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  • 8/3/2019 Uma tempestade de luz - a compreenso possibilitada pela anlise textual discursiva. (R. Moraes, 2003)

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    Cincia & Educao, v. 9, n. 2, p. 191-211, 2003

    UMA TEMPESTADE DE LUZ: A COMPREENSOPOSSIBILITADA PELA ANLISE TEXTUAL DISCURSIVA

    A storm of light: comprehension made possible bydiscursive textual analysis

    Roque Moraes1

    Resumo:O presente artigo prope-se a examinar processos de anlise textual qualitativa que, num ciclode anlise constitudo de trs elementos unitarizao, categorizao e comunicao se apresenta comoum movimento que possibilita a emergncia de novas compreenses com base na auto-organizao. Aolongo do texto trabalha-se com a metfora de uma tempestade de luz, procurando com isso criar umaimagem que traduza o modo como emergem as novas compreenses no processo analtico, atingindo-se novas formas de ordem com a participao do caos e da desordem.

    Unitermos: anlise textual, pesquisa qualitativa, categorizao, auto-organizao.Abstract:In this article we intend to examine a qualitative process of textual analysis. A cycle of three ele-ments is presented: unitizing, categorizing and communicating. Arguments are put forward to support theidea that this cycle is a process of emergence of new understandings based on self-organization. A metaphor,comparing this analysis with "a storm of light" is presented, intending to show how the emergence of newcomprehensions occurs in the analytical process, reaching new forms of order through chaos and disorder.

    Keywords: textual analysis, qualitative research, categorization, self-organization

    IntroduoPesquisas qualitativas tm cada vez mais se utilizado de anlises textuais. Seja par-

    tindo de textos j existentes, seja produzindo o material de anlise a partir de entrevistas eobservaes, a pesquisa qualitativa pretende aprofundar a compreenso dos fenmenos queinvestiga a partir de uma anlise rigorosa e criteriosa desse tipo de informao, isto , no pre-tende testar hipteses para comprov-las ou refut-las ao final da pesquisa; a inteno a com-preenso.

    No presente artigo examinamos esta abordagem de anlise organizando argumentosem torno de quatro focos. Os trs primeiros compem um ciclo, no qual se constituem como

    elementos principais:1.Desmontagem dos textos: tambm denominado de processo de unitarizao, impli-ca examinar os materiais em seus detalhes, fragmentando-os no sentido de atingir unidadesconstituintes, enunciados referentes aos fenmenos estudados.

    2. Estabelecimento de relaes: processo denominado de categorizao, implicandoconstruir relaes entre as unidades de base, combinando-as e classificando-as no sentido decompreender como esses elementos unitrios podem ser reunidos na formao de conjuntosmais complexos, as categorias.

    3. Captando o novo emergente: a intensa impregnao nos materiais da anlise desen-

    cadeada pelos dois estgios anteriores possibilita a emergncia de uma compreenso renovadado todo. O investimento na comunicao dessa nova compreenso, assim como de sua crti-ca e validao, constituem o ltimo elemento do ciclo de anlise proposto. O metatexto resul-tante desse processo representa um esforo em explicitar a compreenso que se apresenta comoproduto de uma nova combinao dos elementos construdos ao longo dos passos anteriores.

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    1 Professor Assistente Doutor do Programa de Ps-graduao de Educao e do Mestrado em Ensino de Cincias daPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS - Brasil e-mail: [email protected]

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    O texto segue focalizando o ciclo como um todo, aproximando-o de sistemas com-plexos e auto-organizados:

    4. Um processo auto-organizado: o ciclo de anlise descrito, ainda que composto de

    elementos racionalizados e em certa medida planejados, em seu todo constitui um processoauto-organizado do qual emergem novas compreenses. Os resultados finais, criativos e origi-nais, no podem ser previstos. Mesmo assim essencial o esforo de preparao e impregna-o para que a emergncia do novo possa concretizar-se.

    Ao longo da apresentao e discusso desses elementos, pretende-se defender o argu-mento de que a anlise textual qualitativa pode ser compreendida como um processo auto-orga-nizado de construo de compreenso em que novos entendimentos emergem de uma seqnciarecursiva de trs componentes: desconstruo dos textos do corpus, a unitarizao; estabelecimen-to de relaes entre os elementos unitrios, a categorizao; o captar do novo emergente em que

    a nova compreenso comunicada e validada. Esse processo em seu todo pode ser comparadocom uma tempestade de luz. O processo analtico consiste em criar as condies de formao dessatempestade em que, emergindo do meio catico e desordenado, formam-seflashesfugazes de raiosde luz iluminando os fenmenos investigados, que possibilitam, por meio de um esforo decomunicao intenso, expressar novas compreenses atingidas ao longo da anlise.

    A anlise textual aqui proposta tem sido utilizada tanto em pesquisas de mestradocomo doutorado, abrangendo reas to diversificadas quanto Comunicao, Psicologia,Educao, Servio Social e Educao Ambiental. Em algumas das pesquisas essa metodologia temsido utilizada integrada a outras abordagens de anlise. A anlise textual discursiva tem se mos-trado especialmente til nos estudos em que as abordagens de anlise solicitam encaminhamen-tos que se localizam entre solues propostas pela anlise de contedo e a anlise de discurso 2.

    1. Desmontagem dos textos: desconstruo e unitarizao

    Iniciamos nossa discusso com o primeiro elemento do ciclo de anlise: a desmon-tagem dos textos. Ao examinar esse elemento, fazemos, em primeiro lugar, uma incurso sobreo significado da leitura e sobre os diversificados sentidos que esta permite construir a partir deum mesmo texto. Da nos movemos para tratar do corpus da anlise textual, atingindo a par-tir disso, o cerne desse primeiro estgio da anlise, que a desconstruo e unitarizao do cor-

    pus. Conclumos esta discusso destacando a importncia de um envolvimento e impregnao

    aprofundados com os materiais analisados no sentido de possibilitar a emergncia de novascompreenses em relao aos fenmenos investigados.

    Leitura e significao

    Ao iniciar uma discusso de anlise qualitativa, precisamos ter presente a relaoentre leitura e significao. Se um texto pode ser considerado objetivo em seus significantes,no o nunca em seus significados. Todo texto possibilita uma multiplicidade de leituras, lei-turas essas tanto em funo das intenes dos autores como dos referenciais tericos dos lei-tores e dos campos semnticos em que se inserem.

    A anlise qualitativa opera com significados construdos a partir de um conjunto de textos.Os materiais textuais constituem significantes a que o analista precisa atribuir sentidos e significados.

    Na perspectiva do presente artigo, o que nos propomos descrever e interpretaralguns dos sentidos que a leitura de um conjunto de textos pode suscitar. Sempre parte dopressuposto de que toda leitura j uma interpretao e que no existe uma leitura nica e

    2Algumas pesquisas que utilizaram a anlise textual: Galiazzi, M.C. (2000); Machado, D.M.Z. (2002).

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    objetiva. Ainda que, seguidamente, dentro de determinados grupos, possam ocorrer interpre-taes semelhantes, um texto sempre possibilita mltiplas significaes. Diferentes sentidospodem ser lidos em um mesmo texto.

    O ciclo da anlise textual aqui focalizado um exerccio de elaborar sentidos. Os tex-tos so assumidos como significantes em relao aos quais possvel exprimir sentidos simbli-cos. Pretende-se, assim, construir compreenses com base em um conjunto de textos, analisan-do-os e expressando a partir da anlise alguns dos sentidos e significados que possibilitam ler.

    A polissemia que est implcita em qualquer texto pode originar diferentes tipos deleituras. Algumas interpretaes podem ser compartilhadas, com relativa facilidade, entre dife-rentes leitores. o que denominaramos de leituras do manifesto ou explcito. Correspondeao denotativo (Hall,1997). Em contrapartida, denominamos leitura do latente ou implcitoaquele tipo de interpretao mais exigente e aprofundada, no compartilhada to facilmente

    por diferentes leitores. Poderamos denominar este segundo nvel de conotativo (Hall, 1997).Entretanto, tanto uma como outra forma de leitura constituem-se em interpretaes que osleitores fazem a partir de seus conhecimentos e teorias, dos discursos em que se inserem. Umadelas, segundo Olabuenaga e Ispizua (1989), uma leitura mais direta do sentido manifesto;a outra uma leitura soterrada do sentido latente.

