejam agora esse caso extraordinário, o padrasto acusado de
violentar as filhas da esposa, e uma música tensa, sombria, cresce no ar,
vagabundo, a menina se vira e olha por um instante a tevê, a polícia
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evitou que ele fosse linchado pela população, e o avô se revolta, um
soco na madeira da mesa, mas olha, salvaram o vagabundo!, e a
menina retorna pro seu prato, mais uma, mais outra garfada e desiste
de comer, levanta e deixa o prato na pia, o repórter agora entrevista o
acusado, e o avô interrompe a colherada no ar, grãos de arroz tingidos
da graxa da galinha caem na mesa, e a menina também se interessa,
olha pra tevê, o sujeito de cabeça baixa, sem camisa, hematomas nos
ombros e curativos nos braços, o acusado resistiu à prisão, prossegue o
repórter, e deu uma sorte do cão que a polícia salvou o teu rabo, heim,
e põe o microfone junto à boca dele, mas nada sai, a cabeça baixa,
sem camisa, e a menina logo se desinteressa, olha o celular e, de novo,
nenhum sinal, o avô aguardando a voz do acusado, o silêncio, e o
repórter diz, desse sorte, mas agora na cadeia a história é outra, quase
rindo na cara do sujeito, e o avô rindo também, crioulo vagabundo, vai
ser a namorada do presídio, e riu mais alto, satisfeito, dando um talho
na banana, a menina ainda na cozinha, olhando com repulsa tanto o
acusado quanto o avô, velho miséria, e sem resposta do celular sai da
cozinha, vou no banheiro, viu vô?, e o repórter segue insistindo,
querendo que o homem assuma o crime, querendo do homem que
saiba o que lhe espera, a namorada do presídio, o avô ri, e sem muito
mais volta pro estúdio, é com você, Samuka, mas o velho está saciado,
com um gesto enfadonho empurra o prato, se levanta com dificuldade
e, se apoiando na mesa, vai na direção do corredor, com dificuldade,
se apoiando no armário e nas paredes, trombando, tropeçando, um
traste, e a menina encosta a porta do banheiro, só encosta, mlk, to com
saudade, e então se dá conta de que menstruou, eita, merda, e abaixa
a calcinha e vê o lastro de sangue no fundo, eita, merda, eita, eita, e
assim, em pé com o short arriado, calcinha suja no meio dos joelhos,
abre a gaveta e vasculha lá dentro, eita, tá sem modess, eita, a menina
pingando sangue pelas pernas, vira o corpo pra pegar o papel
higiênico e vê o avô olhando pelo vão da porta, oxe, vô, tá doido?, a
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menina se agita, quase tropeça, e num pulo empurra a porta na cara
no velho, ainda gritando, tá doido, vô, e o velho fala pra si, quenguinha,
e sorri, e segue sua vida.
MARCEL VIEIRA é escritor, professor e pesquisador. Professor do Curso de
Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-graduação em Comunicação
da Universidade Federal da Paraíba, onde trabalha com Roteiro, Narrativa e
Dramaturgia. Autor de "Adaptação Intercultural: o caso de Shakespeare no
Cinema Brasileiro" (EDUFBA, 2013), vencedor do Prêmio de Melhor Tese do Ano
pela Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em
Comunicação (COMPÓS). Possui contos e poemas publicados em Revistas e
Suplementos Literários, como a Revista Continente e o Correio das Artes. |
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MARTA CORTEZÃO| Tefé, AM /Segóvia, Espanha.
ALGOZ
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Era um dia gris
Ele grasnou palavras vis
Saiu batento a porta.
Ela, com a alma torta,
As pedras do seu triste pesar
Se pôs a juntar.
Seu coração desconsolado
Destroçou-se em mil pedaços.
Sua fraqueza agigantou-se,
Sua dignidade esfacelou-se
No presente do verbo amar...
E todas suas culpas foi chorar...
O gris se enegreceu do fel da noite
Convidando a morte, a foice...
Um grito silenciado de lágrimas
Segurou o fio da vida amarga.
Ele jurou amores pretéritos para o futuro.
