said, humanismo

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Filosofia

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  • Para Richard Poirier,grande amigo, crtico, professor

  • Sumrio

    Apresentao Akeel BilgramiPrefcio

    1. A esfera do humanismo2. As novas bases do estudo e da prtica humanistas3. O regresso filologia4. Introduo a Mimesis, de Erich Auerbach5. O papel pblico dos escritores e intelectuais

  • Apresentao

    Por sua grande coragem poltica, pelas repetidas vezes em que sebateu como um leo em prol da liberdade palestina, pela continuidadeintelectual entre suas obras mais famosas e conhecidas e as lutas etemas polticos, por sua prosa que tem a voltagem da dramatizaopoltica, o legado intelectual de Edward Said ser antes poltico noapenas na imaginao popular, mas talvez tambm aos olhos dapesquisa acadmica. Isso inevitvel, e talvez deva ser assim. Mas estaobra, o ltimo livro que ele concluiu, permite-nos situar esse legado nocenrio filosfico mais amplo de seu humanismo talvez o nicoismo que, com ideais obstinados, ele continuou a admitir, por maisque os desenvolvimentos de vanguarda na teoria literria das ltimasdcadas tenham contribudo para que parecesse piedoso e sentimental.

    Este livro desenvolveu-se a partir de conferncias primeiro pro-feridas na Universidade Columbia, numa srie criada por Jonathan

  • Cole em nome da Columbia University Press, e que depois foram pub-licadas nos Estados Unidos como parte da srie Columbia Themes inPhilosophy. Atravessando as paixes cvicas e o impressionismo car-regado das conferncias de Said, h um argumento profundo eestruturado.

    De suas sugestes clssicas mais antigas s verses remanescen-tes mais sutis de nosso tempo, dois elementos de ampla generalidadetm subsistido nas diversas formulaes doutrinrias do humanismo,que podem ser vistos, em retrospectiva, como seus plos definidores.Um deles a sua aspirao a encontrar alguma caracterstica ou carac-tersticas que distingam o que humano no s da natureza, comoas cincias naturais a estudam, mas tambm do que sobrenatural etranscendental, na forma como esses elementos so buscados pelapesquisa da teologia ou da metafsica absoluta. O outro o desejo demostrar considerao por tudo o que humano, pelo que humanoem qualquer lugar em que possa ser encontrado e por mais distanteque possa estar da presena mais vvida do paroquial. A mximaNada do que humano me alheio, ainda comovente apesar de suagrande familiaridade (e apesar da lenda sobre a sua origem trivial),transmite um pouco desse desejo.

    Com esses plos estruturando as linhas complexas e entrecruza-das deste livro, os contornos de seu argumento ganham realce. Numdos plos, para explorar o que distingue o humano, Said invoca numprimeiro momento um princpio de Vico, o de que conhecemos melhoro que ns prprios fazemos e formamos a histria. Oautoconhecimento torna-se assim especial, apartando-se das outras

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  • formas de conhecimento. E apenas os seres humanos, ao que se saiba,so capazes desse autoconhecimento. No outro plo, para tornar pre-mente a mxima de Sneca, Said mergulha desde o incio no que tpico, avisando-nos dos desastres que se seguiro, e que na verdade jesto sobre ns, se conduzimos nossa vida pblica de intelectuais comindiferena aos interesses e ao sofrimento dos povos em lugares dis-tantes de nossos stios metropolitanos ocidentais de interesse prprio.

    Embora talvez sejam plos relativamente fixos no conjunto alta-mente mutvel das idias que chamamos de humanistas, essas duascaractersticas no so plos separados. No so elementos no rela-cionados e contingentes do humanismo. Devem ser reunidos numaviso coerente.

    Para transpor a distncia entre eles, Said desenvolve esses pontosde partida da sua narrativa primeiro num dos plos, completando apercepo de Vico com uma adio filosfica extraordinria. O queVico trouxe luz foi a capacidade especialmente humana para o auto-conhecimento, bem como o carter especial do autoconhecimentoentre todas as outras formas de conhecimento que temos. Esse carterespecial, que tem sido desenvolvido desde a sua poca em termoscomo Verstehen, Geisteswissenschaften ou, como gostamos de dizerna Amrica, as cincias sociais, ainda no fornece nenhum indcioparticular do papel e da importncia das humanidades. Por si s, nemsequer nos d ainda o tema destas conferncias: o humanismo. Aafirmao de Said que, enquanto no suplementamos o autoconheci-mento com a autocrtica, na verdade, enquanto no compreendemos oautoconhecimento como sendo constitudo pela autocrtica, o

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  • humanismo e suas manifestaes curriculares (as humanidades)ainda no so visveis no horizonte. O que torna esse suplemento eessa nova compreenso possveis o estudo da literatura. Em termosesquemticos, o estudo da literatura isto , a crtica, uma busca devida inteira para Said , ao suplementar o autoconhecimento, faz flor-escer a capacidade humana verdadeiramente nica, a capacidade deser autocrtico.

    Virando para o outro plo, como pode um interesse por tudo oque humano estar ligado, no apenas de modo contingente, mas ne-cessrio, a essa capacidade de autocrtica? Por que esses no sosimplesmente dois elementos distintos em nossa compreenso do hu-manismo? A resposta de Said que, quando a crtica em nossas uni-versidades no paroquial, quando estuda as tradies e os conceitosde outras culturas, abre-se para recursos pelos quais pode se tornarautocrtica, recursos que no esto presentes enquanto o foco famili-ar e estreito. O Outro, portanto, a fonte e o recurso para uma com-preenso melhor e mais crtica do Eu. importante ver que para Saido apelo do ideal de Sneca no pode degenerar numa fetichizao dadiversidade por si mesma, nem numa adoo fcil e correta dapresente tendncia multiculturalista. estritamente um passo num ar-gumento que comea com Vico e termina com a relevncia do human-ismo na vida e poltica americanas. O multiculturalismo no conheceudefesa mais erudita e elevada do que a oferecida neste livro.

    Mesmo expresso de forma to breve, o argumento de grande al-cance e instrutivo. Ao forjar uma ligao metdica entre os dois plosdo humanismo identificados por Said, ele nos permite resolver, ou ao

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  • menos fazer um progresso mensurvel para resolver, algo que continu-ou no resolvido na prpria obra de Vico a tenso entre a histria e aao. O historicismo, a doutrina que se desenvolveu a partir da filo-sofia de Vico, sempre apresentou essa tenso numa forma especial-mente irritante. Conhecer a ns mesmos na histria ver a ns mes-mos como objetos; ver a ns mesmos no modo da terceira pessoa emvez de deliberar e agir como sujeitos e agentes na primeira pessoa. Eessa mesma tenso a que ecoa na crtica de James Clifford a umaobra anterior de Said, Orientalismo, crtica que Said cita com gener-osidade bem no incio a de que ele no consegue conciliar a negaodo sujeito e ao humanos, ao recorrer a Foucault naquela obra, comseus prprios mpetos intelectuais humanistas. Mas se o argumentoque estou detectando nas conferncias eficaz, se nos permite a pas-sagem da nfase de Vico sobre a histria base plenamente cosmopol-ita para a autocrtica, teremos percorrido um longo caminho para alivi-ar essas tenses. Podemos agora no apenas declarar, mas afirmarcom alguma razo, como faz Said, que a crtica consiste em duas coisasaparentemente incoerentes: filologia, a histria das palavras, a re-cepo de uma tradio, e, ao mesmo tempo, uma resistncia aessa tradio e ao repositrio de costumes que as palavras acumulam.

    O argumento d assim ao humanismo rigor e fora intelectual,bem como uma atualidade e relevncia poltica, que o tornam irrecon-hecvel em relao doutrina antiquada em que se transformara nosculo passado e propicia queles desiludidos ou to-s entediadoscom essa doutrina algo mais vivo e importante a que recorrer do que

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  • os ridos formalismos e relativismos dos anos recentes. Por isso deve-mos ser todos muito gratos.

    Akeel Bilgrami, professor de filosofia e diretor do HeymanCenter for the Humanities, da Universidade Columbia

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  • Prefcio

    Os trs captulos centrais deste livro foram primeiro apresentadoscomo um conjunto de conferncias na Universidade Columbia emjaneiro de 2000, numa srie anual sobre aspectos da cultura americ-ana patrocinada pela universidade e pela Columbia University Press. Oconvite original partiu do diretor Jonathan Cole, um querido amigo ecolega de muitos anos na Columbia, cujo compromisso com os padresintelectuais e a investigao livre tm ajudado a fazer de nossa univer-sidade um lugar to extraordinrio. Em outubro e novembro de 2002,expandi as conferncias para quatro e alterei a nfase para incluir noapenas o que devia se tornar uma quarta conferncia (acrescentadaneste livro como captulo sobre Mimesis, a obra-prima humanista deErich Auerbach), mas tambm para dar conta de um contexto polticoe social diferente. Essas quatro conferncias foram proferidas em res-posta ao generoso convite do Centro para Pesquisa nas Artes, Cincias

  • Sociais e Humanidades (crassh), dirigido pelo professor Ian Donald-son na Universidade de Cambridge, onde minha esposa, Mariam, e eudesfrutamos a maravilhosa hospitalidade do Kings College. Sou muitograto a Ian e Grazia Donaldson por seu calor humano e esprito mara-vilhoso, e a Mary-Rose Cheadle e a Melanie Leggatt, do crassh, por suaextraordinria solicitude e ajuda prtica. Para o reitor Pat Bateson e osmembros do Kings, mal temos palavras para expressar a nossagratido pela sua hospitalidade durante o que foi um perodo penosopara mim. uma ironia que os dois conjuntos de conferncias, emNova York e em Cambridge, tenham sido apresentados durante in-tensos perodos de quimioterapia e transfuso, de modo que todaajuda recebida foi realmente bem-vinda. As conferncias foramreelaboradas e revisadas para publicao.

    O que interveio entre as duas datas que mencionei acima foram osacontecimentos de 11 de setembro de 2001. Uma atmosfera polticamodificada colheu os Estados Unidos e, em graus variados, o resto domundo. A guerra contra o terrorismo, a campanha no Afeganisto, ainvaso anglo-americana do Iraque, tudo isso deu origem a um mundode animosidades intensificadas, a uma atitude americana muito maisagressiva para com o mundo, e considerando a minha prpria form-ao bicultural a um conflito muito exacerbado entre o Ocidente eo isl, rtulos que h muito tempo julgo equvocos e mais apropria-dos para a mobilizao de paixes coletivas do que para uma lcidacompreenso, enquanto no forem analtica e criticamente descon-strudos. Muito mais do que lutar, as culturas coexistem e interagemproveitosamente umas com as outras. para essa idia da cultura

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  • humanista como coexistncia e partilha que estas pginas tm a in-teno de contribuir, e, obtenham sucesso ou no, eu pelo menosguardo a satisfao de ter tentado.