    Outro aspecto que merece ser destacado em relao s possibilidades de leitura detextos o exerccio de uma atitude fenomenolgica. Isto implica um esforo de colocar entreparnteses as prprias idias e teorias e exercitar uma leitura a partir da perspectiva do outro.Isso especialmente recomendado em pesquisas de cunho etnogrfico e fenomenolgico emque importante valorizar a perspectiva dos participantes.

    A multiplicidade de significados que possvel construir um mesmo conjunto designificantes, tem sua explicao nos diferentes pressupostos tericos que cada leitor utiliza emsuas leituras.

    Toda leitura feita a partir de alguma perspectiva terica, seja esta consciente ouno. Ainda que se possa admitir o esforo em colocar entre parnteses essas teorias, toda lei-tura implica ou exige algum tipo de teoria para poder concretizar-se. impossvel ver sem teo-ria; impossvel ler e interpretar sem ela. Diferentes teorias possibilitam os diferentes sentidosde um texto. Como as prprias teorias podem sempre modificar-se, um mesmo texto semprepode dar origem a novos sentidos.

    Se as teorias esto sempre presentes em qualquer leitura, tambm o estaro nas dife-rentes etapas da anlise. Essas teorias podem ser implcitas ou explcitas. O conhecimento dasteorias que fundamentam uma pesquisa pode facilitar o processo da anlise textual. Entretantoisso no uma exigncia, j que o pesquisador tambm pode ter pretenses de construir teo-rias a partir do material que analisa. No que nesse caso no haja teorias que o orientem,mas o pesquisador exercita um esforo de construir novas teorias a partir de elementos teri-cos de seus interlocutores empricos, manifestados por meio dos textos que analisa. o quediferentes autores denominam teorias emergentes da anlise (Lincoln e Guba, 1985;Olabuenaga e Izpizua, 1989; Laville e Dionne, 1999). O processo analtico, quando no h

    uma teoria a priori, geralmente mais desafiador, j que nesse caso mais incerto e inseguro,exigindo definir o caminho enquanto o processo avana.Sintetizando o que tentamos expressar at este ponto, entendemos que a anlise tex-

    tual parte de um conjunto de pressupostos em relao leitura dos textos que examinamos.Os materiais analisados constituem um conjunto de significantes. O pesquisador atribui a elessignificados sobre seus conhecimentos e teorias. A emergncia e comunicao desses novossentidos e significados o objetivo da anlise.

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    Corpus3

    Toda anlise textual concretiza-se a partir de um conjunto de documentos denomi-

    nado corpus. Esse conjunto representa as informaes da pesquisa e para a obteno de resul-tados vlidos e confiveis, requer uma seleo e delimitao rigorosa. Seguidamente no tra-balhamos com todo o corpus, mas necessrio definir uma amostra a partir de um conjuntomaior de textos.

    O corpus da anlise textual, sua matria-prima, constitudo essencialmente de pro-dues textuais. Os textos so entendidos como produes lingsticas, referentes a determi-nado fenmeno e originadas em um determinado tempo. So vistos como produtos queexpressam discursos sobre fenmenos e que podem ser lidos, descritos e interpretados, corres-pondendo a uma multiplicidade de sentidos que a partir deles podem ser construdos. Osdocumentos textuais da anlise, conforme j afirmado anteriormente, so significantes dos

    quais so construdos significados em relao aos fenmenos investigados.Ainda que ao longo do presente captulo, geralmente, nos referimos a textos no sen-

    tido de produes escritas, o termo deve ser entendido num sentido mais amplo, incluindoimagens e outras expresses lingsticas.

    Os textos que compem o corpus da anlise podem tanto terem sido produzidosespecialmente para a pesquisa, como podem ser documentos j existentes previamente. Noprimeiro grupo integram-se transcries de entrevistas, registros de observao, depoimen-tos produzidos por escrito, assim como anotaes e dirios diversos. O segundo grupopode ser constitudo de relatrios diversos, publicaes de variada natureza, tais como edi-

    toriais de jornais e revistas, resultados de avaliaes, atas de diversos tipos, alm de muitosoutros.Costuma-se denominar dados o corpus textual da anlise. Entretanto, assumindo

    que todo dado torna-se informao a partir de uma teoria, podemos afirmar que nada real-mente dado, mas tudo construdo. Os textos no carregam um significado a ser apenasidentificado; so significantes exigindo que o leitor ou pesquisador construa significados combase em suas teorias e pontos de vista. Isso exige que o pesquisador em seu trabalho se assu-ma como autor das interpretaes que constri dos textos que analisa. Naturalmente nesseexerccio hermenutico de interpretao preciso ter sempre em mente o outro plo, o autordo texto original.

    Como se define e delimita o corpus? Geralmente, uma pesquisa utilizando anli-se textual exige que se produza uma amostragem adequada de documentos a serem anali-sados. Quando os textos j existem previamente, seleciona-se uma amostra capaz de pro-duzir resultados vlidos e representativos em relao aos fenmenos investigados. Quandoos documentos so produzidos no prprio processo da pesquisa, a amostra pode ser sele-cionada de diversas formas, destacando-se a amostra intencional, com definio do tama-nho da amostra pelo critrio de saturao. Entende-se que a saturao atingida quando aintroduo de novas informaes nos produtos da anlise j no produz modificaes nosresultados anteriormente atingidos. Isso, naturalmente, implica um processo de coleta e de

    anlise paralelos.Desse modo, dentro do processo de pesquisa, o investigador precisa definir e deli-

    mitar seu corpus. A partir disso pode dar incio ao ciclo de anlise, cujo primeiro passo a des-construo dos textos.

    3Denominao retirada de Bardin, L., 1977.

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    Desconstruo e unitarizao

    Uma vez de posse do conjunto de textos a serem analisados, ou pelo menos umaparte dos mesmos, inicia-se o processo de anlise propriamente dito. O primeiro passo a des-construo dos textos e sua unitarizao.

    A desconstruo e unitarizao do corpus consiste num processo de desmontagemou desintegrao dos textos, destacando seus elementos constituintes. Implica colocar o foconos detalhes e nas partes componentes, um processo de diviso que toda anlise implica. Comessa fragmentao ou desconstruo dos textos, pretende-se conseguir perceber os sentidos dostextos em diferentes limites de seus pormenores, ainda que compreendendo que um limitefinal e absoluto nunca atingido. o prprio pesquisador que decide em que medida frag-mentar seus textos, podendo da resultar unidades de anlise de maior ou menor amplitude.

    Da desconstruo dos textos surgem as unidades de anlise, aqui tambm denomi-

    nadas unidades de significado ou de sentido. importante que o pesquisador proceda a suas an-lises de modo que saiba em cada momento quais as unidades de contexto, geralmente os docu-mentos, que deram origem a cada unidade de anlise. Para isso utilizam-se cdigos que indi-cam a origem de cada unidade. Uma das formas de codificao corresponde a atribuir inicial-mente um nmero ou letra a cada documento do corpus. Um segundo nmero ou letra podeento ser atribudo a cada uma das unidades de anlise construda a partir de cada texto.Assim, o texto 1 dar origem s unidades, 1.1, 1.2, etc. O documento 2 originar as unidades2.1, 2.2, etc., e assim por diante.

    As unidades de anlise so sempre definidas em funo de um sentido pertinente aos

    propsitos da pesquisa. Podem ser definidas em funo de critrios pragmticos ou semnti-cos. Num outro sentido, sua definio pode partir tanto de categorias definidas a priori, comode categorias emergentes. Quando se conhecem de antemo os grandes temas da anlise, ascategorias a priori, basta separar as unidades de acordo com esses temas ou categorias.Entretanto, uma pesquisa tambm pode pretender construir as categorias, a partir da anlise.Nesse caso as unidades de anlise so construdas com base nos conhecimentos tcitos do pes-quisador, sempre em consonncia com os objetivos da pesquisa.

    Em qualquer das formas, o processo de construo de unidades um movimentogradativo de explicitao e refinamento de unidades de base, em que essencial a capacidadede julgamento do pesquisador, sempre tendo em vista o projeto de pesquisa em que as anli-ses se inserem. Pode-se fazer uma primeira tentativa de unitarizao com parte do corpusape-nas. A partir disso decidem-se os critrios para a desconstruo dos textos. Feito isso se esten-de o processo a todo o corpus.

    A prtica de unitarizao tem demonstrado que esta pode ser concretizada em trsmomentos distintos (Moraes, 1999):

    1. fragmentao dos textos e codificao de cada unidade;2. reescrita de cada unidade de modo que assuma um significado o mais completopossvel em si mesma;3. atribuio de um nome ou ttulo para cada unidade assim produzida.

    A fragmentao dos textos concretizada por uma ou mais leituras, identificando-se e codificando-se cada fragmento destacado, resultando da as unidades de anlise. Cada uni-dade constitui um elemento de significado referente ao fenmeno que est sendo investigado.Entretanto, como na fragmentao sempre se tende a uma descontextualizao, importantereescrever as unidades de modo que expressem com clareza os sentidos construdos a partir docontexto de sua produo. Isso implica incluir alguns elementos de unidades anteriores ou

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    posteriores dentro da seqncia do texto original. Isso se faz necessrio, pois as unidades,quando levadas categorizao, estaro isoladas e importante que seu sentido seja o maisclaro possvel. Finalmente, para facilitar o passo seguinte da anlise, a categorizao, interes-

    sante atribuir a cada unidade de anlise, assim construda, um ttulo. Este deve apresentar aidia central da unidade.

    Assim acabamos de descrever o primeiro passo do ciclo de anlise textual qualitati-va. Constitui-se em um momento de intenso contato e impregnao com o material da an-lise, envolvimento que essencial para a emergncia de novas compreenses.

    Envolvimento e impregnao

    Uma anlise textual qualitativa, voltada produo de compreenses aprofundadase criativas, requer um envolvimento intenso com as informaes do corpus da anlise. Exige

    uma impregnao aprofundada com os elementos do processo analtico. Somente essa impreg-nao intensa possibilita uma leitura vlida e pertinente dos documentos analisados.A impregnao persistente nas informaes dos documentos do corpus da anlise

    passa por um processo de desorganizao e desconstruo, antes que se possam atingir novascompreenses. preciso desestabilizar a ordem estabelecida, desorganizando o conhecimentoexistente. Tendo como referncia as idias dos sistemas complexos, esse processo consiste emlevar o sistema semntico ao limite do caos. A unitarizao um processo que produz desor-dem a partir de um conjunto de textos ordenados. Torna catico o que era ordenado. Nesseespao uma nova ordem pode constituir-se s custas da desordem. O estabelecimento de novasrelaes entre os elementos unitrios de base possibilita a construo de uma nova ordem,representando uma nova compreenso em relao aos fenmenos investigados.

    Fazer uma anlise rigorosa , portanto, um exerccio de ir alm de uma leitura super-ficial, possibilitando uma construo de novas compreenses e teorias a partir de um conjun-to de informaes sobre determinados fenmenos.

    Exercitar uma leitura aprofundada explorar uma diversidade de significados quepodem ser construdos com base em um conjunto de significantes. ainda explorar significa-dos em diferentes perspectivas, valendo-se de diferentes focos de anlise. Essa diversidade desentidos que podem ser construdos a partir de um conjunto de textos est estreitamente liga-da s teorias que os leitores utilizam em suas interpretaes textuais. Por mais sentidos que se

    consiga mostrar, sempre haver mais sentidos. preciso salientar que este processo de anlise, iniciado com a unitarizao dos tex-

    tos, um processo exigente e trabalhoso. Somente se assim considerado, possibilita atingir origor e a qualidade que se esperam de uma anlise qualitativa.

    Desse modo, ao longo da discusso da desmontagem dos textos, proposta como pri-meira etapa do ciclo analtico, pretende-se demonstrar que a anlise textual se inicia com adesmontagem de documentos do corpus, procurando-se individualizar nesse processo unida-des de significado referentes ao fenmeno sob investigao.

    Uma anlise rigorosa implica sempre uma leitura cuidadosa, aprofundada e porme-

    norizada dos materiais do corpus, garantindo-se no mesmo movimento a separao e o isola-mento de cada frao significativa. Esse trabalho pode ser entendido como levar o sistema aolimite do caos. A partir disso criam-se as condies para a emergncia de interpretaes cria-tivas e originais, produzidas pela capacidade do pesquisador estabelecer e identificar relaesentre as partes e o todo, tendo como base uma intensa impregnao no material de anlise. Aluz de uma tempestade s possibilitada pela formao de um sistema conturbado de nuvensem permanente agitao e movimento. A desordem condio para a formao de novas

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    ordens. Novas compreenses dos fenmenos investigados so possibilitadas por uma desorga-nizao dos materiais de anlise, possibilitando ao mesmo tempo uma impregnao intensacom os fenmenos investigados.

    2. Estabelecimento de relaes: o processo de categorizaoPassamos agora a focalizar o segundo momento do ciclo de anlise. Consiste na cate-

    gorizao das unidades anteriormente construdas, aspecto central de uma anlise qualitativa.Discutiremos categorias, seus modos de produo, tipos e propriedades. A partir disso, pre-tendemos demonstrar como este processo se insere na construo de novas compreenses emrelao aos fenmenos investigados, processo esse essencialmente de auto-organizao. Ascategorias so parte da luz que emerge do processo analtico.

    Iniciamos focalizando alguns aspectos do processo de construo de categorias.

    Processo de categorizaoA categorizao um processo de comparao constante entre as unidades definidas

    no processo inicial da anlise, levando a agrupamentos de elementos semelhantes. Os conjun-tos de elementos de significao prximos constituem as categorias.

    A categorizao, alm de reunir elementos semelhantes, tambm implica nomear edefinir as categorias, cada vez com maior preciso, na medida em que vo sendo construdas.Essa explicitao das categorias se d por meio do retorno cclico aos mesmos elementos, nosentido da construo gradativa do significado de cada categoria. Nesse processo, as categoriasvo sendo aperfeioadas e delimitadas cada vez com maior rigor e preciso.

    No processo de categorizao, podem ser construdos diferentes nveis de categorias.Em alguns casos, as categorias assumem as denominaes de iniciais, intermedirias e finais,constituindo, cada um dos grupos, categorias mais abrangentes e em menor nmero.

    No seu conjunto, as categorias constituem os elementos de organizao do metatex-to que a anlise pretende escrever. a partir delas que se produziro as descries e interpreta-es que comporo o exerccio de expressar as novas compreenses possibilitadas pela anlise.

    Como o pesquisador pode chegar s categorias?As categorias na anlise textual podem ser produzidas por diferentes metodologias.

    Cada mtodo apresenta produtos que se caracterizam por diferentes propriedades. Por outro

    lado, cada mtodo tambm traz j implcitos os pressupostos que fundamentam a respectivaanlise.O mtodo dedutivo, um movimento do geral para o particular, implica construir

    categorias antes mesmo de examinar o corpus de textos. As categorias so deduzidas das teo-rias que servem de fundamento para a pesquisa. So caixas (Bardin, 1977), nas quais as uni-dades de anlise sero colocadas ou organizadas. Esses agrupamentos constituem as categoriasa priori.

    J o mtodo indutivo implica construir as categorias com base nas informaes con-tidas no corpus. Por um processo de comparao e contrastao constantes entre as unidadesde anlise, o pesquisador vai organizando conjuntos de elementos semelhantes, geralmentecom base em seu conhecimento tcito, conforme descrevem Lincoln e Guba (1985). Esse um processo essencialmente indutivo, de caminhar do particular ao geral, resultando no quese denomina as categorias emergentes.

    Os dois mtodos, dedutivo e indutivo, podem, tambm, serem combinados numprocesso de anlise misto em que, partindo de categorias definidas a priori com base em teo-rias escolhidas previamente, o pesquisador encaminha transformaes gradativas no conjunto

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    inicial de categorias, a partir do exame das informaes do corpus de anlise. Nesse processo,segundo Laville e Dionne (1999), a induo auxilia a aperfeioar um conjunto prvio de cate-gorias produzidas por deduo.

    Entendemos que se pode descrever ainda um terceiro mtodo de produo de cate-gorias. o mtodo intuitivo. Chegar a um conjunto de categorias por meio da intuio exigeintegrar-se num processo de auto-organizao em que, a partir de um conjunto complexo deelementos de partida, emerge uma nova ordem. O processo intuitivo pretende superar aracionalidade linear que est implcita tanto no mtodo dedutivo quanto no indutivo.Pretende que as categorias tenham sentido a partir do fenmeno focalizado como um todo.As categorias produzidas por intuio originam-se por meio de inspiraes repentinas,insights de luz que se apresentam ao pesquisador, por uma intensa impregnao nos dadosrelacionados aos fenmenos. Representam aprendizagens auto-organizadas que so possibili-

    tadas ao pesquisador a partir de seu envolvimento intenso com o fenmeno que investiga.Esse processo tem seus fundamentos na fenomenologia aproximando-se do que Restrepo(1998) denomina abduo.

    Entendemos que, de algum modo, tanto o mtodo dedutivo quanto o indutivo,requerem em algum grau a intuio e abduo. So elas que possibilitam as criaes mais ori-ginais, representando novas compreenses em relao aos fenmenos investigados. Entretanto,quando optando por enfatizar a deduo ou a induo, o pesquisador estabelece, de antemo,alguns limites para suas intuies.

    Ainda que esses fundamentos seguidamente fiquem implcitos, a escolha de mtodospara a categorizao sempre trar junto com ela um conjunto de pressupostos tericos e para-digmticos. Enquanto, por exemplo, a deduo implica, geralmente, procura de objetividade,verificabilidade e quantificao, a opo pela induo, intuio e abduo traz dentro de si asubjetividade, o foco na qualidade, a idia de construo, a abertura ao novo. A primeira oposeguidamente carrega pressupostos positivistas, enquanto a segunda pode ser relacionada ao queBoaventura Santos(1996) denomina o paradigma emergente. Certamente, no possvel fazeraqui uma classificao rgida em relao ao uso dos mtodos descritos, mas cabe um alerta paraque o pesquisador esteja atento ao que implicam as opes que faz em cada caso.

    A descrio anterior dos mtodos de categorizao mostra que a anlise textual qualita-tiva pode utilizar na construo de novas compreenses dois tipos de categorias: categorias a

    priori e categorias emergentes. As primeiras correspondem a construes que o pesquisador ela-bora antes de realizar a anlise propriamente dita dos dados. Provm das teorias em que funda-menta o trabalho e so obtidas por mtodos dedutivos. J as categorias emergentes so constru-es tericas que o pesquisador elabora a partir das informaes do corpus. Sua produo asso-ciada aos mtodos indutivos e intuitivos. Conforme j proposto anteriormente, uma terceira alter-nativa constitui um modelo misto de categorias. Nesse modelo o pesquisador parte de um con-

    junto de categorias definido a priori, complementando-as ou reorganizando-as a partir da anlise.Todos esses tipos de categorias podem ser vlidos. O essencial no processo no sua

    forma de produo, mas as possibilidades do conjunto de categorias construdo de represen-

    tar as informaes do corpus, ou seja, de possibilitar uma compreenso aprofundada dos tex-tos-base da anlise e, em conseqncia, dos fenmenos investigados. Isso, pelo menos emparte, funo das propriedades das categorias construdas como parte da anlise.

    Propriedades das categorias

    A caracterizao da anlise textual pode ser feita a partir das propriedades que se exi-gem para as categorias. Ao examinarem a questo das propriedades das categorias, no h

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    necessariamente uma uniformidade entre diferentes autores. Especialmente, em alguns aspec-tos o encaminhamento das anlises pode levar a produtos bem diversificados. Nem todas asformas de conduzir as anlises so idnticas em seus pressupostos.

    Uma das propriedades em relao qual certamente no h maiores divergncias a questo da validade ou pertinncia das categorias. Categorias de anlise necessitam ser vli-das ou pertinentes em relao aos objetivos e ao objeto da anlise. Um conjunto de categorias vlido quando capaz de representar adequadamente as informaes categorizadas, atenden-do dessa forma aos objetivos da anlise, que de melhorar a compreenso dos fenmenosinvestigados. Quando um conjunto de categorias vlido, os sujeitos autores dos textos ana-lisados precisam se ver representados nas descries e interpretaes feitas.

    Outra propriedade que tem sido apontada como desejvel em conjuntos de catego-rias, independente do mtodo de sua produo, a homogeneidade. As categorias de um

    mesmo conjunto necessitam serem homogneas, ou seja, precisam ser construdas a partir deum mesmo princpio, de um mesmo contnuo conceitual. No se podem misturar plantas eanimais quando categorizando plantas. No se pode misturar fsica com qumica, quando ascategorias so construdas em torno da fsica. claro que possvel construir dois conjuntosde categorias complementares em que cada um deles tem um princpio classificatrio diferen-te. Pode haver um conjunto de categorias de plantas e outro de animais, se for o caso.Evidentemente, a complexidade das categorias e subcategorias ser funo dos prprios mate-riais analisados, assim como das capacidades do pesquisador em perceber e construir diferen-tes estruturas de classificao. Entretanto, cada conjunto de categorias, sejam gerais e amplas,sejam subcategorias mais especficas, necessita ser homogneo.

    No obstante, quando se trata da propriedade de excluso mtua, uma outra pro-priedade de um conjunto de categorias, j no h a mesma concordncia. Mesmo que nas for-mas mais tradicionais de anlise de contedo se exija que um mesmo dado seja categorizadoem uma nica categoria, o critrio da excluso mtua, entendemos que esse critrio j no sesustenta frente s mltiplas leituras de um texto. Uma mesma unidade pode ser lida de dife-rentes perspectivas, resultando em mltiplos sentidos, dependendo do foco ou da perspectivaem que seja examinada. Por essa razo, aceitamos que uma mesma unidade possa ser classifi-cada em mais de uma categoria, ainda que com sentidos diferentes. Isso representa um movi-mento positivo no sentido da superao da fragmentao, em direo a descries e compreen-

    ses mais holsticas e globalizadas.Cabe, no entanto, um alerta em relao necessidade do pesquisador explicitar seuspressupostos de anlise, a fim de que os leitores no sejam confundidos. Uma das questes queo pesquisador precisa ter presente na conduo de suas anlises o modo como lida com afragmentao, uma limitao necessariamente presente em algum grau em qualquer anlise, jque analisar sempre dividir.

    A proposta de analisar textos por meio da categorizao dos sentidos, superandoa regra da excluso mtua, constitui um esforo no sentido da fuga da fragmentao e doreducionismo marcantes em formas histricas da anlise de contedo. O que se prope em

    novas formas de anlise textual utilizar as categorias como modos de focalizar o todo pormeio das partes. Cada categoria constitui uma perspectiva diferente de exame de um fen-meno, ainda que se possa examin-lo de uma forma essencialmente holstica. Isso constituium exerccio de superao do reducionismo que o exame das partes sem referncia perma-nente ao todo representa. O desafio exercitar uma dialtica entre o todo e a parte, aindaque dentro dos limites impostos pela linguagem, especialmente na sua formalizao em pro-dues escritas.

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    Categorizao e teorias

    Vamos agora retomar uma questo essencial na conduo de um processo de anli-

    se textual, j abordado anteriormente para o momento da unitarizao. o papel da teoria noprocesso da categorizao.Toda categorizao implica uma teoria. O conjunto de categorias construdo a

    partir desse referencial de abstrao que o suporta. Esse olhar terico pode estar explcito ouno, ainda que seja desejvel sua explicitao. O modo de conceber as teorias em relao pes-quisa e categorizao das informaes origina diferentes tipos de categorias.

    Conforme j discutido, quando as teorias so definidas e assumidas antes da anli-se propriamente dita dos dados, examinando-os com base em teorias escolhidas com antece-dncia, as categorias construdas so denominadas a priori. So caixas em que os dados seroclassificados.

    Quando o pesquisador examina os dados de seu corpus com base em seus conheci-mentos tcitos ou teorias implcitas, no assumindo conscientemente nenhuma teoria espe-cfica a priori, as categorias resultantes de sua anlise so denominadas emergentes.Entendemos que, nesse caso, no que no existam teorias, mas que estas no so conheci-das pelo pesquisador de forma consciente. Esto de algum modo implicadas nas informaesanalisadas e no prprio conhecimento do pesquisador, e o papel do pesquisador explicit-las. Entretanto, no devem ser entendidas como estando prontas nos dados, o que seria umretorno ao empirismo. Requerem um esforo construtivo do pesquisador e desse processopodem resultar diversas estruturas tericas, dependendo especialmente dos conhecimentos

    tcitos do pesquisador.Assim como na identificao das unidades de anlise os sentidos e significados noso dados a serem extrados dos textos, tambm as categorias no podem ser procuradas pron-tas nos textos analisados. Categorias constituem conceitos abrangentes que possibilitam com-preender os fenmenos que precisam ser construdos pelo pesquisador. Da mesma formacomo h muitos sentidos em um texto, sempre possvel construir vrios conjuntos de cate-gorias de uma mesma amostra de informaes. Cada conjunto de categorias ter possibilida-de de mostrar alguns dos sentidos que o corpus textual permite construir. No so dadas, masrequerem um esforo construtivo intenso e rigoroso de parte do pesquisador at sua explicita-o clara e convincente. Esse esforo no envolve apenas caracterizar as categorias, mas tam-bm estabelecer relaes entre os elementos que as compem, talvez subcategorias, assimcomo construir relaes entre as vrias categorias emergentes da anlise. Esse um momentoem que o pesquisador necessita assumir mais decididamente sua funo de autor de seus pr-prios argumentos.

    Produo de argumentos em torno das categorias

    O processo de categorizao pode tanto ir de um conjunto de categorias gerais paraconjuntos de subcategorias mais especficos, quanto no sentido inverso. O primeiro movimen-to est mais diretamente associado s categorias a priori. O segundo, s categorias emergentes.

    Entretanto, independente do processo assumido, o pesquisador tambm deve desafiar-se, namedida em que avana na explicitao de seu sistema de categorias, a expressar em forma deargumentos seus principais insightsem relao s categorias que vai construindo. Especialmenteem relao s grandes categorias, importante que consiga expressar um argumento que aglu-tine e sintetize as subcategorias que as formam e, assim, as unidades de anlise que as consti-tuem. Esse processo de produo de argumentos aglutinadores pode tambm ser aplicado aosnveis menores de classificao, at o nvel que o pesquisador entenda adequado.

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    Na medida em que as categorias esto definidas e expressas descritivamente a partirdos elementos que as constituem, inicia-se um processo de explicitao de relaes entre elasno sentido da construo da estrutura de um metatexto. Nesse movimento, o analista, a par-

    tir dos argumentos parciais de cada categoria, exercita a explicitao de um argumento aglu-tinador do todo. Esse ento utilizado para costurar as diferentes categorias entre si, na expres-so da compreenso do todo. Esse processo essencialmente inacabado, exigindo uma crticapermanente dos produtos parciais, no sentido de uma explicitao cada vez mais completa erigorosa de significados construdos e da compreenso atingida.

    A produo de hipteses de trabalho e de argumentos para defend-las constitui umdos elementos essenciais de uma anlise textual qualitativa. Em vez de nmeros, caractersticade abordagens quantitativas, preciso faz-lo com argumentos. Entretanto, assumir uma pers-pectiva qualitativa implica mais do que substituir nmeros por argumentos lingsticos.

    Ao longo do presente texto no escondemos nosso vis por uma abordagem quali-tativa. Entendemos que o deslocamento proposto de uma abordagem de anlise objetiva equantitativa para uma perspectiva subjetiva e qualitativa implica assumir um olhar fenomeno-lgico em relao aos objetos investigados. Implica assumir uma atitude de deixar que os fen-menos se manifestem, sem impor-lhes direcionamentos. ficar atento s perspectivas dos par-ticipantes, exercitando uma atitude fenomenolgica. Essa abordagem implica valorizar argu-mentos qualitativos, movendo-se do verdadeiro para o verossmil, daquilo que provado porargumentos fundamentados na lgica formal para o que fundamentado por meio de umaargumentao dialtica rigorosa.

    Na medida em que se concretiza esse deslocamento, o pesquisador move-se da quan-

    tidade para a qualidade, da explicao causal para a compreenso globalizada, da causalidadelinear para uma multicausalidade e causalidade recproca. Pesquisar e teorizar passa a signifi-car construir compreenso, compreender esse nunca completo, mas atingido por meio de umprocesso recursivo de explicitao de inter-relaes recprocas entre categorias, superando-se acausalidade linear e possibilitando uma aproximao da complexidade. Esse novo olhar impli-ca valorizar a desordem e o caos como um momento necessrio e importante para atingir com-preenses aprofundadas dos fenmenos. Isso s pode ser atingido por meio de movimentoshermenuticos em espiral, em que a cada nova retomada do fenmeno possibilitada umacompreenso mais radical e aprofundada. Na tempestade sempre h muita luz.

    Na perspectiva assumida na presente discusso, por trs da construo de novascompreenses de um conjunto de textos, est um processo de intuio e auto-organizao.Esse processo implica num novo tipo de racionalidade, no podendo prever-se de antemoseus produtos. Pode-se, entretanto, ajudar ou facilitar a emergncia das intuies por meio doestabelecimento de relaes e pontes entre as unidades de base. Na anlise textual qualitativaisso feito por meio de categorizao. Numa aproximao com as teorias deKaufmann(1995), uma vez atingido um determinado nmero de pontes, o sistema auto-orga-niza-se espontaneamente. So os insights que emergem ao longo do processo.

    Se no primeiro momento da anlise textual qualitativa se processa uma separao,

    isolamento e fragmentao de unidades de significado, na categorizao, o segundo momen-to da anlise, o trabalho d-se no sentido inverso: estabelecer relaes, reunir semelhantes,construir categorias. O primeiro um movimento de desorganizao e desconstruo, umaanlise propriamente dita; j o segundo de produo de uma nova ordem, uma nova com-preenso, uma nova sntese. A pretenso no o retorno aos textos originais, mas a constru-o de um novo texto, um metatexto que tem sua origem nos textos originais, expressando umolhar do pesquisador sobre os significados e sentidos percebidos nesses textos. Esse metatexto

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    constitui um conjunto de argumentos descritivo-interpretativos capaz de expressar a com-preenso atingida pelo pesquisador em relao ao fenmeno pesquisado, sempre a partir docorpus de anlise.

    A partir das gotculas de gua e de suas cargas eltricas formando o mundo desor-denado e catico das nuvens de uma tempestade, podem emergir os raios de luz a iluminartodo o cenrio. Assim tambm, a partir da desorganizao dos textos submetidos anlise,podem emergir novas vises de combinao dos elementos de base, constituindo as categoriase suas diversificadas formas de combinao. No seu conjunto possibilitam novas compreen-ses dos fenmenos investigados.

    3. Captando o novo emergente: expressando as compreenses atingidas

    A anlise textual qualitativa, segundo idia original de Navarro e Diaz (1994), pre-

    tende a construo de metatextos analticos que expressem os sentidos lidos de um conjuntode textos. A estrutura textual construda por meio das categorias e subcategorias resultantesda anlise. Os metatextos so constitudos de descrio e interpretao, representando o con-

    junto um modo de compreenso e teorizao dos fenmenos investigados. A qualidade dostextos resultantes das anlises no depende apenas de sua validade e confiabilidade, mas ,tambm, conseqncia de o pesquisador assumir-se como autor de seus argumentos. So estasas questes que abordaremos no presente item.

    Construo de um metatexto e sua estrutura textual

    Segundo j expresso, a anlise textual qualitativa pode ser caracterizada como uma

    metodologia na qual, a partir de um conjunto de textos ou documentos, produz-se um meta-texto, descrevendo e interpretando sentidos e significados que o analista constri ou elabora apartir do referido corpus.

    Diferentes tipos de textos podem ser produzidos por meio dessa metodologia, comnfases diversificadas em descrio e interpretao e tendo como ponto de partida diversifica-dos objetivos de anlise. Alguns textos sero mais descritivos, mantendo-se mais prximos docorpus original. J outros sero mais interpretativos, pretendendo um afastamento maior domaterial original num sentido de abstrao e teorizao mais aprofundado.

    Em qualquer de suas formas, a produo textual que esta anlise prope caracteri-

    za-se por sua permanente incompletude e necessidade de crtica constante no sentido de suaqualificao. parte de um conjunto de ciclos de pesquisa em que, por meio de um processorecursivo de explicitao de significados, pretende-se atingir uma compreenso cada vez maisprofunda e comunicada com maior rigor e clareza. Desse modo, toda anlise textual qualita-tiva corresponde a um processo reiterativo de escrita em que, gradativamente, atingem-se pro-dues mais qualificadas.

    Todo o processo de anlise proposto volta-se produo do referido metatexto. Apartir da unitarizao e categorizao do corpus, constri-se a estrutura bsica do metatexto,objeto da anlise. Uma vez construdas as categorias, estabelecem-se pontes entre elas, investi-gam-se possveis seqncias em que poderiam ser organizadas, sempre no sentido de expressarcom maior clareza as novas intuies e compreenses atingidas. Simultaneamente, o pesqui-sador pode ir produzindo textos parciais para as diferentes categorias que, gradativamentepodero ser integrados na estruturao do texto como um todo. Diversas tentativas indicaroo melhor encaminhamento.

    Ao mesmo tempo em que se envolve na explicitao de suas compreenses e cons-trues iniciais e parciais em relao a cada uma das categorias de anlise, o pesquisador pode

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    desafiar-se a conseguir construir argumentos centralizadores ou teses parciais para cadauma das categorias, ao mesmo tempo em que exercita a elaborao de um argumento cen-tral ou tese para sua anlise como um todo. As teses parciais devem constituir argumentos

    capazes de construir a validao e defesa da tese principal. Entendemos que construir essesargumentos aglutinadores no representa apenas uma das contribuies mais significativas eoriginais do pesquisador, como tambm criar as condies para a estruturao de um textocoerente e consistente. A tese geral servir de elemento estruturador e organizador de todos oselementos componentes do texto, permitindo no apenas fugir da excessiva fragmentao, mastambm possibilitando ao pesquisador assumir-se efetivamente autor de seu texto.

    Para a elaborao dessas teses ou argumentos, seja para o metatexto como umtodo, seja para cada uma das categorias ou partes do texto, o pesquisador precisa, de algummodo, afastar-se dos materiais que analisa e dos produtos parciais j atingidos, procurando

    examinar o fenmeno a partir de um olhar abrangente, afastado dos textos analisados. Nessemesmo movimento, pode exercitar o esforo de sintetizar as compreenses atingidas por meiode argumentos aglutinadores, a tese geral do texto e as teses secundrias referentes a cadauma de suas partes. Chegar a esses argumentos novos e originais no apenas um exerccio desntese. Constitui-se muito mais em momento de inspirao e intuio resultante da impreg-nao intensa no fenmeno investigado.

    O que acabamos de descrever constitui de alguma forma o corpo principal de ummetatexto. A ele necessitam reunir-se uma introduo e um fechamento de qualidade. A intro-duo vista como dizer o que vem depois e o fechamento, entendido como dizer o que veioantes so elementos essenciais para a construo de textos claros e de fcil leitura. O autor

    precisa preocupar-se em ajudar ao leitor na compreenso de seu texto. Boas introdues efechamentos, sejam no texto como um todo, sejam em cada uma de suas partes, so essenciaisnesse sentido. Neles, um dos elementos principais podem ser as teses ou argumentos centrali-zadores. Evidentemente, em cada caso, esses elementos sero apresentados variando suas for-mas de exposio, de modo que a prpria repetio se constitua em possibilidade de uma com-preenso melhor para os leitores.

    Certamente, o prprio leitor estar percebendo que esse processo no pode se darde uma vez por todas. Requer um exerccio e um esforo de retomada peridica das produ-es, seja em seu todo, seja em cada uma de suas partes, submetendo-as a crticas e reformu-

    laes. S assim se conseguir atingir produes com qualidade cada vez mais aprimorada. Aproduo textual, mais do que simplesmente um exerccio de expor algo j perfeitamentedominado e compreendido, uma oportunidade de aprender. um processo vivo, um movi-mento de aprendizagem aprofundada sobre os fenmenos investigados.

    Descrio e interpretao

    Nossos exerccios de comunicao carregam junto nossas teorias e nossas vises demundo. Ns nos constitumos na linguagem e no temos como sair dela para observar umfenmeno de modo neutro. Enxergamos as coisas, percebemos os fenmenos, lemos textos,sempre a partir de referenciais tericos que constituem nossos domnios lingsticos, nossosdiscursos. Por isso sempre estamos interpretando. No temos como sair da priso da lingua-gem e do discurso a partir dos quais falamos. Necessitamos manifestar-nos de dentro deles.

    Seria, ento, possvel falar em descrio? Mesmo conscientes das dificuldades queisso representa, pretendemos dar aqui ao termo uma conotao especfica, de acordo com aperspectiva anteriormente exposta. Entendemos, assim, a descrio como um esforo de expo-sio de sentidos e significados em sua aproximao mais direta com os textos analisados.

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    Descrever nesse sentido constitui-se num movimento de produo textual mais prximo doemprico, sem envolver um exerccio de afastamento interpretativo mais aprofundado. Dessemodo, a descrio se constitui em exposio de idias de uma perspectiva prxima de uma lei-

    tura imediata, mesmo que aprofundada. Entretanto, na medida em que nos afastamos dessarealidade mais imediata do texto, estamos nos envolvendo gradativamente mais num exerc-cio aqui denominado interpretativo.

    A descrio na anlise textual qualitativa concretiza-se a partir das categorias cons-trudas ao longo da anlise. Descrever apresentar as categorias e subcategorias, fundamen-tando e validando essas descries a partir de interlocues empricas ou ancoragem dos argu-mentos em informaes retiradas dos textos. Uma descrio densa, recheada de citaes dostextos analisados, sempre selecionadas com critrio e perspiccia, capaz de dar aos leitoresuma imagem mais fiel dos fenmenos que descreve. Essa uma das formas de sua validao.

    O que seria ento interpretao na anlise textual qualitativa?Coerentes com nossos posicionamentos anteriores, afirmamos que toda leitura etoda anlise textual j uma interpretao. Entretanto, pretendemos agora ampliar um poucomais a discusso sobre interpretao. No contexto da anlise textual, da forma como a com-preendemos, interpretar construir novos sentidos e compreenses afastando-se do imediatoe exercitando uma abstrao em relao s formas mais imediatas de leitura de significados deum conjunto de textos. Interpretar um exerccio de construir e de expressar uma compreen-so mais aprofundada, indo alm da expresso de construes obtidas dos textos e de um exer-ccio meramente descritivo. nossa convico de que uma pesquisa de qualidade necessitaatingir essa profundidade maior de interpretao, no ficando numa descrio excessivamen-te superficial dos resultados da anlise.

    Essa interpretao nada mais que um exerccio de teorizao e pode dar-se dediferentes formas. Um dos modos a contrastao com teorias j existentes. O pesquisador,quando interpretando os sentidos de um texto com base em um fundamento terico escolhi-do a priori, ou mesmo selecionado das anlises, exercita um conjunto de interlocues teri-cas com os autores mais representativos de seu referencial. Procura com isso melhorar a com-preenso dos fenmenos que investiga, estabelecendo pontes entre os dados empricos comque trabalha e suas teorias de base. Nesse movimento est tambm ampliando o campo te-rico com que trabalha.

    Outro modo de interpretao aquele em que, no tendo o pesquisador optado porum referencial terico explcito de antemo, exercita uma abstrao e teorizao em relaoaos fenmenos que estuda, a partir do conjunto de categorias que construiu em sua anlise edas relaes entre elas. Segundo Martnez (1994), a prpria estrutura de categorias e subcate-gorias constitui-se no arcabouo terico emergente a partir do qual o pesquisador pode exer-citar reflexes e interpretaes cada vez mais afastadas do referencial emprico. o que deno-minamos de construo de teorias emergentes.

    Ainda que a segunda perspectiva de interpretao seja mais desafiadora e insegura,ambas as formas so vlidas como modos de construo de novas compreenses e de expres-

    so de novos sentidos intudos nos fenmenos investigados. Tambm ambas carregam possi-bilidades de o investigador construir seus prprios argumentos, suas prprias teses. Isso sersua contribuio terica dentro da pesquisa, contribuio sem a qual nenhuma pesquisa temsentido. Por isso, especialmente no momento interpretativo, importante que o pesquisadorse assuma como autor de seus argumentos.

    Juntamente com a interpretao, na anlise textual, no seu exerccio de construode sentidos, o pesquisador tambm pode lidar com a inferncia. Se o interpretar se constitui

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    em um movimento de construo de sentidos e significados a partir de um conjunto de tex-tos, o inferir constitui-se num esforo do pesquisador em ir alm do dito e do percebido.Entretanto, os dois termos carregam de alguma forma pressupostos paradigmticos diversifi-

    cados. Enquanto a interpretao se associa especialmente com o compreender, a inferncia serelaciona de modo mais particular com o explicar. A primeira tem tendncia qualitativa, asegunda, quantitativa, como bem evidencia o teste inferencial de hipteses. De qualquermodo, num sentido mais amplo, o inferir pode ser compreendido como um movimento dostextos ou referenciais empricos para o contexto que os produziu.

    Ainda que as anlises do tipo proposto possam lidar com essas duas perspectivas, tra-tamos, neste texto, de modo especial, o foco qualitativo. Por isso o inferir, especialmente ainferncia estatstica, remetendo generalizao com base em testes de hipteses, no seraprofundada aqui. Esse tipo de operao associa-se de modo particular aos esforos explicati-

    vos, fundamentados em relaes de causalidade linear que o paradigma qualitativo emergen-te pretende superar.

    Produo textual, compreenso e teorizao

    A produo de um metatexto descritivo-interpretativo, uma das formas de caracte-rizar a anlise textual qualitativa, constitui-se num esforo em expressar intuies e novosentendimentos atingidos a partir da impregnao intensa com o corpus da anlise. , portan-to, um esforo construtivo no sentido de ampliar a compreenso dos fenmenos investigados. um movimento sempre inacabado de procura de mais sentidos, de aprofundamento grada-tivo da compreenso dos fenmenos. A construo dessa compreenso um processo reitera-

    tivo em que, num movimento espiralado, retomam-se periodicamente os entendimentos jatingidos, sempre na perspectiva de procura de mais sentidos. O questionamento e a crticaesto sempre presentes e impulsionam o processo, possibilitando reconstruir argumentos jformulados, submetendo-os novamente crtica e reconstruo. A validao das compreen-ses atingidas d-se por interlocues tericas e empricas, representando uma estreita relaoentre teoria e prtica. Nisso tambm pe-se em movimento a teorizao do pesquisador.

    Tanto o interpretar como o inferir, mas especialmente o primeiro, constituem-se emformas de teorizao. Nesse movimento cclico hermenutico de procura de mais sentidos,tanto a teoria auxilia no exerccio da interpretao, como tambm a interpretao possibilita

    a construo de novas teorias. Vamos agora focalizar de modo mais direto o ltimo aspecto.Conforme j salientamos anteriormente, a teorizao implica um movimento deafastamento do material emprico, um exerccio de abstrao em que se procura expressarnovas compreenses que a anlise possibilitou. A impregnao nos dados possibilita insightscriativos que, uma vez explicitados com clareza, constituem novas teorias sobre os fenmenosinvestigados.

    O modo de teorizao mais tipicamente qualitativo aquele que se prope a cons-truir novas teorias a partir do exame do material do corpus. Teorias so construdas a partir daanlise. O primeiro movimento de teorizao nessa perspectiva a construo de uma estrutu-ra de categorias expressando os principais elementos constituintes dos fenmenos estudados esuas relaes. Nisso tambm se incluem os argumentos aglutinadores que o pesquisador produzna construo de seu texto. Num certo sentido, as teorias vo emergindo da anlise do conjun-to de textos, ainda que essa emergncia necessite ser compreendida como um exerccio cons-trutivo gradativo e no como a descoberta de algo que j se encontra constitudo no corpus.

    O segundo modo de teorizao, no to tpico da abordagem qualitativa, mas noausente nela, a ampliao de teorias j existentes. Geralmente est associado ao tipo de

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    anlise que utiliza categorias a priori, ou seja, derivadas de alguma teoria. Teorizar nessaperspectiva tornar mais complexas as categorias existentes e suas relaes, significandonesse sentido uma ampliao e uma complementao de teorias j existentes.

    Ambas as formas de teorizao so vlidas, ainda que em nosso entendimento oexerccio de construo terica a partir do conjunto de textos seja mais desafiador. Exige,entretanto, capacidade de conviver com o inacabado, com a insegurana de ter de construira nova perspectiva compreensiva ao mesmo tempo em que se constri o caminho para atin-gi-la. Mas essa parece ser uma alternativa cada vez mais necessria em nosso mundo ps-moderno.

    Teorizar um movimento produtivo do pesquisador. Como se manifesta sua auto-ria no processo?

    Ao longo de toda a discusso anterior, enfatizamos que os metatextos no devem ser

    entendidos como modo de expressar algo j existente nos textos, mas como construes dopesquisador com intenso envolvimento deste. As descries, as interpretaes e as teorizaes,expressas como resultados da anlise, no se encontram nos textos para serem descobertas, masso resultado de um esforo de construo intenso e rigoroso do pesquisador. Assumindo essaperspectiva, o pesquisador no pode deixar de assumir-se autor de seus textos.

    Ainda que os metatextos produzidos necessitem serem submetidos a grupos deinterlocutores para sua crtica e validao, eles expressam as compreenses e intuies do pes-quisador e devem ser assumidos como tais.

    Construo de validade

    Os produtos de uma anlise textual necessitam serem vlidos e confiveis. Se sub-metidos a crticas dos autores dos textos originais do corpus, esses autores necessitam sentirem-se contemplados no metatexto.

    A validade e confiabilidade dos resultados de uma anlise so construdas ao longodo processo. O rigor com que cada etapa da anlise conduzida uma garantia delas. Assim,uma unitarizao e uma categorizao rigorosas encaminham para metatextos vlidos e repre-sentativos dos fenmenos investigados.

    Entretanto, a validade tambm pode ser construda a partir da ancoragem dos argu-mentos na realidade emprica, o que conseguido por meio do uso de citaes de elemen-

    tos extrados dos textos do corpus. A insero crtica de excertos bem selecionados dos textosoriginais constitui uma forma de validao dos resultados das anlises.A validade de um metatexto tambm se funda na construo de uma qualidade for-

    mal num sentido mais amplo. O esforo em realizar anlises cada vez mais significativas soli-cita que o pesquisador procure superar uma descrio esttica, para conseguir captar a realida-de em movimento. O desafio ir de uma fotografia para um filme com seu movimento din-mico, mesmo que este tambm se constitua em uma seqncia de tomadas estticas. Isso, evi-dentemente, tem relao com a forma como o pesquisador concebe a prpria realidade.Estamos aqui nos posicionando em relao aceitao de uma realidade entendida como dia-

    ltica, em permanente movimento de superao. Captar essa dinmica da realidade conse-guir compreender e descrever o movimento contraditrio da realidade, em que novas tesesemergem continuamente a partir do questionamento e superao de antigas teorias.

    Captar esse movimento e express-lo um permanente desafio. Diferentes modosde consegui-lo podem ser arquitetados, alguns mais prximos a uma fotografia, outros maisprximos a uma dinmica de um filme. Os objetivos do pesquisador em seu estudo que indi-caro o equilbrio a ser atingido.

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    O objetivo da anlise textual qualitativa a produo de metatextos a partir dos tex-tos do corpus. Esses textos, descritivos e interpretativos, mesmo sendo organizados a partir dasunidades de significado e das categorias, no se constituem em simples montagens. Resultam

    em seu todo a partir de processos intuitivos e auto-organizados. A compreenso emerge, talcomo em sistemas complexos, constituindo-se em muito mais do que uma soma de catego-rias. Dentro dessa perspectiva, um metatexto, mais do que apresentar as categorias constru-das na anlise, deve constituir-se a partir de algo importante que o pesquisador tem a dizersobre o fenmeno que investigou, um argumento aglutinador ou tese que foi construdo a par-tir da impregnao com o fenmeno e que representa o elemento central da criao do pes-quisador. Todo texto necessita ter algo importante a dizer e defender e deveria express-lo como mximo de clareza e rigor.

    4. Auto-organizao: um processo de aprendizagem viva

    Uma anlise qualitativa de textos, culminando numa produo de metatextos, podeser descrita como um processo emergente de compreenso, que se inicia com um movimentode desconstruo, em que os textos do corpusso fragmentados e desorganizados, seguindo-seum processo intuitivo auto-organizado de reconstruo, com emergncia de novas compreen-ses que, ento, necessitam ser comunicadas e validadas cada vez com maior clareza em formade produes escritas. Esse conjunto de movimentos constitui um exerccio de aprender quese utiliza da desordem e do caos, para possibilitar a emergncia de formas novas e criativas deentender os fenmenos investigados.

    O processo descrito pode ser entendido como um ciclo, representado na fig.1:

    Fig. 1: Ciclo da anlise textual qualitativa

    A desconstruo: o movimento para o caos

    O primeiro movimento do ciclo de anlise proposto consiste numa desconstruode um conjunto de textos, as informaes de pesquisa submetidas anlise. Essa desconstru-o consiste na fragmentao das informaes, desestruturando sua ordem, produzindo umconjunto desordenado e catico de elementos unitrios. Corresponde a mover o sistema parao limite do caos, espao de criao original e de auto-organizao. Podemos entender essemovimento como um esforo de operao em nvel inconsciente, preparando as condiespara a intuio e a emergncia de novas compreenses. Conforme coloca Demo (2000, p. 77),com base em Norretranders, percepo e seleo subliminar so o segredo por trs da cons-cincia. E acrescenta: o pensamento inconsciente. Esse conjunto de operaes tambm

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    pode ser entendido como um exerccio de impregnao intensa com o fenmeno investigado,envolvimento consciente e inconsciente, impregnao necessria para a emergncia das novascompreenses pretendidas.

    Esse movimento para o caos tambm pode ser interpretado como desfazer amarrasanteriormente estabelecidas entre conceitos e categorias referentes aos fenmenos estudados. desestruturar idias j existentes, jogando o material para o inconsciente. Nisso estariaimplcita a crena de que, por esse processo, criam-se as condies para a emergncia de novasrelaes entre os elementos unitrios dos fenmenos investigados, assim como entre outroselementos pertinentes do inconsciente.

    A emergncia do novo

    Enquanto o primeiro estgio do ciclo de anlise proposto racionalizado, exigindo um

    investimento e esforo consciente de desconstruo textual, o segundo movimento no pode serorganizado dessa forma. O movimento da desordem em direo a uma nova ordem, a emergn-cia do novo a partir do caos, um processo auto-organizado e intuitivo. No pode ser previsto,ainda que possamos contribuir para desencade-lo. De algum modo pode ser entendido comoum conjunto de operaes inconscientes que resultam num insightrepentino e globalizado. Um

    flash compreensivo emerge repentinamente. Possivelmente muitas intuies diferentes se for-mam, uma avalanche de novas estruturas (Kaufmann, 1995), muitos raios de luz na tempesta-de. Algumas so percebidas ou captadas pelo pesquisador. A maioria se perde. preciso estaratento para captar o novo emergente e registrar as impresses que carrega. Tal como um sonho,essas inspiraes criativas tendem a serem esquecidas, se no registradas imediatamente.

    Os insights descritos focalizam o fenmeno de forma global e holstica. Entretanto,ao mesmo tempo em que constituem uma viso completa, apresentam-se cheios de lacunas eelementos implcitos. Os relmpagos apenas do uma viso rpida da paisagem. Requer-seinvestimento intenso para a explicitao e expresso dos fenmenos que iluminam em formade uma produo escrita. Esse, entretanto, j constitui novamente um esforo consciente eracionalizado. Parte desse trabalho, talvez, j tenha sido concretizado antes da inspirao cria-tiva; parte se realizar depois. Entre essas operaes esto a explicitao das categorias e dasrelaes entre elas. Tambm nisso se incluem a construo de argumentos aglutinadores decada categoria, assim como do fenmeno como um todo. Isso, entretanto, j nos leva ao ter-

    ceiro estgio do ciclo da anlise, a comunicao das novas compreenses.Comunicando as compreenses emergentes

    O terceiro estgio do ciclo de anlise a comunicao das novas compreenses atin-gidas ao longo dos dois estgios anteriores. um exerccio de explicitao das novas estrutu-ras emergentes da anlise. Concretiza-se em forma de metatextos em que os novos insightsatingidos so expressos em forma de linguagem e em profundidade e detalhes. Muitos dosmateriais iniciais so descartados, sempre na procura de um texto com clareza e rigor. pre-ciso conseguir levar a nova compreenso dos fenmenos investigados para os interessados,mesmo que no tenham participado do processo de construo dela. O desafio tornar com-preensvel o que antes no o era, e isso precisa ser feito com um texto de qualidade e sabor.Nisso pode desempenhar um papel importante o uso de metforas. Eventualmente a prpriacompreenso j emerge em forma de metfora. Tambm podero ser teis esquemas e figuras,mas entendemos que essencial a construo de um texto em que cada uma de suas catego-rias ou partes sejam perfeitamente integradas num todo. Para isso importante que haja umatese ou argumento central, capaz de possibilitar o encadeamento das partes no todo.

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    Tambm importante compreender que a construo desse metatexto um proces-so reiterativo de reconstruo. Vrias verses podero ser produzidas, sendo cada uma delassubmetida a leitores crticos para seu aperfeioamento.

    Da ordem ao caos, e da nova ordem: um processo de aprendizagemPor meio do ciclo de anlise, pretendemos mostrar que a construo de uma nova

    compreenso de um fenmeno dentro da pesquisa qualitativa pode ser descrita como ummovimento em um ciclo, que se inicia com uma desorganizao dos materiais de anlise. Issose d por meio da unitarizao do corpus. Constitui um exerccio de desconstruo de mate-riais textuais reunidos como informaes pertinentes de uma pesquisa em andamento. Dessadesconstruo podem participar tanto elementos tericos como empricos. Esse primeiromomento analtico constitui um esforo de impregnao intensa nos fenmenos sob investi-gao.

    A partir disso criam-se as condies para a emergncia de novos entendimentos. o segundo momento do ciclo. Enquanto o primeiro um exerccio racionalizado defragmentao e isolamento de elementos de base do fenmeno investigado, o segundo um movimento intuitivo de reconstruo. Portanto, no est sob controle do pesquisador.Ele precisa estar atento para a emergncia do novo, geralmente surpreendente e inespera-do. importante captar alguns dos insights auto-organizados e investir neles no sentidode explorar seu significado da forma mais completa possvel. preciso estar alerta para oraio no meio da tempestade e captar os elementos essenciais da paisagem que possibilitavislumbrar.

    Esse exerccio de explicitao das novas compreenses atingidas na anlise constituio terceiro estgio do ciclo. Consiste na construo de metatextos com base nos produtos daanlise. Esses textos necessitam serem aperfeioados gradativamente, submetendo-os crtica.Nesse mesmo processo tambm se consubstancia sua validao.

    Desse modo, a anlise textual qualitativa pode ser compreendida como um processoauto-organizado de construo de novos significados em relao a determinados objetos de estu-do, a partir de materiais textuais referentes a esses fenmenos. Nesse sentido um efetivo apren-der, aprender auto-organizado, resultando sempre num conhecimento novo (Assmann, 1998).

    Ainda que a metodologia da anlise textual, tal como aqui proposta, possa auxi-

    liar a emergncia da compreenso dos fenmenos estudados, os novos insights e teoriza-es no so construdos a partir de uma racionalidade linear, mas emergem por auto-organizao a partir de uma impregnao intensa com os dados e informaes do corpusanalisado.

    Consideraes finais

    Pretendemos por meio do presente artigo apresentar o que denominamos de anli-se textual qualitativa. Apresentando-a como uma tempestade de luz, metodologia que se afas-tando do que tradicionalmente tem sido denominado de anlise de contedo, aproximando-se de algumas modalidades de anlise de discurso, procuramos argumentar que essa abordagemde anlise pode ser concebida como um processo auto-organizado de produo de novas com-preenses em relao aos fenmenos que examina.

    Descrevemos esta abordagem de anlise como um ciclo de operaes que se ini-cia com a unitarizao dos materiais do corpus. Da o processo move-se para a categoriza-o das unidades de anlise definidas no estgio inicial. A partir da impregnao atingi-da por esse processo, argumenta-se que emergem novas compreenses, aprendizagens

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    criativas que se constituem por auto-organizao, em nvel inconsciente. A explicitao deluzes sobre o fenmeno, em forma de metatextos, constitui o terceiro momento do ciclo deanlise proposto.

    No seu conjunto, as etapas desse ciclo podem ser caracterizadas como um processocapaz de aproveitar o potencial dos sistemas caticos no sentido da emergncia de novosconhecimentos. Inicialmente, leva-se o sistema at o limite do caos, desorganizando e frag-mentando os materiais textuais da anlise. A partir disso, possibilita-se a formao de novasestruturas de compreenso dos fenmenos sob investigao, expressas ento em forma de pro-dues escritas.

    A qualidade e originalidade das produes resultantes se do em funo da intensi-dade de envolvimento nos materiais da anlise, dependendo ainda dos pressupostos tericos eepistemolgicos que o pesquisador assume ao longo de seu trabalho.

    A metfora de uma tempestade de luz, ajuda a evidenciar a forma como emergemas novas compreenses no processo analtico, atingindo-se novas formas de uma nova ordempor meio do caos e da desordem.

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    Artigo recebido em janeiro de 2003 eselecionado para publicao em outubro de 2003.

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