Ela, de tempo presente, ainda suja,
Empapada de medo e pranto,
Rosto gélido, braços lânguidos,
Perdida de si em tantos nós,
Oportunizou ao seu cruel augoz
Seu único e cansado suspiro,
Entregando-lhe seu resto de vida.
Porque presa em tantos labirintos
Se joga aos leões famintos.
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MARTA CORTEZÃO nasceu em Tefé/AM/BR e é cidadã do mundo. É membro
da Associação Brasileira de Escritores e Poetas Pan-amazônicos (ABEPPA) e
professora da rede pública do Estado do Amazonas. Lecionou também, de
2001 a 2010, na Universidade do Estado do Amazonas (UEA/CEST/TEFÉ) e na
Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em 2011. Atualmente, cursa o
Mestrado em "Mundo Clásico y su proyección en la cultura occidental", em
Segovia (Espanha). Em novembro de 2014, estreou no mundo da escrita com
“Atreva-se”, na Subversa, onde também publicou outros quatro textos. Desde
setembro de 2014 escreve poemas e pequenas reflexões no seu blog
www.tefetupeba.wordpress.com e em sua página Banzeiro Manso, no
Facebook. | [email protected]
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PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ| Muriaé, MG.
CONFESSO QUE MORRI
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Como Neruda, confesso que vivi.
Mas para mim não houve mérito,
Que podia confessar que morri
Pois viver só se deu no pretérito.
Quando menino, não tinha tormento,
Era pipa a soltar pela rua,
Com enorme doçura e candura,
Mimo, proteção e alento.
Ah! Quando eu era pequeno...
Quantos sorrisos trazia...
Tinha de palpável o vento
E no suor – alegria!
Já não vejo as estrelas
Como noutrora as via
Apenas contemplo as cadeiras
Da copa e da sala, vazias.
E assim confesso “viver”,
Sem aquela vetusta doçura
Espalhada com as pipas nas ruas,
Que guardei e esqueci em Terê.
PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ é advogado atuante na zona da mata mineira.
Músico amador, escritor de poesia e prosa. Ganhador de diversos prêmios
literários. | [email protected]
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TAÍS BRAVO | Rio de Janeiro, RJ.
GUIA
27
Introdução:
depois de tanto
te escrever
guardei
em segredo
os prints
só para íntimos
recortes de vontades
suspensas em palavras
mesmo cravadas
as sílabas soam
como fluxo
de alguma certeza
depois de tanto
não te esperar
invento desmedidamente
além do oceano
a volta
Primeira imagem:
no seu rosto passar protetor
indicar o perigo
as ruas expostas
seguras apenas ao alcance
das minhas mãos
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são todas possíveis
marcas, amor
Segunda imagem:
te dar
Caldinho de Feijão
Pão de Queijo
Caipirinha
Brigadeiro
Essa Cidade
se conhece pela ponta
dos dedos até
a boca
Terceira imagem:
reparar se
a velocidade
o risco
a falta
de saneamento
e estrutura
os transbordamentos
as tempestades
o caos
te emocionam ou afastam
da parte de mim
antes de você
29
Por último:
calcular se fomos aquele continente
ou somos criação de outro lugar
fora das cartografias oficiais
e de propósito
ou por ser de humanas
errar as contas
e te deixar
em casa
TAÍS BRAVO é escritora e tradutora. Apesar de formada em filosofia,
sente pontadas no estômago quando alguém a apresenta como
filósofa. É colaboradora da Editora Alpaca e das revistas Capitolina e
Ovelha. Criou, junto com Natasha Ísis, a newsletter colaborativa
Mulheres que Escrevem. Gosta mais de ir à praia do que de existir. |
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TAYLANE CRUZ | Aracaju, SE.
Gorda sempre foi a pedra no meu sapato. Mesmo sabendo
que eu não a queria, me quis. Fico preso a esta condição de
filho adotivo, a este teto de carne, osso e obeso coração que
insiste em me abrigar. Sou um cão mamando desesperado
nas tetas de uma vaca. É Gorda a culpada por eu ser assim.
O modo como mexe a colher no tacho, pondo no meu prato
caldos grossos que não pedi, faz com que eu liberte ainda
CLANDESTINO
31
mais meu lado mau. Ela sabe disto, me provoca
descascando uma banana e enfiando a fruta na goela sem
nem mastigar. Bato a colher no prato com ódio de Gorda
que se engasga diante de mim. Nunca pedi por uma mãe,
muito menos uma como ela, com pelos brancos brotando do
queixo como raízes de falsa mulher.
