sopro 30 - debate anistia

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  • 8/9/2019 Sopro 30 - Debate Anistia

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    O nascimento do direito constitucional contempo-

    rneo, no m do sculo XVIII, conjugou-se ideia e

    prtica da instituio do novo: no caso dos EUA,uma forma nova de governo: em um novo mundo,um Estado federativo, republicano e presidencialista,diferente da velha Europa e suas monarquias. Nocaso da Frana, um novo governo que substitusseoAncien Rgime.

    Hannah Arendt recorda que a palavra revoluosignicava originalmente restaurao as revoluesfrancesa e americana que mudaram esse sentidoem favor de uma nova ordem das coisas.1 E a re-voluo americana, alm da fundao de um novocorpo poltico, marcaria o comeo de uma especcahistria das naes.

    Sieys, revolucionrio francs e terico do poderconstituinte, prontamente percebeu a necessidade deno apenas delimitar os poderes do Estado, mas tam-bm de prever garantias aos cidados. Dessa forma,

    ao projeto de Constituio, defendeu aduzir um proje-to de declarao de direitos do homem e do cidado:1 ARENDT, Hannah. On Revolution. London: Penguin Books,1990, p. 45.

    Os representantes da nao francesa, reunidos em

    Assembleia Nacional, reconhecem que tm, por seusmandatos, a incumbncia especial de regenerar a Cons-tituio e o Estado.

    Consequentemente, eles iro, sob esse ttulo, exer-cer o poder constituinte; []

    Consideram que toda unio social e, em consequ-ncia, toda constituio poltica, s pode ter como objetomanifestar, estender e assegurar os direitos do homeme do cidado.

    Eles julgam, pois, que devem, a princpio, se in-

    cumbir de reconhecer esses direitos; que sua exposioracional deve preceder o plano da constituio, comosendo sua preliminar indispensvel, e que isto signica

    apresentar a todas as constituies polticas o objeto oua meta que todas, sem distino, devem se esforar ematingir.2

    O constitucionalismo contemporneo tem procu-

    rado, com mais ou menos felicidade, instituir novas2 SIES, Emmanuel-oseph. Reconhecimento e epo-SIES, Emmanuel-oseph. Reconhecimento e epo-sio racional dos direitos do homem e do cidado. Trad.Pdua Fernandes.Prisma Jurdico. So Paulo, vol. 7, N. 1, p.133-145, jan./jun. 2008, p. 133. Disponvel em http://www4.uninove.br/ojs/inde.php/prisma/article/view/1011/1063

    SOPRO30

    Nem justia nem transio:a lei brasileira de Anistia e o Supremo Tribunal Federal

    Pdua Fernandes

    Publicao quinzenal da editora Cultura e Barbrie: http://www.culturaebarbarie.org

    Desterro, junho de 2010

    Na contramo do resto da Amrica Latina, o Brasil optou, em recentedeciso do Supremo Tribunal Federal, por esquecer juridicamenteo Terror de Estado praticado pelos agentes da nossa mais recenteditadura. Que camadas de sentido se sobrepem nesta deciso? O que ela revela sobre apersistncia da ditadura em nossas instituies? Que concepo de Estado e de Direito ela encerra?

    debate Anistia

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    instituies e as garantias dos cidados. Porm, tantoa novidade quanto as garantias da Constituio brasi-leira de 1988 foram rompidas pelo Supremo TribunalFederal no julgamento da ao de descumprimentode preceito fundamental (ADPF) nmero 153, quequestionava Lei 6683, de 28 de agosto de 1979.Tratava-se da lei de anistia aprovada no incio do go -verno do General Figueiredo. A ao foi proposta peloConselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil(OAB) em 2008, subscrita, entre outros, por FbioKonder Comparato, que j muito escreveu sobre a im-propriedade tica e a inconstitucionalidade dessa lei.