    Devido a todas essas circunstncias pessoais e gerais, as minhasconferncias sobre o humanismo americano e sua relao com omundo em que vivemos no so nem uma declarao definitiva nemuma convocao s armas. Vou deixar que as pginas que se seguemfalem por si, mas gostaria de dizer que tentei, de modo reflexivo, dis-cutir aqueles aspectos de um tema enorme que tm mais significadopara mim. Por exemplo, sempre me perguntei como e de que maneiraso humanismo, considerado normalmente um campo bastante restritode esforos, relaciona-se com outras dimenses do empreendimentointelectual sem se tornar algo como a sociologia ou a cincia poltica; o que discuto no primeiro captulo. No segundo, tendo sido umestudante e professor universitrio de humanidades por vrias dca-das, achei importante observar como o mundo da minha educao e omundo em que agora vivo so totalmente diferentes, e como os deveresde um humanista s vezes entram surpreendentemente em conflitocom o que agora se espera de ns e nunca tanto quanto depois doOnze de Setembro. No meu terceiro captulo, discuto o papel crucial dafilologia, que utilizo, a par da leitura cerrada e imaginativa, na esper-ana de que uma atitude de abertura para com o que um texto diz (e,com essa abertura, uma certa dose de resistncia) seja a verdadeira es-trada para a compreenso humanista no melhor e mais amplo sentidoda expresso.

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  • Acrescentei ainda um captulo que serve como coda, intitulado Opapel pblico dos escritores e intelectuais, um texto escrito original-mente para uma ocasio acadmica, uma conferncia sobre a repblicadas letras, realizada na Universidade de Oxford em setembro de 2000.Algumas mudanas substanciais nesse texto tambm refletem a atmos-fera especial que nos foi imposta pelos terrveis acontecimentos do On-ze de Setembro, mas gostaria de observar que o argumento essencialainda acompanha o que eu havia originalmente escrito.

    E.W.SNova York, maio de 2003

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  • 1. A esfera do humanismo

    Gostaria de comear este conjunto de reflexes advertindo desada que, por razes mais do que justificadas, concentrarei minhaabordagem no humanismo americano, embora esteja convicto de queboa parte do meu argumento tambm se aplica a outros lugares. Vivinos Estados Unidos a maior parte da minha vida adulta, e nas ltimasquatro dcadas tenho sido humanista praticante, professor, crtico eestudioso de literatura. Esse o mundo que conheo melhor. Segundo,como a nica superpotncia remanescente, a Amrica oferece ao hu-manista desafios e demandas especiais diferentes daqueles apresenta-dos por qualquer outra nao. Claramente, porm, como uma so-ciedade de imigrantes, os Estados Unidos no so um lugar homo-gneo, e isso tambm faz parte da mistura de fatores que o humanistaamericano deve levar em considerao. Terceiro, cresci numa culturano ocidental, e, como algum que anfbio ou bicultural, sou

  • especialmente consciente, creio eu, de perspectivas e tradies difer-entes daquelas consideradas em geral como unicamente americanasou ocidentais. Isso talvez me propicie um ngulo de viso um poucopeculiar. Por exemplo, os antecedentes europeus do humanismo amer-icano e aqueles que se originam de fora do mbito ocidental ou soconsiderados alheios a essa esfera muito me interessam, e falarei aesse respeito no terceiro e quarto captulos, e sobre como, de muitasmaneiras, eles provm de fora da tradio ocidental. Por ltimo, ocenrio na Amrica, e talvez em toda parte do mundo, mudou consid-eravelmente desde os terrveis acontecimentos de 11 de setembro de2001, com muitas conseqncias calamitosas para todos ns. Tambmlevo esses fatos em considerao, mas aqui, por razes bem bvias,mais uma vez a cena americana privilegiada.

    A ltima coisa que quero observar de incio que o tema realdeste livro no o humanismo tout court, que um tema demasiadogrande e vago para o que estou comentando aqui, mas antes o human-ismo e a prtica crtica, o humanismo que informa o que algum fazcomo intelectual e professor erudito das humanidades no mundo tur-bulento de nossos dias, transbordante de beligerncia, guerras reais etodo tipo de terrorismo. Dizer, com o jovem Georg Lukcs, que vive-mos num mundo fragmentado, abandonado por Deus, mas no pelosseus muitos aclitos barulhentos, correr o risco de atenuar os fatos.

    Como disse acima, sou professor de literatura e humanidades naUniversidade Columbia desde 1963. Por vrias razes, Columbia temoferecido um lugar privilegiado para contemplar o humanismo amer-icano no sculo que acabou de chegar ao fim e naquele que mal est

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  • comeando. a universidade em que um conjunto clebre, na verdadelendrio, de cursos centrais exigidos na graduao, tpicos da educaoliberal, tem sido oferecido ininterruptamente ao longo dos ltimos oit-enta e um anos. No ncleo desse currculo est o programa de um ano,estabelecido em 1937, intitulado simplesmente Humanidades; hvrios anos esse programa comumente conhecido como o de Hu-manidades Ocidentais, para distingui-lo de uma oferta paralela cha-mada Humanidades no-Ocidentais, Orientais ou do Leste. Aidia de que todo estudante de primeiro ou segundo ano deve fazeresse curso rigoroso de quatro horas por semana tem sido absoluta-mente, talvez at inabalavelmente, central e, sob todos os aspectos,positiva para uma educao superior em Columbia, tanto pela qualid-ade indiscutvel e fundamental das leituras Homero, Herdoto,squilo, Eurpides, Plato e Aristteles, a Bblia, Virglio, Dante, SantoAgostinho, Shakespeare, Cervantes e Dostoivski quanto pelagrande quantidade de tempo despendida no s nesses autores e livrosdifceis, mas em defender a importncia de sua leitura para o mundoem geral. Em grande parte, o curso de humanidades em Columbiaemergiu das assim chamadas guerras culturais das dcadas de 1970 e1980 sem maiores danos e alteraes.

    Lembro-me de ter sido convidado, h uns vinte e cinco anos, aparticipar de uma discusso num painel pblico sobre o programa dashumanidades na universidade, e recordo no menos vividamente quefui minoria absoluta quando critiquei o curso por fazer nossosestudantes enfrentarem textos latinos, gregos, hebraicos, italianos,franceses e espanhis em tradues s vezes obscuras ou discutveis.

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  • Argumentei que a prtica de ler esses livros maravilhosos fora de seuscontextos histricos e a vrios graus de distncia de suas formas ori-ginais precisava de um exame crtico, e que as expresses piedosas deolhos midos sobre a grande experincia que ler Dante mais oumenos como as meditaes de antigos participantes envelhecidos deacampamentos de vero sobre os bons velhos tempos de escaladas nomonte Washington, ou alguma outra dessas atividades associadas como hbito pastoral e a tradio inventada , aliadas s pressuposiesacrticas sobre os grandes livros disseminadas pelo curso, que se tor-naram de algum modo uma parte integrante sua, eram passveis deuma suspeita justificada. No sugeri absolutamente que o curso fosseabandonado, mas recomendei que as equaes fceis entre a nossatradio, as humanidades e as maiores obras fossem rejeitadas. Houtras tradies, e portanto outras humanidades, que certamentepoderiam ser de algum modo consideradas e representadas para mod-erar a centralidade no questionada do que era, com efeito, um aml-gama forjado com muito esforo do que abrangeria a nossa tradio.Por outro lado, disse-me o meu falecido colega Lionel Trilling, o cursode humanidades tem a virtude de dar aos estudantes de Columbia umabase comum de leitura, e se eles mais tarde esquecem os livros (comomuitos sempre fazem), ao menos esquecero os mesmos livros. Issono me impressionou como um argumento todo-poderoso, mas, emoposio a no ler nada exceto literatura tcnica das cincias sociais edas cincias, era ainda assim convincente. Tenho desde ento con-cordado com a essncia do que o curso de humanidades faz de melhor,

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  • que familiarizar os estudantes com o cnone literrio e filosficocentral das culturas ocidentais.

    Mencionar Trilling dar bastante proeminncia a outro dos ttu-los de Columbia no que diz respeito ao humanismo. uma universid-ade que se vangloria de possuir, por um perodo considervel, todauma populao de ilustres humanistas, com muitos dos quais tive oprazer de trabalhar ou simplesmente partilhar o mesmo espao. Almdo prprio Trilling, tm aparecido figuras (para mencionar apenasaqueles que conheci ou ainda estavam em Columbia como eminnciasmais velhas quando vim para Nova York em 1963) como Mark vanDoren, Jacques Barzun, F. W. Dupee, Andrew Chiappe, Moses Hadas,Gilbert Highet, Howard Porter, Paul Oskar Kristeller, Meyer Schapiro,Rufus Mathewson, Karl-Ludwig Selig e Fritz Stern, dentre muitos out-ros. Uma verdade a respeito da maioria desses eruditos consistia certa-mente em que no eram s humanistas em todos os sentidos tradicion-ais da palavra, mas tambm ilustres como exemplos notveis do que ohumanismo acadmico era e no seu auge. Alguns deles Trilling emparticular falavam freqentemente de modo crtico sobre o human-ismo liberal, s vezes at de modo perturbador, embora aos olhos dopblico e na opinio de seus colegas e estudantes acadmicos repres-entassem a vida humanista, sem jargo ou profissionalismo indevido,no seu momento mais rico e mais intenso. Antes desses homens oColumbia College, at apenas os ltimos dezoito anos, era essencial-mente uma escola de alunos do sexo masculino houve figuras to di-versas como John Dewey, Randolph Bourne e Joel Springarn, cujo tra-balho em filosofia, pensamento poltico e literatura teve um impacto

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  • capital em definir o compromisso de Columbia com as virtudes do hu-manismo liberal, e s vezes radical, considerado um componente doesprito democrtico, e tambm com a busca contnua de liberdade,to bem documentada na Amrica pelo meu colega e amigo Eric Fonerno seu excelente livro The Story of American Freedom.

    Grande parte de todos esses dados fornece um pano de fundo aus-picioso para a minha pesquisa sobre a relevncia e o futuro do human-ismo na vida contempornea, o tema a que estas pginas so dedica-das. Indica tambm quo rico e contestado esse campo, com todos ostipos de debates, polmicas e projetos de pesquisa sobre o papel elugar do humanismo e das humanidades inundando o domnio pblicodurante os ltimos anos do sculo passado e o incio deste. No tenhoo desejo nem a capacidade de recapitular todos esses argumentos, emenos ainda de fazer um longo catlogo dos significados do human-ismo, exceto para notar a sua presena impositiva em tudo o que tenhoa dizer, e indicar que estarei fazendo um uso altamente seletivo do queoutros disseram. O meu argumento pretende ser uma continuao,dentro do contexto de Columbia, do que os meus predecessores dis-seram e fizeram predecessores, apresso-me a acrescentar, que torn-aram meus anos naquela instituio to extraordinariamente ricos evaliosos para mim. Apesar de meu envolvimento na luta pelos direitoshumanos palestinos, nunca ensinei seno humanidades ocidentais emColumbia, literatura e msica em particular, e pretendo continuar afaz-lo por tanto tempo quanto for possvel. Mas ao mesmo tempoacho que chegou o momento, ao menos para mim, de reconsiderar,reexaminar e reformular a relevncia do humanismo, ao entrarmos

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  • num novo milnio com tantas circunstncias conjurando mudanassuficientemente dramticas para transformar o cenrio por completo.

    Assim, o que se segue no primeiro captulo uma meditao amp-liada sobre o alcance vivel do humanismo como prtica persistente, eno como um patrimnio, antes sobre o que a atividade humanistado que uma lista dos atributos desejveis num humanista, dada todauma srie de afirmaes e alegaes em contrrio feitas em nome dohumanismo e das humanidades por aqueles que os propem comoalgo pelo qual podem falar. No segundo captulo, tentarei fazer um re-lato das enormes mudanas na prpria base da prtica humanista quej ocorreram durante os ltimos anos do sculo xx e que precisam sertraadas muito metodicamente para compreendermos o que podemose o que no podemos fazer agora em nome e sob a gide do human-ismo. No terceiro captulo, vou sugerir como a filologia, uma disciplinaimerecidamente esquecida e de aparncia antiquada, mas intelectual-mente convincente, precisa ser de algum modo restaurada, revigoradae tornada relevante para o empreendimento humanista nos EstadosUnidos de nossos dias. Por ltimo, falarei sobre o maior livro da prt-ica humanista geral desde a Segunda Guerra Mundial, Mimesis, deErich Auerbach, e como ele nos propicia um exemplo duradouro hojeem dia.

    Devo enfatizar mais uma vez que no estou tratando este temapara produzir uma histria do humanismo, nem uma explorao de to-dos os seus significados possveis, e certamente nenhum exame con-sumado de sua relao metafsica com um Ser anterior maneira daCarta sobre o Humanismo de Heidegger. O que me interessa o

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  • humanismo como uma prxis utilizvel para intelectuais e acadmicosque desejam saber o que esto fazendo, com o que esto compro-metidos como eruditos, e que tambm desejam conectar esses princ-pios ao mundo em que vivem como cidados. Isso implica necessaria-mente muita histria contempornea, alguma generalizao sociol-gica e, acima de tudo, uma conscincia aguada das razes pelas quaiso humanismo importante para esta sociedade neste tempo, mais dedez anos depois do fim da Guerra Fria, quando a economia global estpassando por transformaes capitais e uma nova paisagem culturalparece estar surgindo quase alm dos precedentes de nossas experin-cias at o momento. A guerra ao terrorismo e a principal campanhamilitar no Oriente Mdio, parte de uma nova doutrina militar dosEstados Unidos de ataques preventivos, no so a menor das circun-stncias alteradas que o humanista deve de algum modo confrontar.Alm disso, somos regularmente incitados a refletir sobre o significadodo humanismo quando tantas das palavras no discurso corrente tmhumano (sugerindo humanitrio e humanista) nos seus ncleos.O bombardeio da Iugoslvia pela otan em 1999, por exemplo, foidescrito como uma interveno humanitria, embora muitos de seusresultados tenham impressionado as pessoas como profundamentedesumanos. Afirmou-se que um intelectual alemo teria consideradotodo o episdio da otan uma nova forma de humanismo militar. Epor que foi humanista e humanitrio intervir ali e no, digamos,em Ruanda ou na Turquia, onde a limpeza tnica e a matana emmassa tm ocorrido em grande escala? Da mesma forma, segundoDennis Halliday, que foi no passado o principal funcionrio da onu

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  • encarregado de administrar o programa petrleo-por-alimento noIraque, os resultados das sanes tm sido desumanos e tpicos degenocdio, uma opinio que o levou a pedir demisso de seu cargo,como forma de protesto. Mas isso, bem como o destino miservel dopovo iraquiano (ainda que Saddam Hussein parea ter prosperadodurante as sanes), mal entrou no discurso durante a escalada para aguerra proposta, mesmo quando libertar o povo do Iraque era umdos tpicos. Alm disso, como eruditos e professores acreditamos estarcertos ao chamar o que fazemos de humanista e o que ensinamos dehumanidades. Essas expresses ainda so prestveis? Em caso posit-ivo, de que maneira? Como ento podemos ver o humanismo comouma atividade luz de seu passado e de seu provvel futuro?

    Desde o Onze de Setembro, o terror e o terrorismo tm sido in-troduzidos na conscincia pblica com uma insistncia espantosa. NosEstados Unidos, a nfase principal tem recado sobre a distino entreo nosso bem e o mal deles. Ou voc est conosco, diz George Bush, oucontra ns. Representamos uma cultura humanitria; eles, a violnciae o dio. Somos civilizados; eles so brbaros. Misturadas com tudoisso esto duas suposies errneas: primeiro, a de que a civilizaodeles (o isl) profundamente oposta nossa (o Ocidente), uma tesebaseada de forma vaga sobre a tese deploravelmente vulgar e redutorade Samuel Huntington a respeito do choque das civilizaes; segundo,a noo disparatada de que analisar a histria poltica e at a naturezado terror durante o processo de tentar defini-lo equivale a justific-lo.No quero perder tempo examinando essas noes ou tentando refut-las, porque, para ser franco, elas me parecem triviais e superficiais.

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  • Apenas quero observar aqui a sua presena prolongada e seguiradiante.

    O modo mais direto e concreto de comear a compreender o al-cance do humanismo , no meu caso, por meio de uma experinciapessoal. Uma das primeiras crticas mais penetrantes e simpticas ameu livro Orientalismo foi publicada na ilustre revista History andTheory, em 1980, dois anos depois do lanamento do livro, por JamesClifford. Clifford, que tambm filho homnimo de meu colega eamigo mais velho do Departamento de Ingls de Columbia, o estudiosodo sculo xviii James Clifford, incluiu mais tarde o ensaio crtico emseu influente livro de 1988, The Predicament of Culture. Uma das crt-icas principais e mais freqentemente citadas dentre as que ap-resentou era que havia uma sria incoerncia alojada no ncleo demeu livro, o conflito entre o meu confesso e inequvoco vis humanistae o anti-humanismo de meu tema e de minha abordagem do assunto.Clifford lamenta a recada nos modos essencializadores que ele[Orientalismo] ataca, e queixa-se de que o livro est ambivalente-mente enredado nos hbitos totalizadores do humanismo ocidental(Clifford, 271). Um pouco mais tarde no seu ensaio (e precisamenteesse tipo de observao que tornou Clifford um crtico to til) elepassa a dizer que a minha complexa postura crtica, incoerncias etudo mais, no pode ser descartada como meramente aberrante, mas de fato sintomtica da dificuldade inquietadora do livro, de suasambivalncias metodolgicas [que, ele acrescentava] so caracterstic-as de uma experincia cada vez mais global (275). O ponto interess-ante aqui o modo como Clifford caracteriza o humanismo como algo

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  • fundamentalmente em desacordo com a teoria avanada do tipo queparticularmente enfatizei e de que me vali, a de Michel Foucault, umateoria que Clifford considera corretamente ter liquidado em grandeparte os modos essencializadores e totalizadores do humanismo.

    E em muitos aspectos Clifford tinha razo, pois durante as dca-das de 1960 e 1970 o advento da teoria francesa nos departamentoshumanistas das universidades americanas e inglesas provocara umaderrota severa, se no mutiladora, do que era considerado o human-ismo tradicional pelas foras do estruturalismo e ps-estruturalismo,os quais professavam a morte do homem-o-autor e afirmavam a pree-minncia de sistemas anti-humanistas como aqueles encontrados naobra de Lvi-Strauss, do prprio Foucault e de Roland Barthes. Asoberania do sujeito para usar a expresso tcnica para o que opensamento do Iluminismo fez com a noo de Descartes do cogito,que devia torn-lo o centro de todo o conhecimento humano e, porisso, capaz de essencializar o pensamento em si mesmo foi desafiadapelo que Foucault e Lvi-Strauss levaram adiante a partir da obra depensadores como Marx, Freud, Nietzsche e do lingista Ferdinand deSaussure. Esse grupo de pioneiros mostrou, com efeito, que a existn-cia de sistemas de pensamento e percepo transcendia os poderes dossujeitos individuais, humanos individuais que estavam dentrodaqueles sistemas (sistemas como o inconsciente de Freud ou o cap-ital de Marx) e, portanto, no tinham nenhum poder sobre eles, apen-as a escolha de us-los ou serem por eles usados. Isso, claro, contradizcategoricamente o ncleo do pensamento humanista, e assim o cogito

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  • individual foi deslocado ou rebaixado para a condio de autonomiailusria ou fico.

    Embora eu fosse um dos primeiros crticos a me envolver com ateoria francesa e a discuti-la na universidade americana, Clifford per-cebeu corretamente que eu de algum modo no fora influenciado peloanti-humanismo ideolgico da teoria, principalmente, acho eu, porqueno via (e ainda no vejo) no humanismo apenas o tipo de tendnciastotalizadoras e essencializadoras que Clifford identificava. Tampoucome convenceram os argumentos apresentados na esteira do anti-hu-manismo estruturalista pelo ps-modernismo ou por suas atitudes derepdio para com o que Jean-Franois Lyotard chamou as grandesnarrativas do Iluminismo e da emancipao. Ao contrrio, como umgrau considervel de meu prprio ativismo social e poltico tem me as-segurado, as pessoas em todo o mundo podem ser, e o so, movidaspor ideais de justia e igualdade a vitria sul-africana na luta pelaliberdade um exemplo perfeito , e a noo da derivada de que osideais humanistas de liberdade e instruo ainda instilam nos despro-tegidos a energia para resistir a uma guerra injusta e a uma ocupaomilitar, por exemplo, e a tentar derrubar o despotismo e a tirania, soambas idias que a mim surpreende encontrar vivas e em bom estado.E a despeito das idias (na minha opinio) superficiais mas influentesde um certo tipo fcil de antifundacionalismo radical, com sua in-sistncia em que os acontecimentos reais so quando muito efeitoslingsticos, e sua parente prxima, a tese do fim-da-histria, o im-pacto histrico da ao e trabalho humanos as contradiz de tal modoque torna desnecessria uma refutao detalhada. A mudana parte

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  • essencial da histria humana, e a histria humana, assim como feitapela ao humana e compreendida nesse sentido, o prprio terrenodas humanidades.

    Eu acreditava ento, e ainda acredito, que possvel ser crtico aohumanismo em nome do humanismo e que, escolados nos seus abusospela experincia do eurocentrismo e do imprio, poderamos darforma a um tipo diferente de humanismo que fosse cosmopolita epreso-ao-texto-e-linguagem, de maneira que absorvesse as grandeslies do passado ministradas por, digamos, Erich Auerbach e LeoSpitzer ou, mais recentemente, por Richard Poirier, e ainda continu-asse afinado com as correntes e vozes emergentes do presente, muitasdelas exiladas, extraterritoriais e desabrigadas, bem como unicamenteamericanas. Para meus fins aqui, o ncleo do humanismo a noosecular de que o mundo histrico feito por homens e mulheres, e nopor Deus, e que pode ser compreendido racionalmente segundo oprincpio formulado por Vico em A cincia nova, de que s podemosrealmente conhecer o que fazemos ou, para dizer de outra maneira,podemos conhecer as coisas segundo o modo como foram feitas. A suafrmula conhecida como a equao verum/factum, o que significadizer que como seres humanos na histria sabemos o que fazemos, oumelhor, conhecer saber como algo feito, consider-lo a partir doponto de vista de seu criador humano. Da a noo de Vico de sapienzapoetica, o conhecimento histrico baseado na capacidade do ser hu-mano para criar conhecimento, em oposio a absorv-lo de formapassiva, reativa e embotada.

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  • H uma condio na teoria de Vico que eu gostaria particular-mente de enfatizar. No incio de A cincia nova ele lista um conjuntoexaustivo de elementos, ou princpios, a partir dos quais diz que seumtodo ser derivado, medida que o livro avana. Alm disso, acres-centa, e exatamente como o sangue anima os corpos inanimados, as-sim esses elementos passaro pela nossa Cincia e a animaro em to-dos os seus raciocnios sobre a natureza comum das naes (Vico,60). Um momento mais tarde, ele parece solapar toda a perspectiva deconhecimento, observando, como um princpio cardinal, que, devido natureza indefinida da mente humana, sempre que ela se perde nasua ignorncia, o homem faz de si mesmo a medida das coisas. Ora,no h dvida de que Vico tambm acredita que o conhecimento hu-manista realmente existe e que ele se origina do pensamento primit-ivo, ou que ele chama potico, desenvolvendo-se com o passar dotempo at se tornar o conhecimento filosfico. Apesar do progresso,apesar da certeza e verdade do conhecimento posterior, Vico, acredito,assume a viso trgica de que o conhecimento humano permanente-mente solapado pela natureza indefinida da mente humana. (Isso completamente diferente da noo de John Gray em Straw Dogs:Thoughts on Humans and Other Animals, a de que a cincia liquida ohumanismo, que ele diz ser equivalente apenas a uma crena no pro-gresso humano: essa equao um tanto constritiva, acho eu, est longede ser central, se que na verdade ocorre, no pensamento sobre ohumanismo.) Podem-se adquirir filosofia e conhecimento, verdade,mas a falibilidade basicamente insatisfatria da mente humana (emvez de seu constante aperfeioamento) ainda assim persiste. Dessa

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  • forma, h sempre algo radicalmente incompleto, insuficiente, pro-visrio, discutvel e contestvel sobre o conhecimento humanista, oque Vico nunca perde de vista, e que, como afirmei, introduz em toda aidia de humanismo uma falha trgica que faz parte de sua constitu-io, e no pode ser removida. Essa falha pode ser remediada e miti-gada pelas disciplinas da erudio filolgica e compreenso filosfica,como veremos nos meus dois captulos seguintes, mas jamais pode seranulada. Outro modo de formular essa idia dizer que o elementosubjetivo no conhecimento e prtica humanistas tem de ser recon-hecido e de algum modo levado em conta, pois no adianta tentar criaruma cincia matemtica e neutra a partir desse conhecimento. Umadas principais razes que levaram Vico a escrever o seu livro foi conte-star a tese cartesiana de que seria possvel haver idias claras e dis-tintas, e de que essas estavam livres no s da mente real que as pos-sui, mas tambm da histria. Esse tipo de idia, sustenta Vico, simplesmente impossvel no que diz respeito histria e ao humanistaindividual. E embora seja certamente verdade que a histria algomais do que seus obstculos, esses desempenham ainda assim um pa-pel crucial.

    Deve ser lembrado que o anti-humanismo se fixou na cena in-telectual dos Estados Unidos em parte por causa da revolta difundidacom a Guerra do Vietn. Parte dessa revolta foi o surgimento de ummovimento de resistncia ao racismo, ao imperialismo em geral e shumanidades acadmicas desinteressantes que por anos haviam rep-resentado uma atitude no poltica, no mundana e cega (s vezes atmanipuladora) para com o presente, enquanto obstinadamente

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  • exaltavam as virtudes do passado, a intangibilidade do cnone, a su-perioridade de como costumvamos fazer superioridade, isto ,em relao ao aparecimento perturbador na cena intelectual e acadm-ica de coisas como os estudos femininos, tnicos, homossexuais, cul-turais e ps-coloniais, e acima de tudo, acredito, uma perda de in-teresse pelas idias centrais das humanidades, bem como sua de-turpao. A centralidade dos grandes textos literrios estava entoameaada no s pela cultura popular, mas pela heterogeneidade daspretensiosas ou insurgentes filosofia, poltica, lingstica, psicanlise eantropologia. Todos esses fatores podem ter contribudo muito paradesacreditar a ideologia, se no a prtica comprometida, dohumanismo.

    Mas vale insistir, neste como em outros casos, que atacar osabusos de algo no o mesmo que desconsider-lo ou destru-lo in-teiramente. Assim, na minha opinio, o abuso do humanismo quedesacredita alguns dos praticantes do humanismo sem desacreditar oprprio humanismo. Mas nos ltimos quatro ou cinco anos, umenorme fluxo de livros e artigos, numa imensa e exagerada reao aesse anti-humanismo ensaiado e intentado que na maioria dos casosera uma crtica freqentemente idealista ao mau emprego do human-ismo na poltica e nos programas de ao pblicos, muitos dos quaisconcernentes a no europeus e imigrantes , passou a diagnosticar es-sas improbabilidades lgubres como a morte da literatura ou o fracas-so do humanismo como forma de reagir de forma suficientemente ro-busta aos novos desafios. Essas jeremiadas veementes sobre a prticado estudo literrio no tm vindo apenas de tradicionalistas irados ou

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  • polemistas empedernidos como Lynn Cheney, Dinesh DSouza e RogerKimball, mas igualmente, e de forma bem mais compreensvel, dosjovens, especialmente dos estudantes de ps-graduao, que amargamo desapontamento de no haver empregos sua disposio ou de ter-em de ensinar muitas horas de cursos de reforo em vrias institu-ies, como adjuntos ou professores de meio expediente, sem os bene-fcios de assistncia de sade, estabilidade no emprego ou perspectivasde promoo. Em alguns casos, instituies venerveis como a ModernLanguage Association passaram a parecer a causa de nosso presenteapuro, e a prpria universidade, o lugar mais utpico existente nestasociedade, tambm comeou a ser atacada.

    Que as humanidades como um todo tenham perdido a sua em-inncia na universidade ainda assim indubitavelmente verdadeiro.Como Masao Miyoshi afirmou numa srie de ensaios de densa argu-mentao, a universidade americana do final do sculo xx tornou-seuma corporao e foi em certo grau anexada pelos interesses militares,mdicos, biotcnicos e corporativos, muito mais inclinados a financiarprojetos nas cincias naturais do que nas humanidades. Miyoshi passaa dizer que as humanidades que, supe corretamente, no so aprovncia do gerente corporativo, mas do humanista caram na ir-relevncia e num espalhafato quase medieval, bastante ironicamentepor causa da voga de novos campos relevantes como o ps-colonial-ismo, os estudos tnicos, os estudos culturais e outros afins. Isso desvi-ou efetivamente as humanidades do seu interesse legtimo pela invest-igao crtica dos valores, da histria e da liberdade, transformando adisciplina, ao que parece, em toda uma fbrica de ramos de estudos

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  • palavrosos e especializaes sem importncia, muitos dos quais basea-dos na identidade, na medida em que no seu jargo e arrazoadoespecial dirigem-se apenas a pessoas de mentalidade afim, aclitos eoutros acadmicos. Se no respeitamos a ns mesmos, diz ele, por queum outro nos respeitaria, e assim definhamos despercebidos e nopranteados. As humanidades tornaram-se inofensivas, bem como in-capazes de influenciar algum ou alguma coisa. Mas o prprio Miy-oshi, me apresso em acrescentar, no est descartando as humanid-ades ou o humanismo sem hesitar. Bem ao contrrio.

    J deve estar claro que nos comentrios sobre o humanismo atagora vrias implicaes e pressuposies tm estado em ao, comoocorre rotineiramente em investigaes que aceitam como natural queo humanismo tem muito a ver com a educao em geral e os currculosuniversitrios em particular. O que logo vem mente a distinofeita entre um grupo coletivo de temas chamado as humanidades, deum lado, e os dois outros grupos coletivos, as cincias naturais e soci-ais, de outro. A tese de quarenta anos de C. P. Snow sobre as duas cul-turas separadas parece mais ou menos se sustentar, apesar da coin-cidncia parcial entre as duas nos debates recentes sobre a tica bio-mdica, as questes ambientais e os direitos civis e humanos, paramencionar apenas uns poucos campos complexos e interdisciplinaresde investigao.

    Revendo os usos da palavra humanismo num perodo que eng-loba mais ou menos o sculo passado, pode-se observar que outrostemas e problemticas sobressaem, quase to constantemente quantoa oposio com as cincias naturais e sociais. Um desses temas, que

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  • adotei como uma simples definio de trabalho para a minha argu-mentao neste livro, que as humanidades dizem respeito histriasecular, aos produtos do trabalho humano, capacidade humana dearticular a expresso. Tomando emprestada uma expresso de R. S.Crane, podemos dizer que as humanidades consistem em todas essascoisas que [...] no esto portanto sujeitas a uma explicao adequadaem termos das leis gerais dos processos naturais, fsicos ou biolgicos,ou em termos [apenas] de condies ou foras sociais coletivas. [...]So, em suma, aquilo a que comumente nos referimos como realiza-es humanas (Crane, 8). O humanismo a realizao da forma pelavontade e ao humanas; no nem um sistema nem uma foraimpessoal, como o mercado ou o inconsciente, por mais que se acred-ite no funcionamento de ambos.

    Tendo dito isso, vejo um pequeno punhado de problemas cruciaislocalizados no prprio mago do que o humanismo ou poderia serhoje em dia, admitindo por enquanto que tanto o humanismo como aliteratura, compreendidos como o estudo dedicado de escritos bons eimportantes, tm uma relao especialmente prxima entre si, algoque desejo salientar nestas reflexes.

    O primeiro problema uma conexo freqente, mas nem sempreadmitida, entre o humanismo como uma atitude ou prtica associadaamide a elites muito seletivas, sejam religiosas, aristocrticas ou edu-cacionais, por um lado, e, por outro, associado a uma atitude deoposio severa, ora declarada, ora no, idia de que o humanismoteria a possibilidade e a capacidade de ser um processo democrticoque produzisse uma mente crtica e cada vez mais livre. Em outras

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  • palavras, o humanismo considerado algo muito restrito e difcil,como um clube um tanto austero com regras que excluem a maioriadas pessoas, e, quando algumas so admitidas, com um conjunto deregulamentos proibindo qualquer coisa que poderia aumentar osmembros do clube, torn-lo um lugar menos restrito ou um local maisagradvel de freqentar. A teoria que dominou os departamentos dehumanidades at provocar os ataques e repdios da revoluo anti-hu-manista das dcadas de 1960 e 1970 foi fortemente influenciada por T.S. Eliot e, mais tarde, pelos Southern Agrarians e pelos New Criticsa, asaber: o humanismo era uma realizao especial que requeria o cultivoou a leitura de certos textos difceis e, nesse processo, a renncia a cer-tas coisas, como diverso, prazer, valorizao das circunstnciasmundanas e assim por diante. Era Dante, e no Shakespeare, a figurapredominante, junto com uma crena de que apenas as formas de artecompactas, difceis e raras, formas inacessveis a quem no tinha o tre-inamento requerido, eram dignas de estudo. Quem pode esquecer osequvocos mesquinhos de Eliot sobre Shakespeare, Johnson, Dickens evrios outros que ele no considerava suficientemente srios, gravesou hierticos? Ou, na obra quase contempornea de F. R. Leavis, aafirmao igualmente austera e sisuda sobre as poucas, muito poucasobras que podiam ser consideradas verdadeiramente grandes.

    Em diversos livros sobre a crise no humanismo literrio que ocor-reu depois da metade do sculo, Richard Ohmann e vrios outros dis-cutiram de forma interessante o predomnio e o eclipse gradual dessaortodoxia, indicando quo deliberadamente as humanidades eramimaginadas e ensinadas como no tendo muito a ver com o srdido

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  • mundo da histria, poltica e economia contemporneas. Essas, se-gundo Eliot, nas suas famosas conferncias na Universidade de Virgin-ia em 1934, compiladas em After Strange Gods, forneciam-nos umpanorama de desperdcio e futilidade. parte segregar o mundo da lit-eratura e arte atrs de toda uma srie de paredes, essa ortodoxia enfat-izava o formalismo literrio (talvez indevidamente sob a influncia deuma leitura errnea do alto modernismo) e os supostos aperfeioa-mentos espirituais e redentores oferecidos pelos tipos extremamenteexclusivos de escrita. Era o passado pastoral, quase sacrossanto, que aliteratura e o humanismo reverenciavam como sagrado, e no o pro-cesso de criar histria, nem o de mud-la. Ohmann demonstra que, aoserem transformadas numa espcie de cdigo profissional, essas atit-udes se congelam muito facilmente numa complacncia rotineira, paraa qual uma busca imparcial da verdade, um distanciamento e um noenvolvimento constituem a atividade mesma do estudo literrio.

    Do mundo do alto humanismo anglicano presidido por Eliot nofoi necessrio um grande passo para o ressurgimento do que poderiaser caridosamente chamado humanismo redutor e didtico na obra ena pessoa de um tipo muito estreito de conservador educacional, tipi-ficado por Allan Bloom, cujo O declnio da cultura ocidental causoutanto rebulio quando foi publicado pela primeira vez (com um pref-cio de Saul Bellow), e tornou-se um best-seller em 1987. Chamo essefato de ressurgimento, porque sessenta anos antes de Bloom umaescola dos chamados Novos Humanistas, cujos principais membroseram Irving Babbit e Paul Elmer More, j havia censurado a educao,a cultura e a academia americanas por abandonarem a viso de mundo

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  • clssica tipificada (bastante tautologicamente) pelos clssicos, pelosnscrito e por alguns monumentos literrios ou idiomas que eles en-sinavam como um antdoto para o que Bellow, no seu prefcio ao livrode Bloom, chama Sade, Sexo, Raa, Guerra. Tudo isso, ele argu-mentava, como os Novos Humanistas antes dele, transformara a uni-versidade num armazm conceitual de influncias quase semprenocivas (Bellow, 18). (Ver, a esse respeito, os argumentos mais sofist-icados sobre obras que no deviam ser lidas, nem ensinadas, em Con-hecimento proibido, de Roger Shattuck, um crtico cuja obra em geraladmiro.)

    O que Bloom e seus predecessores partilhavam, alm de uma dis-pepsia comum de tom, era um sentimento de que as portas do human-ismo tinham sido deixadas abertas para toda espcie de individualismodesregrado, modismo vergonhoso e erudio no canonizada, com oresultado de que o verdadeiro humanismo fora violado, se no total-mente desacreditado. Essa era outra maneira de dizer que demasiadosno-europeus indesejveis tinham aparecido de repente em nossosportes. A viso esclarecida e liberal, em Bellow, do que ele e Bloom (eBabbit antes deles) realmente no gostavam no novo esprito torna-sedesanimadoramente evidente quando, em O planeta do sr. Sammler,o ganhador do Prmio Nobel faz um passageiro de nibus afro-amer-icano e sem nome arriar as calas e exibir as partes pudendas para osanto e humanista sr. Sammler.

    Para Allan Bloom, cujo livro me parece representar o nadir do queRichard Hofstader chama antiintelectualismo na vida americana, aeducao devia ser idealmente menos uma questo de investigao,

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  • crtica e ampliao humanista da conscincia do que uma srie de re-stries sisudas, acabando num pequeno punhado de elites, numa listamenor de leituras de uns poucos autores gregos e do Iluminismofrancs, e numa lista muito longa de inimigos, inclusive as relativa-mente inofensivas Brigitte Bardot e Yoko Ono. H pouca coisa de ori-ginal no livro de Bloom, ai de ns, porque o que ele revela com sucesso uma desagradvel inclinao americana (lamentada h muito tempopor Henry James) para um reducionismo moralizador, principalmentena forma de frmulas do que no fazer e no ler, o que considerar e oque no considerar cultura. H uma observao maravilhosa a esse re-speito num ensaio de Henry James sobre Matthew Arnold, em queJames diz sobre a Amrica que a curiosidade com relao cultura extrema naquele pas; se h em alguns crculos uma incerteza con-sidervel quanto sua possvel constituio, h por toda parte umgrande desejo de apoderar-se da cultura, ao menos por experincia(James, 730). Longe de considerar que as universidades eram asoluo para o problema da natureza da cultura, Bloom, como seuspredecessores Babbitt, More e Norman Foerster, descobria que as uni-versidades eram em si o problema, atendendo ao materialismo per-missivo da era, s suas inclinaes demasiado populares e s suastendncias no ticas. Mas onde, a no ser nas universidades, Babbitt eseus seguidores poderiam ter sido tolerados, apesar de toda a sua in-tolerncia, da monotonia de tom e do queixume incessante de suamensagem?

    difcil no ler os Novos Humanistas das dcadas de 1920 e 1930com Allan Bloom em mente, e no ver em todos o que o historiador

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  • Jackson Lears chamou antimodernismo americano. No seu culto deum passado quase sacralizado (quando as coisas eram mais bem or-denadas) e suas prescries para uma elite pequena, no s deleitores mas de escritores, todos esses defensores do humanismoequiparam, empertigadamente, e de certa maneira desesperadamente,o declnio de padres prpria modernidade. Seguem o caminho geralaberto por Ortega y Gasset no seu famoso panfleto A desumanizaoda Arte, por intelectuais excentricamente conservadores como H. G.Wells, Kipling, o grupo de Bloomsbury e D. H. Lawrence, e pelo maiorantimodernista romntico de todos, o jovem Georg Lukcs. Em todosesses casos, um ponto-chave do credo uma equao sub-reptciaentre a democracia multilinge, popular e multicultural, de um lado, eum horrendo declnio nos padres humanistas e estticos, para nodizer tambm ticos, de outro. Da o recurso comum redeno,disponvel a uma elite privilegiada e purificada, que, com uma perver-sidade antinmica tpica no caso americano, deve ser encontrada pre-cisamente naquelas mesmas universidades depravadas onde, se Bloome seus seguidores tivessem poder de deciso, um currculo cuida-dosamente engendrado e um corpo discente minsculo e selecionadocorrigiriam a maioria dos problemas. Somente pela educao apropri-ada uma nova elite poderia vir a existir, e, dado o estilo e o pblico in-dubitavelmente popular solicitado pelo ultra-exigente Bloom, essa elitedevia ter, de modo bastante peculiar, um apelo de massa. No demor-ou para que at a retrica relativamente sofisticada de Bloom fosse su-perada pela oratria pesada de William Bennett sobre reclamar umaherana e um ncleo de valores tradicionais, que tambm obtinha

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  • grande aclamao popular. Esses valores foram novamente agitadosna esteira do Onze de Setembro, como um modo de justificar a guerraaparentemente ilimitada da Amrica contra o mal. Que estranho queesses dois ataques veementes ao esprito popular, por assim dizer, diri-gissem suas queixas a grande nmero de americanos comuns que, pordefinio, jamais poderiam atingir, exceto por autonegao e automu-tilao, o status favorecido advogado por Bloom e Bennett para umapequena elite privilegiada. A atual sociedade americana uma so-ciedade de imigrantes composta menos de europeus do norte que delatinos, africanos e asiticos; por que esse fato no deveria estar re-fletido em nossos valores e herana tradicionais?

    De um modo bem fascinante, Jackson Lears traa conexes entre,de um lado, a variedade americana de antimodernismo que produziuos Novos Humanistas e seus discpulos posteriores e, de outro, todauma legio de correntes bem especiais na sociedade americana, comoos cultos da guerra e do xtase espiritual, o consumo conspcuo e abusca de auto-realizao prazerosa. H questes complexas que noposso examinar aqui a no ser para notar que aos olhos do outsider to-do esse sentimento antimoderno simbolizado de forma muito econ-mica por um infeliz franzir de sobrolho, uma fachada austera de des-aprovao e um ascetismo insolente que descarta sem hesitar osprazeres e as descobertas do humanismo. Refiro-me ao esprito do hu-manismo original que associamos corretamente no Ocidente Atlnticocom a Loucura de Erasmo, a Abadia de Thlme de Rabelais e a virtde Cola di Rienzi. Nada em nenhum desses autores, nem em Aretino,Montaigne, Ficino e Thomas More, tem muito a ver com os lbios

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  • cerrados e amargos que expressam a falta de alegria e a desaprovaodos Novos Humanistas e seus discpulos posteriores. Em lugar disso,surge das diligncias severas um chauvinismo de mentalidade sur-preendentemente estreita que, de forma espantosa, reduz o fato de quea Amrica afinal uma sociedade absolutamente heterognea, ideolo-gicamente comprometida com o republicanismo mais amplo possvel eoposta s elites e aristocracias hereditrias e manufaturadas.

    Leiam a fundo a maioria dos lamentos do tempo atual, queclamam contra a ausncia de padres, que anseiam pelos dias de PerryMiller e Douglas Bush,b que no cessam de falar sobre uma literaturaapartada do mundo da histria e trabalho humanos, que depreciam apresena dos estudos de mulheres e de gnero, das literaturas africanae asitica, que alegam que as humanidades e o humanismo so a prer-rogativa apenas de um punhado seleto de pessoas educadas em ingls,no infectadas por iluses sobre progresso, liberdade e modernidade, evocs tero dificuldades para explicar como um tal refro soa numa so-ciedade radicalmente multicultural como a da Amrica. Ser que umacrena no humanismo como um ideal educacional e cultural deve sernecessariamente acompanhada por milhes de excluses segundo alista de itens a serem purgados, o predomnio de uma classe minsculade autores e leitores selecionados e aprovados, e um tom de rejeio deesprito mesquinho? Eu diria que no, pois compreender o human-ismo, para ns cidados desta repblica peculiar, compreend-locomo democrtico, aberto a todas as classes e formaes, e como umprocesso de incessante revelao, descoberta, autocrtica e liberao.Chegaria a dizer que o humanismo crtica, uma crtica dirigida

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  • situao tanto dentro como fora da universidade (o que no certa-mente a posio adotada pelo humanismo censurador e estreito que sev como formao de uma elite) e que adquire a sua fora e relevnciapelo seu carter democrtico, secular e aberto.

    Pois no h de fato nenhuma contradio entre a prtica do hu-manismo e a prtica da cidadania participativa. O humanismo noconsiste em retraimento e excluso. Bem ao contrrio: o seu objetivo tornar mais coisas acessveis ao escrutnio crtico como o produto dotrabalho humano, as energias humanas para a emancipao e o es-clarecimento, e, o que igualmente importante, as leituras e inter-pretaes humanas errneas do passado e do presente coletivos. Ja-mais houve uma interpretao errnea que no pudesse ser revisada,melhorada ou derrubada. Jamais houve uma histria que no pudesseser em algum grau recuperada e compassivamente compreendida emseus sofrimentos e realizaes. Inversamente, jamais houve uma in-justia secreta vergonhosa, um castigo coletivo cruel ou um planomanifestamente imperial de dominao que no pudesse ser des-mascarado, explicado e criticado. Sem dvida, isso est tambm nomago da educao humanista, apesar de toda a filosofia suposta-mente neoconservadora que condena classes e raas inteiras a um at-raso eterno, provando se for essa a palavra correta , no pior sen-tido darwiniano, que alguns povos merecem a ignorncia, a pobreza, asade deficiente e o atraso segundo os ditames do livre mercado, en-quanto outros podem ser de algum modo modelados por projetos epolticas de think-tanks para formar novas elites.

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  • Se esse primeiro problema ou melhor, sndrome que tenhodescrito comea e termina numa rejeio social do que moderno enuma adoo de um ideal supostamente mais antigo, supostamentemais humanista e autntico de associao encarnado na pequenaelite ou aristocracia quase cabalstica , a prxima questo ou prob-lema dentro do discurso do humanismo que desejo discutir tem ummolde epistemolgico. Deriva de uma suposta oposio entre o que designado como tradicional e cannico e as intervenes indesejveisdo que novo e intelectualmente representativo da era em que vive-mos. Infelizmente, muitas das mesmas dificuldades empobrecedorasque j encontramos tornam a reaparecer aqui. Claro, precisamos de-fender a lngua contra o jargo e a ininteligibilidade, mas esses noprecisam ser compreendidos como sintomas de como depravado eobjetvel tudo quanto novo. Toda a linguagem existe para ser revital-izada pela mudana. Examinem toda a histria do humanismo e dacrtica os dois esto invariavelmente associados em tantas cultur-as e perodos quantos puderem avaliar, e descobriro que jamaishouve uma grande realizao humanista sem um componente, uma re-lao ou uma aceitao importante do novo, do que mais recente-mente verdadeiro e excitante na arte, pensamento ou cultura daqueleperodo. Isso vale, por exemplo, para Eurpides, cuja ltima e maiorpea teatral, As Bacantes, versava exatamente sobre resistir ao novo e no sobreviver ao esforo. Valia at para o maior de todos os mestrestradicionais, Johann Sebastian Bach, cuja obra foi uma suma da poli-fonia cannica alem, bem como uma abertura para as influncias dosltimos estilos franceses e italianos de dana.

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  • So interminveis os exemplos para essa regra geral, que dissipacompletamente a tese reacionria de que a venerao do tradicional oucannico deve ser oposta s inovaes da arte e pensamento contem-porneos. Isso muito diferente da observao mais severa e ver-dadeira de Walter Benjamin de que todo documento de civilizao tambm um documento de barbrie, uma noo que me parece essen-cialmente uma verdade humanista trgica de grande relevncia, com-pletamente sem efeito sobre os novos humanistas, para quem a culturaaprovada salutar de um modo no adulterado e, enfim, descomplica-damente redentor. Mas como a Amrica, para todos os que para c vi-eram, representava o novo em promessa e esperana, parece haverboas razes para atar o humanismo americano de forma bem decididas energias, aos solavancos, s surpresas e s guinadas do que estsempre presente e aqui chegando, sob alguma forma, como o novo e odiferente.

    Como o mundo se tornou muito mais integrado e demografica-mente misturado do que jamais foi, todo o conceito de identidadenacional tem de ser revisado e na maioria dos lugares que conheoest passando pelo processo de ser revisado. Muulmanos do norte dafrica, curdos, turcos e rabes do Oriente Mdio, ndios do Ocidente edo Oriente, bem como os homens e as mulheres de vrios pasesafricanos mudaram para sempre a face coletiva da Gr-Bretanha, Su-cia, Frana, Alemanha, Itlia e Espanha, entre outros pases daEuropa. Misturas extraordinrias de nacionalidades, raas e religiesformam as diferentes histrias da Amrica Latina, e, quando olhamospara a ndia, a Malsia, o Sri Lanka, Cingapura e vrios outros pases

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  • asiticos, notamos, como notaramos no caso de muitos pasesafricanos, uma enorme variedade de lnguas e culturas, a maioria coex-istindo e interagindo pacificamente umas com as outras no curso nor-mal dos acontecimentos. O importante que, de toda a bagagem her-dada do pensamento poltico do sculo xix, a noo de uma identidadenacional homognea, coerente, unificada a mais repensada, e essamudana est sendo sentida em toda esfera da sociedade e da poltica.A posio francesa e alem contra a guerra dos Estados Unidos noIraque, por exemplo, deriva em grande medida da presena naquelespases de grandes minorias muulmanas ou rabes. Os currculosescolares, as vestimentas, os programas dos meios de comunicao demassa e o discurso pblico so todos afetados pelas novas misturasque surgiram nas ltimas duas ou trs dcadas. Somente na frica doSul h atualmente onze lnguas oficiais, que as instituies educacion-ais de algum modo devem levar em conta. A composio real daAmrica no muito diferente quanto diversidade e multiplicidadede culturas, embora uma conseqncia infeliz tenha sido a necessidadesentida de tentar homogeneizar tudo isso numa unanimidade iden-titria americana assertiva, para no dizer belicosa e positiva. A in-veno da tradio tem se tornado uma atividade mais do queprspera.

    Alguns etimologistas especulam que a palavra cnone (como emcannico) relacionada palavra arbica qanun, isto , lei nosentido legalista e compulsrio do termo. Mas esse apenas um signi-ficado um tanto restritivo. O outro um significado musical, o cnoncomo uma forma contrapontstica que emprega inmeras vozes que

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  • em geral imitam rigorosamente umas s outras, uma forma, em outraspalavras, que expressa movimento, brincadeira, descoberta e, no sen-tido retrico, inveno. Vistas dessa maneira, as humanidades cann-icas, longe de serem uma tbua rgida de regras fixas e monumentosque nos intimidam a partir do passado como o Beckmesser de Wag-ner marcando os erros do jovem Walther em Die Meistersinger ,sempre permanecero abertas a combinaes mutveis de sentido esignificao; toda leitura e interpretao de uma obra cannica a rean-ima no presente, fornece uma ocasio para releitura, permite que omoderno e o novo sejam situados num amplo campo histrico, cujautilidade nos mostrar a histria como um processo agonstico queainda est sendo feito, em vez de terminado e decidido de uma vez portodas.

    Por muito que tenha admirado e estudado Jonathan Swift porvrios anos, costumava ser uma fonte de pesar para mim que as suasatitudes sobre o passado, exemplificadas nas suas simpatias pelos anti-gos em detrimento dos modernos na Batalha dos livros, fossem todoutrinrias e inflexveis. Isto , at que se tornou possvel seguir o ex-emplo de Yeats e ler Swift, de modo revisionista, como o maior escritordemonaco e feroz que j existiu. Magnnimo, Yeats imaginava omundo interior de Swift essencialmente num conflito incessante con-sigo mesmo, insatisfeito, no apaziguado, no reconciliado quase maneira de Adorno, em vez de acomodado em padres imperturbveisde tranqilidade e ordem imutvel. O mesmo acontece com o cnone,que podemos venerar de longe ou considerar mais ativamente numcombate corpo a corpo, usando aspectos da modernidade na luta para

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  • evitar uma monumentalidade sem vida do tipo que Nietzsche e Emer-son to apropriadamente depreciavam.

    Por fim, o terceiro problema: no que diz respeito presenahistrica das humanidades, duas vises esto entrelaadas num con-flito interminvel. Uma viso interpreta o passado como uma histriaessencialmente completa; a outra v a histria, at o prprio passado,como ainda no resolvida, ainda sendo feita, ainda aberta presena eaos desafios do emergente, do insurgente, do no retribudo e do inex-plorado. Talvez exista, como alguns tm argumentado, um cnoneocidental que est marmoreamente encerrado em si mesmo, diante doqual precisamos nos inclinar. Talvez haja um tal passado; talvezdevssemos vener-lo. As pessoas parecem gostar desse tipo de coisa.Eu no. No me parece suficientemente interessante, apropriado ouimaginativo. Alm disso, toda cultura, em toda parte, como disseacima, est passando por um processo macio de autodefinio, auto-exame e auto-anlise, tanto em relao ao presente como ao passado:na sia, na frica, na Europa, na Amrica Latina. ridculo que ospomposos acadmicos americanos digam que isso constitui turbuln-cia demais e que, portanto, queremos voltar ao passado greco-ro-mano. No perceber que a essncia do humanismo compreender ahistria humana como um processo contnuo de autocompreenso eauto-realizao, no apenas para ns, brancos, do sexo masculino,europeus, americanos, mas para todo mundo, no perceber absoluta-mente nada. H outras tradies eruditas no mundo, h outras cultur-as, h outros gnios. Uma frase soberba de Leo Spitzer, o mais bril-hante leitor de textos que este sculo produziu, que passou seus

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  • ltimos anos como um humanista americano de origem e formaoeuropia, singularmente apropriada. O humanista, diz ele, acred-ita no poder da mente humana de investigar a mente humana(Spitzer, 24). Observem que Spitzer no diz a mente europia, ouapenas o cnone ocidental. Ele fala sobre a mente humana tout court.

    Essa universalidade de viso no absolutamente o que temosobtido de Harold Bloom, que se tornou o porta-voz popular do tipomais extremo de esteticismo repudiador que se autodenomina human-ismo cannico. O seu talento extraordinrio no o tem impedido defazer os ataques mais brutos e mais cegos ao que, numa leitura errneachocante do esteticismo de Wilde, ele supe estar representando.Wilde foi antes o mais generoso e o mais radical dos leitores ir-landeses, e nem um pouco o aristocrata presunoso, entorpecido epseudo-ingls que leitores mal informados julgaram que ele fosse. Nassuas incessantes evocaes aleatrias do que ele depreciativamentechama a escola do ressentimento, Bloom inclui tudo o que foi dito ouescrito por novos talentos que no so europeus, no so do sexo mas-culino, no receberam educao inglesa e por acaso no concordamcom as suas proclamaes profticas cansativas. Certamente pode-seaceitar, como eu aceito, a existncia de realizaes maiores e menoresnas artes, e at realizaes que so inteiramente desinteressantes (afi-nal, ningum pode gostar de tudo): mas eu jamais admitiria que algofosse humanisticamente, intrinsecamente desinteressante apenas porno ser um dos nossos, ou por pertencer a uma tradio diferente, oupor provir de uma diferente perspectiva e experincia e constituir oresultado de diferentes processos de trabalho, como na frase

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  • estarrecedoramente condescendente de Saul Bellow: mostrem-me oProust zulu.

    As opinies de Bloom sobre o cnone humanista mostram antesuma ausncia que uma animadora presena de esprito: ele quasesempre se recusa a responder a perguntas nas conferncias que d,recusa-se a se envolver com outros argumentos, apenas assevera,afirma, entoa. Isso elogio de si mesmo, e no humanismo, e certa-mente no crtica esclarecida. Deve-se ter to pouco envolvimentocom esse tipo de superficialidade quanto com a tese do confronto dascivilizaes de Samuel Huntington: ambas resultam no mesmo rep-dio belicoso; ambas compreendem radicalmente mal o que nas cultur-as e civilizaes as torna interessantes no a sua essncia ou pureza,mas as suas combinaes e diversidade, suas contracorrentes, o modocomo tiveram de realizar um dilogo imperioso com outras civiliza-es. E tanto Bloom como Huntington deixam completamente de per-ceber o que tem sido h muito tempo uma caracterstica de todas asculturas, isto , que h nelas um forte veio de dissenso antiautoritrioradical. irnico que autoritrios to beligerantes como Bloom eHuntington esqueceram que muitas das figuras no cnone de hoje fo-ram os insurgentes de ontem.

    Por razes que examinarei no meu prximo captulo, no podehaver verdadeiro humanismo cujo mbito se limite a exaltar patriot-icamente as virtudes de nossa cultura, nossa lngua, nossos monu-mentos. O humanismo o emprego das faculdades lingsticas de umindivduo para compreender, reinterpretar e lutar corpo a corpo comos produtos da linguagem na histria, em outras lnguas e outras

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  • histrias. Na minha compreenso de sua relevncia atual, o human-ismo no um meio de consolidar e afirmar o que ns sempre con-hecemos e sentimos, mas antes um meio de questionar, agitar e refor-mular muito do que nos apresentado como certezas transformadasem produtos do mercado, empacotadas, incontroversas e codificadasde modo acrtico, inclusive aquelas contidas nas obras-primas agrupa-das sob a rubrica de os clssicos. O nosso mundo intelectual e cultur-al no hoje uma coletnea simples e evidente de discursos eruditos: antes uma discordncia em ebulio de notaes no resolvidas, parausar a bela expresso de Raymond Williams para as articulaes inter-minavelmente ramificadas e elaboradas da cultura.

    E no entanto, como humanistas, da linguagem que partimos.Uma das melhores maneiras de inserir essa idia no contexto espe-cificamente americano, que o meu interesse neste momento, usaruma passagem de Richard Poirier no seu livro The Renewal of Literat-ure. Num captulo sobre Emerson, intitulado A questo do gnio,Poirier afirma que para Emerson o instrumento mais potente e inev-itvel da cultura herdada era a prpria linguagem, e a linguagem,como temos dito nesta conferncia, fornece ao humanismo seu materi-al bsico, bem como, na literatura, sua oportunidade mais rica. Mas,embora gil e flexvel, a linguagem nos propicia o nosso destino sociale cultural, sendo essa a razo, aponta Poirier, pela qual devemos v-la primeiro pelo que ela , e sua forma, em ltima anlise, a lin-guagem que usamos na cultura, e, eu acrescentaria, no humanismo,para o conhecimento de ns mesmos. Mas, continua Poirier sabia-mente, a linguagem tambm o lugar em que podemos registrar com

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  • mais eficcia o nosso desacordo com nosso destino por meio de nossostropos, trocadilhos, ecos pardicos, deixando as energias vernculasagirem contra terminologias reverenciadas... A linguagem o nicomeio de contornar a obstruo da linguagem (72). No que se segue,vou tentar elucidar a situao de mudana tanto da linguagem comoda prtica humanista nos tempos atuais.

    referncias bibliogrficas

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    a Os Southern Agrarians, ou Vanderbilt Agrarians, formaram um grupo de doze es-critores e poetas tradicionalistas do sul dos Estados Unidos que em 1930 publicou ummanifesto agrrio e uma coletnea de ensaios intitulada Ill Take My Stand. O NewCriticism foi uma escola muito influente de crtica literria que floresceu da dcada de1940 at o final da dcada de 1960. (N. T.)

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  • b Historiadores da literatura da Universidade Harvard que se notabilizaram pela de-fesa do historicismo e filologismo em oposio aos partidrios do New Criticism. (N.T.)

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  • 2. As novas bases do estudoe da prtica humanistas

    Durante o processo de leitura e preparao para este livro, eu mevi inevitavelmente atrado para vrias coletneas de artigos, simpsios,relatrios e textos afins a respeito do estado das humanidades tantoneste pas como no exterior. Eles me lembraram os panfletos e estudossobre a condio da Inglaterra que pareciam proliferar incessante-mente na Inglaterra do final da era vitoriana. Talvez o resultado maisnotvel da minha trajetria de estudo tenha sido a descoberta de queno importa quem esteja escrevendo ou falando, onde, quando ou paraquem, as humanidades sempre parecem estar numa encrenca pro-funda e geralmente terminal. A palavra crise inevitvel neste ponto,quer para um grupo de ilustres acadmicos, incluindo Cleanth Brooks,Nathan Pusey e Howard Mumford Jones, na Universidade de

  • Wisconsin em 1950, quer para outro grupo posterior, compreendendoJonathan Culler, George Levine e Catharine Stimpson, reunidos naState University of New YorkStony Brook por essa universidade epelo Conselho Americano de Sociedades Eruditas, em maio de 1988.

    Separados por quase quarenta anos, mas usando termos muitosimilares e demonstrando uma preocupao genuna, os dois conjun-tos de crticos acadmicos americanos lamentam os tempos em geral,as crescentes incurses no campo das humanidades feitas pela tecno-logia, pela especializao e por um clima popular inclemente (no l-timo caso, decididamente hostil). E, uma vez terminado o exerccio deautocomiserao, os dois repetem frases sonoras de apoio que enfat-izam a importncia das humanidades, frases das quais impossveldiscordar, pois ambos os grupos tambm argumentam que h umncleo da humanidade (estipulado em linguagem muito eloqente)que no deve ser violado pelos humanistas, mas antes realado e enfat-izado. um pouco como Alice esbofeteando as prprias orelhas porenganar a si mesma no croquet!

    O que no mudou de um perodo para o outro o sentimento nodeclarado de que colquios desse tipo, cujo objetivo perene reunirfiguras famosas que emitiro afirmativas verossmeis em favor de seuscampos, constituem as culminaes pblicas e momentaneamente in-fluentes de muitas horas de ensino na sala de aula e conferncias,pesquisa literria e intercmbio acadmico (a maior parte, obvia-mente, oculta da viso geral), tudo para assegurar que a prtica do en-sino e crtica possa continuar por mais um perodo, aguardando queocorra o prximo desses encontros. A minha inteno ao dizer tal coisa

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  • no de modo algum depreciativa, pois, como disse na minha ltimaconferncia, as humanidades e o humanismo precisam em essncia dereviso, reconsiderao e revitalizao. Uma vez mumificados natradio, deixam de ser o que realmente so e tornam-se instrumentosde venerao e represso.

    Como disse h pouco, crise a senha e, como claro que as hu-manidades seguiram adiante cambaleando e resistiram apesar dacrise, temos o direito de nos perguntar se o que temos aqui no umcaso de alarme falso repetido vrias vezes. No quero ser arrogante,entretanto; nos anos entre o fim da Segunda Guerra Mundial e opresente, o humanismo nos Estados Unidos realmente passou no spor uma crise prolongada, mas por uma transformao capital.Estamos talvez apenas comeando a sentir uma inquietao quanto aofato de que a ttica habitual falar sobre voltar aos valores humanis-tas, aos grandes textos e autores, e assim por diante no to con-vincente como no passado, devendo ser provavelmente abandonada nomomento.

    H, acho eu, um argumento genuinamente alternativo e mais in-teressante, que abordarei daqui a pouco. Mas por enquanto gostaria deme dedicar a mostrar que as mudanas realmente ocorreram, s vezesem silncio, e em geral sem receber a considerao a elas devida.Houve mudanas nas prprias bases do que o humanismo e a prticahumanista foram por um perodo bem longo nos Estados Unidos e emoutros lugares. No primeiro captulo, caracterizei essa prtica mais an-tiga como geralmente arnoldiana: as mudanas que acometeram essearnoldismo so to profundas, entretanto, a ponto de tornar a

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  • influncia residual de Arnold mais ou menos insignificante. Enquantoisso, devo tambm afirmar que muitos de ns acreditam, com Arnold eT. S. Eliot, que de um modo talvez quase instintivo devemos continuara nos agarrar a uma ordem estvel de grandes obras de arte, cujopoder de sustentao significa muito para cada um de ns a seuprprio modo.

    Apenas ignorar a grande mudana no mundo e seguir adiantecomo se tudo continuasse como antes constitui, sei muito bem, umaalternativa, e, maneira da avestruz, continuar a ter suas atraes,especialmente para algum como eu, que escreve calorosamente sobrecausas perdidas e tem estado congenitamente envolvido com essascausas durante a maior parte da sua vida. Neste caso, entretanto, jtendo ao mesmo tempo me convencido de que devo deixar de ser umaavestruz, estou ansioso por convencer o meu leitor de que evitar a real-idade e definhar sentimentalmente num passado nostlgico na ver-dade menos factvel e muito menos interessante por razes incon-testavelmente humanistas do que lidar com o problema de modo ra-cional e sistemtico.

    Neste captulo, vou falar sobre as novas bases para o trabalho hu-manista na situao mundial e histrica em que, como americanos,nos encontramos. Na prxima conferncia, mostrarei que o nicomodo til de lutar corpo a corpo com esse novo contexto o regresso aum modelo filolgico-interpretativo mais antigo e mais amplamentefundamentado do que aquele que tem prevalecido na Amrica desde aintroduo do estudo humanista na universidade americana h 150anos. Isso talvez parea muito esquisito, e mais esquisito ainda, como

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  • Alice exclamando entre lgrimas que vai continuar onde est at seroutra pessoa, mas peo a pacincia do leitor por enquanto.

    Parece ter ocorrido uma mudana capital na psique educacionalamericana depois da Segunda Guerra Mundial e incio da Guerra Fria.O fato que os Estados Unidos emergiram da boa guerra, como temsido chamada, com uma nova conscincia de seu poder global e, o que igualmente importante, com a sensao de que tinham apenas umgrande competidor no domnio do mundo, com o qual, de um modoquase missionrio, eram obrigados a lutar. possvel que toda a estru-tura pesadamente maniquesta da Guerra Fria tenha sido a trans-mutao de uma antiga percepo prolongada do excepcionalismoamericano e da famosa misso nas regies despovoadas que algunshistoriadores coloniais tm defendido, a meu ver de forma no convin-cente, ter sido essencial para a formao da identidade americana.Essa percepo das coisas nunca foi mais retoricamente aguda do quetreze anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando a UnioSovitica lanou o Sputnik em 1957, e o sentimento de angstia com-petitiva nos melhores e mais brilhantes continuou a pavimentar ocaminho para a crise dos msseis em Cuba, os primeiros anos daGuerra do Vietn e as sublevaes na Indonsia em 1965, para nofalar das vrias crises na Amrica Latina, frica e Oriente Mdio.Alude-se a essa tenso cultural da Guerra Fria mais ou menos rot-ineiramente em cada uma das conferncias e volumes coletivos sobreas humanidades que examinei e, com uma freqncia quase igual, nosescritos de eruditos e crticos individuais. No colquio de 1950 em

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  • Wisconsin mencionado acima, Clark K. Kuebler, por exemplo, comeaa sua contribuio da seguinte maneira:

    Tornou-se desconfortavelmente claro que o mundo est na voragem de

    uma guerra ideolgica, uma guerra da qual a Segunda Guerra Mundial

    foi apenas outra fase. Estamos batalhando por idias e ideais, e en-

    quanto lutamos percebemos cada vez mais que aquilo em que um

    homem acredita ele e faz. O carter destino. Ao lutar pela democra-

    cia em oposio ao totalitarismo sob qualquer forma, estamos en-

    volvidos numa luta que apenas superficialmente uma disputa de polt-

    ica e economia; fundamentalmente, uma disputa de valores. E, ironica-

    mente, os valores em que os totalitrios acreditam so todos bem claros,

    enquanto os valores defendidos pelos que crem na democracia so to-

    dos muito vagos.

    O tom de autoflagelao no discurso de Kuebler teve um paralelomuito mais duro no que agora conhecemos sobre o envolvimento dogoverno dos Estados Unidos na poltica cultural por meio de agnciascomo o Congresso da Liberdade Cultural. Num livro recente, argu-mentado e documentado com muita fora (Who Paid the Piper? Thecia and the Cultural Cold War), a jornalista britnica Frances StonorSaunders apresenta muitas evidncias de que os quase 200 milhes dedlares gastos pela cia para subsidiar inmeras conferncias humanis-tas e acadmicas, revistas como Encounter, Der Monat e PartisanReview, prmios, exposies de arte, concertos, competies musicais,alm de muitos eruditos, escritores e intelectuais individuais, tiveram

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  • um profundo efeito sobre o tipo de obra cultural que era produzida e otipo de atividade realizada em nome da liberdade e da atividade hu-manista. No quero ser mal compreendido: a cia no dirigia a vida cul-tural. Ainda assim, como promovia e participava numa competiomundial entre a liberdade e o totalitarismo, aludida to naturalmentepor Kuebler, h boas razes para supor que muito do que foi feito efinanciado ideologicamente em nome da liberdade, dos valores demo-crticos e da luta contra o totalitarismo comunista, contribuiu demodo significativo para a prxis humanista. Providenciou ao menosparte da carapaa protetora e numerosos programas e oportunidadespara a promoo do humanismo. Mesmo um analista to cerebral esutil de poesia como R. P. Blackmur, provavelmente o maior leitorcrtico que os Estados Unidos j produziram, fez uma primeira alianacom a Fundao Rockefeller, no apenas para financiar a sua ex-traordinria srie de seminrios em Princeton (cujos membros in-cluam figuras como Erich Auerbach, Jacques Maritain e ThomasMann), mas tambm para realizar vrias viagens ao Terceiro Mundopara, entre outras coisas, avaliar a profundidade da influncia americ-ana naquelas regies.

    O que Saunders no nota no seu livro, entretanto, que o estadode esprito contestatrio e s vezes implicitamente nacionalista atpatritico da poca no era inteiramente devido Guerra Fria,sendo mais seguramente o resultado da epistemologia fundamental dacultura moderna e das humanidades, que parece necessitar de uma re-modelagem da situao dessas ltimas em termos das novas ameaas atoda gerao sucessiva. Em outras palavras, a Guerra Fria fazia parte

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  • de um padro global em que essas ameaas cultura humanista pare-cem estar entranhadas na prpria natureza do pensamento sobre asituao humana em geral: o ltimo verso pesaroso do esplndidopoema de Kavafis, espera dos brbaros, sugere, na sua ironia lap-idar, como um Outro hostil til em tais circunstncias eles eram,aqueles povos, uma espcie de soluo.

    Lembremos tambm que Cultura e anarquia, de MatthewArnold, certamente a defesa moderna mais famosa da alta cultura e doalto humanismo j escrita, aproveita os tumultos de Hyde Park, a agit-ao em torno da segunda reforma constitucional (Second ReformBill) e, como mostrou Gauri Viswanathan, a crise colonial contnua nandia e na Irlanda para formular seus argumentos em favor do que demelhor j se conheceu e pensou em termos da oposio bsica regis-trada no ttulo do livro, embora se pudesse substituir e por versus.A sombra da Guerra Fria, portanto, sem falar na retrica interminvelsobre a liberdade versus o totalitarismo, pairou de forma no inesper-ada sobre a prxis humanista ao menos por duas geraes.

    O humanismo como nacionalismo protecionista ou at defensivo, acredito, uma mistura consagrada por sua ferocidade e triunfalismos vezes ideolgicos, embora seja s vezes inevitvel. Num cenrio co-lonial, por exemplo, a revivescncia das lnguas e culturas oprimidas,as tentativas de afirmao nacional por meio da tradio cultural e dosgloriosos ancestrais (a poesia de Yeats como parte da revivescncialiterria irlandesa em face do governo britnico um bom exemplo) ea insistncia nos estudos sobre a preeminncia dos grandes clssicosnacionais tudo isso explicvel e compreensvel. Para os palestinos

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  • contemporneos como ir aqui confirmar outro exemplo: o papel dapoesia oral e, paralelamente, o surgimento de um estilo nacional emquestes relativas ao ensino humanista e anlise poltica em camposcomo a histria, o estudo do folclore e a tradio oral, alm dos (atagora fracassados) esforos para fundar um museu e uma bibliotecanacionais e para tornar obrigatria a literatura palestina nos currculosescolares , a alternativa tem sido o ofuscamento nacional, a obliter-ao nacional. Mas, nas culturas em que o nacionalismo conseguiuconquistar independncia nacional, h tambm o perigo de uma xeno-fobia inflamada que intolerante ao extremo, especialmente quandoexiste na forma de guerra civil e lutas religiosas. Todas as culturas tmessa caracterstica como uma tendncia latente, uma das razes pelasquais estabeleci uma conexo direta das humanidades com o sensocrtico da investigao, e no com o que Julien Benda chama a mobiliz-ao das paixes coletivas.

    Sem dvida, o programa ndea Title ix,c que tornou o estudo delnguas na Amrica ps-Sputnik uma preocupao de interesse nacion-al, teve muito a ver com a percepo insistente de inflexes de ameaasexternas refletidas em muitas discusses das humanidades, ainda quenem todo ato ou empreendimento erudito o demonstrasse. Sabemosque os estudos da rea, por exemplo, a antropologia, a histria, a soci-ologia, a cincia poltica e os estudos de lnguas, para nomear apenasalguns campos, estavam comprometidos com os interesses da GuerraFria. Isso no quer dizer que todos os que trabalhavam nesses camposestavam na folha de pagamento da cia, mas foi por ento que comeoua surgir um consenso subjacente a respeito do conhecimento, que mal

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  • era visvel poca, mas que, retrospectivamente, torna-se cada vezmais evidente. Isso totalmente verdade a respeito das humanidadesacadmicas, nas quais, como muitos comentaristas tm mostrado, anoo de anlise esttica apoltica pretendia ser uma barreira contra apolitizao manifesta da arte, o que, afirmava-se, era mais do que evid-ente no realismo socialista.

    E assim, na segunda metade do sculo xx, ganhou muita aceitaoa idia do humanista no-engajado, cuja rea de especializao (elaprpria uma noo profundamente ideolgica e, no mundo relacion-ado com o conhecimento, altamente capitalizada e institucionalizada)era a cultura e, dentro da cultura, o estudo de, digamos, Milton, o neo-classicismo oitocentista ou a poesia romntica. Minha formao comoerudito e professor de literatura ocidental se deu ao abrigo dessa idia.No mnimo, como lembro com uma considervel clareza, ela mantinhano seu lugar uma concepo apoltica e rgida, at mecnica, dahistria literria. Havia perodos sucessivos, grandes autores, concei-tos dominantes que eram receptivos pesquisa, anlise comparada e organizao temtica, mas jamais a um exame radical da ideologiado prprio campo. Essa foi a maneira como me formei intelectual-mente, e no quero deixar transparecer seno gratido pelo acesso sbibliotecas, aos professores eruditos e s grandes instituies que elame proporcionou: havia coisas definidas a aprender, uma quantidadeimensa de literatura a cobrir, e um sistema hierrquico bem organiz-ado a internalizar e respeitar (grandes autores, continuidades e gner-os como o romance, a lrica e o drama, autores menores, movimentos,estilos e, por fim, todo o mundo da erudio secundria).

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  • A noo importante, entretanto, que nada disso tinha a intenode ser intelectualmente rigoroso ou sistemtico, porque a educaoh