Gorda é feia. Sinto nojo de sua gula, da sua bunda que incha
mais a cada dia com as bolotas de pão engolidas com
desespero. Odeio todas as suas doenças: a diabetes, a
pressão alta, o seu problema no coração. Desprezo quando
me pede para passar na farmácia e comprar seus remédios,
tirando do pacotinho de plástico um dinheirinho sujo e
merrequento que juntou a custa de muito troco de pão.
Burra, Gorda acha que preciso do dinheiro dela. Disfarça, isso
sim, para não ter de me perguntar de onde venho todas as
tardes. Sabe que no bolso trago tudo que não me pertence;
sabe que fui capaz de furar muitos, tomando à mão armada
os pertences de alguém. Pouco me lixo, Gorda, digo a ela,
quando entro pela porta enfeitada de cupins, tiro um pouco
de cada um, pois gente com excessos é o que não falta por
aí. Gorda não me ouve. Está deitada no sofá, cochilando
após uma manhã de labuta na cozinha. Sua boca aberta
deixa sair o ronco cansado, esvaziando sua preguiça numa
baba grossa que escorre às duas da tarde, enquanto o pano
de prato ainda pinga pendurado na torneira da pia.
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Quando acorda, já não me encontra em casa e corre à
esquina com uma latinha cheia de arroz e mortadela. Grita
meu nome na esperança de que eu volte para aceitar a sua
marmitinha de ternura. Mas o mal já está em mim pronto para
mais um recolhimento coletivo. É hora de sair e tomar os
excessos do mundo, tolher a ordem, aliviar minha raiva de
Gorda. Subo a ladeira, deixando a vaca que me criou na
esquina com sua saia roxa de bolinhas. Ela fica na esquina
pendida pelo peso de peitos que desafiam a capacidade de
equilíbrio humano, com sua latinha de falso alimento
esperando que eu volte. Não quero, Gorda, não quero nada!
E ela grita meu nome outra vez, erguendo a latinha que vai
escapando da minha vista à medida que me afasto. Não
quero a latinha com arroz e mortadela, Gorda; não quero
esse fedor que você tem quando sua; não quero precisar ler
a bula dos remédios para você, nem mijar na sua presença,
nem dividir um colchão fedorento com você. Pare, Gorda, de
dizer que sou inteligente, que leio bem e produzo frases
bonitas! Pare de me mandar produzir livros! Pare de sonhar
com livros que, se fosse para escolher, iria querer ser aviador.
Pare de ser tão burra, Gorda!
Livre da presença de Gorda, que ficou em casa cozinhando
alguma bosta de comida, vou pelas ladeiras, pelos morros,
pelas canais, como um bicho se escondendo. Inclinando o
corpo e flexionando a engrenagem para me armar, me
escondo pelas brenhas, camuflado por verdes medos, o fino
metal guardado e preparado na bermuda. Pego no cabo de
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madeira com a mesma confiança que tinha ao manipular
brinquedos de marcenaria na infância e ergo o metal afiado
sem a inocência com a quail erguia as espadinhas de pau ao
desafiar meu amigo Otávio para um “dulelo”. Manipulo com
vocação a arma branca que de branca só tem o nome
porque nela brilha uma luz vermelha que, confesso, me causa
mais transtorno fazer brilhar. Diante de mim alguém grita,
alimentando o buraco que a comida imunda de Gorda não
pode saciar. Recebo, de mão beijada, tudo que peço, sendo
fotografado por câmeras de olhos seletivos, que escolhem o
ângulo menos arriscado para, à noite, poderem dormir com
um registro menos explícito. Uma fotografia embaçada é o
que sou diante daqueles que, depois de gritarem, correm na
direção contrária à minha.