    No julgamento, em abril de 2010, o eclipse do di -

    reito constitucional viu-se conjugado a um revisionis-mo histrico cuja nefasta aliana desmente, em cadavrgula, o direito memria e verdade, pretensa-mente rearmado pelos Ministros em cada voto quedecidiu pela impunidade dos torturadores.

    O Ministro Relator, Eros Roberto Grau, em seurelatrio, no apenas citou o parecer de RobertoGurgel, Procurador-Geral da Repblica (contrrio procedncia da ao), como adotou a tese defendidapor Gurgel de que a lei de anistia teria resultado deum acordo do governo com a sociedade civil, preten-samente aps um debate nacional:

    22. Prossegue dizendo que [a] relevantssima ques-to submetida ao Supremo Tribunal Federal, entretanto,no comporta exame dissociado do contexto histricoem que editada a norma objeto da arguio, absoluta-

    mente decisivo para a sua adequada interpretao epara o juzo denitivo acerca das alegaes deduzidaspela Ordem, como, alis, j destacado em outros pronun-ciamentos trazidos aos autos. A anistia, no Brasil, todossabemos, resultou de um longo debate nacional, com aparticipao de diversos setores da sociedade civil, a m

    de viabilizar a transio entre o regime autoritrio militare o regime democrtico atual. A sociedade civil brasileira,para alm de uma singela participao neste processo,articulou-se e marcou na histria do pas uma luta pelademocracia e pela transio pacca e harmnica, capaz

    de evitar maiores conitos [s. 598/599]. (p. 7)

    O voto do Relator tomou essa verso errnea dos

    acontecimentos como fato histrico. E, de forma ret -rica, armou que a ao da OAB equivaleria a negarhistoricamente a campanha pela anistia:

    Reduzir a nada essa luta, inclusive nas ruas, as pas-seatas reprimidas duramente pelas Polcias Militares, oscomcios e atos pblicos, reduzir a nada essa luta tri-pudiar sobre os que, com desassombro e coragem, comdesassombro e coragem lutaram pela anistia, marco dom do regime de exceo. (p. 27) arefa no foi cumprida.

    Na verdade, foi a prpria lei de 1979 que negouas pretenses levantadas nas passeatas e nas ruas,

    e no a OAB de hoje, que lutava contra a lei de ontem.Os demais Ministros que votaram contra a procedn-cia da ao seguiram o mesmo fundamento histrico.Carmen Lcia armou: E a sociedade falou altisso-nante sobre o Projeto de Lei, que se veio a converterna denominada Lei de Anistia [...] (p. 4), que teriavindo do amplo debate:

    No se pode negar que a anistia brasileira, concedi-da na forma da Lei n. 6683/79, resultou de uma presso

    social, em especial dos principais setores atuantes dasociedade civil, como intelectuais, estudantes, sindica-tos, efoi [sic] objeto de amplo debate e de manifesta-es expressas e especcas das principais entidades

    e personalidades ento atores do processo da chamadaabertura. (p. 15)

    Celso de Mello seguiu a mesma linha:

    No fundo, preciso ter presente que a Constituiosob cuja gide foi editada a Lei n 6.683/79, embora

    pudesse faz-lo, no reservou a anistia apenas aoscrimes polticos, o que conferia liberdade decisria, aoPoder Legislativo da Unio, para, com apoio em juzoeminentemente discricionrio (e aps amplo debate com

    a sociedade civil), estender o ato concessivo da anistia

    a quaisquer infraes penais de direito comum. (p. 16)

    No voto desse Ministro, a negao da histria nose revelou apenas na co ocialesca do amplo

    debate, mas na imaginao de que ocorreu algumpoder discricionrio do Poder Legislativo:

    E foi com esse elevado propsito que se fez inequi-vocamente bilateral (e recproca) a concesso da anistia,

    com a nalidade de favorecer aqueles que, em situao

    de conitante polaridade e independentemente de sua

    posio no arco ideolgico, protagonizaram o processopoltico ao longo do regime militar, viabilizando-se, dessemodo, por efeito da bilateralidade do benefcio concedido pela Lei n 6.683/79, a construo do necessrio con-senso, sem o qual no teria sido possvel a colimaodos altos objetivos perseguidos pelo Estado e, sobre-tudo, pela sociedade civil naquele particular e delicado

    momento histrico da vida nacional. (p. 17)

    Aqui, alm da imagem anistrica de um carterbilateral e recproco da lei de anistia, o Ministro ima -gina um consenso nacional: o Estado, ao buscar aimpunidade a seus agentes que violaram os direitoshumanos, perseguiria um alto objetivo supostamen-te compartilhado com a sociedade civil.

    O Ministro tambm comete uma impropriedadehistoriogrca, em matria de fontes: para compre-ender o debate histrico de 1979, cita um discursode 1981:

    Destaco, por isso mesmo, como elemento de tilcompreenso das circunstncias histricas e polticas domomento em que se elaborou a Lei de Anistia, fragmen-tos de manifestao de um grande Senador da Repblica

    a propsito desse tema.Em discurso proferido no Senado da Repblica,em 17 de maro de 1981, o eminente Ministro PAULO

    BROSSARD [] (p. 21)

    Teria sido mais consequente, em termos de fonteshistricas, ir aos prprios debates do projeto de lei;porm, se o Ministro o tivesse feito, o voto teria queser outro. Faamos, portanto, este trabalho.

    O partido da oposio consentida, o MovimentoDemocrtico Brasileiro (MDB), apresentou substi-tutivo, assinado pelos deputados federais Ulysses

    Guimares, Freitas Nobre e pelo senador Paulo Bros-sard, que epressamente eclua dos efeitos da anis-tia os torturadores, no pargrafo segundo do artigoprimeiro: Ecetuam-se dos benefcios da anistia osatos de sevcia ou de tortura, de que tenham ou noresultado morte, praticados contra presos polticos.3

    O que se v nos dois longos volumes dos deba-tes do projeto de lei? As emendas da oposio foramsistematicamente recusadas o partido do governo, aARENA, tinha maioria. Mesmo as emendas do partidode sustentao poltica da ditadura foram rejeitadas.Em determinado momento, Roberto Freire, entodeputado federal pelo MDB, interveio, em vo, por

    emenda de parlamentar da ARENA.4

    O senador Pe-dro Simon, do MDB, foi um dos parlamentares quedenunciou a farsa desses debates parlamentares:

    [] acho que houve diminuio do Congresso emno aproveitar, em no votar, em no discutir, em no de-bater, porque as emendas que foram aproveitadas foramaquelas que o Sr. Relator trouxe quando apresentou oseu relatrio. Emendas, que todos ns sabemos, foi apsa reunio com o Ministro da Justia. Daqui, do debate,no saiu nada. Isto a Histria vai registrar.5

    A Procuradoria-Geral da Repblica e o SupremoTribunal Federal deiaram de fazer o registro, ao con-trrio de Fbio Konder Comparato. Quando, no Chile,Pinochet declarou a anistia em 1978, dois ento se-nadores pela ARENA no tardaram em mostrar suacontrariedade; arbas Passarinho apressou-se emdeclarar que O Brasil ainda no est preparado paraesse tipo radical de soluo poltica, ao menos porenquanto; segundo os Sarney, a anistia ampla,irrestrita e recproca realmente uma posio radical,inaceitvel, porque no do interesse da nao.63 BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. COMISSO MISTASOBRE ANISTIA. Anistia. Braslia, 1982, vol.I, 1982, p. 71.4 Idem, p. 710.5 Idem, p. 742.6 Trata-se de declaraes dadas em 20 de abril de 1978. Do-Trata-se de declaraes dadas em 20 de abril de 1978. Do-cumento 50-Z-00-14320. A Anistia. Passarinho: Aqui, aindano d. Dirio da Tarde. 21 abr. 1978. 1 . Pblico do Estadode So Paulo (APESP). Acervo DEOPS/SP.

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    Essa anistia ampla, de fato, no estava nos planosda ditadura militar, e no foi contemplada no projetode lei enviado ao Congresso Nacional. A etenso daanistia aos chamados crimes de sangue cometidospelos opositores da ditadura militar foi realizada pelajurisprudncia do Superior Tribunal Militar.7

    A campanha da anistia, que ganhava s ruas, noera condescendente com os torturadores e assas-

    sinos da ditadura. O Programa Mnimo de Ao daSeo de So Paulo do Comit Brasileiro pela Anistia(CBA/SP) incluiu como primeiro ponto:

    1.Fim Radical e Absoluto das Torturas

    . Denunciaras torturas e contra elas protestar, por todos os meiospossveis. Denunciar eecrao pblica os torturadorese lutar pela sua responsabilizao criminal . Investigar edenunciar publicamente a existncia de organismos, re-parties, aparelhos e instrumentos de tortura e lutar pelasua erradicao total e absoluta.8

    Trata-se de documento apreendido por agente doDepartamento Estadual de Ordem Poltica e Social doEstado de So Paulo (DEOPS/SP). O destaque em7 Segundo Tercio Sampaio Ferraz r., se a lei de anistiafosse considerada invlida para os agentes da represso,o mesmo ocorreria com os que combateram a ditadura (Alei de anistia impede a punio dos que praticaram torturadurante o regime militar? Sim. Folha de S.Paulo. 16 agosto2008. Disponvel em em http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cienticas/123). Deisy Ventura dis-corda dessa posio, tendo em vista a distino entre crimespolticos (entre os quais se contam o golpe de Estado pelos

    militares e a resistncia contra ele), que podem ser anistia-dos, e os crimes contra a humanidade, tais como a torturae o desaparecimento forado (VENTURA, Deisy. O regimedo medo continua. Entrevista dada a Patrcia Fachin. Re-vista IHU On Line, 2008. Disponvel em http://www.ihuonline.unisinos.br/inde.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=1234 ; ver tambm a entrevista, dada aeste autor: VENTURA, Deisy. Uma caia de ressonncia deeventos no plano global. Prisma Jurdico, vol. 8, n. 1, 2009.Disponvel em http://www4.uninove.br/ojs/inde.php/prisma/issue/view/100/showToc )

    8Documento 50-Z-08-80-. 99. Comit Brasileiro pela An-istia Estado de So Paulo (CBA/SP), s/d, 1 . ProgramaMnimo de Ao. ulho de 1978. 1 . Arquivo Pblico do Es-tado de So Paulo (APESP). Acervo DEOPS/SP.

    negrito foi feito pelo prprio CBA; o sublinhado, con -tudo, foi feito mo, provavelmente por algum agentedo DEOPS/SP. De fato, tratava-se de ponto sensvelpara os agentes da represso poltica.

    O Congresso Nacional pela Anistia, em suas re-solues tomadas em novembro de 1978, aprovoumedida anloga em seu Programa Mnimo:

    Fim Radical e Absoluto das Torturas. Denunciar astorturas e contra elas protestar, por todos os meios pos-sveis. Denunciar execrao pblica os torturadores elutar pela sua responsabilizao criminal e do sistema aque eles servem, fazendo que essa luta seja assumida

    no apenas individualmente, mas, coletivamente, pelosmovimentos de anistia e pelas entidades prossionais a

    que se acham vinculadas as vtimas.9

    No ocorreu uma discusso pblica livre; muitopelo contrrio, a campanha pela anistia, vinda de bai-o para cima, era, por si, considerada adversa aos in -teresses da ditadura militar e, assim, um perigo para asegurana nacional, razo pela qual militantes forampresos por participarem da campanha. em 1975,documentos do DEOPS/SP mostravam a preocupa-o ocial com a anistia. Transcreve-se parte de umrelatrio no assinado do Ministrio da Aeronuticasobre conferncia da advogada Terezinha Zerbini,militante feminista e lder do Movimento Feminino emFavor da Anistia dos Presos Polticos, na Cmara deVereadores de Porto Alegre em 11 de julho de 1975:

    O Movimento Feminino em Favor da Anistia dosPresos Polticos tem se caracterizado pela participao

    de um pequeno e bem organizado grupo, comprometidoscom ideologias e polticos afastados pela Revoluo de64.

    Explorando o lado sentimental da mulher, procuram,atravs de manipulaes escusas, conscientiz-las danecessidade de se integrarem ao Movimento de Anistia

    9Documento 50-Z-00-82-Fl. 268. CONGRESSO NACIONALPELA ANISTIA. Resolues. Novembro 1978. So Paulo,p.9. Arquivo Pblico do Estado de So Paulo (APESP).Acervo DEOPS/SP.

    dos Presos Polticos.Essa arregimentao das foras de presso contra o

    Governo, embora ainda sem expresso e apoio popular,representa mais um desao e uma contestao aberta

    aos princpios defendidos pelo movimento revolucion-

    rio.10

    Lanado em abril de 1978, o jornal Anistia logofoi enquadrado como propaganda adversa11 peloDEOPS/SP. De acordo com o Decreto-lei n. 898 de1969, a lei de segurana nacional ento vigente, no 2 do artigo 3, A guerra psicolgica adversa oemprego da propaganda, da contra-propaganda e deaes nos campos poltico, econmico, psicossocial

    e militar, com a nalidade de inuenciar ou provocaropinies, emoes, atitudes e comportamentos degrupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos,contra a consecuo dos objetivos nacionais. Essacategoria de ato contra a segurana nacional foimantida com a mesma redao pela legislao querevogou o Decreto-lei n. 898, a lei n. 6620 de 1978,vigente no tempo em que foi apr ovada a lei de anistia.

    Pode-se eaminar agora o argumento de Eros Ro-berto Grau de que a lei de anistia ganhou hierarquiaconstitucional com a Emenda Constitucional n. 26 de1985:

    54. Eis o que se deu: a anistia da lei de 1979 foi r e-armada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte

    da Constituio de 1988. No que a anistia que aproveita

    a todos j no seja mais a da lei de 1979, porm a do

    artigo 4, 1 da EC 26/85. Mas esto todos como que[re]anistiados pela emenda, que abrange inclusive os queforam condenados pela prtica de crimes de terrorismo,assalto, sequestro e atentado pessoal. Por isso no temsentido questionar se a anistia, tal como denida pela lei,

    foi ou no recebida pela Constituio de 1988. Pois a

    nova Constituio a [re]instaurou em seu ato originrio.

    10 Documento 50-Z-08-1850 e 1849. Brasil. Ministrio daAeronutica. Informao 410/A2/IV COMAR. 24 set. 1975. 3. Arquivo Pblico do Estado de So Paulo (APESP). AcervoDEOPS/SP.11 Documento 50-Z-00-14930 e 14929. Informe. 18 maio1978. 3 . Arquivo Pblico do Estado de So Paulo (APESP).Acervo DEOPS/SP.

    A norma prevalece, mas o texto --- o mesmo texto --- foisubstitudo por outro. O texto da lei ordinria de 1979 re-sultou substitudo pelo texto da emenda constitucional.

    A emenda constitucional produzida pelo Poder Cons-tituinte originrio constitucionaliza-a, a anistia. E de modotal que --- estivesse o 1 desse artigo 4 sendo ques -tionado nesta ADPF, o que no ocorre, j que a inicialo ignora --- somente se a nova Constituio a tivesseafastado expressamente poderamos t-la como incom-patvel com o que a Assemblia Nacional Constituinteconvocada por essa emenda constitucional produziu, aConstituio de 1988. (p. 69)

    O Ministro Gilmar Mendes, no entanto reputadocomo constitucionalista, desenvolveu o argumento de

    Eros Roberto Grau e armou que a Emenda de 1985era um limite material Constituio de 1988.12

    A singular ideia de que emenda feita a uma Cons-tituio revogada est acima da Constituio vigen-te13 coaduna-se com o quadro de aniquilamento doconstitucionalismo pela atual formao do SupremoTribunal Federal. Como um dos eemplos desse qua-dro, pode-se lembrar que Eros Roberto Grau introdu-ziu o estado de eceo na jurisprudncia do Su -premo Tribunal Federal para servir, alegadamente, defundamento terico para os casos em que essa Cor-te resolve deiar de aplicar a Constituio. LeonardoDAvila de Oliveira bem ressaltou a incongruncia dafundamentao:

    de se surpreender que a Corte mais importantedo pas sustente que a manuteno do ordenamentosomente se d com a sua prpria suspenso. Para tan-to, justica-se este entendimento com a teoria de Carl

    Schmitt, sem dvida um grande constitucionalista do

    12 O voto do Ministro ainda no havia sido publicado naocasio da escritura deste teto, mas pode ser visto aqui:http://www.youtube.com/watch?v=gbtcKWuO7c&feature=channel13 De pronto rejeitada pelos Ministros Lewandowski e AyresBritto em seus votos, disponveis em http://www.youtube.com/watch?v=5ranNPsDDAk&feature=PlayList&p=2100D204726BFB89&playnet_from=PL&playnet=1&inde=1e http://www.youtube.com/watch?v=5ranNPsDDAk&feature=PlayList&p=2100D204726BFB89&playnet_from=PL&playnet=1&inde=1

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    sculo XX, mas que, apesar de tudo, foi o jurista que sedebruou em justicar o regime de Hitler na Alemanha

    Nazista.14

    A incongruncia ressalta-se quando se lembraque Carl Schmitt atacou a jurisdio constitucional(que, apesar de tudo, ainda uma atribuio doSupremo Tribunal Federal), defendendo o papel doFhrer como guardio da Constituio. Trata-se dafamosa polmica que manteve contra Hans Kelsen,que defendia as cortes constitucionais, argumentandoque Schmitt queria ressuscitar o princpio monrqui -co do absolutismo. O que o grande jurista austraco,que era um liberal na losoa poltica e foi afastado doensino universitrio alemo pelo nazismo (Carl Sch-mitt tomou seu lugar), pensaria ao ver que, no Brasil,um Fhrer no foi necessrio?

    Apesar das disposies constitucionais concer-nentes internacionalizao dos direitos humanos,o direito internacional foi esquecido, como habitualnessa Corte, no julgamento da ADPF n. 153. O Minis-tro Celso de Mello referiu-se a alguns tratados, mas,ao contrrio do Ministro Lewandowski, que votou pelaprocedncia parcial da ao, o fez no esquecimentocompleto do Direito Internacional Humanitrio aplic-vel! No voto do Ministro Relator, o papel do SistemaInteramericano de Direitos Humanos foi recalcado,inclusive na parcial referncia feita inconstitucionali-dade das leis de anistia na Argentina.

    Tambm foi esquecida ou recalcada a questoda justia de transio, que levou o Brasil a ser pro -

    cessado na Corte Interamericana de Direitos Huma -nos. Trata-se do caso 11.552, ulia Gomes Lund e ou-tros contra Repblica Federativa do Brasil, aberto porcausa dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.No momento em que este pequeno teto escrito,a deciso ainda no foi prolatada no se sabe se

    14 OLIVEIRA, Leonardo DAvila. Inao normativa: ex-cesso e exceo. Dissertao de mestrado, com orientaode eanine Nicolazzi Philippi, apresentada no Programade Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal deSanta Catarina (UFSC) em 2009. Disponvel em http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/33933/public/33933-44662-1-PB.pdf

    a diplomacia brasileira conseguir reverter a jurispru-dncia da Corte, que rmemente condena Estadospor causa de leis de autoanistia como a lei brasileira.

    A noo de justia de transio diz respeito aosprocedimentos que tm como m a apurao e san-o dos abusos contra os direitos humanos ocorridosem um regime poltico passado. Suas formas sodiversas, como j reconheceu a ONU. 15 No Brasil,no entanto, no se pode falar que ela tem realmenteocorrido, apesar das indenizaes pagas a persegui-dos polticos e a seus familiares (o que seria a dimen-so reparatria da justia de transio16). A simplesreparao no basta para prevenir novas violaes

    de direitos humanos, e a justia de transio, emboralide com o passado, o faz para preparar o futuro: umasociedade com respeito dignidade humana.

    A posio do STF, de que a emenda da Consti-tuio da ditadura militar superior Constituio dademocracia, signica, politicamente, que no houvejustia de transio porque a transio jamais aconte-ceu: as normas superiores continuam a ser, segundoo Supremo Tribunal Federal, aquelas emanadas pelovelho poder autoritrio oriundo do golpe de 1964.

    Nessa opo pelo continusmo (que os HonrioRodrigues veria como conrmadora de sua tese sobrea histria brasileira), h uma contradio jurdica, mas15 8.The notion of transitional justice discussed in the

    present report comprises the full range of processes andmechanisms associated with a societys attempts to come

    to terms with a legacy of large-scale past abuses, in order to

    ensure accountability, serve justice and achieve reconcilia-

    tion. These may include both judicial and non-judicial mecha-nisms, with differing levels of international involvement (ornone at all) and individual prosecutions, reparations, truth-

    seeking, institutional reform, vetting and dismissals, or a

    combination thereof. (ONU. CONSELHO DE SEGURANA.The rule of law and transitional justice in conict and post-conict societies: Report of the Secretary-General. Docu-mento S/2004/616. 23 ag. 2004)

    16MIRANDA, Lara Caroline; BAGGIO, Roberta Camineiro. Aincompletude da transio poltica brasileira e seus reeosna cultura jurdica contempornea: ainda eistem persegui-dos polticos no Brasil? II Reunio do Grupo de Estudosustia de Transio e Internacionalizao do Direito Ide-

    just. So Paulo, abril 2010. Disponvel em http://idejust.les.wordpress.com/2010/04/ii-idejust-baggio-miranda.pdf

    no poltica, com deciso de 2009 da mesma Corte.No julgamento da ADPF n. 130, que tinha como o bjetoa lei de imprensa, a lei n. 5250 de 1967, o Tribunalteve comportamento oposto: achou possvel interpre-tar uma lei de mais de trinta anos atrs17 e conside-rou-a no recepcionada pela Constituio de 1988. de se notar que o resultado no incomodou o setor decomunicaes no Brasil, importantssima parcela dobrao civil da ditadura militar.

    Resultado juridicamente semelhante, no caso daADPF n. 153, pelo contrrio, desagradaria no s osmilitares como seus apoiadores civis, que certamenteno querem ver desvelada sua colaborao com o

    golpe e o regime dele decorrente. Pois a justia detransio fundamenta-se no direito verdade, quevem sendo ultrajado na militncia revisionista dasForas Armadas18 e tambm como se viu no julga-mento desta ao pelo Supremo Tribunal Federal ea Procuradoria-Geral da Repblica.

    O revisionismo est ligado a uma singular con-cepo de jurisdio que no se apoia nem no direitonem na justia. O Ministro Cezar Peluso, atual presi -dente desse Tribunal, em seu voto armou que Umasociedade que queira lutar contra seus inimigos comas mesmas armas, os mesmos instrumentos e senti-

    mentos est condenada ao fracasso histrico.1917 Tarefa que as Ministras Crmen Lcia e Ellen GracieNortheet consideraram suspeita na ADPF n. 153.18 Pode-se lembrar que o revisionismo tem sido praticadoat mesmo no ensino fundamental pelas Foras Armadasnos colgios militares: A histria ocial contada aos alunosdos 12 colgios militares do pas omite a tortura praticada

    na ditadura e ensina que o golpe ocorrido em 1964 foi umarevoluo democrtica; a censura imprensa, necessriapara o progresso; e as cassaes polticas, uma resposta intransigncia da oposio. isso que est no livro didticoHistria do Brasil -Imprio e Repblica, utilizado pelos es -tudantes do 7 ano (antiga 6 srie) das escolas mantidascom recursos pblicos pelo Ercito. (PINHO, Angela. Livrodo Ercito ensina a louvar a ditadura. Folha de S.Paulo,13 jun. 2010) Na reportagem,o coronel Silva ardim, diretordo Colgio Militar de Braslia, armou que as questes dosdesaparecidos e da tortura so proibidas no Ercito.19 O voto do Ministro ainda no havia sido publicado naocasio da escritura deste teto, mas pode ser visto aqui:http://www.youtube.com/watch?v=bK2Hpfnk2Qg&feature=channel

    Esse voto nal foi, decerto, o mais apropriadopara raticar o pasmo que deia todo o acrdo: oMinistro pretende que o julgamento de alguns crimescometidos pelos agentes da ditadura pela justia bra-sileira de hoje20 equivale tortura, aos assassinatos,aos banimentos e s cassaes ocorridos na ditadu-ra. O pau-de-arara e a toga seriam as mesmas armas,o DEOPS e o frum seriam o mesmo lugar! O descr-dito que o Ministro parece dedicar s suas prpriasfunes conrmado por seu voto: no se pode falarde contradio performativa aqui...

    V-se, pois, que o novo foi trado nesse julgamen-to no s a nova ordem democrtica, que fugaz-

    mente se chamou de Nova Repblica, mas tambmno constitucionalismo e sua ideia, ainda no imple-mentada no Brasil, de que o Estado deve obedecerao direito.

    Trata-se, enm, da manuteno da violncia deEstado, tarefa ecazmente cumprida pelo Tribunal.Recordemos novamente de Hannah Arendt: em seuclssico trabalho sobre verdade e poltica, escreveusobre como as mentiras polticas modernas, na suatentativa de reescrever a histria e criar imagens quesirvam de sucedneo verdade factual, abrigam umgerme da violncia e so o primeiro passo, nos re-gimes totalitrios, para o assassinato de opositores,como foi o caso de Trotsky.21

    No caso brasileiro, a mentira histrica elevada condio de jurisprudncia no representa apenasmais uma violncia contra aqueles que se ergueram

    20 Ayres Britto, que foi o outro Ministro, com Lewandowski,que votou pela procedncia (parcial) da ao, teve a opor-tunidade de fazer um aparte sobre os casos de crime con-tinuado (o que inclui os desaparecimentos forados), queno esto prescritos, ao Ministro Peluso. Este Ministro,no entanto, manteve sua posio contrria a tais noesbsicas de Direito Penal. Posio mais radical contra es-sas noes esposou o Ministro Marco Aurlio de Mello, quevotou solitariamente pela etino do processo sem julga-mento do mrito, por alegada falta de interesse processual,sustentando que a ADPF seria intil, tendo a prescrio su-postamente alcanado todas as condutas delituosas pratica-das na ditadura militar.21 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro . 5. ed. SoPaulo: Perspectiva, 2002, p. 312.

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    contra a ditadura, mas a toda sociedade brasileira de hoje, ainda eposta tortura eaos desaparecimentos forados uma violncia com carter nitidamente de classesocial, de cor, de gnero e orientao seual.

    Arendt imagina que as universidade e os tribunais, apesar de epostas ao poder,possam servir de contraponto mentira organizada pelo poderio poltico e social. NoBrasil, o udicirio j mostrou no estar altura da tarefa.

    debate AnistiaOutros textos podem ser acessados em:www.culturaebarbarie.org/sopro/anistia.html

    SOPROwww.culturaebarbarie.org/sopro

    fragmento ResenhaS

    no prximo nmero:

    Os anesVernica Stigger

    So Paulo: Cosac Naify, 2010

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