De volta a casa, vejo Gorda comendo pipoca diante da
televisão. Ela se entala, tosse, a garganta arranhando com os
pedacinhos do milho. Ri toda abestalhada de algum bobo
fazendo piada às onze da noite numa TV que chia. Perco a
paciência. Ela manipula o controle com seus dedos cheios de
anéis de plástico, fala para eu comer alguma coisa, tem
janta na geladeira, tá fria, mas serve. Quero nada não,
respondo, retirando dos bolsos coisas que agora me
pertencem. Gorda levanta, desliga a televisão, ajeita a alça
da camisola cheia de furos. Vou até a cozinha, tomo um gole
de água fria. Gorda grita: “Vem deitar, menino!”. Tiro da
bermuda a faca que gorda usa para cortar galinha,
deixando exatamente no lugar de onde tirei. Sei que,
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fazendo deste jeito, Gorda nem vai perceber e evito aqueles
momentos de ter mãe que não pedi. Vou deitar. Num
colchão fedorento, Gorda dorme virada com a cara para a
parede e sua alma flatulenta. Eu do lado, olho o teto até
adormecer. Durante a madrugada fedor e ternura se
confundem. Mas durmo tranquilamente, tenho sono de
menino.
TAYLANE CRUZ é graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de
Sergipe e escritora. Natural de Aracaju, SE, em 2015, lançou seu primeiro livro
de contos, "Aula de Dança e Outros Contos". Tem textos publicados em sites e
blogs literários. Apaixonada pela poesia de Adélia Prado e pelas narrativas da
escritora neozelandesa Katherine Mansfield, tem verdadeira obsessão pelos
temas que permeiam o cotidiano e é deles que nascem as personagens de
seus contos. | [email protected]
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YURI CLARO | Santo Antônio da Platina, PR.
O PRAZER DE TERMINAR LIVROS
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O prazer de terminar livros
é o mesmo êxtase
primitivo
de destruir um crânio
à assaltos de pedra
e se banhar com o sangue
entre pedaços de osso céreo
como se dissesse
eu venci
O prazer de terminar livros
vem do deleite
que Átila tinha ao cortar cabeças
e Tepes, ao deliciosamente empalar
seus inimigos, sorvendo um cálice
de vinho
O prazer de terminar livros
é da mesma violência pueril
de desalojar um osso
aos socos
em fratura exposta
para que todos vejam sua obra
O prazer de terminar livros
é como sempre
martelasse o dedo
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de seu próprio pai
e cuspisse-lhe na cara
O prazer de terminar livros
é recusar-se a dizer a verdade
mesmo que enfiem-lhe farpas
por baixo das unhas
arranquem dentes
chutem-lhe o estômago
furem-lhe os olhos
E matem-lhe, afinal.
É tudo um grande prazer profano
o genocídio da alma
adoração a morte
e a todos os fins.
YURI CLARO, estudante, totalmente inócuo, adora palavras difíceis e queria
saber usá-las em conversação diária sem parecer pretensioso, também tem
uma namorada com bochechas muito grandes. | [email protected]
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A grande questão é: somos nós todos dignos da complacência do outro, do
sorriso do outro na felicidade nossa, que a si lhe está vedada e a si não lhe diz
respeito_ sabendo nós naturalmente que a infelicidade de um sujeito é a
felicidade e a oportunidade do outro?
Paradoxalmente, sim; racionalmente, de modo algum. E é talvez neste circuito
labiríntico que a inteligência arvora a sua espessa cabeleira de animal
selvagem e sussurra as suas sábias, belas e indecifráveis palavras ao ouvido
versado no seu sussurro. Ou, talvez, não seja assim de todo. (trecho de
Bucéfalo, de A. Miyajima, nome pelo qual A. Mimura assina suas obras
literárias)
A. Mimura é o nosso colaborador permanente e um grande
incentivador da Revista; ainda um pouco misterioso, tanto para nós,
editoras, como para os leitores. Contudo, ao mesmo tempo já é "da
casa", de modo que, ao navegar pelo site da Rveista, o leitor poderá
encontrar seus desenhos ardiz e perspicazes. Como afirma Daniel Tomaz
Wachowicz, que também é um colaborador frequente da Subversa, “As
obras de Mimura são muito instigantes e nos fazem refletir
profundamente". Para conhecer um pouco mais de A. Mimura, leia a
ENTREVISTA que ele nos concedeu.
Sobre A. MIMURA
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PARCEIROS:
40
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Recepção de originais: