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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEBReitora: Ivete Alves do SacramentoVice-Reitor: Monsenhor Antônio Raimundo dos Anjos

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS IDiretora: Adelaide Rocha BadaróNúcleo de Pesquisa e Extensão - NUPE

FUNDADORES: Yara Dulce Bandeira de Ataide – Jacques Jules Sonneville

COMISSÃO DE EDITORAÇÃOEditora Geral: Yara Dulce Bandeira de AtaideEditor Executivo: Jacques Jules SonnevilleEditora Administrativa: Maria Nadja Nunes Bittencourt

Revisoras: Dilma Evangelista da Silva, Kátia Maria Santos Mota, Lígia Pellon de Lima Bulhões, Rosa Helena BlancoMachado, Therezinha Maria Bottas Dantas, Véra Dantas de Souza Motta.Bibliotecária responsável: Debora Toniolo RauVersão para o inglês: Roberto Soares Dias JuniorEstagiária: Elen Barbosa Simplício

CONSELHO CONSULTIVO: Adelaide Rocha Badaró (UNEB), Cleilza Ferreira Andrade (FAPESB), EdivaldoMachado Boaventura (UFBa), Jaci Maria Ferraz de Menezes (UNEB), Lourisvaldo Valentim (UNEB), ManoelitoDamasceno (UNEB), Marcel Lavallée (Univ. de Québec), Nadia Hage Fialho (UNEB), Robert Evan Verhine (UFBa).

CONSELHO EDITORIALAdélia Luiza PortelaUniversidade Federal da BahiaAntônio Gomes FerreiraUniversidade de Coimbra, PortugalCipriano Carlos LuckesiUniversidade Federal da BahiaEdmundo Anibal HerediaUniversidade Nacional de Córdoba, ArgentinaEdivaldo Machado BoaventuraUniversidade Federal da BahiaEllen BiglerRhode Island College, USAJacques Jules SonnevilleUniversidade do Estado da BahiaJoão Wanderley GeraldiUniversidade de CampinasIvete Alves do SacramentoUniversidade do Estado da BahiaJonas de Araújo RomualdoUniversidade de CampinasJosé Carlos Sebe Bom MeihyUniversidade de São PauloJosé Crisóstomo de SouzaUniversidade Federal da BahiaKátia Siqueira de FreitasUniversidade Federal da BahiaLuís Reis TorgalUniversidade de Coimbra, PortugalLuiz Felipe Perret SerpaUniversidade Federal da Bahia

Organização e diagramação: Jacques Jules SonnevilleCapa: Symbol Publicidade – Uilson Moraes / Acrílico sobre tela: Manoelito DamascenoEditoração: Antonio José Caldas dos SantosImpressão e encadernação: Empresa Gráfica da Bahia - EGBATiragem: 1.500 exemplaresRevista financiada com recursos da UNEB

Marcel LavalléeUniversidade de Québec, CanadáMarcos FormigaUniversidade de BrasíliaMarcos Silva PaláciosUniversidade Federal da BahiaMaria José PalmeiraUniversidade do Estado da Bahia e UniversidadeCatólica de SalvadorMaria Luiza MarcílioUniversidade de São PauloMaria Nadja Nunes BittencourtUniversidade do Estado da BahiaMercedes VilanovaUniversidade de Barcelona, EspañaNadia Hage FialhoUniversidade do Estado da BahiaPaulo Batista MachadoUniversidade do Estado da BahiaRaquel Salek FiadUniversidade de CampinasRobert Evan VerhineUniversidade Federal da BahiaRosalba GueriniUniversidade de Pádova, ItáliaWalter Esteves GarciaAssociação Brasileira de Tecnologia Educacional /Instituto Paulo FreireYara Dulce Bandeira de AtaídeUniversidade do Estado da Bahia

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ISSN 0104-7043

Revista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBARevista da FAEEBA

EducaçãoEducaçãoEducaçãoEducaçãoEducaçãoe Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidadee Contemporaneidade

Departamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus IDepartamento de Educação - Campus I

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

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Revista da FAEEBA – EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADERevista do Departamento de Educação – Campus I(Ex-Faculdade de Educação do Estado da Bahia – FAEEBA)

Publicação semestral temática que analisa e discute assuntos de interesse educacional, científico e cultural.Os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores.

ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO: A correspondência relativa a informações, pedidos de permuta,assinaturas, etc. deve ser dirigida à:

Revista da FAEEBA – Educação e ContemporaneidadeUNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIADepartamento de Educação I - NUPEEstrada das Barreiras, s/n, Narandiba41150.350 - SALVADOR – BATel. (071)387.5916/387.5933

Instruções para os colaboradores: vide última página.

E-mail da Revista da FAEEBA: [email protected]

E-mail para o envio dos artigos: [email protected] / [email protected]

Homepage da Revista da FAEEBA: http://www.uneb.br/Educacao/centro.htm

Indexada em / Indexed in:– REDUC/FCC – Fundação Carlos Chagas - www.fcc.gov.br - Biblioteca Ana Maria Poppovic– BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília/INEP)– Centro de Informação Documental em Educação - CIBEC/INEP - Biblioteca de Educação– EDUBASE e Sumários Correntes de Periódicos Online - Faculdade de Educação - Biblioteca UNICAMP– Sumários de Periódicos em Educação e Boletim Bibliográfico do Serviço de Biblioteca e Documentação– Universidade de São Paulo - Faculdade de Educação/Serviço de Biblioteca e Documentação.

www.fe.usp.br/biblioteca/publicações/sumario/index.html

Pede-se permuta / We ask for exchange.

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5Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 1-242, jan./jun., 2002

S U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I O

Apresentação ........................................................................................................................ 9

Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA – Educação e Contempo-raneidade .............................................................................................................................. 10

INCLUSÃO-EXCLUSÃO SOCIAL E EDUCAÇÃO

A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? Uma breve reflexãolingüística para não lingüistasKátia Maria Santos Mota ..................................................................................................... 13

A “dialética da inclusão/exclusão” na história da educação de ‘alunos com deficiência’Jaciete Barbosa dos Santos ................................................................................................. 27

A inclusão do portador de deficiência visual na escola regular: alguns desafiosIvanê Dantas Coimbra ......................................................................................................... 45

Dificuldades de aprendizagem: uma indefinição?Sahda Marta Ide ................................................................................................................... 57

Criança: a determinação histórica de um cidadão excluídoLiana Gonçalves Pontes Sodré ............................................................................................ 65

A exclusão bem comportada ou: o que fizemos com as professoras não diplomadas doBrasil?Paulo Batista Machado ........................................................................................................ 73

A carreira do professor primário (1822-1889)Maria Inês Sucupira Stamatto ............................................................................................. 83

Navegar é preciso: diário de bordo de uma professora viajante em terras da BahiaIsa Maria Faria Trigo .......................................................................................................... 93

Formação de professores e cibercultura: novas práticas curriculares na educaçãopresencial e a distânciaEdméa Oliveira dos Santos .................................................................................................. 113

A taça do mundo é nossa! Globalização, exclusão e futebol no BrasilGregório Benfica .................................................................................................................. 123

Movimento negro brasileiro e sua trajetória para a inclusão da diversidade étnico-racialAna Celia da Silva ................................................................................................................ 139

Políticas educacionais brasileiras e a formação contínua dos professores da EducaçãoBásica nordestinaJussara Midlej ...................................................................................................................... 153

Educação, mercado, e os temas transversaisMaria de Lourdes Pinto de Almeida .................................................................................... 165

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6 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 1-242, jan./jun., 2002

ESTUDOS

A Etnobiologia como subsídio metodológico para o ensino e a aprendizagem significativaem Ciências BiológicasGeilsa Costa Santos Baptista .................................................................................................... 179

Tecnologia, educação tecnológica e cursos superiores de tecnologia: uma busca dadimensão cultural, social e históricaJacqueline Maria Barbosa Vitorette, Herivelto Moreira, João Augusto de Souza Leãode Almeida Bastos ..................................................................................................................... 187

Utopia realista, justiça e educação em RawlsSidney Reinaldo Silva ................................................................................................................ 203

ENTREVISTA

Anísio Teixeira: a justiça social na educação - Entrevista com o professor Jader de Medei-ros BrittoCélia Rosângela Dantas Dórea ................................................................................................ 217

RESENHAS – RESUMO DE TESE

HOLZMAN, Lois & NEWMAN, Fred. Lev Vygotsky: cientista revolucionário.Ricardo Ottoni Vaz Japiassu ..................................................................................................... 227

ARRUDA, Angela. (Org.) Representando a alteridade.Edmilson de Sena Morais ......................................................................................................... 230

CORTELLA, Mário Sérgio. A Escola e o Conhecimento: fundamentos epistemológicos epolíticos.Gláucia de Souza Lima ............................................................................................................. 233

Resumo de Tese de Doutorado. Educação a distância: superar ou aumentar distâncias?Wagner Braga Batista ............................................................................................................... 235

INSTRUÇÕES

Aquisição / Números e Temas................................................................................................... 239Instruções aos Colaboradores ................................................................................................... 241

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7Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 1-242, jan./jun., 2002

S U M M A R Y

Introduction .......................................................................................................................... 9

Themes and deadlines for the next issues of “Revista da FAEEBA – Educação eContemporaneidade” ............................................................................................................ 10

SOCIAL INCLUSION-EXCLUSION AND EDUCATION

The language of life, the language of school: inclusion or exclusion? A brief linguisticreflection for non-linguistsKátia Maria Santos Mota ..................................................................................................... 13

The “exclusion/inclusion dialects” in the history of education of ‘impaired students’Jaciete Barbosa dos Santos ................................................................................................. 27

The inclusion of the visually impaired in regular schools: some challengesIvanê Dantas Coimbra ......................................................................................................... 45

Learning difficulties: an indefinition?Sahda Marta Ide ................................................................................................................... 57

Child: the historical determination of an excluded citizenLiana Gonçalves Pontes Sodré ............................................................................................ 65

Well-behaved exclusion or: what have we done to the non-qualified teachers in Brazil?Paulo Batista Machado ........................................................................................................ 73

The career of a primary teacher (1822-1889)Maria Inês Sucupira Stamatto ............................................................................................. 83

It’s necessary to navigate: the diary of a traveler-teacher in Bahian landsIsa Maria Faria Trigo .......................................................................................................... 93

Teacher qualification and cyber culture: new curricular practices in the presential anddistance educationEdméa Oliveira dos Santos .................................................................................................. 113

The world cup is ours! Globalization, exclusions and soccer in BrazilGregório Benfica .................................................................................................................. 123

The Brazilian black movement and its path towards the inclusion of the ethnic-racialdiversity.Ana Celia da Silva ................................................................................................................ 139

Brazilian educational policies and the continuous qualification of teachers of BasicEducation in the NortheastJussara Midlej ...................................................................................................................... 153

Education, markets, and transversal themesMaria de Lourdes Pinto de Almeida .................................................................................... 165

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8 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 1-242, jan./jun., 2002

STUDIES

Ethno Biology as methodological subsidy for meaningful teaching and learning in Biolo-gicalSciencesGeilsa Costa Santos Baptista ................................................................................. 179

Technology, technological education and undergraduate courses on technology: in searchof a cultural, social and historical dimensionJacqueline Maria Barbosa Vitorette, Herivelto Moreira, João Augusto de Souza Leão deAlmeida Bastos ..................................................................................................................... 187

Utopia, justice and education in RawlsSidney Reinaldo Silva ........................................................................................................... 203

INTERVIEW

Anísio Teixeira: social justice in education - Interview with professor Jader de MedeirosBritto.Célia Rosângela Dantas Dórea ........................................................................................... 217

REVIEWS - ABSTRACT OF THESE

HOLZMAN, Lois & NEWMAN, Fred. Lev Vygotsky: revolutionary scientist.Ricardo Ottoni Vaz Japiassu ................................................................................................ 227

ARRUDA, Angela. (Org.) Representing alterity.Edmilson de Sena Morais .................................................................................................... 230

CORTELLA, Mário Sérgio. Schools and knowledge: epistemological and politicalbeddings.Gláucia de Souza Lima ........................................................................................................ 233

Abstract of Doctorate Thesis. Distance education: overcoming or increasing distances?Wagner Braga Batista .......................................................................................................... 235

INSTRUCTIONS

Acquisition / Issues and Themes .......................................................................................... 239Instructions to Contributors ................................................................................................. 241

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9Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 9-10, jan./jun., 2002

APRESENTAÇÃO

No número anterior deste periódico, a globalização foi vista sob dois aspectosdistintos: enquanto mundialização, por meio das Novas Tecnologias Inteligentes deComunicação, considerada irreversível e um avanço para a humanidade; enquantoforma atual do capitalismo mundial, causa de exclusão social e destruição da cidadaniae, como tal, devendo ser rejeitada e combatida. Neste sentido, foi analisada aimportância da educação, como forma de aquisição de uma nova consciência e deproposição de ações políticas alternativas, a fim de reverter o rumo da globalização,tal como se manifesta neste momento.

Deste modo, a educação, sendo uma prática social dentro de um contexto sócio-econômico-político determinado, não é uma atividade neutra. Quando realizada demodo subserviente ao atual modelo hegemônico, caracterizado pela primazia absolutada competividade e lucratividade, reproduz e reforça a exclusão social. Contudo,quando resiste e subverte a escala de valores predominante, a prática pedagógicaserá um fator de mudança, lenta e gradual, mas extremamente eficiente. É, pois, nointerior da prática educacional que ocorre o embate entre o modelo da exclusãosocial e a utopia da inclusão de todos, para que sejam assegurados os direitosfundamentais da pessoa humana, em todos os níveis, materiais e espirituais. Porisso, é de muita propriedade o tema do número 17 da Revista da FAEEBA – Educaçãoe Contemporaneidade: INCLUSÃO-EXCLUSÃO SOCIAL E EDUCAÇÃO.

Um exemplo dessa reversão de valores é mostrado no primeiro artigo que trata dadiversidade lingüística e o papel assumido pela escola, em referência ao ensino daLíngua Portuguesa. A autora propõe reconhecer a legitimidade das normas populares,como instrumento de comunicação e de afirmação de identidades sociais, e redefineas atividades em sala de aula, com projetos de ensino que garantam a inclusão dasvariantes lingüísticas como objeto de afirmação/expansão do universo cultural doaluno.

Outro exemplo concreto verifica-se pela presença, em três textos, da temática deinclusão/exclusão social na educação dos alunos portadores de deficiência. O primeirotexto analisa o tratamento dado às pessoas com deficiência, desde a antiguidadeclássica até o contexto contemporâneo de implementação de políticas educacionaisvoltadas para inclusão de “alunos com deficiência”. Outro artigo trata da inclusãodo portador de deficiência visual como desafio para a escola regular. Ambos ostextos consideram que a proposta da Educação Inclusiva implica mudanças estruturaisnos sistemas educacionais, ou seja, a adoção de um novo paradigma educacionalcalcado nos processos de construção do conhecimento. Um terceiro artigo analisa ediscute as diversas teorias, modelos e definições para esclarecer as chamadas“dificuldades de aprendizagem”. Finalizando este bloco, incluímos um texto sobreos determinantes históricos em relação à concepção de infância.

Um terceiro bloco de textos trata dos próprios professores, como vítimas daexclusão social dentro do sistema educacional. O primeiro deles discute como apolítica atual de profissionalização dos docentes tem levado as professoras nãodiplomadas do Brasil, especialmente do Nordeste, a serem dispensadas de suasfunções ou a se submeter a processos formativos que nem sempre levam em conta assuas competências enquanto criadoras e sustentadoras do ensino rural. O texto

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10 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 9-10, jan./jun., 2002

seguinte mostra como, já no século XIX, houve um esforço de enquadramento domagistério por parte das autoridades, resultando em um arcabouço de sistemas deeducação estaduais estruturados na passagem para a República.

Os dois artigos seguintes mostram, por outro lado, que, mesmo dentro dessecontexto adverso, é possível escapar do modelo tradicional de ensino fragmentado eunilateral, quando, por exemplo, no trabalho de orientação monográfica para osprofessores da Rede UNEB 2000, são utilizados referenciais teórico-metodológicospara tratar de temas como distância, identidade, competência única e alteridade, ouquando as novas tecnologias digitais vêm potencializando a produção e socializaçãointerativa de conhecimentos no ciberespaço, seja na modalidade presencial ou adistância.

Ampliando a perspectiva para além da educação formal, o texto seguinte, apósanalisar de maneira panorâmica o contexto sócio-econômico atual que, em nome dainclusão, reforça a exclusão, tenta atualizar as reflexões de Roberto DaMatta sobre ofutebol no Brasil, como um mecanismo de resistência à exclusão e como umarenovação da utopia em um mundo onde todos sejam cidadãos. Outro texto descrevea trajetória das entidades do movimento negro e suas estratégias para a inserção donegro na sociedade

Dois artigos finalizam a seção sobre o tema deste número: o primeiro discute aquestão da formação contínua de professores do ensino fundamental no Brasil e noNordeste em especial, destacando a participação da agência internacional do fomento– o Banco Mundial (BIRD) – nas políticas educacionais brasileiras dos anos noventa;o segundo analisa a proposta dos temas transversais nos Parâmetros CurricularesNacionais de 1998, visando dar um caráter crítico à educação, privilegiando aformação da cidadania; contudo, frente à análise da relação da educação com omercado, são revelados o alcance e o limite dessa proposta.

Depois da seção Estudos, onde são agrupados textos que tratam de temas diversos,ligados à educação, publicamos uma importante entrevista com o Professor Jader deMedeiros Britto sobre Anísio Teixeira, destacando a luta desse educador em prol deuma escola pública, universal, gratuita e obrigatória.

Os Editores: Yara Dulce Bandeira de AtaideJacques Jules Sonneville

Maria Nadja Nunes Bittencourt

Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA –

Educação e Contemporaneidade

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13Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun., 2002

Kátia Maria Santos Mota

A LINGUAGEM DA VIDA, A LINGUAGEM DA ESCOLA:

INCLUSÃO OU EXCLUSÃO?

Uma breve reflexão lingüística para não lingüistas

Kátia Maria Santos Mota *

RESUMO

O debate entre a questão da diversidade lingüística e o papel assumidopela escola, em referência ao ensino da Língua Portuguesa, tem sidoconstantemente retomado por lingüistas e educadores. O reconhecimentoda legitimidade das normas populares, como instrumento de comunica-ção e de afirmação de identidades sociais, tem sido amplamente divul-gado, porém a prática pedagógica ainda permanece alicerçada no ensi-no da norma padrão, desvalorizando os vários dialetos de menor prestí-gio. Este texto convida os educadores, principalmente aqueles não lin-güistas, a criar círculos de educadores/aprendizes, no sentido de repen-sar o problema e de redefinir as atividades em sala de aula, com proje-tos de ensino que garantam a inclusão das variantes lingüísticas comoobjeto de afirmação/expansão do universo cultural do aluno.

Palavras-chave: Diversidade lingüística – Ensino da língua materna –Lingüística para educadores.

ABSTRACT

THE LANGUAGE OF LIFE, THE LANGUAGE OF SCHOOL:INCLUSION OR EXCLUSION? A brief linguistic reflection fornon-linguists

The debate between the question of language diversity and the roletaken by schools, referring to the teaching of the Portuguese language,has been constantly revisited by linguists and educators. The recognitionof the legitimacy of the popular norms, as an instrument ofcommunication and of affirmation of social identities, has been widelydivulged. The pedagogical practice, however, is still based on theteaching of the standard norm, devaluating the various dialects of smallerprestige. This text invites educators, specially the non-linguists, to createcircles of educators/learners, in the sense of rethinking the problem and

* Licenciada em Letras, pela UFBA; mestre em Letras (concentração Lingüística), pela UFBA; doutora emEstudos Luso-Brasileiros (concentração Educação Intercultural), pela Brown University, EUA; professoraaposentada da Faculdade de Educação, UFBA. Atualmente professora visitante da Pós-graduação Educa-ção e Contemporaneidade, UNEB. Endereço para correspondência: Av. Cardeal da Silva, 2134/apt. 201-A,Ed. Manhã do Sol, Federação – 40223-020 SALVADOR/BA. E-mail: [email protected].

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14 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun., 2002

A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? Uma breve reflexão lingüística para não lingüistas

Recordo-me que, na década de 80, quandocomecei a trabalhar com capacitação dealfabetizadores na rede municipal de Salvador,presenciei uma cena escolar que retomo agoracomo ponto de partida para escrever este tex-to, na tentativa de reacender as minhas inquie-tações sobre os caminhos da linguagem da vidae da escola. Vamos à estória: numa sala de aulaem um bairro periférico da cidade, uma pro-fessora, muito entusiasmada, desenvolve umaatividade de “ampliação de vocabulário” –mostrando gravuras de objetos diversos, soli-cita que as crianças nomeiem cada objeto arti-culando “corretamente” cada palavra. Ao mos-trar a gravura de um balde, um menino, quevamos chamar de Jorge, levanta a mão e diz:“bardi”; a professora, prontamente, corrige afala do menino, dizendo “bardi, não, o certo ébaudi”. O menino fica calado diante da pro-fessora, mas virando-se para o coleguinha aolado, diz: “Esta professora é maluca. Minhaavó, que é minha avó, diz bardi. Agora ela querque eu mude.” Pois bem, a estória ficou naminha memória, ao perceber que, naquele mo-mento, Jorge se deparou com um dilema: quemeu vou seguir – a professora ou a minha avó?O que aconteceu com a linguagem de Jorge?Será que ele conseguiu, finalmente, falar baudi,passando a negar a autoridade da sua avó e aacreditar que ela era uma ignorante que nãosabia falar certo? Ou será que ele silenciou aomundo da escola, percebendo que jamais seriacapaz de falar a língua da professora?

Hoje, repenso a questão, trabalhando comum grupo de professores de Português que sequeixam da “fala errada, da escrita horrível dosjorges” e se declaram frustrados porque nadaconseguem fazer para “melhorar o português”desses alunos. Percebo que, apesar de muitostextos lingüísticos terem sido estudados e mui-

tos autores, discutidos, o professor ainda nãointernalizou a mudança de crenças ou, se já ofez, não consegue articular a ponte entre a teo-ria e a prática. Proponho-me, então, refletirsobre três pontos básicos: 1) qual é mesmo alíngua falada por Jorge?; 2) que língua quer aescola? e 3) é possível promover uma convi-vência saudável entre essas línguas? Em ou-tras palavras, proponho ao educador compre-ender a diversidade lingüística como fenôme-no natural da comunicação e investigar/cons-truir propostas pedagógicas que favoreçam acoexistência entre essas várias expressões lin-güísticas nas atividades curriculares do ensinode Língua Portuguesa.

Reconheço que muitos dos princípios pe-dagógicos aqui ressaltados parecem já tão evi-dentes, tão bem entendidos; lamentavelmente,porém, nos cenários escolares reais por ondeperambulo, sinto que quase tudo parece aindaimaginação dos educadores, coisas difíceis dese colocar na prática. É por aí que não me can-so de repetir a lição, principalmente quandodescubro que, em cada repetição, há um novoquestionamento, um novo entendimento, umanova possibilidade de se transformar as ativi-dades de linguagem em algo mais vivo, maisfascinante, mais poderoso. Direcionando-me,sobretudo, aos educadores que não são da áreade Letras e que, por conseguinte, desconhecemalguns princípios lingüísticos básicos que sus-tentam a prática pedagógica subjacente ao de-senvolvimento da capacidade comunicativa doaluno, pretendo, neste texto, apresentar algunsdesses princípios, entremeando-os com exem-plos reais que venho colecionando na trajetó-ria do meu ofício de educadora. Ao mesmo tem-po, descrevo alguns passos metodológicos quetenho adotado nos encontros de capacitação deprofessores. Cada parte deste trabalho poderia

redefining the activities in the classroom, with educational projects thatguarantee the inclusion of the linguistic variants as an object ofaffirmation/expansion of the student cultural universe.

Key words: Linguistic diversity – Native language teaching –Linguistics for educators.

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15Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun., 2002

Kátia Maria Santos Mota

ser desenvolvida em conteúdos mais específi-cos que possibilitariam a elaboração de um li-vro; a intenção neste momento, contudo, é apre-sentar pinceladas de idéias que possam desa-brochar em um diálogo mais consistente. Paraisso, é sempre bom escrever mais um texto,reformular posições, definir alternativas.

1. A expressão lingüística do(a) alu-no(a): marca de identidade social

Inicialmente, precisamos relembrar os es-tudos sociolingüísticos de Labov (1978) paracompreender a expressão lingüística como fe-nômeno de construção social – o ato interlocuti-vo em primeira instância é a revelação de umfato social. Assim, quando Labov estudou osregistros fonéticos do /r/ em três lojas de NovaYork, percebeu que cada uma das articulaçõescorrespondia às falas dos clientes que freqüen-tavam cada uma das lojas os quais, por sua vez,pertenciam a três diferentes extratos sociais.Novos estudos surgiram corroborando as pre-missas da Lingüística que enfatizam a concep-ção da língua não só como instrumento socialde comunicação, mas também como compo-nente cultural de um grupo social, refletindo,conseqüentemente, a diversidade e variabilida-de no tempo e no espaço.

Reconhecendo essa interrelação entre lín-gua/manifestação social, Coseriu (1987) am-plia esse quadro ao inserir o componente indi-vidual da linguagem. Apresenta, então, ummodelo com três elementos: sistema, norma efala. O sistema se caracteriza como um con-junto de oposições funcionais que afetam acomunicação. Assim, se a criança disser rotaquando, na verdade, ela quer se referir a umaroda, ela comete, então, um desvio do sistemaporque na língua portuguesa os fonemas /t/ e /d/ estão em oposição funcional, são considera-dos elementos “êmicos”, os quais afetam o sig-nificado. A norma, por outro lado, é a realiza-ção coletiva do sistema, ela reflete o jeito defalar de uma determinada comunidade. A trans-missão do significado quase sempre não é com-prometida porque não há trocas de fonemas,

como no caso de Jorge, que diz bardi e nãobaudi, como queria a professora. Nesse con-texto, temos dois alofones, duas manifestaçõesfonéticas e não fonêmicas. A fala, finalmente,é a realização individual da norma, o jeito defalar do sujeito membro de uma determinadacomunidade lingüística.

Integrando os elementos conceituais apre-sentados por Labov e Coseriu, podemos com-preender a diversidade lingüística em dois gran-des blocos: variedades geográficas (diatópicas)e variedades socioculturais (diastráticas). Noprimeiro bloco, encontram-se as linguagensurbana e rural, os dialetos ou falares regionais.No segundo, temos duas subdivisões: a) os di-aletos sociais, culto ou popular, de acordo comcaracterísticas individuais (idade, sexo, raça,profissão, posição social, grau de escolarida-de, classe econômica, local de residência) e b)os níveis de fala/registros, formal ou coloqui-al, de acordo com características ligadas à si-tuação (ambiente, tema, estado emocional dofalante, grau de intimidade entre os falantes)(PRETI, 1997, p. 41).

As variedades lingüísticas determinam, as-sim, diferentes marcas de gramaticalidadeinstitucionalizadas por um determinado grupode falantes. Dessa forma, todas essas varieda-des seguem princípios gramaticais considera-dos corretos, partindo do pressuposto de que alíngua se revela como processo/produto de umacontínua construção sócio-cultural de um de-terminado modelo comunicativo. Reformula-se, assim, o conceito de gramática que, na Lin-güística moderna, passa a ser o conjunto deregras que descrevem a variedade lingüísticada forma como ela, de fato, se apresenta mani-festada em uma situação real de comunicação.A língua de Jorge, por conseguinte, transmiti-da por gerações de antepassados, está gramati-calmente, correta como representativa do seugrupo familiar/social. Nessa visão, a Lingüís-tica preocupa-se em garantir a preservação dobinômio comportamento lingüístico/manifesta-ção cultural como elemento fundamental deafirmação de identidades.

Retomando os conceitos lingüísticos breve-mente expostos, alguns princípios ficam aqui

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A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? Uma breve reflexão lingüística para não lingüistas

assinalados: 1) do ponto de vista da eficiênciada comunicação, não existe superioridade ouinferioridade de uma variedade sobre outra; 2)as regras gramaticais que regem uma determi-nada variedade são socialmente adquiridas atra-vés da interação natural em atos da fala en-volvendo membros de uma comunidade. Nes-se sentido, Chomsky (1965) ressalta a diferen-ça entre dois componentes básicos da comuni-cação verbal: a competência lingüística (capa-cidade de compreender e adquirir naturalmen-te as regras que fazem parte do sistemalingüístico) e o desempenho lingüístico (capa-cidade de manifestar esse conhecimento a par-tir da geração de regras de produção da lingua-gem). A competência lingüística assegura re-gras do sistema que garantem, por exemplo, osaspectos de uniformidade da língua portugue-sa, enquanto que o desempenho lingüístico seexpressa a partir de regras que ressaltam a di-versidade da nossa língua. No modelo chom-skyano, a criança passa por diversas etapasevolutivas de construções gramaticais diversas,em uma constante interação entre competên-cia e desempenho, criando/recriando expres-sões lingüísticas a partir das elaborações men-tais do seu próprio mecanismo gerador de lin-guagem em contato com as diversas contribui-ções do seu ambiente social. Por conseguinte,a aquisição de uma determinada norma consi-derada adequada a um contexto social especí-fico resulta da internalização das regras gra-maticais apropriadas a partir da inserção natu-ral em um grupo sócio-cultural que adote talnorma, da mesma forma como está explicitadona teoria sócio-interacionista de Vygotsky(1962)1. Esse conjunto de regras não é exclusi-vamente lingüístico, pois inclui também umacompreensão do contexto social onde se pro-cessa a comunicação, ressaltando certos ele-

mentos sociolingüísticos tais como caracterís-ticas dos interlocutores, tipo de mensagem ,cenário, objetivo da interlocução, etc. O apren-diz precisa não só desenvolver sua competên-cia lingüística, mas também sua competênciacomunicativa. (Hymes, 1989). Nesse sentido,não se espera que crianças como Jorge mani-festem uma variedade lingüística “adequada”às expectativas da professora, desde quandonão são socioculturalmente incluídas no uni-verso escolar.

2. A língua da escola: a imposição dauniformidade

Muitas mudanças parecem ter surgido nasúltimas décadas: o livro didático ganha umanova apresentação, são incluídos textos esco-lares com maior ênfase na diversidade de te-mas e na apresentação de variantes lingüísti-cas, os professores tentam adotar uma posturapedagógica mais construtivista, estimula-se oprazer pela leitura e a criatividade no processoda escrita. Tudo isso são intenções, mudançasde paradigmas, novos discursos, tentativas deinserção de um novo modelo de ensinar e deaprender a língua materna. Constituem, entre-tanto, movimentos esparsos, projetos isolados,experiências de alguns poucos educadores queousam ousar. Em grande parte, as nossas salasde aula se sustentam nas bases tradicionais davelha gramática. Não se pretende encarar a lín-gua com suas nuances de criatividade, de ino-vação, de afirmação de identidades. Opta-semuito mais pelo conservadorismo das regrasprescritivas. Instala-se o medo da falta de con-trole do saber lingüístico dos alunos. Que lín-gua é essa dos exercícios escolares, dos testesde múltipla escolha, das questões de compre-ensão de leitura, das redações impostas? Comoconciliar a imprevisibilidade da evolução lin-güística com as tarefas escolares rigorosamen-te medidas por erros e acertos pré-estabeleci-dos? Como se pode cobrar uma mudança decomportamento lingüístico deslocada da apro-priação social do ler e do escrever como faze-res cotidianos?

1 A teoria de Vygotsky (1962) estabelece a correlaçãoentre linguagem e pensamento sustentando o pressupos-to de que o desenvolvimento da identidade cultural seprocessa inicialmente através da atuação do processo deinteração social (interpsychological operations) que fa-vorece a construção da linguagem interior (intrapsycho-logical operations).

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Voltemos à sala de aula da nossa estória ini-cial em que a professora assume a tarefa de “cor-rigir” o falar de Jorge; nessa percepção, com-preende-se a criança como portadora de um dé-ficit lingüístico proveniente de desvantagens cul-turais que acarretam um déficit cognitivo. En-fim, a “deficiência” de Jorge costuma ser trata-da através de muitas doses de repetição, de exer-cícios estruturais, de aulas de reforço, de repro-vações. Confundem-se, então, os conceitos de“código restrito” e “código elaborado”, apre-sentados por Bernstein (1964) que, originalmen-te, tinha a intenção de marcar o caráter de deli-mitação da territorialidade social da língua; ostermos escolhidos, entretanto, pela sua naturezaambígua, foram interpretados como marcas deprivação lingüística. Na busca da compreensãosobre o fracasso escolar de crianças afro-ameri-canas, Labov (1978) constatou que o desempe-nho lingüístico dessas crianças se apresentavaperfeitamente adequado às regras discursivas dacomunidade e que o sucesso escolar dependia,sobretudo, da aceitação e da incorporação dessedialeto na cultura escolar. Nesse sentido, adver-te Labov, citado em Moreira (2000, p.139) que“o mito da privação verbal é extremamente pe-rigoso, porque desvia a atenção das verdadeirasfalhas de nosso sistema educacional para defei-tos que não existem na criança”. Esse distan-ciamento entre a linguagem da criança e da es-cola foi também amplamente tratado por Wells(1986), ao investigar, comparativamente, regis-tros de conversação nesses dois espaços, ressal-tando três componentes básicos: as funções lin-güísticas, as trocas de significados e as estrutu-ras formais dos enunciados. Logo ao entrar naescola, a criança percebe que o sucesso escolarse consolida a partir do seu engajamento em ta-refas prescritas pela professora, assumindo umpapel fundamentalmente receptivo no contextodo discurso escolar, atendendo às respostas pre-viamente estabelecidas e, conseqüentemente,evitando arriscar-se em iniciativas de manifes-tação do seu próprio discurso. Ao obedecer atais regras, a criança abandona os padrões natu-rais que caracterizam a autenticidade do seu dis-curso, comprometendo, assim, a sua efetiva par-ticipação no universo escolar.

Os traços divergentes que caracterizam osdiscursos da casa e da escola, como expressõesde duas tradições culturais, distanciam-se peladificuldade de se estabelecerem relaçõescolaborativas ao atendimento das funções so-ciais da linguagem e às construções de formase significados no processo da produção do tex-to oral ou escrito. Um excelente panorama des-critivo dessa realidade se encontra no trabalhoetnográfico de Heath (1994) no qual se obser-vam os padrões comunicativos que regulam asocialização familiar de duas comunidades detrabalhadores rurais nos Estados Unidos (umade população branca e outra, negra) contras-tando com as expectativas de desempenholingüístico estabelecidas por uma comunidadeurbana (constituída de brancos e negros),controladora do poder político da região e fa-lante de um dialeto mais escolarizado que re-gulamenta os padrões de competência lingüís-tica determinantes do sucesso/fracasso escolar.Estudos sociolingüísticos, como o de Heath,revelam a autoridade do modelo lingüístico dodiscurso da classe dominante, tornando-se ín-dice de referência do correto, do escolarizado,do socialmente adequado. Os dialetos popula-res são radicalmente excluídos da arena esco-lar porque não representam o falar/escreverdaqueles considerados bem-sucedidos na escalasocial.

São muitas as pesquisas que apontam essedescompasso dos elementos funcionais quenorteiam os modelos discursivos família/esco-la e suas implicações no direcionamento doprocesso de aprendizagem da leitura e da es-crita. A postura ideológica do educador quasesempre reconhece a pertinência de tais fatos,mas, na prática, ainda vem adotando, de formaimposta ou camuflada, uma pedagogia de assi-milação cultural, de adoção de novos padrõeslingüísticos ditos cultos na excludência daque-les que marcam a identidade cultural do nú-cleo familiar. A linguagem se insere como umdos elementos representativos da cultura que,por sua vez, constitui um “conjunto de práticassignificantes”. Segundo Canen e Moreira(2001, p.19), “Quando um grupo compartilhauma cultura, compartilha um conjunto de sig-

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A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? Uma breve reflexão lingüística para não lingüistas

nificados, construídos, ensinados e aprendidosnas práticas de utilização da linguagem. A pa-lavra cultura evoca, portanto, o conjunto depráticas por meio das quais significados sãoproduzidos e compartilhados em um grupo”.

Considerando-se, assim, que uma determi-nada norma lingüística se manifesta como cons-trução cultural de uma comunidade, tem a es-cola direito de exercer uma política dedesconstrução de um patrimônio cultural? Aescola tem consciência de que, na prática, elavem anulando o saber lingüístico dos nossosalunos, falantes de dialetos outros que não osprestigiados politicamente? Invertendo, então,as questões para uma direção mais otimista:como pode a escola assegurar a legitimidade ea inclusão de uma cultura popular nas ativida-des curriculares sem, contudo, abrir mão da suatarefa de promover a expansão cultural do alu-no, facilitando a aquisição de novos códigoslingüísticos? Ou seja, como ajudar o aluno acompreender as razões extra-lingüísticas queameaçam a legitimidade dos dialetos e a exer-cer seu direito de cidadania ao se apropriar denovos modelos discursivos que assegurem pos-sibilidades de transitar socialmente em outrasesferas culturais?

3. Tentativas de “coexistência lin-güís-tica” na prática pedagógica

A orientação expressa nos ParâmetrosCurriculares Nacionais, em referência à com-preensão e inclusão das diversidades lingüísti-cas nas atividades curriculares de Língua Por-tuguesa no Ensino Médio, aponta para a im-portância de tratar as variantes lingüísticascomo componentes de identidades sociais, aoassumir que “dar espaço para a verbalizaçãoda representação social e cultural é um grandepasso para a sistematização da identidade degrupos que sofrem processos de deslegitimaçãosocial” (BRASIL, 2000, p.41), ao mesmo tem-po em que determina claramente a intenção de“respeitar e preservar as diferentes manifesta-ções da linguagem utilizadas por diferentesgrupos sociais, em suas esferas de socializa-

ção” (IDEM, p.21). O professor compreende,concorda, mas se pergunta angustiado sobre ocomo fazer, o como transformar seu espaço detrabalho em um ambiente acolhedor das dife-renças, em um palco de transformações mági-cas que atendam as suas convicções acadêmi-cas e, ao mesmo tempo, as expectativas do alu-no, da família e cobranças da CoordenaçãoPedagógica.

A tarefa não fica menos pesada nem maisclara quando a resposta que vem expressa nosPCN é lida: “O trabalho do professor centra-seno objetivo de desenvolvimento e sistematiza-ção da linguagem interiorizada pelo aluno, in-centivando a verbalização da mesma e o domí-nio de outras utilizadas em diferentes esferassociais” (IBIDEM, p.38). O texto lhe é entre-gue, explicado e interpretado pelos especialis-tas, mas continuo constatando que, em quaseduas décadas de coordenação de grupos decapacitação do professor, as palavras lhes soampor demais abstratas, talvez utópicas, distantesdo enfrentamento real das circunstâncias vigen-tes na sala de aula. Os seus olhares me apon-tam uma certa indignação com o nosso falar deespecialistas, nossas palavras se perdem aovento, somos imaginados como figuras absor-tas em campos teóricos fascinantes, masdesenfocadas da realidade. O professor me pa-rece solitário e frustrado diante do enfrenta-mento de mais um curso de capacitação.

Ao início de cada nova tentativa de “treina-mento”, fico assustada e comovida com os inú-meros depoimentos derrotistas. À medida que,calmamente, nos propomos a compartilhar astrajetórias pessoais e profissionais, manifestan-do nossas incertezas, angústias e perplexida-des, o otimismo vem chegando, de leve, e va-mos reacendendo o desejo de construir um sem-pre novo jeito de ensinar, formando o que cos-tumo chamar de círculo de educadores/apren-dizes. Ao escutar a voz do professor e acolheras diversidades inerentes à história de cada um,começamos, assim, a instalar um círculo deesperança, acreditando que, ao vivenciar mo-mentos prazerosos de trocas de saber com co-legas e especialistas, o professor se socializa,articula-se com seus pares e recupera o seu

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potencial de criatividade na retomada do seucotidiano.

Acredito, então, que o processo de transfor-mação pedagógica começa a acontecer cada vezque se cria um círculo de educadores/aprendi-zes em que se estabelece a prática da diversida-de de vozes, de pensamentos, de modos de ação.As receitas prontas não existem, porém fica as-segurado o direito de cada um se sentir livre para,com a mediação do colega ou especialista, des-cobrir as suas receitas, a sua forma peculiar delidar com a diversidade. Essa postura inicial tor-na-se fundamental para que qualquer propostapedagógica seja bem recebida, experimentada,transformada e incorporada por uma comunida-de de trabalhadores intelectuais. Vamos, aospoucos, tecendo os nossos saberes e práticas, atéo final do encontro, quando percebemos quemuito construímos e que ainda muito mais nosespera para ser construído. Nessa saudável eco-logia do saber, o professor passa, então, a que-rer abrir novos círculos de aprendizagem envol-vendo seus colegas e alunos. É nessa perspecti-va que registro aqui ocorrências, sínteses, ela-borações que constituem produção coletiva decada novo grupo de que participo.

Aberto o círculo de debates, passamos a nosconcentrar na questão da diversidade lingüísti-ca e indagamos que normas lingüísticas deve-rão ser incluídas ou ensinadas. Sabemos que aescola insiste em continuar adotando a “normapadrão” (aquela forma ideal de falar e escrevera língua prescrita pelas gramáticas tradicionais)como referencial para o “treinamento lingüís-tico” através de exercícios estruturais de repe-tição, preenchimento, múltipla escolha etc –enfim, exercícios mecânicos que estimulam a“decoreba” de regras prescritivas totalmentedescontextualizadas. É possível ensinar um jei-to de falar ou de escrever? Na melhor das hi-póteses, o aluno consegue “acertar” as ques-tões gramaticais das avaliações, mas nada pa-rece ser assimilado nem demonstrado nas suasredações, no seu livre falar ou escrever, na cons-trução do seu discurso de vida. Esse ensinometalingüístico, que prioriza o estudar sobreuma “língua ideal” e não o saber usar uma “lín-gua real”, ilustra o tipo de conhecimento pro-

duzido na escola o qual, segundo Rubem Alves,é esquecido em pouco tempo porque é despro-vido de funcionalidade. Quando chega o mo-mento do vestibular, por exemplo, os alunosdescobrem que nada aprenderam sobre as ca-tegorias gramaticais que foram, repetidas ve-zes, estudadas ao longo das séries do ensinofundamental. “A memória não carrega conhe-cimentos que não fazem sentido e não podemser usados. Ela funciona como escorredor demacarrão. Um escorredor de macarrão tem afunção de deixar passar o inútil e guardar o útile prazeroso. Se foi esquecido é porque não fa-zia sentido”.2

A primeira grande barreira, então, é que oprofessor quer ouvir a voz do aluno, mas daforma que a escola considera correta; quer ou-vir os conteúdos de vida do aluno, mas usandoa linguagem da escola. A comunicação mani-festa-se, então, de forma atropelada, pois o alu-no tropeça tentando não cair nos “erros” e oprofessor oscila no decidir corrigir ou não aexpressão do aluno. Nesse jogo de poder, qua-se sempre o aluno decide silenciar, expressar-se menos para “acertar” mais. Se, de fato, que-remos ouvir a voz do aluno, precisamos não sóaceitar, mas sobretudo valorizar as “normaspopulares”, as representações da fala de gru-pos excluídos que ainda se aventuram a fre-qüentar a escola, na esperança de melhorar suascondições de vida. Ora, para que esses alunos“adquiram” a linguagem mais adequada a cir-cunstâncias sociais específicas (e não apenas“aprendam”, segundo a distinção de Krashen(1981),3 é fundamental que sejam acolhidos em

2 Rubem Alves faz uma excelente crítica aos conheci-mentos escolares cobrados nos exames vestibulares nasua crônica intitulada “Sobre moluscos e homens”,publicada em Folha de São Paulo , Tendências e Deba-tes, 17/02/2002.3 Destaco a diferença entre aquisição lingüística e apren-dizagem lingüística a partir da teoria de aquisição da se-gunda língua, proposta por Krashen (1981). O primeiroprocesso ocorre, subconscientemente, como resultado daparticipação efetiva na comunicação natural direcionadapara a troca de significados, enquanto que o segundo éproduto do estudo consciente das propriedades formaisda linguagem.

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seu discurso singular, natural, espontâneo elingüisticamente correto, que constitui a nor-ma de socialização da sua comunidade famili-ar. Que sejam bem-vindas na sala de aula asdiversas manifestações do falar, cabendo aoprofessor a tarefa de organizar um ambiente detroca de experiências, de respeito mútuo, deconvivência saudável. É o que objetivamentepontua Silva (1994, p.226) ao afirmar: “Nosprimeiros anos de ensino a diversidade lingüís-tica, o plurilingüismo de certas comunidades,o pluridialectalismo de todos deveria ser res-peitado, cultivado, não só para favorecer o de-senvolvimento natural da expressão oral, comotambém para não criar bloqueios que se tor-nam no futuro intransponíveis não só na co-municação escrita, como também na oral.”

O professor fica, então, perplexo, assusta-do, desorientado, como se todas as suas con-vicções do bem ensinar a língua materna caís-sem por água abaixo. As indagações trazemdesconforto, inquietações: “Não se deve maiscorrigir? É pra deixar o aluno escrever do jeitoque fala? Vai se esquecer o português dos mes-tres, dos nossos escritores clássicos?” Respira-mos fundo e passamos a reelaborar nossa com-preensão sobre o funcionamento social da lin-guagem. Relembramos Halliday (1973) aocategorizar a língua em sete funções básicas:a) instrumental (para satisfazer necessidadessociais); b) regulatória (para controlar o com-portamento dos outros); c) interacional (paraestabelecer e manter contatos sociais); d) pes-soal (para expressar questões pessoais); e) ima-ginativa (para expressar imaginação e criativi-dade); f) heurística (para procurar informaçõese descobrir coisas); g) informativa (para apre-sentar informações). Assimilando esse quadrofuncional da linguagem, a escola precisa orga-nizar suas atividades curriculares de linguageminserindo-as em funções sociais representati-vas dos atos interlocutivos de situações reaisde vida. Assim, não se aprende a escrever “cor-retamente” fazendo ditados de treinamentosortográficos, mas, sim, redimensionando as ati-vidades de leitura e escrita em pesquisas denovos significantes e significados que ampli-em a interação do aluno com o mundo e impul-

sionem sua competência no processo de com-preensão e produção lingüísticas. Ao ouvir, aoler, ao descobrir o outro, o aluno vai se aventu-rando, arriscando-se a falar, a escrever, a reve-lar a si próprio.

A partir da convivência sistemática com no-vos textos, orais e escritos, ricos de múltiplasintenções comunicativas e com larga abran-gência de diversidades lingüísticas, o aluno vaise inserindo socialmente nas comunidades es-colares, aproximando-se da “norma culta”(aquela usada por indivíduos de alto grau deescolaridade), experimentando uma nova for-ma de discurso que lhe possibilitará a sua in-serção em “mercados lingüísticos” de maiorprestígio social. Retomamos Silva (1994,p.226) ao sintetizar que “O aprimoramento dalíngua materna em toda a sua amplitude e nasua gama de variação possível e potencial se-ria assim um instrumento de libertação interiore social, um elemento agregador e nãodesagregador como aquele que impõe a normade um dialeto dominante”.

As normas lingüísticas são reconhecidas nãosó nas escolhas de significantes, nas articula-ções fonéticas ou nas elaborações da sintaxeque constituem os dialetos sociais e regionais;abrangem, de forma mais ampla, a compreen-são de uma construção cultural que envolveuma forma de ver e de expressar o mundo. Ficacerto, então, que, quando nos dispomos a tra-balhar com diversidade lingüística, estamos, naverdade, trabalhando com diversidade culturale formação de identidades. Não podemos estu-dar o fato lingüístico em si sem nos adentrarmosno corpus social que envolve a ocorrência detal fato. Isso quer dizer que o trabalho pedagó-gico em diversidade lingüística inclui não sóos elementos formais e funcionais do discurso,mas também as variedades de interpretação eprodução de significados dentro de um deter-minado contexto cultural. Sendo assim, apon-tamos a possibilidade de explorar a diversida-de lingüística em todas as áreas do ensino dalíngua, procurando sinalizar a riqueza de ca-deias de significantes e significados quepermeiam a voz de cada grupo, de cada indiví-duo. Como seriam, de fato, desenvolvidas es-

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sas propostas? O círculo de educadores/apren-dizes passa, então, a elaborar reformulações daprática pedagógica, através da construção deprojetos de atividades em sala de aula visandoa enfocar a diversidade lingüística. Algumasconsiderações que norteiam o rumo de tais pro-postas são, a seguir, apresentadas.

• O tempo de se contar estóriasToda vez que me coloco como observadora

de uma sala de aula, constato a pouca impor-tância que a escola dá às atividades de lingua-gem oral, pois grande parte do tempo é desti-nado, exclusivamente, aos exercícios de leitu-ra e escrita. A escola ignora uma outra lição daLingüística – que a competência na língua es-crita é, em grande parte, decorrente do desen-volvimento da língua oral. Antes de aprender aler com compreensão, o aluno precisa ser aptoa ouvir com compreensão; da mesma forma,antes de conseguir escrever adequadamente, eleprecisa saber falar adequadamente. Em outraspalavras, as habilidades receptivas precedemas produtivas, enquanto que as habilidades deexpressão da linguagem individual e a inter-pretação dos significados de alteridade estãointimamente relacionadas, em um movimentoespiral de reciprocidade. Trocar idéias em cír-culos parece ser coisa de séries iniciais, pro-fessores dizem estar mais ocupados em cum-prir os conteúdos gramaticais do programa decurso.

Pois bem, precisamos retomar as estórias devida, criar uma verdadeira comunidade de curi-osos, adotar estratégias colaborativas, intensifi-car o trabalho coletivo, fazer o aluno ter vonta-de de ouvir e de falar. A organização de um es-paço receptivo a essas trocas de significados setorna essencial para que todos sejam incluídos.Cazden (1988) apresenta um amplo trabalho emanálise do discurso da sala de aula, revelando oautoritarismo da voz do professor, pois, durantegrande parte do tempo, é a única voz que co-manda, que decide e inicia os itens temáticosbem como regula as perguntas cujas respostasjá são pré-estabelecidas. Nada parece ser novo,nada instiga o aluno a querer se expor; o velhodiscurso já é por demais conhecido.

Entender a voz do estudante é lidar com anecessidade humana de dar vida ao reino dossímbolos, linguagem e gestos. A voz do estu-dante é um desejo, nascido da biografia pesso-al e da história sedimentada; é a necessidadede construir-se e afirmar-se em uma linguagemcapaz de reconstruir a vida privada e conferir-lhe um significado, assim como de legitimar econfirmar a própria existência no mundo. Logo,calar a voz de um aluno é destituí-lo de poder.(MCLAREN e GIROUX, 1994, p.137)

Lembro-me, então, de Lúcia, uma profes-sora que me pedia sugestões de material didá-tico para que pudesse motivar seus alunos, adul-tos de um curso noturno de ensino fundamen-tal, a se tornarem mais participativos, ou me-lhor, mais acordados na sala de aula. Pergun-tei-lhe quem eram seus alunos e se eles se co-nheciam como pessoas, como trabalhadores;meio silenciosa, ela me olhou um tanto perple-xa, quando respondi que o material mais ricoera o próprio grupo, suas vidas. Logo depoisela tomou consciência da minha resposta e pas-sou a me revelar as outras identidades escon-didas atrás daqueles alunos: eram homens,mulheres, maridos, esposas, pais, mães, poli-ciais, bombeiros, costureiras, etc – uma infini-dade de representações sociais silenciadas pe-las carteiras escolares. Decidimos, então, pla-nejar o momento das histórias de cada um, dosrelatos do cotidiano envolvendo seus sonhos,dificuldades, caminhadas. Descobrimos umuniverso de múltiplas experiências, que setransformaria, mais tarde, em uma coleção detextos orais e escritos, e que, sem dúvida, pro-vocaria oportunidades de reconhecer a diver-sidade de vidas, de pensamentos, de palavras.

• Ler aquilo que se buscaFico pensando no meu tempo escolar, na

quantidade imensa de textos desencantados queli sem qualquer interesse, com a mente voltadapara outras leituras, para outras vozes, dese-jando ler outros textos que me seduziam. Con-tinuo vendo na escola de hoje crianças e jo-vens debruçados na carteira, tentando prenderos olhos nas linhas do texto porque precisamresponder um questionário ou estudar para um

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teste. A escola se esquece da sua responsabili-dade de formar amantes da leitura, de transfor-mar a sala de aula em recantos de viagens ima-ginárias que nunca se desprendem da nossamemória. Ainda me lembro nitidamente do meuprimeiro livro, da cartilha que me contava aestória de uma boneca; cada dia em que líamosuma nova página, novas emoções surgiam.Sofri muito quando a boneca caiu da janela efoi parar no tabuleiro de um feirante – comofoi difícil esperar o dia seguinte para saber so-bre o destino da boneca. Aprendi, a partir des-sa minha primeira experiência, que leitura éenvolvimento, é paixão, é mágica. Cabe ao pro-fessor tirar os livros das estantes, fazer o alunoescolher os seus textos sonhos, saborear as pá-ginas e sentir o colorido de cada palavra. Asestórias de amor ao livro são inúmeras; algu-mas, belíssimas, são brilhantemente narradaspor Manguel (1997).

Ensinar a ler significa formar um leitor crí-tico, aquele que responde ao texto recriando-oou transpassando os limites do texto, que seapaixona ou se revolta contra o texto. Isso sig-nifica que “ao ler, produzimos um texto dentrode um texto, ao interpretar, criamos um textosobre um texto; e, ao criticar, construímos umtexto contra um texto”. (MCLAREN, 2000).Infelizmente, ainda nos debatemos com osquestionários de “compreensão de texto” queimprimem respostas únicas, em que o aluno temque, simplesmente, localizar no texto a infor-mação solicitada, como se a leitura fosse ava-liada pela capacidade de memorizar, às vezes,até detalhes não percebidos pelo próprio escri-tor4. Ou ainda um rol de perguntas de múltiplaescolha ditas como de “interpretação” em queo aluno só “interpreta” corretamente se conse-guir decifrar a leitura feita pelo elaborador daquestão. Enfim, todos esses exercícios que

transformam o texto em uma leitura fechada,estagnada, inerte; não há espaço para a possi-bilidade de recriar o texto, de descobrir novossignificados. Em contraponto, precisamos en-sinar o aluno a voar mais alto, a sair da super-fície linear da decodificação do texto e se per-mitir traçar pontes que se entrelacem com a suavisão de mundo, a direcionar seus múltiplosolhares, a sustentar seus argumentos, a posi-cionar-se diante do texto, diante da vida.

A própria seleção dos textos escolares pre-cisa ser redimensionada, sendo que dois fato-res devem estar presentes nesse processo deescolha: autenticidade e diversidade. O textodeve ser autêntico, isto é, escrito para uma fi-nalidade social específica, para atender a umanecessidade comunicativa; ele não deve ter sidoescrito, por exemplo, para fins didáticos, paraensinar determinados conteúdos lingüísticos daunidade. A diversidade, por outro lado, con-siste na exposição de uma vasta tipologia detextos da vida pública (literários, jornalísticos,comerciais, instrumentais etc) ou da vida pri-vada (bilhetes, cartas, listas, anotações, diáriosetc), apresentando os mais diversos autores re-conhecidos ou anônimos. Percebo, entretanto,que um grande ponto de entrave é que o pro-fessor, quase sempre, acompanha a seleção feitapelo livro didático e não se aventura a cons-truir, juntamente com os alunos, a coletânea daclasse de acordo com os interesses e necessi-dades específicos. Essa obediência ao livro di-dático causa, sem dúvida, o desinteresse e apassividade dos alunos, como acontecia com aturma de Lúcia (aquela professora do cursonoturno) que cochilava em cima do livro.

Torna-se, assim, flagrante, no cotidiano es-colar, o caráter artificial e superficial das ativi-dades de leitura; é por essa falta de acolhimen-to da identidade cultural do aluno que ele seafasta da dinâmica da sala de aula, excluído docenário escolar porque passa a ser rotulado dedesmotivado, deficiente, incompetente. Serámesmo? E como se comporta na linguagem davida? Conto para vocês o caso de Nalva, umadoméstica evangélica com quem convivo, queabandonou a escola dizendo-me: “Não dou praessas coisas de escola, minha cabeça faz muita

4 Recentemente, circulou pela Internet uma carta do es-critor Mário Prata endereçada ao Ministro Paulo Rena-to, na qual ele faz uma crítica sobre a utilização, em umexame vestibular, de uma crônica sua intitulada “AsMeninas-Moça”. O autor expõe várias perguntas da pro-va, abordando conteúdos do seu texto, cujas respostasele ignora.

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confusão quando me dão aquelas coisas pra ler.Prefiro ir pra igreja”. Passado um certo tempo,para minha surpresa, descobri que, ao freqüen-tar a igreja, Nalva vai retomando suas ativida-des de leitura, pois, diariamente, ela encontratempo e motivação para ler passagens bíblicasque, na sua visão, lhe dão respostas para ascoisas da vida. Afastada da escola formal eparticipante da escola da vida, observo, ao con-versar com Nalva, que ela vai se tornando umaleitora eficiente e competente. Outro dia ela mepediu revistas emprestadas e fiquei feliz aoouvir suas respostas inteligentes sobre trechosde reportagens da Veja. Fico a pensar que, la-mentavelmente, muitas Nalvas são excluídasdas salas de aula por causa das “leituras confu-sas” que a escola impõe.

• Arrumando as peças da escritaCom o passar do tempo, mudamos as nos-

sas escritas. Quando criança, costumava tercadernos de poesias; já adolescente, troquei-os pelos diários e cadernos de confidências oude letras de músicas; ao tornar-me professora,passei a anotar tudo que me ensinava coisasnovas aplicadas à vida pessoal ou profissional.Os meus hábitos de escrita vão, assim, se trans-formando a partir do meu momento de vida,pois fazem parte da minha maneira de me rela-cionar comigo mesma e com os outros, da mi-nha necessidade de registrar o mundo no papelnas mais diferentes formas: navego na Internettrocando longas conversas com amigos e ami-gas distantes; quando viajo, escrevo relatos decada passeio, de cada descoberta (exatamentecomo fazia no meu tempo de bandeirante), to-dos os compromissos e lembretes vão para mi-nha agenda, que me acompanha a todos os lu-gares, escrevo textos e mais textos de aulas,comunicações, relatórios, pesquisas etc. Enfim,minha vida está moldada em cima da escrita.Provavelmente teria extrema dificuldade deviver sem o ato de escrever, pois ele se tornouum caminho essencial que viabiliza a minhaconexão com o mundo.

A escrita se revela a partir da construção so-cial da vida de cada indivíduo, de cada grupo;não podemos impor a construção de um hábito

que não seja transformadora do cotidiano. Lem-bro-me da experiência que vivi, na década de70, então universitária e treinadora de monitoresde alfabetização em um projeto de vilas de pes-cadores do litoral norte da Bahia, diante da difi-culdade para motivar um grupo de mulheres deuma certa comunidade a freqüentar o posto dealfabetização. Naquela época, não entendíamospor que aquelas mulheres recusavam tal oportu-nidade, mas ignorávamos também que elas nãoentendiam por que nós insistíamos tanto com oprojeto. Depois de algumas conversas e reco-nhecimento da comunidade, descobrimos que,naquela época, nenhum material escrito chega-va ao local, nem jornais, nem revistas, absoluta-mente nenhum veículo de comunicação escrita.Percebemos, então, o porquê do desinteresse, darecusa em comparecer às aulas. No ano seguin-te, o projeto assumia a implantação de coopera-tivas de trabalho, e esse mesmo grupo de mu-lheres participava de uma cooperativa de docescaseiros. O posto de alfabetização foi revitali-zado, então, tomando como proposta inicial asatividades de escrita direcionadas para a con-fecção dos rótulos dos doces que estavam sen-do comercializados. O sucesso do projeto foi ins-talado. O relato dessa experiência demonstraclaramente aquilo que Bourdieu (1994) deno-minou de “investimento lingüístico” e “capitalcultural”, ao reforçar o princípio de que a aqui-sição da língua, oral ou escrita, está atrelada aum investimento social, a uma necessidade demelhorar a vida.

Como se processa, na realidade, a contextua-lização social das atividades de escrita nas nos-sas escolas? Nas séries iniciais, as cópias, osditados, os exercícios de lacuna, tudo parecese centralizar em treinamento ortográfico; nasséries mais adiantadas, são cobradas as reda-ções sobre temas impostos, na tentativa de ava-liar a capacidade criativa das idéias e o domí-nio da linguagem. Nessa orientação, são os alu-nos classificados em diferentes níveis de com-petência da escrita; segundo a visão do profes-sor, quase sempre, os bons alunos continuamescrevendo bem e os fracos nunca aprendem aescrever. Nesse impasse, os professores corrempara os cursos sobre redação escolar, pensan-

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A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? Uma breve reflexão lingüística para não lingüistas

do em descobrir fórmulas mágicas que resol-vam o problema.

A prática da escrita precisa, então, ser inau-gurada na sala de aula como uma atividade so-cial (e não como instrumento de avaliação es-colar) do cotidiano dos nossos alunos. O queescrevem eles? Como podem inserir o hábitoda escrita como facilitador das suas tarefas di-árias? Aconselho, como primeiro passo, a rea-lização de debates ou projetos de pesquisa so-bre a consciência da transformação que a es-crita trouxe para a humanidade, sobre a pre-sença da escrita na vida de cada um, sobre odesejo de novas aprendizagens de escrita den-tro dos vários projetos individuais. Os alunosseriam convidados a revelar, em sala de aula,suas práticas de escrita, seus registros pesso-ais, identificando a presença da escrita nos seusafazeres. A partir daí, explorariam a funciona-lidade da escrita nos vários espaços urbanos,nos meios de comunicação, nas diversas esfe-ras sociais. O conjunto de mensagens observa-das seria objeto de análise lingüística do pontode vista da adequação da linguagem, da esco-lha de significantes e significados. Enfim, cabeao professor desenvolver no aluno a posturade investigador da linguagem, descobrindo ovalor real de cada palavra, reconhecendo o quefoi dito pelo poeta: “Entre palavras e combina-ções de palavras / circulamos, vivemos, mor-remos e palavras somos, / finalmente, mas comque significado que não sabemos ao certo?”(Drummond).

A partir dessa conscientização, o professorpode negociar com o grupo o planejamento deetapas de projetos de pesquisa. As redações nãodevem ser peças individuais para serem“corrigidas” e guardadas ou rasgadas; ao con-trário, os textos individuais devem ser preser-vados como peças de um texto coletivo, comotestemunhei, certa vez, em um projeto de es-crita de uma classe de 4ª série. Cada equipe dasala, animadamente, participou da construçãode uma revista em quadrinhos – criaram ospersonagens em desenhos e colagens, decidi-ram coletivamente o script da estória, dividi-ram as tarefas. No final da unidade, as revistaseram o produto da construção de cada grupo; a

satisfação era geral e as revistas foram trocadase até vendidas entre eles e familiares.

Acredito que a implantação de oficinas deescrita pode ser um bom caminho para aviabilização de projetos variados, em que a es-crita esteja integrada em metas do trabalho co-letivo, dentro de limites flexíveis de tempo,permitindo que o texto passe pelas diversas eta-pas de elaboração de forma cuidadosa; o pro-fessor faz a mediação do trabalho, orienta so-bre as idéias apresentadas, sobre a estruturatextual, dando oportunidade para que o textoseja reescrito, repensado. A partir das reformu-lações textuais, o aluno vai aprendendo a reela-borar o texto, a remodelar suas idéias, a trans-formar seus “erros” em acertos.

Sobre a operacionalização dessas oficinasde escrita, no que se refere às normas lingüísti-cas, os professores ficam muito inseguros nacondução da abordagem. Respondo às suas in-quietações, afirmando que há sempre lugar paraqualquer variante lingüística; que, ao adotaruma diversidade de textos, naturalmente sur-girá uma multiplicidade de vozes. Ainda incon-formados, perguntam-me como ajudar o alunoa superar as questões ortográficas que refletemo espelhamento da língua oral. O principal pas-so, mais uma vez, é a conscientização sobre asdiferenças entre códigos da língua oral e escri-ta; o trabalho de análise contrastiva de elemen-tos lingüísticos pode, por exemplo, ser bemsucedido através de exercícios de comparaçãoque mostrem um texto escrito e a transcriçãode um texto falado retratando um mesmo fato.Atividades desse tipo ajudam o aluno a apren-der a monitorar sua própria escrita.

Nas oficinas de ler e escrever o mundo, deler e escrever a palavra, o aluno vai compreen-dendo que há lugar para todas as “normas lin-güísticas”, que a adequação (e não a “corre-ção”) de uma ou outra norma surge naturalmen-te a partir dos diversos contextos de comuni-cação – quem fala, o que fala, para quem fala,sobre o que fala, onde fala, para que fala – en-quanto o professor se propõe a mediar essastrilhas da linguagem, descortinando paisagensde significantes e significados verbais e nãoverbais, de metáforas escondidas, de pontua-

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Kátia Maria Santos Mota

ções claras ou implícitas, de intenções desper-tadas, que levam a um crescer do desejo deouvir, falar, ler, escrever- enfim, comunicar,interagir, viver.

NOTAS CONCLUSIVAS

Direcionando-me para o fechamento destetexto, quero salientar que as atividades de en-sino de língua materna, aqui apresentadas, cen-tralizam-se em dois pontos básicos: a impor-tância da construção coletiva do conhecimen-to como impulsionadora do desenvolvimentoindividual da capacidade de correlação lingua-gem/pensamento e o processo de socializaçãoda linguagem vinculado à solidificação de iden-

tidades culturais diversas. O tratamento dadoàs normas lingüísticas nas atividades de ensi-no da Língua Portuguesa ressalta o caráteremancipatório da inclusão da diversidade nosdiscursos legitimados pela escola, abrindo es-paço para a afirmação de vozes múltiplas nocontexto escolar, ao mesmo tempo em que pro-move o acesso aos padrões da norma culta apartir da convivência com esferas culturais demaior prestígio social. Ao identificar, monitorare expandir elementos lingüísticos do seu pró-prio discurso, o aluno elabora novas possibili-dades de interação verbal, novas posições po-líticas no espaço social, novas expressões deafirmação de cidadania. O quadro-síntese abai-xo apresenta linhas norteadoras da conduta doprofessor.

Para finalizar, relembramos as primeiras li-ções do grande mestre Paulo Freire ao criar oscírculos de cultura popular como instrumentopedagógico do despertar da consciência críti-ca. O início da jornada pedagógica se concreti-za ao mergulharmos no universo cultural doaluno, acolhendo sua linguagem, suas formasde expressão. As trilhas do caminho vão se ilu-minando a partir do momento em que profes-sores e alunos, criando seus próprios discur-sos, imprimem nos seus textos a singularidadede cada história de vida.

É preciso que o(a) educador(a) saiba que oseu “aqui” e o seu “agora” são quase sempre o“lá” do educando. Mesmo que o sonho do(a)

educador(a) seja não somente tornar o seu“aqui-agora”, o seu saber, acessível ao educan-do, mas ir mais além do seu “aqui-agora” comele ou compreender, feliz, que o educando ul-trapasse o seu “aqui”, para que este sonho serealize tem que partir do “aqui” do educando enão do seu. No mínimo, tem de levar em con-sideração a existência do “aqui” do educandoe respeitá-lo. No fundo, ninguém chega lá, par-tindo de lá, mas de um certo aqui. Isto signifi-ca, em última análise, que não é possível ao(a)educador(a) desconhecer, subestimar ou negaros “saberes de experiência feitos” com que oseducandos chegam à escola. (FREIRE, 1992,p.59)

DIVERSIDADE LINGÜÍSTICA / CONDUTA DO PROFESSOR• Construir uma pedagogia do diálogo.• Respeitar e valorizar a expressão individual do aluno.• Direcionar o ensino da língua materna para o atendimento das funções sociais da comunica-

ção oral e escrita.• Desenvolver o pensamento crítico nas atividades de leitura e escrita.• Estimular a criatividade lingüística na produção de textos orais e escritos.• Promover o convívio com variantes lingüísticas situadas em contextos reais de comunicação.• Conduzir a análise contrastiva de elementos lingüísticos marcadores de variações lingüísticas.• Identificar e analisar fatos da norma lingüística predominante no grupo, reconhecendo o seu

grau de adequação aos contextos sociais enfocados.• Desenvolver a consciência metalingüística do aluno, apresentando estratégias de auto-

monitoramento lingüístico.• Ajudar o aluno a se tornar um cidadão capaz de usar a língua efetivamente como instrumen-

to de comunicação e de afirmação identitária.

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A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? Uma breve reflexão lingüística para não lingüistas

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Jaciete Barbosa dos Santos

A “DIALÉTICA DA EXCLUSÃO/INCLUSÃO” NA HISTÓRIA

DA EDUCAÇÃO DE ‘ALUNOS COM DEFICIÊNCIA’

Jaciete Barbosa dos Santos *

RESUMO

Este artigo faz parte das reflexões contidas na dissertação de mestrado daautora, que foi defendida em agosto de 2002, intitulada Representaçõessociais dos estudantes de Pedagogia sobre “alunos com deficiência”. Otexto propõe uma reflexão sobre as atitudes sociais, apresentadas histori-camente, no tratamento dado às pessoas com deficiência, desde a antigui-dade clássica até o contexto contemporâneo de implementação de políti-cas educacionais voltadas para inclusão de “alunos com deficiência”. Con-sidera-se que a Educação Inclusiva esbarra na problemática da “dialéticada exclusão/inclusão”, porque sua efetivação implica mudanças estrutu-rais na sociedade e nos sistemas educacionais. Dentre essas mudanças,destaca-se a formação inicial docente, abordada na segunda parte do texto,através do confronto entre: políticas de inclusão de “alunos com deficiên-cia” no Brasil X formação inicial de educadores no curso de Pedagogia.Optou-se por abordar o curso de Pedagogia porque é o único curso denível superior com experiência paralela na formação inicial de educadorespara os ramos de ensino regular e especial. Com a proposta de EducaçãoInclusiva, há uma tendência desses dois ramos de ensino se unirem parainstaurar uma “escola para todos”, “inclusiva” e “aberta à diversidade”,conforme determina o MEC.Palavras-chave: Inclusão – Exclusão – Deficiência – Diversidade – Cur-so de Pedagogia – Educação inclusiva – Formação docente

ABSTRACT

THE “EXCLUSION/INCLUSION DIALECTS” IN THE HISTORYOF EDUCATION OF ‘IMPAIRED STUDENTS’This article is part of the reflections contained in the masters dissertationof the author, that was defended in August 2002, entitled Socialrepresentations of the pedagogy students on “impaired students”. The textproposes a reflection on the social attitudes, historically presented, in thetreatment given to the impaired, from the classic antiquity to the

* Professora de História da Educação e de Educação Especial do curso de Pedagogia, no Departamento deEducação do Campus XI, na cidade de Serrinha-BA. Licenciada em Pedagogia, especialista em Alfabetiza-ção (IAT-FEBA/BA), Supervisão Escolar (UEFS/BA), Leitura (PUC/RJ) e Mestre em Educação Especial(UEFS/BA – em Convênio com o CELAEE – Centro de Referencia Latino-americano de la EducaciónEspecial – Cuba). Endereço para correspondência: Rua Afonso Celso, nº 185, edifício Francisco de Góes,apt. 604, Barra, 40 140 180 - Salvador/BA. E-mail: [email protected] ou [email protected].

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A “dialética da exclusão/inclusão” na história da educação de ‘alunos com deficiência’

contemporary context of the implementation of educational politics directedto the inclusion of “impaired students”. One considers that the IncludingEducation is blocked in the problematic of the “inclusion/exclusion dialect”,because its effectivation implies in structural changes in society and ineducational systems. Among these changes, one highlights the initial teacherqualification, approached in the second part of the text, through theconfrontation between the politics of the inclusion of “impaired students”in Brazil and the initial teacher qualification in the Pedagogy course. ThePedagogy course is the only graduate course with a parallel experience inteacher qualification, for the branches of regular and special education.With the Including Education proposal, there is a tendency of these twobranches of education to be united for establishing a “for all school”,“including” and “open to diversity”, as determined by MEC.Key words: Inclusion – Exclusion – Deficiency – Diversity – Pedagogycourse – Including education – Teacher qualification

RÉSUMÉ

La dialectique de l’exclusion/inclusion dans l’histoire del’éducation des “élèves déficients”

Cet article fait partie des réflexions contenues dans le mémoire de l’auteurqui a été soutenu en août 2002, appellé Les répresentations sociales desétudiants de Pédagogie sur des “éleves avec des déficiences”. Le textepropose une réflexion sur les attitudes sociales présentées historiquementdans le traitement donné aux personnes avec des déficiences, depuisl’antiquité classique jusqu’au contexte contemporain d’éxecution depolitiques éducationelles consacrées à l’inclusion des “élèves avec desdéficiences”. On considère que l’Éducation Inclusive touche le problèmede la “dialectique de l’exclusion/inclusion”, parce que sa réalization exigedes changements estructurelles dans la société e dans les sistèmeséducationelles. Parmi ces changements, il y a la formation initiale duprofesseur, dont l’auter parle dans la deuxième partie du texte, à travers laconfrontation entre: des politiques d’inclusion des “élèves avec desdéficiences” au Brésil X la formation initiale des professeurs dans le coursde Pédagogie. On a choisie parler sur le cours de Pédagogie parce quec’est le seul cours supérieur avec une expérience parallèle dans la formationinitiale de professeurs pour le domaine d’enseignement régulier e special.Avec la proposition de l’Éducation Inclusive, il y a une tendence de queces deux lignes d’enseignement puisse s’unir pour inaugurer une “écolepour tous”, “inclusive” et “ouverte à la diversité”, selon détermination duMEC.Mots clés: Inclusión – Exclusión – Déficience – Diversité – Cours dePédagogie – Éducation inclusive – Formation des professeurs

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Jaciete Barbosa dos Santos

A Educação Especial contemporânea passapor um momento muito importante, que se ca-racteriza pelo seu encontro com a EducaçãoComum, inaugurando um novo movimento de-nominado Educação Inclusiva. Este movimen-to não surgiu ao acaso, mas é conseqüência dastransformações ocorridas nas atitudes sociais queforam se estabelecendo ao longo da história, emrelação ao tratamento dado às pessoas com de-ficiência. Afinal, não se pode falar sobre Edu-cação Especial sem pensar na questão da defici-ência. Nas sociedades ocidentais não existemmuitas informações disponíveis sobre como erao tratamento dado às pessoas com deficiêncianos tempos mais antigos. Há um grande silên-cio na história oficial quando se trata de abordara trajetória de sujeitos excluídos da vida políti-ca, econômica e social, como ocorria com aspessoas com deficiência. Dentre as informaçõesdisponíveis no Brasil, destacam-se o trabalho deAmaral (1997 e 1995), que apresenta um per-curso histórico sobre as representações da defi-ciência e o trabalho de Mazzota (1996 e 1993),que retrata de forma sucinta atitudes sociaissubjacentes ao tratamento dado às pessoas comdeficiência.

Amaral relaciona as representações sobre adeficiência com concepções bíblica, filosóficae científica presentes em diferentes contextoshistóricos. Na Antigüidade Clássica, a segre-gação e o abandono das pessoas com deficiên-cia eram institucionalizados; na Grécia, as pes-soas com deficiência eram mortas ou abando-nadas à sua sorte, como se expostas publica-mente; em Roma, havia uma lei que dava o di-reito ao pai de eliminar a criança logo após oparto. A concepção filosófica dos greco-roma-nos legalizava a marginalização das pessoascom deficiência, à medida em que o próprio“Estado tinha o direito de não permitir cida-dãos disformes ou monstruosos e, assim sen-do, ordenava ao pai que matasse o filho que

nascesse nessas condições” (Amaral, 1995,p.43). Na Idade Média, a visão cristã correlacio-nava a deficiência, especialmente a cegueira, àculpa, pecado ou qualquer transgressão morale/ou social. Predominava a concepção bíblica,segundo a qual as pessoas com deficiência eramvistas como portadoras de culpa ou pecado. Adeficiência era a marca física, sensorial oumental desse pecado, que impedia o contatocom a divindade, conforme está explícito nosescritos bíblicos: “O Senhor disse a Moisés:dize à Arão o seguinte: homem algum de tualinhagem, por todas as gerações, que tiver umdefeito corporal, oferecerá o pão de Deus. Des-se modo, serão excluídos todos aqueles que ti-verem uma deformidade: cegos, coxos, muti-lados, pessoas de membros desproporciona-dos.” (LEVÍTICO, cap. 21, vs. 16-19)

A concepção bíblica legitimava a segrega-ção das pessoas com deficiência em nome da“lei divina”, presente nas escrituras sagradas.A primeira tentativa científica de estudo daspessoas com deficiência surgiu no século XVIcom Paracelso e Cardano, médicos alquimis-tas que defendiam a possibilidade de tratamentoda pessoa com deficiência. Mas a consolida-ção da concepção científica sobre a deficiên-cia só aconteceu no século XIX com os estu-dos de Pinel, Itard, Esquirol, Seguim, Morel,Down, Dugdale, Froebel, Guggenbuehl, entreoutros, que passaram a descrever cientificamen-te a etiologia de cada deficiência numa pers-pectiva clínica. Cabe ressaltar que, apesar des-sas contribuições científicas, a primeira meta-de do século XX ainda ficou marcada pela atu-ação do Nazismo no sentido de ter provocadoa eliminação bárbara de pessoas com deficiên-cia. Verifica-se que, paralelamente à consoli-dação da concepção científica da deficiência,ainda hoje ocorrem atitudes sociais de margina-lização das pessoas com deficiência, semelhan-tes aquelas vividas na Antigüidade Clássica.

Como trágica ladainha a memória boba se repete. A memória viva, porém, nasce a cada dia,porque ela vem do que foi e é contra o que foi. Aufheben era o verbo que Hegel preferia,

entre todos os verbos do idioma alemão. Aufheben significa, ao mesmo tempo, conservar eanular; e assim presta homenagem à história humana, que morrendo nasce e rompendo cria.

(Eduardo Galeano, O Livro dos Abraços)

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A “dialética da exclusão/inclusão” na história da educação de ‘alunos com deficiência’

Os estudos de Mazzota apontam três atitu-des sociais que marcaram a história da Educa-ção Especial no tratamento dado às pessoas comdeficiência: “marginalização, assistencialismoe educação/reabilitação” (MAZZOTA, 1993,p.14). A marginalização é caracterizada comouma atitude de descrença na possibilidade demudança das pessoas com deficiência, o queleva à completa omissão da sociedade em rela-ção à organização de serviços para essa popu-lação. O assistencialismo é uma atitude marca-da por um sentido filantrópico, paternalista ehumanitário, porque permanece a descrença nacapacidade de mudança do indivíduo, acom-panhada pelo principio cristão de solidarieda-de humana, que busca apenas dar proteção àspessoas com deficiência. A educação/reabili-tação apresenta-se como uma atitude de cren-ça na possibilidade de mudança das pessoascom deficiência e as ações resultantes dessaatitude são voltadas para a organização de ser-viços educacionais. Cabe ressaltar que o fatode uma concepção ou atitude social predomi-nar em determinado período não significa queas concepções e atitudes não convivam juntasem um mesmo contexto

Diante do exposto, observa-se que existeuma relação entre as representações sociaissobre a deficiência (descritas por Amaral) e asatitudes sociais (descritas por Mazzota). A con-vergência desses estudos permite fazer umaleitura mais aprofundada da história da educa-ção dos “alunos com deficiência” 1. Numa rá-pida análise da trajetória da Educação Especi-al, é possível identificar que o período que an-tecede o século XX é marcado por atitudes so-ciais de exclusão dos “alunos com deficiência”,porque eles eram considerados indignos de umaeducação escolar. Apesar dos estudos científi-cos da época tentarem demonstrar às possibili-dades de tratamento da deficiência, predomi-navam as concepções filosóficas e bíblicas demarginalização e segregação dessas pessoas.Na década de 50, começaram a surgir as pri-

meiras escolas especializadas e as classes es-peciais; a Educação Especial se consolidavacomo um subsistema da Educação Comum. Éum período onde predominava a concepçãocientífica da deficiência, acompanhada pelaatitude social do assistencialismo presente naIdade Média e reproduzido pelas instituiçõesfilantrópicas de atendimento aos “alunos comdeficiência”.

Na década de 70, os “alunos com deficiên-cia” começaram a ser admitidos nas classescomuns com o surgimento da proposta deintegração. Os avanços dos estudos nas áreasda Psicologia e Pedagogia passaram a demons-trar as possibilidades educativas desses alunos.Predominava a atitude de educação/reabilita-ção como novo paradigma educacional. Entre-tanto, coexistia também uma atitude demarginalização por parte dos sistemas educa-cionais, que não ofereciam as condições ne-cessárias para que os “alunos com deficiência”alcançassem o sucesso na escola regular.

Segundo Mrech (1998), a proposta de Edu-cação Inclusiva surgiu nos Estados Unidos, em1975, com a lei pública nº 94.142, que abriupossibilidades para entrada de “alunos comdeficiência” na escola comum. Os pressupos-tos que levaram os Estados Unidos a implemen-tarem essa proposta têm raízes nas tendênciaspós-guerra. O governo norte-americano procu-rava minimizar os efeitos da guerra por meiode um discurso que prometia assegurar direi-tos e oportunidades em um plano de igualdadea todos os cidadãos. Os “alunos com deficiên-cia” foram inseridos nesse plano e “conquista-ram o direito” de estudar em escolas regulares.Nessa perspectiva, a Educação Inclusiva nor-te-americana limitava-se apenas à inserção fí-sica de “alunos com deficiência” na rede co-mum de ensino, nos mesmos moldes do movi-mento de integração; esses alunos só eram con-siderados integrados quando conseguiam seadaptar à classe comum, da forma como estase apresentava, sem fazer modificações no sis-tema de ensino já estabelecido. Verifica-se,outra vez, a coexistência das atitudes de edu-cação/reabilitação e de marginalização em ummesmo contexto educacional.

1 O uso da expressão “alunos com deficiência” é produ-to de uma reflexão teórica que será explicitada no decor-rer do texto.

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Nas décadas de 80 e 90, apareceu a propos-ta de Inclusão de “alunos com deficiência”,numa perspectiva inovadora com relação à pro-posta de integração da década de 70, cujos re-sultados não modificaram muito a realidadeeducacional de fracasso desses alunos. O quemuda na proposta de Inclusão é que os siste-mas educacionais passam a ser responsáveis porcriar condições de promover uma educação dequalidade para todos e fazer adaptações queatendam às necessidades educativas especiaisdos “alunos com deficiência”. Com o surgi-mento dessa proposta educativa, o conceito deEducação Inclusiva se amplia na década de 90– deixa de ser “apenas” a inserção física de“alunos com deficiência” – e passa a ser enten-dido como:

(...) a inserção escolar de pessoas com deficiên-cia nos níveis pré-escolar, infantil, fundamen-tal, médio e superior. Esse paradigma é o da in-clusão social – as escolas (tanto comuns comoespecial) precisam ser reestruturadas para aco-lherem todo espectro da diversidade humanarepresentado pelo alunado em potencial, ou sejapessoas com deficiências físicas, mentais, sen-soriais ou múltiplas e com qualquer grau de se-veridade dessas deficiências, pessoas sem defi-ciências e pessoas com outras característicasatípicas, etc. É o sistema educacional adaptan-do-se às necessidades de seus alunos (escolasinclusivas), mais do que os alunos adaptando-seao sistema educacional (escolas integradas).(SASSAKI, 1998, p.9)

Portanto, a Educação Inclusiva se contra-põe à homogeneização padronizada de alunos,conforme critérios que não respeitam a diver-sidade humana. Cabe ressaltar que a deficiên-cia é considerada como uma “diferença” quefaz parte dessa diversidade e não pode ser ne-gada, porque ela interfere na forma de ser, agire sentir das pessoas. Segundo a Declaração deSalamanca, para promover uma Educação In-clusiva, os sistemas educacionais devem assu-mir que “as diferenças humanas são normais eque a aprendizagem deve se adaptar às neces-sidades das crianças ao invés de se adaptar acriança a assunções preconcebidas a respeitodo ritmo e da natureza do processo de aprendi-zagem” (BRASIL. Ministério da Justiça, 1994,

p.4). Nesse sentido, teoricamente, a EducaçãoInclusiva visa a reduzir todas as pressões quelevem à exclusão e todas as desvalorizaçõesatribuídas aos alunos, seja com base em suaincapacidade, rendimento cognitivo, raça, gê-nero, classe social, estrutura familiar, estilo devida ou sexualidade. Entretanto, será que associedades e os sistemas educacionais estãopreparados para realizar essa Educação Inclu-siva? Será que as sociedades e os sistemas edu-cacionais modificaram suas concepções e ati-tudes no tratamento dado aos “alunos com de-ficiência”?

O educador cubano Rafael Bell Rodríguez(2001) adverte que falar de Educação Inclusiva,sem pensar na realidade social de exclusão a quea maioria dos povos está condenada, representauma ingenuidade intelectual. As estatísticas dedesemprego, fome, analfabetismo e violênciarevelam um cenário internacional dominadopelas diferentes formas de exclusão social, onde“realidades como estas, lamentablemente, no sonexcepción sino más bein regla de un mundo ca-racterizado por la globalización neoliberal, enel que hablar de diversidad es casi una paraoja”(RODRIGUÉZ, 2001, p.63). Como desenvol-ver a Educação Inclusiva dentro de uma reali-dade social que ora exclui boa parte da popula-ção, por questões sócio-econômicas, ora se pro-põe a incluir “alunos com deficiência”, que his-toricamente foram excluídos do sistema regularde ensino? Será que se deve negar as possibili-dades da proposta de Educação Inclusiva devi-do ao contexto social de exclusão da sociedadecontemporânea? Será que é possível aproveitara proposta de Educação Inclusiva para criar me-canismos de ação que levem à construção de umasociedade inclusiva? Questionamentos comoesses encaminham a inclusão de “alunos comdeficiência” para problemática da “dialética daexclusão/inclusão” 2. De acordo com Sawaia, talexpressão é utilizada para explicitar as contra-dições e complexidades da exclusão social. Tra-

2 A expressão “dialética da exclusão/inclusão” é utiliza-da por Sawaia para definir a exclusão como processodialético de “inserção social perversa” (SAWAIA, 1999,p. 08).

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A “dialética da exclusão/inclusão” na história da educação de ‘alunos com deficiência’

ta-se de um “conceito-processo” capaz de indi-car o “movimento” e não a “essencialidade” queas palavras “exclusão” e “inclusão’ assumem nocontexto contemporâneo: “Ambas não consti-tuem categorias em si, cujo significado é dadopor qualidades específicas e invariantes, conti-das em cada um dos termos, mas que são da mes-ma substância e formam um par indissociável,que se constitui na própria relação.” (SAWAIA,1999, p.108)

Os estudos de Sawaia indicam que na socie-dade ocidental contemporânea as formas de in-cluir e reproduzir a miséria variam e podem semanifestar de maneira contraditória, “quer re-jeitando-a e expulsando-a da visibilidade, queracolhendo-a festivamente, incorporando-a à pai-sagem como algo exótico” (SAWAIA, 1999,p.108). O tratamento dado socialmente aos “alu-nos com deficiência” expressa semelhança comas formas de inclusão e reprodução da misériadescritas pela autora; historicamente esses alu-nos foram rejeitados e expulsos da visibilidadedo sistema regular de ensino, enquanto que, nocontexto educacional contemporâneo, eles de-vem ser “acolhidos” e “incorporados” à paisa-gem da escola regular. Quando se articulam osprincípios teóricos da Educação Inclusiva coma realidade educacional de países marcados pe-las desigualdades sociais, as contradições daproposta de inclusão aparecem. A análise da“dialética exclusão/inclusão” procura compre-ender as diferentes dimensões da exclusão, den-tre as quais: “(...) a qualidade de conter em si asua negação e de não existir sem ela, isto é, seridêntico à inclusão (inserção social perversa). Asociedade exclui para incluir e esta transmutaçãoé condição da ordem social desigual, o que im-plica o caráter ilusório da inclusão.” (SAWAIA,1999, p.8)

Na trajetória que vai da falta de atendimen-to educacional de “alunos com deficiência” epassa pela consolidação da Educação Especialenquanto subsistema até chegar à proposta deEducação Inclusiva, verifica-se que muitas bar-reiras foram derrubadas no que se refere aoatendimento educacional de “alunos com defi-ciência”. Contudo, ainda existem muitas ou-tras a serem enfrentadas, pois a segregação e a

marginalização das pessoas com deficiênciapermanecem no imaginário sociocultural deindivíduos e/ou grupos sociais. As denomina-ções utilizadas para se referir às pessoas comdeficiência ao longo dessa história revelam es-sas barreiras e expressam limites na propostade Educação Inclusiva. No contexto contem-porâneo, é possível encontrar no mesmo cená-rio educacional expressões como: inválidos,anormais, excepcionais, incapacitados, subnor-mais, deficientes, portador de deficiência eportadores de NEE - Necessidades EducativasEspeciais. Cabe ressaltar que a denominaçãoutilizada nos documentos oficiais das políticasde Educação Inclusiva é “portadores de NEE”3.Trata-se de uma nova denominação que pro-cura minimizar os efeitos estigmatizadores dasterminologias anteriores, desfocando a defici-ência do aluno. Contudo, será que a mudançade terminologia resolve o problema da estigma-tização dos “alunos com deficiência”?

Existem posicionamentos críticos que con-sideram a expressão portadores de NEE exces-sivamente vaga. Bueno (1997) alerta para operigo dessa expressão, que, ao abrigar umadiversidade de sujeitos, pode ganhar na ampli-tude de sentidos e na quebra da estigmatização,mas perde muito na precisão de seus significa-dos. Essa imprecisão conceitual pode abrir es-paços para que um grande grupo de alunos, quenão apresentam deficiência, sejam excluídosdas escolas regulares, em algum momento, coma justificativa de que são portadores de NEE,sem que se evidencie que o problema nada tema ver com as características do aluno, mas comas características do processo pedagógico ina-dequado da escola. Em contrapartida, alunosportadores de NEE que apresentam uma defi-ciência a qual exige maiores cuidados, podem,também, ser relegados pela falta de atenção asua especificidade. Outra crítica a respeito des-

3 A expressão portadores de NEE surgiu com os movi-mentos de integração e inclusão para designar “a pessoaque apresenta, em caráter permanente ou temporário, al-gum tipo de deficiência física, sensorial, cognitiva, múl-tipla, condutas típicas ou altas habilidades” (BRASIL.Secretaria de Educação Especial. Política Nacional deEducação Especial, 1994, p. 22).

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sa terminologia refere-se ao vocábulo “porta-dores”, que antecede a sigla NEE, pois a ce-gueira, a síndrome de Down, a paralisia cere-bral, a surdez, etc. são condições que integramos seres e não podem ser vistas como um fardoa ser carregado. A deficiência faz parte da iden-tidade desses seres; negá-la é colocar, mais umavez, a inclusão de “alunos com deficiência” naanálise da “dialética da exclusão/inclusão”.

Diante dessa reflexões, verifica-se que é pre-ciso cuidado na escolha de uma terminologia,pois esta pode determinar concepções e atitudessociais que contradizem seu próprio discurso.Neste estudo, optou-se pela expressão “alunocom deficiência”, já que a mesma permite umaidentificação imediata dos sujeitos, objeto destareflexão, quais sejam: alunos com deficiênciasensorial (auditiva ou visual), física, mental e/ou múltipla. “A tentativa de amenizar o caráterestigmatizante destas denominações, procuran-do dar um sentido de maior inserção social, tematendido mais uma onda do “politicamente cor-reto” do que se traduzido em práticas diferenci-adas.” (SILVA, 2001, p.180).

Considera-se que a utilização do termo alu-no portador de NEE é um fator complicador,na medida em que exige sempre uma explica-ção ou adjetivação do termo. Como bem assi-nalou Jannuzzi (1985), a variação terminológi-ca é uma constante e mais parece destinada aminimizar a forma pejorativa que essas pessoassão concebidas socialmente. Uma vez que apresente reflexão busca a análise da “dialéticada exclusão/inclusão” para melhor compreen-der a história da educação dos “alunos com defi-ciência”, torna-se prudente utilizar uma expres-são que traduza o sentido claro, direto e objeti-vo da temática abordada.

Embora não ocorra uma assimilação no usoda terminologia oficial de “alunos portadoresde NEE”, isso não implica que não se compar-tilhe dos pressupostos da proposta de Educa-ção Inclusiva. Considera-se, neste trabalho, quea Educação Inclusiva é um dos caminhos pos-síveis para que países marcados por desigual-dades sociais enfrentem problemas de exclu-são social e educacional por meio das mudan-ças sugeridas a partir da inclusão de “alunos

com deficiência” no sistema regular de ensino.O respeito à diversidade é um dos pilares bási-cos da Educação Inclusiva. Assim, “(...) laescuela debe ser una institución abierta a ladiversidad que se responsabilice con garantizareducación de calidad para todos sus alumnos,a pesar de sus diferencias.” (MACHIN, 1996,p.5). A Educação Inclusiva, talvez, seja umadas alternativas para os sistemas educacionaiscomeçarem a romper com suas diferentes for-mas de exclusão educacional.

Contudo, os estudiosos da Educação Inclu-siva – Rodríguez (2001), Edler (2000), Werneck(1999), Sassaki (1998), Mantoan (1997), entreoutros – assinalam que, para viabilizar as estra-tégias transformadoras e concretizar as açõespráticas que a situação de cada instituição edu-cacional exige, é preciso vontade política dosdirigentes, recursos econômicos e competênciados sistemas educacionais. A conquista dessascondições passa necessariamente pela elabora-ção de um projeto educacional coletivo, com aparticipação de todos os integrantes da escola:alunos, professores, pais, funcionários e comu-nidade, em prol de uma escola de qualidade paratodos. Esse projeto pressupõe, antes de tudo, aparticipação de educadores comprometidos comuma prática educativa orientada por concepçõesotimistas sobre o potencial educativo de todosos alunos, especialmente dos “alunos com defi-ciência”. Para que isso ocorra, é necessária umaformação docente que ofereça competência téc-nica e compromisso profissional, fato que enca-minha essa reflexão a articular políticas de in-clusão de “alunos com deficiência” com políti-cas de formação docente.

Políticas de inclusão de “alunos comdeficiência” no Brasil X Formação ini-cial de educadores no curso de Pe-dagogia

Somos, enfim, o que fazemos para transformaro que somos. A identidade não é uma peça demuseu, quietinha na vitrine, mas a sempre as-sombrosa síntese das contradições nossas de cadadia. (Eduardo Galeano, O livro dos Abraços)

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A “dialética da exclusão/inclusão” na história da educação de ‘alunos com deficiência’

O Brasil assumiu legalmente a proposta deEducação Inclusiva, na medida em que com-partilhou com os princípios da Declaração deEducação para Todos (Brasil. UNICEF, 1990)e da Declaração de Salamanca (BRASIL. Mi-nistério da Justiça, 1994), documentos inter-nacionais que lançaram raízes para a expansãoda proposta de Inclusão no mundo inteiro. Apolítica de Educação Inclusiva foi introduzidanas políticas públicas do sistema educacionalbrasileiro através da PNEE - Política Nacionalde Educação Especial (BRASIL. Ministério daEducação. Secretaria de Educação Especial,1994), da nova LDB - Lei de Diretrizes e Baseda Educação Nacional (BRASIL. Senado Fe-deral: Lei de nº 9394/96,1997), do PCN -Parâmetro Curricular Nacional - de AdaptaçõesCurriculares para a Educação de alunos comNEE (BRASIL. Ministério da Educação. Se-cretaria de Educação Fundamental/Secretariade Educação Especial, 1999), da publicação daPortaria de nº 1.679 (BRASIL. Ministério daEducação, 1999) e do PNE - Plano Nacionalde Educação (BRASIL. Senado Federal, 2000).Estes documentos demonstram que a propostade Educação Inclusiva está oficialmente insti-tuída no Sistema Educacional Brasileiro.

A PNEE - Política Nacional de EducaçãoEspecial - constitui um grande avanço em rela-ção à compreensão do papel da Educação Es-pecial no processo de inclusão de “alunos comdeficiência”. O documento apresenta ummapeamento da situação da Educação Especi-al no Brasil, faz uma revisão conceitual das ter-minologias e propõe objetivos para a políticade Educação Especial no que se refere à inclu-são de “alunos com deficiência”. Sugere que aconcretização desses objetivos depende da par-ticipação conjunta dos três níveis governamen-tais (federal, estadual e municipal), e da socie-dade como um todo. Entretanto, a PNEE nãodetermina oficialmente o cumprimento das res-ponsabilidades concernentes a esses objetivose ainda traz muito do caráter assistencialista daEducação Especial, pois enfatiza o atendimen-to clínico em detrimento do tratamento educa-cional dos “alunos com deficiência”. Esse do-cumento retrata uma fase de transição entre a

“assistência aos deficientes” e a “educação es-colar”.

A nova LDB - Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional - sancionada em dezembrode 1996, possui um capítulo dedicado à educa-ção de “alunos com deficiência”, que prevê emseu Artigo 58, § 1º e § 2º, o atendimento aos“portadores de NEE”, preferencialmente nasclasses regulares da rede de ensino, onde de-vem ser oferecidos, quando necessários, servi-ços de apoio especializado para atender às pe-culiaridades do alunado. O atendimento emclasses, escolas ou serviços especializados sódeverá ser oferecido quando não for possível aintegração desses alunos em classes regulares,devido às suas condições específicas4. No Ar-tigo 59, a Lei prevê, entre outras condições,que sejam assegurados, pelos sistemas de en-sino: currículos, métodos, técnicas, recursoseducativos e organização específica para o aten-dimento aos portadores de NEE

O PCN - Parâmetro Curricular Nacional -de Adaptações Curriculares e Estratégias paraa Educação de alunos com NEE, publicado em1999, apresenta informações e orientações parao professor do ensino regular atender às neces-sidades educativas especiais dos “alunos comdeficiência” a partir da consolidação da políti-ca de Educação Inclusiva no Brasil. Esse do-cumento apresenta um rol de estratégias paraos docentes utilizarem em classe, de acordocom os diferentes tipos de “necessidades educa-tivas especiais”, descritas no corpo do docu-mento. Para favorecer a inclusão de “alunoscom deficiência”, são apresentados vários pro-cedimentos de ensino, recomendados pelo sis-tema educacional brasileiro na perspectiva deassegurar uma educação aberta à diversidade.De modo geral, o referido documento dá umaênfase muito grande ao papel do professor, ain-da que permaneçam inalteradas as condiçõesde formação, especialização e remuneração dodocente. Contudo, apenas a “boa vontade” do-cente não dá conta de superar os desafios da

4 As condições específicas se referem às necessidadesespeciais advindas da deficiência que exigem um trata-mento mais clínico.

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prática educativa de inclusão de “alunos comdeficiência”. São necessários investimentos naformação inicial e continuada dos docentes,bem como melhoria das condições materiaisde trabalho. Infelizmente o documento é omis-so nessa questão.

A Portaria de nº 1.679, publicada em 1999,exige que as Instituições de Ensino Superiorofereçam condições de acessibilidade para osportadores de NEE, como requisito para o seucredenciamento legal, junto ao Ministério daEducação. Com essa portaria, o sistema edu-cacional brasileiro abriu possibilidades para aentrada de “alunos com deficiência” no ensinosuperior. Algumas universidades removerambarreiras arquitetônicas para atender ao requi-sito estabelecido. Contudo, os docentes do en-sino superior ainda não foram preparados paraatuar com a inclusão de “alunos com deficiên-cia”. As experiências de inclusão no ensinosuperior demonstram que os “alunos com defi-ciência” enfrentam muitas barreiras pedagógi-cas5. Além dessas barreiras, falta formação equalificação dos docentes do ensino superiorpara atuar com a inclusão de “alunos com defi-ciência” na prática educativa.

O PNE - Plano Nacional de Educação - apro-vado e publicado em 2000, sugere uma intera-ção entre docentes da Educação Especial e daEducação Regular, como uma das ações neces-sárias para efetivação da Educação Inclusiva.Enfatiza, ainda, a importância de se redefiniros conceitos sobre deficiência no Brasil, suge-rindo o uso das novas tecnologias da comuni-cação e da informação para educação dos “alu-nos com deficiência”. O documento propõe,inclusive, o estabelecimento de parcerias paramelhorar o atendimento aos referidos alunos,por meio de adaptações de veículos, ambien-tes, materiais etc. Contudo, no que se refere àformação de docentes para atuar na EducaçãoInclusiva, o PNE deixa um grande silêncio.Outra crítica feita ao PNE refere-se ao seu ca-ráter meramente descritivo, porque não sãoamarradas as responsabilidades para garantir ocumprimento dessas ações.

As conquistas legislativas apresentadas nes-ses documentos demarcam a intenção do go-

verno brasileiro em implantar a proposta deEducação Inclusiva em seu sistema educacio-nal. Entretanto, existe uma distância muitogrande entre a intenção e ação no sistema edu-cacional brasileiro, pois mudanças legislativasnão implicam, necessariamente, em alteraçõesna prática educativa. O Brasil é um país de di-mensões continentais, com uma área de8.511.965 km² e uma população estimada em169.799.170 habitantes, conforme dados doúltimo censo. Implementar políticas de Educa-ção Inclusiva num país com essas dimensõesgeográficas, marcado por elevados índices depobreza, exige competência e compromissopolítico por parte dos dirigentes desse sistema.Os dados estatísticos revelam que a exclusãoescolar ainda é um problema grave no sistemaeducacional brasileiro. No ensino regular, “de1000 crianças que tinham sete anos de idadeem 1980 e conseguiram entrar na primeira sé-rie do Ensino Fundamental, apenas 148 conse-guiram chegar à oitava série em 1987, quandoentão, tinham completado quatorze anos.”(Xavier, 1994, p.15). Portanto, só na décadade oitenta, em cada mil crianças, 852 foramexcluídas, de alguma forma, da sua vida esco-lar. Enquanto isso, no ensino especial os dadosda Secretária de Estatística e Educação6, indi-caram que, do total de 334.507 “alunos comdeficiência” que conseguiram se matricular noano de 1997, 161.725 foram atendidos em es-colas não-governamentais especializadas, equi-vale a dizer, que 48,34% da população de “alu-nos com deficiência” não é atendida nas esco-las do governo. Uma análise qualitativa dessesnúmeros revela que as desigualdades na escola-rização e a seletividade do sistema educacio-nal brasileiro dificultam a concretização das

5 Essas barreiras se traduzem pela indiferença das insti-tuições de ensino superior em atender às necessidadeseducativas especiais dos “alunos com deficiência”, taiscomo: tradução e transcrição de textos escritos em Braillepara alunos cegos, contratação de tradutores da línguade sinais para alunos surdos, etc.6 Dados publicados pelo Informe Estatístico (BRASIL.Ministério da Educação. Secretaria de Estatística da Edu-cação, 1998), referentes ao ano de 1997.

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A “dialética da exclusão/inclusão” na história da educação de ‘alunos com deficiência’

políticas públicas de Educação Inclusiva noBrasil.

Como viabilizar uma proposta de EducaçãoInclusiva numa realidade educacional que apre-senta níveis tão altos de exclusão escolar? Paratransformar uma escola que exclui numa esco-la que inclui é preciso mudanças estruturais naprática social do sistema educacional brasilei-ro. Se os alunos “ditos normais” são excluídosda escola, o que esperar dos resultados da in-clusão dos “alunos com deficiência”? Promo-ver Educação Inclusiva numa sociedademarcada pela exclusão social não é uma tarefafácil. O sistema educacional brasileiro possuimuita discrepância, algumas reveladas estatis-ticamente, mas outras silenciadas institucional-mente. A desarticulação entre a política deEducação Inclusiva com as demais políticaseducacionais desenvolvidas pelo MEC traduzesse silêncio de forma institucionalizada. Apublicação dos Parâmetros Curriculares Naci-onais (PCNs) é um exemplo claro dessa desar-ticulação: PCNs do Ensino Fundamental(1997), da Educação Infantil (1998), do Ensi-no Médio (1998) e os Referenciais para For-mação de Professores (1999) não abordaram aEducação Inclusiva, apesar desses documen-tos serem gestados no mesmo contexto deimplementação da proposta de Educação In-clusiva, conforme se verifica nas datas de pu-blicação. Para compensar tal “esquecimento”,o MEC publicou o PCN de AdaptaçõesCurriculares para os alunos com NEE (1999),com orientações pedagógicas para os docentesexecutarem a proposta de Educação Inclusivaisoladamente. Essa atitude do MEC demonstracomo a problemática da dialética da exclusão/inclusão permeia o sistema educacional brasi-leiro que ora inclui a Educação Inclusiva coma criação de um PCNs de Adaptações Curricu-lares, ora exclui a Educação Inclusiva quandoomite sua abordagem nos demais PCNs do en-sino regular. Se os PCNs dos diferentes níveisde ensino não fazem nenhuma abordagem so-bre a inclusão de “alunos com deficiência”,como esperar que os docentes do ensino regu-lar incluam as informações do PCN de Adap-tações Curriculares em sua prática educativa?

Paralelamente, temas referentes à educação de“alunos com deficiência” permanecem silen-ciados na formação inicial do docente do ensi-no regular, enquanto temas relativos à Educa-ção Comum permanecem excluídos da forma-ção inicial do docente do ensino especial.

Portanto, a implementação da Educação In-clusiva no sistema educacional brasileiro impli-ca em enfrentar a problemática da inclusão/ex-clusão e romper com um silêncio instaurado his-toricamente sobre temas relativos a educação de“alunos com deficiência”, na formação inicialdos docentes do ensino regular. Esse silênciopode dar lugar à reprodução de concepções eatitudes sociais de marginalização e segregaçãono tratamento dado aos “alunos com deficiên-cia”. “O fato da Educação Especial estar virtu-almente excluída do debate educativo é a pri-meira e mais importante discriminação sobre aqual, depois, se projetam sutilmente as demaisdiscriminações [...] civis, legais, laborais, cultu-rais, etc.” (SKLIAR, 1992, p.14).

A prática educativa das escolas regularesindicam que os docentes não possuem prepa-ração mínima para trabalhar com “alunos comdeficiência”. Em contrapartida, a práticaeducativa das escolas especiais indicam que osdocentes também não estão preparados para otrabalho pedagógico desenvolvido no ensinoregular, porque construíram suas práticas nasdificuldades específicas de cada deficiência.Ambas estão imobilizadas diante da realidadeda inclusão de “alunos com deficiência” por-que, historicamente, Educação Especial e Edu-cação Comum foram tratadas isoladamente.Para estabelecer um diálogo, é necessário umamediação entre essas duas modalidades de en-sino que foram tradicionalmente separadas.Werneck (1999), uma das estudiosas da pro-posta de Educação Inclusiva no Brasil, defen-de a tese que a escola regular e a escola especi-al representam uma farsa, porque ambas repro-duzem a humanidade de maneira anômala. Paraessa autora, a Educação Inclusiva apresenta-secomo uma alternativa fundamental para o ho-mem encontrar sua verdadeira humanidade.

A formação inicial tem um papel importan-te na preparação de docentes responsáveis em

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articular e consolidar a prática educativa deinclusão de “alunos com deficiência”. Dentreos cursos de formação inicial de educadores, ocurso de Pedagogia é o que oferece as melho-res condições para construir esse diálogo, pois,conforme Cartolano (1998, p.32), promoveu a“consagração da discriminação já na própriaformação”, com o surgimento da habilitaçãoem Educação Especial, na década de 70. Por-tanto, o referido curso pode integrar suas dife-rentes habilitações para consolidar uma forma-ção necessária à prática educativa de inclusãode “alunos com deficiência”. Pedagogia é oúnico curso de nível superior que possui ins-trumentos teóricos e experenciais na formaçãode docentes do ensino especial e do ensino re-gular, capaz de “consagrar” uma formação co-erente com os pressupostos da proposta deEducação Inclusiva. Paralelamente, o curso dePedagogia é responsável pela formação inicialda maioria dos professores que atuam no ensi-no da Educação Infantil e nas séries iniciais doEnsino Fundamental, níveis de ensino onde seencontra o maior número de alunos da Educa-ção Inclusiva. Segundo o Informe Estatísticodo MEC/INEP (1998), no ano de 1997, dos334.507 alunos matriculados na Educação Es-pecial no Brasil, 85.863 estavam na EducaçãoInfantil, 135.299 estavam no Ensino Funda-mental e apenas 2.091 estavam no Ensino Mé-dio. Esses dados sugerem a necessidade de in-vestimento na formação inicial dos profissio-nais que atuam na Educação Infantil e no Ensi-no Fundamental para que possam atuar na prá-tica educativa de inclusão de “alunos com de-ficiência”.

Todavia, para assumir a formação inicial dedocentes para atuar na Educação Inclusiva, ocurso de Pedagogia precisa rever sua trajetóriadentro das políticas públicas de formação dedocentes no sistema educacional brasileiro, poisquando a formação inicial do professor de Edu-cação Especial passou a ser uma habilitaçãodo curso de Pedagogia (1973), oficializaram-se dois ramos de ensino na Pedagogia: um quetratou a formação docente como um subprodutodo especialista, contribuindo para que se for-masse um docente especializado na deficiên-

cia e com pouca formação como professor; e ooutro ramo que atendia exclusivamente aos in-teresses burocráticos do ensino regular e ex-cluía a educação especial da formação docen-te. A formação diferenciada de docentes parao ensino especial e para o ensino comum nocurso de Pedagogia, confirma que: “A Educa-ção Especial, tal como o deficiente, é segregada,isolada, em vários aspectos. Seus alunos, seusprofissionais, suas instalações e as vezes suaspróprias reflexões vivem um espaço comum,mas separado”. (ROMERO, 1999, p.67)

Essa posição assumida pelo curso de Peda-gogia reflete concepções e atitudes sociais notratamento dado às pessoas com deficiência e,também, a própria trajetória do referido cursonesse contexto sociocultural. Por isso, faz-senecessário retomar um pouco da história docurso de Pedagogia para compreender comoessa formação se constituiu e quais as suasimplicações para prática educativa de inclusãode “alunos com deficiência”. De acordo comSilva (1999), o curso de Pedagogia surgiu, juntocom os cursos de Licenciaturas, instituído pelaantiga Faculdade Nacional de Filosofia, daUniversidade do Brasil, com o Decreto-lei nº1190 de 1939, que tinha como objetivo prepa-rar docentes para a escola secundária (EnsinoMédio). Essas licenciaturas seguiam a fórmulaconhecida como “3+1”, em que se formava obacharel nos primeiros três anos do curso e,posteriormente, formava-se o licenciado como estudo das disciplinas de natureza pedagógi-ca, cuja duração prevista era de um ano. Comobacharel, o pedagogo poderia ocupar cargo de“técnico de educação”, e como licenciado, po-deria exercer a função de “docente nas escolasnormais”, um campo não exclusivo dospedagogos, uma vez que a Lei Orgânica doEnsino Normal, daquela época, só exigia umdiploma de nível superior.

Esse quadro do curso de Pedagogia durouaté 1969, quando a lei nº 5540/68 extinguiu adistinção entre bacharelado e licenciatura ecriou as famosas “habilitações” para o cursocitado. Com esse direcionamento, Pedagogiapassou a ser um curso formador de diferentes“especialistas em educação”, conforme deter-

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minava cada habilitação. Paralelamente, con-tinuava a ofertar, agora em forma de habilita-ção, a “licenciatura em ensino das disciplinase atividades práticas dos cursos normais”, quegarantia uma formação alternativa para a“docência nas séries iniciais do Ensino Funda-mental”. A consolidação da habilitação emEducação Especial surgiu em 1973, impulsio-nada pela criação do CENESP – Centro Naci-onal de Educação Especial – que propunha aformação de professores “especiais”, no ensi-no superior. Até então, a formação desses pro-fissionais era feita no Ensino Médio7. O quecaracterizava o curso de Pedagogia com habi-litação em Educação Especial era ter como“principal elemento identificado: pertencer afaculdades particulares e funcionar no períodonoturno” (ENUMO, 1985, p.5). Essas caracte-rísticas, que ainda estão presentes no contextocontemporâneo, demonstram como as políti-cas públicas tratam a formação de docentes paraatuar com “alunos com deficiência”. À medidaque o governo brasileiro delega essa formaçãoinicial docente para rede privada, demonstradesrespeito com relação ao cumprimento dosprincípios da proposta de inclusão de “alunoscom deficiência” e insere a profissionalizaçãodocente na análise da “dialética da exclusão/inclusão”.

Na década de 80, o curso de Pedagogia pas-sou a ser alvo de muitas críticas, devido ao ca-ráter tecnicista de suas habilitações, não aten-dendo às necessidades da realidade educacio-nal brasileira, dentro da formação docente. Porisso os professores das Faculdades de Educa-ção começaram a se reunir para discutir a for-mação do pedagogo. Desses encontros, reali-zados em diferentes universidades do Brasil,surgiu o “Movimento de reconfiguração docurso de Pedagogia”. O debate sobre a forma-

ção inicial em Pedagogia expressava um con-flito de posições teóricas, metodológicas eepistemológicas a respeito do papel do pedago-go no contexto educacional daquela época. Natentativa de mediar esse debate, em 1983 foicriada a “Comissão de Especialistas de Ensinode Pedagogia”. Essa Comissão procurou inte-grar posições de diferentes grupos e recolheumais de quinhentas propostas de instituiçõesde Ensino Superior para a reconfiguração docurso de Pedagogia do Brasil. As propostasrecolhidas foram sistematizadas numa únicaproposta, que passou a orientar as mudançascurriculares do curso de Pedagogia em dife-rentes contextos universitários. Essas orienta-ções sugeriam os seguintes objetivos ao cursode Pedagogia: romper com a tradição tecnicistade separar o saber e o fazer, a teoria da prática,e assumir o compromisso de promover a for-mação de um profissional habilitado para atu-ar no ensino, na organização e na gestão de sis-temas, unidades e projetos educacionais. Con-tudo, o ponto mais importante da referida pro-posta é que o curso de Pedagogia passou a as-sumir a docência como base obrigatória de suaformação e identidade profissional. Nessa pers-pectiva, o campo de atuação do pedagogo am-pliava-se para atender à formação de docentespara Educação Infantil, para as séries iniciaisdo Ensino Fundamental e para o Magistério deEnsino Médio.

Paralelo ao debate sobre a reconfiguraçãodo curso de Pedagogia, surgiram os primeiroscursos de pós-graduação em Educação Espe-cial no Brasil. O resultado desses cursos cul-minou na produção de pesquisas que denunci-avam a realidade educacional dos “alunos comdeficiência” no Brasil. No final da década de80 e na década de 90, as primeiras produçõesdos cursos de Especialização, Mestrado e Dou-torado em Educação Especial trouxeram à tonaa situação da educação de “alunos com defici-ência” no Brasil, silenciada historicamente pe-las políticas públicas de educação e, também,pelos estudos acadêmicos. De acordo com Glat(1998), a publicação dessas pesquisas come-çou a desnudar a situação da Educação Espe-cial no sistema educacional brasileiro. Como a

7 Os cursos normais de Ensino Médio foram responsá-veis pela formação inicial dos docentes da Educação In-fantil e das séries iniciais do Ensino Fundamental até apromulgação da LDB, lei de nº 9394/96. Entretanto, con-traditoriamente, a flexibilidade da referida lei ainda per-mite a realização desses cursos no Sistema EducacionalBrasileiro.

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maioria dos estudantes desses cursos de pós-graduação eram docentes de universidades emdiferentes estados do Brasil, o debate sobreEducação Especial passou a circular em algu-mas universidades brasileiras, especialmentenaquelas onde os referidos profissionais esta-vam inseridos. Enquanto isso, o governo bra-sileiro era contagiado com a proposta de Edu-cação Inclusiva, divulgada nos encontros pro-movidos pela UNESCO, ONU e demais agên-cias internacionais que orientam as políticaspúblicas de educação em países de terceiromundo, como ocorre no Brasil. Nesses encon-tros, foram assumidos os compromissos daDeclaração de Educação para Todos (em 1990)e da Declaração de Salamanca (em 1994), queoficializaram a posição do Brasil em relação àproposta de Educação Inclusiva.

À medida em que a proposta de EducaçãoInclusiva passava a incorporar as políticas pú-blicas do sistema educacional brasileiro, as pri-meiras experiências de mudança curricular co-meçavam a ocorrer nos cursos de Pedagogiade algumas universidades. Essas mudançascurriculares no curso de Pedagogia não acon-teceram de forma linear. Cada universidadeprocurou adaptar a proposta apresentada pelaComissão de Especialistas no ensino de Peda-gogia conforme a realidade de cada instituiçãoe, conseqüentemente, o curso de Pedagogiachegou ao final da década de 90 com diferen-tes fluxogramas8. As mudanças curriculareslevaram universidades a desativarem habilita-ções – a exemplo da habilitação em Supervi-são Escolar, considerada tecnicista – e a cria-rem novas habilitações – a exemplo da habili-tação em Educação Infantil e Séries Iniciais doEnsino Fundamental, considerada importantepara o contexto educacional contemporâneo.O resultado desse processo de reconfiguraçãolevou a Comissão de Especialistas no ensinode Pedagogia a realizar encontros estaduais,regionais e nacionais a fim de avaliar os resul-

tados dessas mudanças. Dessa forma, o cursode Pedagogia buscava encontrar seu rumo, poisas experiências das mudanças curriculares com-binavam com as exigências da nova LDB, quedeterminava: “A formação de docentes paraatuar na educação básica far-se-á em nível su-perior, em cursos de licenciatura, de gradua-ção plena” (Art 62, da Lei de n° 9.394/96). Caberessaltar que as mudanças curriculares imple-mentadas no processo de reconfiguração docurso de Pedagogia, apesar de inovadoras, ain-da não contemplavam as necessidades da pro-posta de Educação Inclusiva. Com raras exce-ções, advindas das experiências das universi-dades que possuíam cursos de pós-graduaçãoem Educação Especial e tentavam contemplara graduação em Pedagogia com os resultadosapresentados em suas pesquisas. No geral, omáximo que se conseguiu sobre a educação de“alunos com deficiência”, no curso de Peda-gogia, foi a oferta da disciplina “Educação Es-pecial” em algumas universidades que ousa-ram implantar novas habilitações. Contudo, nãose pode negar os avanços do curso de Pedago-gia nesse contexto de reconfiguração. Inclusi-ve, os representantes dos docentes das Facul-dades de Educação já discutiam a reestrutu-ração do curso de Pedagogia com o CNE –Conselho Nacional de Educação – na tentativade consolidar a formação do docente de Edu-cação Infantil e das séries iniciais do EnsinoFundamental no referido curso. Já existia atéum consenso entre representantes dos docen-tes do curso de Pedagogia e os representantesdo Conselho Nacional de Educação de que oprocesso de reestruturação do curso de Peda-gogia visava atender às necessidades da for-mação inicial docente sugerida pela nova LDB.

Entretanto, o debate sobre a reestruturaçãodo curso de Pedagogia, para atender à docênciada Educação Infantil e das séries iniciais doEnsino Fundamental, foi atropelado em dezem-bro de 1999, com a publicação de um DecretoPresidencial que determinava: “A formação emnível superior de professores para atuaçãomultidisciplinar, destinada ao magistério naeducação infantil e nos anos iniciais do ensinofundamental, far-se-á exclusivamente em Cur-

8 Em termos didáticos fluxograma é a representação grá-fica da organização curricular de um determinado curso,com a distribuição hierarquizada de disciplinas dentrode uma carga horária definida.

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sos Normais Superiores9 (Decreto nº 3.276/99).A palavra “exclusivamente” decretou o fim doscursos de Pedagogia como formadores de do-centes e liquidou o trabalho desenvolvido pelomovimento de reconfiguração do curso de Pe-dagogia desde a década de 80. Devido à fortepressão dos educadores e da opinião pública, ogoverno publicou um outro Decreto em agostode 2000, que apenas trocava a palavra “exclu-sivamente” pela palavra “preferencialmente”.Essa simples mudança vocabular restituiu aocurso de Pedagogia a possibilidade de conti-nuar com sua formação voltada para a docên-cia, não resolvendo a situação da formação doprofissional docente da Educação Infantil e dasséries iniciais do Ensino Fundamental, pois ain-da não ficou definido o lugar dessa formaçãono sistema educacional brasileiro.

Cabe ressaltar que a principal crítica quedesencadeou a reconfiguração do curso de Pe-dagogia nos anos 80 foi o fato de sua formaçãoter sido considerada excessivamente tecnicista,que não propiciava uma visão integrada da edu-cação. Entretanto, parece que os Cursos Nor-mais Superiores, “recomendados” pelo gover-no federal, repetem o mesmo erro: trata-se deuma formação baseada no aprendizado de téc-nicas de ensino, sem uma visão do conjuntoeducacional. O Movimento Nacional dos Do-centes das Faculdades de Educação conside-ram que os Cursos Normais Superiores nãopassam de uma nova roupagem dos CursosNormais de Ensino Médio. Dessa forma, pou-co contribuirá para a formação profissional dosdocentes de Educação Infantil e das séries ini-ciais do Ensino Fundamental. De modo geral,os Cursos Normais Superiores funcionam emInstitutos Superiores de Educação, que são ins-tituições isoladas do ambiente universitário,limitadas apenas às atividades de ensino. Semcontato com a pesquisa e/ou a extensão, a for-mação inicial docente sofre uma grande perda,pois essas atividades favorecem o diálogo coma diversidade, aspecto fundamental para seconstruir uma prática educativa inclusiva. En-quanto a formação inicial de docentes da Edu-cação Infantil e das séries iniciais do EnsinoFundamental permanece indefinida, novos cur-

sos são criados pela rede privada, sem a devi-da preocupação com as conseqüências que umaformação inicial docente desqualificada podeacarretar para a educação do país. A legislaçãodeixou essa formação inicial em aberto paraque Cursos Normais Superiores, Cursos Nor-mais de Ensino Médio e Cursos Normais Vir-tuais10 pudessem fabricar diferentes categoriasde formação profissional docente. A indefini-ção na formação inicial de docentes para a Edu-cação Infantil e as séries iniciais do EnsinoFundamental pode contribuir para ampliar, ain-da mais, o quadro de exclusão escolar no con-texto da Educação Inclusiva.

A retrospectiva histórica do curso de Peda-gogia com relação à Educação Especial e, maisrecentemente, à Educação Inclusiva, retratauma identidade mal resolvida no curso de Pe-dagogia e uma completa desarticulação entre aformação docente e as políticas de EducaçãoInclusiva. Essa desarticulação nas políticaspúblicas do sistema educacional brasileiro foiconstruída historicamente. No que se refere aocurso de Pedagogia, tal desarticulação foi pro-duzida desde a criação do referido curso, ondefaltava uma definição clara sobre a sua funçãosocial no processo de formação docente. Asreformas educacionais sofridas pelo curso nodecorrer de sua história, pouco contribuírampara criar e/ou delimitar sua identidade. Con-tudo, as críticas que lhe foram atribuídas nadécada de 80, levaram o curso de Pedagogia ase olhar, a perceber a necessidade de reformula-ção. Foram duas décadas de trabalho para cons-truir o processo de reconfiguração do curso ci-tado. O resultado desse processo é que o cursode Pedagogia começou a descobrir sua identi-dade e delinear sua opção pela docência. Masa falta de articulação nas políticas públicas do

9 Trata-se de um novo curso de licenciatura previsto naLDB, Lei de nº 9394/96, voltado para formação inicialde professores da Educação Infantil e das séries iniciaisdo Ensino Fundamental.10 O uso das novas tecnologias na Educação permite acriação de cursos a distância com o uso da internet e aformação inicial de docentes já esta sendo pensada se-gundo esses moldes.

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sistema educacional brasileiro interrompeubruscamente o processo de reconfiguração docurso de Pedagogia com a força de um decre-to, no final da década de 90. A pressão dos edu-cadores conseguiu derrubar esse decreto. En-tretanto, o destino da formação inicial docentenão foi resolvido e o curso de Pedagogia conti-nua com sua identidade indefinida.

Enquanto isso, a proposta de Educação In-clusiva fica, também, indefinida, porque ela de-pende de uma formação docente qualificada.Parece contraditório que a Educação Inclusivaseja instaurada num contexto em que a forma-ção profissional do docente da Educação Infan-til e das séries iniciais do Ensino Fundamentalenfrenta uma crise de paternidade. O curso dePedagogia, que poderia assumir a formação ini-cial de educadores para a Educação Inclusiva,ainda não conseguiu definir sua identidade de-vido às imposições das políticas públicas deeducação do Brasil. Paralelamente, o CNE –Conselho Nacional de Educação – deixou emaberto a situação dos Cursos Normais de NívelMédio, criou Cursos Normais Superiores e per-mitiu que o caráter provisório e flexível das leiseducacionais brasileiras atropelassem o proces-so de reconfiguração do curso de Pedagogia. Emsíntese, a falta de comunicação entre as políti-cas de Educação Inclusiva e a formação inicialem Pedagogia leva essa reflexão à análise da“dialética da exclusão/inclusão”. “No que tangea uma política de formação docente, estamoslonge de alcançar níveis de qualidade mínimospara a consecução de uma Educação Inclusiva,

não por genérica falta de condições, mas por faltade vontade política, tanto por parte dos órgãosgovernamentais como pelas Instituições de For-mação, em especial as universidades.” (BUENO,1999, p.156)

Todavia, as universidades brasileiras nãopodem se furtar do compromisso social e po-lítico de assumirem uma posição diante da for-mação inicial de docentes no contexto con-temporâneo de implementação da proposta daEducação Inclusiva. A retrospectiva do cursode Pedagogia e a história da Educação Espe-cial no Brasil demonstram que ainda existeum silêncio pairando sobre a educação de “alu-nos com deficiência”. Em contrapartida, ocurso de Pedagogia tem uma dívida social coma formação de docentes para atuar com “alu-nos com deficiência”, já que, em sua trajetó-ria histórica, assumiu, paralelamente, a for-mação profissional de “especialistas em Edu-cação Comum” e de “especialistas em Educa-ção Especial”. Como ainda não existe umaformação instituída para o exercício dadocência na Educação Inclusiva, há que sepensar em caminhos que levem os sistemasde ensino e as instituições universitárias aconstruírem essa formação. O curso de Peda-gogia precisa ampliar suas referências –epistemológicas, teóricas e metodológicas –para assumir o desafio da formar educadorescapazes de atuar na prática educativa de in-clusão de “alunos com deficiência” e enfren-tar a “dialética de exclusão/inclusão”, presentena história da educação desses alunos.

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Recebido em 30.03.02Aprovado em 24.06.02

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Ivanê Dantas Coimbra

* Mestre em Educação, Professora Titular do Departamento de Educação do Campus I, Salvador, da Uni-versidade do Estado da Bahia - UNEB. Endereço para correspondência: Rua Antão Gonçalves, 218-Pituba,41.810-260 – Salvador/BA. E-mail: [email protected]

A INCLUSÃO DO PORTADOR DE DEFICIÊNCIA

VISUAL NA ESCOLA REGULAR:

alguns desafios

Ivanê Dantas Coimbra *

RESUMO

O atendimento ao princípio da inclusão do portador de deficiência vi-sual – indivíduo cego ou com visão sub-normal severa – representa umgrande desafio para a escola regular, a qual adota um modelo pedagógi-co calcado na viso-sensorialidade, na concepção de aprendizagem en-quanto produto e na objetividade. Esse modelo vai de encontro às ne-cessidades de aprendizagem daquele portador, cuja percepção dos ob-jetos ao seu redor é resultante da utilização de outros canais sensoriais,tais como a audição e o tato, que vêm sendo objetos de menor estimula-ção nas situações de aprendizagem. O caminho para a plena inclusão edesenvolvimento do portador de deficiência na escola regular implica aadoção de um novo paradigma educacional calcado nos processos deconstrução do conhecimento, na consideração do educando como umsujeito pleno, na subjetividade e diversidade humanas e nos processosinterativos.Palavras-chave: Deficiência visual – Inclusão – Paradigma – Desen-volvimento – Construção do conhecimento – Subjetividade

ABSTRACT

THE INCLUSION OF THE VISUALLY IMPAIRED IN REGU-LAR SCHOOLS: some challengesAttending to the principle of the inclusion of the visually impaired –blind or severely subnormal sighted individuals – represents a greatchallenge for regular schools, which adopt a pedagogical model basedon visual-sensoriality, on the conception of learning as a product andon objectivity. This model does not meet the learning needs of thevisually impaired, whose perception of the surrounding objects resultsfrom the use of the other sensorial channels, such as hearing and tact.These channels have been objects of smaller stimulation in learningsituations. The path to a total inclusion and development of the impaired

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A inclusão do portador de deficiência visual na escola regular: alguns desafios

Sem sombra de dúvidas, o momento de tran-sição paradigmática por que passa o mundocontemporâneo impõe um repensar sobre o sig-nificado da educação e do conhecimento, con-vidando a escola à adoção de uma nova praxis.O novo modelo político-pedagógico a ser as-sumido deverá estar embasado, principalmen-te, no questionamento aos fundamentos quetradicionalmente vêm norteando o processoeducativo formal, até então solidamente finca-dos nas idéias racionalistas da ciência moder-na positivista. Tais fundamentos estão traduzi-dos, numa só palavra, no determinismo esco-lar, que caracteriza a cultura da escola, a qual ésustentada por uma ideologia que legitima,perante os educandos e a própria sociedade, asrelações hierárquicas de poder sobre o conhe-cimento.

E como se concretiza tal determinismo nocotidiano escolar?

Basicamente através de uma visão unilate-ral e reducionista acerca do conhecimento, sig-nificando, sobretudo, a prevalência do valor dahomogeneidade sobre a singularidade; da uni-formização sobre a pluralidade; da objetivida-de e do individualismo sobre a subjetividade ea intersubjetividade; do domínio cognitivo so-bre o afetivo; do produto sobre o processo; daestabilidade e certeza sobre a instabilidade e aincerteza; da fragmentação sobre a visão detotalidade; da reprodução sobre a auto-organi-zação.

Parece-nos interessante ressaltar, também,que a predominância de tais valores tem con-tribuído para que a escola desconsidere o fatode que o educando é um sujeito pleno, ou seja,portador de uma personalidade de dimensõesmúltiplas, além da dimensão cognitiva. Emoutras palavras, as suas percepções acerca domundo e dos objetos que o rodeiam, o signifi-cado dos seus atos podem ser encarados en-

quanto decorrentes da influência dos aspectosbiológicos, psicológicos, culturais e sociais quefazem parte do seu ser. Na dimensão psicoló-gica, poderíamos destacar, indubitavelmente,o plano afetivo enquanto força motriz inques-tionável para suas atitudes e comportamentospeculiares.

No que diz respeito ao denominado porta-dor de deficiência visual – aqui encarado comoo indivíduo cego ou com visão sub-normalgrave – a assunção pela escola dos princípiosda racionalidade positivista, enquanto hegemô-nicos na ação educativa, representa uma con-dição restritiva ao pleno desenvolvimento e àinclusão daquele portador no processo educati-vo formal. Isso porque tal concepção significanegar as necessidades decorrentes da sua faltade visão, desconhecer as suas formas própriasde construção de significados sobre tudo o queestá ao seu redor e, conseqüentemente, não seempenhar na produção de alternativas que ga-rantam a equalização das oportunidades dedesenvolvimento de todos os educandos, por-tadores e não portadores de deficiências, o quetraduz efetivamente o princípio da inclusãosocial.

A nova política educacional brasileira, noque tange às diretrizes de educação especial,enfatiza a participação do educando portadorde deficiência no processo educacional desen-volvido nas classes regulares, na tentativa deabolir as práticas segregacionistas que vêmnorteando a educação daquele portador e per-mitir a sua inclusão social. Entretanto, no quetange à escola regular, principalmente a escolapública, essa inclusão representa, ainda, umenorme desafio.

Como se poderia explicar tal assertiva?A prática uniformizadora da escola vem

comprometendo a pluralidade e a diacronici-dade da aprendizagem, anulando ou minimizan-

in regular schools implicates in the adoption of a new educationalparadigm based on the processes of construction of knowledge, on theconsideration of the learner as a full being, on the human subjectivityand diversity and on interactive processes.Key words: Visual impairment – Inclusion – Paradigm – Development– Knowledge construction – Subjectivity

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do a importância do respeito à diversidade, e,dessa forma, às peculiaridades dos portadoresde deficiência, como sujeitos que merecem oolhar diferenciado (não preconceituoso oudiscriminatório) do professor. Nesse sentido, aescola regular vem encarando as dificuldadesdaqueles sujeitos como naturais, porque decor-rentes das limitações impostas pela própriadeficiência.

Outro aspecto denotativo da prática padro-nizada da instituição escolar é a utilização, ba-sicamente, de referencial viso-sensorial comoeixo do seu trabalho pedagógico em sala deaula, através dos conteúdos, metodologias e,principalmente, materiais didáticos, o que, ob-viamente, não se sintoniza com os referenciaisperceptuais do portador de deficiência visual,causando-lhe dificuldades significativas no pro-cesso de aprendizagem.

É bom ressaltar que a uniformização do ri-tual pedagógico pode acarretar, muitas vezes,certas atitudes de indisposição do professor,reforçadas pela sua falta de preparo profissio-nal em educação especial, para atender peda-gogicamente às necessidades daquele portadordentro da classe, as quais podem ser traduzidas,via-de-regra, na transferência para o próprioindivíduo das razões do seu insucesso ou pro-blemas de desempenho e na atribuição de seuacompanhamento a um professor específico,com formação especializada, mas que atua,principalmente fora da sala de aula. Esse pro-fessor nem sempre tem condições, notadamentedentro da escola regular pública, de assumirsatisfatoriamente suas funções pedagógicas deapoio e nem de cumprir, em tempo hábil, asdemandas originárias das atividades de classe,em função da carência de pessoal qualificado.

A ausência de uma prática inclusivista naescola regular foi constatada através de estudocientífico por nós realizado, em 1999, numainstituição escolar de grande porte, pertencen-te à rede pública, que abrigava crianças cegasnas classes regulares, tendo sido observadasduas crianças portadoras de cegueira total, comidades de 11 e 13 anos, em duas turmas dife-rentes. Através desse estudo, pôde ser verifi-cada a ausência de iniciativas pedagógicas ou

de qualquer adaptação curricular, no âmbito dasala de aula, para garantir àquelas crianças asmesmas possibilidades de aprendizagem dis-pensadas aos educandos não portadores de de-ficiência visual. Portanto, poder-se-ia falar,neste caso, de inserção, mas, não, de inclusãoescolar daquelas crianças, uma vez que o seuatendimento mais particularizado (eventual)centrava-se na chamada sala de recursos (salaespecífica com alguns recursos adaptados, soba responsabilidade de apenas um professor es-pecializado, a quem cabia atender ao total deoito portadores de deficiência visual da escola,de séries diferenciadas).

Várias situações ilustram tais considerações.A escola não garantia às crianças cegas uma

posição certa para sentar-se, ou seja, na primeirafila, o que lhes possibilitaria uma melhor audi-ção dos assuntos trabalhados em classe. Os efei-tos negativos de tal fator restritivo eram refor-çados pela ocorrência de barulho permanentedas demais crianças na sala.

A presença de um deficiente visual em clas-se não motivava a professora a dispor-se a umacompanhamento individual do desempenhoescolar da criança cega, dirigindo-se, sistema-ticamente, à turma como um todo. Pode-se re-fletir, neste ponto, que tal postura, enraizadana rotina da escola, reflete a legitimação doprincípio da eficiência, inerente ao modeloracionalista escolar, traduzido no valor do cum-primento da programação pelo professor den-tro dos prazos determinados pela escola, o queinviabiliza a ocorrência de maiores possibili-dades de acompanhamento dos processos in-dividuais de aprendizagem. Essa condiçãorestritiva atinge mais de perto o deficiente vi-sual, diante da sua postura normalmente maispassiva e calada que a dos demais alunos,verificada nas situações observadas, frente aeventuais necessidades mais específicas de ori-entação, decorrentes da sua cegueira.

Um outro aspecto observado foi o de quenem sempre a criança cega dispunha do mate-rial didático transcrito em Braille, em tempohábil, a fim de poder trabalhá-lo ao mesmo tem-po que os demais alunos. Dessa forma, não seobservou simultaneidade dos tempos pedagó-

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gicos e equivalência entre os videntes e os nãovidentes investigados, no que se refere ao aces-so, à quantidade e à qualidade dos conteúdosveiculados na escola, comprometendo o prin-cípio da igualdade de possibilidades, dirigidasao portador de deficiência visual, ou seja, oexercício da sua cidadania.

Um dos mais sérios entraves à inclusão dacriança cega na escola, considerado através doestudo realizado, constituiu-se da ênfase abso-luta, em sala de aula, nas atividades escritas,através do uso do quadro-de-giz ou do livrodidático. No primeiro caso, os conteúdos es-critos pela professora não eram acompanhadosda sua leitura simultânea ou posterior, ficandoa criança cega à mercê do auxílio de colegasdispostos a lhe ditar tais conteúdos; no segun-do caso, conforme salientado, nem sempre ha-via material do livro transcrito para o Braille,em tempo hábil, o que comprometia a realiza-ção imediata de exercícios, leituras, produçõesescritas, etc. Vale ressaltar, no que tange a esserecurso didático, que alguns dos exercícios es-critos incluíam desenhos ou figuras, sobre osquais nenhuma orientação adicional erafornecida à criança cega, o que ocasionava,muitas vezes, sua exclusão da atividade cor-respondente, sem qualquer iniciativa de subs-tituição por parte da docente.

Considerando-se, por outro lado, as posi-ções teóricas que defendem a interação socialcomo base do desenvolvimento, inclusive, cog-nitivo do educando (VYGOTSKY, 1998) e aimportância particular dessa interação para oportador de deficiência (VAYER e RONCIN,1989), depreende-se, pelos resultados do estu-do, que a prática da escola regular vem com-prometendo tal desenvolvimento, vez que ne-nhuma situação interativa foi observada duranteos dois meses de investigação. Não foram rea-lizadas dentro da classe atividades grupais oufavorecedoras de trocas, diálogos, comunica-ções entre os alunos. Levando em conta a im-portância da convivência social (que vai alémda convivência física) da criança cega para asua aceitação social, e, portanto, para o desen-volvimento dos seus sentimentos de seguran-ça, sua afetividade frente aos demais alunos e

a sua auto-estima, conclui-se que a inseguran-ça ou falta de autonomia (não querer ir ao re-creio, por exemplo, por medo de “ser atropela-da” ou por não saber caminhar na escola) e asatitudes de certo isolamento (ficar calada qua-se todo o tempo da aula) que foram verificadasem relação a uma das crianças cegas, são ca-racterísticas para as quais a ausência daquelasatividades muito contribuiu para reforçar. Tam-bém foi constatado que, contrariamente a suapostura na escola regular, as atitudes dessascrianças no centro de apoio ao deficiente visu-al, o qual freqüentavam no turno oposto, eramnormalmente de intensa interação social, espon-taneidade, participação plena nas atividades,autonomia (capacidade de orientação espaciale de locomoção).

O estudo veio comprovar que, diante de si-tuações pedagógicas que levem em considera-ção as necessidades peculiares das criançasportadoras de deficiência, da sensibilidade daescola para compreender os significados queos objetos têm para cada uma delas, levandoem conta não apenas a especificidade do seureferencial perceptual – concentrado principal-mente na percepção tátil e auditiva – como tam-bém a influência na sua personalidade das res-trições e atitudes preconceituosas que a socie-dade (e a própria escola) lhes impõe, as crian-ças não videntes podem manifestar todo o seupotencial para aprender no mesmo ritmo queas videntes, sem serem taxadas de lentas, apá-ticas, condições estas atribuídas pela escola àsduas crianças observadas.

Trata-se, portanto, de que uma nova con-cepção acerca do sujeito portador de deficiên-cia seja assumida pela escola regular, a partirda qual sejam levadas em conta, principalmen-te, a sua subjetividade e a sua condição de su-jeito social; uma concepção na qual a denomi-nada “deficiência” seja encarada exclusivamen-te como “diferença e, não, como “déficit” e emque a escola esteja preparada e disposta a tra-balhar com e pela diversidade, em vez decentrar-se na busca de uniformização de pa-drões, condutas e resultados e, essencialmen-te, na viso-sensorialidade, como espinha dorsaldas suas atividades pedagógicas.

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Ivanê Dantas Coimbra

Essas últimas reflexões contêm elementosfilosófico-epistemológicos que encontram am-paro no chamado paradigma emergente oumovimento pós-moderno da ciência, e sua abor-dagem tem o propósito de introduzir uma su-cinta discussão acerca de alguns aspectos ine-rentes aos princípios básicos desse movimen-to, naquilo que o distancia da visão deterministado paradigma moderno, das suas implicaçõesna educação e da sua possível aproximação dosobjetivos inclusivistas destinados ao portadorde deficiência visual.

Os novos caminhos da educação

Para Moraes (2000), a educação está atra-vessando um momento novo, singular, quepode ser denominado de Paradigma Educacio-nal Emergente. Esse paradigma caracteriza-sepor incorporar uma multiplicidade de elemen-tos filosóficos e epistemológicos na discussãosobre ciência e educação, no sentido de se com-preender as concepções científicas no mundode hoje e os seus reflexos no processoeducativo. Nesse sentido, enfatizam-se as con-tribuições das teorias construtivistas e constru-cionistas, inspiradas em Piaget, Vygotsky,Wallon, Papert, Ausubel, e a teoria sócio-cul-tural de Paulo Freire, além da biologia do amor,de Maturana e Nisis, incorporando esta últimaa autopoiesis, como organização e autocriaçãodo ser vivo. A educação passa a ser compreen-dida, assim, como um processo que englobatodas as dimensões do ser e do viver humanos,considerando-se, portanto, a dialética entremente/corpo, objetividade/subjetividade, sujei-to/objeto, o que elimina o tradicional dualismopositivista e atribui ao processo educativo umadimensão autopoiética, enquanto ato político,reflexivo, afetivo e social.

Essa nova concepção, na perspectiva da di-mensão do ser, também implica o reconheci-mento pelo educador da legitimidade do edu-cando enquanto “outro”, portanto, enquantouma individualidade, o que significa não lheimprimir padrões de atitudes ou de condutas apartir de referências basicamente externas, que

traduziriam, segundo Maturana (1999), suanegação, destruição da sua auto-aceitação eauto- estima. O foco da direção da açãoeducativa estaria, assim, na dimensão do fazerdaquele educando, ou seja, na sua capacidadede produzir conhecimento, cultura, história.

A educação fundada na autopoiésis tambémsignifica o respeito ao valor individual dasações de cada um, sem medi-las através da re-ferência do que o outro faz, numa situação ine-vitável de competição; sem avaliar os alunospela quantidade de produtos corretos que apre-sentam num tempo pré-determinado, mas, prin-cipalmente, pela qualidade do seu processo deconstrução de significados. Essa concepçãorequer, além disso, a criação de condições noambiente educacional para a aceitação mútua,por parte dos educandos, das suas corporali-dades. Para Maturana (ibidem) essa aceitaçãosignifica auto-aceitação, em primeiro lugar,como condição para aceitação do outro, parauma genuína convivência.

Evocando, ainda, Maturana, o papel dasemoções é destacado por Moraes enquanto par-te intrínseca e estruturante da ação e da refle-xão, componentes do conhecimento fundadona biologia do amor. A ênfase na racionalidadeimplicou a desvalorização das emoções e doseu lugar no cotidiano da vida social e escolar,e, uma vez que elas possam ser identificadascom o próprio amor, a educação escolar, aoeliminá-las, enquanto componentes da sua prá-tica, sufocou a dimensão amorosa do fazereducativo e, portanto, o seu encantamento. Poroutro lado, é o fundamento emocional,alicerçado na aceitação do outro como legíti-mo, que solidifica as relações sociais.

Morin (1996; PETRAGLIA, 1995) ofere-ce-nos outro suporte ao conjunto das concep-ções acima esboçadas ao considerar que o co-nhecimento deve contemplar as característicasexistenciais, subjetivas do ser humano, taiscomo a dor, o prazer, a paixão, o desejo, a emo-ção, além da razão e dos conteúdos disciplina-res. A missão da escola, para esse pensador,passa também pela construção das identidadessociais dos seus membros (educandos) e pelaidentificação do seu processo de conhecimen-

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to. Portanto, o como se sabe sobrepõe-se aoquê e ao quanto se sabe.

Em síntese, encontramos, ainda com Moraese Morin, que a conjuntura atual exige que seevite o modelo fragmentado do cartesianismo-newtoniano, desconectado da vida e do con-texto cultural do educando, fundado essencial-mente na objetividade. Em seu lugar, deve as-sumir um modelo que aproxime a educação davida e leve a vida para dentro da escola; que seligue às necessidades humanas e considere asinterconexões entre os elementos que compõemo viver e o ser humanos; que se baseie em pro-cessos dialogais e de solidariedade; que res-peite as diferenças de pontos de vista, de pers-pectivas culturais, de idéias, de experiências devida; que considere o conhecimento como pro-cesso, ou seja, a dinâmica do pensamento, suasflutuações, avanços e retrocessos, as incerte-zas, as irregularidades, como condições deauto-construção do conhecimento e desenvol-vimento humanos; que leve em conta os aspec-tos subjetivos da personalidade - as motivações,a imaginação, a criatividade, as formas parti-culares de percepção dos objetos - como in-gredientes desejáveis para o processo de apren-der; que descubra e incentive o desenvolvimen-to das potencialidades do educando; que res-peite o ritmo individual nos processos de apren-dizagem (e acrescentaríamos) conhecendo erespeitando as condições que determinam a suaocorrência.

O paradigma educacional emergen-te e a inclusão do portador de defi-ciência visual

Uma perspectiva inclusivista para o porta-dor de deficiência visual, a partir do paradigmaeducacional emergente, significa, no âmbitoescolar, a substituição do modelo racionalistaque predomina na sua praxis, calcado funda-mentalmente na ênfase na padronização, obje-tividade, eficiência e produto, para uma novaconcepção da educação enquanto um sistemaaberto, alicerçado nas dimensões ser, fazer,conviver.

Esse trinômio, conforme nosso ponto devista, representa a síntese dos elementos fun-damentais para que o desenvolvimento do por-tador de deficiência visual possa realizar-se deforma consoante com as suas condições e ne-cessidades, enquanto sujeito desprovido de umdos sentidos centrais da vida humana, e consi-derando-se que essa lacuna modifica a formacom que ele atribui significados ao seu redor etransforma as suas condições de relação com oseu ambiente social. Portanto, há de se olhar odeficiente visual como um sujeito que, apesarde ser portador de um déficit físico que o dife-rencia dos demais, mantém todas as potencia-lidades de um sujeito vidente e responde comigual competência às estimulações que se lheapresentam, contanto que lhe sejam oferecidascondições para tal.

Encarar a inclusão do deficiente visual sobessa premissa significa um desafio para a escolaregular tradicional, porque esses princípios sópoderão materializar-se em uma escola que sejaaberta à diversidade, que adeqüe seus recursos,conteúdos e metodologias não só aos alunosportadores de deficiência, mas a todos que re-queiram a sua consideração a qualquer tipo deresposta individual, ou em condições provisóri-as ou permanentes (GORTÁZAR, 1995).

Em termos de construção do conhecimen-to e considerando as novas concepções para-digmáticas que acima tentamos esboçar, quenova postura acerca do portador de deficiênciavisual deveria ser assumida pela escola, no sen-tido da sua inclusão social?

Algumas posições parecem-nos centraisneste sentido:

1. A deficiência visual deve ser encaradacomo uma problemática de naturezaintra e extra-escolarEsse pressuposto assenta-se na percepção

de que a inclusão social do portador de defici-ência visual extrapola os muros da escola, re-querendo uma ação articulada dessa institui-ção com a família e com os órgãos especializa-dos de apoio, adotando essas duas últimas ins-tâncias papéis que fujam de característicasassistencialistas ou protecionistas e se dirijam

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ao desenvolvimento pleno daquele portador,cuja condução e orientação estejam a cargoprincipalmente da instituição escolar.

No que diz respeito ao seu papel pedagógi-co específico, a escola deverá considerar, an-tes de tudo, que reside no docente a responsa-bilidade direta com o processo de conhecimentoe desenvolvimento do portador de deficiênciavisual, o que quer dizer tornar o ensino um pro-cesso vivo, respaldado nas necessárias adapta-ções curriculares da sua prática pedagógica,quanto a conteúdos, metodologias, formas deavaliação, em que, sobretudo, novos referen-ciais de percepção – o tátil, o cinestésico, oauditivo – façam parte sistematicamente daação docente, além do referencial viso-senso-rial. Essa nova postura, que deve levar em contaas condições peculiares de cada portador, tam-bém significa evitar transferir as responsabili-dades do trabalho pedagógico a setoresespecializados intra-escolares, tal como as sa-las de recursos. A essas caberia a missão deorientar e apoiar o corpo docente em tais adap-tações, de promover iniciativas de aperfeiçoa-mento pedagógico dos professores.

A família deverá ser tomada como perma-nente fonte de referência para auxiliar a identi-ficação dos problemas de aprendizagem doportador de deficiência visual, o que significao estreitamento das relações da escola com ocontexto familiar do educando. Através doapoio da família, a escola poderá, por exem-plo, identificar as experiências sociais do por-tador de deficiência visual fora de sala de aula:seus comportamentos, atitudes, reações noambiente familiar e em outros ambientes edu-cacionais que freqüenta, bem como em situa-ções informais (no recreio, por exemplo).Essasexperiências podem indicar manifestações di-ferenciadas em relação àquelas que ocorrem noambiente de sala de aula, do ponto de vista cog-nitivo, afetivo, psicomotor.

A articulação da escola com os órgãosespecializados que prestam assistência aos de-ficientes visuais freqüentadores de escolas re-gulares poderia efetivar-se a partir da manu-tenção de formas de organização conjunta e tra-balho, no sentido de que aqueles órgãos pu-

dessem fornecer aos docentes, principalmente,das escolas públicas, o apoio material, peda-gógico, de orientação psicológica necessáriosàs mudanças ou adaptações da sua prática parao enfrentamento e a solução dos problemaseducativos do portador de deficiência visual.

2. O portador de deficiência visual deve servisto como um sujeito pleno e historica-mente situadoO portador de deficiência visual é um ser

integral desprovido de visão. Portanto, sua na-tureza é indivisa, e tal condição implica consi-derar a subjetividade, pluridimensionalidade eculturalidade como componentes inerentes àssuas percepções sensoriais.

No que tange aos dois primeiros conceitos,vale destacar que não são apenas as impres-sões sensoriais que determinam a experiênciado indivíduo sobre determinado objeto, mas ainfluência conjunta de todos os estímulos nelaenvolvidos. Para apropriar-se dessa experiên-cia o indivíduo se envolve numa gestalt e énessa condição que “vê”as coisas em relaçãoumas às outras e em relação a si próprias: nãovê apenas com os olhos e nem ouve apenas comos ouvidos, mas faz isto com todos os seus sen-tidos, com a sua subjetividade e com as condi-ções de que dispõe (FREIRE, 1998).

Por outro lado, o deficiente visual, comoqualquer indivíduo, é um sujeito concreto. Aapropriação do real torna-se, assim, a síntese deuma capacidade desenvolvida e de uma produ-ção sócio-histórica. Nesse caso, a grande preo-cupação da escola deverá ser a de encontrar ca-minhos para que o portador de deficiência visu-al amplie seus contatos com o mundo e tenhaacesso a todas as informações e conhecimentosde que necessite, evitando uma posição defici-tária de oportunidades em relação aos videntes.Para que isso ocorra, a escola deverá:a) Conhecer o portador de deficiência visualenquanto sujeito real, ou seja, suas capacida-des e potencialidades. Para tanto, a escola de-verá esforçar-se para: realizar uma prática deacompanhamento sistemático das produções;compreender as causas e circunstâncias dasformas de manifestação ou expressão (no caso,

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A inclusão do portador de deficiência visual na escola regular: alguns desafios

por exemplo, das atitudes das deficientes visu-ais estudadas, ao permanecerem em quase per-manente silêncio na sala de aula, de posturasde passividade, de resistência para locomover-se ou locomover-se de forma tensa ou ainda depermanecer, durante a aula, com a cabeçadebruçada na carteira); analisar que influênci-as do déficit visual poderiam explicar as difi-culdades de aprendizagem, superando, dessaforma, atitudes de indiferentismo ou omissãofrente às necessidades peculiares daquele por-tador e promovendo adaptações ou mudançasna sua prática pedagógica.b) Trabalhar os conteúdos de aprendizagemaproveitando as experiências de vida do porta-dor e deficiência visual, como forma de sus-tentar a sua auto-estima e despertar-lhe o pra-zer, facilitando sua aprendizagem através doque lhe é familiar; explorar as vias de comuni-cação que esse portador tem com o mundo, tan-to no sentido de descobrir que condições res-pondem pelos significados próprios que elepode atribuir aos objetos, quanto de propiciar-lhe informações, através de experiências mul-tissensoriais que envolvam não apenas recur-sos viso-sensoriais, como situações que propi-ciem a utilização intensa e o desenvolvimentodos sentidos disponíveis – tátil, auditivo – edas propriedades cinestésicas ou corporais.c) Respeitar o tempo que é necessário para queo educando portador de deficiência visual iden-tifique e explore os objetos, considerando apropriedade menos imediata e menos globali-zante dos sentidos auditivo e tátil, principal-mente do último, que impõe uma percepçãomais fragmentada e mais lenta das dimensõesgerais desses objetos.

3. O portador de deficiência visual é deten-tor da capacidade de auto-construção doconhecimentoÀ escola cabe propiciar ao educando porta-

dor de deficiência visual formas ativas de apren-dizagem que apelem para seus processos cog-nitivos, tais como o raciocínio, imaginação cri-atividade, curiosidade, e propiciem o movimen-to, ou seja, situações dinâmicas que provoquem

sua iniciativa de solução dos desafios apresen-tados, inclusive utilizando o seu corpo. Isto sig-nifica a exploração material dos objetos e mo-bilidade física, condições que ajudam a forta-lecer a sua autonomia.

Como parte do seu corpo, a mão do cego éa extensão da sua visão; daí o tato ter um senti-do especial na sua autonomia e independência(capacidade de tomar decisões), que significamnão apenas segurança física, mas, também, psi-cológica, ou seja, sentimento de auto-confian-ça. Nesse caso, a escola estimulará esse senti-do tátil, criando um ambiente que possa desen-volver a noção espacial e o alcance de objetose de pessoas, através de estímulos multissenso-riais apelativos para os sentidos que o não-vi-dente possui (bater palmas para sinalizar a por-ta, colocar sinalizações em Braille ou atravésde figuras de alto relevo), além de orientaçãoou mesmo remoção de obstáculos à sua loco-moção.

Um outro fator de estimulação à constru-ção do conhecimento pelo portador de defici-ência visual são as suas vivências corporais.Estas são fontes de formação e consciência daimagem do corpo, portanto, da sua identidade.Além disso facilitam a organização das suasações no tempo e no espaço. Para isso ele pre-cisa, principalmente, de interagir.

A qualidade da interação social do portadorde deficiência visual é condição fundamentalpara seu acesso a informações, desenvolvimen-to cognitivo, construção de significados media-da pelos atos comunicativos. As crianças porta-doras de deficiência visual têm dificuldades paraconstruir sistemas de significação muitas vezesporque são privadas da capacidade de obser-vação direta e imediata de condições relativas apessoas, objetos e eventos, as quais possibilita-riam interação, tais como, a retribuição de umsorriso, a resposta a um gesto de chamamento, areação a um movimento ou expressão fisionô-mica de outra pessoa, até como uma eventualfonte de imitação. Nesse caso, para evitar o ris-co de isolamento da criança não-vidente, a es-cola deve incrementar e incentivar situações in-terativas, através de atividades grupais, propici-ando-lhe o uso abundante da linguagem, permi-

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tindo-lhe dialogar com os seus companheiros,debater, discordar, concordar, enfim, posicionar-se enquanto membro de um grupo, como formade identificar-se perante os demais. Inquestio-navelmente, tal condição fortalece a sua capaci-dade de auto-reconhecimento, bem como decompreensão e aceitação do outro. Essa convi-vência ativa ou co-operativa facilitará sua acei-tação social, em vez de apenas tolerância social,por parte dos seus companheiros (VOYER eRONCIN, 1989).

Todas essas considerações dizem respeito,principalmente, à disposição pela escola de fa-zer valer o princípio da alteridade, enquantouma dimensão essencial de um fazer pedagó-gico que defenda a pluralidade como condiçãoimanente ao caráter sócio-cultural e históricoda prática e dos sujeitos educacionais. Nessesentido, as acepções acerca da relação entre lin-guagem e pensamento indicam que o uso pe-dagógico intenso da primeira, como componen-te essencial da capacidade comunicativa dodeficiente visual, propicia alguns aspectos fa-vorecedores do seu desenvolvimento, atravésde iniciativas pedagógicas tais como as que sedestacam a seguir:a) Oportunizar manifestações ativas de lingua-gem, não decorrentes apenas de respostas me-cânicas a questões pré-concebidas e de caráterreprodutivista (como certas questões de com-preensão do livro didático), mas que permitama expressão livre, apelativa da sua imaginação,criatividade, reflexão;b) Propiciar (principalmente através da lingua-gem oral) a manifestação de suas experiênciasde vida, inclusive aquelas acarretadas pela per-da da visão, diminuindo a sua inibição e a ten-dência ao silêncio e ao isolamento em sala deaula. Nesse caso, a linguagem não tem umafunção corretiva ou metalingüística, mas deincentivo à expressão espontânea de pensamen-to, idéias e imagens;c) Corrigir as deficiências ou equívocos de sig-nificados atribuídos aos objetos, decorrentes douso de outros canais perceptivos diferentes davisão (tal como o tato, que oferece uma visãofragmentada do objeto).

A ênfase dada pelo novo paradigma ao ca-ráter provisório do conhecimento, significa, poroutro lado, a possibilidade de minimização,dentro da escola regular, dos pré-julgamentosou rotulações acerca das condições do porta-dor de deficiência visual (posições encontra-das, por exemplo, entre professores, no estudoque realizamos), ou seja, de um indivíduo queconta com dificuldades de desempenho maio-res que as dos outros, estando, assim, mais pas-sível de insucesso, uma vez que, desprovidode visão, ele estará pouco apto para acompa-nhar, satisfatoriamente, as atividades de sala deaula, baseadas, como antes se salientou, emestimulação e materiais preponderantementeviso-sensoriais. Em outras palavras, uma novaconcepção de educação do portador de defici-ência visual significa, antes de tudo, a elimina-ção do viés filosófico-metodológico,em funçãodo qual a escola formal pública vem se man-tendo pouco disposta a prestar-lhe assistênciapedagógica sistemática e permanente; e essapostura é normalmente justificada pela atitudeclássica da escola de isentar-se da responsabi-lidade sobre as dificuldades de aprendizagemdos alunos, principalmente, dos portadores dedeficiência, para os quais ela se diz pouco pre-parada (enquanto uma posição, de certa forma,fatalista), colocando na “deficiência” uma dasrazões mais significativas dos problemas derendimento escolar. Portanto, a nova concep-ção significa que a escola passará a adotar umaatitude oposta àquela que tradicionalmente vemmantendo, ou seja, consciente de que o mode-lo viso-sensorial e objetivista adotado é incom-patível com as necessidades do portador dedeficiência visual, a escola toma a si a respon-sabilidade de prover àquele educando as con-dições desejáveis para que ele construa seuconhecimento considerando, ao mesmo tem-po, as implicações da sua perda de visão nassuas formas e ritmo de aprendizagem. Um dosprimeiros efeitos dessa consciência é a valori-zação dos processos subjetivos e intersubjetivosde apropriação do significado dos objetos.

O princípio da provisoriedade associa-se aum outro, qual seja, o da processualidade doconhecimento, o que exige da escola o acom-

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panhamento da evolução do portador nesse sen-tido bem como das formas que ele utiliza paraconhecer, propiciando-lhe, ao mesmo tempo,as condições para o acesso a informações econteúdos em tempo adequado. Uma dessascondições seria a disponibilidade de todos osmateriais didáticos transcritos no sistemaBraille, bem como o retorno das suas produ-ções de forma permanentemente simultânea aosdemais alunos, situação não verificada duranteo estudo que realizamos.

Por último, ao se levar em conta a impor-tância da criatividade e da afetividade, enquan-to condições centrais para o conhecimento, deacordo com as concepções contemporâneasacerca da educação, isso significa considerar aprofunda relação dos processos criativos eafetivos com um outro componente cuja pre-sença na escola se sintoniza absolutamente coma natureza da personalidade humana e, parti-cularmente, da personalidade infantil, qual sejao lúdico.

Para a criança não visual, o lúdico, aquiencarado no sentido do brincar, é uma ativida-de vital, porque, de acordo com Bruno (1993,p.48), trata-se de uma “(...) ação preventiva queevita o encapsulamento”, ou seja, evita o retra-imento da criança, tanto do ponto de vista deprodução cognitiva quanto de relacionamentosocial na escola. Uma vez que a falta de visãoimplica o comprometimento da noção de per-manência do objeto e das suas características,as atividades lúdicas, que envolvem normal-mente o movimento corporal, significam umamaior possibilidade para o portador de defici-ência visual, de construção daquela noção e deconsciência de si mesmo. Trabalhar com olúdico significa, sobretudo, trabalhar com asubjetividade, com as emoções e com a liber-dade do portador de deficiência, através doapelo à imaginação, fantasia, capacidade cria-tiva e intuitiva, valorizando as próprias experi-ências e significados de vida, em oposição àobjetividade, à viso-sensorialidade e à pré-de-terminação, como condições básicas permanen-tes dentro do cotidiano escolar.

Na proposta do paradigma educacionalemergente, a escola não se furta ao lúdico por-

que não caracteriza os jogos, as brincadeirascomo condições que, pela descarga emotiva queproporcionam, representam uma ameaça à su-posta tranquilidade ordeira – passiva e submissa– vista como necessária dentro da sala de aula;pelo contrário, segundo esse novo paradigma,a escola acredita na força da alegria, do prazer,como fatores de ativação e fortalecimento doprocesso de desenvolvimento global do edu-cando.

Para o portador de deficiência visual, noâmbito da escola, o lúdico pela força dos seuscomponentes afetivos, simbólicos e interacio-nais, representa uma das fontes mais poderosasde expressão da forma como ele percebe os con-ceitos, avalia situações e se coloca como umsujeito social e membro de um determinado gru-po (educando), uma vez que as situações for-mais de aprendizagem, centralizadas nas atitu-des muitas vezes castradoras do professor, sãoinibitórias às suas manifestações naquele senti-do. Na esfera social, o lúdico representa umaoportunidade para que ele expresse suas formasde relacionar-se com os objetos e pessoas à suavolta, pela condição de espontaneidade,informalidade e emotividade que suscita.

Por último, caberia dizer que a valorizaçãoe a estimulação do processo auto-organizativo,através do apelo à reflexão, à ação, à criativi-dade, à imaginação, à curiosidade, à afetividadee emoção, às situações interativas do educan-do, como características fundamentais do pro-cesso de construção do conhecimento na esco-la aberta, significa, também, a exigência de queesse processo não se faça intra-muros ou noâmbito apenas da sala de aula .

Para o portador de deficiência visual, alémdos benefícios mencionados, ocasionados portais tipos de estimulação, o uso freqüente denovos espaços de aprendizagem (uma visita auma exposição de escultura, assistir a um showmusical) representa a oportunidade que a es-cola lhe propicia de ampliar os seus contatoscom novos ambientes físicos e, através deles,explorar uma gama mais diversificada de ob-jetos, inclusive utilizando os seus sentidos dis-poníveis, tais como o tato, o olfato, o paladar,a audição, os quais normalmente são coloca-

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dos em segundo plano enquanto canaisperceptuais estimuladores da aprendizagem,dentro da rotina pedagógica da maioria dasnossas escolas públicas regulares. Esses espa-ços representam a possibilidade, ademais, defortalecimento da autonomia do portador de

REFERÊNCIAS

BRUNO, M. O desenvolvimento integral do portador de deficiência visual: da intervenção precoce àintegração escolar. São Paulo: Newswork, 1993.

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VYGOTSKY L.S. A formação social da mente. O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Recebido em 10.06.02Aprovado em 21.08.02

deficiência visual, ou seja, de estimulação dosseus comportamentos de orientação e noçãoespaciais, superação de obstáculos, fomentan-do a sua mobilidade e o seu sentimento de se-gurança de ir e vir.

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Sahda Marta Ide

DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM: UMA INDEFINIÇÃO?

Sahda Marta Ide *

RESUMO

Há muitas teorias, modelos e definições para esclarecer as chamadas “difi-culdades de aprendizagem”. Em geral, atribuem-se esses problemas àsvariáveis pessoais, como hereditariedade ou lesões cerebrais, ambientesfamiliares e educacionais pobres ou ambos. De um lado, encontram-se asteorias que dão ênfase ao organismo como fonte dos atos e, do outro, ascorrentes de fundo ambiental, ligadas mais ou menos a uma visãomecanicista do desenvolvimento e que consideram a pessoa fundamental-mente controlada pelos estímulos do meio externo. Entretanto, as posiçõesnem sempre se limitam a uma dessas duas categorias, pois não se encontraum defensor de causas orgânicas que descarte por completo os diversosdeterminantes do ambiente, o mesmo ocorrendo com os estudiosos queenfatizam a importância dos fatores puramente acadêmicos, mas não igno-ram a transcendência de certos processos psiconeurológicos. Hoje,indubitavelmente, os problemas de aprendizagem convergem para obinômio ensino-aprendizagem, entendendo-se que a interação professor-aluno se dá num cenário de dimensões variadas, incluindo desde o espaçofísico da sala de aula até o mundo extra escola.

Palavras-chave: Dificuldades – Aprendizagem – Definição – Ensino –Meio

ABSTRACT

LEARNING DIFFICULTIES: AN INDEFINITION?

There are several theories, models and definitions to clarify the concept of“learning difficulties”. Generally, these problems are imputed to personalvariables, such as inheriting or brain damage, poor family or educationalenvironments or both. On the one hand, we find theories that emphasizethe organism as the source of acts and, on the other hand, the currents ofenvironmental roots, slightly linked to a mechanist view of developmentwhich consider people as fundamentally controlled by external stimuli.However, positions on this issue are not always limited to these two views,since we cannot find a defender of organic causes who totally discards thevarious determiners of environment, the same happening to the expertswho emphasize the importance of purely academic factors, but who do not

* Professora Livre Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo; Professora Adjuntodo Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana. Endereço para correspondên-cia: Av. Oceânica, 3009, apto 503, Ondina, 40210.000 – SALVADOR/BA. E-mail: [email protected]

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Dificuldades de aprendizagem: uma indefinição?

Na Educação Especial, as dificuldades deaprendizagem constituem, talvez, área das maisdifíceis de se conceituar. Há muitas teorias,modelos e definições para esclarecer esse pro-blema.

A expressão “dificuldades de aprendiza-gem” começou a ser usada mais freqüentementeno século passado, década de 60, para descre-ver uma série de incapacidades relacionadascom o insucesso escolar. Seu aparecimentoexprimiu a convicção de educadores, especia-listas e pais, de que algumas crianças possuí-am problemas de aprendizagem que não se en-quadravam nas categorias existentes; não ha-via, porém, consenso quanto à sua conceitua-ção, etiologia, prevalência e aos tipos de inter-venção apropriados.

Essa indefinição resultou numa gama deserviços para crianças com tais problemas,apressou o envolvimento dos pais à procura desoluções para as dificuldades de seus filhos,permitiu a formação acelerada de profissionaise incentivou a investigação de vários fatoresque poderiam contribuir para essas dificulda-des, das fisiológicas individuais às do ensino edo ambiente escolar e familiar; envolveu, en-fim, a sociedade e os governos, pelos custosmateriais e humanos que implicou. Nãoobstante, ainda não há uma perspectiva teóricaque englobe todo o conhecimento existentesobre as dificuldades de aprendizagem, o quesignifica que esse conceito é ainda bastantecomplexo e envolve muitas dúvidas.

Examinando-se inúmeras definições de di-ficuldades de aprendizagem, observou-se, emtodas, comportamentos comuns aos alunos comesse problema, tais como:

(...) baixo aproveitamento escolar em leitura,ditado, cálculo – no ensino fundamental e emdisciplinas nucleares do ensino médio – etiologia

disfuncional do sistema nervoso central,disfunções no processamento de informações porruptura dos processos psicológicos superiores;perpetuação dos distúrbios de aprendizagem aolongo da vida; problemas de recepção, integra-ção, elaboração e de expressão, acarretando pro-blemas de linguagem; problemas conceituais,envolvendo processos de raciocínio, de pensa-mentos hipotéticos, dificuldades interacionais,desmotivação, hiperatividade, impulsividade,desorientação espacial, repercussão multidisfun-cional dos distúrbios de aprendizagem, isto é,coexistência de outros problemas emergentesdessas condições de dificuldades. (FONSECA,1987, p.225-226)

Enfim, um número muito grande de com-portamentos e problemas atribuídos a criançasque, por algum motivo, não aprendem de acor-do com o seu potencial.

A expressão “dificuldade de aprendizagem”,numa perspectiva educacional, hoje, é mais acei-ta, porque retira o estigma associado a “atraso”,“lesão cerebral” ou “disfunção cerebral mínima”,e mais desejada pelos pais, que a vêem comouma forma mais branda de denominação paraos problemas de seus filhos. Entretanto, devidoao seu caráter abrangente, urge que se tomemos necessários cuidados, para que não se caia naarmadilha de considerar todo problema escolarcomo dificuldade de aprendizagem.

Segundo Gallager (1982), a definição dedificuldades de aprendizagem permite que osalunos sejam colocados em programas de edu-cação especial sem que tenha sido determina-da a natureza exata do seu problema de apren-dizagem, pois, sob essa denominação, é possí-vel incluir alunos cujo insucesso escolar resul-ta de fatores sociais, práticas pedagógicas ina-dequadas e, ainda, de problemas de desenvol-vimento. Segundo esse mesmo autor, se todosesses alunos fossem classificados como porta-dores de dificuldades de aprendizagem, a

ignore the transcendence of certain psycho neurological processes.Currently, doubtlessly, learning problems converge to the dichotomylearning-teaching, considering that teacher-student interaction takes placein a multidimensional scene, which encompasses from the physical spacein school up to the world outside the school.

Key words: Difficulties – Learning – Definition – Teaching – Environment

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Sahda Marta Ide

prevalência do problema poderia chegar a até20% da população escolar. Por isso, faz-se ne-cessário analisar o que diz a literatura sobrecrianças com problemas de aprendizagem, paraque delas se tenha uma imagem mais precisa.

Antes de introduzir-se a expressão “dificul-dades de aprendizagem”, muitas outras foramusadas para descrever uma criança cujos pa-drões de aprendizagem e de comportamentonão se enquadravam nas definições existentessobre esse problema.

A expressão lesão cerebral, por exemplo,surgiu dos estudos efetuados por Strauss eLehtien. Referia-se a crianças caracterizadascomo deficientes mentais, cujos problemas deaprendizagem decorriam de problemas bioló-gicos ou de acidentes que haviam lesionadoseus cérebros (CORREIA, 1991, p.94). Essadefinição prevaleceu até a década de 1960, épo-ca em que Cruicksank (1976) definiu a lesãocerebral como uma disfunção perceptiva, ouseja, um conjunto de problemas em relação àrecepção, à organização, à retenção ou expres-são de informação, ao armazenamento, quepoderiam ocorrer em qualquer idade ou nívelde capacidade intelectual.

Muitas críticas a ela se fizeram por ser umadefinição muito abrangente para um significa-do específico e por implicar também na impos-sibilidade de a criança ser corrigida, tendo emvista que as células do cérebro são irreparáveis;ainda, por não descrever as características dascrianças dela portadoras nem os métodos deensino a que deveriam ser submetidas (STE-VENS & BIRCH, 1957).

Uma outra expressão – “disfunção cerebralmínima” – foi usada por Clements em referên-cia a: “(...) crianças de inteligência próxima damédia, ou acima dela que possuíam certas difi-culdades (mínimas ou severas), na aprendiza-gem e no comportamento, as quais se encon-tram associadas a desvios de funções do siste-ma nervoso central. Estes desvios poderiammanifestar-se por um conjunto de combinaçõesde incapacidades na percepção, conceitualiza-ção, linguagem, memória e controle de aten-ção, impulsividade e função motora.” (FON-SECA, 1987, p.289)

Entretanto, no final da década de 1960, essaexpressão já estava bastante desgastada, umavez que era empregada de referência a todosos problemas de insucesso escolar, muito em-bora continuasse usual no meio clínico.

Somente em 1962 é que “dificuldade deaprendizagem” foi utilizada por Samuel Kirkem seu livro Educating Exceptional Child eentendida como um atraso, uma desordem ouimaturidade, num ou mais processos da lingua-gem falada, da leitura, da ortografia ou da arit-mética, resultantes de uma possível disfunçãocerebral e/ou de distúrbios de comportamentoque não dependem de deficiência mental, deprivação social, cultural ou de um conjunto defatores pedagógicos. A dificuldade de apren-dizagem seria a manifestação de uma discre-pância educacional significativa entre o poten-cial intelectual estimado da criança e o seu ní-vel atual de realização, que estaria relacionadacom as desordens básicas dos processos deaprendizagem que podem ser ou não acompa-nhadas por disfunção do sistema nervoso cen-tral e que não são causadas por deficiênciamental, por privação cultural e/ou educacional,perturbação emocional severa ou perda senso-rial. Tal entendimento constituiu um marco his-tórico, pois passou-se a considerar a criançacom dificuldade de aprendizagem como pos-suidora de um potencial intelectual acima dasua realização escolar, dando-se, desse modo,relevância ao componente educacional em de-trimento do clínico.

Esse autor elaborou para a National Adviso-ry Commitee on Handicapped Children, umanova definição para o problema:

Uma criança com dificuldade de aprendizagempossui uma deficiência em um ou mais dos pro-cessos psicológicos básicos envolvidos na com-preensão ou uso da linguagem falada ou escrita.Estas dificuldades podem manifestar-se por de-sordens na recepção da linguagem, no pensamen-to, na fala, na leitura, na escrita, na soletraçãoou na aritmética. Tais dificuldades incluem con-dições que têm sido referidas como deficiênciaperpétua, lesão cerebral, disfunção cerebral mí-nima, dislexia, afasia de desenvolvimento, etc.Elas não incluem problemas de aprendizagem,resultantes, principalmente de deficiência visual,

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Dificuldades de aprendizagem: uma indefinição?

auditiva, motora, de deficiência mental, de per-turbação emocional ou de desvantagem ambien-tal. (KIRK, 1968, p.34)

Igualmente às definições anteriores, aindapermaneceram dúvidas quanto à identificaçãoda criança com dificuldades de aprendizagem etambém quanto ao seu tratamento pela escola.

Em 1975, então a Lei Pública Americana94-142, em sua parte B, secção 5, subsecção620, determinou que o diretor de educação de-veria estabelecer e descrever os procedimen-tos de diagnóstico, estabelecer critérios paradeterminar se uma dada perturbação poderiase designada como dificuldade de aprendiza-gem e controlar o cumprimento do estabeleci-do. Já em 1977, o Departamento de Saúde,Educação e Serviços Sociais dos Estados Uni-dos afirmava não haver uma definição consis-tente para as dificuldades de aprendizagem quepudesse nortear o país, os estados e as comuni-dades e que poucas pesquisas haviam sido fei-tas para verificar a validade das definições pro-postas, desde quando elas se diferenciavam namaioria dos estudos analisados. Hoje, a defini-ção oficialmente aceita da expressão “dificul-dade de aprendizagem” é a que consta do rela-tório de King, técnico do citado departamento:

Dificuldade de aprendizagem significa uma per-turbação num ou mais dos processos psicológi-cos básicos envolvidos na compreensão ou uti-lização da linguagem falada ou escrita, que podemanifestar-se por uma aptidão imperfeita de es-cutar, pensar, ler, escrever, soletrar ou fazer cál-culos matemáticos. O termo inclui condiçõescomo deficiências perceptivas, lesões cerebrais,disfunção cerebral mínima, dislexia e afasia dedesenvolvimento. O termo não engloba as cri-anças que têm problema de aprendizagem resul-tantes principalmente de deficiências visuais,auditivas, motoras, de deficiência mental, per-turbação emocional ou de desvantagens ambien-tais, culturais ou econômicos. (Federal Register,apud CORREIA, 1991, p.98)

O texto ainda esclarece que uma criança éinapta para a aprendizagem “normal” se apre-sentar uma discrepância significativa entre arealização e a capacidade intelectual em umaou mais das sete áreas específicas: expressãooral, compreensão auditiva, expressão escrita,

capacidade básica de leitura, compreensão deleitura, cálculos matemáticos, raciocínio ma-temático.

Essa definição oficial exclui as crianças comdeficiência mental, visual, auditiva, e motora,com perturbação emocional, e com desvanta-gens culturais, sociais ou econômicas, emboraas dificuldades de aprendizagem possam coe-xistir com tais condições. Segundo Padula(1979), as crianças com os problemas acimamencionados podem apresentar problemas deaprendizagem que não são originados por in-capacidades intelectuais, emocionais ou físicas.Outros autores, como Smith & Polloway (1978)criticam a mencionada definição, pois acredi-tam que uma criança pode ter uma perturbaçãoemocional devido a fatores ambientais e tam-bém apresentar dificuldades de aprendizagemderivadas de uma lesão cerebral causada poracidente pós-natal, assim como ter deficiênciassensoriais com ou sem dificuldades de apren-dizagem. Em qualquer caso, é difícil determi-nar se uma dificuldade de aprendizagem coe-xiste com uma outra incapacidade, mesmo in-dependente dela, se a outra incapacidade é cau-sadora da baixa realização ou se é a dificulda-de de aprendizagem a causadora dessa mesmaincapacidade e, conseqüentemente, de umabaixa realização acadêmica.

O mesmo ocorre com crianças com desvan-tagens culturais ou econômicas que, às mais dasvezes, não tiram proveito suficiente do ensinoregular. É impossível dizer-se se essas criançastêm dificuldade de aprendizagem ou se são ascircunstâncias de desvantagem que as impedemde desenvolver-se na escola. Poder-se-ia abor-dar, aqui, outro dado que levaria a muita polê-mica. Essas “desvantagens” socioculturais de-vem ser vistas como déficits ou como especifi-cidades não respeitadas pelos programas, pelaspráticas pedagógicas e pelo sistema educacio-nal? É provável que a falta de aproveitamento ede valorização de tais especificidades sociocul-turais não contempladas na escola provoquemmais insucesso escolar.

A imprecisão observada levou os investi-gadores dessa área a continuar a árdua tarefade tentar especificar com exatidão quais seriam

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Sahda Marta Ide

os problemas que a criança com dificuldade deaprendizagem apresentaria para além da suadificuldade acadêmica.

Observa-se que, antes de 1975, era grandea discordância entre os autores sobre o concei-to de “dificuldades de aprendizagem”. Entre-tanto, desde 1975, após a formulação de umadefinição legal, a situação tornou-se mais tran-qüila, embora muitos investigadores dela dis-cordassem, por faltar a ela uma certa operacio-nalidade que a tornasse satisfatória.

Mais recentemente, em 1988, Silver, doDepartment of Health and Human Services,Interagency Committeen Learning Disabilities,propôs uma definição que também tem encon-trado resistências. Para ele:

Dificuldade de aprendizagem é um termo gené-rico que diz respeito a um grupo heterogêneo dedesordens manifestadas por dificuldades signi-ficativas na aquisição e uso das capacidades deleitura, escrita, raciocínio matemático, ou deaptidões sociais. Estas desordens são intrínse-cas ao indivíduo e são devidas presumivelmentea uma disfunção do sistema nervoso central.Embora as dificuldades de aprendizagem pos-sam ocorrer concomitantemente com outras con-dições de incapacidade (por exemplo, deficiên-cia sensorial, deficiência mental, perturbaçãoemocional ou social) ou com influênciasambientais (por exemplo, diferenças culturais,ensino insuficiente/inadequado, fatores psicoge-néticos), ou ainda e especialmente, com um dé-ficit de atenção, os quais podem causar proble-mas de aprendizagem, uma dificuldade de apren-dizagem não é devida a tais condições ou influên-cias. (CORREIA, 1991, p.104).

Vê-se, portanto, ainda não haver uma defi-nição satisfatória e “(...) sem uma definiçãocientífica e comprovada do problema, os seuslimites não se estabelecem, a imprecisão dodiagnóstico se alastra, a ausência das prescri-ções multiplica-se e as incongruências práti-co-teóricas e terapêutico-reeducativas jamais seextinguirão.” (FONSECA, 1975, p.134)

Face ao exposto, é razoável afirmar que hámuita controvérsia quanto à classificação eunificação do conceito. Na literatura investi-gações numerosas tentam explicar com certaexatidão quais os problemas que um adoles-cente ou uma criança apresenta para além de

seu problema escolar. Portanto, é necessáriauma nova definição na qual, mesmo que seconsiderem os aspectos fundamentais da atual,se enfatize o aspecto educacional e se especifi-que a população em causa, pelo menos de for-ma operacional.

Alguns autores, como Bake, Bos & Filip,Hallahan & Ianna e Wong, pontuando aheterogeneidade evidente das dificuldades deaprendizagem dos indivíduos sugerem:

(...) a existência de um fio condutor entre umvasto número de crianças com dificuldades deaprendizagem. Isto quer dizer que embora nãohaja duas crianças iguais, talvez haja um deter-minado grau de similariedade entre muitas dascrianças com dificuldades de aprendizagem. Aesta similariedade chamou-lhe de déficitmetacognitivo e, cada vez mais a investigaçãosugere que muitos dos indivíduos com dificul-dades de aprendizagem exibem déficit metacog-nitivo.” (CORREIA, 1991, p.102-3)

Tais considerações esclarecem a importân-cia de se compreender os processos de cons-trução do conhecimento como atividade do in-divíduo que aprende, ou seja, a importância dese deslocar o eixo conceitual de “como se en-sina” para “como se aprende”, por meio de umapedagogia em que a compreensão do papel decada um dos participantes do processo educa-tivo professor-aluno muda radicalmente. A vi-são do sujeito que aprende é fundamental. Oenfoque da aprendizagem não pode ser resu-mido em mudança comportamental observávele mensurável, a partir da conexão estímulo-res-posta, possibilitando um condicionamento pro-gressivo. O domínio do conhecimento é resul-tante da própria atividade do sujeito. Ao fazerreferência à expressão “sujeito ativo e constru-tor” Ferreiro (1996) mostra que Piaget (1975)a usou ao falar da construção do real na crian-ça, ou seja, o real existe fora da criança, mas énecessário reconstruí-lo para conquistá-lo e,para isso, é preciso que ela seja ativa, que or-ganize e reorganize seus esquemas assimi-ladores.

O professor precisa, então, abandonar a idéiade que se constrói conhecimento apenas pormeio de técnicas e métodos. A concepção de

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Dificuldades de aprendizagem: uma indefinição?

aprendizagem vista pela psicologia genéticaquestiona se toda aprendizagem é produto deum método que, por sua vez, enquanto açãooriunda do meio, pode facilitar ou dificultar aaprendizagem, jamais criá-la. Cabe pois ao pro-fessor conhecer os processos de construção deconhecimento de seu aluno, considerando arealidade desse aluno, seu contexto social efamiliar. Para tanto, é necessário ter um míni-mo de coerência em relação aos aportes teóri-cos da sua formação para que possa desenvol-ver, com seu aluno, uma relação de respeito,criando situações desafiadoras, mas propíciasa que ele encontre os caminhos necessários paraadquirir o conhecimento sem “dificuldades”.

Além desse aspecto relevante, fatores esco-lares, sociais e culturais na compreensão dasdificuldades de aprendizagem devem ser leva-dos em conta, porque a desigualdade social sereflete nas condições de acesso, ingresso e per-manência na escola. No que se refere à perma-nência na escola, a maioria dos problemas deaprendizagem nela se refletem, principalmen-te em se tratando de populações de baixa ren-da, com deficiência de recursos de toda ordema que se somam outras pela falta de oportuni-dade de se apropriarem do saber, do saber fa-zer e do saber pensar.

Na maioria das vezes, as dificuldades deaprendizagem ocorrem predominantemente nasséries iniciais e em alunos provenientes dascamadas mais desfavorecidas da populaçãoque, na sua quase totalidade, são usuárias dosistema público de ensino. O mesmo não se dácom crianças da classe média que ingressamna escola, pois a retenção e a deserção dificil-mente fazem parte da sua expectativa.

Muitos autores que pesquisam o cotidianoescolar de escolas públicas, como Maciel(1994), Griffo (1994), Rezende (1994, Carva-lho (1993), Sena (1990) mostram que a maio-ria dos educadores tenta remediar os efeitos depráticas pedagógicas que fracassam com justi-ficativas científicas baseadas na psicologia,medicina e sociologia. Esses educadores ado-tam atitudes variadas para classificar os alunosde “bons “ e “maus” para o que utilizam me-canismos de avaliação, remanejamentos, nor-

mas disciplinares e até o encaminhamento dos“maus” para clínicas e escolas especializadasDesse modo, depositam no aluno toda a res-ponsabilidade pela não aprendizagem, sem le-var em conta o processo escolar e social emque se produz a aprendizagem.

A esse respeito, não se pode deixar de con-siderar que:

A inadequação da escola decorre muito mais desua má qualidade, da suposição de que os alu-nos pobres não têm habilidades que na realida-de muitas vezes possuem, da expectativa de quea clientela não aprende ou que o faça em condi-ções em vários sentidos adversas à aprendiza-gem, tudo isso a partir de uma desvalorizaçãosocial dos usuários mais empobrecidos da esco-la pública elementar. É no mínimo incoerenteconcluir, a partir de seu rendimento numa esco-la cujo funcionamento pode estar dificultando,de várias maneiras, sua aprendizagem escolar,que a chamada “criança carente” traz inevita-velmente para escola dificuldades de aprendiza-gem. (PATTO, 1993, p.340)

Vale ressaltar ainda, que o estudo sobre ofracasso escolar: “(...) deve romper com as ex-plicações naturalistas, biológicas e individuaisdo senso comum para o fracasso escolar pre-sentes, inclusive nas práticas científicas (...)consiste na tentativa de explicar o que está ocul-to no discurso, permitindo que os sintomas quemantêm intocável e inflexível o modelo teóri-co dos educadores se revelem.” (GOMES,2000, p.11)

Assim sendo, para explicar os fracassos es-colares, aspectos sociais, escolares e psicolin-güísticos devem ser analisados, assim como opeso do ambiente escolar com suas normas ex-plícitas e implícitas de conduta, construídas pe-los professores, alunos e pela própria escola.

Não há dúvida de que os preconceitoslingüístico e cultural, presentes nas práticas es-colares, apresentam-se como grande fator dediscriminação das crianças das camadasdesfavorecidas da sociedade, pois “é o uso dalíngua na escola que evidencia mais claramenteas diferenças entre os grupos sociais e que geradiscriminação e fracasso.” (SOARES, 1985,p.17). As variações lingüísticas são fatores dediscriminação e instrumento de uso de autori-

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Sahda Marta Ide

dade e poder dentro das escolas, embora nãoapareçam de forma clara nas dificuldades deaprendizagem, principalmente na alfabetização.

Recentemente, com a política de inclusãode pessoas deficientes em escolas comuns, tãodiscutida na Declaração de Salamanca (1994),em sua defesa e na proposta de um plano deação para a criação de escolas inclusivas, asdificuldades de aprendizagem passaram a servistas não mais como categorias de perfis clí-nicos estáveis nem centradas apenas nos indi-víduos. Passou-se a dar mais ênfase ao proces-so de aprendizagem como função interativaprofessor/aluno/contexto sociocultural/objetode conhecimento. Passou-se também a rever osprocessos de avaliação pedagógica, que se têmcentrado mais nos processos de aprendizageme em suas dimensões sociais do que na buscade característica desse ou daquele traço clínicopatológico. Partiu-se, então, para determinar asnecessidades do aluno visto na sua totalidade enão apenas no seu desempenho acadêmico,comparado, muitas vezes, com o desempenhodo aluno médio.

O princípio da inclusão exige uma escolaque leve em conta a pessoa do aluno do pontode vista acadêmico, socioemocional e pessoal,para que possa lhe proporcionar uma educaçãoapropriada ao desenvolvimento de seu poten-cial. Nesse sentido, algumas recomendações ereflexões são importantes:a) As crianças com dificuldade de aprendiza-gem são um grupo heterogêneo e, por isso,deve-se levar em conta as suas característicasdiferentes para não submetê-las ao mesmo tipode ensino;b) As dificuldades de aprendizagem dessas cri-anças não são o único obstáculo ao seu suces-

so, sendo necessário levar em conta as tarefasque elas devem desenvolver e o ambiente deaprendizagem que as rodeia, pois esses fatorespodem agravar seus problemas;c) Pequenos desvios estão dentro da normali-dade e não se pode considerar qualquer varia-ção da norma como uma incapacidade;d) A escola deve ver a criança como um todo enão só como criança-aluno, respeitar o seu ní-vel de desenvolvimento acadêmico, socioemo-cional e pessoal, dando-lhe uma educação apro-priada e orientada para a maximização do seupotencial;e) As chamadas “dificuldades de aprendiza-gem”, muitas vezes, são mais dificuldades deensino, provocadas por ações que não levamem conta, nem interpretam a realidade do alu-no, suas desigualdades sociais, econômicas,culturais e pessoais.

A definição de dificuldades de aprendiza-gem não deve ser interpretada como uma solu-ção para os problemas da criança, mas comouma estratégia para elaboração de alternativaspedagógicas apropriadas, diversificadas, resul-tantes da investigação nas práticas escolares,uma vez que as tendências atuais apontam parao binômio ensino-aprendizagem, entendendo-se que a interação aluno-professor não se dáno vazio. Há um cenário de dimensões varia-das em que se inclui desde o espaço físico desala de aula até o mundo extra escola.

Para que se possa pensar numa escola ondetodos sejam incluídos, é preciso que a institui-ção educacional atente mais para os interesses,características e resistências apresentadas pe-los educandos durante seu processo de apren-dizagem, ao invés de culpabilizá-los pelos seusfracassos e dificuldades.

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Recebido em 19.10.01Aprovado em 07.07.02

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Liana Gonçalves Pontes Sodré

CRIANÇA: A DETERMINAÇÃO HISTÓRICA

DE UM CIDADÃO EXCLUÍDO

Liana Gonçalves Pontes Sodré *

RESUMO

O objetivo do artigo é refletir sobre alguns determinantes históricos quefavoreceram a concepção de infância que se mantém até hoje. Uma con-cepção socialmente construída de seres vistos como dependentes e incom-pletos, vulneráveis freqüentemente ao poder abusivo dos adultos. Ao finalpropõe que a criança seja vista como um ser biológico e social que depen-de (como todos nós) da mediação de outras pessoas para aquisição de com-petências, ressaltando que a identidade construída para as diferentes crian-ças de nossa realidade (urbanas e rurais, de categorias socioeconômicasmais altas e mais baixas, meninos e meninas, etc.) demanda diferentesinvestimentos para a construção de um desenvolvimento compatível coma dignidade humana

Palavras-chave: Criança – Desenvolvimento – Conceito de infância

ABSTRACT

CHILD: THE HISTORICAL DETERMINATION OF AN EXCLUD-ED CITIZENThe objective of this article is to reflect on a few historical determinerswhich favored the concept of childhood as it is up to these days. A sociallyconstructed concept of beings that are seen as dependent and incomplete,often vulnerable to the abusive power of adults. At the end it proposes thatthe child be seen as a biological and social being who depends (as we alldo) on other people’s mediation for the acquisition of competences,emphasizing that the identity constructed for the different children of ourreality (urban and rural, of a higher and lower socioeconomic strata, maleand female, etc.) demands different investment for the building ofdevelopment which is compatible with human dignity.

Key words: Child – Development – Concept of childhood

* Professora Adjunta Aposentada da Universidade Federal da Bahia, Professora Adjunta do Campus X –UNEB. Doutora em Psicologia Educacional pela UNICAMP. Endereço para correspondência: Rua Turque-sa, n. 60, Condomínio Kaikan, Jardim Caraípe – 45 995-000 Teixeira de Freitas/Bahia. E-mail:[email protected]

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Criança: a determinação histórica de um cidadão excluído

Há, praticamente, uma unanimidade emconsiderar os primeiros anos de vida como fun-damentais no processo de desenvolvimentohumano. Contudo, para que as crianças sejamvistas como cidadãs (e não como um projetofuturo) que exercem seus direitos e devem-seapropriar, bem como participar do processo deprodução da cultura desenvolvida historica-mente pela humanidade, é preciso que se tenhaclareza sobre o conceito de criança ou de in-fância construído socialmente ao longo da his-tória. São tais concepções que favorecem, ounão, a construção da autonomia e a inserçãocrítica e participativa no meio social, tão ne-cessárias aos indivíduos atuantes de que a so-ciedade precisa.

O conceito de infância vem sendo alteradoao longo da evolução do homem e, aliado aisso, também vem sendo modificada a concep-ção do papel social desses primeiros anos devida. Historicamente, segundo Kramer (1982),até o século XVI, a mortalidade infantil eramuito alta e as poucas crianças que sobrevivi-am acompanhavam os adultos e exerciam ati-vidades produtivas desde pequenas e isto eraconstante nas classes mais baixas. Miranda(1997) ressalta, porém, que a partir do séculoXVII as crianças vão deixando o convívio di-reto com os adultos e, pela influência dosreformadores moralistas, passam a ser prepa-radas para um convívio social futuro pelas Ins-tituições de Ensino. Afastadas do meio social,elas perdem a possibilidade de opinar sobredecisões que lhes diziam respeito, passam a serexcluídas dos meios de produção, das ativida-des sociais (festas, jogos, etc.), tornam-se, por-tanto, marginalizadas econômica, social e po-liticamente, ficando relegadas à condição deconsumidoras de bens e de idéias definidaspelos adultos.

Essas mudanças vão-se impondo a partir dasdescobertas científicas que propiciaram a dimi-nuição do índice de mortalidade infantil (espe-cialmente nas classes mais privilegiadas). Ascrianças, em maior número, passaram a ocuparmais espaço na vida dos adultos, solicitando maiscuidados e atenção especial. Em conseqüênciadisso, seu papel social também muda. Assim, a

idéia de infância deixa de ser um fato natural noprocesso de desenvolvimento e se configuranuma concepção socialmente construída, de umser dependente e incompleto, o que justificariaa sua desigualdade social, a sua marginalidadee o poder abusivo dos adultos.

Além das descobertas científicas, na novaforma de organização da sociedade – a socie-dade capitalista urbano-industrial que estavasendo instituída – a burguesia redobra o cuida-do com sua prole e vai modificando, pelo exem-plo, o conceito de infância. A atenção especialdedicada à sobrevivência das crianças, pelascategorias sociais mais altas, as transforma emseres frágeis que precisam da educação e docontrole do adulto. Neste sentido, Sandin(1999) afirma que as transformações sociaisforam verificadas nas relações entre as diver-sas classes sociais, entre homens e mulheres eentre adultos e crianças, tendo em vista as pos-sibilidades de emprego e os novos interessescomerciais.

A organização social e a distribuição do tra-balho atual são produtos de uma longa históriade conflitos entre os que produzem e os donosdos meios de produção; esses conflitos, comoafirma Enguita (1989), até hoje ocorrem, ape-sar das vitórias constantes dos que detêm osmeios de produção. A estrutura e a organiza-ção do poder, que se vai cristalizando, sãoalienantes. Para a classe dominante, a aliena-ção é seu próprio poder, através do qual viveuma aparência humana e, lutando para mantereste poder, é conservadora. Já as classes ex-ploradas sentem-se destruídas pela alienaçãode uma existência desumana e, por força deconseqüência, precisam se tornar os revoluci-onários.

Esta revolução ou esta nova ordem que de-veria basear-se na luta por uma distribuiçãomais eqüitativa das necessidades básicas e con-dições mais humanas de vida para todos, nemsempre foi vista desta maneira pelas classesexploradas. A expectativa delas é a ascensãoao poder, numa busca pelos mesmos privilégi-os e pelas mesmas condições.

O processo histórico da acumulação do ca-pital e a ampliação da propriedade privada re-

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Liana Gonçalves Pontes Sodré

tiraram o homem do campo e levaram os ofíci-os tradicionais à ruína. O trabalho, que na mai-oria das vezes envolvia toda a família, foi subs-tituído pelo fetichismo da maquinaria, pelaatomização das relações sociais, pela expan-são do individualismo, pelo fim das tradições(tudo que é moderno, na grande maioria dasvezes, está a serviço dos meios de produção) epela aceitação acrítica dessas novas relaçõessociais (ENGUITA, 1989).

O conjunto de princípios que estabeleceuuma nova ordem nas relações não favoreceu oseu princípio básico, o liberalismo. Este defen-dia a idéia de que os indivíduos deveriam ter aliberdade para escolher o seu destino e definiro seu próprio progresso. Como conseqüênciadisto e sem que houvesse intervenções no pro-cesso de distribuição das oportunidades, as ini-ciativas mais bem-sucedidas favoreciam os quejá ocupavam posições sociais vantajosas.Como, aparentemente, as pessoas não eramtolhidas nas suas iniciativas, o responsável pelosucesso e fracasso de cada um passa a ser opróprio indivíduo e não a organização social(CUNHA, 1978).

Atualmente, todo o contexto das socieda-des capitalistas é fruto dessa ideologia, a qualestá embutida em todos os elementos que com-põem a sociedade, permeia as interações dasdiversas classes sociais e, nessas contingênci-as, atinge uma dimensão que vai além do sen-tido cultural ou conceitual (SHARP, 1980;HALL, 1981; TRINDADE, 1999). As relaçõesbaseiam-se no individualismo, na ordem, naautoridade e na submissão, com o objetivo dedefender o direito adquirido pelas iniciativasprivadas. A ordem e a autoridade funcionammuito mais no propósito de manter as pessoastuteladas e submissas à ordem social, ou à dis-tribuição dos bens e das oportunidades gera-das pelas iniciativas privadas.

As desigualdades de oportunidades, apesarde chocantes, foram sendo elaboradas de talforma que, como afirmam Apple (1989) e Cu-nha (1978), parecem legítimas.

O exercício do poder generalizou-se e tam-bém as crianças passaram a ser educadas mui-to mais para a submissão do que para a forma-

ção de pessoas questionadoras, criativas e em-preendedoras.

Assim sendo, nessa nova sociedade, a cri-ança idealizada fica de fora da força produtivae passa a ser assumida numa outra concepção.É colocada em instituições educacionais paraaprender a lidar com os meios de produção.Nelas, com a burocracia e a impessoalidade, acriança perde sua individualidade e aprende quesão os outros que dispõem e organizam seu tem-po, definem o que ela deve fazer e como deveproceder. As instituições educacionais alienamainda mais as oriundas das classes mais bai-xas, desconsiderando seu discurso e as dife-renças inerentes às diversidades das origenssocioeconômicas.

Kramer (1982) defende o ponto de vista deque, a partir de então, passou a existir um novosentimento em relação à criança. Esse novosentimento é baseado numa outra concepçãosobre natureza infantil. Ele traz implícito que épróprio às crianças, em geral, serem dependen-tes da educação e moralização dos adultos.Assim sendo, elas passam a ser consideradasimperfeitas e incompletas, configurando ummodelo bem distante da concepção de adultoem miniatura até então vigente. Este modelode infância das classes dominantes se genera-liza e passa a ser visto como um processo natu-ral: a infância como parte da natureza humanae não como um conceito socialmente construído.

Mais do que isso, dois novos fatores tor-nam-se fundamentais na concepção de infân-cia: o fator tempo, que vem delimitar este perí-odo, e a nova natureza infantil, que passa a servista com um sentido marcadamente biológi-co. Esses elementos dão as bases para o exer-cício da autoridade do adulto e, deste modo, adependência social torna-se, por analogia, umadependência natural. Os pais adquirem o po-der de vida e mesmo de morte sobre seus fi-lhos (ARIÉS, 1981).

A infância das crianças das classes maisprivilegiadas prolonga-se cada vez mais, nabusca por uma formação acadêmica que as pre-pare para os avanços científicos e tecnológicosnecessários aos novos meios de produção. Asdemais crianças, acreditando na possibilidade

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Criança: a determinação histórica de um cidadão excluído

de ascensão social, procuram copiar este mo-delo, buscando na educação formal o aval paraeste processo. Deste modo, a infância passa aficar subordinada muito mais à formação aca-dêmica do que às reais necessidades do pro-cesso de construção da autonomia pertinentesa toda sua vida. Algumas crianças prolongamdemasiadamente o ingresso no mercado pro-fissional (as mais privilegiadas), enquanto agrande maioria vai, por força das condiçõessocioeconômicas a que estão submetidas, abrin-do mão deste propósito. Elas abandonam a es-cola e vão ocupando o mercado profissional,nos espaços que lhes são acessíveis.

É evidente que, nos primeiros anos de vida,as mudanças biológicas são marcantes e se con-figuram como um aspecto do desenvolvimen-to que deve ser considerado. Entretanto, asmudanças biológicas não devem sobrepor-se àcondição de ser social do ser humano no cursode sua vida. Para Miranda (1997, p.131), “en-quanto sujeito da história, a criança tem a pos-sibilidade de recriar seu processo de socializa-ção e através dele interferir na realidade social”.Ou seja, a criança pode ser sujeito da ação,apesar da constante repressão que a sociedadefaz em oposição a isso, o que fica mais explícitonas diferentes formas de participação das crian-ças de origens socioeconômicas diferentes.

No que diz respeito à duração da infância, oseu prolongamento deve-se basicamente àsnecessidades da inserção profissional das cri-anças das classes mais altas. A formação pro-fissional dos setores econômicos dirigentespassa a exigir mais tempo, dada a tecnologia etodo o progresso dos meios de produção.

Kramer (1982) enfatiza que, numa socieda-de de classes, a infância é determinada pelaorigem social do indivíduo, que delimita, entreoutras coisas, o momento e a condição de suainserção no mercado de trabalho. Como exem-plo, verifica-se que, nas classes trabalhadoras,a inserção das crianças é mais cedo, pois asnecessidades as obrigam a entrar precocemen-te na vida profissional.

Independente desta análise, todo novoenfoque em direção ao desenvolvimento deixade favorecer, por um longo período, a possibi-

lidade de análise da condição infantil e o signi-ficado social do que seja a infância. As con-cepções que as fortalecem colocam dentro dascrianças as explicações sobre o que está ocor-rendo com elas e não dão destaque à dimen-são da influência do ambiente físico e socialno processo de desenvolvimento.

A concepção do que seria infância, com suascaracterísticas e sua duração, é um modelohegemônico imposto pelas classes dominantes.Distantes das análises sobre as condições devida oferecidas às crianças de categoriassocioeconômicas e de meios sociais diferen-tes, as categorias mais altas impuseram expec-tativas que se generalizaram e favoreceram aconcepção de infância como um fenômeno na-tural, em que seres incompletos e imperfeitosdevem ser subjugados à autoridade dos adul-tos. Um exemplo freqüente desta afirmativapode ser confirmado, quotidianamente, na for-ma de repressão que os adultos utilizam paracoibir alguns atos infantis. Em vez de recrimi-nar o ato em si e, com isso, as ajudar a analisaro feito, recriminam a própria criança qualifi-cando-a com adjetivos (desastrada, mal-educa-da,...) e, assim, contribuem para a formação daimagem que cada uma fará de si mesma. For-talecem também, pela introjeção de uma ima-gem que se vai construindo no dia-a-dia, estaconcepção de infância.

Esses fatores, entre outros, favoreceram apossibilidade de explicações baseadas em deter-minantes internos, por um longo período nahistória da humanidade. Em pesquisas já reali-zadas, como a de Saracho (1991), professorasapresentaram diferentes expectativas com re-lação a diferentes características que elas atri-buíram a cada aluno. Os alunos que lhes pare-ciam mais competentes na compreensão dosconteúdos acadêmicos, apresentaram bons re-sultados na aprendizagem, o que veio acorresponder a essas expectativas. Os que as-sim não lhes pareciam, apresentaram dificul-dades na compreensão desses conteúdos. Es-tes estudos mostram que mais determinante doque a comprovação ou não das dificuldades nacompreensão, é a expectativa dos professoresem relação aos seus alunos.

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Muitas pessoas agem em relação a outras –assim como essas professoras agiram em rela-ção aos seus alunos – a partir das expectativaspreconcebidas que formaram, baseadas em ca-racterísticas que acreditam ser inerentes a elas.Parece evidente que qualquer concepçãoapriorística leva a uma alta probabilidade deconfirmação das expectativas, até porque édesta forma que as pessoas conseguem enten-der o que estão vendo. Além disso, estas pré-concepções determinam o modo de interação,como a que deve estar ocorrendo entre as pro-fessoras e seus respectivos alunos, o que vema se tornar um facilitador para a confirmaçãodessas concepções.

Para Spodek e Saracho (1990), as teoriasdo desenvolvimento podem inspirar um pro-grama de ensino, porém é a proposta educaci-onal ou os seus propósitos que orientam os pro-gramas. O que efetivamente determina umaproposta educacional são as ações e as habili-dades que a sociedade considera importantespara as crianças.

Alguns estudos, como o de Carvalho (1989),defendem esta proposição. Esta última autora,preocupada com o estudo do desenvolvimentoinfantil numa perspectiva etológica, deixa cla-ro que a influência da cultura ou do meio soci-al é grande, o que torna o ser humano um pro-duto e um produtor do seu meio. Estes autoresconcordam que o comportamento humano élimitado pelos aspectos biológicos que são pró-prios ao homem, e por isso se preocupam comos fundamentos biológicos desse comporta-mento. São eles que favorecem as formas pe-culiares do comportamento humano ante ascondições de interação com o meio.

Estes pressupostos fundamentam o estudoetológico do comportamento, assim como oestudo biológico do comportamento. Partem daconstatação de que existem aspectos genetica-mente determinados do comportamento que,como afirma Carvalho (2000),estão relaciona-dos com o processo de desenvolvimento decada pessoa (ontogênese), bem como, com oprocesso evolutivo de sua espécie (filogênese).São padrões de respostas que ocorrem sempreda mesma forma em cada espécie. Não depen-

dem de experiência e surgem em função dapressão do ambiente. De modo geral, esses pa-drões de comportamento promovem a adapta-ção e a sobrevivência das espécies.

A autora ainda acrescenta que o desenvol-vimento social se processa num sistema de re-lações com diferentes níveis de complexidade,onde os aspectos socioculturais e filogenéticosinteragem de forma integrada. Efetivamente,não há possibilidade de haver um organismoque sobreviva independente de seu meio. Háuma profunda relação entre o organismo talcomo ele nasce e as relações que começam aser estabelecidas com a realidade que o rodeia.Todos os traços são ao mesmo tempo genéti-cos e ambientais. Eles resultam da interaçãodos genes herdados com as características doambiente em que o indivíduo se desenvolve.

As distinções ou delimitações entre o inatoe o adquirido têm permeado, por muito tempo,por razões diversas, as concepções que os ho-mens têm de si mesmos. Dito melhor, a rela-ção entre o organismo ou a bagagem genéticade cada ser e o papel do meio ambiente temsido alvo de questionamentos há muitos sécu-los. Indiscutivelmente, o organismo humano,pelas características genéticas que lhes são pe-culiares, limita a sua interação com o meio eisso tem estimulado a luta do homem para asuperação destes limites. Na busca de umamelhor compreensão da transformação do re-cém-nascido em adulto, parece mais adequadaa descrição deste processo. Cada indivíduo aonascer, a partir de suas características físicas,passa a interferir e a sofrer interferência domeio, num processo dialético. Desse modo, odesenvolvimento deve ser entendido como umasérie longa (todo o curso de vida do ser huma-no) e encadeada de mudanças nas interaçõescom o meio.

A pressuposição subjacente a este artigo éa de que o desenvolvimento depende das ca-racterísticas biológicas que são peculiares acada ser humano e das condições que lhe sãofavorecidas ao longo de sua história de vida.As diferenças marcantes entre as categoriassocioeconômicas proporcionam exigências econdições diversas, para a multiplicidade de

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Criança: a determinação histórica de um cidadão excluído

habilidades e competências, necessárias à vidade cada criança. Estas diferenças também serefletem nas condições oferecidas aos diferen-tes gêneros e às diferentes faixas etárias (me-ninos e meninas, homens e mulheres). Os as-pectos biológicos, tais como gênero e faixaetária, são permeados pelas condições do meioe das origens socioeconômicas.

A vulnerabilidade da criança pela ingerên-cia muitas vezes abusiva dos adultos, funda-mentada na concepção histórica de infânciaaqui descrita, deu margem a uma outra inge-rência sobre elas, que é a do Estado (SANDIN,1999). Os poderes públicos, através de suasinstituições, se estruturam no propósito de re-tirar as crianças de ambientes inadequados,procurando oferecer-lhes melhores condiçõesde vida. Esse autor, em seus estudos, se detémna análise das mudanças em relação à infânciadurante o século XX. Ressalta inclusive esteséculo como o século da criança, em que asdiscussões sobre as relações familiares, as de-ficiências das instituições de ensino, o compor-tamento do jovem no espaço público, entreoutras, permitiram que eles (crianças e jovens)fossem vistos enquanto questão social e políti-ca. E, com isso, este século passado se caracte-rizou pela crescente profissionalização nos cui-dados com a infância. Novos grupos profissio-nais têm procurado alterar as relações sociaisde poder entre pais, crianças e instituições, as-sim como favorecer uma nova concepção deimagem da infância. Além disso, as criançastêm sido informadas sobre seus direitos.

Na Suécia, de acordo com Sandin (1999),rotinas profiláticas estão sendo desenvolvidaspara descobrir famílias potencialmente proble-máticas no intuito de intervir para evitar a cri-ação de crianças sob risco. Tais medidas re-portam para uma visão hodierna de infância,com pais e instituições educacionalmente cons-cientes, responsáveis e planejadores, visandopossibilitar a vivência de uma cidadania plenaem todas as faixas etárias.

Andrade (1999), sem divergir de Sandin,observa que aqui no Brasil, só nos últimos anos,surgiu a preocupação com a análise de contex-to a partir da perspectiva da criança. Ela res-

salta que, até a década de 70, os estudos, emsua maioria, estavam voltados para o psicodiag-nóstico e que a participação da criança não eraconsiderada. Isso acontecia não só nos discur-sos como também nas práticas dos psicólogos.A autora justifica ainda mais essa omissãoquando analisa que, nas décadas de 60 e 70,era importante para a categoria dos psicólogos(por ser uma categoria profissional nova) e paraseus representantes a valorização da atuaçãoprofissional nos seus aspectos técnicos e cien-tíficos e com isso se mantiveram distantes doprocesso histórico e político vigente.

No final da década de 70, segundo Andrade(1999), com o fim da ditadura no Brasil, o cli-ma se tornou mais favorável para que as pes-soas e os profissionais assumissem posiciona-mentos políticos mais claros. Passou a havermelhores condições para se dar maior atençãoàs reais necessidades da população, visando astransformações políticas e sociais que estavamem curso; e os trabalhos de caráter assistencia-lista e tecnicista foram submetidos a reavaliaçãoe crítica.

As crianças que eram tuteladas e que nãoparticipavam dos programas e contextos em queestavam envolvidas começaram também a serouvidas. E, como afirma Andrade (1999), sema participação delas, os programas ou as insti-tuições tornaram-se espaços geradores de mar-ginalidade e controle. Acrescenta, ainda, queera preciso não subestimar a participação dascrianças, posto que os estudos que as têm en-volvido deixam evidente que elas instigam umembate no enfrentamento dos problemas juntocom os adultos. Trazem novas perspectivas enovas questões que propiciam transformaçõesimportantes e, o que é melhor, com um poten-cial crítico e participativo. As mudanças pro-movem transformações processuais, distantesde modelos preconcebidos e de propostasgeneralizantes.

Confirmando essa proposição, Jobin e Sou-za (1994) relatam que, quando a criança apren-de a se expressar e a ser ouvida, ela revela seupotencial criativo e os limites do conhecimen-to dos adultos. Podemos entrever que este podeser um passo importante para a construção de

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uma sociedade voltada para a inclusão e nãomais para a exclusão. A dependência ou atémesmo a subserviência aos pais ou responsá-veis pode destruir ou reprimir a criatividade, aespontaneidade e, principalmente, o envolvi-mento e a participação das crianças. O Estadoreforça, ainda mais, essa ingerência quandodefende a ideologia de que a criança pertenceaos pais, haja vista que isso a mantém tuteladae, na maioria dos casos, inoperante no seu con-texto de desenvolvimento.

Para Mello (1999), não há liberdade semdireito ao respeito e à dignidade, sendo preci-so, então, que as crianças tenham direito a umaboa experiência na comunidade humana. Paratal, os adultos têm de criar condições para osprojetos e as proposições das crianças e, tam-bém, construir ambientes que as valorizem paraque elas criem auto-imagens mais positivas.Para exemplificar as discrepâncias entre o Es-tatuto da Criança e do Adolescente e as políti-cas públicas, a autora lembra que, no Brasil, ascrianças e os jovens são proibidos de trabalhar,porém as estatísticas demonstram dados alar-mantes sobre o trabalho infantil. É um traba-lho que não tem o compromisso com o futuro,não exige formação profissional nem esforçointelectual. As crianças sofrem a humilhaçãoda exploração, do trabalho degradante edesgastante, sem projetos sociais ou pessoaisque as conduzam a uma vida mais digna.

Na verdade, o que se observa é a continui-dade de uma realidade adversa, pois os paisprecisam da contribuição econômica do traba-lho dos filhos e, para eles, isto não é algoquestionável haja vista que, quando crianças,também passaram pelas mesmas dificuldades.Portanto, a legislação que é feita para protegeras crianças e os jovens ainda não tem condi-ções de ser cumprida. Há uma distância entre odireito formal e a realidade injusta de uma gran-

de parcela de excluídos em nossa população.Oliveira (1999), fazendo uma crítica à fa-

mília e à educação escolar no contextoneoliberal, levanta a hipótese de que, neste, acidadania crítica é substituída por uma confor-midade que é conveniente a este sistema. Des-creve a realidade adversa de países como oBrasil onde são negadas as diferenças de cor,origem socioeconômica, entre outras, e tam-bém o direito à dignidade e a uma boa qualida-de de vida. Os pais e os profissionais que parti-cipam da educação de crianças esbarram emdificuldades básicas que dependem do interes-se político, por parte dos governantes, parasaná-las. Contudo, é no contexto familiar, nasinstituições educacionais e na sociedade comoum todo que se podem construir propostas poruma cidadania emancipada e crítica ou por umasubmissão ao contexto político que se confi-gura. Como afirmam Assumpção Junior et al.(2000), ainda é necessário investir na avalia-ção da qualidade de vida na infância. Para tan-to, deve-se aprender a traduzir o interesse dascrianças e dos jovens e não se basear apenasna ótica dos adultos que os estão estudando.

O presente artigo é fundamentado numaconcepção de infância pela qual a criança é vistacomo um ser biológico e social que dependeda mediação de outras pessoas para aquisiçãode competências. Vendo-a desta forma, ressal-ta a importância de se analisar o conceito his-toricamente construído sobre o papel deste pe-ríodo na vida do ser humano e o contexto polí-tico e social de cada indivíduo, deixando ex-plícito que a identidade construída para as di-ferentes crianças de nossa realidade (urbanas erurais, categorias socioeconômicas mais altase mais baixas, meninos e meninas, etc.) deman-da diferentes investimentos para a construçãode um desenvolvimento compatível com a dig-nidade humana.

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Recebido em 25.02.02Aprovado em 07.06.02

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Paulo Batista Machado

* Ph.D em Educação pela Universidade do Québec em Montréal, professor titular da Universidade doEstado da Bahia (UNEB), do Departamento de Educação do Campus VII, Senhor do Bonfim. Endereçopara correspondência: Loteamento Amália Braga, lote 04, bairro do Derba, 48970.000 - Senhor do Bonfim-BA. E-mail: [email protected]

A EXCLUSÃO BEM COMPORTADA OU: O QUE FIZEMOS

COM AS PROFESSORAS NÃO DIPLOMADAS DO BRASIL ?

Paulo Batista Machado ∗

RESUMO

Este artigo discute o que tem sido feito com as professoras nãodiplomadas do Brasil, especialmente do nordeste. Sob pressão doBanco Mundial e de uma legislação daí decorrente, essas professorasforam geralmente dispensadas de suas funções ou se submeteram aprocessos formativos que nem sempre levaram em conta as suascompetências enquanto criadoras e sustentadoras do ensino rural.Assiste-se a um redimensionamento da escola rural sem oaproveitamento das riquezas oriundas dos saberes vividos pelasprofessoras referidas e sem a consolidação de uma educação ruralcapaz de incorporar as competências e a história das professoras nãodiplomadas.

Palavras-chave: Exclusão – Professores(as) não diplomados(as) –Globalização – Experiência educacional

ABSTRACT

WELL-BEHAVED EXCLUSION OR: WHAT HAVE WE DONETO THE NON-QUALIFIED TEACHERS IN BRAZIL?

This article discusses what has been done to non-qualified teachers inBrazil, especially in the northeast. Under pressure of the World Bankand law deriving from it, these teachers have generally been dismissedof their functions or have surrendered to qualification processes thatnot always take into consideration their competences as creators andmaintainers of rural teaching. We see the rural school being re-dimensioned without using the riches of knowledge of the above-mentioned teachers and without the consolidation of rural educationcapable of incorporating the competences and history of non-qualifiedteachers.

Key words: Exclusion – Non-qualified teachers – Globalization –Educational experience

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A exclusão bem comportada ou: o que fizemos com as professoras não diplomadas do Brasil?

“Prefeito, tire tudo de mim,menos o meu título de professora”

(Súplica de uma professora não diplomada ao serinformada de que deixaria de ensinar para ser

merendeira ou auxiliar de serviços gerais)

INTRODUÇÃO

A história dos países do terceiro mundo, aíincluindo-se o Brasil, permite-nos constatar queo acesso aos direitos sociais mínimos, como odireito à escolarização, resulta em geral da lutados trabalhadores organizados em movimen-tos sociais. Esta população é muitas vezesmantida em territórios bem determinados,excludentes, que limitam o seu poder de ação.Neste sentido Castro (1996, p. 109) afirma que:“(...) o apelo à emancipação parte do reconhe-cimento de que os espaços sociais estão ocu-pados e que é preciso lutar para ter acesso aosbenefícios sociais. Não existe, na dimensão dopoder, espaço livre, disponível, sem que alguémo ocupe. Para se aproximar do poder, é precisodesalojar do espaço a algum outro consideradocomo usurpador.”

A existência da escola e sua gestão bemcomo o acesso à escolarização, mesmo obriga-tória, se dão nesse espaço de luta e de conquis-ta. Mesmo em se tratando de uma escola públi-ca de má qualidade, que não possui o mínimode estrutura para o seu funcionamento, somoslevados a considerá-la como o resultado daperseverança e da determinação das camadaspopulares. Se tal ocorre na zona urbana, seacentua ainda mais na zona rural: são as lutas eos sacrifícios dos trabalhadores rurais, entre elesos professores, que permitem a existência daescola sobretudo em certas zonas da regiãonordeste rural do Brasil. Esta história, que foimais gritante antes da criação do FUNDEF,quando predominavam nos municípios nordes-tinos os professores não diplomados ou cha-mados impropriamente de leigos1, ainda nãose esgotou. Muitas vezes a escola é mantidaem funcionamento apesar das gestões munici-pais ou estaduais que não são capazes de ofe-recer a estudantes e professores os espaços

mínimos e indispensáveis à oferta de um ensi-no de qualidade.

Pretendemos, neste estudo, dentro do qua-dro de lutas e conquistas da escola brasileira,refletir sobre um fato marcante que tem passa-do desapercebido quando se discute hoje a es-cola pública, máxime a escola pública rural: oque foi feito dos professores não diplomadosou professores leigos? O que sobrou deles apóso rolo compressor do Banco Mundial e doFundo Monetário Internacional operacionaliza-do pelos ajustamentos e ordenamentos do Mece de outros espaços reguladores da educaçãobrasileira contemporânea? Conseguiu-se incor-porar à escola rural a experiência centenáriadesses educadores que levaram nas costas aeducação municipal rural durante décadas?Conseguiu-se respeitar esta história riquíssimade construção de um ensino multisseriado erural? Onde se encontram hoje, em nossosmunicípios, essas heroínas2 da história da edu-cação do nordeste rural brasileiro, essasagricultoras que ensinavam, como frisa apro-priadamente Therrien (1993)?

1. OS PROFESSORES NÃO DIPLOMA-DOS SOB PRESSÃO

Uma análise do contexto sócio-político eeconômico do nordeste brasileiro permite-nosa identificação de dois aspectos ou fatores in-dispensáveis à compreensão da problemáticados professores não diplomados. É preciso con-siderar, em primeiro lugar, a globalização daeconomia e a pressão internacional que leva-ram o Brasil a submeter-se às exigências daUNESCO em matéria de educação no terceiro

1 Transposição em sentido negativo do termo relativo àcategoria de membros que compõem a Igreja e que nãofazem parte do clero ou da elite religiosa, passou a signi-ficar aqueles que não sabem, que não têm consciência deuma situação.2 A predominância de mulheres enquanto professorasnão diplomadas nos permite usar o feminino paracategorizá-las.

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mundo (UNESCO, 1993-1994, ConferênciaMundial sobre a educação para todos) e, emsegundo lugar, a legislação educacional orien-tada à formação profissional dos professoresconsubstanciada no Plano Decenal de Educa-ção para todos (1993-2003) e na Lei de Dire-trizes e Bases da Educação, Lei 9394/96 (BRA-SIL, 1996). Recordemos de forma panorâmicaestes dois aspectos ou fatores:

1.1 A globalização da economia e apressão do capital internacional

A Conferência Mundial da educação paratodos foi o clímax das grandes interferênciasdo capital internacional na educação dos paí-ses do terceiro mundo. Esta interferência já ti-nha sido denunciada substancialmente porArapiraca (1982) que, ao analisar a malfadadaparceria do Brasil com a USAID, mostravacomo o capital norte-americano, após colocarno poder os militares, visava instaurar um mo-delo educacional que foi reconhecido pelo pro-fessor Martin Carnoy, da Universidade deStanford, como uma proposta elaborada nosanos 20. Desta forma os tecnocratas america-nos foram autorizados a planificar a educaçãobrasileira impondo uma proposta não apropri-ada às reais necessidades do país, uma propos-ta obsoleta que ultrapassando os objetivos dacooperação técnica escondia interesses de na-tureza política e econômica facilmente identifi-cáveis. Visava-se a inculcação de ideais norte-americanos a exemplo da livre iniciativa, doculto à propriedade privada e do anticomunis-mo em vista ao alcance de vantagens econômi-cas representadas notadamente por um interes-sante mercado para as empresas americanas elivre expansão do capitalismo. A educação se-ria negociada entre outras mercadorias no pro-missor mercado latino-americano.

Nos anos 90 o referido projeto de expansãose consubstancia, desta vez articulado peloBanco Mundial e pela Unesco, sendo a Confe-rência Mundial da educação para todos(Tailândia, 1990) o momento forte do projetode intervenção do capitalismo na educação dos

países do terceiro mundo. O resumo da Confe-rência foi publicado em três volumes (UNES-CO, 1993-1994), sendo que o primeiro volu-me apresenta os objetivos e o contexto; o se-gundo traz os fundamentos teóricos da Confe-rência sob o título “Uma visão enlarguecida” eenfim o terceiro volume, intitulado “As condi-ções exigidas”, é consagrado a questões práti-cas, à operacionalização das propostas, ao pla-nejamento, bem como à política a ser adotadapelos países participantes daquele evento. Re-sumindo, estávamos diante da exposição, pelocapitalismo internacional, de um novo projetode intervenção nos países sub-desenvolvidosou a caminho do desenvolvimento a fim de re-ver as suas vantagens e de consolidar espaçosde produção e de consumo. A lógica da Confe-rência pode ser resgatada já no discurso do Pre-sidente do Banco Mundial, Barber Conable, aoabrir a Conferência: “O dinheiro destinado àeducação é um dinheiro bem aplicado. Isto severifica tanto ao nível das contabilidades naci-onais como nas rendas particulares. Quando oscidadãos se instruem as rendas crescem, bemcomo a poupança, o investimento e, afinal decontas, o bem-estar da sociedade inteira.” (Con-ferência mundial sobre educação para todos,1990, v.1, p.6)

Apoiando-se na teoria do capital humano esugerindo modelos de comportamento abstra-tos e não contextualizados, os teóricos que dãoo ritmo da Conferência propõem, do ponto devista político, uma educação que transcende asrealidades regionais ou locais. Em razão de seucaráter transitório, os livros didáticos, porexemplo, deveriam abordar conteúdos univer-sais e assépticos. Nas 48 mesas redondas pre-domina a idéia do planejamento de uma edu-cação sem raízes locais, propugnando-se comoobjetivo maior da escola oferecer os instrumen-tos de aprendizagem essenciais (leitura, escri-ta, cálculo, técnicas de resolução de problemas)e as atitudes e valores de caráter universal.

Destaque especial é dado ao professor naproposta da Conferência. Ele é visto como oelemento chave na transformação da educaçãomundial: “o professor é a fonte primeira da ins-trução na maior parte das sociedades e é reco-

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A exclusão bem comportada ou: o que fizemos com as professoras não diplomadas do Brasil?

nhecido como tal na maior parte dos progra-mas de estudo e das formas de organização es-colar” (Conferência mundial sobre educaçãopara todos, 1990, v.3, p.33). Afirmam ainda osAnais da Conferência: “A situação dos profes-sores e a eficácia do ensino estão estreitamenteligados. Está claro que uma educação de quali-dade para todos não poderá ser assegurada senão damos a importância devida à necessidadede se ter professores bem formados, que sejammotivados por suas condições de serviço e umestatuto social apropriados.”

Estava então assinado o compromisso deprofissionalização crescente dos professores, oque seria desdobrado em leis e regulamentosque colocariam em evidência e em julgamentoa existência de professores não diplomados,uma constante nos países do terceiro mundo,incluindo-se o Brasil.

1.2. Intenções e prescrições da legis-lação educacional

As exigências da Conferência da Tailândiaganharam corpo através da legislação educaci-onal, compromisso assumido pelos países pre-sentes àquele acontecimento. Ainda no clima daConferência, o MEC se volta à profissiona-lização do professor: “Deve-se intensificar asiniciativas orientadas para a reestruturação dosprocessos de formação inicial e contínua, com-preendendo-se aí a revisão de currículos, os cur-sos de formação média e superior dos professo-res e os programas de aperfeiçoamento dos pro-fissionais em exercício.” (BRASIL, 1993, p.45).

A questão da qualificação dos professoresse faz presente entre as onze medidas governa-mentais publicadas pelo Mec, em 1993. Trêsdentre elas dizem respeito direta ou indireta-mente aos professores não diplomados: 1) OProjeto Nordeste de Educação, dotado de umfinanciamento do Banco Mundial que planejaa formação e o aperfeiçoamento de 625.000professores; 2) O sistema nacional de avalia-ção do ensino fundamental (SAEB) visando-se a avaliação dos processos de aprendizagem,a realidade das escolas de ensino fundamental

e a qualificação profissional; e 3) o programade aperfeiçoamento dos professores, dosgestores e dos especialistas.

A Lei de Diretrizes e Bases (LDB, Lei 9394/96) é confirmada pela Conferência da Tailândiaque exige a profissionalização dos professoresem todos os níveis e a Lei dela decorrente, aque cria o FUNDEF e reserva 60% desse fun-do exclusivamente a pagamento e qualificaçãode professores, estabelecendo-se o prazo de 10anos para que os professores não diplomadosse qualifiquem, sob pena de serem remanejadospara outras funções dentro da escola. Esta de-terminação legal foi decisiva para um posicio-namento dos municípios quanto à continuida-de ou extinção dos professores chamados deleigos. Até então oscilava-se entre a tendênciade manter e aperfeiçoar o professor nãodiplomado e a tendência de eliminá-lo, pura esimplesmente, sem maiores cuidados (MA-CHADO, 1999).

2. DUAS TENDÊNCIAS, DUAS VISÕESDE MUNDO: O PROFESSOR NÃODIPLOMADO NA CORDA BAMBA

Bem antes da decisão legal que estabeleceum prazo para a solução do problema quanto àqualificação do professor não diplomado, duastendências ou concepções de mundo se con-frontavam no meio educacional brasileiro: deum lado, os que vêem o professor leigo comoum elemento negativo, a ser erradicado, sen-do-lhe atribuída a responsabilidade pelo baixonível de ensino na escola pública; de outro lado,estudiosos que rejeitam esta posição, conside-rando-a reducionista, fechada e rígida, quedescura do contexto sócio-político e culturalque engendrou e justificou o surgimento e amanutenção desse professor não diplomado.

2.1. A tendência voltada à elimina-ção do professor não diplomado

Típico desta tendência foi a reportagempublicada nas Páginas Amarelas da Revista

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Veja, em 1996 (Junqueira, 1996). O prefeitoAntonio Ramos da Silva, da pequena Quixaba,Estado de Pernambuco, um município de 7.500habitantes, recebia uma medalha de honra aomérito do governo federal pela revoluçãoprovocada na educação de sua terra. Apresen-tado como um modelo a ser seguido pelos 5.000prefeitos do país, o então governante, ele mes-mo analfabeto, consagrou 40% do seu orçamen-to à educação, gabando-se de ter em seu qua-dro apenas professores formados: “Cada po-voado tinha uma professora, muitas delas maisanalfabetas do que eu. Elas sabiam apenas as-sinar o nome e não recebiam mais que 10 reaisde salário por mês”.

O mesmo pensamento simplista e pragmá-tico se multiplica entre prefeitos e secretáriosde educação: um secretário de educação damicrorregião de Senhor do Bonfim afirmavaque “graças a Deus não temos mais isso, quemnão foi despedido hoje é merendeira ou traba-lha em limpeza de escola”. Não muito distantedali, um prefeito considerado progressista tam-bém exibia como conquista o fato de ter tiradode sala de aula todas as professoras nãodiplomadas, restando-lhe apenas uma: “Esta eudeixei porque ela me implorou dizendo: Pre-feito, tire tudo de mim, menos o meu título deprofessora”. Na verdade, as atitudes reducionis-tas do secretário de educação e do prefeito fo-ram incentivadas pelo próprio Presidente daRepública e pelo Ministro da Educação atra-vés da Lei 9424, a Lei criadora do Fundo deManutenção e Desenvolvimento do EnsinoFundamental, de 24 de dezembro de 1996, es-pecialmente no artigo 9o e seus parágrafos:

Parágrafo 1: Os novos planos de carreira e re-muneração do magistério deverão contemplarinvestimentos na capacitação dos professoresleigos, os quais passarão a integrar quadroem extinção, de duração de cinco anos. [gri-fo nosso]

Parágrafo 2: Aos professores leigos é assegura-do o prazo de cinco anos para obtenção dahabilitação necessária [grifo nosso] ao exercí-cio das atividades docentes.

Parágrafo 3: A habilitação a que se refere oparágrafo anterior é condição para ingresso

no quadro permanente da carreira [grifo nos-so] conforme os novos planos de carreira e re-muneração.

A prescrição legal influi, sem dúvida, natendência que coloca em primeiro plano a ati-tude mais fácil, menos humana e menos inteli-gente. Uma tendência que, reforçada pela Leido FUNDEF, desconhece a riqueza auferidapela escola rural a partir da história vivida poressas heroínas agora simplesmente eliminadas,esquecendo-se o quanto faria bem à nossa es-cola descontextualizada a reserva de saber dasprofessoras não diplomadas: “A reserva de sa-ber do mundo vivido está intimamente relacio-nada à situação do sujeito que faz a experiên-cia. Ela se constitui através da sedimentaçãode experiências atuais ligadas a outras situa-ções. Inversamente, toda experiência atual seintegra no curso dos acontecimentos vividos ena biografia segundo seus traços típicos e suapertinência dados na reserva de saber. E final-mente toda situação é definida e controlada coma ajuda da reserva de saber” (HABERMAS,1987, Tomo 2, p.141).

A não consideração da reserva de saber temconduzido a questão do professor não diploma-do a uma solução inadequada e, conseqüente-mente, a um empobrecimento da escola rural,engajando-se professores formados que poucoconhecem ou vivenciam do contexto escolar aque são designados, algo já alertado por estu-diosos conhecidos: “Está claro que as ativida-des de aprendizagem e de ensino se inscrevemem um contexto de ensino bem preciso, que sepode caracterizar pela organização do tempo,do espaço, bem como pela organização das re-lações sociais ao seio da escola, tudo inscre-vendo-se em um contexto mais largo, sócio-econômico e cultural, que subentende o con-junto do sistema de ensino.” (PERRET ePERRENOUD, 1990, p.25)

2.2. A tendência voltada à valoriza-ção do professor não diplomado

Em se tratando de uma tradição de pesqui-sa, os autores Azevedo e Gomes (1991),

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A exclusão bem comportada ou: o que fizemos com as professoras não diplomadas do Brasil?

Martins (1992), Therrien e Damsceno (1993),Gannam (1995) e Machado (1999) propõemuma análise mais crítica, mais global e maiscontextualizada da situação. Com efeito, estesestudos consideram os professores não diplo-mados como a conseqüência de uma relaçãocomplexa entre educação e sociedade, uma re-lação que precisa levar em conta os movimen-tos sociais, principalmente os movimentos so-ciais camponeses do nordeste brasileiro.

A análise desses professores leva-nos ne-cessariamente ao problema do trabalho, na pers-pectiva da exploração capitalista e da reaçãodos trabalhadores a tal exploração. Neste con-texto particular, o professor é antes de tudo umtrabalhador rural inserido nos movimentos so-ciais rurais (de seu grupo de pertença). Com-preender estes, ou melhor, estas professorasexige uma abordagem em profundidade dasrazões sócio-políticas, econômicas e históricasque possibilitaram o surgimento do professornão diplomado. Exige também uma análise daestrutura social em que estão inseridas paraentender o papel que elas desempenham no seiodos movimentos sociais nordestinos, papelcentrado em uma função de mediação entre aescola e a comunidade.

Therrien (1993) nos faz ver que as profes-soras não diplomadas participam não somentedo espaço educativo escolar mas das múltiplasformas do movimento social camponês. Estesmovimentos criam condições de produção e deapropriação do saber visando-se uma leituramais adequada da realidade. Tal nos leva a con-siderar as professoras não diplomadas como umgrupo social definido, que possui pontos devista merecedores de respeito e uma históriade saberes vividos que não podem ser menos-prezados. Concentrados na zona rural os pro-fessores citados são em sua maioria mulheresque passaram anos a fio recebendo saláriosmiseráveis e pagos em atraso, sem o mínimode condições para um trabalho pedagógicosatisfatório em suas salas de aula. Vivendomomentos de humilhação e provação, essasprofessoras oferecem experiências propícias àconstrução de uma escola séria e contextua-lizada no meio rural.

Ao contrário dos que propugnam a dispen-sa pura e simples das professoras não diploma-das, percebem os pesquisadores citados que,além de participarem do espaço institucionalescolar, elas palmilham em geral um espaçoenquanto agricultoras e criadoras de animais.São espaço e tempo ricos de imaginário, de sim-bólico, de conflitos, de relações específicas, deconstrução ou de transmissão de saberes infor-mais. Resulta daí um potencial sócio-históricoe político que governantes e legisladores, pres-sionados pelo Banco Mundial e fazendo o dis-curso de um ensino de qualidade, deixam àmargem da nossa escola pública e rural. Per-dem-se, nesse processo enviesado, anos de his-tória de uma educação construída entre suores,enxada e especificidades ímpares. Jogam-sefora valores, expectativas, idéias, crenças, opi-niões e atitudes a respeito da escola, da comu-nidade rural, e da forma de melhor ensinar aosfilhos dos agricultores.

3. AS SAÍDAS ENCONTRADAS DIAN-TE DA PRESCRIÇÃO LEGAL E DA PRES-SÃO INTERNACIONAL

Passados alguns anos da publicação da LDBe da Lei do FUNDEF, bem como das tentativasde ajuste das redes municipais de ensino àsexigências legais, podemos avaliar de que for-ma se encaminhou a questão da professora nãodiplomada. Embora não se conheçam estudosque mostrem o que sobrou do incêndio, pode-mos retirar do rescaldo alguns elementos deanálise e reflexão, o que fazemos tomando-secomo cenário o semi-árido da Bahia, microrre-gião de Senhor do Bonfim, o que pode ser ge-neralizado, em parte, para outros espaços donordeste.

Muitos prefeitos procuraram o caminhomais fácil, dispensando os serviços das profes-soras não diplomadas ou transferindo-as paraa cozinha e para a limpeza da escola, sem omínimo de reação por parte dessas secularesprofissionais do ensino rural. Aviltadas em suaauto-estima, massacradas ao longo de anos,chamadas de analfabetas, curvaram-se ao

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imediatismo e insensatez dos governantes, sobo silêncio e a omissão condenável de universi-dades e educadores diplomados, pós-gradua-dos, mestres e doutores.

Prefeitos houve que encaminharam as suasprofessoras não diplomadas para dois progra-mas de habilitação: o Pro-leigo, de iniciativada Secretaria de Educação do Estado da Bahia,com aulas ao final de semana, em um ritmotradicional de ensino, sem a preocupação emincorporar os saberes e competências das pro-fessoras-alunas. Trata-se de um curso regular,oferecido de forma condensada e por vezesacelerada, sem preocupação com o ritmo decada professora não diplomada, sendo muitasdelas atropeladas no processo, desistentes oureprovadas por avaliações centradas nos den-sos conteúdos.

Mais elogiado tem sido o programa chama-do de “Proformação”, uma iniciativa do MEC,dentro de uma proposta de ensino à distância.São dados dez dias concentrados de aula noprimeiro semestre e no segundo semestre, de-senvolvendo as cursistas atividades a partir demódulos específicos. Quinzenalmente reali-zam-se encontros sob a direção de professorestutores, cada um sendo responsável por dezcursistas. Avaliações periódicas e elaboraçãode projetos compõem o programa, sendo asprofessoras não diplomadas visitadas regular-mente por suas tutoras, que passam um turno aobservar e a orientar a cursista.

Percebe-se contudo que muitas professorasleigas, sob a desculpa de que faltam poucosanos para a aposentadoria, ou de que não têmmais coragem para estudar, aguardam resigna-damente a hora de serem remanejadas para afunção de merendeira ou de auxiliar de servi-ços gerais, atingidas em cheio em sua auto-es-tima cada vez mais colocada à prova por cole-gas já habilitados ou por gestores municipais.

4. UMA EXPERIÊNCIA EDUCACIONALNÃO INCORPORADA

O descaso, a insensibilidade, a inabilidadee a falta de perspectiva histórica em relação aos

professores não diplomados têm levado, comoafirmamos alhures, a escola rural a perder ele-mentos significativos que poderiam estar sen-do incorporados, hoje, à sua redefinição emtermos de ensino de qualidade. Em vista a umamaior compreensão desta conclusão, apresen-tamos alguns dados retirados de nossa pesqui-sa de Doutorado3, realizada no município deSenhor do Bonfim, Bahia.

4.1. O perfil das professoras nãodiplomadas

Questionário aplicado a 117 professoras nãodiplomadas revela que a grande maioria é dosexo feminino e pertence a famílias de agricul-tores: 72,4% dos pais das professoras vivemdo trabalho rural; 50% de seus esposos tam-bém são agricultores. A maioria se situa entre18 e 27 anos (29,9%) e entre 28 e 37 anos(32,2%) (mais de 60% possuem menos de 37anos). Quanto ao tempo de experiência enquan-to professoras, elas têm em média 10 anos deprofissão.

A análise dos mapas mentais4, aplicados porsua vez a uma amostra de trinta e cinco profes-soras não diplomadas nos mostra que a reali-dade escolar e o contexto de vida das entrevis-tadas estão impregnados de uma organização eestruturação do cotidiano em torno de institui-ções e lugares marcados pela escola, pelo rurale pela inserção comunitária: a escola, a igreja,o campo de futebol, o posto de saúde, a casa demoradia. Destaca-se uma preocupação com osserviços de base que geralmente inexistem no

3 Referimo-nos à tese de Doutorado defendida em maiode 1999 na Universidade do Québec em Montreal e quetem como título “Les representations sociales desenseignant(e)s non diplômé(e)s de l’école publiquemunicipale rurale du nord-est du Brésil à l’égard del’école et de leurs conditions de vie et de travail”4 A técnica de mapas mentais, utilizada com sucesso en-tre pessoas simples, consistiu em pedir às entrevistadasque desenhassem em um primeiro momento o que era aescola delas; e em um segundo momento como era o seucontexto de vida.

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A exclusão bem comportada ou: o que fizemos com as professoras não diplomadas do Brasil?

mundo rural do nordeste: a saúde, a água, otransporte, a comunicação, a segurança, a ele-tricidade. Estão presentes nos mapas mentaiso ambiente rural: a fauna, a flora, as culturasde subsistência, os agricultores a trabalhar, acriação de animais. Percebe-se que as profes-soras constroem as representações da escola edas suas condições de vida e de trabalho a par-tir de três elementos fundamentais: instituiçõese lugares rurais, serviços essenciais à popula-ção e cotidiano rural.

As entrevistas semi-estruturadas realizadascom uma amostra de vinte professoras nãodiplomadas colocam em evidência, no que res-peita à escola, as seguintes representações: asprofessoras escolheram a sua profissão, na suamaioria, por uma motivação vocacional,tocadas pelas necessidades de suas comunida-des, a exemplo da falta de escola e a ausênciade professores. Seus discursos revelam umaconcepção de escola fundada na crença de queé possível pela escola eliminar o analfabetis-mo e oferecer um futuro melhor aos alunos,tanto para os que permanecem na zona rural,como para os que se deslocam à cidade. Quan-to aos processos de ensino, as professoras nãodiplomadas sublinham o lugar especial queocupam, em seu processo de formação, os sa-beres nascidos da prática e da experiência ru-ral bem como as aprendizagens decorrentes decursos oferecidos pela Secretaria Municipal deEducação. Elas têm consciência das dificulda-des em relação aos conteúdos disciplinares, emrazão da formação incompleta, da falta de li-vros didáticos e da ausência de orientação pro-fissional específica. Mesmo assim trabalhamem classe os saberes não escolares, que sãovalorizados como uma forma de melhorar oensino, com apoio no que é vivido por elas epelos alunos. Do ponto de vista pedagógico,reforça-se uma concepção de educação popu-lar com apoio em Paulo Freire, valorizadorada realidade dos alunos.

Nota-se que o desafio de ensinar a alunosem classes multisseriadas deu às professorasuma competência específica relativa ao domí-nio do tempo e dos conteúdos. Elas mantêmum bom diálogo com os alunos, muitos deles

seus colegas de cultivo da terra e se mostrampreocupadas com o abandono escolar, princi-palmente na época do plantio e das colheitas, ecom o êxodo rural em períodos de seca. Os paissão vistos como pouco preocupados com o es-tudo dos filhos, responsáveis pela evasão es-colar e injustos ao julgar o empenho e o traba-lho delas enquanto professoras não diplomadas.Por fim, os contatos com os colegas se mos-tram importantes para o entrosamento da cate-goria.

No que tange às condições de vida e de tra-balho as professoras se posicionam comoagricultoras, pessoas enraizadas no meio rurale preocupadas com as condições de vida do seumeio, angustiadas com a ausência de serviçosde base para a população: falta de água, de ele-tricidade, de serviços de saúde, de emprego,de transporte e outros. O ensino é visto comoprejudicado pelas más condições dos prédiosescolares, os equipamentos ausentes ouinsatisfatórios e principalmente pela falta decarteiras para os alunos. Os baixos salários,sempre pagos com atraso, são alvo de críticaspor todas as entrevistadas, considerando elasque esta situação se repete por causa da indife-rença da Secretaria de Educação e dos políti-cos que nada fazem para mudar a situação.Restaria como saída o sindicato que, controla-do pela administração e elites locais, se mani-festa com dificuldade para exprimir de manei-ra mais clara a resistência das professoras nãodiplomadas ante as críticas condições de vidae de trabalho.

CONCLUSÕES FINAIS

Nossas análises e reflexões desvelam o quehá de contraditório em nossos discursos e prá-ticas educacionais, quer como técnicos da edu-cação, quer como gestores. Pressionados deforma consciente ou inconsciente por interes-ses maiores do capital neoliberal e assumindoa postura em defesa de uma “escola de quali-dade”, terminamos por excluir pessoas, proces-sos e competências que não poderiam ser mar-ginalizados em um sério esforço de devolver a

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qualidade à educação pública. Passamos umaborracha em tudo o que o cotidiano de váriasdécadas escreveu, rasgamos páginas significa-tivas de experiências vividas e construídas aduras penas, des-historicizamos uma escolaprenhe de reservas de saber que são sacrificadasem nome de uma competência asséptica, a-his-tórica e descontextualizada.

O silêncio e a mordaça que foram e têm sidoimpostos às professoras não diplomadas donordeste rural brasileiro já estão produzindo osfrutos negativos que sempre procuramos evi-tar em nossas falas e ações: está surgindo umaescola rural des-ruralizada, entregue a profes-soras enraizadas no meio urbano, que cumprem

as suas funções da mesma forma que o fariamem uma escola da cidade. Transplantadas aomeio rural no cumprimento puro e simples deuma prescrição legal oriunda do Banco Mun-dial, colocam a pá de cal nos esforços até en-tão encetados em favor da consolidação de umaescola rural que foi quase toda construída pe-las professoras consideradas, sarcasticamente,de professoras leigas. Restará de tudo a certe-za de que se há leigos na história, estes nãoseriam as sacrificadas e excluídas agricultorasque ensinam, mas os técnicos em educaçãoomissos e bem comportados, bem como osgestores engravatados, ambos cada vez maisdistantes da história e da vida de nosso povo.

REFERÊNCIAS

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Recebido em 02.05.02Aprovado em 22.05.02

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Maria Inês Sucupira Stamatto

A CARREIRA DO PROFESSOR PRIMÁRIO (1822-1889)

Maria Inês Sucupira Stamatto ∗

RESUMO

A partir da análise da legislação sobre educação (1822-1889), observa-mos a institucionalização da carreira do professor primário no Brasil.No período imperial, paulatinamente, foi sendo regulamentada, em cadaprovíncia, a profissão do magistério. As leis das províncias passaram aocupar-se com questões que iam desde a formação deste profissionalaté as que regulamentavam a carreira do “mestre-escola”. Percebemosassim, um esforço de enquadramento do magistério por parte das auto-ridades, tendo-se um arcabouço dos sistemas de educação estaduaisestruturados na passagem para a República.

Palavras-chaves: Professor primário – Magistério – Legislação educa-cional

ABSTRACT

THE CAREER OF A PRIMARY TEACHER (1822-1889)

From the analysis of the educational law (1822-1889), we observe theinstitutionalization of the career of primary teachers in Brazil. Duringthe colonial period, the teaching profession was slowly regulated, ineach county. The county laws started to focus on issues that rangedfrom professional qualification up to the regulation of the career of“schoolmaster”. Therefore, we notice an effort form the part ofauthorities in order to standardize teaching, having as its frameworkthe structured state educational systems in the transition into Republic.

Key words: Primary teacher – Teaching – Educational law

RÉSUMÉ

LA CARRIÈRE DE L’INSTITUTEUR (BRÉSIL – 1822-1889)

À partir de l’analyse de la legislation sur l’éducation (1822-1889), nousobservons l’institutionnalisation de la carrière de l’instituteur au Brésil.Dans la période de l’Empire, progressivement, on a réglementé dans

* Doutora em História pela Université de la Sorbonne – Paris III, professora da Universidade Federal doRio Grande do Norte – Departamento de Educação / Programa de Pós-Graduação em Educação. Endereçopara correspondência: Rua Gipse Montenegro, 2000, ap.301B, Capim Macio – 59080-060 Natal-RN. E-mail: [email protected]

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A carreira do professor primário (1822-1889)

1. A herança colonial para o magis-tério

1.1. A vocação para professor

Percebemos a formação da carreira do ma-gistério a partir de um processo histórico origi-nário da época colonial. Com os jesuítas, a iden-tidade da profissão nascia imbuída do sentimentomissioneiro. Ser professor era antes de tudo “sal-var almas”, numa missão árdua, por vezes peri-gosa, estafante, mas nobre. Professor, abnega-do, mas respeitado, deveria ter acima de tudovocação para a “missão” educadora.

Ao longo de duzentos anos, com a presençajesuítica, “mestres incomparáveis da juventu-de brasileira”, esta idéia vai se disseminando,se consagrando na cultura brasileira. O magis-tério identificava-se com o sacerdócio, nãoapenas no sentido da manutenção da fé católi-ca e a transmissão dos cânones religiosos, mastambém na forma do exercício da profissão, osacrifício pessoal em prol de um ideal maior.

Quando se esboroa esta estrutura (o siste-ma de ensino jesuítico) solidamente montadaem terras brasileiras, pela expulsão dos jesuí-tas em 1759, a elite brasileira viu-se sem ensi-no para seus filhos e sem lugares institucionaisformadores de mestres, até então a cargo dosseminários e especialmente dos colégiosjesuíticos.

Este fato ficou registrado na literatura bra-sileira, como um momento de “caos” para oensino. Teriam as meninas, excluídas dos ban-cos escolares, se importado com a expulsão dosjesuítas? E os escravos? E a maioria da popu-lação brasileira analfabeta?

1.2. O mestre-escola, professor régio

Os mestres-escolas, professores de gramá-tica latina e aulas avulsas, pagos pelo erárioreal, foram os primeiros professores públicosdo país. Deviam passar em concurso e vinhamcom a carta de nomeação, ou alvará, onde seestipulava o local de “sua escola”, o tempo docontrato (em geral seis anos renováveis), e, agrande novidade, o sexo ao qual destinariamseu ensino. Menezes (1944, p.355) nos infor-ma que abriram uma escola a 9 de junho de1759, em Caucaia, (Ceará) com 142 discípulosde ambos os sexos e outra em Paiacus com 29meninos e 34 meninas. As meninas, no Brasil,haviam entrado oficialmente no processo deescolarização.

Na reforma pombalina não se previa ondeos mestres se formariam, pelo menos em terri-tório da colônia, e de fato, vieram professoresprontos de Portugal para ensinar em povoadosbrasileiros até fins do século XVIII.

O ensino de caráter religioso foi mantido,inclusive podendo o pároco, padre regular, acu-mular a função de mestre-escola da comunida-de. Nas fazendas, os capelães, muitos aindaformados pelos jesuítas, ficaram responsáveispela educação dos filhos dos proprietários. Li-vros continuavam sendo controlados pelas au-toridades, sendo que os empregados pelos je-suítas foram proibidos. Os professores na co-lônia, através das reformas pombalinas, fica-ram sob a égide do Estado e passaram a sercontrolados ideologicamente pelos livros uti-lizados e matérias ensinadas os quais não po-diam ser diferentes das regulamentações esti-puladas pelo governo português. Por conse-

chaque province le métier d’enseignant. Les lois des provinces ont passéà traiter de questions dès la formation de ce professionnel jusqu’à cellesde la carrière du maître d´école. Nous percevons ainsi un effort de lapart des autorités pour l’encadrement du métier, en ayant établie unebase structurée des systèmes d’éducation des états au moment de latransition de l’Empire à la République.

Mots clés: Instituteur primaire – Métier d’enseignant – Legislationéducationnelle

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Maria Inês Sucupira Stamatto

guinte, mais importante do que a formação parao exercício da profissão era, na época, a fisca-lização sobre as idéias que circulavam e que osmestres poderiam difundir.

Este cenário alterou-se com o início do sé-culo XIX. Primeiramente, a maioria dos pro-fessores ensinando nas escolas régias colôniaspassou a ser composta por brasileiros natos. Emseguida, a presença da Corte portuguesa, em1808, no Rio de Janeiro incrementou a neces-sidade de serviços especializados e de pessoalalfabetizado para compor os quadros da admi-nistração portuguesa que se reestruturava, agoraem terras brasileiras.

Assim, com o governo de D.João VI, insti-tuíram-se vários cursos de nível superior no paíse cursos primordialmente técnicos para aten-der à demanda burocrática e de serviços urba-nos da época. Abriram-se também escolas deprimeiras letras para um e outro sexo, em vári-as localidades do país, sem que isso significas-se a extensão da escolaridade a toda popula-ção. Eram escolas pontuais.

Além disso, a administração joanina trouxeao país o método mútuo ou lancasteriano1 parao exército e professores que quisessem apren-der a novidade européia. Posteriormente, jádepois da independência, em 1º de março de1823, abriu-se uma escola no Rio de Janeirocom esse método, igualmente destinada à ins-trução das corporações militares e a professo-res que quisessem aprendê-lo. Ao que parece,essa escola foi a primeira no país a funcionarcom o método mutual. Em 1825, o decreto de22 de agosto mandava promover nas provín-cias a introdução e o estabelecimento de esco-las de primeiras letras pelo método “lencasteria-no”, como foi chamado na lei. Em 1828, temos

notícias de que aquela escola normal (como fi-cou conhecida a escola criada na Corte em1823) estava funcionando, pois o seu profes-sor recebeu aumento através do decreto de 26de novembro. Entretanto, já no ano seguinte,esta escola era fechada pelo decreto de 20 dejunho de 1829, “por se acharem cinco em exer-cício” sem que no mesmo decreto se explicas-se onde e como estavam funcionando. Quantosprofessores formou, civis ou militares, e se re-almente utilizou o método mutual, não sabe-mos. O que é certo, facilmente constatado nasleis de criação de escolas até 1834, foi que essemétodo apareceu em muitas províncias do país,ao menos na legislação. Assim, a profissãomagistério, no Brasil, ganhava um requisito:além da vocação era necessário ter-se um mé-todo de ensino.

Por outro lado, o legado joanino deixavatambém “livre” a instrução, o que na lingua-gem da época significava que quem quisessepoderia abrir uma escola ou colégio, de qual-quer nível sem necessitar licença do governo,o que até então era estritamente proibido. Poresta legislação, qualquer um poderia ser pro-fessor, bastava saber qualquer conteúdo e abrirsua sala de aula. Sem ter qualquer formaçãopara o magistério, havendo clientela que pa-gasse, esse tipo de colégio poderia fazer fama,como atesta a literatura da época.

2. A institucionalização da profissãomagistério

2.1. A primeira organização da pro-fissão

A Lei Geral de 15 de outubro de 1827 foi aprimeira legislação brasileira sobre o ensinoprimário que, atingindo todo o território nacio-nal, começava a delinear a carreira do magis-tério. Apesar de ser muito difundida, na litera-tura especializada, a idéia de que essa lei “fi-cou no papel”, foi responsável pela abertura devárias escolas primárias em diversas localida-des do país e tornou-se a matriz organizadorado ensino por algumas décadas. Permaneceu

1 Método Bell-Lancaster: Andrew Bell (1753-1832) eJoseph Lancaster (1778-1838) reivindicaram a criaçãodo método e por isso ele é conhecido com o nome dosdois. Também chamado de lancasteriano, monitorial oumutual. Resumidamente, consistia em que os alunos seensinariam mutuamente. Dividia-se os alunos em decúrias(grupos de dez), os mais aptos (monitores) aprendiam alição num turno e ensinavam aos demais no outro turno,sob a vigilância severa e disciplinar de um único profes-sor.

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A carreira do professor primário (1822-1889)

única, em vigor até 1834, quando passou a in-fluenciar as leis provinciais posteriores.

Determinava, desde logo, a diferenciaçãoentre sexos, tanto para a aprendizagem comopara o ensino, costume da moral religiosa ca-tólica, consagrado pelo uso. Meninos aprendi-am mais: tinham condições de aprender geo-metria e outros conteúdos mais “racionais”;meninas, não, deveriam contentar-se com con-teúdos mais elementares de matemática e ori-entar-se para as “prendas domésticas” (matériasdas escolas normais até o século XX).

Meninos e meninas, sentados em bancosseparados, turnos separados, escolas separadas,permaneceriam assim até que nas décadas fi-nais do Império ocorressem mudanças nos cos-tumes, não sem reclamações, e se introduzis-sem nos sistemas de ensino provinciais as es-colas “mixtas” (como se escrevia na época).

Professores ensinavam os meninos, e pro-fessoras as meninas, e como as mestras devi-am ensinar menos matérias e conteúdos, as alu-nas formadas ficavam mais despreparadas paraos concursos públicos do que os rapazes. En-tretanto o concurso era público como o doshomens. O salário previsto nessa lei era igualpara ambos os sexos, mas na prática se torna-ria diferente, pois, segundo relatos presiden-ciais, muitas vezes, não se conseguia mulherespreparadas para passar no concurso do magis-tério, o que facultava ao presidente da provín-cia contratá-las interinamente com um menorsalário. Esta permissão constava na legislaçãoque criava escolas nas províncias e estipulavaa contratação de professores com menoresproventos, quando não houvesse candidatoaprovado em concurso na forma da lei de 1827.Por exemplo, o artigo 6 do decreto de 27 deagosto de 1831, para a província do Rio Gran-de do Norte, assim determinava:

Os ordenados acima taxados competem unica-mente a professores habilitados por exames aensinarem as doutrinas prescritas no parágrafo6 da lei de 15-10-1827; porque os habilitadospelas leis anteriores, e interinamente providos,só vencerão o ordenado de 150$000.

Esta prática que foi empregada especialmen-te nos casos de escolas femininas, mas não ex-

clusivamente, favoreceu a formação de um cor-po docente desqualificado, ganhando muitopouco e tendo diferenças salariais considerá-veis entre os sexos.

O método previsto continuava a ser o mu-tual, entretanto não havia previsão na Lei Ge-ral, nem de construções de prédios escolares,nem de escolas de formação do magistério. Estalei solicitava que as mulheres fossem de “reco-nhecida honestidade” e os homens “sem notana regularidade de sua conduta”, e que as es-colas fossem estabelecidas em lugares maispopulosos, sem determinar o número mínimode alunos para o seu funcionamento.

Com isso temos o primeiro esboço da car-reira dos professores: entrada por concurso,matérias previstas na lei, salários, método deensino e postura moral. A formação profissio-nal era por conta própria e não havia previsãopara licenças por doença ou outros motivos.Constava a previsão de uma gratificação anualpor 12 anos de serviços ininterruptos, não fi-xava o tempo para aposentadoria, embora osprovimentos2 fossem vitalícios, e determinavaque a demissão se faria “só por sentença”.

Em seguida, houve um decreto imperialcolocando todas as escolas primárias existen-tes antes de 1827 sob a orientação da Lei de 15de outubro deste ano – a Lei Geral; o que pos-sibilitou uma uniformização das escolas de pri-meiras letras no país, inclusive o decreto de 15de novembro, deste mesmo ano, mandava apli-car aos professores de língua latina “o que a leinovíssima concedeu aos de primeiras letras”.

Essa uniformidade começou a ser quebradaa partir de 1834 quando o Ato Adicional, de 12de agosto, atribuindo competências às Assem-bléias provinciais para legislarem sobre o en-sino primário e secundário, permitiu uma pro-liferação de leis diferentes em todas as provín-cias, tendo então cada uma sua legislação edu-cacional própria e instituindo carreiras diferen-cias para o magistério.

2 Prover uma escola pública, na época, significava a no-meação ou contratação do professor e a dotação orça-mentária para o seu pagamento. Assim, o termo provi-são ou provimento era utilizado como sinônimo de ven-cimentos do professor.

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De qualquer forma, apesar da diferenciaçãoque foi se implementando no ensino nas diver-sas regiões do país, o que observamos foi a ma-nutenção da Lei Geral como inspiradora das leiseducacionais provinciais até a metade do séculoXIX. Por exemplo, apesar de na Europa o méto-do mutual já ter sido abandonado desde a déca-da de 1820, por ter sido considerado ineficiente,a maioria das províncias o recomendou em suasprimeiras leis. Também, as escolas existentesforam mantidas e outras foram criadas ainda nosmoldes da lei antiga. Assim, se o colégio D.PedroII, no Rio de Janeiro, depois de 1837, funciona-va como uma espécie de escola-padrão para asdemais existentes em forma de liceus e ateneus,a Lei Geral manteve-se por bastante tempo comoa referência para as escolas primárias.

2.2. A carreira do magistério nas pro-víncias: o exemplo do Rio Grande doNorte

A partir do Ato Adicional, cada provínciafoi responsável pela organização e institucio-nalização do sistema de ensino (primário, pro-fissional, secundário) em sua jurisdição. Pode-mos seguir, como exemplo, a trajetória da car-reira do magistério numa destas províncias.

A primeira medida da província do RioGrande do Norte em relação ao ensino foi todavoltada para a educação secundária: o AteneuNorte-Riograndense. Reunindo as aulas avul-sas da capital em um único lugar, aliás, experi-ência aproveitada por outras províncias, foicriada uma escola secundária em Natal.

Em relação à instrução primária e ao ma-gistério norte-riograndense, sabemos que a pri-meira lei provincial, de 5 de novembro de 1836,regulamentou este nível de ensino mantendoas escolas já existentes, mas não temos maisdetalhes por não termos tido acesso a esta leiaté o momento. Por legislações ulteriores, per-cebemos que os concursos públicos foram man-tidos e se continuou abrindo escolas para me-ninos e meninas separadamente.

Através da legislação do ensino das primei-ras décadas, percebemos também a ocorrência

de concessão de licenças para tratamento desaúde, com tempos variáveis de professor aprofessor; fechamento de escolas e abertura deoutras; transferências de escolas para outraslocalidades; jubilamento (aposentadoria comoera chamando na época) de professores; apro-veitamento do tempo de serviço particular paraaposentadoria; professores contratados interi-namente; aquisições de livros e gratificações aprofessores aparentemente aleatórias. Este con-junto de leis, em forma variada de decretos,resoluções e decisões, aprovados na Assem-bléia Legislativa e sancionados pelo presiden-te da província, demonstram as necessidadesda época e a relação direta do professor com ogoverno, sem intermediários e sem uma regu-lamentação específica para cada situação, ouseja, cada cabeça uma sentença. Desta forma,a licença poderia ser ou não concedida; depen-deria da opinião da assembléia e do presidenteda província, assim como o tempo de serviçoanterior poderia ou não ser aproveitado.

Isso significava que cada professor deveriadirigir-se à assembléia legislativa para cada atode sua carreira, esperando aprovação ou não.Isso significava também que a assembléialegislativa e o presidente deveriam decidir cadacaso. Com o passar do tempo, aumentando-seo número de escolas, a administração gover-namental deveria ter tido problemas com essasituação. Imaginemos, igualmente, a vida deum professor que necessitasse de uma licençapara tratamento de saúde, o quanto deveria es-perar até que a medida saísse em forma de lei.

Observamos que esta legislação não con-templou o magistério norte-riograndense comuma escola para sua formação. Lima (1927) fazmenção a uma lei de 27 de novembro de 1839mandando, às custas da província, uma comis-são de dois professores para o Rio de Janeiropara estudarem o sistema da Escola Normal quelá funcionava. Já André Albuquerque Mara-nhão (1843), vice-presidente da província em1843, queixava-se que essa lei havia sido inó-cua pois nenhum candidato havia se habilitadopara tal estudo.

Em 1845, o governo provincial tentou re-mediar a situação e organizar melhor o ensino,

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instituindo, pela Lei n.135 de 7 de novembro,a função do Diretor da Instrução Pública. Seriao embrião da Secretaria de Educação. Três anosdepois, pela Lei n.191, de 4 de novembro de1848, colocava o Diretor do Ateneu tambémDiretor da Instrução Pública, unificando assimo ensino primário e secundário na província sobum único comando.

Entretanto, em 1852, pela Resolução n.253de 27 de março, o governo provincial extingueo Ateneu da capital, alegando problemas finan-ceiros. Esta resolução “dá nova forma à Instru-ção Pública” criando o cargo de inspetor paracada cidade e de delegado, de preferência opároco, em cada povoado que houvesse umacadeira de ensino público.

Estabeleceu cadeiras avulsas de GramáticaLatina e Francês na capital e determinou que oordenado dos professores e professoras fossede 380 mil réis, com uma gratificação anual desessenta mil réis para aqueles que tivessem 60alunos. Regulamentou a figura do professorsubstituto e determinou que, para estabelecerescolas particulares, seria necessária licençagovernamental.

Quatro anos após, pela Resolução n.350 de26 de setembro de 1856, o governo instauravanovamente o Ateneu Norte-Riograndense nacapital da província e reintroduziu o cargo deDiretor da Instrução como sendo o mesmo doDiretor do Ateneu. Todavia, parece que esta fór-mula não contentava a administração provinci-al, pois o presidente recebeu autorização parareformar novamente a instrução na província.

A reforma veio com o Regulamento n.4 de13 de novembro de 1858, que procurava abran-ger muitos aspectos do ensino ainda não regula-mentados e reorganizava a instrução da provín-cia como um todo. Logo no primeiro capítulo,estabelecia o serviço de inspeção e administra-ção da educação primária executado pelo Dire-tor da Instrução e seus agentes, os delegados,com atribuições próprias e definidas em lei.

Fiscalizavam o comportamento e a aptidãodos professores, admoestando, repreendendo emultando se necessário. Podiam nomear ossubstitutos e designar os livros pelos quais seministrariam as aulas. Forneciam os atestados

de freqüência dos professores para que estespudessem receber seus salários. Podiam tam-bém conceder licenças de três dias por mês paraos professores e controlavam a freqüência mí-nima de 10 alunos para a escola funcionar; casocontrário, poderiam transferi-la.

Além destas atribuições, deveriam impedirque no lugar em que morassem se abrissemescolas ou colégios sem a prévia autorizaçãodo presidente da província e ainda deveriamdar conta dos utensílios das escolas, inventa-riando-os periodicamente.

O regulamento organizava o regime de fun-cionamento das escolas: dias de aula, horáriosfixos, feriados e matérias, mantendo bordadose trabalhos de agulhas para as meninas. As pro-fessoras deveriam fornecer atestado de casa-das, se o fossem, óbito, se viúvas, e sentençada separação se fosse o caso.

As escolas particulares eram colocadas sobesta legislação, sendo estipulado explicitamenteque os estabelecimentos particulares para me-ninas só poderiam ser regidos por senhoras enão seriam admitidos meninos, nem poderiammorar pessoas do sexo masculino maiores de10 anos no local, exceto o pai ou marido dadiretora.

Havia faltas e penas disciplinares para pro-fessores e diretores de estabelecimentos de ins-trução pública e particular definidas na lei. Paraos alunos, os castigos também foram estipula-dos e era permitido o emprego de palmatórias“até seis por dia”.

Os professores adquiriram direito à aposen-tadoria, prevista em lei, aos 25 anos de servi-ço, mas os escravos, como nas outras legisla-ções anteriores, foram mantidos fora do siste-ma de ensino.

Com a institucionalização da função de di-reção da instrução pública, responsável tantopelo ensino primário como secundário, públi-co e particular, como foi o caso na provínciado Rio Grande do Norte, percebemos a organi-zação do sistema de ensino através de uma Se-cretaria da Instrução Pública (denominação daépoca), fazendo parte do poder executivo eenquadrando as relações de trabalho do magis-tério.

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A função da fiscalização da profissão surgia.Até então, o controle da profissão era moral eideológico, feito a partir da conduta da vida par-ticular do mestre, dos livros empregados, daobservância às práticas religiosas vigentes. Apartir de agora, o controle seria exercido tam-bém sobre suas práticas profissionais diárias.

Passou-se a prever, por lei, atitudes buro-cráticas do professor: a manutenção do livrode matrícula dos alunos, freqüência e notas, li-vro de materiais e móveis da sala. As visitasdos delegados em dias de aula deveriam con-templar observações sobre a higiene, a ordeme o aproveitamento dos alunos. Observava-seo método da aula e fiscalizavam-se os examesfinais dos alunos. Os relatos dos Diretores deInstrução e Presidentes da Província são reple-tos destes assuntos.

A partir de então, esperava-se uma condutaespecífica do mestre, na qual podia-se perce-ber “ordem, asseio e aproveitamento” dos alu-nos. A nosso ver, institucionalizou-se a profis-são do magistério, com seus direitos e deveresestipulados em lei, não mais fruto de uma vo-cação mas de práticas profissionais definidas.

Surge, neste momento, a necessidade pre-mente da formação do professor para bem exer-cer sua profissão; entretanto, no Rio Grandedo Norte, nada foi feito neste sentido até 1873,quando a Lei n.671 de 5 de agosto criou umaEscola Normal dentro do Ateneu Norte-Riograndense. Ao que parece, destinava-sesomente a alunos masculinos, pois em sua fala(1883) o Presidente da Província queixava-sede que apesar da Lei n.788 de 16 de dezembrode 1876 determinar que ninguém poderia sernomeado professor de escola de sexo masculi-no sem ser habilitado pela dita Escola Normal,esta havia sido suprimida pelo Decreto n.809de 19 de novembro de 1877. Duração efêmerada escola de formação do magistério em terraspotiguares.

Em 1869, houve uma reforma na InstruçãoPública na província do Rio Grande do Norte,denominando a classificação das escolas pri-márias em 1º, 2º e 3º graus, pelo Regulamenton.24 de 19 de abril. Aparentemente, esta legis-lação inspirou-se na Reforma Couto Ferraz do

Município Neutro que em 1854 dividiu as es-colas do Rio de Janeiro em 1º e 2º graus (háquem afirme que esta reforma é uma cópia dalei francesa Falloux de 15 de março de 1850).A reforma Ferraz repercutiu na maioria, senãoem todas, as províncias do Brasil. Vista comomodelo, esta reforma foi adaptada na legisla-ção educacional de várias regiões brasileiras apartir da sua promulgação, e podemos afirmarque seria preponderante na segunda metade doséculo XIX, deixando definitivamente para trása influência da lei de 1827.

De acordo com a designação da escola va-riavam os proventos do professor, entre salárioe gratificações. Os de 1º grau ganhariam anu-almente 950$00; os de 2º, 800$000 e os de 3º,600$00. A freqüência deveria ser de, no míni-mo, 15 alunos. O professor, mesmo passandoem concurso, seria interino até completar 8 anosde serviço ao magistério quando passava a servitalício.

Para poder ser professor, o candidato deve-ria ser cidadão brasileiro, maior de 25 anos, termoralidade, professar a religião do Estado e serdotado de capacidade física e profissional. Paraas professoras continuava-se exigindo a certi-dão de casamento, óbito ou sentença de sepa-ração; entretanto, para as solteiras bastava terno mínimo 18 anos, salvo se ensinassem na casados pais, quando não havia restrição de idade.

As escolas particulares ficavam livres; istoé, não havia necessidade de solicitar autoriza-ção para se abrir escolas particulares; todaviaficavam sob a regulamentação da lei vigente.Iniciava-se, ao que parece pela primeira vez naprovíncia, a subvenção ao ensino particular.

Outra novidade para a legislação provinci-al em educação, era a criação de um Conselhonomeado pelo presidente para julgar o profes-sor em caso de acusações graves feitas peloDiretor da Instrução, agora denominado Dire-tor Geral. Estabelecia igualmente os inspeto-res de comarca e os visitadores paroquiais. Comeste regulamento, a administração da educaçãocomeçava a se complexificar.

Em 1872, outra reforma alterou a denomi-nação da divisão das escolas para entrâncias.O Regulamento n.28 de 17 de dezembro deste

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ano classificava as cadeiras em 1ª, 2ª e 3ªentrâncias, só podendo ser alteradas por lei. Afreqüência mínima ficava em 12 alunos, esti-pulava o horário das aulas, feriados, e, ao me-nos na lei, abolia os castigos físicos.

Para a direção e inspeção do ensino deter-minava que seriam exercidas hierarquicamen-te pelo presidente da província, conselho dainstrução pública, diretor geral, inspetores decomarca e finalmente pelos visitadores escola-res. Cada qual, com suas atribuições minucio-samente estipuladas. Entre outras atribuiçõesaparecia o fornecimento de títulos de aprova-ção em concurso, penalidades, organização doregimento interno das escolas, julgamento derecursos, concessão de atestado de freqüênciaaos professores, a realização de inventários dosutensílios das salas de aula, a nomeação dosexaminadores dos alunos.

Contemplava igualmente as condições parao exercício do magistério: nomeação, remoção,demissão e vantagens dos professores. Deter-minava os meios disciplinares que os mestrespodiam utilizar com os alunos, estipulava a ida-de mínima de 21 anos para o exercício do ma-gistério, em caso de homens, e para as mulhe-res, 18 anos. E ainda continuava exigindo cer-tidão de casamento, óbito ou sentença judicialpara as professoras.

Estabelecia as faltas dos professores pú-blicos e as penas a que ficavam sujeitos e co-locava as escolas particulares sob a mesma ju-risdição. Ainda determinava que aqueles quecompletassem o curso secundário e obtives-sem o certificado seriam preferidos em con-corrência com outros para o magistério e em-pregos públicos.

Sabemos que este regulamento esteve emvigor até a década de 1880 quando houve váriasreformas na Instrução Pública do Rio Grandedo Norte; porém não tivemos acesso a estas leis.A última reforma na província foi a do Regu-lamento n.32 de 11 de janeiro de 1887 que per-maneceria até a República, só sendo alteradoem 1893. O que notamos, através desta legis-

lação, é que paulatinamente foi-se montando aestrutura da profissão e o serviço de educaçãoda província.

Ao final do Império, assistimos transforma-ções na profissão com um número preponde-rante de escolas “mixtas” (com a professoraganhando autorização para lecionar meninosaté uma certa idade; os professores homens nãoforam autorizados a dar aula para meninas) ecom a “feminização” da profissão, processo quenão pode ser visto como isolado da província,pois ocorreu em todo o Brasil e em outros paí-ses, ao final do século XIX.

Conclusão

A partir da análise da legislação sobre edu-cação (1822-1889), analisamos a institucionali-zação da carreira do professor primário no Bra-sil. No período imperial, paulatinamente foi sen-do regulamentada, em cada província, a profis-são do magistério. As leis das províncias passa-ram a ocupar-se com questões que iam desde aformação deste profissional até as que regula-mentavam a carreira do “mestre-escola”. Assim,a forma de entrada/saída na profissão (concur-so/aposentadoria), proventos, licenças, aumen-to nos vencimentos por tempo de serviço/quali-ficação, gratificações, punições foram matériasde legislação dos governos provinciais.

Além desses pontos, ocorreu igualmente oenquadramento do professor através da orga-nização do serviço de inspetoria/supervisão docorpo docente, havendo, em alguns casos, oestabelecimento de fiscalização em relação aométodo de ensino, condições físicas das salasde aula e produção do material burocráticocomo cadernos de matrícula, chamada, relaçõesde alunos etc. Estas medidas, muitas vezes, atin-giram também o ensino particular. Percebemos,assim, um esforço de enquadramento do ma-gistério por parte das autoridades, tendo-se umarcabouço dos sistemas de educação estaduaisestruturados na passagem para a República.

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Maria Inês Sucupira Stamatto

REFERÊNCIAS

LIMA, Nestor dos S. Um século de ensino primário. Natal: Typ. D’A República, 1927.

MENEZES, Djacir. Sumário histórico da Educação no Estado do Ceará. Revista Brasileira de EstudosPedagógicos, v. 2, n. 6, p.351-374, 1944.

DOCUMENTOS

Coleção de leis e decretos da Província do Rio Grande do Norte:Resolução n.253 de 27 de março de 1852.Resolução n.350 de 26 de setembro de 1856.Regulamento n.4 de 13 de novembro de 1858.Regulamento n.24 de 19 de abril de 1869.Lei n.671 de 5 de agosto de 1873.Regulamento n.28 de 17 de dezembro de 1872.Decreto n.809 de 19 de novembro de 1877.

Coleção das Leis do Império do Brasil:Decreto de 1º de março de 1823.Decreto de 22 de agosto de 1825.Lei de 15 de outubro de 1827Decreto de 15 de novembro de 1827.Decreto de 26 de novembro de 1828.Decreto de 20 de junho de 1829.Decreto de 27 de agosto de 1831.

FALLA do Exmo. Vice-Presidente da Província Cap.mor André de Albuquerque Maranhão na Abertura daAssembléia no dia 7 de setembro de 1843. (manuscrita)

FALLA do Exmo. Sr. Dr. Presidente da Província Francisco de Gouvêa Cunha Barreto na abertura daAssembléia em 14 de janeiro de 1883. (manuscrita)

Recebido em 03.01.2002Aprovado em 03.01.2002

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Isa Maria Faria Trigo

* A professora Isa Maria Faria Trigo é psicóloga de formação, mestra em Artes Cênicas pela UFBA edoutoranda também em Artes Cênicas pela UFBA. Professora da UNEB – Universidade do Estado daBahia – desde sua fundação, leciona nos cursos de Pedagogia, Design e Comunicação Social. É membro doGrupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Identidade e Teatralidade do Pro-grama de Pós-Graduação em Artes Cênicas - PPGAC/UFBA. Endereço para correspondência: Rua RaulChaves, 241, Piatã, 41640.240 – Salvador-BA. E-mail: [email protected] ou [email protected]

NAVEGAR É PRECISO: DIÁRIO DE BORDO DE UMA

PROFESSORA VIAJANTE EM TERRAS DA BAHIA

Isa Maria Faria Trigo *

RESUMO

Este artigo pretende aprofundar questionamentos e reflexões sobre aorientação monográfica na Rede UNEB 2000, a partir da análise daexperiência da autora na orientação de dezessete monografias em trêsmunicípios do interior baiano, no período de setembro de 2000 a abrilde 2001. Feito a partir das dificuldades encontradas nesse processo,utiliza referenciais teórico-metodológicos da Psicologia, Filosofia e Pe-dagogia tratando de temas como distância, identidade, competência únicae alteridade.

Palavras-chave: Comunicação – Problemas – Identidade – Relaçõesinterpessoais

ABSTRACT

IT’S NECESSARY TO NAVIGATE: THE DIARY OF A TRAVE-LER-TEACHER IN BAHIAN LANDS

This article intends to deepen questionings and reflections on themonographic orientation of the UNEB 2000 Network, departing fromthe analysis of the author’s experience in orienting seventeenmonographies in three municipalities of the Bahian countryside, fromSeptember 2000 to April 2001. Built up from the difficulties found inthis process, it uses theoretic-methodological references of Psychology,Philosophy and Pedagogy, working on topics such as distance, identity,unique competency and alterity.

Key words: Communication – Problems – Identity – Interpersonalrelationships

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Navegar é preciso: diário de bordo de uma professora viajante em terras da Bahia

As reflexões e os questionamentos a seremaprofundados neste artigo tomarão como eixode análise algumas dificuldades encontradaspela autora no trabalho de orientação monográ-fica, escolhidas a partir das diferenças cultu-rais entre os alunos e o orientador e explicitadasem aparentes ruídos de comunicação. Será ana-lisada nesse contexto a reconstrução pelos alu-nos de uma identidade1 como professores, apartir da orientação monográfica.

As reflexões serão feitas a partir de descri-ção comentada do processo vivenciado e dadiscussão de alguns casos mais emblemáticos,ilustradas com alguns materiais que foram pro-duzidos em várias ocasiões. Estes são relatóri-os e cartas de orientação, articulados ao relatode eventos ocorridos e a suas características.Como a quantidade de cartas, emails, respos-tas e relatórios é bastante extensa2, usou-se nes-te artigo a citação dos materiais distintos a se-rem discutidos, estando estes à disposição naRede UNEB 2000. Espera-se que este estudocontribua para a melhoria dos procedimentosde orientação monográfica no Programa UNEB2000, bem como ressalte os aspectos originaisque esta prática apresenta e seus desdobramen-tos para a formação docente no nosso Estado.

PONTOS DE ANÁLISE – AS ÂNCORAS

Os pontos que nortearam a escolha do ma-terial supracitado são analisados a partir deautores que discutem novos paradigmas para a

construção do conhecimento3 e da formação daidentidade, assim como sua correlação comeventos inicialmente considerados como deâmbito psicológico, no trabalho monográfico daUNEB 2000. Os pontos são os seguintes: a) ainfluência da orientação de monografia na pro-dução de conhecimento único por parte dos alu-nos e a sua relação com a nova representação desi mesmos como professores capazes de produ-zir saberes úteis para si e para sua comunidade;b) as diversas dificuldades pedagógicas surgidasno âmbito da relação orientando-orientador, suascaracterísticas e influência na feitura damonografia, resultantes de visões de mundo di-versas e de princípios de aprendizagem auto-matizados e posteriormente reformulados.

ALGUMAS REFLEXÕES, TEORIAS EJUSTIFICATIVAS DE ESCOLHA – O CA-MINHO

O desenvolvimento do texto se dará em pri-meiro lugar com uma introdução teórico-metodológica ao assunto e às questões a seremabordadas, articuladas à justificativa quanto àrelevância da escolha do tema; um breve pa-norama do que é a UNEB 2000 no contexto daUNEB e a monografia no contexto da Rede;em seguida, a partir das características particu-lares da relação orientando-orientador, serãoabordadas as questões que escolhemos tratar.A abordagem e citação de autores e estudos quereferendem o texto serão apresentadas no de-correr do seu desenvolvimento.

Compreende-se que as questões da compe-tência única e das formas de comunicação4 nocontexto da aprendizagem contemporânea são

1 Identidade aqui é compreendida a partir dos seguintesreferenciais teóricos: o referencial de Bruno Bettelheim,para o qual a construção da identidade é fruto de umadinâmica de conflitos conscientes e inconscientes, visan-do a formação do sujeito; o referencial de MichelMaffesoli que propõe que na contemporaneidade não te-mos uma mas várias identidades, a depender do contex-to em que estamos; e o de Edgar Morin, que na análisesobre o advento do sujeito na ciência e na raiz do imagi-nário social pontua a precariedade de se considerar osujeito como uma construção absoluta e una, ou mesmoeterna.2 Todo o material deve andar em torno de mais de cemfolhas, se contarmos as correções. Ele está parcialmentedisponível na UNEB 2000 e com a autora deste texto.As correções encontram-se com as alunas.

3 A tentativa aqui será a de efetuar uma abordagemtransdisciplinar; na medida em que os conteúdos elabo-rados por filósofos e sociólogos vão subsidiar e por as-sim dizer, transpassar o conhecimento/interpretações defatos tidos como psicológicos ou comunicacionais. Esteconhecimento, a ser aqui produzido, é um produto detodas essas confluências.4 Esta comunicação se refere à relação interpessoal entreo professor e o aluno no contexto da orientação, pois énesse tipo de comunicação que ocorrem as manifesta-ções estudadas aqui.

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básicas para se entender como se processa aconstrução do saber nos indivíduos envolvidos.Entende-se competência única como aquele co-nhecimento que um sujeito detém sobre sua pró-pria comunidade e procedimentos, seja ele cons-ciente desse conhecimento ou não. Assim comoos conhecimentos dos pajés sobre ervas e doen-ça, durante tanto tempo desprezados como su-perstição, são hoje valorizados como fonte,muitas vezes única, de conhecimento sobre afauna e a flora nativas e fundamentais na dis-cussão de biodiversidade e de patentes biológi-cas para produção de remédios e genoma5, as-sim também é o conhecimento do nosso humil-de professor-aluno nos seus municípios. Quemconhece mais sobre a sua comunidade de alu-nos que ele? Quem mais que ele sabe como con-versar ou propor estratégias de resolução de pro-blemas locais6 ? E quem mais que ele se senteimpotente e ignorante sobre o que fazer?

A valorização da competência única, pres-suposto teórico-metodológico oriundo inicial-mente das etnociências7, funciona hoje comoalternativa aos paradigmas tradicionais de pro-dução e conceituação científicos, que propug-navam um conhecimento universal, neutro eproduzido por luminares, sempre distantes dacomunidade a ser estudada; harmoniza-se comteóricos importantes, como Edgard Morin, quena sua proposta sobre a epistemologia da com-plexidade, coloca-a como elemento constitu-inte do conhecimento8; conecta-se com Thomas

Kuhn, na sua obra já clássica, “A Estrutura dasRevoluções Científicas”, quando este alertapara o fato de que todo conhecimento científi-co é produzido no seio de uma comunidade; ésempre subjetivo e culturalmente definido, in-fluenciando o direcionamento da pesquisa eseus resultados. Ou seja, mesmo a(s) comuni-dade(s) científica(s) dotada(s) de subjetivida-de oriunda da sua própria forma de funciona-mento comunitário, seja em que lugar for. Se-gundo Pierre Thuillier (1988), citado por Jean-Marie Pradier (1999, p.24): “O que há de me-lhor na lição das etnociências é reunir a histó-ria, a filosofia e a sociologia, lembrando que arealização científica é também cultural; cadasociedade, engendrando um tipo de saber ondese exprimem as estruturas, os valores e os pro-jetos desta mesma sociedade.”

Nesse sentido, a percepção de si como al-guém “atrasado” e desprovido de conhecimentoacadêmico ou relevante é irmã de um modelode ciência e de aprendizagem que valida a con-cepção de mundo e conhecimento criticadaacima. Assim, a competência única só podeser reconhecida pelo sujeito aprendiz quan-do sua própria percepção de mundo e de simesmo muda. É esta relação que visamosaprofundar neste trabalho, através da análisecompreensiva9 da relação professor-aluno naorientação monográfica.

Em decorrência dessas ponderações, a re-flexão sobre a questão da competência únicadentro da rede UNEB 2000 e a sua relação coma mudança de auto-imagem10 dos alunos é útilna medida em que, estudada, gere conhecimen-to sobre a experiência e subsidie melhorias para

5 A discussão sobre este saber chega à grande imprensa.Na ISTOÉ da semana de 24 a 30 de setembro de 2001 háum artigo sobre esse assunto.6 Tais como gravidez precoce, indisciplina em sala deaula, entre outros.7 O primeiro termo com “etno“ como prefixo foi o deetnobotânica, por J. W. Harshberger, em 1895. Já em1950, uma grande quantidade de disciplinas enriquecidaspelo prefixo aparecia em fichário organizado por GeorgeP. Murdock, no Human Relation Área Files. Asetnociências consideram como culturais certos aspectosdo objeto científico. A esse respeito ver Pradier, 1999.8 O conhecimento não seria uma construção automática,com causas únicas e conseqüências; com controles abso-lutos; seria um processo, com variados fatores interve-nientes, que dariam a este a complexidade falada. E o su-jeito e objeto estão ligados, um influenciando o outro.

9 Segundo Pitombo, “a abordagem compreensiva afirmaa interdependência do objeto e do sujeito, assinalando,desse modo, que os objetos são dependentes das caracte-rísticas sociais e pessoais das pessoas que os observam econstituem.” (2000, p. 280)10 Auto-imagem é aqui entendida como a representaçãoimaginária, mais ou menos consciente, mais ou menosambígua e contraditória, composta de idéias, imagens,lembranças e seus significados, que o sujeito atribui a simesmo. É vinculada aos conceitos de identidade e desujeito, já referidos anteriormente.

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o programa; é importante para a construção dosaber oriundo da comunidade do orientando econdizente com as diretrizes científicas atuais11

que valorizam o saber dito “nativo” 12 do am-biente estudado, em contraposição à constru-ção do saber alheio à comunidade, produzidopor estranhos (estrangeiros muitas vezes) so-bre a própria comunidade.

A outra questão que se pretende abordar nes-ta monografia está ligada à primeira; são as di-ficuldades e entraves ocorridos no decorrer daorientação monográfica que se traduziram emnão realização de tarefas pedidas pelo orienta-dor aos professores-alunos; alegação deincompreensão do que tinha sido pedido, mui-tas vezes apenas manifestada na ocasião da vi-sita subseqüente; problemas de comunicaçãooriundos de dificuldades de distância, telefonee recursos; o papel dos coordenadores e orienta-dores da prefeitura como intermediários do dis-curso do professor orientador; dificuldade dosalunos em compreender o seu conhecimento(verbalizado, no mais das vezes) como relevan-te para o trabalho e passível de ser consideradocientífico e válido. Outras dificuldades de co-municação e realização das tarefas foram rela-cionadas a convicções religiosas/auto-imagemou de conceitos pessoais inconscientes relati-vos à aprendizagem.

Retomando aqui a forma como este trabalhose desenrolará, propõe-se uma análise compre-ensiva, nos moldes que Maffesoli sugere no seu

livro “O conhecimento comum: compêndio desociologia compreensiva”. Neste, ele argumen-ta que antes de tentar manipular dados, contro-lar e produzir resultados replicáveis, é revoluci-onário, no estágio das ciências humanas hoje,descrever e compreender os fenômenos. Postu-lando que o fascínio positivista acaba por redu-zir o fenômeno social, afirma que a junção dominúsculo e da ‘forma’ lhe parece ser o melhorprocedimento (1996). Isso aponta para uma for-ma de pesquisa descritiva, compreensiva e qua-litativa, talvez mais próxima das necessidadesdas ciências humanas e sociais.13

Tal pensamento é compartilhado por mim,que realizei o trabalho monográfico baseadoem estudos de casos, trabalhando os problemasde forma exploratória14. Esta escolha metodoló-gica de orientação levou em consideração ocontexto do alunado e priorizou o conhecimen-to original que eles poderiam produzir a partirde suas vivências particulares. Os resultadosdessa escolha serão debatidos quando da des-crição de procedimentos de orientação mono-gráfica, mais adiante.

A UNEB, AS CIDADES e a REDE UNEB2000 – O CONTINENTE, AS ILHAS E OBARCO

O programa de Graduação Intensiva REDEUNEB 2000 é hoje uma realidade estadual.

11 Michel Maffesoli, Gilbert Durand, Edgard Morin;Gaston Bachelard, Alfred Schutz, Max Weber, MarcelMauss, entre os mais conhecidos.12 A palavra “nativo” aqui alude à sociologia e antropo-logia clássicas, que colocavam o nativo de uma comuni-dade ou cultura como alguém desprovido de conheci-mentos, primitivo, inferior. O “bom selvagem”, deRousseau. Além de desvalorizar o saber do sujeito cul-tural, este tipo de colocação abriu e abre espaço para ajustificação do etnocentrismo, em nome do qual são co-metidas barbaridades, como estas que agora presencia-mos nos EUA. De um lado, o terrível terrorismo árabe;de outro, um desejo de extermínio e discriminação detodo um povo, lastreado na intolerância à diferença e nanoção errônea de percepção de si como povo superior(os americanos).

13 “Estamos dentro do domínio geral da interpretação, enão daquele da demonstração sobre a base do tratamentonumérico de variáveis discretas e quantificadas. A análi-se dos dados tende assim mais à descrição e à teorizaçãodos fenômenos estudados, do que aos resultados a partirde uma experimentação prévia para ser reproduzida. Defato, os fatos humanos e sociais que interessam à pes-quisa qualitativa não são geralmente de naturezareproduzível. (...) finalmente, a pesquisa qualitativa é umprocesso de descoberta e de validação, mais que um pro-cesso relevante da lógica da prova; [tradução e grifosnossos].” (HENRY, 1997, p.3)14 A este respeito, ver o Relatório da segunda visita aosmunicípios (disponível na UNEB 2000), onde a justifi-cativa de escolha metodológica para a orientação demonografia é abordada no final.

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Desacreditado de início por vários segmentosda UNEB (devido em parte à ambição de suaproposta, tanto em termos de extensão de atua-ção quanto pela qualidade dos resultados al-mejados), ele é, hoje, aprovado em vários as-pectos pelos docentes que dele participam15. Oprojeto se desenvolveu, desde o início, apoia-do pela administração central, que nele vislum-brou a perspectiva de capacitar contingentes dedocentes no interior, cumprindo assim deman-da criada pela LDB, bem como consolidar aUNEB como força política e referência acadê-mica no interior.16

O relato dos alunos, professores, prefeitu-ras17 é, tanto quanto nos é dado conhecer, umainiciativa interessante, que capacitou surpreen-dentemente seu quadro de professores munici-pais18. A demanda das prefeituras que já estãono programa19 e a “fila”20 das que querem en-

trar atestam a iniciativa como algo que mudouo quadro da educação básica nos municípiospor onde passou e das pessoas que nele estuda-ram. Fator fundamental é a dedicação da equi-pe central, sediada em Salvador, ao projeto.Formada por professores e funcionários daUNEB, esta equipe praticamente continua amesma21, apesar do nível de stress e adrenalina(ou talvez por isso mesmo) requerido a todoinstante por problemas de toda ordem que sur-gem na Rede. As distâncias são gerenciadasatravés de telefonemas constantes; por fax, e-mails (menos usados, mas ainda assim bastan-te usados) e viagens freqüentes dos vários mem-bros da coordenação. Estas características sãoimportantes, porque, sendo o projeto um es-forço entre lugares muitas vezes tão distantes,é básico para o professor sentir que o que fazestá sendo acompanhado e apoiado por outraspessoas comprometidas com o andamento dotrabalho.

A estrutura da UNEB 2000, vinculada àPROGRAD – Pró-Reitoria de Graduação, as-senta-se nos pilares da sua administração cen-tral, sediada em Salvador (mas sempre visitan-do os Campi) nos coordenadores nomeados emcada região e nas prefeituras, representadas porseus orientadores, que têm como função traba-lhar junto ao coordenador da UNEB (bem comogerenciar os interesses da prefeitura) no anda-mento do projeto. Nessa “solução de compro-misso”22 o coordenador demanda à prefeitura,via de regra através de seu orientador, os paga-mentos e providências de transporte, instala-ção, equipamentos e logística; e a prefeitura

15 Alguns desses docentes, colegas do Departamento deEducação do Campus I, que tinham restrições declara-das ao projeto, hoje dele participam e o recomendam.16 A segunda etapa está sendo finalizada e avaliada ago-ra. A terceira etapa já está em fase de planejamento.17 A primeira visita de avaliação do programa do Conse-lho Estadual de Educação, feita ao município Ruy Bar-bosa, foi um teste para a Rede 2000. Os membros doconselho avaliaram os resultados do projeto, questionan-do e entrevistando os alunos sobre os conteúdos, práti-cas e suas monografias. O resultado surpreendeu aos pró-prios conselheiros, que confessaram não esperar a quali-dade acadêmica encontrada. Esta informação me foi pas-sada em conversas com várias das minhas alunas de RuyBarbosa que, após a avaliação e em conversa com osmembros do Conselho, ouviram este tipo de comentá-rios de alguns deles.18 Todos os cursos de graduação da primeira etapa foramreconhecidos. Os relatórios do CEE não são disponíveispara vista. Mas os pareceres de aprovação dos cursos da1a etapa em D.O foram de 100%.19 Das 20 primeiras prefeituras engajadas no projeto, 90%verbalizaram em contatos com a coordenação da Rede, odesejo de continuar o projeto no seu município. Esta in-formação foi prestada pela coordenação da Rede 2000 àprópria autora. A confirmação oficial desta demanda,entretanto, só se dará com o envio de ofícios das váriasprefeituras.20 84 novas prefeituras estão requisitando entrada na Rede2000, segundo pedidos oficiais recebidos pela coorde-nação da Rede.

21 O projeto, vinculado à PROGRAD, continua com asmesmas pessoas que o elaboraram na coordenação: OProf. Jorge Martins, e as profas. Maria de Lourdes Pintodos Santos, Maristela Campos de Oliveira e NormaNeyde Queiroz de Moraes. Além dessas, as funcionariasAdjaci, Adnamar e Guiomar, entre tantos outros.22 Termo utilizado por Freud para designar a estruturado sintoma. A solução de compromisso significa que osintoma é resultante de um acordo entre um conteúdoinconsciente recalcado e as exigências do super-ego.Neste caso, são instâncias que se juntam para produzirmelhorias; mas uma e outra se controlam, ajudam ecomplementam. Não está isento o conflito da relação.

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espera e demanda os serviços da universidade,na pessoa e na ação de sua coordenação e dosprofessores e estrutura acadêmica de projetocurricular, bem como através dos resultados dosorientandos. Inúmeros problemas, desde mo-toristas para buscar professores a casas impro-visadas de professores, ocorrem entre as ins-tâncias envolvidas, o que dá ao projeto umadinâmica agitada, na qual o professor muitasvezes tem que ser ativo e resolver coisas quefogem à sua jurisdição. Percebe-se que essasdinâmicas corporificadas nas pessoas envolvi-das constituem-se na própria “rede”, apesar dee com suas contradições.

É notável a influência que a UNEB tem nosmunicípios onde a REDE 2000 foi implanta-da. Se um Departamento universitário já é emsi influente em localidades do interior (na maio-ria das vezes sendo o único estabelecimentouniversitário no local) imagine-se quando estaesfera se amplia para capacitar professores comsegundo grau, em parceria com suas prefeitu-ras... Muitas vezes o professor que vive emSalvador não tem idéia do quanto é capaz demobilizar, numa cidade de menores dimensões,um projeto que envolve um bom contingentedos seus professores23, classe naturalmente in-fluente24 nas suas comunidades25. Só para seter uma idéia, cito dois eventos: nos restauran-tes e bares das cidades, ou mesmo nas ruas,qualquer informação acerca de onde ficam asinstalações da UNEB 2000 pode ser dada porqualquer transeunte; a maneira como se é tra-tado, após identificar-se como professor doPrograma, é de deferência e interesse. E porocasião da formatura dos graduandos de umdos municípios, as cidades (ou pelo menos assuas principais representações sociais, educa-

cionais e políticas) estavam presentes à ceri-mônia, tendo o baile de formatura mobilizadocentenas de pessoas, entre amigos, família eprofessores do Programa.

Por tudo o que representa hoje para as cida-des e para a mudança de perfil da sua comuni-dade docente, urge pensar acerca desta açãopedagógica e sua forma de atingir os docentese a educação no Estado da Bahia. E é ao en-contro dessa necessidade de reflexão que ca-minha este trabalho.

CARACTERÍSTICAS DA MONOGRAFIA– O MAPA

O trabalho foi iniciado na UNEB 2000 apartir de orientação de monografias com temasde psicologia no município de A26, tendo pos-teriormente sido assumidas as orientaçõesmonográficas de temas de psicologia tambémem B e em C.

Foram orientadas dezessete monografias comos seguintes assuntos, eventualmente tratadospor mais de uma equipe: sexualidade, gravidezprecoce, gravidez precoce e mídia, gravidez pre-coce e a sua relação com a atitude paterna; gra-videz precoce e o amor romântico, gravidez pre-coce e sua relação com as doenças sexualmentetransmissíveis; dificuldades de aprendizagem,abuso sexual, alcoolismo, alcoolismo e drogas,indisciplina em sala de aula (várias monografiascom este tema) violência e sexualidade infantil.O município com maior número de equipes foio C, com sete equipes.

As orientações foram todas feitas em salasde aula, em condições desfavoráveis de calor(exceto em A, que dispunha de ar condiciona-do), e em condições precárias quanto ao mate-rial necessário; bibliotecas fechadas, salas quenão eram de aula, entre outros, o que desani-mava um pouco o trabalho.

Na minha primeira orientação os coordena-dores estiveram presentes e apresentaram osorientadores da prefeitura. A falta do orientador

23 O número de professores por etapa em cada municí-pio é de cerca de 100 alunos.24 Se considerarmos que cada professor atinge um nú-mero considerável de alunos e que muitos dos alunos daRede são inclusive diretores, temos essa influência am-pliada.25 No meu caso, esta avaliação diz respeito aos municí-pios de Boa Vista do Tupim, Ruy Barbosa e Barreiras.

26 Letra fictícia em lugar do nome, para resguardar a iden-tidade dos envolvidos.

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da prefeitura prejudicou na segunda visita a B,mas apenas nesse local, já que não havia al-guém que explicasse o não recebimento de tex-tos enviados aos alunos. Muitas vezes a xeroxera distante, ou estava fechada na escola. Mui-tas das orientações são feitas em fins de sema-na, já que os alunos tinham aula a semana toda.Mas as coordenações e os orientadores tinhamque prever isso, e nem sempre o fizeram.

A estrutura de orientação monográfica es-tava (e ainda está, apesar de em vias de mu-danças) definida como constando de três visi-tas do orientador ao município e às equipesorientadas, das quais a terceira já seria para aapresentação das monografias; esta última umaespécie de banca de avaliação, na qual os alu-nos apresentam oralmente seus trabalhos, bus-cando formas originais e contextuadas. A co-munidade tem acesso a essas apresentações. EmB e em C foram muito concorridas, com maisde cem pessoas assistindo. Em A, praticamen-te apenas as que estavam se apresentando as-sistiram a suas colegas.

Em todos os municípios a primeira orienta-ção foi feita com uma preleção inicial de cercade duas horas sobre o que era uma monografia,tanto em termos de pesquisa quanto em termosde oportunidade de construção de um conheci-mento próprio. Na ocasião, foi colocado noquadro negro e depois enviado o relato da ori-entação adotada no atendimento a cada equi-pe, que constou basicamente das ponderaçõesabaixo, repetidas em várias cartas iniciais deorientação:

Discutir e delimitar o tema, em primeira instân-cia; a partir da conversa, determinar o que cadaum e todos podem e devem fazer em termos detarefa na monografia; esclarecer e delimitar aprogramação: resumo, introdução, justificativa,metodologia, problematização, conclusões ouresultados. Anotação em termos de diário dospensamentos, perguntas, dúvidas e observaçõesacerca do assunto durante todo o tempo até ofinal da monografia. Enfatizei o fato de que nãoprecisava ser uma monografia escrita a dez mãos.No entanto, solicitei a todas que, a partir daque-le momento, desejaria ver os diários de obser-vação, os fichamentos dos textos e todo e qual-quer escrito sobre o assunto de cada uma delas.

Que a redação final poderia ficar a cargo de umaou duas, mas que, nesse processo, era indispen-sável que elas me dessem a conhecer como es-creviam, através dos instrumentos acima cita-dos. Todavia, a cópia sem aspas ou indicaçãodeveria ser evitada, por constituir comportamen-to anti-ético em termos acadêmicos. Solicitei quese encontrassem pelo menos uma vez por sema-na para discutirem e definirem providências prá-ticas da equipe. 27

Quanto às dúvidas de redação da mono-grafia, indiquei o Manual da Rede. Todavia,relativizei os itens constantes, tais como variá-veis independentes e hipóteses, por compreen-der que esses itens são mais úteis quando setrata de procedimento de caráter experimental,coisa que nenhuma das monografias da UNEB2000 vai ter como metodologia. Ressaltei a di-ferença entre o que se deseja com o trabalho eo que ele pode objetivar. Por exemplo: o pes-soal de gravidez precoce desejaria ver esse fe-nômeno diminuir. O objetivo de cada monogra-fia, e o seu alcance, entretanto, não são a mes-ma coisa que o desejo. São, sim, caminho parachegar a ele.

A mesma sistemática inicial de trabalho foiadotada em todos os municípios. Essas instru-ções foram remetidas depois, por escrito, aoscoordenadores de cada município. Já as segun-das e terceiras visitas diferiram de acordo coma dinâmica de cada cidade, sendo que o últimomunicípio orientado sempre esteve à frente emtermos de agilidade de resposta, qualidade ecoesão dos grupos. Um dos municípios enfren-tou problemas sérios de comunicação (levaramquase dois meses sem enviar uma única res-posta aos inúmeros ofícios feitos)28 e outromunicípio os enfrentou principalmente devidoa questões de entendimento do que se pediu eao fato de que, quando eles eventualmente ti-veram material para mandar, a coordenadoraestava de férias e a orientadora da prefeituranão operacionalizou o envio e recebimento dosmateriais.

27 Cartas disponíveis na rede UNEB 2000.28 Até final de Outubro de 2000 não tínhamos recebidonenhuma resposta formal a nossas demandas.

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As segundas visitas eram de atendimentopor equipes, e a condição colocada formalmentepara ocorrerem era que o material enviado jáestivesse num nível mínimo29 para ser orienta-do e encaminhado. Não adiantava viajar para omunicípio para reunir-se com as equipes semuma produção que justificasse esse movimen-to. E, então, fez-se necessário aumentar o pra-zo para esperar as equipes mais atrasadas. To-dos os prazos estouraram. A previsão dos pro-fessores de monografia era de três meses. Issose estendeu em alguns casos a oito meses.30

Duas questões importantes na UNEB 2000são: a distância e o tipo de produção de sentidoque os atrasos, perdas, extravios e mensagenstruncadas produzem. A distância espacial nes-se caso passa a ser uma dimensão imaginária,que engloba a maioria dos eventos não expli-cados, as faltas... tanto para os significadosquanto para as emoções, a evocação da distân-cia funcionava quase como uma imagem auto-explicativa para toda a sorte de falhas, mistériose faltas que ocorreram nesse percurso. Eramuito comum ouvir-se e dizer-se, como res-posta a toda a sorte de problemas de entendi-mento entre as partes e de não cumprimento detarefas: “a distância é muito grande...”31, cor-rendo o risco de se estar sendo aqui excessiva-mente especulativo, cita-se Gilbert Durand que,ao falar do espaço, vai nomeá-lo como a forma‘a priori’ da fantástica, e que relaciona brilhan-temente espaço, identidade e o desejo de es-quecer um pouco as mudanças e o tempo que,de algum modo, sinalizam para a morte: “Quenos seja permitido mais uma vez inverter ostermos do problema: é a homogeneidade doespaço que se origina na vontade ontológicade identidade, no desejo de transcender o tem-

po e de eufemizar a mudança numa puradeslocação, que não dura nem afeta.” (DU-RAND, 1997, p.413)

Como nos serviria então esta frase nessecontexto? Na medida em que o espaço (e nessecaso, a distância onipotente e a sua representa-ção) se constitui como uma dimensão que per-mite dissolver vários níveis de questões32 noseu bojo. Durand (1997, p.413) ainda afirma“que é o espaço fantástico e suas três qualida-des – ocularidade, profundidade e ubiqüidade– de que depende a ambivalência – que é a for-ma a priori de uma função33 cuja razão de ser éo eufemismo”. Ou seja, as dimensões de espa-ço, especialmente quando podem ser relacio-nadas com eventos aparentemente absurdos(tais como um silêncio sem lugar, ou discursosdesarticulados) podem, pela sua própria carac-terística de serem imaginadas visualmente(ocularidade), em profundidade (espacial e ar-ticulada com outros eventos) e de forma ubí-qua (já que na memória podem ocupar o pen-samento ao mesmo tempo, como num sonho),serem associadas, através de suas característi-cas fantásticas, ao fantástico de ações sem sen-tido ou significado aparente. Assim, é tranqüili-zador para todos os atores da situação culpabili-zar as “distâncias”, colo possível para pensa-mentos, lembranças e sensações inconscientes.Assim, o que parece uma explicação simplistapara faltas pessoais revela-se um mecanismoque mescla razões lógicas com motivaçõesimaginárias, numa frase que apazigua ânimose dissolve culpas. Há uma sabedoria aí, quebusca não conflitar ânimos em questões quetalvez possam ser resolvidas por si.

Há uma dinâmica de grupos utilizada emtreinamento de relações interpessoais denomi-nada dinâmica do telefone. Consiste em colo-car um grupo de pessoas em círculo e fazer cir-29 Tivesse saído do nível de cópia: apresentasse o que

tinha sido pedido ou pelo menos grande parte disso.30 Em 2000 tivemos uma greve de 60 dias, que compro-meteu o funcionamento da UNEB 2000. As disciplinas,atrasadas, sobrecarregaram o período que seria dedicadoà monografia.31 Ouvi esta frase ou similar de todos os agentes envol-vidos com os problemas enfrentados na orientação. In-clusive dita por mim mesma.

32 Questões tais como responsabilidades sobre as falhase faltas; questões que envolvem todos: alunos, coorde-nadores, assessoria técnica da Rede, enfim... como umanévoa formada por kilômetros que cobrisse os erros ecobranças lógicas. Esse é um mecanismo muito comumem empreendimentos dessa natureza.33 A função fantástica.

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cular, de ouvido a ouvido, uma mensagem oupalavra simples. Nunca a palavra final é a mes-ma palavra iniciada. Configure-se este fenôme-no para o caso das comunicações de orienta-ção monográfica. Eis aí uma grande distânciae várias mensagens, alimentadas pelos diver-sos desejos e lembranças dos indivíduos. O queacontece com uma mensagem e vários desejose conflitos, nas várias dimensões de “espaço34”aqui implicadas? O contato do professororientador é o coordenador, que deve receberos materiais e encaminhá-los. O que é faladopara esse coordenador deve ser por ele trans-mitido ao aluno. Pode-se imaginar o tipo dedistorção e “imaginarização” que isso gera?Desde simples instruções que são entendidas epassadas para os orientandos ao contrário, atéo esquecimento de itens importantes. Num dosmunicípios, as tarefas e a orientação só come-çaram a ocorrer quando a orientadora da pre-feitura telefonou para a autora, e colocou alu-no por aluno no telefone. São as distânciasimaginárias e imaginando-se...

O trabalho do orientador de monografia co-meça muito antes da orientação propriamentedita. Num dos municípios, por exemplo, come-çou um mês antes, com coleta de textos nainternet e reprografia de textos durante as duasúltimas semanas de agosto e a primeira semanade setembro. Esse material foi enviado por e-mail35 e posteriormente levado pessoalmente.

As horas gastas na correção dos esboçosmonográficos, para trabalhos com uma médiade cinqüenta folhas, é de pelo menos duas ho-ras a cada vez. Isso, contabilizado para cadaesboço de cada equipe significa um montantede trabalho considerável para um orientador.Para se ter uma idéia do requerido no trabalhode orientação, seria interessante consultar ascadernetas das orientações, que ultrapassam emmuito o previsto para a carga horária doorientador36. No caso das monografias da Rede

UNEB, um dos principais cuidados era corri-gir no texto as inconsistências entre os assun-tos estudados e as citações. Era perceptível nosesboços um caminho sendo percorrido de cria-ção de um texto próprio. Mas entremeado porcitações muitas vezes inadequadas ao que sediscutia, ou pensamentos que pareciam “mer-gulhar” para surgirem, parágrafos subseqüen-tes, em locais inesperados; ou fechamentosabruptos de temas, deixando o leitor no ar. Issotudo evidenciava a dificuldade daquele que es-crevia em imaginar como seria lido. Confundiro seu pensamento com o que efetivamente ti-nha sido dado ao leitor conhecer dele foi ocor-rência comum nos textos. De fato, assim comoverbalmente (ao telefone ou pessoalmente) osdesvios e angústias se manifestavam, na escri-ta isso também ocorria, através desses meca-nismos. Várias vezes o relato verbal já feitonão era colocado com sua riqueza no texto es-crito, o que o empobrecia. Assim, escrever nas“bordas” dos esboços para os orientandos, qua-se como um diálogo, tentando imaginar umaconversa com os próprios argumentos que elescolocariam, foi um bom exercício de orienta-ção. Era quase como se colocar na pele de umpersonagem que raciocinasse e escrevesse daforma que ali se configurava para, a partir des-se lugar, orientar e propor um caminho de re-escrita ou de fortalecimento do já produzido.Porque o risco aí é o do orientador contraporseu próprio texto, sem tentar utilizar o cami-nho, muitas vezes precário, mas pessoal, que oaluno tenta construir.

O aluno de monografia parece ter uma ex-pectativa que o orientador funcione como oprofessor que ele vê todos os dias, ou pelomenos toda semana. Mesmo informado racio-nalmente que só verá o seu professor demonografia duas vezes antes de apresentar otrabalho, isso pareceu não ter sido assimilado.Poder-se-ia dizer que funcionava como umanegação, assim como o comportamento doavestruz, de enterrar a cabeça na areia. Assim,há o aluno que se “dá ao luxo” de ir a umasegunda orientação monográfica e esquecer dosmateriais que redigiu para a ocasião. Esse tipode atitude, que ocorreu nos três municípios vi-

34 Espaço físico, de tempo, de lembranças...35 Por problemas com o provedor da cidade, o attach doemail nunca foi impresso.36 Tranqüilamente, mais de 120 h, entre correções, ma-teriais buscados, contatos, viagem.

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sitados, não foi generalizado, mas denota, con-forme já se vem analisando, um tipo bizarro deprocedimento diante do trabalho. Em um dosmunicípios, havia uma aluna que não chegou aaparecer. Esta mudou de tema. Houve equipesque apresentaram o mesmo trabalho escrito jácorrigido anteriormente, sem terem conserta-do o que tinha sido enviado para reformar notrabalho. Em outro município, uma aluna ale-gou nunca ter recebido material enviado. Masuma outra equipe, de mesmo tema, relatou du-rante essa verbalização que o material tinhachegado e estava na xerox, tendo sido utiliza-do por eles. A aluna não tinha ido ao local paraprocurar. Esta foi a única aluna indicada paraestudos complementares, pois até o último mi-nuto da segunda visita e até uma semana antesda apresentação não tinha enviado nenhum tex-to da sua lavra. E quando o fez, era uma colchade retalhos de citações sem aspas, coladas umasàs outras sem fio condutor. Como compreen-der todas essas manifestações?

Naturalmente, há sempre um primeiro ca-minho de testagem feito pelo aluno ao profes-sor; verificar se ele de fato lê o que se lhe en-via, o quê e quanto corrige, se aceita bem acópia massiva sem citação de autor. Esses pro-cedimentos caíram por terra rapidamente, tal-vez por ter havido por parte do orientador apontuação dos desvios e equívocos nos textos.Todos eles foram corrigidos inclusive no por-tuguês, e pontuados de perguntas37, enfatizandoa direção que o trabalho estava seguindo e quetrechos poderiam ser rearrumados e os que nãose encaixavam.

Há a situação inusitada e nova de fazer umtrabalho que nunca foi feito pela maioria dosalunos e que é eliminatório. A proficiência es-crita é um requisito, e a necessidade de se co-municar com esse professor que é o orientador,o “especialista”, mestre no assunto, coloca oorientando na incômoda situação de aluno ape-nas. Devido ao tempo exíguo de orientação,

ele precisa tentar ser preciso, objetivo, e per-guntar sobre o que o angustia, principalmentepor telefone ou por escrito. A maioria delessempre preferiu fazê-lo por telefone. Essa situ-ação trouxe atitudes de evitação e fuga, que seconfiguraram de diversas formas; esquecimen-to, protesto contra o fato do orientador ir pou-cas vezes ao município, ansiedade frente aosinúmeros conteúdos novos e pouco assimila-dos; ao lado disso, o orientando vive um con-flito com suas representações de si mesmo; sen-te-se ignorante e indefeso sobre os assuntos aserem tratados, o que o tira da anterior posiçãode detentor de um saber na sua área; ele estáem dissonância cognitiva38. A questão dadissonância é importante para entender porquealguns atos foram feitos / não feitos. Como éque as pessoas reduzem suas dissonâncias?Segundo Elaine Pizani (1994, p.85), “basica-mente diminuindo a importância dos elemen-tos dissonantes, colocando elementos conso-nantes ou, finalmente, modificando um dos ele-mentos dissonantes para que deixe de ser in-compatível com o outro.”

Esta dissonância ocorre quando uma cogni-ção não se ajusta a outras dentro da mesma si-tuação, e/ou no mesmo indivíduo. A tendênciaentão é a de tentar reduzi-la. A dissonância podeocorrer quando entre elas existe incoerêncialógica; ou quando há incoerência entre o quese pensa e o que se faz, ou entre o que se faznum momento e o que se faz em outro; e quan-do ocorre a quebra de uma expectativa firme-mente estabelecida. No caso em questão, estaúltima alternativa parece ter ocorrido com muitafreqüência, mas não há exclusão das outras.

Assim, o orientando vai buscar responsá-veis pela sua angústia, bem como pode vir ase culpar por fracassos que não sejam dele.Além disso, tenta minimizar demandas quenão pode cumprir, como é o caso de ficha-

37 Essas correções não estão facilmente disponíveis, poispertencem aos alunos. E, na época, era impossível copiartodos os materiais corrigidos devido à sua quantidade.

38 Segundo Elaine Pizani, “A dissonância cognitiva é umtermo oriundo da teoria Gestáltica originada de KurtLewin de coerência cognitiva. A base dela é que as pes-soas têm necessidade de integrar suas percepções e suascognições de uma forma organizada e coerente. “ (1994,p.85).

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mentos ou resumos não entregues. E age comose um esquecimento não tivesse uma impor-tância muito maior no caso da orientaçãomonográfica do que se ocorresse numa aulanormal. Esses esquecimentos têm sentido. Écomo se o “esquecer” pudesse ser mais acei-tável do que a entrega de um trabalho “fra-co”. O auto-conhecimento e a formação daidentidade não é um processo necessariamen-te agradável ou leve. Sobre isso, fala BrunoBettelheim (1988, p.127):

Justamente porque temos características dasquais não gostamos ou que não aprovamos, ousobre as quais podemos ter nossas dúvidas, co-nhecer a nós mesmos é uma realização difícil.Os rodeios da busca de identidade podem serdolorosos e perigosos. Testamo-nos - não rarosem saber que é isso que estamos fazendo –, edepois temos que refletir sobre o que esses tes-tes revelam a nosso respeito.

Mas para mudar é preciso primeiro se reco-nhecer; este processo porém, todos sabem, nãose dá de forma linear; as maneiras de driblar asi mesmo são muitas e se inventam a cada mo-mento, de acordo com a necessidade e com aforma através da qual sintamos que o nossoequilíbrio psicológico esteja sendo ameaçado.E o questionamento de si mesmo é vivido, ain-da que não conscientemente, como ameaçador,o que dispara reações em que não apenas o in-telecto está implicado, mas também os senti-mentos e emoções.

Antonio Damásio, no seu livro “O mistérioda Consciência” (2000), vai afirmar, a partirde um estudo de grande profundidade, que aemoção só se torna conhecida quando o padrãode atividades emocionais é representado porestruturas cerebrais de segunda ordem, queentram em relação com o cérebro e o “re-posicionam” em relação a tudo. Ora, o que sãoestruturas de segunda ordem? São representa-ções imagéticas feitas no lobo pré-frontal que“notificam o cérebro” quanto ao fato de estarocorrendo uma mudança corporal que pode serreconhecida como uma emoção. Só quando esta“notícia” ocorre é que se pode falar em senti-mentos. Ainda segundo o autor, é possível seestar emocionado, ter as reações fisiológicas

concomitantes a uma dada emoção e não seconscientizar dela. Para ele, a consciência éuma espécie de superestrutura; uma criaçãoposterior na história antiga do corpo, e teriafunção adaptativa.

Não entrando no mérito da discussão sobrea adaptação, o que interessa aqui é fortalecer aconvicção de que o processo de mudança de simesmo não é algo que se dá conscientementedesde o começo; que há marchas e contramar-chas, já que há emoções que nunca chegam asentimentos e nem por isso deixam de influen-ciar os comportamentos tomados por cada um;ou seja, podemos ter as emoções, mas não sa-bemos disso até que as mudanças no nosso or-ganismo nos informem. E enquanto isso, po-demos operar uma parte de nossas ações, emo-ções e idéias como se ainda fôssemos o queachamos que somos; no entanto, algo já semovimenta, também da ordem das ações, emo-ções e idéias e em algum momento pode nosinformar sobre quem “estamos sendo” naquelemomento. Esse estudo sobre a consciência for-nece bases neurológicas para se entender, pelomenos em parte, aquelas emoções que não so-mos capazes de perceber, mesmo quando ou-tros as apontam; daí a importância, mais umavez evidenciada, do outro na construção de no-vos caminhos de conhecimento para o sujeito.

Houve, relacionado a essa questão, um epi-sódio bem interessante com uma aluna num dosmunicípios. Ela fazia parte de uma equipe pe-quena, com três pessoas. Desde a primeira ori-entação, ficou visível que era bem articulada.Seu discurso e perguntas denotavam uma ob-jetividade razoável que poderia encaminhar aequipe bem favoravelmente para um trabalhorápido e de qualidade. No entanto, à medidaque a equipe me enviava os seus trabalhos eresumos, e que trocávamos idéias por telefone,e-mail e em correções de texto, ela passou aser a única a resistir ao trabalho. Não acredita-va mais que conseguiria, e se colocava no tele-fone como incapaz de escrever, principalmen-te. Passei a insistir, então, sempre com ela, quecopiasse ou pedisse a alguém para que copias-se o que ela dissesse nas reuniões de equipesobre o trabalho. Estava certa de que a profici-

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ência verbal poderia ser usada para chegar àescrita, com a ajuda que os seus companheirosestavam dispostos a lhe dar. Até a segunda vi-sita, e mesmo nessa, ela pôde externar seu de-sespero. Conversamos sobre a falta de base realpara o sentimento, já que o trabalho se encami-nhava e o texto estava razoável. Ela afirmavafortemente que desistiria de tudo, ao que lhecontrapus que não permitiria isso. Sendo suaorientadora, compreendia todo aquele caldei-rão de emoções como uma fase que denotavaum crescimento interno do qual ela não tinhaidéia, e tinha certeza que ela conseguiria cons-truir algo no trabalho. Até porque as balizas domesmo tinham sido estabelecidas pelas pergun-tas que ela tinha feito no início, e que não ti-nham mudado desde então. Passou-se um mêse a aluna relatava já estar mais calma. Na apre-sentação, ela era a mais feliz e relatou com or-gulho o trabalho. Dominava o que falava e es-tabelecia as correlações entre o assunto e suacomunidade. Depois agradeceu que a orienta-dora tivesse insistido tanto com ela. O que afez mudar? A idéia aqui é de que é preciso daràs emoções e sentimentos um “tempo” diferentedo lógico, cerebral. O corpo aprende de formadiferente. E emoções têm raiz corporal. Talvez,como nos processos de criação artística, sejapreciso ocorrer um “tempo subterrâneo”, du-rante o qual o sujeito deva deixar-se levar umpouco pelos seus estados de espírito, apenasconscientizando-se deles e tolerando seu medo.Acostumar-se aos desconhecidos que nos habi-tam e que somos nós, ao mesmo tempo em quese persiste no trabalho de estudo, esperando queessas duas forças entrem em harmonia, pareceser uma “metodologia de trabalho” aconselhávelpara o estudo na área das ciências humanas,tanto quanto na pesquisa artística.

No período após o momento em que oorientador libera a monografia para apresenta-ção, o que parece ser mais eficaz é aliviar apressão sobre os alunos. Isso normalmenteocorre no período de um mês antes, mas podeocorrer também até dois dias antes, caso a equi-pe envie um trabalho já minimamente satisfató-rio. Naturalmente, se o orientador libera umtrabalho para apresentação é por considerá-lo

apto a tal. Assim, era claro que os trabalhosindicados preenchiam requisitos mínimos paraserem expostos e o mais importante é aliviar apreocupação do orientando com a apresenta-ção. Na UNEB 2000, a apresentação é mais ummomento no qual se permite que o aluno possafalar e se expressar verbalmente, coisa que elenormalmente faz com mais facilidade do quepor escrito. Em suma, é mais uma chance doque uma provação. Isso foi reiteradamente ex-plicado a todos. A atitude da orientação no fi-nal deve ser a de confiança genuína no que osalunos serão capazes de fazer. Uma equipe quenão possa realmente responder por si não deveser encaminhada para a apresentação. O ritualde apresentar também se reveste de grandeimportância para as orientandas. Em duas dastrês cidades, uma boa parte da comunidade aca-dêmica assistiu a tudo, bem como familiares.O ritual da academia parece ser importantecomo uma forma de exorcizar um pesado far-do; parece servir como marca iniciática de umaoutra fase, para aqueles que possam associaresses eventos às suas mudanças internas.

Para rebater e minimizar as dissonânciasvividas pelos orientandos, o orientador devebuscar a motivação do orientando e a sua pró-pria ao orientá-lo; a partir da vivência obtida,considera-se fundamental que, desde o primei-ro momento, o aluno possa ser perguntado so-bre o que lhe interessa estudar; que ele possaser conectado com o que, dentro do seu cotidi-ano, o motivou a escolher aquele tema. Consi-dera-se que o orientador deva ser cuidadosopara enfatizar, ou, ao menos, não excluir doestudo a possibilidade de uso dos exemplos ecasos específicos, narrados pelo aluno. Nelesestão os seus afetos e motivação para fazer otrabalho. O trabalho deve se moldar à vivênciado aluno, e não o contrário. Por exemplo, emum dos municípios havia uma equipe com umcaso emocionante, de uma adolescente da redepública que tinha sido, em criança, uma alunamuito chegada a uma das orientandas. Essamoça, já adolescente e grávida, reaparece navida dessa orientanda através da disciplina deMetodologia de Pesquisa, e por ela é reconhe-cida. A pergunta que ficou para esta orientanda

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era: porque uma menina, que tinha convividocom sua mãe que teve uma gravidez precoce eum filho desta gravidez (ela!), tendo sofridopor esse fato, repetia de alguma forma o que amãe tinha feito? Este sentimento gerou um tra-balho sobre gravidez precoce no qual a equipediscutiu a questão do amor romântico como umelemento poderoso de escape e atrativo para aadolescente ter relações sem proteção. Um temaaparentemente difícil, com uma bibliografiapouco conhecida, foi o eleito pelas orientandas.Isso foi possível porque o trabalho proposto erao que elas queriam pesquisar. Aos poucos, fo-ram reconhecendo que havia características nasadolescentes grávidas que elas conheciam e sóelas podiam informar, pois mesmo os textossobre gravidez precoce não narravam dados domunicípio delas39. Isso ficou patente nas entre-vistas semi-dirigidas que foram feitas com umgrupamento menor de adolescentes, escolhidopor critérios que elas mesmas propuseram, ba-seadas no seu conhecimento e experiência comas adolescentes e seu contexto. Perceber quepodiam e estavam produzindo conhecimentosobre sua própria cidade foi uma sensaçãomuito importante para todas. Era a competên-cia única sendo criada no dia a dia. Criar umaforma de escrever o trabalho, os capítulos e seusnomes, a metodologia e os objetivos, “colados”nas suas vidas, deu-lhes segurança para repetira dose. Fizeram uma proposta de trabalho eintervenção dentro da cidade para o problemajunto à secretaria de educação e, quando da ter-ceira visita, já eram paradas na rua para auxili-arem as jovens da cidade. Tornaram-se refe-rências para sua população jovem. De que ma-neira a percepção de si e do mundo mudou?Na medida em que a orientação pontuava paraelas o valor que aquelas suas idéias, frases e

caminhos tinham para o trabalho e para suacomunidade.

O orientador então é esse outro que podedar valor ao que o aluno produz. E pontuaquando o aluno sai da rota a que se propôs.Esta etapa de transferir aos alunos confiançano que escolheram, no que sabem e no quepodem saber é importante para a instalação deuma firmeza no trato do assunto, bem comofortalece o prazer de aprender. O que está emconstrução não é apenas um trabalho, mas simuma imagem de si mesmo como capaz de fazerum texto que nasce da sua vida e é reconheci-do como “bom” por alguém a quem é atribuí-do o poder do saber acadêmico. Enfim, ajudara construir a ponte entre uma visão de si comoexcluído do mundo acadêmico para uma visãode si inserido no mundo acadêmico.40

O professor orientador de monografia temum papel importante nesse processo, porqueele legitima, incentiva e direciona o trabalho.Ele é este outro em quem o orientando confia eprojeta esperanças, imagens, este “outro signi-ficativo”. Não qualquer um; mas um alguémque detém um saber41, que representa na ima-ginação do aluno um ideal a ser seguido; al-guém cujo reconhecimento muda a própria for-ma de se ver do aluno. Isso não constitui ne-nhuma novidade em psicologia. Há vários teó-ricos que colocam a importância fundamentaldo outro na constituição do sujeito, desde a mais

39 Por exemplo: muitas mães não querem que as filhasjovens voltem à escola porque temem que fiquem grávi-das de novo. E as colegas discriminam enormemente agrávida em sala. Ela prefere largar a escola então. Ou,por exemplo, não vão ao posto de saúde receber camisi-nhas, pois todo mundo se conhece na cidade, e elas fica-riam visadas como pessoas que já têm relacionamentosexual.

40 Há pouco tempo, uma aluna de Remanso que trabalhacom Educação Especial relatou na avaliação da Rede queantes do curso ela vinha para Salvador para tomar cursosno IAT e se sentia diminuída, uma “formiguinha”; pornão entender termos e por sua vergonha em perguntar.Que depois da UNEB 2000 ela se sente igual, tem cora-gem de perguntar coisas e até de dizer coisas que pos-sam contribuir para os cursos que faz.41 Na terapia psicanalítica, fala-se do lugar do “supostosaber”. Este é o lugar no qual o sujeito coloca seu analis-ta. Como alguém que sabe sobre ele, que pode ajudá-lopor saber algo que ele mesmo não sabe. No caso do ensi-no, o professor é alguém que a própria sociedade já co-loca no lugar de “saber”. Isso colabora para um tipo detransferência do aluno para o professor, na qual ele atri-bui a este um saber sobre si e, claro, um poder de “dizer-lhe” algo.

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tenra idade até a vida adulta. Cada um a seumodo, todos vão afirmar que quem nos consti-tui é o outro. O outro, mãe, pai, amigo, frase,TV, enfim, um outro que nos traga algo quepossa ser reconhecido dentro do sistema de sig-nificações e representações que fazemos de nósmesmos e a este venha a acrescentar e/ou alte-rar. A imagem que os outros têm de nós não é amesma que temos. Cada um nos vê de acordoconsigo mesmo. De qualquer modo, sem essas“imagens”, que os outros nos devolvem de nós,não poderíamos saber quem somos.

Para um professor, poder teorizar sua práti-ca abre as portas da sua alegria,42 pois sua pro-fissão é a de produção e incentivo à construçãode saberes. Poder participar realmente, sentir-se capaz de elaborar uma cartilha, ou um pro-grama para ser aplicado na rede pública, ou umtrabalho de fôlego, escrito sobre o assunto quelhe toca, redimensiona sua visão de si e do seualuno. Não mais apenas um repetidor de livrosque vêm de outro lugar. Um criador. Pois a ver-gonha em desenhar algo para ilustrar suacartilha, ou emitir sua opinião passa a ser me-nor do que a convicção de que ele pode tam-bém produzir material e idéias. Naturalmente,esse novo saber passa por uma derrubada develhas convicções. Henry Clay Lindgren(1977), no seu livro “Psicologia na sala deaula”, vai chamar a atenção para o fato de quehá princípios de senso comum automatizadose que norteiam o comportamento docente. Nes-ta obra, o autor cita várias afirmativas aparen-temente inócuas que, funcionando como “apriori” imperceptíveis, atrapalham a relaçãoprofessor-aluno. Algo como “teorias” que cadaum tem a respeito de como agir, mas que sãoautomatizadas e dadas como naturais. A per-cepção dessas teorias se dá através justamentede acasos, falas e atos. Coisas como “eu ensi-nei mas ele não aprendeu”, por exemplo, aca-bam por estar enraizadas na convicção do pro-

fessor sem que ele se dê conta. Isso ocorreu naorientação em análise. A pergunta feita peloorientador diante da ausência de respostas àsdemandas orientativas caminhava também poressa direção. E no caso do orientando na suarelação com os seus alunos, isso começou afazer parte do horizonte de preocupações dele.Ou seja, uma base teórica acerca da educaçãopode facilitar a convivência de posições sobrea aprendizagem que não são absolutas ou ge-rais, mas contextualizadas.

Quanto à questão da comunicação e da qua-lidade do que era pedido e feito (e voltando aoconcreto), o orientador de monografia precisater a noção de que é indispensável para a qua-lidade do seu trabalho o registro do que é man-dado e do que chega. Isso evita conflitos comos coordenadores e prefeituras e localiza res-ponsabilidades quando um material importan-te é extraviado. O uso do e-mail seria ideal.Mas nas cidades menores, os provedores têmproblemas de envio de anexos, e as poucas pes-soas que dominam a tecnologia cobram caropara fazê-lo43. A alternativa usada pelos alu-nos de dois municípios, majoritariamente, foio Sedex. Em um dos dois, por questões alegadaspelas alunas de problemas com os materiaisentregues à coordenação44. E, no outro, pelaquantidade de material produzido pelas alunase pela premência delas em obter retorno. De-pois que descobriram o e-mail, isso era feitobasicamente por esta via. No terceiro, os alu-nos não tinham recursos para o Sedex, e o cor-reio dependia basicamente da coordenadora eda orientadora. No entanto, quando houve cor-reio, os alunos produziram pouquíssimo. Even-tualmente, houve um caso em que os materiais

42 A alegria é um componente fundamental no trabalhodo educador. Mas nunca é valorizado. O trabalho semalegria é insuportável. Cada educador deve procurar, noseu dia a dia, o caminho da sua alegria.

43 Em Ruy Barbosa as alunas pagavam R$ 10,00 por cadae-mail enviado a mim. Muitas vezes sem a garantia deque tinha chegado, através de uma resposta minha. Sou-be disso após muito tempo.44 Uma das coordenações esperava juntar mais de trêstrabalhos para enviá-los para mim. Como o correio daUNEB era gratuito, nunca consegui entender as razõesdeste procedimento, que atrasou a correção de muitostrabalhos e criou estresses desnecessários para as alu-nas.

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de um foram parar em outro, o que atrasou oretorno dos mesmos. Esses eram os casos queestavam articulados a fatores externos mas que,a partir das características pessoais de cada alu-no, reverberavam em comportamentos os maisdiversos, como os já citados.

QUEM É O ORIENTANDO - OS “NATI-VOS”

Quem foram os sujeitos da reflexão aquirealizada? Um panorama mínimo deve ser tra-çado. Alguns eram firmemente interessados noque estavam fazendo na monografia, comfichamentos bons e sabendo bem o que queri-am; outros mais inseguros, calados, expressa-vam suas dúvidas45 e inseguranças com expres-sões faciais que as suas colegas mais desinibi-das se apressavam em traduzir, num balé degestos, poses e olhares ansiosos. Ao perceberisso, era-lhes perguntado pelo orientador se ti-nham entendido, mas entendido “mesmo” o queestava se discutindo, já que não era errado nemvergonhoso não entender algo. Normalmente,a partir daí, as mais caladas levantavam algu-ma dúvida sobre o texto. Outras alunas46 dizi-am ter entendido tudo, e eventualmente já nãoqueriam mais explicações. Estas, normalmen-te, deram mais trabalho, porque não discuti-ram o bastante o seu trabalho para que ficas-sem claras as suas dúvidas.

Algumas equipes demonstravam umaempatia imediata com o professor-orientador,assentindo com a cabeça e sorrindo entusias-madas ao perceberem posições semelhantes

entre ambos. Isso contribuía para fortalecer arelação transferencial entre o orientador e o alu-no, já que este se identificava com o que aque-le dizia. Uma boa definição deste tipo de rela-ção no contexto escolar foi produzida pelaspróprias orientandas da UNEB 2000 em C, noseu trabalho sobre Sexualidade. Dizem elas:

A perspectiva psicanalista atual prioriza o cam-po estabelecido entre educador/educando, o queproporciona as condições de aprender indepen-dente dos conteúdos dados. Esse processo é con-siderado como um tipo de transferência,8 que éuma manifestação inconsciente. Desta forma, afigura do educador torna-se alvo de importânciaespecial, o que lhe confere poder sobre o edu-cando; que o vê como exemplo, ou, de qualquermodo como uma pessoa muito importante aquem ele se liga afetivamente.__________8 Um educador pode tornar-se a figura para a qualsão endereçados os interesses do educando, porqueé objeto de uma transferência; ou seja, o outro (edu-cador) é depositário de experiências vividas peloeducando primitivamente com os adultos significa-tivos da sua história relacional.

A maioria dos alunos não tinha confiançaem si mesmo. Moto contínuo, delegavam aoorientador não apenas a sua admiração mas,embutida nesta, a tarefa de resolver o proble-ma da monografia para eles. Naturalmente issonão era verbalizado diretamente. Mas apareciaem frases tais como: “Professora, a senhora éque vai ter que dizer à gente o que a gente vaifazer”; ou: “a senhora tem que salvar a gente,pró!” Uma atitude que de certa forma lembraas crianças diante de algo que desconhecem,quando então se tornam indefesas e pouco ló-gicas. Porque mesmo reconhecendo que era umtrabalho a ser feito por eles, o fato de não con-seguirem abarcar a complexidade do que esta-va por ser feito os colocava em uma posição“subalterna”, na qual a autoridade do profes-sor é que daria o caminho. Abdicavam assimde sua liberdade; mas, sem sentir, também seeximiam da responsabilidade sobre seu traba-lho e aliviavam suas angústias.

Naturalmente, o sistema de ensino que te-mos, que outorga ao professor (no caso ao

45 As deficiências na leitura e na escrita são um capítuloà parte. Mais ou menos conscientes dos seus limites nes-ta área, bem como do fato que podem estar ensinando“errado” aos alunos, esta é uma das maiores fontes devergonha para elas. Corrigir tudo o que passa, e conver-sar sobre o fato de que é possível melhorar nessa áreaajudou as alunas em questão. Naturalmente a vergonhade “escrever errado” é um entrave para aprender a escre-ver melhor a língua culta.46 Nas monografias, houve apenas dois alunos homens:um em Ruy Barbosa e outro em Boa Vista.

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professor-orientador) o poder de orientar e deavaliar, ativa os medos e as posturas defensi-vas, bem como as atitudes que visam descobriro que o professor “quer”, já que é assim quefunciona a maior parte do ensino institucional.

Um trabalho monográfico, entretanto, temnuances que uma disciplina não tem, porque éconstruído aos poucos, em um diálogo (porescrito, verbal, ou com os livros), que é o pró-prio método de construção do texto monográ-fico. E no qual, a depender da orientação, oaluno tem muita participação. Assim, a depen-der do aluno e do orientador, a monografia ofe-rece oportunidades para esta troca, para estaconstrução a partir do saber do aluno, muitasvezes mais do que numa disciplina comum,com textos já estabelecidos.47

Uma outra característica interessante é ainfluência da escolha religiosa nos temas e for-mas de encarar a ciência. As duas equipes ori-entadas sobre alcoolismo e drogas tinham, emsua maioria, religiosas. E os maiores proble-mas eram o tipo de bibliografia usada (revistasreligiosas) ao lado de uma negação silenciosaa ler (ou a aceitar) a bibliografia indicada. Aoque tudo indica, mesmo não explicitando, aleitura do texto acadêmico contradizia o que aigreja prega nos seus materiais escritos. Assim,elas diziam não ter lido o texto acadêmico, ouo copiavam totalmente em contextos contradi-tórios, ou então diziam francamente não com-preender o que estava escrito. Uma das equi-pes relatou na sua apresentação que a maiorconquista delas no trabalho foi, “após muitosofrimento”, perceber “que outros pontos devista sobre o alcoolista”48, como elas diziam,podiam estar certos. E de que o dependente nãoera “um pecador”, ou um “irresponsável” ou

ainda “apenas uma vítima da sociedade ou dodemônio”. Essas pessoas, via de regra, têmmuita dificuldade para perceber contradiçõeslógicas nos argumentos que põem em chequeos discursos religiosos.

Nem tudo foram flores. Houve muita an-gústia, pois não foram aceitas cópias; porque acultura escolar deixa os professores acomoda-dos, pouco acostumados a serem criticados e aterem seus erros apontados, ainda que de ma-neira atenciosa. O fato de serem apenas duasvisitas (na terceira ainda foram indicadas vári-as alternativas para a apresentação) é realmen-te estressante, pois é pouco tempo para tantadiversidade de visão sobre a educação e sobreo agir. As diferenças culturais são grandes; oorientador está acostumado com um tipo de tra-balho e um tipo de resposta à sua demanda; aforma do orientando reagir nem sempre é deci-frável pelo orientador dentro dos quadros deprocedimentos que ele espera encontrar nosalunos. É o caso do que pode ser interpretadocomo desobediência flagrante, como foram asequipes que não enviavam os seus fichamentos,mesmo com várias solicitações por escrito; eque também não se comunicavam por carta outelefone, preferindo “dar essa resposta pesso-almente, professora”.

É interessante observar trechos de uma car-ta de orientação a uma das equipes na qual aminha surpresa e indignação ficam mal disfar-çadas. Numa delas, reclamo da demora, meespanto com os erros de indicação bibliográfi-ca, as cópias sem aspas, e indico como fazer.Reitero o pedido de envio já combinado do tra-balho. Pergunto porque não enviaram. Tentouma explicação: “Penso que vocês não estãolembrando do que combinamos de fazer, outalvez estejam pensando em mudar, para tra-balhar apenas com uma monografia mais teó-rica.” E mais adiante: “Penso que o que talveztenha deixado vocês preocupadas foi o nãoenvio desta lista.” Estou claramente dialogan-do comigo mesma, na falta absoluta de respos-ta plausível de qualquer parte. E ainda: “En-viei a Revista da FAEEBA em doação para A,que contém artigos sobre o assunto. Vocês re-ceberam? Também enviei citação de bibliogra-

47 Por ser processual e dialogada, a orientação monográfi-ca põe o orientador mais em cheque do que o professorde disciplina. Assim, quando a orientação é deficiente,quem lê ou assiste a uma defesa se pergunta o que foique aquele orientador fez ou deixou de fazer diante dafragilidade dos alunos, por exemplo.48 Especiais agradecimentos à profa. Maria Nadir BoaSorte, que indicou a maior parte da bibliografia para es-sas equipes.

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fia para a Profa. Z pedir à biblioteca para vocês.Vocês receberam ou tiveram notícia da chega-da das revistas? Deve estar havendo algo como sistema de malote da UNEB, pois a profa. Ztem se queixado do não recebimento de mate-riais que mando protocolados.”

Esta última citação trata de descobrir quaisas comunicações feitas entre a coordenação eas orientandas, e lida com algo grave, que erao relato de não recebimento, por parte da coor-denação, dos materiais enviados.49

O texto é frenético e grita por uma respostaa um silêncio e omissões que não pareciam nemeram admissíveis numa estrutura pedagógicade monografia.

Mesmo sendo cartas escritas e assinadas, eracomo se estas não tivessem o valor usual dedocumento e proteção que normalmente têm.Em algum momento, escrevi para documentaro que pensava ocorrer, para o caso de haveralguma ruptura. O pensamento da orientaçãotambém foi se transformando para entender oque ocorria. A dinâmica entre orientador-ori-entando e uma das coordenações era intensa econflituosa em vários momentos.

O que essas pessoas tinham como padrãode relação com o professor para imaginaremque um contato pessoal com dois meses de atra-so podia ser melhor do que uma resposta escri-ta imediata? Que fatores definem esta prefe-rência? Pode-se aventar as dificuldades de es-crever e se expressar por escrito; mas quanto àação de não responder a uma demanda de umprofessor? Ou responder com o silêncio? Quaisas formas do silêncio? E como não esperar queisso produza um caos no imaginário deste pro-fessor orientador? Citando Eni PuccinelliOrlandi (1997, p.50): “Pensar o silêncio comoum limite ao dialogismo é fazer a crítica a umasua concepção behaviorista, dominada pelafunção de informação e de turnos de fala as-sim como à esquematização da relação de sig-nificação entre os diferentes sujeitos e suasposições.”

Assim, eu tive que dar voltas sobre mimmesma e sobre minha prática usual ao me de-parar com silêncios tão significativos de tantascoisas, grande parte das quais nunca seráverbalizada ou mesmo conscientizada porambas as partes. No entanto, pela sua caracte-rística “noturna”50, essas faltas determinaramcores e caminhos no traçado pedagógico deambos. Ainda usando as palavras de Orlandi(1997, p.50): “A intervenção do silêncio fazaparecer a falta de simetria entre os interlocu-tores. A relação de interlocução não é nem bem-comportada nem obedece a uma lógica estabe-lecida.” Quem sabe, não era necessário o si-lêncio em contraposição ao meu falar/saber?Quem sabe, não era indispensável essa “nãoação”, como forma de se constituírem comosujeitos transformados? Fazer “oposição”, fa-zer um “muro” ao discurso lógico e articuladoda demanda de orientação? Até mesmo parapoder retomar essa orientação, mas agora comosujeitos que tinham direito ao seu sentido? Tal-vez uma contraposição a tudo o que esta pre-sença representava: às demandas difíceis daUNEB 2000, a estes prazos não cumpridos, aeste acúmulo de conteúdos e de dissoluções desujeito? 51

Esse tipo de evento é subversivo para oorientador, pelo inesperado, pela quebra de umaposição relacional, também ela muito estrutura-da socialmente. Poder contar dez segundos, dezminutos ou dez dias e “digerir” esta falta, sempunir ou sair da situação imediatamente é umgrande momento de aprendizagem para quemorienta a monografia. E é aí que o orientador éposto à prova. Conseguirá ele suportar a pre-sença real da irrupção da vontade do outro? Estacompetência única, que se almeja que este alu-no alcance, passa pela reconstrução do eu do

49 Comprovou-se depois o recebimento por livros de pro-tocolo. Até hoje não entendi porque os textos não eramentregues às orientandas.

50 Gilbert Durand, no seu brilhante livro “As estruturasantropológicas do imaginário” (1997) faz a distinção entreas imagens que obedecem a um regime “diurno” – apolí-neo, solar, de controle e limpeza e lógica, para as ima-gens e ocorrências que pertenceriam a um regime “no-turno” - de inconsciências, falhas, silêncios, enfim,dionisíacas, ligadas aos medos irracionais e desejos idem.51 No sentido de não se reconhecer mais como antes.

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aluno, na medida do “como” ele se representae é reconhecido; passa também pelo questiona-mento profundo da imagem do orientador. Apartir de si e do olhar desses outros significati-vos, seus alunos. Pelo menos assim foi nessasituação. Muito provavelmente devido à inten-sidade da intervenção que o programa UNEB2000 faz nos municípios, pela sua duração eintensidade, pela distância entre as partes e pelaforma que a monografia deve ser feita em ter-mos de tempo, exigência e novidade.

Aqui já é possível perceber o que foi e éinestimável na experiência dessa orientaçãomonográfica, e tão característico dela: são doisgrandes tipos de alegria, tão diferentes entresi e tão revolucionárias para o docente que sedispõe a navegar, como correntes marítimasdiversas no mesmo mar; a alegria que nascedo profundo sofrimento de se sentir absoluta-mente fora do rumo, e se perguntar onde estáo seu equívoco, e o que este silêncio testemu-nha; seguindo em frente, poder se desconhe-cer e reconhecer-se novo, um outro estranho,que pode suportar o insuportável e, a partirdesse novo lugar, compreender esses alunos,antes tão incompreensíveis, nunca dantes na-vegados, com permissão do óbvio; e a alegriamais simples, dos “bons” alunos que apren-dem e tornam isso visível, nos seus textos eno avanço que eles fazem, nas idéias absolu-tamente originais, apontando saídas para sua

comunidade; no alvorecer de novos sujeitos,mais complexos, mais flexíveis, professores.E no fim, estes dois estados se juntam, e to-dos os alunos têm sua bondade, pois as ale-grias, as tristezas e as dúvidas são estadosimportantes do ser e constituem a todos nós.Assim, neste destruir de velhas identidades etroca por outras, às vezes mais assustadoras,porém condizentes com a vida, dá-se o adven-to da construção do sujeito e do reconheci-mento da sua competência única; sinal ine-quívoco de que o trabalho vingou.

Aqui fecha-se o ciclo deste texto, que maisdo que um escrito, pretende atestar uma mu-dança real no perfil de uma autora-educadoraque vivenciou essa mudança e a comemora. Eque fique claro: a competência única dosorientandos é função desse aparente caos demudança e troca de identidades e auto-imagens,rastreadas nos erros, silêncios, atos falhos,emoções; que se configuram na comunicaçãoentre orientando-orientador e são, ao mesmotempo, o próprio sintoma e o próprio processode construção de um novo professor; e que, nonível acadêmico e pedagógico, essa assunçãodo outro sujeito se evidencia quando este reco-nhece em si a possibilidade de se desconhecere, assim, gerar um conhecimento único, que éseu na medida em que ele o construiu, mas éde todo mundo porque sua razão de existir é ade servir sua comunidade.

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Recebido em 20.05.02Aprovado em 11.06.02

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Edméa Oliveira dos Santos

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E CIBERCULTURA:

novas práticas curriculares na educação

presencial e a distância

Edméa Oliveira dos Santos *

RESUMO

As novas tecnologias digitais vêm estruturando novas relações sócio-téc-nicas, entre as quais podemos destacar a produção e socialização interativade conhecimentos no ciberespaço, evento esse conhecido como cibercultura.Paradoxalmente, também, encontramos na cibercultura práticas curricularestradicionais e fragmentadas do currículo moderno, bem como o resgatetecnicista das práticas de educação a distância. Não basta apenas intervirna forma e no conteúdo dos materiais ou estratégias de ensino. Essaconstatação tão precisa é preocupante, pois o papel do professor vem semantendo no mesmo paradigma da transmissão ou da distribuição em massa.O artigo é um convite que desafia educadores e educadoras a gerirem no-vas práticas curriculares na formação de professores, seja na modalidadepresencial ou a distância.

Palavras-chave: Formação de professores – Currículo – Comunicação –EaD

ABSTRACT

TEACHER QUALIFICATION AND CYBER CULTURE: newcurricular practices in the presential and distance education

The new digital technologies have been structuring new socio-technicalrelationships, among which one can highlight the interactive productionand socialization of knowledge in cyberspace, which is known as cyberculture. Paradoxically, also, one can find traditional and fragmentedcurricular practices of the modern curriculum in the cyber culture, as wellas the technicist rescue of the distance education practices. It’s not enoughto intervene in the shape and content of the teaching materials and strategies.Such accurate evidence is preoccupying, as the role of the teacher has beenkeeping itself in the same paradigm of mass transmission or distribution.The article is an invitation that challenges educators to manage new

* Pedagoga, mestre e doutoranda em Educação pela FACED/UFBA, professora de Didática e Tecnologiasna Educação da UNEB – Universidade do Estado da Bahia e da FAMEC – Faculdade Metropolitana deCamaçari. Endereço para correspondência: Condomínio Vilas do Imbuí, Ed. Jaciara, apt 102, Imbuí, Salva-dor/BA. E-mail: [email protected].

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Formação de professores e cibercultura: novas práticas curriculares na educação presencial e a distância

A cena sociotécnica

Atualmente, encontramos no debate sobreo uso do digital ou das novas tecnologias umanotável polissemia. Para uns, o digital vem pro-vocando mudanças radicais nas relações deaprendizagem: “(...) os usuários aprenderam atecnologia fazendo [Grifo nosso] o que aca-bou resultando na reconfiguração das redes ena descoberta de novas aplicações (...)”(CASTELLS, 1999, p.50-51). Para outros, “(...)dizemos que as novas tecnologias são interati-vas, hipertextuais, ou seja, que elas utilizamsimulações, interatividade, não-linearidade (oumultilineariade), multivocalidade e tempo real.Todas essas características são possíveis semnenhuma mediação tecnológica e vivemos issono nosso sistema educativo atual, com menorou maior sucesso.” (LEMOS, 1999, p.69)

Entretanto, entendo que visões extremistasnão contribuem significativamente para o de-bate. Devemos considerar, é claro, que todoavanço sócio-técnico acaba, quase sempre, in-corporando elementos conjunturais anteriores,mas também instaura mudanças significativas.Vejamos, por exemplo, o caso da imprensa noque se refere aos processos de leitura e escrita:

A tecnologia que permitiu a leitura silenciosa, abusca rápida e a citação é anterior à imprensa.Mas a imprensa introduziu uma mudança total ecompleta em um aspecto crucial: a idéia de có-pia de um mesmo texto. Antes da imprensa, aidéia de exemplares idênticos do mesmo textoera um ideal nunca alcançado. Depois da im-prensa, converteu-se em uma banalidade. (FER-REIRO, 1999, p.61)

É na tentativa de discutir as potencialidadesdo digital que devemos procurar identificar oque nessa abordagem é realmente “novo”, édiferente, para que possamos investigar e tirarmelhor proveito das suas reais inovações parao campo do currículo.

As tecnologias digitais vêm superando etransformando os modos e processos de pro-dução e socialização de uma variada gama desaberes. Criar, transmitir, armazenar e signifi-car estão acontecendo como em nenhum outromomento da história. Os novos suportes digi-tais permitem que as informações sejam mani-puladas de forma extremamente rápida e flexí-vel, envolvendo praticamente todas as áreas doconhecimento sistematizado bem como todocotidiano nas suas multifacetadas relações.Estamos, efetivamente, vivendo uma mudançacultural.

A base técnica da revolução vem promoven-do atividades de natureza “intangível”. A ele-trônica e a informática, com suas diversas apli-cações, vêm promovendo a desmaterializaçãoda informação, que até pouco tempo estava pre-sa a um suporte físico, atômico (discos, livros,madeira, pedra), transformando-a em impulsoselétricos, bits1, facilitando assim os processosde transmissão, circulação, armazenamento etambém de significação das informações, conhe-cimentos e saberes. Em síntese, esse processode digitalização se caracteriza tecnicamente pelaconvergência da computação (informática e suasaplicações), da comunicação (transmissão e re-cepção de dados) e dos conteúdos (texto, sons,imagens, gráficos).

Além da convergência tecnológica da infor-mática com a telecomunicação, dois outros as-pectos, segundo Takahashi (2000), vêm pro-vocando mudanças nas relações sócio-técnicas.

curricular practices in teacher qualification, both presentially and from adistance.

Key words: Teacher qualification – Curriculum – Communication –Distance learning

1 Segundo Negroponte (1995, p.19), “Um bit não temcor, tamanho ou peso e é capaz de vuajar à velocidade daluz. Ele é o menor elemento atômico do DNA da infor-mação. É um estado: ligado ou desligado, verdadeiro oufalso, para cima ou para baixo, dentro ou fora, branco oupreto”. Para nosso debate importa destacar que a possi-bilidade de combinações desses dois elementos (0 e 1)pode expressar e registrar a memória da humanidade deforma desmaterializada e em alta velocidade.

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Edméa Oliveira dos Santos

O primeiro é a crescente popularização do uso/aplicações do computador digital devido ao ba-rateamento dos preços, promovido pela dinâ-mica industrial do setor, e o segundo aspectorefere-se ao crescimento da Internet em todo omundo. Esse movimento vem causando mudan-ças, não só tecnológicas, como também políti-cas, econômicas, culturais e, sobretudo, sociais.Vejamos um exemplo ilustrativo:

Todos já vimos notícias sobre a perda da impor-tância relativa da agricultura. Nos Estados Uni-dos, ela envolveria quando muito 2% da popu-lação ativa. No entanto, ao olharmos de maisperto, constatamos que em torno destes 2% quesão realmente muito poucos, funcionam empre-sas que prestam serviços de inseminação artifi-cial, outras que prestam serviços de análise desolo, outras ainda que organizam sistemas deestocagem e conservação da produção, ou pres-tam serviços de pesquisa, meteorologia e assimpor diante. Quando formos somando as diver-sas atividades diretamente ligadas à agricultura,mas que não trabalham a terra, chegaremos apelo menos 20% da população ativa americana.Em outros termos, o que está acontecendo não éo desaparecimento da agricultura: mudou a for-ma de fazer agricultura, com menos atividadede “enxada”, perfeitamente passível de mecani-zação, e muito mais conteúdo de organizaçãodo conhecimento [Grifo nosso]. (DOWBOR,2001, p.3)

O exemplo acima sistematizado pelo eco-nomista Ladislau Dowbor mapeia a complexi-dade que recai na discussão sobre as novastecnologias da comunicação e da informaçãocomo estruturantes de novas formas de pensare atuar no mundo contemporâneo. Muito maisdo que instrumentalizar práticas já experimen-tadas pela humanidade, o digital introduz for-mas e conteúdos completamente originais nosdiversos processos de organização das ativida-des humanas.

Esse movimento contemporâneo exige, dosgrupos/sujeitos e dos Estados, novas estratégi-as de democratização do acesso às novas tecno-logias digitais, bem como políticas públicas quepossibilitem a toda população uma educaçãopara a autoria de novos conhecimentos e apli-cações sócio-técnicas. “As novas tecnologiasda informação não são simplesmente ferramen-

tas a serem aplicadas, mas processos a seremdesenvolvidos.” (CASTELLS, 1999, p.51).Urge discutirmos novas formas de ensinar eaprender nesse novo tempo.

Muito mais do que apenas dinamizar e pro-mover uma nova materialização da informa-ção, a tecnologia digital permite a interconexãode sujeitos, de espaços e/ou cenários de apren-dizagem, exigindo, dos mesmos, novas açõescurriculares e ações em rede. Assim, quandoLévy (1997) destaca a necessidade de “apren-der com o movimento contemporâneo das téc-nicas”, podemos nos inspirar no digital e nosseus desdobramentos (hipertexto, interativi-dade, simulação), propondo práticas curricula-res mais comunicativas, como mais e melho-res autorias individuais e coletivas.

O ciberespaço é composto por uma diversi-dade de elementos constitutivos (interfacesamigáveis) que permitem diversos modos decomunicação: um-um, um-todos e todos-todosem troca simultânea (comunicação síncrona)ou não (comunicação assíncrona) de mensa-gens. Tais possibilidades podem implicar mu-danças diretas, nem melhores, nem piores, masdiferentes, na forma e no conteúdo das rela-ções de aprendizagem do coletivo. É atravésdo conjunto de interfaces que os usuáriosinteragem com a máquina, compondo assim ociberespaço e a cibercultura. Segundo Johnson(2001, p.16):

A interface atua como uma espécie de tradutor,mediando entre as duas partes, tornando umasensível para a outra. Em outras palavras, a re-lação governada pela interface atua como é umarelação semântica, caracterizada por significa-do e expressão, não por força física. Os compu-tadores digitais são “máquinas literárias”, (...)trabalham com sinais e símbolos.

Nesse sentido, podemos afirmar que o com-putador digital é um elemento estruturante, poispermite que novas formas de pensar sejam ins-tituídas. Um elemento que lida com linguagempermite que novas representações, novos pro-cessos de aprendizagem e de desenvolvimentocognitivo possam emergir dessa interação só-cio-técnica. Ao contrário do que muitos teóri-cos afirmam, computador não é apenas uma

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Formação de professores e cibercultura: novas práticas curriculares na educação presencial e a distância

ferramenta. Ainda segundo Johnson (2001,p.17): “A ruptura tecnológica decisiva resideantes na idéia do computador como um siste-ma simbólico, uma máquina que lida com re-presentações e sinais e não com a causa-e-efei-to mecânica do descaroçador de algodão ou doautomóvel.”

O campo do currículo: outra cena emquestão

As mudanças sociotécnicas expostas acimaestão interferindo significativamente com ocampo da educação, em particular com o cam-po do currículo. O digital vem imprimindo no-vas modalidades educacionais, alterando con-sideravelmente modalidades anteriores. A no-ção de educação presencial, de um lado, e edu-cação a distância, EaD, do outro, vêm ganhadonovos significados.

A educação a distância se caracteriza comouma modalidade de educação que promove si-tuações de aprendizagem, onde professores eestudantes não compartilham os mesmos espa-ços e tempos curriculares, comuns nas situaçõesde aprendizagem presenciais. Para tanto, é ne-cessária a utilização de uma multiplicidade derecursos tecnológicos que ajam como interfacesmediadoras na relação professor/estudante/co-nhecimento. Historicamente, as práticas de EaDforam, e ainda são, alvo de inúmeras críticas epreconceitos em relação à modalidade de edu-cação presencial por não permitir o contato deuma relação face a face, na qual, “em tese”, épossível promover a interação, a troca de sabe-res, conhecimentos, experiências entre sujeitose objetos do conhecimento.

Destaco a expressão “em tese”, devido à nãogarantia de relações interativas apenas pelomotivo do encontro face a face, uma vez queencontramos nas diversas análises e críticasfeitas ao currículo disciplinar e tradicional, or-ganizado por uma comunicação unilateral,centrada na retórica do professor que, muitasvezes, difunde as informações encontradas emsignificantes – livros didáticos, vídeos etc – nãocontextualizados e, muito menos, produzidos

pelos sujeitos cognocentes. Atitudes como es-sas provocam distâncias de variada natureza,mesmo estando os sujeitos geograficamentepróximos.

A distância geográfica exige interfaces quepermitam uma comunicação efetiva entre ossujeitos no processo de trabalho, logo de apren-dizagem. Tal efetividade deve se dar não só peloencurtamento das distâncias físicas, mas tam-bém simbólicas e existenciais. Como já sinali-zaram os teóricos críticos e sócio-interacionis-tas, a aprendizagem acontece na relação dossujeitos com as culturas e não apenas com oacesso desses às informações distribuídas. Naspráticas tradicionais de EaD, os materiais ourecursos tecnológicos configuram-se como ele-mentos auto-suficientes, tornando-se o centrode todo o processo, a exemplo, destacamos alimitação das interfaces atômicas e analógicas– impressos, TV, vídeos – utilizadas para dis-tribuir informações em massa.

Com o avanço das tecnologias digitais, asinstituições educacionais podem operacio-nalizar currículos que permitem ir além da dis-tribuição de conteúdos a distância, garantindonovas práticas curriculares onde a interaçãoprofessor/estudantes/conhecimento seja real-mente possível, extrapolando, assim, a lógicada distribuição e prestação de contas de ativi-dades individualizadas. Podem, além disso,potencializar as atividades presenciais dos seusserviços, tanto nas esferas tecno-administrati-va, tecno-pedagógica e relacional, assim comona articulação e no interfaceamento destas nasua gestão como um todo, especialmente emuma melhor gestão de conhecimentos intra einter-institucional, criando redes de relaçõesque favoreçam a cooperação entre os grupos/sujeitos em espaços multirreferenciais.

Desafios para a formação de profes-sores e as práticas curricularespresenciais e a distância

Quando o professor recebe uma mensagemde um estudante é preciso atentar para o con-texto de onde emerge a mensagem. Desafios e

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questões são postos a todo tempo, por exem-plo: De onde fala esse estudante?2 Quais seushábitos para o desenvolvimento de competên-cias? Qual a sua realidade sociotécnica? Pormais que trabalhemos com a idéia de “identi-dade de saberes”, esta jamais pode ser conce-bida fora do contexto de vida do sujeito na suadiferença de gênero, sexo, etnia, religião, clas-se social. É na diversidade que os sujeitospotencializam seus saberes. Segundo Lévy(1998, p.27):

As identidades tornam-se identidades de saber.As conseqüências éticas dessa nova instituiçãoda subjetividade são imensas: quem é o outro?É alguém que sabe. E que sabe as coisas que eunão sei. O outro não é mais um ser assustador,ameaçador: como eu, ele ignora bastante e do-mina alguns conhecimentos. Mas como nossaszonas de inexperiência não se justapõem ele re-presenta uma fonte possível de enriquecimentode meus saberes. Ele pode aumentar meu poten-cial de ser, e tanto mais quanto mais diferir demim.

Nesse sentido, devemos considerar que oprofessor na cibercultura precisa ser mais uminterlocutor do que um tutor, ou mesmo umprofessor no seu sentido mais tradicional. Sabe-se que tutor é o indivíduo encarregado de tute-lar, proteger e defender alguém; é o adulto quecarrega o infante pela mão. Já o professor é oindivíduo que ensina uma ciência, arte, técnicaou disciplina. Esse entendimento não garantea educação autêntica.

Como já sinalizamos, a prática em EaD secaracteriza tradicionalmente pela distância ge-ográfica dos professores e estudantes. Dessaforma, o centro do processo é o material ourecurso didático. Estes normalmente se confi-guram como pacotes prontos, que se apresen-tam de forma linear, seqüenciada e com poucamultiplicidade. É assim com o material impres-so, muito usado nos cursos por correspondên-cia, e com os vídeos e os programas de televi-

são. Esse modo de fazer currículo tem suasbases na tendência de educação tecnicista.Logo, cabe ao tutor:

1 - Informar o aluno sobre os conteúdos cientí-ficos e técnicos, técnicas de trabalho intelectu-al, o andamento de seus estudos e sua compre-ensão das matérias; 2 - Motivar o aluno paracontinuar estudando apesar das dificuldades detodo tipo que possam surgir; 3 - Possibilitar oconhecimento do aluno por parte dos professo-res, de forma direta pelos professores tutores e ,através de seus relatórios, pelos da sede central,permitindo assim uma avaliação final mais con-creta e o necessário controle das dificuldades quepossam ser colocadas pelos materiais didáticosutilizados. (UNED, 1988/1989, p.18-19, apudMAGGIO, 2001, p.95-96)

Nessa lógica, o professor/tutor é apenas al-guém que executa e administra formas e con-teúdos estáticos que partem de um pólo emis-sor para uma comunicação de massa, unidire-cional, onde o estudante é apenas um receptor,e como tal, não constrói o conhecimento. Daí,como lidar com as identidades de saberes? Ociberespaço não pode ser concebido como umamídia de massa que incorpora conteúdos, comoacontece normalmente com experiências emEaD mediadas pelo impresso, TV ou vídeos,onde a comunicação se restringe ao modelo“um-todos”. Além de se constituir, por sua na-tureza multimídia, interconexão e integração,o ciberespaço é um espaço de comunicaçãopotencialmente interativo, pois permite umacomunicação “todos-todos”. É “potencialmen-te” interativo, porque não garante por si só,pelas suas interfaces, comumente chamadas deferramentas, tal interatividade. O meio estru-tura a interatividade, mas não a determina, aexemplo dos diversos sites de cursos3 e portaisencontrados no próprio ciberespaço. Nos aler-ta Pretto (2000):

Preocupante porque a Internet tende a se tornaro maior repositório de conhecimento humano,

2 Além de tentar entender seu posicionamento local –cidade/cultura – devemos também atentar para os territórios simbólicos, suas angústias, seus desejos, suas ne-cessidades.

3 Veja o site do Instituto Universal Brasileiro. Esse insti-tuto trabalha com educação a distância desde as práticaspor correspondências, usando material impresso, estan-do também no ciberespaço, no endereço: www. institurouniversal.g12.br

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embora ainda mantendo o mesmo estilo de con-centração na produção do conhecimento e nadivulgação de informações dos chamados tradi-cionais meios de comunicação de massa. Nãochegamos a afirmar que temos o mesmo siste-ma de broadcasting, de distribuição de informa-ções via meios centralizados, como vemos nocaso do sistema de televisão. No entanto, nosparece um importante indicador para que possa-mos pensar na pouca diversidade de sítios sen-do localizados por estas buscas indicando-nos,

conseqüentemente, a necessidade de um repen-sar sobre a sistemática de produção e divulga-ção de sítios que expressem as diferentes cultu-ras e valores locais.Diante do paradoxo entre a natureza do

ciberespaço, rede, e as produções lineares en-contradas no mesmo, torna-se urgente discutirnovas dimensões de comunicação para que no-vas ações sejam materializadas, sobretudo nocampo do currículo e da educação. Vejamos:

No quadro acima, Silva (2000, p.73s)mapeia os principais elementos da comunica-ção, emissor/receptor/mensagem, diferencian-do suas relações em modalidades distintas decomunicação. Desse modo, nos convoca a pen-sar e materializar a ação de uma comunicaçãointerativa, para um currículo em rede. A redenão tem centro, os elementos circulam e se des-locam de acordo com as necessidades eproblematizações dos sujeitos. Dessa forma,tanto professores quanto estudantes podem serautores e co-autores (emissores receptores)de mensagens abertas e contextualizadas peladiferença nas suas singularidades.

Pensar o currículo em rede é conceber umateia de conexões onde o professor pode estarou não no centro, os estudantes podem tomar acena criando e co-criando situações de apren-dizagem, nas quais os conteúdos disponi-

bilizados e interfaces (ferramentas) tomam des-taque no processo.

O que importa nessa complexa rede de re-lações é a garantia da produção de sentidos, daautoria dos sujeitos/coletivos. O conhecimen-to deve ser concebido como fios que vão sen-do puxados e tecidos criando novas significa-ções, onde alguns irão conectar-se a novos,outros serão refutados ou serão ignorados pe-los sujeitos, “nós”, até que outros fios sejamtecidos a qualquer tempo/espaço na grande redeque é o próprio mundo. Daí a aprendizagemacontece quando o professor propõe o conhe-cimento, não o distribui, não oferece informa-ções a distância. O estudante não estará maisreduzido à passividade de um receptor que olha,copia, repete. Ele é co-autor da comunicação eda rede de conhecimentos, criando, modifican-do e tecendo novas e complexas redes.

MENSAGEM: fechada, imutável, linear,seqüencial;

EMISSOR: “contador de histórias”, narradorque atrai o receptor (de maneira mais oumenos sedutora e/ou por imposição) para seuuniverso mental, seu imaginário, sua récita;

RECEPTOR: assimilador passivo

MENSAGEM: modificável, em mutação, namedida que responde às solicitações daqueleque a manipula;

EMISSOR: “designer de software”, constróiuma rede (não uma rota) e define um con-junto de territórios a explorar; ele não ofere-ce uma história a ouvir, mas um conjunto in-tricado (labirinto) de territórios abertos a na-vegações e dispostos a interferências, a mo-dificações;

RECEPTOR: “usuário”, manipula a mensa-gem como co-autor, co-criador, verdadeiroconceptor.

A COMUNICAÇÃOMODALIDADE UNIDIRECIONAL MODALIDADE INTERATIVA

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A educação, mais especificamente o currí-culo, por mais críticos que sejam, quase nãocontemplam nos seus discursos teóricos a ques-tão da comunicação4. As referências mais uti-lizadas são a Psicologia da Aprendizagem, aDidática e, mais contemporaneamente, os Es-tudos Culturais. Não quero com isso, negligen-ciar tais referências, quero potencializá-las pelacomunicação interativa estruturada pela digi-tal. Logo, precisamos (re)significar o papel doprofessor nesse processo. É preciso rever apolítica de sentido da palavra “tutoria”, avan-çando da etimologia para o currículo na ação.

Numa breve revisão de literatura (Maggio,2001; Litwin, 2001; Barreto, 2001) sobre o pa-pel da tutoria na atualidade, há ainda uma gran-de ênfase nas referências psicológicas e didáti-cas, mesmo quando o tema é EaD na Web.Maggio (2001, p.98) sugere:

Entre as propostas que sistematicamente busca-ram incorporar desenvolvimentos teóricos comoos que assinalamos, destaca-se hoje o ensinoatravés de casos. (...) Na modalidade à distân-cia, cujos projetos ou programas, muitas vezes,dispõem de uma rica diversidade de meios quepermitem recorrer a diferentes modos de repre-sentação, poder-se-á enriquecer na apresentaçãodos casos elegendo, em cada situação, o suporteque se revela mais adequado para um tratamen-to verossímil.

É inegável que propostas metodológicassejam pertinentes para a criação de novos mo-dos de educar, seja na educação presencial, sejana educação à distância mediada pelo digital.Contudo, se nessa discussão a modalidade decomunicação não romper com a lógica unidire-cional, pouca ou quase nenhuma mudança qua-litativa acontecerá. As alternativas didáticaspodem muito bem “maquiar” o paradigma tra-dicional do currículo. Não basta apenas inovara forma nem o conteúdo dos materiais ou es-tratégias de ensino. É necessário transformar oprocesso de comunicação dos sujeitos envol-vidos. Paulo Blikstein, pós-graduando do Me-

dia Lab do MIT, pesquisando EaD na Web,chegou à seguinte conclusão:

Reproduz-se o mesmo paradigma do ensino tra-dicional, em que se tem o professor responsávelpela produção e pela transmissão do conheci-mento. Mesmo os grupos de discussão, os e-mails, são ainda, formas de integração muitopobres. Os cursos pela internet acabam conside-rando que as pessoas são recipientes de infor-mação. A educação continua a ser, mesmo comesses aparatos tecnológicos, o que ela semprefoi: uma obrigação chata, burocrática. Se vocênão muda o paradigma, as tecnologias acabamservindo para reafirmar o que já se faz.(BLIKSTEIN, 2001)A constatação acima é preocupante, pois o

papel do professor na cibercultura se mantémno mesmo paradigma da transmissão caracte-rística do currículo tradicional e da mídia demassa. O que temos aqui é a subutilização doparadigma digital. Cito, por exemplo, a aborda-gem de Barreto, especialista em EaD da Uni-versidade de Brasília, que separa burocratica-mente a ação do professor em compartimentos:

Professor/autor - elabora conteúdos paramateriais didáticos de EaD;Professor/instrutor - ministra aulas comple-mentares ao material didático, síncrona ouassíncronamente, intermediadas por tecno-logias (chats, fóruns, videoconferência, te-levisão, etc.) ou presencialmente;Professor/tutor - auxilia os autores e instru-tores e, principalmente aos alunos, a serembem sucedidos no processo de ensino/apren-dizagem. Não tem permissão para modifi-car os conteúdos e linhas pedagógicas pro-postas pelos autores/coordenadores do cur-so. (BARRETO, 2001)5

Essa perspectiva fragmenta, compartimenta-liza o fazer do saber fazer, a teoria da prática.Assim, a autoria do professor se reduz à elabo-ração de conteúdos a serem transmitidos comomensagens fechadas e imutáveis. A produçãoe a distribuição dos conteúdos e materiais são

4 Teóricos da Escola de Frankfurt fizeram críticas pro-fundas a mídia de massa, contudo não chegaram a pro-por novas modalidades comunicacionais. Salvo Harbe-mas, com sua teoria da Ação Comunicativa que não con-templa o paradigma digital.

5 Cf. Produção de material didático para cursos à distân-cia na Web. SBPC nº 53, Salvador/BA, julho 2001. Cur-so ministrado pela professora Lina Sandra Barreto emPower Point, onde distingue o papel do professor e suaimplicação no currículo no ciberespaço.

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Formação de professores e cibercultura: novas práticas curriculares na educação presencial e a distância

separadas do acompanhamento do processo deaprendizagem, não permitindo alterações dosconteúdos por parte dos sujeitos envolvidos.Ademais, a autoria se reduz a quem cria o ma-terial didático que circula no ciberespaço, fa-zendo do estudante e do professor/tutor recipi-entes de informação, ainda baseada na lógicada comunicação de massa.

São urgentes a crítica e a criação de novaspropostas de educação no ciberespaço que con-templem a ressignificação da autoria do pro-fessor e do estudante como co-autor. O currí-culo em rede exige a comunicação interativaonde saber e fazer transcendam as separaçõesburocráticas que compartimentalizam a auto-ria em quem elabora, quem ministra, quem tiradúvidas e quem administra o processo da apren-dizagem. Então, é preciso investir na forma-ção de novas competências em comunicação.

Destaquei, até aqui, problemas que ilustrama fragmentação da autoria do professor nos pro-cessos de EaD. Ao mesmo tempo, convoco anovas posturas para a construção do currículoem rede. Entretanto, considero que é exatamen-te na questão da rede que se deve investir. Todarede de produção de saberes e conhecimentosé formada por diferenças e múltiplas compe-tências singulares. Ninguém sabe tudo, todomundo sabe alguma coisa diferente do outro eé exatamente essa diferença dos saberes queenriquece o coletivo inteligente. O grande pro-blema está na gestão do processo. Em vez detodo o grupo conhecer todo o processo, poten-cializando os saberes das singularidades numaconstrução coletiva, as singularidades são con-vocadas apenas para compor o processo de di-visão do trabalho, próprio da escola/fábricabaseada no modelo “fordista” do currículo porprogramas.

O papel do professor na cibercultura, e tam-bém fora dela, tem como desafio integrar e co-ordenar a equipe multidisciplinar num currí-culo multirreferencial em rede que permita queas competências dos sujeitos sejam solicitadas/(re)significadas no processo como um todo,onde a gestão dos saberes não se limite apenasà produção dos recursos/conteúdos, mas aoacompanhamento do processo que ganha po-

tenciais co-autores, os estudantes. Para tal, esseprofessor, na visão de Silva (2000, p.180), “nãose contenta em ser “um conselheiro”, “umaponte entre a informação e o conhecimento”,“um facilitador da aprendizagem” e sim, pro-fessor entendido como aquele que:1. disponibiliza possibilidades de múltiplas

experimentações, de múltiplas expressões;2. disponibiliza uma montagem de conexões

em rede que permite múltiplas ocorrências;3. formula problemas;4. provoca situações;5. arquiteta percursos;6. mobiliza a experiência do conhecimento;7. constrói uma rede e não uma rota;8. cria possibilidade de envolvimento;9. oferece ocasião de engendramentos, de

agenciamentos, de significações;10.estimula a intervenção dos alunos como co-

autores da construção do conhecimento eda comunicação.Os espaços de aprendizagem não podem ser

reduzidos a um repositório de informações, poistrata-se de ambiente fecundo de inteligênciacoletiva. Diante de tais competências, os ter-mos tutor ou facilitador não contemplam a com-plexidade que supõe a autoria do professor, sejano presencial, seja a distância on-line. Por mepreocupar especificamente com a formação desujeitos nas práticas do currículo-ação, relaçãoprofessor/estudante/conhecimento, procurei in-vestigar como o digital pode estruturar novasações curriculares na formação de professores.Como organizar o processo de aprendizagemdocente alternando e integrando a aula física ea aula on-line?

Para tanto, urge analisar as diversasinterfaces disponíveis gratuitamente nociberespaço, criar ambiências (no ciberespaçoe fora dele) fecundas para autorias coletivasintra e interinstitucionais nas práticas curricu-lares de formação de professores inicial (Cur-sos de Pedagogia e Licenciaturas) e continua-da (cursos de aperfeiçoamento, extensão, es-pecialização), e propor alternativas curricularesque valorizem as potencialidades do digital,criando novas práticas curriculares para a edu-cação presencial e a distância.

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Edméa Oliveira dos Santos

Nos labirintos da pesquisa/ação/for-mação: o multirreferencial e o digi-tal como metodologia

Dentre as diversas críticas à produção, soci-alização e legitimação de saberes e conhecimen-tos na atualidade, podemos destacar a ciênciacomo mais uma referência e não como mais umagrande narrativa. “A exuberância, a abundân-cia, a riqueza das práticas sociais proíbem con-cretamente sua análise clássica por meio da de-composição-redução”. (ARDOINO, 1998, p.26).

Ademais, os próprios acontecimentos cien-tíficos7 ao longo da história da ciência permi-tem que iniciemos não só uma discussão sobrea necessidade de construção de uma nova ci-ência, “ciência transdisciplinar”, como nos aler-ta Morin, mas sobretudo a possibilidade de le-gitimar outras referências e/ou saberes e conhe-cimentos. Tal preocupação vem ganhando des-taque devido às diversas mutações sócio-téc-nicas, vividas neste novo século. Nesse con-texto, podemos lançar mão de mais uma abor-dagem epistemológica e metodológica, a mul-tirreferencialidade.

O conceito de multirreferencialidade é perti-nente para contemplar nos espaços de aprendi-zagem uma “leitura plural de seus objetos (prá-ticos ou teóricos), sob diferentes pontos de vis-tas, que implicam tanto visões específicas quantolinguagens apropriadas às descrições exigidas,em função de sistemas de referenciais distintos,considerados, reconhecidos explicitamentecomo não redutíveis uns aos outros, ou seja,heterogêneos” (ARDOINO, 1998, p.24).

A multirreferencialidade, como um novoparadigma, torna-se hoje um grande desafio.Desafio que precisa ser vivido e gestado, prin-cipalmente pelos espaços formais de aprendi-zagem que ainda são norteados pelos princípi-

os e práticas de uma ciência moderna. Por ou-tro lado, diferentes parcelas da sociedade vêmcriando novas possibilidades de educação e deformação inicial e continuada.

A emergência de atividades (presenciais e/ou a distância, estruturadas por dispositivoscomunicacionais diversos), cursos (livres, suple-tivos, de qualificação profissional), atividadesculturais diversas, artísticas, religiosas, espor-tistas, comunitárias começam a ganhar nestenovo tempo uma relevância social bastante fe-cunda. Tal acontecimento vem promovendo alegitimação de novos espaços de aprendizagem,espaços esses que tentam “fugir do reducionismoque separa os ambientes de produção e os deaprendizagem (...), espaços que articulam, in-tencionalmente, processos de aprendizagem e detrabalho”. (BURNHAM, 2000, p.299)

Os sujeitos que vivem e interagem nos es-paços multirreferenciais de aprendizagem, ex-pressam na escola insatisfações profundas, pon-do em xeque o currículo fragmentado, legiti-mando inclusive espaços diversos – espaçosesses que há bem pouco tempo não gozavamdo status de espaços de aprendizagem – atra-vés da autoria dos saberes construídos pelaitinerância dos processos nesses espaços. É pelanecessidade de legitimar tais saberes e compe-tências que diversos espaços de trabalho estãocertificando os sujeitos pelo reconhecimento dosaber fazer – competência – independentementede uma suposta formação institucional especí-fica, como por exemplo, as experiências “for-mais” de formação inicial.

A noção de espaço de aprendizagem vai alémdos limites do conceito de espaço/lugar. Com aemergência da “sociedade em rede”8, novos es-paços digitais e virtuais de aprendizagem vêmse estabelecendo a partir do acesso e do uso cri-ativo das novas tecnologias da comunicação eda informação. Novas relações com o saber vãose instituindo num processo híbrido entre o ho-mem e máquina, tecendo teias complexas derelacionamentos com o mundo.

7 “Por um lado, as potencialidades da tradução tecnoló-gica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer nolimiar de uma sociedade de comunicação e interactivalibertada das carências e inseguranças que ainda hojecompõem os dias de muitos de nós: o século XXI a co-meçar antes de começar. Por outro lado, uma reflexãocada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor ci-entífico ecológico ou da guerra nuclear fazem-nos temerque o século XXI termine antes de começar”. (SANTOS,1997, p.6).

8 Expressão utilizada por Manuel Castells (1999) parailustrar a dinâmica econômica e social da nova era dainformação, estruturada por tecnologias de natureza di-gital. Para saber mais, ver bibliografia.

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Formação de professores e cibercultura: novas práticas curriculares na educação presencial e a distância

Para que a diversidade de linguagens, pro-duções e experiências de vida sejam, de fato,contempladas de forma multirrefencializada,nos e pelos espaços de aprendizagem, os sabe-res precisam ganhar visibilidade e mobilidadecoletiva, ou seja, os sujeitos do conhecimento

REFERÊNCIAS

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Recebido em 29.01.02Aprovado em 25.06.02

precisam ter sua alteridade reconhecida, sen-tindo-se implicados numa produção coletiva,dinâmica e interativa que rompa com os limi-tes do tempo e do espaço geográfico. Para tan-to as novas tecnologias digitais poderãoestruturar novas práticas curriculares.

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123Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 123-137, jan./jun., 2002

Gregório Benfica

A TAÇA DO MUNDO É NOSSA !

Globalização, exclusão e futebol no Brasil

Gregório Benfica *

RESUMO

No artigo intenta-se analisar de maneira panorâmica o contexto sócio-eco-nômico atual, apontando as contradições políticas e éticas de um sistemaeconômico que, em nome da inclusão, reforça a exclusão. O cenário deanálise é formado pelas relações econômicas do Brasil no mundoglobalizado, aí enfocando-se a relação complementar que a exclusão, emnível internacional, estabelece com uma tradição excludente de nossas eli-tes. Após isso, tenta-se atualizar as reflexões de Roberto DaMatta, sobre ofutebol no Brasil, reflexões essas que indicam o futebol como um meca-nismo de resistência à exclusão e como uma renovação da utopia em ummundo onde todos sejam cidadãos.

Palavras-chave: Globalização – Exclusão – Inclusão – Futebol

ABSTRACT

THE WORLD CUP IS OURS! Globalization, exclusions and soccer inBrazil

In this article one intends to panoramically analyze the currentsocioeconomic context, indicating the ethical and political contradictionsof an economy system that, in name of inclusion, reinforces exclusion.The analysis scenario is composed by the economy relations of Brazil inthe globalized world, focusing on the complementary relationship thatexclusion, on an international level, establishes with an excluding traditionof our elites. After that, one tries to update the thoughts of Roberto DaMatta,about soccer in Brazil, which sees soccer as a resistance mechanism toexclusion, and as a renewal of utopia in a world where everyone is a citizen.

Key words: Globalization – Exclusion – Inclusion – Soccer

* Professor da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, mestrando em Desenvolvimento Sustentável pelaUniversidade de Brasília e Educação e Contemporaneidade pela UNEB, didata e facilitador em Biodança,consultor nas áreas de educação, relações humanas e desenvolvimento organizacional. Endereço para cor-respondência: Rua Clóvis Bevilacqua, qd. 40, lt. 07, cs 04, Praias do Flamengo, Salvador-BA, CEP: 41.600-280. E-mail: [email protected]

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A taça do mundo é nossa! Globalização, exclusão e futebol no Brasil

INTRODUÇÃO

A virada do milênio foi de esperanças paramuitos. Afinal, as duas últimas décadas do sé-culo XX foram de mudanças aceleradas: nosanos 80 tivemos a revolução nas tecnologiasde comunicação e informação e nos anos 90,já no início, as mudanças foram políticas, como fim da ex-URSS e, conseqüentemente, o fimda Guerra Fria. Atravessamos o portal do sé-culo XXI trazendo na bagagem as condiçõestécnicas e políticas para uma globalização hu-manista.

No entanto, na soleira deste novo século, oque contemplamos é um velho e conhecidoespetáculo, que insiste em permanecer em car-taz, a exclusão. Esta é tão antiga como a civili-zação; no entanto, sempre nos surpreende comuma nova faceta ao longo da história. Da mes-ma forma, a globalização, que não é tão jovemassim – começou na Idade Moderna, com aexpansão marítima e comercial dos países eu-ropeus – se apresenta com nova roupagem,porém, mantém o mesmo caráter.

Busco analisar, em primeiro lugar, o con-texto atual, apontando as contradições políti-cas e éticas de um sistema econômico, que emnome da inclusão reforça a exclusão. O cená-rio de análise serão as relações econômicas doBrasil no mundo globalizado, e aí enfocando-se a relação complementar que a exclusão, emnível internacional, estabelece com uma tradi-ção excludente de nossas elites. Os méritosdessa análise, se algum tiver, devem ser credi-tados ao pensamento do meu ex-professorCristovam Buarque (1999).

Em segundo lugar, tentarei atualizar, nesteano de pentacampeonato na Copa do Mundo,as reflexões de Roberto DaMatta (1986, p.88-120) sobre o futebol no Brasil, reflexões quesuperam a tradicional interpretação do futebolcomo mecanismo de alienação, logo, de ma-nutenção da exclusão. Como veremos, o fute-bol se mostra uma excelente metáfora na com-preensão das estratégias e “jogadas” de nossopovo.

I – GLOBALIZAÇÃO

Novamente os jovens

A década de 90 tinha todos os ingredientespara uma grande festa no parque de diversõesdo capitalismo americano: a guerra fria estavaenterrada de vez e a ex-poderosa inimiga, tam-bém agora uma ex-URSS, de chapéu na mão,pedia dinheiro aos capitalistas; os EUA goza-vam o prestígio do título de maior força militare econômica do planeta; os dois governosClinton com taxas de crescimento contínuasdavam a impressão de que as coisas deveriamcontinuar como estavam; afinal, a juventudeamericana e a dos “tigres asiáticos” não tinhamdo que reclamar. Porém, nos EUA, em vez defesta, assistimos a violentos protestos de jovensda classe média.

Os saudosistas da minha geração semprelembram os anos 60 como tempos de utopia ede participação, enquanto que as décadas de80 e 90 são vistas como sendo da “geraçãococa-cola”, “geração shopping” e outros im-propérios mais. Afinal – justificam – no lugardos hippies, dos militantes negros e dos guer-rilheiros românticos, subiram na passarela osegocentrados yuppies.

De fato, há vários elementos que parecemcorroborar a tese de que o mundo continuavadormindo, porém, com uma diferença: o sonhohavia acabado. O rock’n roll, diluído em deze-nas de gêneros e orquestrado pela industriacultural, parecia ter definitivamente perdido suaveia libertária. No entanto, de maneira surpre-endente, foi em Seattle (EUA), a nova capitaldo Rock dos anos 90, que a juventude iniciouum movimento que vem se alastrando pelomundo. O inimigo, quem diria, era o mesmoque possibilitava a redução dos preços das gui-tarras e aparelhos eletrônicos das bandas, aglobalização.

Em 1999, na cidade de Seattle (EUA), sereúnem o FMI, o Banco Mundial e a Organiza-ção Mundial de Comércio. Os protestos foramtais e tão violentos que a reunião foi suspensa.No ano seguinte foi em Washington, e os ma-nifestantes conseguiram impedir a chegada de

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ministros de Estado de vários países às reuni-ões na sede do FMI. No ano de 2001, agora emGênova, manifestantes de todo o mundo ali seencontraram para uma guerra aberta que gerouo seu primeiro mártir – Carlo Giuliane, assas-sinado pela polícia italiana em meio aos pro-testos.

Mea-culpa

Ainda no ano de 2001, tivemos, no Brasil,a primeira edição do Fórum Social Mundial,como um contraponto ao Fórum EconômicoMundial, que acontece anualmente na pacatavila alpina de Davos, na Suíça, onde estadis-tas, financistas e toda a sorte de poderosos domundo global se reúnem para avaliar e identi-ficar tendências do mundo capitalista. O suces-so do Fórum Social de Porto Alegre foi tãogrande que muitos palestrantes se esforçavampor participar fisicamente nos dois. Quem nãose deu ao trabalho de fazer a “ponte aérea”Davos-Porto Alegre, participou de telecon-ferências, que nesta primeira edição revelarama distância entre os diversos pontos de vista,tão grande quanto o fosso que separa os ricosdos pobres. Muitos participantes de Davos cri-ticaram o tom panfletário e radical das falas dePorto Alegre.

Neste ano de 2002, o medo de que aradicalização não ficasse apenas no discurso,fez o governo suíço, que percebeu a fortunaque iria gastar para garantir a segurança de seusconvidados, propor a reunião em Nova York,como forma de “homenagear” a cidade apósos atentados de 11 de setembro. Afinal, a BigApple se tornou a mais nova e paranóica forta-leza americana “anti-qualquer-coisa”.

Deu certo, já que os protestos foram manti-dos longe, precisamente a dez quarteirões dohotel Waldorf-Astoria, onde o Fórum teve lu-gar. O que o ano de 2002 reservou de novida-de, porém, não foi o “isolamento acústico”,conseguido pela polícia, e sim o fato de que avoz mais radical e contundente contra aglobalização não estava do lado de fora, masdentro. O protesto partia de quem era, até en-

tão, o aguerrido defensor e o exemplo maisacabado do capitalismo financeiro globalizado,George Soros, o maior especulador de todosos tempos. Quando alguém desse naipe e comessa história afirma que “há algo de podre noreino da Dinamarca”, devemos ficar atentos,pois mais grave do que o crescimento do ini-migo é a deserção nas próprias fileiras.

Para que ninguém pense que o que Soros dis-se no Fórum Econômico possa ser imputado auma bebedeira ou “ataque dos nervos”, bastalembrar que as mesmas palavras, e no mesmotom, estão em seu livro George Soros onGlobalization, lançado, após o Fórum, na Ingla-terra e nos EUA. No Fórum, como no livro, eleafirma (apud GRINBAUM, 2002) que o capitalfinanceiro é amoral e que a falta de controle so-bre os fluxos de capitais é o grande responsávelpela instabilidade nos países em desenvolvimen-to. E, como se não bastasse, afirma que o con-trole que os países ricos, em especial os EUA,exercem sobre os organismos internacionais,criados para ajudar o desenvolvimento dos paí-ses pobres, os transformou, na prática, em re-presentantes dos interesses dos ricos.

Enquanto isso, do lado de baixo doequador...

Como estamos vendo, a virada do milêniono exterior foi acompanhada de um clima defim-de-festa e de necessidade de uma revisãodos rumos tomados pelo planeta, e isso ocor-reu tanto entre os jovens, em passeatas de pro-testo, como entre intelectuais e novos adeptosda anti-globalização, como Soros. A tese co-mum é que a globalização foi competente emintegrar mercados e agilizar os negócios, masfoi incompetente para lidar com o problema dapobreza, ou seja, ao contrário do que a globa-lização prometeu, a distância entre ricos e po-bres aumentou.

Mas não é só lá fora que o clima de revisãocircula. Aqui no Brasil, o mercado editorial,aproveitando o filão de livros de ocasião – leia-se “ano eleitoral” – anuncia lançamentos depublicações que fazem o balanço do governo

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FHC (SANTA CRUZ, 2002). Apesar das dife-renças, tanto a publicação surgida a partir dediscussões na Confederação Nacional daIndustria (CNI), A Era FHC – um balanço, lan-çado pela Cultura Editora, como o texto aindasem título, organizado pelo deputado federaldo PT de São Paulo, João Paulo Cunha, con-cordam plenamente quanto à questão do custosocial muito elevado da estabilização monetá-ria: nos oito anos da era FHC os ricos ficarammais ricos, e os pobres, mais pobres. O fosso,que pode ser quantificado por estatísticas, é amedida da exclusão made in Brazil.

O “forward” que saiu pela culatra

Podemos, portanto, concluir que o tema daexclusão mudou de status: não é mais apresen-tado como “tara” de um certo tipo de sociólo-go ou de grupelho radical de esquerda. O temada exclusão foi incluído e até ficou in: freqüentaas boas rodas e, nas ruas, são os filhos do bem-estar social que desfraldam a bandeira pela in-clusão dos pobres. Cabem as perguntas: quemvirou a cabeça desses meninos? Por que elesnão repetem os anos 50, também uma época decrescimento do consumo nos EUA? E o queaconteceu aos socialites?

A resposta parece ser a de que “o feitiçovirou contra o feiticeiro”. Nos EUA, nos tem-pos da brilhantina, a rapaziada se empanturra-va de milk-shake e o único movimento que fa-ziam era o da pélvis ao som de Elvis. Naquelestempos, o mundo da informação, para esses jo-vens e para os adultos, era restrito à sua região.Hoje, a globalização econômica é também aglobalização da informação: a internet saiu pelaculatra. Para as elites, a transparência que ainternet possibilita é constrangedora, pois sãoflagrados o banquete e, ao seu redor, os olhosdos famintos. Para os jovens, a internet é o meioatravés do qual não somente se informam so-bre o mundo mas, e principalmente, vivenciampequenas guerrilhas, como por exemplo, o com-bate aos monopólios da indústria fonográfica.No mundo virtual, as leis e a idéia de proprie-dade, fundamentos do Ocidente, são relativi-

zadas. Portanto, além desses jovens e dos ve-lhos e novos críticos, deve haver algum empe-dernido financista resmungando por aí: “essanão é a globalização dos meus sonhos”.

II – EXCLUSÃO

O universo dos desconectados

Para um rápido vislumbre da exclusão nosdias atuais, devemos recordar alguns elemen-tos: na Primeira Revolução Industrial, em 1750,a energia a vapor movimentava as máquinas.Cem anos depois o vapor era substituído pelopetróleo e, 50 anos mais tarde, no inicio do séc.XX, a energia elétrica despontava como o novosímbolo da modernidade. A partir de meadosdo século XX, a Terceira Revolução Industrialfoi a dos eletrônicos, da informática e das tele-comunicações. Portanto, se queremos um ín-dice de exclusão/inclusão para os dias de hoje,podemos também utilizar como critério o aces-so à energia elétrica, às telecomunicações e àinformática.

Utilizando os critérios acima referidos, per-cebemos que o mundo do início do século XXIcontinua sendo o da conhecida e velha exclu-são. O destacado economista americano JeremyRifkin, em estudo para a Organização Interna-cional das Telecomunicações (apud MARINI,2002), aponta que 40% dos habitantes do pla-neta vivem sem energia elétrica e destes, 65%nunca falaram ao telefone.

Se o termo globalização designa um pro-cesso de interligação planetária que envolveintercâmbio econômico e cultural através deredes de comunicação, podemos, diante dosnúmeros acima, dizer que a prática da globaliza-ção contemporânea carrega em seu bojo umacontradição: o que em tese inclui, na práticaexclui. O que deveria aproximar, na verdadedistancia. Segundo este mesmo estudo deRifkin, só no centro de Nova York, emManhattan, há mais linhas telefônicas do queem toda a África. Os 24 países mais ricos domundo e que possuem apenas 15% da popula-ção mundial, concentram 71% das linhas te-

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lefônicas e 88% dos usuários da internet. Só osEUA são responsáveis por 41% do acesso à gran-de rede, e a América Latina, apenas 4%. No casobrasileiro, dos nossos mais de cinco mil muni-cípios, apenas trezentos possuem estrutura mí-nima para a instalação do serviço de acesso àinternet. A conseqüência é que o Brasil possuiapenas 8% de sua população com acesso à Rede,contando aqueles que navegam uma ou duasvezes ao mês. Isso nos coloca em 43º lugar emuma lista de 72 países elaborada pela ONU edivulgada no final de 2001 (MARINI, 2002).

Um dos elementos que caracteriza o mundocontemporâneo é a velocidade dos processos,inclusive o de concentração de riqueza. Se asexclusões do século XIX e XX aumentavam ofosso entre ricos e pobres, o apartheid digitalsimplesmente os coloca em universos distintos.Portanto, a exclusão não é apenas um tema pre-sente, ele é um tema urgente, em especial noBrasil que, como veremos, foi colocado diantedo desafio digital do século XXI sem ter aindaresolvido as exclusões típicas do século XIX.

O papel dos EUA na globalizaçãoexcludente

Para não citar “medalhões” da esquerda,passo a palavra ao americano, professor daUniversidade de Colúmbia, em Nova York,Joseph Stiglitz, Nobel de economia no ano de2001, e ex-assessor econômico do governo BillClinton e economista-chefe do Banco Mundi-al. Em recente entrevista, este homem do capi-talismo fez duras críticas aos EUA, ao FMI eao próprio Banco Mundial, afirmando que setodas as nações agissem como os EUA, ado-tando o mesmo nível de protecionismo, o co-mércio mundial entraria em colapso (MENAI,2002). E foi mais além, afirmando que o fatode os EUA serem o único país com poder deveto no FMI, acaba por fazer desse órgão umrepresentante de seus interesses. Stiglitz afir-ma que, mesmo quando quer ajudar, o FMI fazaos países pobres, ou em desenvolvimento, re-comendações que carecem, em muitos casos,de um mínimo de bom senso.

Para Damiane (2002), os recentes embatesdo governo brasileiro com os EUA, em rela-ção ao comércio exterior, são mais do que ade-quados para ilustrar as teses de Stiglitz citadasacima. Por exemplo, depois de infrutíferas ten-tativas de diálogo, o Itamaraty teve que entrarcom uma queixa formal na Organização Mun-dial do Comércio contra a sobretaxa de 30%ao aço brasileiro importado pelos americanos.Outro exemplo de protecionismo é a nova leiagrícola americana, a chamada farm bill, quedisponibiliza US$ 38 bilhões anuais em subsí-dios aos agricultores americanos nos próximosdez anos. Os norte-americanos não estão sósnesse protecionismo; os agricultores europeusgozam de privilégios de mesma natureza.

Portanto, depois que os países ricos conde-naram os pobres a se especializarem apenas emprodutos agrícolas e primários em geral, agoraos impede de vender justamente esses produtos,usando para isso toda sorte de protecionismos.O motivo? Ocorre, simplesmente, que estes pro-dutos, após intensos esforços produtivos dospaíses em desenvolvimento, se tornaram com-petitivos no mercado externo. Todas essas prá-ticas desmascaram a lógica unilateral dos paí-ses ricos, em especial os EUA, que pregam olivre-comércio, “desde que só para mim”. Estaprática dos países ricos concentra a riqueza lá eaumenta a exclusão aqui, pois se tivéssemosacesso ao mercado externo, isso geraria interna-mente, no mínimo, renda e emprego.

Portanto, é interessante notarmos que, emseus desenvolvimentos históricos, exclusão eglobalização poderiam ter se transformado emtermos opostos e em conflito. Na medida emque a globalização implicasse em abertura detodos os mercados e cooperação e troca entreas nações, a expansão da globalização deter-minaria a diminuição da exclusão. Mas o quevemos é a negação dessa globalização por par-te dos países ricos. O que vemos é uma atitudeinjusta, uma imposição arbitrária de regras queatendem apenas os interesses deles. Ao ladodisso, temos o indisfarçável cinismo hipócrita,quando fazem o discurso do livre-comércio ese apresentam como paladinos da abertura dosmercados, invertendo assim a realidade.

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Por tudo isso, é prudente ficar atento aosperigos da implantação da Área de Livre Co-mércio das Américas (ALCA), proposta pelosEUA. A história tem demonstrado que o que ébom para os EUA, na maioria das vezes, não ébom para o Brasil.

O Brasil e seus excluídos

Para Alves Filho (2002), a Pesquisa Nacio-nal de Saneamento Básico (PNSB), divulgadapelo IBGE, indica que 47,8% dos municípiosbrasileiros não possuem rede de esgoto sanitá-rio e, nas grandes cidades que possuem rede,68,5% dos resíduos gerados não têm destinaçãoadequada pois são lançados nos lixões e alaga-dos. Nesses lixões, 24.340 pessoas se mistu-ram aos resíduos, à procura de algo de valor.Desses, 22% tem menos de 14 anos e 7.264moram nos próprios lixões.

A falta de fornecimento de água tratada esaneamento básico, são indicativos de misériae, portanto, de exclusão. Na Bahia, quarta eco-nomia do país, 56,3% de sua população nãotem serviço regular de abastecimento de água.Porém, o que mais choca é a metáfora doslixões: o rejeito, o podre, o que não serve parauma parcela da população, se mistura com se-res humanos, 25% deles crianças, numa lidadiária que não humaniza o lixo, ao contrário,transforma a olho nu, homens em rejeitos.

Da desigualdade à dessemelhança

Cristovam Buarque (1999) tem insistido emdenunciar que o processo de exclusão no Bra-sil se caracteriza como apartação. O que era noinício apenas desigualdade foi se transforman-do em diferença e hoje ameaça se tornardessemelhança. Apesar da distância que sem-pre existiu entre ricos e pobres no Brasil, atémeados do século XX, esta distância materialera atenuada ideologicamente pela instituiçãodo compadrio, tanto na zona rural como urba-na, que criava entre os compadres, entre o po-bre e o rico, um vínculo familiar e estabeleciauma rede de ajuda mútua.

O aumento da distância econômica rompea teia social. Nas grandes cidades a desigual-dade evoluiu para a diferença: é como se antesmorássemos no mesmo espaço, apenas uns comcasas e condições de vida melhores do que ou-tros e, agora, passássemos a habitar mundosdiferentes – zona sul X favela, que são condo-mínios fechados um para o outro, onde as leissão diferentes e outros os governantes. A dis-tância ficou tão grande que o burguês, de suacobertura, não reconhece aquilo que se movenos lixões, não o reconhece como um ser damesma espécie, como semelhante. Por issomesmo, pensa o burguês: é feio, fede e não égente. Por que não a pena de morte? Na mes-ma lógica, o pivete descalço não reconhece nossemáforos que a “madame” no carro importa-do é uma mãe; por isso, se ela abrir a janela eresistir ao assalto, ele não vacilará em cortá-lacom um pedaço de vidro. Este é o quadro: po-bres que temem a fome e ricos que temem ospobres. O preço que eu e o leitor pagamos portermos permitido que o próximo fosse trans-formado em dessemelhante é visível: os vidrosdos carros fechados, nossos condomínios fe-chados, as portas trancadas e, o que é mais gra-ve, um coração que vai se endurecendo.

O dever de casa

Ao contrário das nações européias que, aose constituírem em Estados, passaram por umprocesso amplo de unificação, no Brasil, des-de o início da colonização, só fazemos aumen-tar as separações: brancos versus negros e ín-dios; portugueses versus brasileiros; ricosversus pobres; sulistas versus nordestinos; in-cluídos versus excluídos. Dessa forma, segun-do Buarque (1999, p.25-27), formamos umEstado, mas não uma nação.

Enquanto isso, os nossos governantes desen-volveram uma tradição de planos mirabolantesque, quando executados, fracassam irremedia-velmente, e o governo atual prefere não ter ne-nhum. Tanto no passado como no presente, se-gundo Buarque (1999, p.31-39), o problema estános pressupostos, na própria lógica que rege a

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visão economicista e, mais especificamente, nacrença dos economistas, predominante até osanos 70, de que o crescimento era naturalmentedistributivo. Assim, fizemos o “bolo” crescer,sem perceber que o modelo do “bolo” é estrutu-ralmente indivisível. Se queremos que todoscomam, devemos mudar a receita.

Os nossos economistas-cozinheiros fizeramos seus doutorados nos países do PrimeiroMundo, onde a teoria econômica se concentra-va no problema de como aumentar a riqueza,uma vez que o problema da pobreza já estavaequacionado. Assim, denuncia Buarque, pro-duzimos uma geração de especialistas incom-petentes para abordar o problema da pobrezasocial do Brasil com suas desigualdades regio-nais. O fosso entre ricos e pobres é a maior pro-va desta incompetência técnica e ética.

O que fazer para resgatar a enorme dívidasocial criada pelos nossos governantes? Conti-nuar seguindo o receituário neo-liberal só per-petuará a lógica do absurdo denunciada porBuarque: um país exportador de alimentos ecom um povo faminto; exportador de calçadose o povo descalço; exportador de aviões e, nochão onde o povo mora, ausência de abasteci-mento de água ou coleta de esgoto. Se a tradi-ção de nossos economistas e políticos não nosinspira a driblar os obstáculos que temos a fren-te, o que nos inspirará?

III - FUTEBOL

Porque futebol

“A taça do mundo é nossa”. Este verso deabertura da marchinha que se tornou o hino daseleção de 1958 e hoje bastante lembrado naconquista da Copa de 2002, poderia ser aplica-do, com ironia, a uma série de campos da nos-sa realidade brasileira, pois somos campeõesem muitas coisas que nos causam vergonha.Porém, não é este o caminho que seguirei.Mesmo porque já falei de nossas mazelas naslinhas anteriores; agora, pretendo analisar onosso potencial, enquanto nação, para superar-mos as armadilhas da globalização, e descre-

ver os mecanismos de que o nosso sofrido povose utiliza para driblar a exclusão.

O fio condutor que nos permitirá adentrar ouniverso popular será o futebol. Pelo que meconsta, Roberto DaMatta (1986) foi o primei-ro acadêmico a ridicularizar o esnobismo dopensamento social brasileiro que até então des-prezava temas como o futebol, e isso aconteciaem um contexto de patrulhamento ideológicode esquerda que insistia em ver o futebol como“o ópio do povo”. DaMatta não só demonstroua importância política e social do futebol paranós, brasileiros, como também provou que ofutebol não é alienação e sim espaço de exercí-cio da cidadania e da utopia.

O instrumento de análise de DaMatta é anoção de drama social sobre o qual afirma: “anoção de drama social, que se inspira na obrade Max Gluckman (1958) e Victor Turner(1957, 1974), é o conceito fundamental quepermite articular o observado no dia-a-dia (jo-gos de futebol e a infra-estrutura do esporte)com valores sociais mais básicos.” (1986,p.104). Ou seja, o pressuposto básico é que asociedade, como um todo holográfico, se re-produz em sua totalidade em cada uma das suaspartes institucionalizadas; assim, elementosaparentemente sem muita relevância, como ofutebol, são vias de acesso para o entendimen-to da estrutura social maior. DaMatta explicita:“o futebol praticado, vivido, discutido e teoriza-do no Brasil seria um modo específico – entreoutros – pelo qual a nossa sociedade fala, apre-senta-se, revela-se, exibe-se, deixando-se des-cobrir.” (1986, p.105).

Para seguirmos esta perspectiva, em primei-ro lugar darei algumas informações gerais so-bre o futebol e depois adentrarei no fenômenoparticular que é o futebol brasileiro para tentarver o que ele hoje pode falar sobre o Brasil esobre a exclusão.

Do passatempo ao esporte

Coisa antiga e universal, essa, a de pessoasem bandos correrem atrás de alguma coisa porpuro divertimento. Corria-se (e continua até

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hoje) atrás de jovens especialmente fantasia-dos na Ásia; atrás de touros na Espanha, de lei-tões em outras partes da Europa. Nada se mos-trou melhor do que a bola. Ela não se cansa e,enquanto os homens não se cansarem, ela podeser chutada com violência, e quanto mais vio-lência no chute melhor. Por isso, desde a IdadeMédia, a bola rolava nas terças-feiras de Car-naval pelas ruas estreitas das cidades européias.

Ao se criarem regras para as práticas e seorganizarem torneios, o que era passatempo setransforma em esporte. O século XIX na In-glaterra, a Era Vitoriana, foi a culminância deum longo processo de regulamentações queestabeleceram o rúgbi, o boxe, o tênis, as cor-ridas de cavalos e o futebol, entre outros, comosports.

Esse processo de desportivização que se deuao longo do século XVIII e XIX, segundoNorbert Elias e Dunning (apud REIS, 2000,p.133), foi paralelo à transição de um regimemonárquico absoluto para um sistema parlamen-tarista na Inglaterra e está a ele intimamente re-lacionado. Se o século XVII, segundo estes au-tores, foi marcado pelo uso da violência na re-solução de conflitos de interesses entre os gran-des proprietários, os séculos XVIII e XIX serãoos séculos da adaptação das elites a um novoprocedimento: o debate, a disputa parlamentar.Portanto, o processo de desportivização pode servisto como um sintoma e até mesmo como ummecanismo pedagógico do processo de supera-ção da violência na resolução de conflitos.

A compreensão desse processo acima refe-rido é simples. Os passatempos praticados pe-las elites ainda estavam dentro de um quadrode referência feudal, ou seja: em primeiro lu-gar, não se reconhecia nenhum poder acima dopoder local, logo, esses passatempos eram re-gulamentados por tradições locais, i.e., as re-gras não eram universais e conseqüentementenão eram nem claras, nem rígidas; em segundolugar, os aristocratas eram guerreiros. Jogar eralutar, daí a violência exacerbada. A unificaçãoe a universalização das regras nos esportescorrespondem ao processo de unificação emgeral que se deu com a modernização da mo-narquia inglesa. Além disso, o comportamento

menos violento, a aceitação da derrota, enfim,o jogo pelo jogo, acompanham a instalação deuma mentalidade parlamentar. Assim, vemosque desde suas raízes, o esporte se vincula àpolítica e que a expressão popular “o esporte éum instrumento da paz” tem bases históricas.

A profissionalização

Segundo Reis (2000, p.135), o primeiro clu-be inglês de futebol surgiu em 1857 e por voltade 1863 fundou-se a “Football Association”, aqual codificou e normatizou o futebol, sendoaté hoje a instituição responsável pelo futebolna Inglaterra.

Naquele país, o futebol foi-se tornando umespetáculo nos finais do séc. XIX: nessa oca-sião já eram cobrados ingressos para a assis-tência. Na medida em que o negócio evoluía, anecessidade de aprimoramento do próprio es-petáculo e, conseqüentemente, dos jogadores,passou a exigir mais tempo de treinamento.Essa nova situação implicava um investimen-to de tempo que os elementos das camadaspobres subtraíam do tempo de trabalho, daí aprofissionalização que se deu a partir de 1885para que esses elementos pobres se dedicas-sem integralmente. Resumindo, a profissionali-zação se tornou uma necessidade inerente àespetacularização do sport. Porém, não sem aresistência das elites que, diga-se de passagem,tem a mesma natureza da sua resistência à re-muneração dos parlamentares. Em ambos oscasos, a não remuneração afastaria os que nãopossuíssem rendas do exercício parlamentar oufutebolístico. Como a profissionalização tor-nou-se irreversível, os times amadores das eli-tes se afastaram das competições por medo deperder dos times profissionais de pobres.

A difusão do futebol pelo mundo

O futebol começou a ser difundido no finaldo século XIX e hoje é o esporte mais pratica-do e assistido no mundo, representando 3% daeconomia mundial (REIS, 2000, p.138). Esti-

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mou-se que o público que assistiu à conquistado pentacampeonato foi de mais de 1 bilhão depessoas. Segundo Reis (2000, p.134), este su-cesso é explicado em parte porque o futebolpermite a seus espectadores a vivência das maisvariadas emoções, principalmente pelo fato deo êxtase do gol ser antecedido por um grandeperíodo de tempo. Ao longo do jogo sentimosmedo ou confiança, esperança ou desespero,decepção ou júbilo... No empate, as emoçõessão mais complexas, pois podem ser o mistode todas. Se no basquete, como em outros es-portes, a descarga emocional é mais freqüente,em razão da maior quantidade de pontos queocorrem durante a partida, no futebol a excita-ção e a tensão são crescentes. E o que dizerquando a partida termina empatada e vai paraa prorrogação? A emoção é tão forte que o tér-mino da prorrogação pela realização de um gol,por qualquer uma das equipes, foi batizadapopularmente de “morte súbita”. E se não acon-tece nenhum gol na prorrogação e vamos paraos pênaltis? O leitor se lembra da final da copade 94, aquela em que a decisão foi nos pênaltis?As emoções nessas ocasiões podem ser tãograndes que se tornam desagradáveis. Não ésem razão que o torcedor fanático muitas ve-zes se autodenomina de “sofredor”.

O futebol globalizado

Outra explicação para a difusão do futebol,é que este foi facilmente incorporado pelaglobalização econômica, tornando-se um ne-gócio milionário, envolvendo jogadores, equi-pes técnicas, material esportivo, merchandising,transmissão via TV e outros. Hoje, EUA, Chi-na, Coréia e Japão estão aí para provar que omundo é uma bola: o técnico da Coréia é ho-landês, e a torcida coreana empunha cartazesindicando-o para presidente do país; o doSenegal é francês e o técnico da China, o tche-co Milosevitch, já colocou na Copa outros pa-íses. Os técnicos se tornaram trabalhadorestransnacionais, sem pátria, que se alojam ondeas condições forem mais favoráveis. Os joga-dores seguiram a mesma lógica e são anterio-

res aos técnicos na globalização, sendo que namaioria das seleções nacionais o que se vê éuma “legião estrangeira”, ou seja, tem seleçãoem que a maioria dos titulares joga fora do país.Tem até os naturalizados, como o mulato decabelo rasta Alex, nascido no estado do Paraná,Brasil, mas que agora é japonês e um dos me-lhores da seleção do Sol Nascente.

Neste campo o Brasil tem a ensinar: temosquase 5 mil jogadores atuando no exterior, issorepresenta quatro vezes o número de diploma-tas a serviço fora do Brasil (BELLOS, 2002,p.13). Pelé ensinou os EUA a jogar bola; Zico,o Japão. Antes deles, Otto Glória foi para Por-tugal e se tornou técnico da seleção daquelepaís. Detalhe: na Copa do Mundo da Inglater-ra, em 1966, a seleção brasileira foi eliminadapor Portugal por 3x1.

O futebol no Brasil

O futebol chegou ao Brasil no ano de 1894pelas mãos de Charles Muller. Este jovem filhode ingleses, ao voltar de seus estudos na Ingla-terra para São Paulo, trouxe as primeiras bolasde futebol e a visão elitista deste esporte. As-sim, somente em 1908, com a fundação de vári-os clubes, é que o povo teve acesso ao futebol,mesmo assim de modo restrito, pois os analfa-betos tinham dificuldade em assinar as súmulase os negros foram impedidos de integrar nossaseleção até 1921 (REIS, 2000, p.139).

O primeiro campeonato paulista se deu em1902 e o primeiro campeonato brasileiro (Rio-São Paulo) foi em 1905, com a vitória dospaulistas. O primeiro Sul-Americano foi em1919, no Brasil, e a partir daí começamos a terdestaque internacional. Nos anos 20, já expor-távamos jogadores, principalmente para a Itá-lia, porém a profissionalização generalizada sóse deu na década de 30, juntamente com o pro-cesso de transformação do futebol em espetá-culo de massa, graças em grande parte ao rá-dio. A massificação foi refletida nas constru-ções dos estádios que se tornaram cada vezmaiores até culminar no Maracanã, inaugura-do em 1950 para a Copa que aqui se realizou

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neste mesmo ano, e na qual fomos vice-cam-peões, após dramática derrota por 2x1 para oUruguai diante de 173.830 emudecidos torce-dores (REIS, 2000). Finalmente, com a con-quista da Copa de 1958 e 1962, simultanea-mente com os fenômenos Pelé, Garrincha e aTV, o futebol torna-se definitivamente um es-porte de massa no Brasil.

Futebol e ascensão social

Com a profissionalização e a massificação,abre-se uma alternativa de carreira profissio-nal e espaço para a expressão pessoal para umaparcela enorme de jovens excluídos do siste-ma escolar e do mercado de trabalho brasilei-ro, pois, no futebol, não tem “filho-de-papai”,não tem “pistolão” e a cor ou classe social nãosão impedimentos, só fica quem é bom.1

Esse mercado de trabalho é grande e não párade crescer. Aqui são treze mil clubes, que pos-suem 580.000 atletas profissionais e amadores(VEJA Especial Penta, 2002). Estes são apenasa ponta de um iceberg, cuja parte mediana é for-mada por trinta milhões de praticantes informaise cuja base são todos os meninos brasileiros que,quando nascem, logo recebem uma bola de pre-sente e aprendem com seus pais que ela deveser chutada e não arremessada com as mãos.

Diferente de outros esportes que não podemser praticados sem os equipamentos mínimos,como o basquete, o handball, o tênis e outros,o futebol é um esporte que não exclui os po-bres, e pobres, temos aos montes. Com tantagente jogando é uma questão matemática quePelé seja brasileiro, assim como Michael Jordanseja norte-americano.

Um país de chuteiras

É lugar comum afirmar que o Brasil é o paísdo futebol e comumente são apresentados nú-meros que justificam essa afirmação. No en-

tanto, esses números não são causas, são ape-nas reflexos de uma realidade mais profunda:o Brasil se reconhece e se expressa pelo fute-bol, de tal maneira que “a seleção é a pátria dechuteiras”. Isso justifica os bancos mudarem ohorário de funcionamento nos dias de jogo, ogoverno liberar os funcionários, as escolas dis-pensarem os alunos. Como se deu essa eleiçãodo esporte bretão como representação do país?Alguns argumentam que todos os países pre-zam aquilo em que se mostram os melhores,porém antes de ganharmos a primeira Copa,em 1958, nós já éramos o país do futebol. Por-tanto as razões são mais profundas: o futebol,e conseqüentemente a seleção, expressa a iden-tidade do brasileiro, é uma metáfora do Brasil,a começar pelo mais visível e superficial, a carados jogadores: a composição racial dos atuais23 jogadores da seleção é de 43% de brancos,35% de pardos e 22% de negros, uma propor-ção próxima da detectada pelo IBGE no Bra-sil. Na seleção temos um pouco mais de par-dos e negros, pois ela reflete mais a situaçãosócio-econômica brasileira: 77% dos jogado-res são de famílias pobres e 19% de famíliasremediadas. Kaká é o único de classe médiaalta. Até a presença estrangeira, importante naformação de nosso povo, pode ser observadanos sobrenomes de alguns membros da sele-ção (Anderson Polga, Belletti e Rogério Ceni),a começar pelo técnico Scolari.

A especificidade do futebolbrasileiro

Os elementos até aqui apresentados, já seri-am suficientes para demonstrar as raízes da ín-tima identificação do brasileiro com o futebol,porém DaMatta (1986) aprofunda a questão.Segundo o autor (1986, p.105-106), nos EUAe na Inglaterra o futebol é entendido como es-porte, ou seja, uma atividade física que obede-ce a regras e onde a ênfase está na competiçãovia técnica e força física. Já no Brasil, a pala-vra futebol é sempre acompanhada da expres-são “jogo”, que entre nós se associa também àsorte, (“jogo de azar”) e destino (“o jogo da

1 Basta lembrar o Edinho, que treinou anos a fio para sergoleiro do Santos, jogou algumas partidas e foi dispen-sado. Não adiantou seu pai ser um dos “donos” do San-tos. Não adiantou ser, nada mais nada menos, que filholegítimo de Pelé!

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vida”). No Brasil, quando dizemos “jogo-de-futebol” a ênfase é na expressão “jogo”, ou seja,sorte e destino. Daí, segundo DaMatta, a dife-rença básica entre o futebol deles (soccer), hojechamado de futebol força, e o nosso, cheio de“mandingas” e “catimbas”.

A mandinga entre nós é “natural”, pois cre-mos que, tanto no futebol como na vida, as for-ças sobrenaturais estão presentes e atuantes,logo, nada mais recomendável do que acenderuma vela! No Rio de Janeiro e em outros esta-dos brasileiros é comum se encontrarem “des-pachos” para garantir a vitória do time. Se oleitor considera essa relação com forças sobre-naturais (santo ou santos) como uma caracte-rística apenas das camadas mais pobres, é bomlembrar que o nosso técnico tricampeãoZagallo, que pertence às elites e que tem aque-la aparência racionalista de um técnicodisciplinador, confessou em entrevista na TVno dia de Santo Antônio, 13 de junho, que emtodas as decisões da seleção brasileira fez seuscomandados comerem os pãezinhos milagro-sos do Santo. O crescimento e as manifesta-ções dos chamados “Atletas de Cristo” sãooutros indícios dessa associação entre futebole fé. Aliás, o brasileiro, quando quer dizer quevai jogar na loteria esportiva, diz: “vou fazeruma fezinha”.

A catimba é a manha, a astúcia, é o drible,é o “faz que vai e não vai” que revela a arte dojogador brasileiro. Arte também no sentido emque nossas mães usavam a palavra – “essemenino é cheio de artes” – quando fazíamostravessuras na infância. A arte de “cavar” umpênalti, como fez Luizão contra os turcos; aarte de simular uma agressão, como fez Rivaldoao receber, fora de lance, uma bolada nas per-nas e colocar a mão no rosto, para “cavar” umafalta e cartão amarelo; a arte de segurar o jogopara manter um resultado favorável, como fi-zemos contra a Inglaterra após a expulsão deRonaldinho Gaúcho. Enfim, arte de PedroMalasartes, paradigma do malandro brasileiro,“herói sem nenhum caráter” de uma difundidanarrativa popular (DaMATTA, 1997, cap.5),cujas manhas e astúcias driblam a própria no-ção do ético.

O futebol malandro

Para o brasileiro, futebol não é atletismo, éarte. A arte de driblar os obstáculos, arte de PedroMalasartes. Isso está na essência de nossa cul-tura popular, que por sua vez emerge de umarelação simbólica com as bases sócio-econômi-cas da formação social brasileira. O povo apren-deu que é preciso ginga, é preciso malemolência,“um faz que vai e não vai”, para resistir às im-posições que tentam furtar a liberdade e a iden-tidade dos negros e pobres no Brasil desde ostempos coloniais. Foi assim com o sincretismoreligioso, foi assim com todas as expressõesculturais de identidade: achava-se um “jeitinho”.O drible é a sabedoria dos mais fracos, que paranão se chocarem com os donos do poder, desvi-am, evitando o confronto, sem, no entanto, dei-xar de continuar seu caminho.

Na vida, desde a Colônia, e nos campos defutebol, desde o início do século XX, os ne-gros e pobres evitavam o choque, a “bola divi-dida” com os brancos, pois afinal o juiz, repre-sentante da lei, era e é branco. No lugar de li-derar uma revolução contra a lei ou regra insti-tuída, mesmo quando esta é injusta ou mal uti-lizada, o malandro prefere driblá-la. Foi assimque negros e pobres entraram no futebol e alise tornaram os melhores: não derrubaram omuro da exclusão, driblaram.

Essa arte de driblar obstáculos, de realizarcom o menor esforço possível – já que “ma-landro não gosta de trabalhar” – é o que expli-ca a atuação de um Gerson, da seleção de ouroda copa de 70, que fumava uma carteira de ci-garro ou mais por dia: para não ter que correr,se tornou um dos maiores lançadores que oBrasil já conheceu. Um Garrincha, que bebia emuito. O doutor Sócrates, da inesquecível se-leção de 82, fumava, gostava da noite e em nadalembrava um atleta, mas sua classe e elegân-cia, o seu toque de calcanhar imprevisível, tor-navam-no gênio.

Jogar bonito

Pelé é reconhecido internacionalmentecomo o melhor jogador de futebol de todos os

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tempos e ostenta o título de atleta do séculoXX, porém, se, no Brasil, amamos Pelé, idola-tramos Garrincha. O motivo? O mesmo peloqual reconhecemos a capacidade de vencedorde Ronaldo, “o fenômeno”, e até cortamos ocabelo no “estilo Ronaldinho”, porém, quere-mos ver entrar em campo o Denílson.

Pelé simboliza a conquista – a taça JulesRimet passa ser definitivamente do Brasil, aconquista liderada por um negro, superandoassim nosso complexo de inferioridade devidonossa formação étnica. Já Garrincha no passa-do e Denílson no presente, encarnam a almado brasileiro, que se expressa no drible mole-que, no jogo pelo jogo, na ginga que descon-certa os europeus de “cintura dura”. Garrincha,ao ganhar praticamente sozinho a Copa de 62,provou que era possível rimar alegria com efi-ciência, abrindo a perspectiva a nós, brasilei-ros, de que podemos ser tanto ou mais do queeles – Primeiro Mundo – sem deixarmos de sero que somos. A vitória apenas autorizou o queé mais importante para o brasileiro, a alegria, ojogar bonito. Nisto somos sábios, pois reconhe-cemos que a vitória ou a derrota são apenaspólos de um mesmo processo, o jogo, este emsi é o mais importante. Portanto, a questão nãoé ganharmos apesar do que somos, mas ser-mos o que somos e termos orgulho disso, mes-mo se o destino nos trouxer a derrota.2

Por isso, a alegria que contagiou o país de-pois do apito final do jogo entre Brasil e Ale-manha na final desta Copa de 2002, não foisimplesmente o fato de termos conquistado o“Penta”, e sim pelo fato de que ganhamos eganhamos bonito, com aquele gol com a carado Brasil, aquela “deixa” de Rivaldo – umdrible sem bola, para Ronaldo completar como chute a gol.

Futebol e política

DaMatta (1986, p.112) já indicava: “(...) ora,num país onde a massa popular jamais tem voze quando fala é através dos seus líderes, dentrodas hierarquizações do poder, a experiênciafutebolística parece permitir uma real vivênciade ‘horizontalização do poder’ por meio dareificação esportiva.” Da década de 80, perío-do em que foi publicado o texto de DaMatta,para os dias de hoje, mudamos de um regimemilitar para uma democracia representativa. Noentanto, o seu texto continua atual: lamenta-velmente o povo continua sendo excluído dodebate político, mas... ainda bem que temos ofutebol.

No Brasil, a participação no universo dofutebol dá a sensação de cidadania e pertinênciaà nação. E como participamos! Somos um paísde 170 milhões de técnicos de futebol. O bra-sileiro acordou de madrugada, chegou tarde aotrabalho, enfim, “o país calçou as chuteiras”para torcer pela seleção de futebol e discutir,com ares de ciência acadêmica, se o Felipãoestaria correto em romper com o tradicionalesquema 4-4-2 3 para jogar com o 3-5-2. Dis-cutimos no ambiente de trabalho, nas mesas debares, votamos via internet e até nos manifes-tamos com xingamentos, como aconteceu noRio de Janeiro, em que uma multidão enfure-cida xingou o técnico Felipão de burro.

Felipão não teve sossego nem quando ga-nhamos da China por 4x0. E quando ele recla-mou que a impressa no Brasil não estava valo-rizando a vitória sobre a acanhada China, ocomentarista esportivo Sérgio Noronha, lem-brou ao vivo na televisão4 que Felipão tinhaque ir-se acostumando, pois “na Copa, o técni-co é mais importante que o Presidente da Re-pública e se o presidente a gente critica, imagi-ne o técnico.” A ponte entre futebol e políticaestava explicitada.

No dia 26.06.02, depois da vitória sobre aTurquia pelas Semifinais, o comentarista

2 Um exemplo: entre os vencedores da Copa de 1994 ea seleção derrotada nas quartas-de-final de 1982, os tor-cedores preferem esta. Em 94 vencemos, nos pênaltis.Em 82 perdemos, mas jogamos bonito. Da mesma for-ma, o gol considerado o mais bonito da Copa de 1970foi aquele que Pelé não fez. O lance foi no jogo contrao Uruguai, em que Pelé, sem tocar na bola, só com umaginga de corpo, tirou do lance o melhor goleiro da épo-ca, Mazurkiewicz. Não foi gol, mas quem viu nuncaesqueceu.

3 Quatro homens na defesa, quatro no meio-de-campo edois no ataque.4 No dia 08 de junho de 2002, no programa esportivo“Bate-bola” da TV Globo.

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Gregório Benfica

Galvão Bueno, falando desde os estúdios daTV no Japão, disse que o técnico Felipão – apósa magnífica vitória “de virada” sobre a Ingla-terra e ao ouvir os elogios sobre o escrete ca-narinho – comentou que as pessoas não devi-am esquecer que não é só no futebol que pode-mos ter garra e ser brilhantes. Com isso o téc-nico estava fazendo uma clara alusão à situa-ção política e econômica do país. Após o jogoda conquista do Penta, o presidente da Repú-blica, ao se dirigir aos jardins do Palácio doPlanalto para cumprimentar os torcedores, de-monstrou, diante das câmaras de TV, que o fi-lósofo político da moda era o Felipão, ao repe-ti-lo em tom de discurso: “o que a seleção mos-trou para o mundo é que se houver organiza-ção e garra o Brasil vence e é assim que vamosfazer com a economia.” FHC disse o que todosnós no íntimo pensamos: o Brasil ideal é umagrande seleção e, neste país imaginário, o pre-sidente não seria um FHC e sim um Felipão.

Afinal, a seleção antes da Copa lembravaem muito o Brasil da economia: nunca tínha-mos perdido tanto nos dois anos em que ante-cedem uma Copa e ficamos ameaçados de nãoconseguir a classificação para a mesma. Tro-cava-se de técnico e as promessas não se cum-priam. Até os jogadores não rendiam: todomundo se perguntava quando é que Rivaldo iriajogar na seleção o que ele joga no Barcelona.Ronaldo era um fenômeno, porém, de ausên-cia de forma física. Começou a copa e os co-mentaristas esportivos diziam que a defesa eraum festival de horrores. No entanto, os joga-dores e o técnico fizeram o que queremos queos nossos políticos e o presidente façam: a de-fesa foi se entrosando e na partida final jogouum bolão. Ironia do destino, o gol mais bonitofoi de um jogador da defesa, Edmilson, umameia-bicicleta contra a Costa Rica. Rivaldo, deperna-de-pau, passou a ser considerado depois,pela impressa brasileira, como o melhor daCopa. Ronaldo de aleijado virou artilheiro. EFelipão, que havia prometido nos levar até asemi-final, não somente cumpriu a promessacomo ainda nos deu muito mais, o Penta. Deteimoso e burro virou o paizão da grande famí-lia brasileira, a família Scolari. Ora, se na Copa

a seleção é o Brasil, nós brasileiros, no dia-a-dia, sonhamos com um “segundo tempo histó-rico” em que o Brasil seja a seleção.

Driblando a exclusão no campo daglobalização

Creio que até aqui ficou claro para o leitorque o futebol é um espaço aberto para a inclu-são de muitos brasileiros pobres, mas não so-mente isso, é também um espaço aberto para atoda a nação brasileira, onde ela pode se verrefletida e pensar sobre si mesma. Portanto,longe de ser alienação, é reflexão, inclusão,participação cidadã e oficina de utopias. Umexemplo recentíssimo: terminada a Copa, ossócios do flamengo se mobilizam para, atravésde seus conselheiros, derrubarem o corruptoPresidente do clube. É o povo dizendo basta àcorrupção dos cartolas. É o povo mandando umrecado para os políticos. Portanto, creio queficou clara a relação que faço entre o futebolno Brasil e um projeto político mais inclusivo.Devo agora explicitar as relações entre futebole a globalização excludente.

O Brasil não é um, são muitos. Aqui, con-vivemos com o que irei chamar didaticamentede o moderno e o medieval. O Brasil medievalé aquele da zona rural dos tempos da Colônia,onde a relação entre proprietário da terra e tra-balhador livre, ainda era baseada, como na Ida-de Média na Europa, na tradição oral e não nalei escrita. Esta relação, senhor-camponês, éidentificada pelos historiadores como sendouma relação pessoal e de dependência (OLI-VEIRA, 1985, cap. II). Ou seja, entre eles nãoimperava um contrato trabalhista, estabelecen-do direitos e deveres e sim uma tradição se-gundo a qual o senhor devia dar proteção aocamponês – deixando-o trabalhar em suas ter-ras – e o camponês deveria ser fiel – estando àdisposição, inclusive, para pegar em armas.Este tipo de relação no campo pouco se modi-ficou ao longo do tempo. Em muitas regiõesdo Brasil o patriarcalismo, o senhorio, ocoronelismo ainda estão presentes e atuantes.Porém, ao lado deste, nas regiões mais desen-

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A taça do mundo é nossa! Globalização, exclusão e futebol no Brasil

volvidas e urbanizadas, se instala a moderni-dade: as relações impessoais e contratuais docapitalismo. O que torna a nossa situação com-plexa é o fato de que um tipo de relação socialnão substitui o outro e nem estão separados notempo e espaço, pelo contrário, coexistem e semesclam.

DaMatta (1986, p.103) topografou esta coe-xistência denominando o universo do capitalis-mo no Brasil de rua, o espaço público onde aspessoas falam e agem movidas por ideologismose impessoalidade. Já na casa, temos as típicasrelações de dominação senhorial onde predomi-na a ética da família e das relações pessoais.Transitamos da casa para a rua e vice-versa con-forme a conveniência, o que implica que pade-cemos, segundo DaMatta, não de excesso decapitalismo mas de capitalismo pela metade,cujo aleijão é o autoritarismo: para o povo a lei– de mercado e jurídica; para as elites, os privi-légios. É neste mundo selvagem, por não ter re-gras fixas, logo, sem direito e justiça, que o nos-so povo tem que sobreviver. Por isso é que arelação com o sobrenatural é tão necessária e amalandragem se torna a arma do fraco.

Nas sociedades modernas do Primeiro Mun-do, há o respeito pelo contrato social, as leissão fixas e universais e por isso os cidadãos seidentificam com as instituições de seu país,como o Estado, a Constituição e a democracia.Extrapolando o pensamento de DaMatta, po-demos dizer que esses países, de maneira in-versa à nossa, em casa, ou seja, internamentenas relações com seus cidadãos, são liberais nosentido de se pautarem pelo contrato social,porém, no plano do comércio internacional, ouseja, na rua, são anti-liberais. Demos algunsexemplos disso na sessão intitulada “o papeldos EUA na globalização excludente”.

Portanto, a mesma situação que enfrenta-mos internamente, a lei do mais forte, enfren-tamos internacionalmente. E creio que da mes-ma forma que o futebol nos ensina a enfrentar,internamente, os obstáculos e os abusos de po-der das elites nacionais, ele pode nos ensinar aenfrentar os abusos das elites internacionais.

No meu entendimento, as medidas simples,diretas e baratas, como as que Cristovam

Buarque (1999) propõe, são exemplos de cria-tividade, de dribles que podemos dar na ques-tão da solução da exclusão social no Brasil. Taismedidas driblam a lógica economicista e neo-liberal dominantes. Mesmo um governo con-servador, como o de Fernando Henrique Car-doso, pode ser bem sucedido internacionalmen-te quando joga de maneira criativa, como foi ocaso da quebra das patentes para remédios con-tra a AIDS.

Portanto, creio que a questão do enfrenta-mento da exclusão, tanto no campo interno comono externo, não depende dessa ou daquela me-dida, e sim de paradigmas. Creio que oparadigma do futebol brasileiro nos indica quemelhor do que tentarmos competir jogando omesmo futebol-força dos neo-liberais, é jogar onosso futebol criativo, em que todos tocam nabola e no qual é utilizado aquilo que mais sabe-mos fazer, driblar, quando estamos diante debarreiras defensivas. No momento estamos per-dendo o jogo porque esquecemos aquela velhae boa lição do futebol: “quem não faz, leva”.Queremos e precisamos virar o jogo, ganhar essapartida e, de preferência, jogando bonito.

À GUISA DE CONCLUSÃO: A UTOPIADE CHUTEIRAS

Se o leitor acha que estou sendo otimistaem demasia, peço desculpas e me justifico, lem-brando que, quando a referência da reflexão éo futebol, não há como não ser otimista. Nocampo de futebol podemos tudo e zombamosdas hierarquias e dos protocolos. Na entregadas medalhas e da taça ao final do jogo contraa Alemanha, o mundo inteiro assistiu a umaautoridade branca entregar o troféu a um par-do, Cafu, que instigado e com ajuda física deum negro, Pelé, quebrou o protocolo e subiuno pedestal onde antes estava a taça de ouro. Obelo espetáculo do “fumacê”, com papel pica-do prateado atrás de Cafu, que erguia a taçasobre o pedestal, é a exaltação brasileira dohomem e não do ouro. Cafu, o primeiro joga-dor a jogar três finais de Copas consecutivas eque em sua camisa escreveu “100% Jardim

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Irene”, simbolizou o sonho de todo país pobre:superar todas as dificuldades e se tornar ven-cedor, sem negar suas origens. O que nos en-canta neste momento mágico e cheio de sim-bolismo é que o nosso capitão, após conquis-tar o Penta e um recorde, diante de um bilhãode telespectadores, não demonstra empáfia nemfaz qualquer declaração ufanista, apenas grita“Regina, eu te amo”. Essa é a cara e a voz doBrasil. No tablado armado pela FIFA, os joga-dores sambavam.

Na rampa do Palácio presidencial, por onderaramente circulam pessoas de cor negra, e di-ante da autoridade máxima do país, Vampeta,um negro, não se deu por satisfeito por ser umdos raros a ali estar, resolveu ser o único nahistória do país a dar ali cambalhotas. Ora, uma

rampa ligando um espaço público a um palá-cio, que se encontra em um plano mais eleva-do, é evidentemente um símbolo. Símbolo dediferença, distância e poder. Dar cambalhotasali, sob o aplausos, risos e gritos eufóricos dosdemais jogadores, também é simbólico: o mun-do dá voltas como uma bola, como uma cam-balhota... O que hoje está em cima pode ama-nhã rolar rampa abaixo. Sabedoria do povo emforma de brincadeira; deboche do povo em re-lação ao poder. Zombaria alegre e bárbara queo arrogante e auto-suficiente presidente, conhe-cido também pela ostentação de uma civilida-de francesa, foi obrigado a aplaudir. A tomadado poder vai ser assim: driblando, fazendo golsde placa e, depois, comemorando com camba-lhotas.

REFERÊNCIAS

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Recebido em 02.06.02Aprovado em 08.08.02

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Ana Celia da Silva

* Professora Adjunto do Departamento de Educação, Campus I – UNEB. Endereço para correspondência:Rua Campinas de Brotas, 139, Conj. Rodrigo Horácio Costa, bloco 72, apto 102, Brotas – 40275.180,Salvador-BA. E-Mail: [email protected]

MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO

e sua trajetória

para a inclusão da diversidade étnico-racial

Ana Celia da Silva*

RESUMO

Esse artigo faz parte de uma investigação que teve como objetivo identifi-car as transformações da representação social do negro no livro didático eseus determinantes. A representação social do negro sofreu mudanças noque se refere aos direitos de humanidade e de cidadania, nas ilustrações enos textos dos livros da década de 90 analisados nesse trabalho. Nesserecurso didático, em especial, o negro foi representado como cidadão abs-trato, sem identidade étnico-cultural e em minoria na população ilustrada.O determinante de transformação Movimento Negro Brasileiro eviden-cia a trajetória das entidades negras e suas estratégias para a inserção des-ses atores na sociedade, através de reivindicações e ações no sistema deensino, visando uma educação pluriétnica e pluricultural, que culminou naimplementação do tema transversal Pluralidade Cultural e Educação – nosParâmetros Curriculares Nacionais – e em políticas de ação afirmativa e dereparação na educação para a população afro-descendente.

Palavras-chave: Movimento negro – Educação – Políticas de inclusão

ABSTRACT

THE BRAZILIAN BLACK MOVEMENT and its path towards theinclusion of the ethnic-racial diversity

This article is part of an investigation that had the objective of identifyingthe transformations of the social representation of the Black in thepedagogical book and its determinants. The social representation of theBlack has suffered changes in relation to humanity and citizenship rights,in the illustration and in the texts of the books of the 90’s analyzed in thiswork. In this didactic resource, specially, the Black has been representedas an abstract citizen, with no ethnic-cultural identity and in minority inthe population illustrated. The transformation determinant Brazilian BlackMovement makes evident the path of the Black entities and its strategies

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Movimento negro brasileiro e sua trajetória para a inclusão da diversidade étnico-racial

Esse artigo faz parte de um dos capítulos daminha tese de doutoramento (SILVA, 2001) emque é apresentado um dos determinantes datransformação da representação do negro no li-vro didático de Língua Portuguesa do 1º e 2ºciclo das séries iniciais do Ensino Fundamental.

Tendo em vista que a inclusão do “outro”no nosso grupo social e na sociedade requerum real conhecimento do seu cotidiano, dassuas experiências, da sua cultura e do seu pro-cesso histórico-social, é que apresento o quejulgo ser a contribuição do Movimento NegroBrasileiro, enquanto um movimento social, emluta pelo reconhecimento, respeito e inserçãoda população negra nos direitos humanos e decidadania na sociedade brasileira.

Introdução

Conceituar as entidades negras brasileirascomo articuladoras de movimentos que defi-nem objetivos e estratégias de ação, logramocupar territórios interditados, expandem suacultura e contam sua própria história, paralelaà história oficial, pode constituir-se em umatarefa complexa.

José Correia Leite, um dos fundadores da“Frente Negra” de São Paulo, falecido em 27de fevereiro de 1989, elaborou uma definiçãoprofunda do movimento negro, quando disse aCuti, em uma entrevista para o livro desse au-tor, “E disse o velho militante: Uma das idéiasera essa: se unir para ter uma retaguarda, pranão ser um que apanhasse sozinho” (SILVA,1992, p. 57).

Podemos considerar como movimento ne-gro todas as entidades ou indivíduos que luta-

ram e lutam pela sua liberdade desenvolvemestratégias de ocupação de espaços e territórios,denunciam, reivindicam e desenvolvem açõesconcretas para a sua conquista dos direitos fun-damentais na sociedade.

Hamilton Cardoso, jornalista paulista, umdos fundadores do MNU de São Paulo, faleci-do recentemente, assim definiu as entidades doMovimento Negro:

As instituições do movimento negro, denomi-nadas de entidades são conseqüências diretas deuma confluência entre o movimento abolicionis-ta, as sociedades de ajuda e da alforria e dos agru-pamentos culturais negros. Seu papel é o de le-gitimar a existência do negro dentro da socieda-de, diante da legislação. Elas unem os negrosoficialmente, de forma independente, para pra-ticar o lazer e suas culturas específicas. Escon-dem no seu interior pequenas organizações fa-miliares de ajuda e solidariedade, para o desen-volvimento social. (CARDOSO, apud GONZA-LES, 1992, p. 21).

Identifico como uma das maiores contribui-ções desse movimento, para o desenvolvimen-to social do povo negro, a sua luta constantepela conquista da educação, inicialmente comomeio de integração à sociedade existente e,depois, denunciando a instituição educacional,como reprodutora de uma educação eurocên-trica, excludente e desarticuladora da identida-de étnico-racial e da auto-estima desse povo,apresentando, através de suas entidades, umaeducação paralela, pluricultural, colocada nasescolas através da ação dos seus militantes.Uma retrospectiva do processo educativo doMovimento Negro torna evidente o seu esfor-ço para instituir uma educação que contempleo processo civilizatório e desenvolva a identi-dade e a auto-estima negra.

for the insertion of these authors in the society, through demands and actionsin the educational system, aiming at a pluri-ethnical and pluri-culturaleducation, which has culminated in the implementation of the transversaltheme Cultural Plurality and Education – according to National CurricularParameters – and in politics of affirmative action and of repairing ineducation, for the afro-descending population.

Key words: Black movement – Education – Inclusion politics

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Ana Celia da Silva

A ação educativa contínua

A procura da instrução e da educação, comoforma de mobilidade e contribuição para a in-serção de um segmento majoritário na socie-dade, sempre foi uma meta perseguida pelosafro-brasileiros. Nesse sentido as irmandades,associações culturais e recreativas negras pro-curaram instituir escolas de alfabetização paraseus associados, logo após a abolição (NAS-CIMENTO, 1981).

Algumas ações sistemáticas e paralelas àeducação oficial podem ser citadas como exem-plos de reconhecimento da importância dessameta a ser atingida pelo Movimento Negro, taiscomo:– a educação desenvolvida pela “Frente Ne-

gra”: “(...) a educação era uma prioridade.Se você chegasse na sede existia um corre-dor comprido, com salas de aula lado a lado”(Aristides Barbosa, apud BARBOSA, 1998,p.25). Assim como as conferências sobre afamília e a alfabetização da Frente NegraBaiana (BACELAR, 1996);

– a publicação do ensaio “O Preconceito nosLivros Infantis” na década de 50, escrito porGuiomar Ferreira de Matos, advogada daAssociação dos Empregados Domésticos,publicado na revista Forma, n. 4, em 1954,que discorria sobre os efeitos negativos daeducação racista sobre a criança negra(NASCIMENTO, 1981). Esse trabalho evi-dencia a amplitude do raio de ação dos tra-balhos realizados pelo Movimento Negro naeducação. Guiomar introduz um tema quesó na década de setenta passa a ser preocu-pação dos pesquisadores da academia;

– a publicação de diversas obras literárias pelaAssociação Cultural do Negro, em São Pau-lo, em seus “Cadernos de Cultura”. Em1952, a Associação publicou 15 poemas ne-gros de Carlos Assumpção e OsvaldoCamargo (Nascimento, 1981);

– a publicação dos “Cadernos Negros” edita-do pelo Quilombhoje, em São Paulo, apre-sentando poemas e contos de autores afro-descendentes e que completou vinte anosde publicação no ano de 2001;

– as propostas de currículos pluriculturaisimplementadas pelas entidades do Movi-mento Negro em escolas comunitárias e es-colas de blocos afros, já mencionadas, bemcomo os projetos de extensão pedagógicainstituídos pelos mesmos;

– os projetos de pesquisa desenvolvidos porpesquisadores militantes nas universidades,que têm tido efeito multiplicador na gradu-ação e na pós-graduação, ampliando a prá-tica de currículos pluriculturais desenvol-vidos nas salas de aula; as pesquisas de pós-graduação, lato e stricto sensu e publicaçõesdiversas;

– a publicação de dissertações, teses emonografias produzidas na academia pelosafro-descendentes e outros pesquisadores,bem como variados títulos sobre a proble-mática racial da sociedade brasileira, publi-cados por editoras diversas;

– os congressos, seminários e encontros so-bre educação, realizados por diversas enti-dades negras e núcleos acadêmicos, em di-versos estados do Brasil;

– o encontro de professores/pesquisadoresnegros, especialistas em educação, realiza-do em Brasília, em agosto de 1996, paraavaliação dos PCN e elaboração de laudotécnico, para o Ministério da Educação. Esseencontro resultou da ação do “Grupo deTrabalho Interministerial para Valorizaçãoda População Negra” (GTI), fundado em13 de maio de 1997, em Brasília, que tinhacomo um dos seus objetivos mediar juntoao MEC as ações do movimento negro.Desse encontro resultou um manual de ori-entação para o tema transversal pluralidadecultural e educação, publicado pelo MECem 1999, para o Ensino Fundamental,intitulado “Combatendo o Racismo na Es-cola”, organizado pelo Profº KabengeleMunanga e distribuído para as escolas des-se nível de ensino;

– o 1º e 2º Congresso Nacional de Pesquisa-dores Negros, realizados respectivamenteem Recife-Pe. e em São Carlos-S.P., quereúne as contribuições dos pesquisadores detodo o Brasil sobre os diversos campos do

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Movimento negro brasileiro e sua trajetória para a inclusão da diversidade étnico-racial

conhecimento, refletidas a partir da proble-mática negra;Atualmente os militantes do Movimento

Negro, que trabalham com educação, procuramsolicitar, junto ao MEC, a implementação deações afirmativas na educação para o povo ne-gro. Propostas de políticas públicas foram enca-minhadas ao MEC pelas entidades. Guimarães(1996, p.238) observa que: “Tendo em vista queações afirmativas são ações públicas ou priva-das, ou programas que provêm ou buscam pro-ver oportunidades ou outros benefícios para pes-soas com base, entre outras coisas, em sua per-tença a um ou mais grupo específico, tendo sen-tido de reparação por uma injustiça passada”,nada mais justo que a reivindicação do movi-mento negro de políticas públicas e ações afir-mativas para a educação dos afro-brasileiros,para reparar as injustiças passadas e atuais.

Organizações sócio-recreativas doMovimento Negro

De acordo com Cuti Silva (1992), nas trêsprimeiras décadas após a abolição, o Movimen-to Negro organizou-se sob a forma de clubes,associações recreativas e agremiações, queagregavam as pessoas de cor, e, segundo Aze-vedo (1996, p.157), “não tinha a finalidadeexpressa de defesa das pessoas de cor contraos preconceitos sociais”. Contudo, essas asso-ciações e clubes possibilitaram a convivênciaentre pessoas com problemas comuns, onde astrocas, as confidências, os desejos criaram asoportunidades para construir outras formas deorganização política e cultural.

A imprensa negra: porta-voz das en-tidades negras

A imprensa negra, em São Paulo, nas pri-meiras décadas, constituiu-se no elementoorganizador e reivindicador da comunidadenegra, como porta-voz das diversas tendênciasdas entidades ou como pólo gerador de futurasentidades.

A partir das trocas de experiências possibi-litadas pelos agrupamentos associativos, recre-ativos e religiosos, onde tornou-se mais explí-cito para o negro o racismo e a exclusão, fo-ram surgindo manifestações reivindicatórias epropostas de equalização de direitos na socie-dade. A imprensa foi o primeiro veículoconstruído para as denúncias e reivindicações,como porta-voz de grupos que se organizavam.Diversos jornais surgiram, logo nas primeirasdécadas pós-abolição, traduzindo reações àsdiscriminações e aspirações de direitos iguais,para o povo negro.

O “Melinke”, fundado em 1916, 28 anosapós a Lei Áurea, foi o primeiro periódico edi-tado, seguido pelos jornais “Bandeirante”, fun-dado em 1918, “órgão mensal de defesa da clas-se dos homens de cor”, o “Alfinete” e o “Liber-dade”, fundados em 1918 e 1919, respectiva-mente, bem como o “Kosmos”, o “Elite” e o“Getulino”, fundados em 1924 (NASCIMEN-TO, 1981; SILVA, 1992).

Esses jornais demonstram o poder de or-ganização dos afro-brasileiros, uma vez quequase todos eram porta-voz de grupos orga-nizados. Um dos jornais mais importantesdessa época foi o “Clarim da Alvorada”, daFrente Negra Brasileira, fundado por JoséCorreia Leite e Jayme Aguiar, mais ou menosem 1924. Foi o periódico da imprensa negrade mais longa duração na época. Foi reeditado,após a saída de Correia Leite da Frente Ne-gra, com o nome “O Clarim” (NASCIMEN-TO, 1981). Correia Leite foi também o funda-dor do jornal “A Chibata”, lançado em 1932(BARBOSA, 1998).

O jornal “Novo Horizonte”, fundado em1946 e mantido durante 10 anos, através decotização dos seus fundadores, negros faxinei-ros liderados por Aristides Barbosa, é outroexemplo da organização dos diversos segmen-tos negros, nas primeiras décadas pós-aboli-ção. Foram colaboradores desse jornal gran-des vultos reconhecidos ainda hoje na litera-tura e poesia negra, como Oswaldo deCamargo e Carlos Assumpção, este autor dopoema “O Protesto”, lançado em 1954 (BAR-BOSA, 1998).

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Ana Celia da Silva

As entidades com explicitaçãopolítica

As organizações ou entidades negras, decunho denunciador e reivindicatório explícito,organizaram-se a partir das organizações deresistência e manutenção do processo culturalnegro no Brasil.

Uma das mais importantes entidades negrasfoi a “Frente Negra Brasileira”, fundada em1931, caracterizada como um movimento po-lítico de massa, integracionista e de reação àdiscriminação do negro no mercado de traba-lho reunindo mais de 30 mil filiados nos diver-sos estados do Brasil onde se instalou (NAS-CIMENTO, 1981; GONZALES, 1982; SILVA,Cuti, 1992; AZEVEDO, 1996; BACELAR,1996). A Frente Negra transformou-se em par-tido político e foi fechada por Getúlio Vargasem 1937, na implantação do Estado Novo (Nas-cimento, 1981).

Algumas ações da Frente Negra, citadas porantigos militantes, corroboram a sua importân-cia para o processo de construção da identida-de e cidadania negra, tais como:– mulher negra: para Aristides Barbosa (apud

BARBOSA, 1998, p.18-20), as mulheresnegras constituíram a “Comissão Femininada Frente Negra” e “eram as rosas negras,grupo de moças negras que vestiam brancoe usavam uma rosa negra no peito”;

– educação: o mesmo autor (apud BARBOSA,1998, p.25) mostra que a educação era umaprioridade “(...) se você chegasse na sedeexistia um corredor comprido, com salas deaula lado a lado” (Aristides Barbosa,

– o caráter reivindicatório: para FranciscoLucrécio (apud BARBOSA, 1998, p.35),“Nenhuma outra entidade cuidou das rei-vindicações sociais e políticas e enfrentouo preconceito assim como a Frente Negra ofez”;

– a importância da festa: “A Frente Negra nãofoi só o centro político do negro, quandoela dava uma festa era pra valer” (AristidesBarbosa, apud BARBOSA, 1998, p.15);

– a fraternidade: Marcelo Orlando Ribeiro(apud BARBOSA, 1998, p.81) aponta que

“A Frente Negra tinha uma orientação fra-terna. Quem entrava lá era mais um irmão”;

– o partido: “A Frente Negra era um partidoforte e eles iam pedir, todo mundo ia dispu-tar esse apoio. Era por aí, quer dizer, quan-do a gente aprendeu esse pique, eles obri-garam a trocar o nome da Frente Negra paraUnião Negra” (Aristides Barbosa, apudBARBOSA, 1998, p. 25, referindo-se aoapoio que os políticos, como Ademar deBarros, iam solicitar à Frente Negra nas elei-ções de 1937).No ano em que a Frente Negra foi fechada,

foi fundada em São Paulo a Sociedade HenriqueDias, formada por médicos, juizes, advogadose jornalistas, sem distinção de cor e com a fi-nalidade de congregar pessoas de diversas co-res, para desenvolver atividades educativas,assistenciais diversas, esportivas e comemorardatas cívicas (AZEVEDO, 1996). “Essa socie-dade caracterizou-se por procurar aproximarpretos e brancos, evitar antagonismos com ogrupo dominante, promover a aculturação. So-freu críticas de negros de status médio e alto ede brancos” (AZEVEDO, 1999, p.160).

Na década de 30, diversas entidades negras,decorrentes da Frente Negra, surgiram na socie-dade brasileira, tais como o “Movimento Bra-sileiro Contra o Preconceito Racial”, no Riode Janeiro, em 1935; a “Associação dos Brasi-leiros de Cor”, em Santos, São Paulo, em 1938;a “União Nacional dos Homens de Cor”, enti-dade de nível nacional (NASCIMENTO, 1981).Em 1941 foi fundada a “Associação José doPatrocínio”, em São Paulo. Tratou dos proble-mas dos empregados domésticos, denuncian-do e protestando contra a rejeição dos candi-datos negros, na admissão ao emprego. Essaentidade atuou até o fim da década de 50 (NAS-CIMENTO, 1981).

A Frente Negra Baiana

Um dos estados onde a Frente Negra se es-tabeleceu foi na Bahia, segundo Azevedo(1996) e Bacelar (1996). Precedida pelas irman-dades e associações operárias e beneficentes,

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Movimento negro brasileiro e sua trajetória para a inclusão da diversidade étnico-racial

“ela não tinha”, segundo Thales de Azevedo(1996, p.57), “ a finalidade expressa de defesadas pessoas de cor contra os preconceitos ra-ciais”; preocupava-se com a integração dosnegros à sociedade.

Marcos Rodrigues dos Santos, um dos fun-dadores da Frente Negra em São Paulo, foi ofundador da Frente Negra Baiana (BACELAR,1996, p.75). Seus quadros eram formados porpretos e mestiços pobres; neles não constavamos negros de situação estável, porque estes nãoforam excluídos do mundo do trabalho pelosimigrantes, como ocorreu em São Paulo, ondeos negros de situação estável, impedidos deascensão, participavam ativamente da Frente.“A Frente Negra Baiana também via a educa-ção como via de mobilidade, ascensão eintegração social, por isso ministrou cursos dealfabetização noturnos, cursos primários, demúsica, de datilografia e de línguas” (BACE-LAR, 1996, p.76). Angariava fundos atravésde sessões e festas beneficentes. Preocupava-se com a mulher negra e a sua imagem e insti-tuiu o quadro social feminino, para agregar asmulheres negras.

Ações da “Frente Negra Baiana”A “Frente Negra Baiana” promovia confe-

rências, como “O negro bahiano”, “A famíliae a alphabetização” e publicava um semaná-rio, divulgando e defendendo a Frente. Media-va as intervenções no mercado de trabalho einstalou uma agência de empregos, para ondeempregador e empregados poderiam se dirigir.

No campo político, realizou comícios noLargo Dois de Julho, na Fazenda Garcia, noLargo do Tanque, nas Sete Portas, na Baixa deQuintas e nas Docas, focalizando a alfabetiza-ção e a liberdade de voto.

No dia 13 de Maio, a Frente reverenciavaos abolicionistas Castro Alves, José do Patro-cínio, Luís Gama e os “batalhadores da causanegra” do presente século. Frentenegros iamem romaria aos túmulos dos professoresMaxwel Porphirio, Ascendino dos Anjos eManoel Querino, para depositar flores naturais.Maxwel Porphirio de Assunpção era advoga-do. Fez um protesto através da imprensa, con-

tra o projeto apresentado à Câmara Federal pelodeputado Lincinato Braga, proibindo a imigra-ção negra para o Brasil1. Ascendino dos Anjosfoi um líder negro, funcionário da Escola Po-litécnica da Bahia. Manoel Querino foiabolicionista, político, jornalista e professor,um dos precursores da Antropologia Brasilei-ra e militante da causa negra no Brasil (BA-CELAR, 1996).

A “Frente Negra Baiana” desagregou-se sobo peso do mito da “democracia racial,” recém-instaurado e muito forte na época, e das reaçõesda imprensa local, que via como “uma novida-de para a Bahia a notícia de que os homens decor, para os quais não se fazem distinção, tantoque os há em todos os cargos e postos, vão secongregar” (AZEVEDO, 1996, p.157) A im-prensa negava a existência do racismo e alega-va que a Frente tinha influências comunistas, fatoque se repetiu várias décadas depois, em 1974,quando do surgimento do bloco Afro Ilê Aiyê,em Salvador. Segundo Bacelar (1996, p. 83), “osdiscursos e as práticas do projeto hegemônico,o “mito da baianidade”, foram mais eficazes quea ação repressiva direta”.

Por outro lado, a Frente foi importante, en-tre outras razões, porque ajudou a desmontar omito da igualdade racial, uma vez que “a dis-criminação existia, independente do gradientede cor e de classe social a que os negros per-tenciam, bem como o mito da integração, peladificuldade do branco em conviver e respeitaro negro em pé de igualdade de condições” (BA-CELAR, 1996, p.196).

Distinções entre a “Frente Negra Baiana” ea Paulista

A “Frente Negra” de São Paulo teve parti-cipação das camadas médias negras, impedi-das de ascensão, alijadas do mercado de traba-lho, na competição com os imigrantes.

Em Salvador, muitos dos descendentes deafricanos escravizados não são desalojados dassuas posições no mercado de trabalho. Algunsmestiços integram-se ao “mundo dos brancos”.

1 As reações da imprensa à “Frente Negra Baiana”.

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Ana Celia da Silva

Pretos autônomos atingem condição materialestável. Dessa forma a elite mestiça rejeita aFrente Negra na Bahia. Essa era auto-identifi-cada e identificada socialmente, como branca(BACELAR, 1996).

A “Frente Negra Baiana” era dirigida porpretos e mestiços pobres e criada por um operá-rio pobre e tinha uma íntima relação com a his-tória da luta proletária em Salvador. “Expôs aquestão social do proletário, enfatizando a dis-criminação” (BACELAR, 1996, p.81). Ela acon-selhava a estudar a miséria do negro em toda aparte (A Tarde, 23.01.1933, apud BACELAR,1996, p.81), bem como os padrões da desigual-dade econômica entre brancos e pretos.

Os “Congressos Afro-Brasileiros” naregião Nordeste

Nessa mesma década de 30, paralelamenteà atuação das entidades consideradas de cunhoeminentemente cultural, desenvolviam-se, nasacademias do Nordeste, os “Congressos Afro-Brasileiros”, em Recife, em 1934 e na Bahia,em 1937, que segundo Nascimento (1981, p.185) “seguiam a mesma tradição racista de NinaRodrigues”.

Na visão de Guerreiro Ramos (1957, p.181),“esses congressos eram inspirados na necessi-dade de o “branco da Bahia,” cultural e ideolo-gicamente euro-ocidental e racista, provar sualegitimidade ariana, em face da sua verdadeiraascendência negra, diluída e longínqua”. “Nes-ses congressos o negro era transformado emobjeto, em assunto de pesquisa, num mecanis-mo psicológico compensatório do que julgamser uma inferioridade” (RAMOS, 1957, p.186).

O “Teatro Experimental do Negro”

Na década de 40, seguindo ainda a rota da“Frente Negra”, surge em 1944 no Rio de Ja-neiro, o “Teatro Experimental do Negro” –TEN, fundado por Abdias Nascimento, uma dasentidades do movimento negro que mais con-firma a articulação e ação recíproca cultural

política negra. O TEN manifesta uma nova faseda luta negra, com posição e propósitos de re-abilitação e valorização da herança cultural eda identidade negra (NASCIMENTO, 1981;GONZALES, 1982; SILVA, 1992), utilizandoa arte como veículo de denúncia, reivindica-ção e mobilização política.

O TEN desenvolveu ações importantes parao povo negro, tais como:– a valorização do negro nos setores social,

cultural, educacional, político, econômicoe artístico e relações internacionais com aÁfrica e Europa (NASCIMENTO, 1981);

– a organização do “Conselho Nacional dasMulheres Negras”, em 1950. Esse conse-lho ofereceu cursos de educação primáriapara crianças e adultos, bem como servi-ços sociais (NASCIMENTO, 1981);

– a fundação da “Associação dos Emprega-dos Domésticos”, por Elza de SouzaAparecida, em 10 de maio de 1950. A preo-cupação com essa categoria deveu-se ao fatode que muitos dos atores, em formação peloTEN, pertencerem a essa categoria profis-sional;

– a formação de quadros de atores importan-tes, tais como Léa Garcia, Ruth de Souza eSolano Trindade;

– a organização do “1º Congresso ou Confe-rência Nacional do Negro”, em 13 de maiode 1949, por Abdias Nascimento, Guerrei-ro Ramos e Edison Carneiro, reunindo re-presentantes dos estados de Minas Gerais,Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Ja-neiro e Bahia. Foram conferencistas nesseevento Florestan Fernandes e Haroldo Cos-ta, entre outros (NASCIMENTO, 1981);

– a organização da “Semana de Estudos Ne-gros” e o “Concurso de Belas Artes”, em1955 e o “Curso de Introdução ao TeatroNegro e às Artes Negras”, com mais de 300participantes, tendo como conferencistasFlorestan Fernandes, Grande Otelo, AlceuAmoroso Lima, Edison Carneiro, NelsonPereira dos Santos e Abdias Nascimento(NASCIMENTO, 1981).Diversas entidades negras eminentemente

teatrais, ou utilizando o teatro como um dos

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Movimento negro brasileiro e sua trajetória para a inclusão da diversidade étnico-racial

meios de ação, surgiram no Brasil, a partir daexperiência do TEN, tais como:– o “Movimento Teatral Cultural Negro” em

São Carlos e Campinas, em 1974;– o “Grupo de Teatro Evolução”, em Campi-

nas, São Paulo em 1974/75;– o “Centro de Estudos de Arte e Cultura

Negros” – CECAN e Centro de EstudosAfro Brasileiros – CEAB, em São Paulo;

– o “Grupo Congada”, em São Carlos, SãoPaulo;

– o “Grupo Zumbi”, em Santos, São Paulo;– o “Grupo Palmares”, no início da década

de 70, no Rio Grande do Sul.– o “Grupo Teatral Palmares Iñaron”, em

Salvador, Bahia.

Organizações contemporâneas,após as três primeiras décadaspós-abolição

Organizações baianasApós a “Frente Negra Baiana”, as entida-

des do Movimento Negro da Bahia e do Nor-deste organizaram-se com a intenção explícitade oposição e enfrentamento à discriminação eao racismo e desenvolveram-se a partir dasraízes culturais africanas, utilizando suas ma-nifestações para mobilizar o povo negro.

Um dos primeiros grupos organizados noinício da década de 70 em Salvador foi o “Nú-cleo Cultural Afro Brasileiro”, criado porManoel de Almeida e outros. Esse grupo reali-zava seminários sobre educação inter-étnica noInstituto Cultural Brasil Alemanha – ICBA, nobairro da burguesia baiana, o corredor da Vitó-ria, que liga o Campo Grande ao bairro da Gra-ça. Concomitante a esse núcleo foi formado o“Grupo Malê Cultura e Arte”, por Atalito, queorganizava feiras culturais, onde vendia livrosque versavam sobre a cultura negra (SILVA,1988).

Outro grupo do início da década de 70 foi ogrupo teatral “Palmares Iñaron”, já citado, fun-dado por Godi, na época estudante e hoje dire-tor teatral e professor universitário, que ence-nava peças sobre o negro e o índio, em Salva-

dor. Godi, referindo-se ao MNU, afirmava que“a efervescência de 1978 (MNU) foi resultadodo movimento cultural já em curso na primeirametade dos anos 70” (SILVA, 1988).

O Ilê AiyêO grande detonador da efervescência cul-

tural na Bahia foi a criação, em 01 de novem-bro de 1974, do bloco que iria redefinir as açõesdo Movimento Negro, o “Ilê Aiyê”. Surgidoem Salvador, na rua do Curuzu, no bairro daLiberdade, de maioria populacional e culturalnegra, o Ilê foi o primeiro bloco afro fundadono Brasil.

O bloco foi formado por um grupo de jo-vens negros que organizavam festas, passeiose outras atividades recreativo-culturais, a prin-cípio denominado grupo “A Zorra” e depois,“Ilê Aiyê” ou casa de negro, porque, segundoseu presidente e fundador, Antônio Carlos dosSantos – Vovô, o grupo sentiu a necessidadede criar um espaço onde os jovens negros pu-dessem divertir-se sem sofrer restrições de ne-nhuma forma.

O Ilê desfilou no carnaval baiano de 1975,com uma fantasia de guerreiro “Achanti”. Seusmembros levavam nas mãos tabuletas de ma-deira, com palavras de ordem do poder negronorte-americano. Essa ação provocou reaçõesdas pessoas brancas, mestiças e negras, imbuí-das do senso comum da democracia racial e doideal do branqueamento, que diziam ser umgrupo separatista e feio, bem como da impren-sa local, que dizia estar sendo transplantadopara aqui, dos Estados Unidos, uma problemá-tica racial inexistente, o racismo. A esse res-peito, diz Jônatas Conceição: “Eles tinhamconsciência de que estavam fazendo política”(SILVA, 1988, p.279). O que o “Ilê Aiyê” esta-va fazendo era uma articulação político-cultu-ral, mediando através da dança, do canto, daindumentária, mensagens que conduziriam aoorgulho de ser negro e das suas origens cultu-rais, reconstruindo a auto-estima e identidadeétnico-racial do povo negro. Isso porque, se-gundo Reis (1983, p.107), “O africano escra-vizado soube dançar, cantar, criar novas insti-tuições e relações religiosas seculares, enga-

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Ana Celia da Silva

nar seu senhor, às vezes envenená-lo, defendersua família, sabotar a produção, fingir-se do-ente, fugir do engenho, lutar quando possível eacomodar-se quando conveniente”.

A dança e a música são ainda hoje estraté-gias utilizadas para reunir, mobilizar e organi-zar. Por isso, “O Ilê Aiyê, uma entidade negraque utiliza a cultura negra como veículo de or-ganização social, lançou mão da festa comouma maneira de brigar brincando. No fundo doseu caráter lúdico, do canto, da dança, do ves-tuário, uma proposta séria: a afirmação da cons-ciência de ser negro, a busca da historicidadepara definir identidade e de (re) descoberta evalorização do jeito negro de ser” (ROBSON,1996, p.107).

A partir do Ilê, diversos outros blocos afrosforam criados na Bahia e no Brasil, tais comoo “Melô do Banzo”, O “Olodum”, o “Malê deBalê”, “O Araketo”, o “Muzenza”, o “Akama-bu”, no Maranhão o “Agbara Dudu”, no Riode Janeiro, entre outros.

Atualmente, com a política de fechamentodo espaço público para os blocos de percus-são, tais como afoxés, blocos afros, entre ou-tros, para ceder espaço aos blocos de trio, quedivulgam mais veloz e sonoramente o nomedos seus patrocinadores e branqueiam a cida-de, durante o “carnaval de integração”, impor-tando foliões das regiões Sul/Sudeste, essasinstituições encontram-se reduzidas ou tentan-do adequar-se aos padrões aceitos, perdendosua originalidade e objetivo político inicial.

Contudo, os blocos afros que resistem àdescaracterização imposta, como forma de serincorporado ao carnaval de consumo, e desen-volvem uma ação educativa e de formação pro-fissional dos jovens na sua comunidade, atra-vés de projetos de extensão, tais como O IlêAiyê e o Malê de Balê, entre poucos outros,continuam crescendo e implementando as me-tas e objetivos a que se propõem.

O Grupo NêgoQuatro anos depois da fundação do “Ilê

Aiyê”, no ano de 1978, o então prefeito de Sal-vador, professor Edvaldo Brito, o primeiro eúnico, até agora, prefeito explicitamente negro

da cidade, convidou a professora Lélia Gonza-les, do Rio de Janeiro, para realizar uma sériede palestras, em comemoração à data do 13 demaio. Os ouvintes, estudantes universitários esecundaristas, operários, funcionários, entre ou-tros, negros em sua maioria, ouviram, atentos eemocionados, as análises de Lélia sobre a ex-clusão, o genocídio, a resistência e a insurgênciado povo negro. A partir desse evento, os ouvin-tes, uma das quais era eu, nos reunimos no Ce-mitério de Sucupira”2, para discutir os proble-mas do racismo da sociedade brasileira. O ape-lido foi dado em analogia ao cemitério da nove-la de Dias Gomes, que ia ao ar nessa época naTV. Após várias reuniões foi fundado o grupoNêgo. Publicamos um boletim com o mesmonome e convidamos a saudosa Lélia, que nosdeixou em 1995, para nos visitar, uma vez quea mesma inspirou nossa ação.

Dois meses depois, o grupo Nêgo estavaenviando dois representantes, com um docu-mento elaborado para representar a movimen-to negro baiano, na fundação do “MovimentoNegro Unificado Contra a Discriminação Ra-cial” – MNUCDR, no dia 7 de julho de 1978,nas escadarias do Teatro Municipal de São Pau-lo. Nesse evento estavam presentes LéliaGonzales, Abdias Nascimento, entre outrosmilitantes de décadas passadas (GONZALES,1982; NASCIMENTO, 1983; SILVA, 1988).

Organizações do Sul/Sudeste

Principalmente nas regiões Sul/Sudeste, aimprensa negra continuou sendo, nesse perío-do, um veículo preferencial das entidades decunho denunciador e reivindicativo.

A “Associação Cultural do Negro”, em SãoPaulo, lançou em 1958 o seu jornal “OMutirão”. Essa associação fundada em 1950,durou até 1960 e publicou diversas obras lite-rárias em seus Cadernos de Cultura. Em 1957

2 Esse nome foi dado, por nós, à praça que o prefeitoanterior havia construído, após demolir dois prédios degrande valor arquitetônico e cultural para a cidade, a bi-blioteca e o arquivo público.

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Movimento negro brasileiro e sua trajetória para a inclusão da diversidade étnico-racial

publicou 15 poemas com temáticas negras deCarlos Assumpção e Oswaldo Camargo (NAS-CIMENTO, 1981).

O período de 1968 a 1978 foi marcado pelaatividade reduzida das entidades negras, devi-do à instauração do Ato Institucional n.º 5, edi-tado pelo regime militar em vigor no país, queproibiu todas as atividades políticas no Brasil.

Em relação à política negra, a ComissãoGeral de Inquérito Policial Militar de 10/02/1969 dizia o seguinte: “(...) é uma campanhaconduzida através da imprensa e televisão, emligação com órgãos estrangeiros de imprensa ede estudos internacionais, sobre a discrimina-ção racial, visando criar novas áreas de atrito einsatisfação, com o regime e as autoridadesconstituídas” (Azevedo, apud NASCIMENTO,1981, p.214).

Apesar das proibições e vigilâncias, o Mo-vimento Negro continuou emergindo, utilizan-do a cultura como seu instrumento de ação. Sãodesse período a formação e fundação das se-guintes instituições negras:– o “Movimento Black Soul”, inspirado no

movimento idêntico norte-americano, mui-to combatido no Brasil, sob a alegação detransplante ideológico cultural americano,devido à consciência étnico-racial e de auto-estima que o mesmo desenvolvia;

– a “Gran Escola de Samba Quilombo”, quefazia o retorno ás origens das antigas esco-las tradicionais;

– o “Instituto de Pesquisa das Culturas Ne-gras” – IPCN;

– a “Sociedade de Intercâmbio Brasil/África”– SINBA, no Rio de Janeiro, que mantinhaum jornal, com o mesmo nome;

– o “Jornegro”, jornal da Federação de Enti-dades Negras de São Paulo;

– o “Grupo Teatral Arte Cultura Negra”, emSão Paulo, dirigido por Tereza Santos;

– a “Companhia de Dança Olorum Baba Mim;– os “Cadernos Negros” do grupo de poetas

e escritores do “QuilombHoje” de São Pau-lo, que completou 20 anos de publicação em2000 (Nascimento, 1981).O TEN teve continuidade através dos tra-

balhos de formação de atores como Zezé Mota,Zózimo Bulbul e Léa Garcia.

O “Movimento Negro Unificado Con-tra a Discriminação Racial”

O “Movimento Negro Unificado contra aDiscriminação Racial”, depois simplificadopara “Movimento Negro Unificado”, surgiu emreação à discriminação de 4 atletas negros peloclube Tietê, de São Paulo, e à tortura e assassi-nato do operário negro Robson Silveira da Luz.O MNUCDR teve características diferentes,desde a sua fundação, nos estados do Nordestee Sudeste.

Principais conquistas e ações do MNU:– articulou os conceitos de raça e classe, iden-

tificando a raça como um determinante daclasse social no Brasil;

– desmontou, em grande parte, o mito da de-mocracia racial brasileira e a ideologia dobranqueamento;

– instituiu a discussão sobre racismo e discri-minação racial, nas instituições, como aigreja, os partidos políticos, os sindicatos,as escolas;

– ressignificou o conceito biológico de raçapara um conceito político-social de afirma-ção política;

– evidenciou, para todo o Brasil, a data de 20de novembro, data da destruição do Quilom-bo dos Palmares, como dia nacional da cons-ciência negra, criado pelo grupo “Palmares”do Rio Grande do Sul;

– desenvolveu uma ação educativa junto àsescolas e universidades, com uma pedago-gia paralela à oficial, repondo os conteúdoshistóricos/culturais do povo negro, invisibi-lizados ou minimizados nos currículos;

– posicionou-se sobre a anistia em 1978 e1979, declarando, em relação às prisões, tor-turas e eliminações de presos comuns queeram negros em sua grande maioria; “(...)os milhares de “presos comuns”, negros,presos por serem negros, como resultado doracismo institucional do sistema policial,expresso na violência contra a comunidadenegra, são, nessa perspectiva, presos políti-cos” (GONZALES, 1982, p.217);

– inspirou a criação de diversas entidades egrupos negros, em vários pontos do país(GONZALES, 1982, p.64).

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Ana Celia da Silva

Atualmente, o MNU atua junto aos parti-dos, sindicatos e associações, dirigindo seusesforços para colocar seus quadros nas câma-ras, congresso e senado. Acredito que essa es-tratégia será cada vez mais bem sucedida, quan-do aliada a um trabalho contínuo de organiza-ção do povo negro, desenvolvendo, junto a ele,as discussões dos problemas gerados pelo ra-cismo. Para ser ouvido e aceito pelo povo ne-gro, no entanto, o MNU precisa retomar a ver-tente cultural africana, desenvolver atividadesculturais que congreguem o povo e veiculemas suas mensagens, bem como mobilizar a ju-ventude negra para as reivindicações de políti-cas de ações afirmativas.

Participar das instâncias do poder é apenasuma das vias de ação do Movimento Negro. Otrabalho junto às escolas, às associações debairro, aos grupos de mulheres, de homosse-xuais, aos sindicatos dos trabalhadores domés-ticos e braçais, junto aos grupos remanescen-tes de quilombos, entre outros, não pode serrelegado a segundo plano, porque, como dissee muito bem dito, Correia Leite, é preciso “seunir para ter uma retaguarda, pra não ser umque apanhe sozinho” (SILVA, 1992, p.57).

O Movimento Negro Brasileiro naatualidade

A partir da metade da década de 80, o Mo-vimento Negro diversificou as suas formas deatuação e linhas de ação. Concentra sua açãojunto às instituições políticas e institucionais,tais como partidos políticos, sindicatos e cen-trais sindicais, envidando esforços para elegercandidatos e colocar seus quadros atuando nasdiversas instâncias dessas instituições. Estabe-lece, como militância a atuação junto às bases,utilizando o espaço onde desenvolve sua atua-ção profissional como locus privilegiado deação. Os professores militantes atuam na for-mação de professores nos três graus de ensino,fazendo identificar a invisibilidade e tradiçãoseletiva nos currículos e a estereotipia nos ma-teriais pedagógicos, trabalhando no sentido deincluir e humanizar as representações das dife-renças étnico-raciais e culturais.

Essa forma de atuação diversificada repre-senta um dos mais originais e promissoresmovimentos sociais na sociedade brasileira, naopinião de Bento (1998, p.76/77), porque, dessaforma, sacerdotes do candomblé, jovens uni-versitários, pesquisadores, sindicalistas, gruposculturais, mulheres, trabalhadores rurais, alia-dos brancos estudiosos da problemática socialdo negro, militantes na luta anti-racismo, pas-sam a compor os quadros do movimento ne-gro, atuando nas questões sociais gerais e es-pecíficas, em dupla militância, que lhes confe-re o reconhecimento das instâncias que lutampelos direitos de classe e pelos que, aliado aesses, também lutam pelo reconhecimento, res-peito e direitos iguais para os negros e demaisgrupos estigmatizados no país.

As ações do Movimento Negro têm contri-buído, em grande parte, para uma reflexão nasociedade em relação aos reais determinantesde exclusão das populações afro-descendentes.Sua prática de atuação, abrangendo vários se-tores, tem influenciado instituições oficiais esociais, tais como o MEC, a universidade, ospartidos, os sindicatos, as igrejas, entre outras.Em relação ao MEC, com a sua atuação peda-gógica paralela, desenvolvida junto aos alunose professores em todo o Brasil, o MovimentoNegro contribuiu para que fosse instituído otema “Pluralidade Cultural e Educação”, ain-da que no momento como tema transversal, noEnsino Fundamental, em todos os seus ciclos.

É possível destacar diversas conquistas doMovimento Negro na atualidade, nos diversoscampos onde as entidades negras vêm desen-volvendo um trabalho de discussão da proble-mática social negra e entre essas conquistas,destacamos as palavras de Bento (1998, p.78):“Nas várias esferas do governo ampliam-se onúmero de órgãos criados com a finalidade dedesenvolver medidas para a promoção da igual-dade de direitos”, tais como O “Grupo de Tra-balho Interministerial para Valorização daPopulação Negra” – GTI e “A FundaçãoPalmares”, entre outros.

No âmbito jurídico, o racismo deixou de seruma mera contravenção, instituída pela leiAfonso Arinos, e passa a constituir-se em cri-

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Movimento negro brasileiro e sua trajetória para a inclusão da diversidade étnico-racial

me inafiançável (BENTO, 1982). Advogadosnegros organizam-se em fóruns específicos paraapoiar as vítimas de discriminação racial, taiscomo o “Disque Racismo”, em Salvador, o“Escritório Zumbi dos Palmares”, de caráternacional, entre outros.

Na academia, professores, pesquisadores,revisam produções “científicas” eivadas deideologias, que serviram apenas para a repro-dução do racismo, ao tempo em que editamobras de pesquisadores da academia e damilitância que desconstróem as ideologias eapresentam novas propostas de combate à ex-clusão e de inclusão dos afro-descendentes.

A atuação pedagógica paralela desenvolvi-da pelos militantes que atuam na formação deprofessores, nos diversos graus de ensino, ins-tituiu o interesse de muitos deles pelos temasrelativos à discriminação do negro nos materi-ais pedagógicos e à exclusão dos conhecimen-tos históricos e culturais sobre a problemáticanegra nos currículos. Os professores acorremaos cursos ministrados pelas entidades negrase centros de estudos acadêmicos, introduzin-do, a partir desses cursos, a diversidade étni-co-cultural na sua prática docente.

Padres e freiras negros, atuantes junto à co-munidade católica e órgãos diretivos da Igreja,através da “Pastoral Afro-Brasileira” e “Lati-no-Americana”, assim como os “Agentes dePastoral Negros”, vêm desenvolvendo na Igre-ja Católica o respeito às religiões afro, àintercultura e o reconhecimento da história ecultura dos afro-brasileiros.

A atuação dos militantes médicos tem per-mitido a denúncia da omissão e do descaso doEstado para com as doenças que atingem pre-ferencialmente os descendentes de africanos,tais como a anemia falciforme, os miomas edoenças cardiovasculares.

Militantes das áreas rurais desenvolvem atu-ação junto às comunidades de remanescentesde quilombos, participando das suas lutas pela

posse da terra e contribuindo na formação dosprofessores das escolas de quilombos, existen-tes nessas comunidade.

Nos últimos anos o Movimento Negro tempressionado o Estado no sentido de promoverpolíticas de reparação e de ações afirmativaspara os afro-descendentes na área da educa-ção. São medidas que possibilitam o acesso epermanência de uma maioria excluída da uni-versidade em decorrência da péssima qualida-de de ensino oficial, mesmo tendo a duras pe-nas concluído o segundo grau. Esses jovens,submetidos à ideologia dos direitos iguais, nãotêm as mesmas oportunidades de aprendizagemque os jovens oriundos das escolas dos filhosdas classes média e alta e concorrem em situa-ção desigual. A primeira ação afirmativa, decaráter provisório e emergencial são as cotas,que visam colocar na universidade, concorren-do com candidatos de igual procedência esco-lar, jovens oriundos da escola pública, que nãotiveram oportunidade de receber um ensino dequalidade que os capacitasse a concorrer comos alunos egressos de escolas da elite. Como amaioria dos jovens egressos das escolas públi-cas de ensino médio são afro-descendentes, emsua grande maioria, essa medida visa repararuma exclusão intencional, perpetrada pela de-sigualdade intencional produzida no nívelinstitucional de seleção dos currículos, que ofe-rece uma escola pública de péssima qualidadee em nome de um mito de democracia, apre-goa oportunidades iguais de acesso a um gru-po social que não tem oportunidades iguais deeducação.

Contribuir para a inclusão é portanto pro-curar conhecer e apoiar as medidas democráti-cas que timidamente estão sendo inseridas nasociedade brasileira, através da luta do movi-mento negro e outros movimentos sociais de-mocráticos, para reparar injustiças passadas epresentes, contra a grande maioria da popula-ção brasileira, a afro-descendente.

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Ana Celia da Silva

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Recebido em 00.00.02Aprovado em 00.00.02

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Jussara Midlej

POLÍTICAS EDUCACIONAIS BRASILEIRAS

E A FORMAÇÃO CONTÍNUA DOS PROFESSORES

DA EDUCAÇÃO BÁSICA NORDESTINA

Jussara Midlej *

RESUMO

O texto discute a questão da formação contínua de professores do ensinofundamental no Brasil e na Região Nordeste em especial, destacando aparticipação da agência internacional do fomento – o Banco Mundial(BIRD) – nas políticas educacionais brasileiras dos anos noventa. Em se-guida, a ênfase recai na tentativa de desvelamento das intencionalidades,reciprocidades e das realidades de um programa implementado nessa Re-gião no decorrer da década de 90, realizando uma breve análise sobre o seudesempenho, principalmente voltada para a camada da população social-mente excluída. Por último, recorre à Lei de Diretrizes e Bases da Educa-ção Nacional 9.394/96 no sentido de apresentar novas vertentes à prepara-ção permanente de professores que atendam à configuração mundial con-temporânea e às especificidades brasileiras e nordestinas.

Palavras-chave: Formação contínua de professores – Ensino fundamental– Políticas educacionais – Exclusão social

ABSTRACT

BRAZILIAN EDUCATIONAL POLICIES AND THE CONTINUOUSQUALIFICATION OF TEACHERS OF BASIC EDUCATION INTHE NORTHEAST

The article discusses the issue of continuous qualification of basic educationteachers in Brazil and especially in the Northeast of Brazil, emphasizingthe participation of the international fostering agency – the World Bank(BIRD) – in the Brazilian educational policies in the 1990s. Next, theemphasis shifts to the attempt to unveil the intentions, reciprocities andrealities of a program implemented in this region along the 1990s, makinga brief analysis of its performance, mainly aimed at the excluded social

* Pedagoga, especialista em Alfabetização e em Ludopedagogia. Funcionária da Secretaria da Educação doEstado da Bahia / Instituto Anísio Teixeira. Mestranda em Educação e Pesquisa da Université du Quebec àChicoutimi do Canadá, conveniada com a Universidade do Estado da Bahia - UNEB - Campus VII, Senhordo Bonfim, Bahia. Aluna especial do Doutorado da Universidade Federal da Bahia, 2002-1. Endereço paracorrespondência: Rua Jardim João XXIII, 189, Apartamento 012, Brotas - 40240.280 Salvador/BA. E-mail: [email protected]

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Políticas educacionais brasileiras e a formação contínua dos professores da Educação Básica nordestina

Um breve olhar sobre os objetivos ea atuação do Banco Mundial no setoreducacional do Brasil no decorrer dadécada de 90

Neste final/começo de século concretiza-se aglobalização como uma nova forma de acumu-lação e de regulação do capital, constituindo-seem sistema mundial, assumindo proeminência aideologia neoliberal cujas premissas básicas são:defesa de um mercado livre condutor de todasas formas de interação social, desregulação dasatividades econômicas, estabilidade monetária,redução de benefícios sociais, estabelecimentode uma política de privatizações, enxugamentoda máquina administrativa, celebração do pri-vado em detrimento do público, valorização daprodutividade (...). (MOREIRA, 1997, p.93-94).

O Ministério da Educação (MEC) vem am-pliando e consolidando, no Brasil, suas políti-cas educacionais desde o ano de 1971 (quandofoi firmado o 1º acordo com o Banco Mundial– BIRD – no valor de US$ 8,4 milhões) no sen-tido de elevar o nível de satisfação das neces-sidades básicas de aprendizagem. A palavrabásica já sugere uma concepção: que serve debase, basilar, fundamental, essencial (Dicioná-rio Aurélio, 1993, p.240). A nova Lei de Dire-trizes e Bases da Educação Nacional (LDBENN. 9.394/96), no seu Artigo 21, estabelece quea Educação Básica passa a ser formada pelaeducação infantil, ensino fundamental e ensi-no médio; este último, passando a integrar aetapa final do processo educacional que a Na-ção considera como básico para o exercício dacidadania, deve funcionar no sentido de forne-cer ao educando, meios de progredir no traba-lho, na prática social e em estudos posteriores(Art. 22, LDBEN 9.394/96).

Ao agregar financiamentos do Banco Mun-dial para a educação básica brasileira desde os

anos 70, criaram-se no país expectativas quantoà sua capacidade para a correção de problemasessenciais de educação, apoiando com recursosadicionais o desenvolvimento do setor educacio-nal do país. Fonseca (2001, p.14-20) assim des-creve o Banco Mundial e suas atribuições:

Na qualidade de agência internacional de fomen-to, atribui-se a finalidade precípua de cooperarpara o desenvolvimento dos países-membros,atuando como um fundo capaz de prover finan-ciamentos para projetos prioritários. (...) embo-ra a política de crédito do Banco se autodeno-mine ‘cooperação’ ou ‘assistência técnica’, sãoempréstimos do tipo convencional, em razão doscustos relativos aos serviços e também da rigi-dez das regras e pré-condições financeiras e po-líticas próprios ao processo de financiamentocomercial .

Ainda que a política de financiamento doBIRD se autoproclame cooperativa ou de assis-tência técnica, os empréstimos concedidos sãodo tipo convencional no qual, num sistema decontrapartida, o Brasil participa com 50% dosrecursos, e o Banco com a outra metade, nummodelo de co-financiamento. Um de seus acor-dos aconteceu no campo de formação contínuapara professores das séries iniciais do ensinofundamental voltado para o desenvolvimento daEducação Fundamental do Nordeste, o Projetode Educação Básica para o Nordeste.

Na Bahia, após uma fase de preparação téc-nica e assinatura de acordos, o sexto projeto definanciamento do BIRD ao Ministério da Edu-cação foi executado, do início de 1994 até 1999,pela Secretaria da Educação do Estado da Bahia(SEC), através do seu órgão Instituto AnísioTeixeira (IAT) responsável pela sua política deformação nessa área. Segundo dados de rela-tórios técnicos, foram atendidos, de 1994 a1996, 24.676 professores, em 1997, 12.640 ede 1998 a 1999, 9.841 professores.

strata of the population. Finally, it investigates the National EducationPremises Law no. 9.394/96 in order to present new branches in thequalification of teachers that correspond to the current world profile andthe peculiarities in Brazil and in the northeast.

Key words: Continuous qualification of teachers – Basic education –Educational policies – Social exclusion

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Jussara Midlej

As preocupações que deram sustentação aesses programas estão relacionadas com a eqüi-dade social e a educação para todos. O termoeqüidade refere-se à disposição de reconhecer odireito de cada pessoa, levando-se em conside-ração o acesso à educação, à saúde, ao empre-go, a um meio ambiente saudável, e o combatea todas as formas de preconceito e discrimina-ção de quaisquer ordens. Em consonância comesse conceito de eqüidade social aparece nosestudos produzidos pelos organismos internaci-onais ligados à Organização das Nações Unidas(ONU) e pelos promotores1 da conferência-mar-co das reformas educacionais na década de 90 –Conferência Mundial Sobre Educação para To-dos, realizada em Jomtien, na Tailândia em 1990,a possibilidade de estender benefícios obtidospor alguns grupos sociais à totalidade das popu-lações. A grande questão reside no fato de quenem sempre a esta ampliação correspondem, namesma proporção, as despesas públicas alocadaspara fazer frente às demandas da maioria da po-pulação (gestão da pobreza) e às exigências con-temporâneas dos setores produtivos (gestão dotrabalho). Assim, nesses últimos anos dehegemonia neoliberal, infelizmente, educaçãocom eqüidade acabou significando apenas a ofer-ta de um mínimo de instrução indispensável àspopulações economicamente carentes visandoa sua inserção, também mínima, no sistema pro-dutivo. A oferta de educação básica à popula-ção tem significado, em tese, possibilidade deinclusão dos trabalhadores nos processos pro-dutivos, ampliando as relações entre educaçãoe trabalho nas economias globalizadas, e o panode fundo dessa referência continua sendo a ques-tão econômica e os elevados níveis de exigên-cia das empresas multinacionais (OLIVEIRA eDUARTE, 1999, p.51-52; FAVERO, s.d., p.4;FONSECA, 2001, p.18).

No entanto, os resultados concretos dessesacordos internacionais, voltados para o desen-volvimento da educação fundamental em re-giões mais pobres do Brasil, indicam que a co-operação contribuiu pouco para alterar o qua-dro de inserção da população excluída no mer-cado de trabalho: o que se tem constatado éque os pobres estão cada vez mais pobres2, con-tinuam atrasados na sua escolaridade e não sa-bem ler (no último Exame Nacional do EnsinoMédio realizado pelo MEC os alunos brasilei-ros obtiveram, no quesito leitura, o pior desem-penho). Para o Ministro da Educação a quedanos índices não decorre de uma piora da esco-la, mas sim do fato de 66% do total de alunosinscritos no ENEM 2001 provirem do segmentopúblico (GERHARDT, 2002, p.28).

Da mesma forma, os resultados do Progra-ma Internacional de Avaliação de Alunos, co-nhecido como Pisa – que analisou o desempe-nho em leitura de adolescentes em 13 países –apontou o Brasil no último lugar no rankingmundial. A maioria dos alunos só conseguelocalizar informações explícitas num texto –não faz relações entre as várias informações aícontidas. E isso é deveras grave e lastimável.

O atual cenário econômico-social brasileiroreflete essa realidade no aumento dos índices deanalfabetismo, de trabalho informal e de empre-go precário, nas quedas dos salários, na taxa cres-cente de desemprego, gerando conseqüentesampliações de índices de exclusão social.

Neste cenário, a imprensa brasileira (O Glo-bo, Rio de Janeiro, 06.12.01), ao noticiar osresultados desse exame, coloca no cerne dosresultados do Exame Nacional do Ensino Mé-dio (ENEM) a figura do professor na própriamanchete da reportagem: Falta de qualidadeno magistério é a falha mais séria no ensinoprivado e público. A formação dos profissio-nais de educação vem para a pauta, novamen-te, desta vez com a afirmação do professor1 Promotores da Conferência de Educação para Todos

em Jomtien, na Tailândia, em 1990, pela Organizaçãodas Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cul-tura (UNESCO); Fundo das Nações Unidas para a In-fância (UNICEF) e Banco Mundial (BIRD). Tal eventoteve como perspectiva primordial definir metas educaci-onais para os países pobres terceiro-mundistas em con-sonância com a nova dinâmica global.

2 Enquanto, em 1995, 33,9% dos brasileiros viviam emsituação de pobreza ou indigência, em 1999 essepercentual subiu para 34,1%, conforme dados do Insti-tuto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea: Rio de Ja-neiro, 1999 (ECONOMISTA... Folha de São Paulo, p. 3,27 mar. 2001. Folha Especial Trainee).

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Políticas educacionais brasileiras e a formação contínua dos professores da Educação Básica nordestina

Haroldo Vianna – pesquisador de educação daFundação Carlos Chagas – à revista Época(10.12.01): “O que falta é professor preparadopara ensinar o aluno a ler e compreender o quefoi lido. O aluno conhece o conteúdo das ma-térias, as regras gramaticais, as fórmulas mate-máticas, mas não consegue elaborar um pro-blema ou redigir um texto.” Têm sido os pro-fessores e seus alunos, portanto, as grandes ví-timas de desencontros históricos entre a impor-tância da função docente e a sua crescente des-valorização social: um censo recente feito peloMEC mostrou que só a metade dos professorespossui nível superior completo, com uma mé-dia salarial nacional, incluindo a rede particu-lar, de modestos R$ 530,00 mensais. Perdem-se, nesses meandros, os esforços do sistemaeducacional em renovar os currículos e os ma-teriais didáticos que, desde a segunda metadedos anos noventa, vêm sendo repensados eaperfeiçoados por comissões nomeadas peloMEC. A formação deficitária dos professores,a sobrecarga de trabalho advinda das reformas,a falta de tempo e oportunidade para as leitu-ras e para o estudo sistematizado aliados aossalários cronicamente baixos, desestimulam-nos a analisar as Diretrizes Curriculares Naci-onais, de modo individual e/ou coletivo, a fimde adaptá-los à realidade de seus alunos e am-pliar sua profissionalidade. Desse modo, mui-tas possibilidades de avanço se perdem.

O sistema governamental insiste em apon-tar o despreparo dos professores como a causaúnica do fraco desempenho dos estudantes,comprovado também pela avaliação efetivadapelo Sistema Nacional da Educação Básica(SAEB) do Instituto Nacional de Estudos ePesquisas Educacionais (INEP). Parece maissimples, às políticas públicas de educação, atri-buir a culpa do que está ocorrendo somente àcategoria docente sem adentrar pelas raízes his-tóricas de desvalorização, degradação e avilta-mento dessa profissão, às intencionalidadeshegemônicas do sistema, às condições em queoperam as instituições superiores de ensinoencarregadas da formação dos profissionais daeducação e à falta de uma profissionalizaçãodocente adequada – contínua e acompanhada

– que responda aos desafios dessa sociedadecontemporânea.

De pouca valia tem sido o discurso da polí-tica oficial de formação de um domínio espe-cífico de uma lista de competências com ca-racterísticas muito estreitas e uma polêmicaavaliação de desempenho, demonstrando suaineficácia na melhoria da infra-estrutura mate-rial e didática das escolas públicas, que agoni-zam. Diante disso, cabe, nessas análises,contextualizar o problema num âmbito maisamplo e crítico do que creditar aos professorestodo o ônus do fracasso explicitado. E para issoé preciso haver e acontecer uma formação quedê conta de ampliar as possibilidades media-doras dos professores as quais atendam às exi-gências que a nova LDB coloca para a educa-ção nacional.

A fim de adentrar com maior segurança emtais assertivas, neste ensaio me proponho a fa-zer um recorte e analisar a questão dessa for-mação contínua, tomando como referência asações do Projeto de Educação Básica para oNordeste, no Estado da Bahia, implementadasdurante a segunda metade dos anos 90 e volta-das para os professores das classes iniciais doensino fundamental.

O Projeto Nordeste na formação do-cente de professores do ensino fun-damental da Bahia: intencionalida-des, reciprocidades e realidades

O objetivo principal do sexto financiamen-to do BIRD (1994-1999) – o Projeto de Educa-ção Básica para o Nordeste, comumente deno-minado Projeto Nordeste – é assim explicitadoem seus documentos:

Melhorar a qualidade do ensino, tornando maiseficiente o processo de gerenciamento do siste-ma educacional, elevando as taxas de aprova-ção e reduzindo as taxas de repetência e de eva-são dos alunos da 1ª à 4ª série do Ensino Funda-mental. (BRASIL, Termo de Referência, 1998).

Tal objetivo demonstra fina sintonia com ocenário educacional brasileiro nesse final deséculo, em especial o da Região Nordeste, pal-

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co da citada ação. Sua população convive comgraves problemas estruturais – massas urbanase rurais espoliadas, pobreza extrema da maio-ria, trabalho infantil, desigualdade, exclusão –que incidem diretamente no rendimento do sis-tema escolar.

Senão, vejamos: de acordo com os indica-dores sociais de 1999 do Instituto Brasileirode Geografia e Estatística (IBGE), tem-se noBrasil, ainda nesse início de século, um altoíndice de analfabetos (em torno de 15 milhõescom idade igual ou superior a 15 anos). Ao ladodisso, outros dados, desse Instituto, tambémdatados de 1999, indicam que 24,6% da popu-lação urbana e 56,2% da população rural bra-sileira são formadas por analfabetos funcionais– pessoas que não completaram os quatro pri-meiros anos do ensino fundamental ou que têmdificuldades para ler, compreender e escrever.Afora isso, não se superou, ainda, o estrangu-lamento provocado pela evasão e pela repetên-cia ao longo das últimas décadas nem o grandenúmero de excluídos do acesso à escola e aqualquer estrutura econômica e social do país– em especial das Regiões Norte e Nordestebrasileiras. E isso, independentemente da fai-xa etária (configura-se o Nordeste, segundodados do citado IBGE, como a região de me-nor índice de alfabetização do país: 72,5%). Nomesmo diapasão, o índice de Gini, quecontabiliza a desigualdade social de um país,aponta o Brasil como ocupante do 79º lugarentre os países do mundo.

Nesse contexto, os professores da Educa-ção Básica vivem em estado de proletariza-ção crescente ao terem que se submeter até atrês turnos de trabalho, tendo diante de si tur-mas imensas e estressantes para, ao final domês, receber um salário que mal dá para co-brir os custos mínimos de uma vida simples,frugal. Não há como considerar que o nó daqualidade da educação esteja unicamente noprofessor diante dessa realidade: muitas ve-zes, entre se alimentar e comprar livros, a op-ção fica restrita à primeira, por motivos maisdo que óbvios. Como fica esta situação, se oprofessor é um dos profissionais que mais ne-cessidade tem de se manter atualizado, preci-

sando aliar a tarefa de ensinar à de estudarcom regularidade e constância?

O MEC, ao investir na formação de pro-fessores do citado segmento nos anos 90,priorizava a dimensão da capacitação em ser-viço na qual eles eram tratados como merosexecutores das diretrizes emanadas de cimapara baixo e sem muita sintonia com o cotidi-ano da escola; tais programas apresentaramlimitações graves que não ajudaram a sanaras dificuldades dos docentes, além de coloca-rem em evidência uma dimensão de treina-mento em serviço em detrimento de uma po-lítica de formação profissional includente, re-flexiva, crítica e permanentemente acompa-nhada e retroalimentada. Em avaliações rea-lizadas pelo MEC, desde 1980, evidenciou-seque, encerradas as atividades de uma capaci-tação modular, as instituições escolares vol-taram às rotinas anteriores, certamente portudo o que foi apontado acima, especialmentepor descontinuidade da ação formadora e porfalta de um processo de acompanhamento àstarefas docentes cotidianas. Fica evidente queessas políticas, ao atenderem aos ditames tra-çados pelo Banco Mundial – na forma e noconteúdo – acabaram por restringir o direitoda categoria dos profissionais de Educação auma política de formação ampla e permanen-te, democrática e de qualidade, mesclada porum tempo/espaço para estudos coletivos a queela faz jus (LDBEN 9.394/96 Artigo 67 incisoII e V).

Na realidade, os denominados programas decapacitação dessa última década se restringi-ram a aligeirados e fragmentados momentos deaperfeiçoamento, com o agravante de ocorrerem detrimento do atendimento aos alunos, quegeralmente ficavam sem aulas enquanto seusprofessores estavam nos cursos. Essas capaci-tações, de acordo com essa concepção, não têmrepercussões substanciais na carreira nem natarefa do professor ou coordenador pedagógi-co que delas participam.

Vale ressaltar que tem sido sempre a regiãoNordeste a mais beneficiada com os emprésti-mos do Banco Mundial desde o início dos anos90 e, nesses moldes, poucas têm sido as mu-

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danças substanciais registradas: estudos3 reali-zados evidenciam que o modelo de formaçãoadotado não correspondeu às exigências con-temporâneas da sociedade do conhecimento e,diante dos investimentos feitos, pouca resso-nância teve nas salas de aula, certamente portodos os motivos citados. Assim, ao se encer-rarem as atividades de uma ação fragmentada,aligeirada e modular, sem ao menos um cuida-doso acompanhamento posterior, a prática es-colar voltava à rotina anterior configurando-seos professores e, em última instância, os alu-nos, como as maiores vítimas desse processo.Moreira (2001, p.19) observa que, no final dosanos 90, diante das evidências de pouca valiado modelo de formação implementado na re-gião nordestina – os resultados positivos fica-ram restritos a um ou outro município ou a de-terminadas escolas – talvez por isso se tenhadefinido por encerrá-lo e substituí-lo por ou-tras ações mais próximas do contexto escolar,mas, ainda assim, reforçando o aligeiramentono conteúdo e no tempo de formação, que con-tinua sem contar com um acompanhamentotécnico-pedagógico permanente e com perío-dos reservados a estudos, planejamento e ava-liação, direitos inalienáveis dos professores.Tais períodos, como preconiza a Lei 9.394/96,deveriam estar incluídos nas suas cargas de tra-balho no sentido de suprir as necessidades deestudo, discussões coletivas e aprimoramentoda docência. A realidade é que os docentescontam apenas com duas horas semanais deatividades de coordenação, sendo que elas nãosão suficientes para suprir mesmo as deman-das mais prementes.

Saviani (1992, p.35) faz um alerta muitosério sobre as conseqüências dessas políticasna aprendizagem dos alunos: “(...) o sintomamais alarmante do fracasso da escola públicatalvez não esteja nos que pulam fora, e sim nosque permanecem dentro e não aprendem nada.

São os analfabetos funcionais (...) embora se-jam nominalmente alfabetizados, na prática sãoincapazes de consultar uma lista telefônica ouler uma bula de remédio.”

Nessa inépcia para o uso da linguagem es-crita, a precariedade de raciocínio e reflexão crí-tica fica patente. Exigir de um professor – comuma formação precária, desvalorizado e mal re-munerado – que cumpra a sua tarefa de modo aampliar essas possibilidades é, também, com-plicado. Dados divulgados no início de 1999,pelo MEC, demonstram que o Nordeste brasi-leiro tem o maior número de professores quenão completaram o ensino fundamental (44,7 mildos 63,7 mil professores nessa situação são nor-destinos). Além dos problemas de qualidade deensino, as condições físicas das escolas dessaregião figuram como as piores do país: 4,6% dosalunos nordestinos estudam, ainda, em escolasque não possuem energia elétrica e 2% em es-colas sem água encanada (AGÊNCIA GLOBO,1998). Na Bahia, segundo dados de pesquisarealizada em 1998 (BAHIA. MEC/BIRD/SEC/IAT) a situação é semelhante às dos demais es-tados do Nordeste: 70% das escolas observadasnão contavam com sala dos professores, 86%não tinham biblioteca nem quadra de esporte,60% não dispunham de área coberta para recre-ação, percebendo-se em quase todas elas umapobreza material preocupante nas suas salas deaula (os materiais mais utilizados eram o qua-dro, o giz e os cadernos dos alunos) o que seconfigura como um forte indicativo da carênciade outros recursos.

Diante das providências precárias que malatingem o verdadeiro âmago do problema, háevidências sérias de que não interessa às polí-ticas públicas sustentarem a consolidação dacidadania popular através da educação, até por-que isso tem como um dos efeitos aumentar acapacidade popular de controlar as ações dopróprio governo. É patente um boicote tecno-crático contra a educação, já que é mais fácilmanobrar a massa ignorante do que enfrentar acidadania organizada (DEMO, 1994, p.90).Nesse contexto, insere-se perfeitamente a ca-tegoria dos professores: não há, implicitamen-te, da parte de quem detém a hegemonia das

3 Vide dados de Relatórios Técnicos nas referências:BRASIL. MEC/BIRD/UNICEF. BASTOS & PORTELA,1996; BRASIL. MEC/BIRD. BASTOS & PORTELA,1998; BAHIA. MEC/BIRD/SEC/IAT, 1998; BAHIA.MEC/BIRD/SEC/IAT. 1999.

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políticas educacionais, interesse em aperfeiço-ar de modo permanente, crítica e reflexiva asua formação, no sentido de colaborar na orga-nização política desta. Até porque isso signifi-caria ampliar suas consciências e suas práticasde construção de cidadania popular.4

A partir de um documento produzido pelaSecretaria de Ensino Fundamental – Referen-ciais para Formação de Professores – virou lu-gar comum, nos meios educacionais, falar-sena apropriação de competências profissionaise de profissionalização da categoria. No entan-to, um exame mais atento dessas premissas,neste documento, mostra que tais concepçõesestão atreladas a características muito estreitasde investigações do desempenho profissionaldo professor com fins de progressão de carrei-ra. É preciso que haja, por parte dos formado-res de professores um exame crítico, cuidado-so, antes de encampar tais discursos de cunhoneoliberalista em suas tarefas, refletindo sobreas conseqüências de suas ações. É necessárioreconhecer que os professores precisam muitomais do que uma mera atualização pedagógicaacrítica, num tempo fragmentado e aligeirado:a formação necessita ser permanente, numcontinuum, em locais apropriados para tal eestar centrada em situações problemáticas, re-ais, ligadas à instituição educativa na qual oprofissional atua, sem perder de vista a cons-tante tematização da prática de cada um, numcontexto reflexivo, para que esta seja signifi-cativa e reverbere para a escola, numa melhoriadas condições de ensino e aprendizagem.

Pelos ditos e não-ditos, constata-se que hámesmo pouco interesse em vencer questõeshistóricas tão complexas como as que se apre-sentam nas políticas públicas educacionais;pelo contrário, até porque sua manutenção ser-ve a uma minoria privilegiada que deseja a con-tinuidade de uma situação de iniqüidade5 para

se beneficiar dela. Sobre isso, o jornal A TAR-DE, de Salvador, Bahia (Coluna Tempo Pre-sente, 11 jan. 2001, p.2), publica o seguintecomentário:

Soa no mínimo absurdo o veto do presidenteFHC ao incremento de gastos com o ensino noBrasil. Ao sancionar o Plano Nacional de Edu-cação, o presidente vetou o artigo que previa oaumento de gastos com a educação de 5% para7% do PIB. Não há justificativa em “economês”,que nos faça entender essa atitude. Somos umpaís com muitos analfabetos e o que mais preci-samos é de educação. (...) há países, bem na nossafrente, que gastam muito mais do que os veta-dos 7% do PIB em educação e talvez por essarazão estejam mais adiantados do que o nossoriquíssimo, mas mal administrado Brasil. (...)Quando se fala no eterno exército de analfabe-tos do Brasil, sempre nos vem à mente a suspei-ta: a quem interessa a imensa população deiletrados?

Vê-se o quanto é grave a situação da educa-ção no Brasil. Na realidade, para que pudessehaver maior identificação do sistema públicode ensino com os interesses populares e fugirao fatalismo biológico ou sócio-cultural, seriapreciso repensá-lo por inteiro: os gastos comesse segmento envolvendo as precaríssimascondições de trabalho com que se deparam elidam os professores, assumindo como priori-dade a discussão de uma política nacional glo-bal de formação dos profissionais da educação,dando-lhe o aprofundamento que o movimen-to da categoria vem reivindicando ao longo desua história. O de que se necessita com urgên-cia vai na direção de implementação de pro-gramas de formação permanente, acompanha-mento contínuo e próximo à prática escolar nadupla perspectiva do professor individual – emprocesso de crescente autonomia – e de aten-dimento ao coletivo docente numa forma deautoformação participada, na melhoria salarial,na revisão nos planos de carreira, na melhoriadas condições físicas das instituições, na dis-ponibilidade de carga horária remunerada paraa dedicação dos professores aos estudos. Alémde tudo isso, necessário se faz um investimen-to maciço numa completa renovação da estru-tura hierárquica da administração escolar, na

4 Cidadania popular é aqui entendida como um proces-so interno que ocorre na prática social, através da cons-trução da identidade político-cultural das massas urba-nas espoliadas (GOHN, 1999, p.16-17).5 Define-se iniqüidade “(...) não em termos de pobreza,mas de exclusão social (...) que produz vastas e distantesmassas silenciadas.” (FAVERO, s.d., p.1)

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tendência homogeneizadora curricular (por ora,repleta de intencionalidades hegemônicas), norevigoramento metodológico, nos equipamen-tos adequados ao espaço físico dos estabeleci-mentos, enfim, em todo o processo educativo,adaptando-se às necessidades e expectativas decidadãos ameaçados de exclusão, mas que po-dem dispor de recursos sociais e políticos paraenfrentar as ameaças (SINGER, 1996, p.35-47;GARCIA, 1992, p.24-25).

A citada ineficiência das políticas educaci-onais implementadas, que trazem no seu bojocertas preocupações e pseudoprovidências queestão longe de ser significativas para sua po-pulação, transparece especialmente no Nordes-te, caracterizado como uma das regiões brasi-leiras que menos apresentou avanços na áreade educação nos últimos 15 anos. Novamenteo Jornal A TARDE, na sua edição de 26.07.1998,p.22, publicou uma reportagem – que, pelo seuteor, está bem inserida na realidade deste anode 2002 – sobre as condições da formação deprofessores que atuam nas séries iniciais doensino fundamental, na época em que foiimplementado o Plano de Trabalho Anual 1997do Projeto Nordeste. Nele, o MEC, através daprofessora Maria Helena Guimarães de Castro– presidente do Instituto Nacional de Estudose Pesquisas Educacionais, INEP – afirma que:“(...) a região Nordeste é a que mais preocupa,porque os avanços lá são muito lentos, devidoàs condições sociais, (...) e seus problemas crô-nicos, difíceis de serem resolvidos. (...) dá-se aela uma atenção especial para tentar reduzir adefasagem com o resto do país, mas os avan-ços de tão lentos, só deverão ser sentidos da-qui a uns quatro ou cinco anos.”

O tempo passou, e a citada reportagem, quefoi publicada no segundo semestre de 1998, estáa completar quatro anos. As precárias condi-ções citadas na reportagem continuam as mes-mas (senão piores) e com poucas possibilida-des de reversão do que aí está, em apenas umano, como era previsto. A experiência vem de-monstrando que as vantagens oferecidas pelosorganismos internacionais não se concretizam.O exame dos projetos do ponto de vista de suaeficiência interna, isto é, em relação ao alcan-

ce das metas estabelecidas, ao tempo despendi-do para a execução e às despesas decorrentes,mostrou um desempenho aquém do limite acei-tável. (FONSECA, 2001, p.19)

Pouco de substancial e significativo – dian-te de tão dura realidade – foi e está sendo feito,o que corrobora e sustenta que a dita educaçãotransformadora é muito mais um abusoterminológico do que uma prática real. Costa(1994, p.45), de um modo muito pertinente, atéinquire a situação: “Pode-se confiar num mo-delo econômico que descreve o conceito deeqüidade como distribuição de riqueza e direi-tos ao mesmo tempo em que supõe umaexcludência social?”

Não se defende aqui a rejeição da participa-ção, nem das propostas do BIRD (principal-mente no que diz respeito à formação docentede modo permanente), mas defende-se umreexame crítico nos fundamentos das contrapar-tidas econômicas brasileiras, dessas propostase recomendações, essencialmente quando es-sas recomendações são impostas mais comocondição do que simples conselhos (DEMO,1994, p.92; CORAGGIO, 1996, Cap.3; FON-SECA, 2001, p.19-20).

Levando-se em conta os encargos financei-ros que o país assume em decorrência dos con-vênios firmados, torna-se necessário analisaras reais condições em que essas políticas deformação de professores das séries iniciais doensino fundamental estão sendo implementa-das, já que o sistema de aperfeiçoamento mo-dular adotado pelo Projeto Nordeste na déca-da de 90, restrito geralmente a duas áreas docurrículo – Língua Portuguesa e Matemática –repercutiu de modo insignificante na transfor-mação do trabalho docente, segundo os estu-dos já citados (BAHIA. MEC/BIRD/SEC/IAT,1998 e 1999). O fato de não estarem surtindoos efeitos esperados (já que a situação educa-cional pouco tem se transformado) leva a cons-tatar que o modelo de formação, implementadonos anos 90 na parceria MEC/BIRD, não foiadequado às reais necessidades do sistema edu-cacional nordestino.

Nos moldes adotados nesse princípio demilênio/século, mudaram-se os cenários das

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ações: a formação hoje se dá nas próprias es-colas, o que se configuraria até como mais ade-quada, não fosse o ambiente inapropriado e malaparelhado para uma ação dessa natureza; há oagravante, ainda, de ela continuar sendo feitaapenas de momentos estanques – e com am-plos prejuízos dos alunos, que ficam sem seusprofessores em classe. Além de tudo isso, ademanda maior de acompanhamento sistemá-tico às práticas docentes, no contexto dos pro-fessores, aliada ao cumprimento da Lei de Di-retrizes e Bases no que se refere aos períodosremunerados reservados a estudos, continuafora de pauta, infelizmente. Afinal, uma políti-ca de valorização profissional deve incorporarum caráter social e configurar-se, definitiva-mente, como um direito inalienável do profes-sor contribuindo para o resgate das suas com-petências profissionais, bem como para a(re)construção da escola pública de qualidade.

É o caso de se inquirir: é preocupação dogoverno brasileiro reverter o fracasso da edu-cação básica brasileira investindo na conces-são de períodos remunerados de estudo e qua-lificação/valorização profissional e numa polí-tica salarial que dignifique a importância daprofissão perante a sociedade? Se é, por quecontinua a obedecer aos modelos imperativosdos financiadores externos, sem a preocupa-ção de levar em consideração as necessidadesde uma formação profissional contínua e per-manentemente acompanhada e apoiada?

Demandas para a formação docentecontínua na atualidade 6

A realidade é que nos acostumamos a viver emdois planos (...) e continuamos a ser (...) a naçãode dupla personalidade, a oficial e a real. (Aní-sio Teixeira, apud BRZEZINSKI, 1999, p.81).

Estando atentos de que a sociedade tem co-locado a escola mais a serviço da manutenção

da ordem vigente do que da promoção dos seusmembros, os professores precisam estar cadavez mais conscientes das influências, das cren-ças, dos valores e dos conhecimentos que es-tão subjacentes aos programas de formaçãocontínua intencionalmente implementados soba orientação das agências internacionais (e dosmeios que estão a utilizar para veiculá-los). Navivência desse processo e nos seus fazeres pe-dagógicos, precisam tornar-se mais capazes derealizar constantes (re)leituras de sua atuação,no sentido de desvelar pressupostos implícitos– ficando atentos àqueles que já estejam explí-citos – à sua prática e transformar rumos, darnovos direcionamentos às suas ações cotidia-nas. Há que se sentir necessidade de ampliarações no sentido de combater a iniqüidade so-cial produzida por grupos hegemônicos queinsistem em banalizar a miséria e a exclusão.Assim, o professor, autogerenciando-se, preci-sa tornar-se consciente das crenças pessoais,dos valores, das concepções que estão influen-ciando seu fazer pedagógico para, a partir daí,promover modificações na sua prática profis-sional, tomar decisões de ação (DELVAL, 1990,p.75-78; FAZENDA, 1995, p.7-15).

Com base nas considerações até aquidelineadas, parece-me justo questionar a con-tinuidade dos acordos internacionais para osetor da educação brasileira com as caracterís-ticas realizadas até então, tendo no seu bojouma política educacional fincada mais em in-teresses econômicos do que sociais. Parece-meoportuno recomendar uma reflexão profunda,a partir de dados de realidade, sobre quais osmodelos de formação seriam mais adequadosao processo de cooperação internacional e àcausa da educação brasileira em suas particu-laridades, no atual momento. Diante da neces-sidade de se preparar professores para a novaconfiguração mundial e que atendam àsespecificidades brasileiras, é urgente fazer-seinvestimentos na profissionalização docente apartir de programas que envolvam as categori-as de professor mediador e reflexivo, em perí-odos reservados – devidamente remunerados– para encontros e estudos em atendimento àLDBEN 9.394/96. A vivência de um processo

6 Cada atualidade reúne movimentos de origem e deritmo diferentes: o tempo de hoje data simultaneamentede ontem, de anteontem, de outrora... (BRAUDEL, 1989,p.18-21).

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Políticas educacionais brasileiras e a formação contínua dos professores da Educação Básica nordestina

de reflexividade, devidamente acompanhadopor profissionais habilitados – da práxis peda-gógica – tende a fortalecer o profissional eajudá-lo a repensar e a reconfigurar as caracte-rísticas de sua profissão e, em conseqüência, asua atuação. A formação docente vista dessemodo configura-se como múltiplas ações deajustes à didática e às novas exigências da so-ciedade resultando numa ampliação da culturageral do professor e numa necessidade de cria-ção de novos domínios profissionais, produ-zindo uma capacidade de mudança geradora decrescente autonomia, consciência crítica e res-ponsabilidade. Tudo isso sem falar da aquisi-ção de novas destrezas cognitivas e metacogni-tivas para melhor agir na sala de aula, e da pro-moção de uma escola mais eficaz, rica em pos-sibilidades, mais feliz e democrática (POL-LARD e TANN, 1987, apud GARCIA, 1992,p.61-62).

Fica patente que urge uma luta mais consis-tente pela ampliação de possibilidades e pelarealização de um trabalho de formação docen-te que abranja a totalidade do ser humano emsuas dimensões física, afetiva e cognitiva, queimpulsione as pessoas a considerar novas so-luções para velhos problemas, além de refletirpara melhorar o que já existe, também ampa-radas na ressurreição da idéia e da prática dasolidariedade. Formação que contribua para aimplementação de uma nova postura ético-es-tética-valorativa da profissionalidade com baseem valores humanos fundamentais como a jus-tiça, a cooperação, a honestidade, o reconheci-mento da diversidade e da diferença, o respei-to à vida e aos direitos humanos básicos comosuportes de convicções democráticas (LIBÂ-NEO, 1999, p.9; GARCIA, 1992, p.62; SAN-TOS, 2000, p.168). Algo que passe por umarevisão e um realinhamento das característicasdos programas até então alinhados sob a batu-

ta dos organismos internacionais de fomento,que atenda e se atenha mais às questões sociaisespecíficas do Brasil do que essencialmente aosinteresses econômicos de uma maioria privile-giada.

Urge mais à categoria profissional docente:promover condições de revitalizar os debatescríticos no sentido de alargar o horizonte daconceituação de profissional de educação, am-pliar os saberes experienciados dos professo-res e suas consciências político-pedagógicaspara que possam realizar uma nova apreciaçãofilosófica de suas profissionalidades frente aocontexto sócio-político em que se encontraminseridos. Isso porque não pode demorar maisa realização de uma tarefa docente atenta e atu-ante em consonância com as demandas de umasociedade que precisa juntar educação e traba-lho para promover a dignidade da cidadanianum sentido bem freiriano, onde uma vidamelhor não pode estar dissociada de muitastentativas para diminuir os sofrimentos huma-nos, pela compreensão das forças que causamtais mazelas.

Espera-se, pois, que, a partir das conquis-tas de melhores condições de formação e exer-cício da profissão, os docentes possam se pre-ocupar não apenas com o conhecimento cog-nitivo dos alunos, mas, e principalmente, como processo de socialização e inserção destesem contextos onde se discutam as condiçõesde vida digna, o respeito mútuo e a solidarie-dade, a afetividade, a estética da sensibilida-de, o combate às iniqüidades e às oportunida-des diferenciadas de sobrevivência entre osseres humanos, buscando-se novas, variadase criativas formas de adentrar em âmbitos so-ciais mais produtivos, através de critériosmediadores pertinentes e necessários a umnovo tempo que pode e deve ser desejado econstruído por todos.

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Maria de Lourdes Pinto de Almeida

EDUCAÇÃO, MERCADO, E OS TEMAS TRANSVERSAIS

Maria de Lourdes Pinto de Almeida *

RESUMO

A implementação dos temas transversais pelo Ministério de Educação e Cultura– MEC, cuja proposta básica está colocada nos Parâmetros Curriculares Nacio-nais de 1998, visa dar um caráter crítico à educação, privilegiando a formaçãoda cidadania, calcada nas preocupações “éticas” e no “construtivismo” peda-gógico. Contudo, essa proposta só revela seu alcance e limite frente à análise darelação da educação com o mercado. É perante este que tal proposta encontraseu principal desafio na formação de um cidadão crítico e atuante. Não sabemosaté que ponto ela estaria em conformidade com as exigências do sistema econô-mico liberal, mas podemos indicar as afinidades entre ambas que limitariam oalcance dos objetivos propostos. A interação da educação com o mercado écomplexa e sua compreensão exige uma reflexão em vários vieses. Perante anoção de que o mercado é o único soberano, como acreditam os liberais e,conforme se tem proposto as diretrizes políticas nacionais recentes, a educaçãotem sido cada vez mais vista como um elemento da engrenagem do mercado aopreparar indivíduos para agirem conforme sua racionalidade, bem como ao setornar ela mesma uma mercadoria. Com isso a tendência das políticas liberais éa de suprimir a educação enquanto um bem público. A educação torna-se ape-nas mais um nó na “rede” chamada mercado. Frente a isso, a proposta dos temastransversais nada mais poderia promover do que a formação de recursos huma-nos, de trabalhadores polivalentes e de pessoas solidárias, visando incluir osexcluídos ao máximo possível, mas sem propostas e esperanças de transformaras estruturas produtoras da exclusão social.

Palavras-chave: Mercado – Temas transversais – Educação – Rede – Libera-lismo

ABSTRACT

EDUCATION, MARKETS, AND TRANSVERSAL THEMES

The implementation of transversal themes by the Ministry of Education andCulture - MEC, whose basic proposal is stated in the 1998 National CurriculumParameters, aims at giving a critical character to education, favoring the

* Pedagoga, mestre e doutora em Filosofia, História e Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp.Professora da Faculdade de Pedagogia do Centro Universitário Salesiano de Lorena - UNISAL e da Uni-versidade Paulista de Campinas. Professora do Mestrado do UNISAL. Coordenadora do Núcleo de Estu-dos e Pesquisas ‘História, Sociedade e Educação Salesiana no Brasil’ – HISTEDSAL, filiado ao HISTEDBR– Grupo Nacional de Estudos e Pesquisas ‘História, Sociedade e Educação no Brasil’. Endereço para cor-respondência: Av. Francisco Glicério, 1458, apto 34, Centro, 13013-140 Campinas/SP. E-mail:[email protected]

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Educação, mercado, e os temas transversais

A formação do cidadão ou “educação paraa cidadania” é o objetivo maior da implanta-ção dos temas transversais na prática pedagó-gica. O termo transversal refere-se à posiçãodos novos saberes em relação aos saberes tra-dicionais, como a matemática, as ciências na-turais e biológicas, as línguas. Esse novo sabernão deve substituir e nem mesmo ser apenassobreposto às disciplinas tradicionais; ao con-trário, deve permeá-las ou tornar-se, numa con-cepção mais radical, o eixo mais importante dagrade em função do qual os demais saberes searticulariam (Moreno, 2000). Isso tem suscita-do uma nova perspectiva para se enfocar a rea-lidade escolar, no que se refere aos princípiosdo ordenamento da grade curricular e, sobre-tudo, no que diz respeito à relação entre pro-fessores e alunos. O contexto social, econômi-co e histórico em que surge a proposta do tra-balho pedagógico com temas transversais noBrasil suscita uma questão básica: para queformar um cidadão crítico numa época em queo conformismo frente à hegemonia liberal e odogma econômico-político da supremacia domercado, como o eixo sobre o qual tudo mais

na sociedade deve estar subordinado, têm sidoimpostos a todos os quadrantes do mundo pelaglobalização?

Sugiro que a proposta dos temas transver-sais coadune-se com a visão liberal da escola namedida em que “a compreensão da sociedade ea participação social”, um dos “critérios para aescolha dos temas transversais” (BRASIL. Pa-râmetros Curriculares Nacionais, 1998, p.26),possa ser restringida em sua carga crítica, vol-tando-se apenas para a formação de trabalhado-res polivalentes capazes de trabalhar em equipee de se preocupar com questões morais, taiscomo discriminação, racismo, corrupção, com-promisso com atitudes saudáveis no que diz res-peito à alimentação, à sexualidade, bem comode conviver de forma tolerante, respeitosa e so-lidária com os outros, em especial, os excluí-dos. Tratar-se-ia de formar cidadãos capazes depromover e participar de trabalho voluntário, da-do o objetivo ético de desenvolver o espírito desolidariedade e, sobretudo, de formar sujeitoscapazes de enfrentar a precariedade do trabalhoassalariado e de se empenhar de modo polivalen-te e com espírito de equipe nas empresas.

formation of citizenship, shaped in “ethical” concerns and in pedagogical“constructivism”. However, this proposal only reveals its reach and limitationsfacing the analysis of the relationship between education and the market. Thisproposal finds its major challenge in the formation of a critical and actingcitizen. We do not know to what extent it would be in accordance with thedemands of a liberal economic system, but we can indicate the affinitiesbetween both which would prevent from reaching the proposed objectives.The interaction between education and the market is complex and itsunderstanding demands reflection upon several biases. With the notion thatthe market is the only sovereign, as liberal thinking believes and, as the currentnational political policies have been proposed, education has been more andmore often seen as an element in the gear of the market as it prepares individualsto act accordingly to its rationality, as well as becoming a merchandise itself.Thus, the tendency of liberal policies is to suppress education as a publicasset. Education becomes only one more knot in the “network” called market.Taking this into account, the proposal of transversal themes could promote nomore than the formation of human resources, of multitask workers and ofsolidary people, aiming at including the excluded ones as much as possible,yet without proposals and hopes of transforming the structures that generatesocial exclusion.

Key words: Market – Transversal themes – Education – Network – Liberalism

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Maria de Lourdes Pinto de Almeida

Contudo esse espírito de solidariedade éestranho ao pensamento liberal, que é baseadono individualismo e no egoísmo. Os temastransversais visam flexibilizar a grade curricu-lar, abrindo um espaço para um ensino crítico.Porém, eles têm sido um projeto que se desen-volve juntamente com implementação de pro-postas liberais para a educação. Propostas quevisam adequar o ensino às exigências da admi-nistração capitalista. Bianchetti (1996) desta-ca duas teorias como basilares nas propostasneoliberais. A primeira seria a do capital hu-mano. Segundo esta, a função da escola se re-duz à formação de recursos humanos para aprodução econômica: “nessa lógica, a articula-ção do sistema educativo com o sistema pro-dutivo deve ser necessária. O primeiro deveresponder de maneira direita à demanda do se-gundo” (BIANCHETTI, 1996, p.94). A outrateoria refere-se à redução da política à lógicado mercado, em que as políticas públicas pas-sam a ser premiadas (com a moeda políticacorrente, o voto) ou não, conforme a eficáciadas mesmas em oferecer os bens públicos. Omercado “(...) por um lado se preocupa com aorganização do aparelho de produção dos benspúblicos. Por outro com sistema de pressão,sanção e recompensa que determinam o com-portamento dos agentes que concorrem à pro-dução dos ‘bens públicos’(...)” (BIANCHETTI,1996, p.94). Com isso ocorre um fenômeno dedespolitização das mais diversas esferas da so-ciedade, aí incluída a escola e o próprio Esta-do. Assim, a reflexão sobre o programa de im-plantação dos temas transversais deve ser fei-ta, sobretudo, a partir da análise do pano defundo econômico e ideológico dos tempos deglobalização.

Para explicitar os papeis da educação nasociedade liberal contemporânea, faremos umbreve histórico das doutrinas liberais. Estas seapresentam sempre em contraposição às idéiasintervencionistas, que admitem a necessidadeda participação ativa do poder público na defi-nição das metas comuns e na correção dos de-sarranjos econômicos. Contudo, esse recorteentre “liberais” e “intervencionistas” não podeser estabelecido de forma radical, podendo ser

analisado a partir de matizes que delimitariamas mais diversas colorações de liberalismo ede intervencionismo, no sentindo de determi-nar as competências dos indivíduos, das em-presas e das organizações públicas, em especi-al do Estado, na definição do “bem comum”,que pode ser concebido tanto como um pontode partida, para os intervencionistas, como umponto de chegada, para os liberais.

A concepção de educação liberal difere daproposta educacional dos intervencionistas jus-tamente no que concerne ao papel do indiví-duo frente à comunidade. No primeiro caso, aeducação teria que preparar indivíduos com-petentes para atuarem politicamente nas diver-sas esferas públicas e, de certo modo, no con-trole das instâncias econômicas, a partir da re-gulamentação do mercado. Esse seria o princi-pal pilar do modelo democrático intervencio-nista, que o difere tanto do liberalismo quantodo modelo intervencionista centralizado e/outotalitário.

A retórica liberal tenta opor as referidas ten-dências econômicas como extremos irreconci-liáveis. Para Friedman (1977, p.21), “funda-mentalmente só há dois meios de coordenar asatividades econômicas de milhões. Um deles éa direção central utilizando a coerção – a téc-nica do Exército e do Estado totalitário moder-no. O outro é a cooperação voluntária dos in-divíduos – a técnica do mercado”. Assim, qual-quer tentativa política ou pública, mesmo quedemocrática, de controle do mercado soariacomo totalitarismo.

Na concepção liberal e neoliberal dá-se umaênfase aos indivíduos como agentes racionaiscuja realização dos interesses promoveria obem comum. Não vamos entrar na discussãodo que vem a ser o bem comum. Mas, para umliberal coerente, ele é sempre o resultado daagregação de escolhas individuais e o mercadoé exatamente o mecanismo natural articuladordessas escolhas. O liberal concebe o bem co-mum como um a posteriori. Assim, a educa-ção deve estar de certo modo articulada com aação individual, de modo a promover a suaracionalidade, preparando indivíduos aptospara atuarem competitivamente, conforme o

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Educação, mercado, e os temas transversais

funcionamento do próprio mercado. É frente aesse pressuposto que a educação torna-se umamercadoria e que se expande às escolas priva-das nos mais diversos níveis de ensino. Trata-se de preparar profissionais competitivos. Oensino é ao mesmo tempo um produto do mer-cado e o óleo que engraxa suas engrenagens,pois sem indivíduos bem preparados o merca-do tenderia a não funcionar bem, ou seja, sãonecessários profissionais qualificados para pro-mover a produção. Mas a oferta e o empregoda mão-de-obra que qualifica pelo ensino sub-mete-se também à lei do mercado e a suas cri-ses e desajustes. Por isso, já não nos surpreen-demos mais com os engenheiros desemprega-dos, vendendo cachorro-quente para sobrevi-ver. Esse fenômeno tem sido atribuído às no-vas exigências do mercado de trabalho, queagora é reticular e altamente flexível.

* * * *Apontaremos as características básicas des-

se novo mercado reticular, para o qual se exigea formação de trabalhadores polivalentes e ca-pazes de sobreviver à flexibilização e “precari-zação” do emprego. Para isto, faremos umacorrelação de elementos históricos e conceituaisque são básicos para se compreender o libera-lismo.

O liberalismo como o ideário do livre mer-cado tem encontrado defesas radicais, no sen-tido de se fazer valer a “maravilha da livre ini-ciativa privada”. Na sua vertente mais radical,propõe-se o princípio da redução máxima dopapel do Estado, ou o Estado mínimo. Trata-seda admissão da soberania do mercado que, con-forme seus gurus, impõe a privatização do en-sino em todos os níveis e a eliminação da in-tervenção política ou investimento do Estadonum setor que tem sido tão lucrativo, quandosubmetido à iniciativa privada.

O liberalismo surgiu em contraposição àsdoutrinas mercantilistas, que, mesmo admitin-do a limitação das regulamentações internas,eram mais favoráveis a uma política governa-mental ativa, destinada a aumentar a participa-ção da nacional nos mercados internacionais.Os liberais, a partir dos fisiocratas e de Adam

Smith (1985), radicalizaram o princípio da li-berdade interna, e ainda mais na esfera externa.

O credo liberal foi-se afirmando, graças àindustrialização, frente aos princípios da éticapaternalista católica e do mercantilismo. Nes-se sentido, o individualismo inerente ao libe-ralismo clássico tornou-se a ideologia domi-nante do capitalismo, cujos princípios norteado-res foram o egoísmo, a frieza calculista e oatomismo (HUNT & SHERMAN, 1977, p.56).Os indivíduos são concebidos como movidospelos impulsos egoístas de maximizar sua feli-cidade, isto é, diminuir o sofrimento e aumen-tar os prazeres. Segundo Smith (1985), o gran-de sistematizador do ideário liberal, devemosesperar o pão não da bondade do padeiro, masdo seu egoísmo, pois seria pensando em au-mentar os seus lucros e não em fazer uma boaação que ele se empenharia em produzir suasmercadorias.

No caso de quase todas as outras raças de ani-mais, cada indivíduo, ao atingir a maturidade, étotalmente independente e, em seu estado natu-ral não tem necessidade da ajuda de nenhumaoutra criatura vivente. O homem, entretanto, temnecessidade quase constante da ajuda dos seme-lhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmen-te da benevolência alheia. Ele terá maior proba-bilidade de obter o que quer, se conseguir inte-ressar a seu favor a auto estima dos outros, mos-trando-lhes que é vantajoso para eles fazer-lheou dar-lhe aquilo de que ele precisa. É isto o quefaz toda pessoa que propõe um negócio a outra.Dê-me aquilo que eu quero e você terá isto aqui,que você quer - esse é o significado de qualqueroferta desse tipo; e é dessa forma que obtemosuns dos outros a grande maioria dos serviços deque necessitamos. Não é da benevolência doaçougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que es-peramos nosso jantar, mas da consideração queeles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua auto-esti-ma, e nunca lhes falamos das nossas própriasnecessidades, mas das vantagens que advirãopara eles. (SMITH, 1985, p.50)

Nesse sentido, o papel da razão é fundamen-tal para se compreender a ação do indivíduo.Hunt & Sherman (1977, p.58-59) lembram aesse respeito que, apesar das motivações teremorigem no prazer e na dor, “as decisões que os

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indivíduos tomam quanto a que prazeres oudores buscar ou evitar baseiam-se numa avali-ação fria, desapaixonada, racional, das situa-ções”. A necessidade de avaliar todas as alter-nativas que determinada situação coloca paraque a escolha recaia sobre a que oferece “omáximo de prazer e o mínimo de dor” consti-tui a expressão básica da racionalidade econô-mica. Nisso reside a concepção calculista dateoria psicológica do liberalismo clássico, cujaênfase é dada à “avaliação racional dos praze-res e das dores e, em contrapartida, o menos-prezo pelo capricho, o instinto, o hábito, o cos-tume e as convenções” (HUNT & SHERMAN,1977, p.58-59). Nisso reside o próprio princí-pio da educação liberal proposta pelos filóso-fos iluministas.

Ao lado do egoísmo calculista, destaca-se aatribuição de uma inércia originária constitu-indo a natureza humana. Nesse aspecto, os fa-tores desencadeadores da ação seriam o prazere a dor. Como disse Bentham (apud HUNT &SHERMAN, 1977, p.57), a natureza submeteuo homem a dois senhores: a dor e o prazer. Sen-do que o prazer difere apenas quanto à intensi-dade, sem, portanto, haver diferenças de quali-dade entre ambos. A conseqüência prática dessadoutrina, escrevem Hunt & Sherman, seria opreconceito em relação aos trabalhadores, queeram vistos como incuravelmente preguiçosos.Eles citam o Reverendo Joseph Townsend, paraquem a fome exerceria não só uma pressão“mansa, silenciosa e incessante”, sendo a mo-tivação fundamental para a indústria, pois o“aguilhão da fome tangeria-os” para o traba-lho. Quanto aos homens superiores, os capita-listas, estes eram motivados pela ambição.Movido por essas forças inerentes aos indiví-duos, o mercado não necessitaria de nenhumaintervenção governamental. O livre jogo dasforças agindo nos indivíduos, ainda que apa-rentemente desordenado, produziria uma har-monia em sua totalidade.

Na verdade, como certos defensores domercado costumam admitir, o liberalismo ra-dical seria um anarquismo. Entretanto, os libe-rais não estariam dispostos a admitir outrosvalores do anarquismo sem cair em contradi-

ção. O que tem ocorrido é o aparecimento delinhagens liberais que admitem um intervencio-nismo mitigado ou até mesmo aprofundado. Issose tornou uma tendência depois do Crack dabolsa de New York e da onda de falências, cortesdrásticos na produção e nos investimentos, comaltíssimo nível de desemprego. Enquanto durouo círculo vicioso do declínio da renda nacionale do desemprego em massa, milhares decorporações faliram e milhões de trabalhadoresperderam seus empregos. Perante tal quadroameaçador da liberdade e da propriedade, benssagrados do credo liberal, surge a idéia de umcontrole centralizado da economia, capaz desanar os males provocados pelos desarranjos oudesajustes do mercado, que, na verdade, seriamcrises profundas do capitalismo (HUNT &SHERMAN, 1977, p.58).

A própria racionalidade liberal foi duramen-te questionada. Greaves (1982, p.9) diz, a esterespeito, que a Grande Depressão iniciada em1929 “foi contrabalançada com sucesso ape-nas pelo estímulo aos armamentos e pelo ad-vento da II. Guerra Mundial”. Esse fato é ex-tremamente deprimente, afirma o autor, poisele aponta para uma racionalidade perversa. Eleinquieta-se com a possibilidade de a depressãopoder ser ou estar sendo efetivamente derrota-da apenas pela criação de formas de destruição(GREAVES, 1982, p.9). Na verdade a racionali-dade dos indivíduos atomizados, que agindoem vistas de seus fins egoístas contribuiriampara o bem comum, conforme a teoria da mãoinvisível e da harmonia natural das forças agen-tes no mercado, foi contestada pela históricacrise do capitalismo. A nova racionalidade ca-pitalista que surge com a crise de 1929 éplanejadora. Ela tornou-se capaz de capaz deestabelecer metas comuns, de criar novas fon-tes de emprego, e de alocar recursos que nãopoderiam mais ser distribuídos pelo mercado,como acreditavam naquele momento os pró-prios capitalistas. No entanto os esforços e es-tratégias dos governos dos países capitalistasem crise acabaram por usar os aparatos do pla-nejamento não em função da generalidade doscidadãos, mas na defesa da propriedade e dosinteresses do capital, fato que não implicaria

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em discutir os fundamentos do liberalismo, masem esforçar-se por mantê-los. Isso mostra queos princípios dos quais lançaram mão os“planificadores” capitalistas no século passa-do não estavam voltados para problemas ‘éti-cos’ em torno dos valores humanos como vida,liberdade e tolerância, na verdade antigos va-lores do liberalismo clássico. Preocupavam-seapenas com a salvaguarda da propriedade e doslucros que dependiam da continuação das ati-vidades econômicas.

É em tal contexto, somado à ameaça comu-nista, que surge a doutrina econômica keynesia-na. Com o crescimento da economia soviéticaem ritmo acelerado, o socialista ganhou mui-tos adeptos nos anos 30 do século passado.Além do mais a grande depressão chocou pro-fundamente a população norte-americana, aba-lando a sua convicção de um progresso indefi-nido rumo a mais elevados níveis de prosperi-dade material (HUNT & SHERMAN, 1977,p.166).

Keynes formulou sua doutrina a partir daconstatação do não automatismo dos proces-sos econômicos (HUNT & SHERMAN, 1977,p.166-167). O mesmo quadro utilizado parauma empresa isolada aplicar-se-ia também paraa economia em seu conjunto. Os fluxos circu-lares apresentam vazamentos. Parte do dinhei-ro que flui das empresas para o público nãoretornaria diretamente para as empresas. Partede semelhante renda seria poupada em bancos.Embora esse vazio pudesse ser preenchido poraqueles que contraíssem empréstimos bancári-os e despendessem quantias superiores às suasrendas, Keynes teria constatado que, no augeda prosperidade, a poupança geralmente supe-ra os empréstimos aos consumidores, forman-do-se uma poupança líquida ou um vazamentoreal no fluxo circular rendas-despesas (HUNT& SHERMAN, 1977, p.167). Como outras fon-tes de vazamentos, Keynes teria indicado o fatode que ao adquirirem bens e serviços de em-presas estrangeiras, as pessoas gastariam emimportação o dinheiro que seria gasto com bensnacionais e ainda o fato de que as somas desti-nadas ao pagamento do imposto seriam tam-bém retiradas do fluxo rendas-despesas (HUNT

& SHERMAN, 1977, p.167-8). O não auto-matismo tenderia a gerar sempre desequilíbrios:

(...) quando se esgotam as oportunidades de in-vestimento, os investimentos caem abaixo dapoupança, e os gastos totais em bens e serviçoscaem abaixo do valor do conjunto de bens e ser-viços produzidos. As empresas não conseguemvender tudo o que produzem. Crescem os esto-ques de bens encalhados. Cada empresa enxer-ga apenas o seu problema, e como produz maisdo que pode vender, no período subseqüente elareduz a produção. Acontece que o problema éextensivo a toda a economia, e como a maiorparte das empresas toma a mesma decisão, ocor-re, no período subseqüente, uma violentaretração da produção, com aumento do númerode desempregados e declínio da renda. Em con-seqüência do declínio da renda, os gastos embens e serviços serão ainda menores. Os empre-sários descobrem que, mesmo a níveis inferio-res de produção, o círculo vicioso reproduz-se.(HUNT & SHERMAN, 1977, p.169).

Conforme Keynes, as economias capitalis-tas maduras possuiriam um limite de oportuni-dades para investimentos lucrativos. O mal vin-cular-se-ia ao fato de que “cada empresa en-xergaria apenas o seu problema”. O que paraMarx e Lênin seria um mal incurável inerenteao capitalismo, foi visto como susceptível decontrole por intervenções destinadas a “supri-mir as distorções na distribuição de rendas e,conseqüentemente, reduzir a poupança” (pro-posta de Hobson) (HUNT & SHERMAN,1977, p.170). Já para Keynes, quando a pou-pança excedesse os investimentos o governodeveria intervir, recolhendo o excesso de pou-pança mediante empréstimo e investindo o di-nheiro em projetos de utilidade social, visandocriar condições para o pleno emprego, sem al-terar o estoque de capital. Tratar-se-iam sobre-tudo de projetos ou investimentos em setoresde utilidade pública, como a construção de es-colas, hospitais, parques, etc.

O grande papel ideológico desempenhadopelas teorias de Keynes foi o de “atribuir im-portância central ao Estado no planejamentoracional das atividades econômicas” (SAVIA-NI, 1991, p.98). Tornou-se um trunfo da bur-guesia que enfrentava ameaças advindas da

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crise interna do capitalismo e das “advertênci-as” externas representadas pelo avanço da so-cial-democracia, vinculada aos movimentossocialistas e ainda dos feitos do comunismo naRússia, que então tendia a se espalhar pelomundo. Para Keynes, “a questão principal eracombinar a regulação da economia pelo Esta-do com o funcionamento da economia de mer-cado baseada na propriedade privada”, numatentativa de reestruturar o capitalismo a fim deevitar sua destruição devido às suas própriasforças. Daí então as propostas de intervençãogovernamentais para conter as crises reinciden-tes, visando manter o pleno emprego e taxasde crescimento contínuas. Rompendo com ospreceitos tradicionais do capitalismo, admitiu-se como inevitável a intervenção governamen-tal com incrementos dos gastos públicos paraincentivar a produção e o consumo, admitin-do-se até mesmo os indigestos déficits orça-mentários por parte do poder público (SAVIA-NI, 1991, p.98-99).

Um outro fator político e ideológico impor-tante analisado por Hunt & Sherman (1977,p.177) refere-se ao fato de que as teoriaskeynesianas, principalmente com os reajustesde Samuelson, teriam proporcionado elemen-tos para que a ideologia neoclássica enfrentas-se o mais importante problema econômico dadécada de 30, ao mesmo tempo em que obscu-receram ou agravaram outros problemas, comoa concentração de poder econômico na mão deuma ínfima minoria.

Assim, surgem novas doutrinas tentandoreafirmar a racionalidade do capitalismo. Édestacável a concepção de harmonia entre osgrandes gigantes que se neutralizam, deSalvadori:

Nas relações capital-trabalho, os sindicatos po-derosos neutralizam o poder das grandescorporações, assim como as poderosas associa-ções de consumidores neutralizam as forçasmonopolistas e oligopolistas dos grandes comer-ciantes. Instaura-se uma espécie de equilíbrio demercado, como se uma mão invisível harmoni-zasse os interesses de todos. O todo harmoniosocompõe-se, agora, de um pequeno número degigantes neutralizados, e não mais de uma infi-nidade de pequenas empresas atomizadas, com-

petindo umas com as outras. (HUNT & SHER-MAN, 1977, p.185)

Propaga-se a idéia de que uma difusão dapropriedade, pela rápida multiplicação do nú-mero de capitalistas, proporcionada pelo au-mento do número de acionistas, nada mais foique novas formas de justificação do sistemacapitalista, que em nada contribuíram para des-fazer o seu caráter de iniqüidade. Assim, paraSalvadori, o gigantismo das corporações nãoera problema. Admitiu o referido economistaque a distribuição da propriedade estaria se tor-nando mais eqüitativa, pois o número de capi-talistas estaria aumentando progressivamentee disso decorria que “ninguém tem poder sufi-ciente para explorar o outro”. Os discípulosde Salvadori constataram que em 1970 haviaaproximadamente 30 milhões de acionistas, oque para eles confirma a tese do mestre de queos Estados Unidos tendem a se transformar emuma nação constituída majoritariamente de ca-pitalistas.

A onda de intervencionismo gerou uma trau-mática crítica de um dos mais destacados de-fensores contemporâneos do liberalismo,Friedrich A. Hayek, Prêmio Nobel de Econo-mia em 1974. Trata-se da obra O caminho daservidão (The Road to Serfdom), publicada pelaprimeira vez em 1944. Com ele nasceriam osnovos defensores da ideologia capitalista que,recentemente, se agruparam em torno do ideárioneoliberal.

Mesmo com toda a polêmica em torno doplanejamento e da regulamentação da econo-mia, tem vencido, entre os liberais, a idéia deque a função do Estado é fortalecer e tornarmais eficaz o jogo da competição, que na ver-dade é um recrudescimento ou uma revitaliza-ção da ideologia capitalista clássica.

Atualmente o capitalismo tem sua expres-são ideológica maior no denominado neolibera-lismo. Essa nova versão da ideologia capitalis-ta radicaliza a proposta de redução das fun-ções do Estado. O Estado mínimo significa re-dução máxima do poder público na economia.Propõe-se um total desmantelamento dos sis-temas públicos voltados para atender os seto-res sociais, como os subsídios, investimentos

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diretos e regulamentação das atividades eco-nômicas. Prega-se mesmo a desmontagem dosistema público de previdência social e a priva-tização das empresas estatais. A antiga noçãode investimento público em setores estratégi-cos não faria mais sentido para os neoliberais.No que diz respeito ao comércio internacional,as nações mais poderosas pregam uma total li-beração de fronteiras e tarifas, se bem que, naverdade, eles continuam mantendo uma sériede medidas protecionistas que não se limitam àsrestrições do dumping social, mas a uma sériede cobranças de taxas diretas e indiretas queacabam incidindo sobre os interesses dos par-ceiros comerciais, principalmente os mais fra-cos. Em seus artigos na Folha de São Paulo, L.NASSIF tem sempre denunciado essas práticasescusas.1 Em termos práticos, os governos quemais se identificaram com as práticas neoliberaisforam os de Margaret Tatcher, na Inglaterra, eRonald Reagan, nos Estados Unidos.

A visão liberal, em todas as suas fases, temsido caracterizada pela preocupação com aspossibilidades de se manter e atualizar a forçade produção. A escola apresenta-se como umfator decisivo nesse processo de reprodução dasrelações de produção. Nesse sentido destacam-se as diversas críticas à escola capitalista emseu papel reprodutor (SAVIANI, 1989). Comoenuncia Saviani (1991, p.86-87; 94-95), a par-tir do advento das novas relações de produçãocapitalista, a escola tornou-se o principal cen-tro de educação. Para o autor, a escola capita-lista é produto das profundas mudanças nosmais diversos setores da sociedade engendra-das pela burguesia:

Inversamente ao que ocorria na sociedade feu-dal, é a troca que determina o consumo. Em con-seqüência, o eixo do processo produtivo deslo-cou-se do campo para a cidade, da agriculturapara a indústria, a qual converteu o saber, depotência espiritual (intelectual) em potênciamaterial, isto é transformou o saber (a ciência)

em meio de produção. Assim, a estrutura da so-ciedade deixa de se fundar em laços naturais parase basear em laços propriamente sociais, isto é,produzidos pelos próprios homens. Daí, a soci-edade contratual baseada no direito positivo enão mais no direito natural ou consuetudinário(...), assim, a sociedade moderna não podia maisse satisfazer com uma educação difusa, assiste-mática e espontânea, passando a requerer umaeducação organizada de forma sistemática e de-liberada, isto é , institucionalizada, cuja expres-são objetiva já se encontrava em desenvolvimen-to a partir das formações econômico-sociais an-teriores, através da instituição escolar. A escolafoi, pois, erigida na forma principal e dominan-te de educação.(...) Em suma, por razões econô-micas, sociais, políticas e ideológicas, a tesebásica do liberalismo em matéria de ensino afir-ma o primado da instrução pública e, em conse-qüência, o dever indeclinável do estado de or-ganizar, manter e mesmo de impor a educação atoda a população.

A educação, ainda que muitas vezes tivesseseu caráter de investimento lucrativo negado,tornou-se sempre um fator de destaque nas pre-ocupações empresariais. Desde as preocupa-ções de Smith com uma instrução mitigada aostrabalhadores, passando pela proposta de umaeducação mais diversificada e constante deCondorcet, chegando aos princípios da educa-ção liberal contemporânea de adequação damão-de-obra a partir da especialização e da dis-ciplina, inerentes à proposta taylorista, tem-sedestacado o papel do Estado como responsá-vel pela educação básica. Ao seu lado existemtambém as escolas privadas com objetos idên-ticos, isto é, voltados para a preparação do tra-balhador visando o aumento da sua eficiência,adaptabilidade e obediência aos imperativos daprodução. Mas é, sobretudo, para a formaçãoda elite dirigente que as escolas da livre inicia-tiva têm-se voltado. Contudo, sua presençapermeia os mais diversos setores da formaçãodo trabalhador. Destacam-se, por exemplo, asiniciativas das organizações empresarias paracriar centros de formações específicas, de ní-vel “básico” e “médio”, como o SENAI e ou-tros. Multiplicam-se também, atualmente, aspropostas pedagógico-industriais no sentido deformar o trabalhador nas próprias fábricas. A

1 Ver artigo “O protecionismo americano”, no qual se fazuma análise das barreiras não tarifárias implementadaspelos americanos, para se conter o fluxo de entrada demercadorias do Brasil. (NASSIF, 14 de out. 1997, p. 03).

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luta de classes nas fábricas, na perspectiva edu-cacional, pode também ser analisada em tornoda relação teoria e prática, dos detentores dosaber analítico – engenheiros – e funcional –discurso técnico e operativo.

A nova onda ideológica denominada neo-liberalismo, concebendo-se como uma espéciede expressão vitoriosa no campo histórico epolítico, pretende estar cada vez mais em con-formidade com as novas descobertas científi-cas nos campos da neurociência e da microele-trônica. Assim os ideólogos recentes do capi-talismo opõem a noção de rede ao conceito delutas de classes. Em torno da noção de redepassa-se a explicar e justificar as atuais rela-ções sociais, de modo a conciliar a dominaçãoe exploração do capital sobre o trabalho. Oconceito de rede permite também a concepçãodo fim da história ou a impossibilidade de umaalternativa ao liberalismo. O conceito de redede certo modo é correlato à idéia de jogo. Setudo é jogo, tudo vale, desde que se preserve osagrado direito de propriedade, protegendo-odos ataques dos perdedores recalcitrantes e detodos os demais ressentidos com o livre em-preendimento. Se na linguagem lúdica se falaem perda e ganho, no vocabulário reticular sefala em conectado e desconectado.

O paradigma reticular é oriundo da modernateoria da inteligência, da neurobiologia e dainformática, que, de certo modo, têm possibili-tado analisar o cérebro a partir da máquina, oque possibilitou surgir novos modelos cerebrais.Assim fala-se em neurônios e suas conexões ousinapses, bem como da interação, trocas de si-nais elétricos e expansão ocorridas na mente.

O conceito de rede pode assumir um varie-dade de significados. A noção de rede é com-preendida como “uma sucessão conjunta denós, em que cada um é autônomo, mas seconecta ao outro para que, em conjunto, se com-pletem e possam interagir entre si. Não existeuma centralidade, todos nós somos responsá-veis pela continuidade da rede como um todo.”(Cortelazzo & Oliveira, 1996, p.119). Na ver-dade esse conceito de rede é bastante genérico.Ele tem possibilitado a muitos intelectuais de-finirem os mais diversos campos da atividade

humana, tais como a escola, a imprensa e atémesmo o mercado.

Castells desenvolve uma visão crítica docapitalismo a partir do conceito de rede em seulivro “A Sociedade em Rede”, editado pela Paze Terra em 1999. Segundo o autor, o mercadofuncionaria reticularmente, a globalização se-ria um termo correspondente ao de rede. Noque concerne à relação entre empresas, a for-mação de redes de capacitação tecnológica exi-ge uma interligação através de acordos e jointventures. Contudo esses entrelaçamentos nãoimpedem a concorrência. Disso resulta a ne-cessidade de uma constante inovação das em-presas. Embora entre as indústrias de altatecnologia as alianças tendam a possibilitar umaproveitamento máximo dos recursos investi-dos em Pesquisa & Desenvolvimento pelaspartes, no que se refere às estratégias mercado-lógicas particulares das empresas, a inovaçãoe a criatividade tornam se essenciais paramantê-las competitivas.

A inovação é o elemento fundamental parase adaptar às condições de imprevisibilidade.Castells (1999, p.265) afirma que “o valor agre-gado é gerado principalmente pela inovação,tanto dos processos como dos produtos”. Sendoque a inovação propriamente depende do po-tencial de pesquisa e da capacidade de especi-ficação. A divisão social do trabalho na empre-sa se faz em conformidade com a função do tra-balhador frente à inovação. Com o processo ro-tulado de globalização, verifica-se uma expan-são das atividades industriais juntamente comuma retração dos empregos industriais. Aindaque os empregos que não exigem qualificaçãoprofissional não desapareçam, eles tendem a seretrair ou manter-se num patamar baixo.2

2 Manuel Castells (1999, p.227) admite que a tendênciaé de se polarizar em dois extremos: o de baixa qualifica-ção e o de alta. “Esses empregos de baixa qualificação,apesar de sua taxa de crescimento mais lenta, podemrepresentar uma grande proporção de estrutura social pós-industrial em termos de seus números absolutos. Emoutras palavras, as sociedades informacionais poderiamser caracterizadas por uma estrutura social cada vez maispolarizada em que os dois extremos aumentam sua parti-cipação em detrimento da camada intermediaria”.

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Castells (1999) destaca níveis de atividadesconforme o grau do envolvimento informacio-nal do trabalho. Para ele há os trabalhadoresativos na rede, que dão a última palavra e que“estabelecem conexões por iniciativa própria”,navegando “pelas rotas da empresa em rede”.Em segundo plano viriam os trabalhadorespassivos na rede ou participantes, que emboraestejam conectados, pois trabalham on line, nãodecidiriam “quando, como, por que e comquem”. Por fim destacam-se os trabalhadoresdesconectados ou meros executores, que “ape-nas implantam decisões”, estando, portanto,“presos a atividades específicas, definidas porinstruções unilaterais não-interativas” (CAS-TELLS, 1999, p.266).

Em nível interno das empresas haveria umadiminuição das estruturas e hierarquias admi-nistrativas, ao mesmo tempo em que estas seabrem com o sistema de terceirização. Por ou-tro lado as reticulações possibilitariam expli-car de modo mais eficaz a intensificação do flu-xo de capital, informação e demais ativos, domodo que seu crescimento não se delimitassemais nas fronteiras nacionais, ou não pudessemais ser decido por nenhum fator meramentenacional. Prevaleceria, nessa perspectiva, adesordem local – descontrole – e a ordem glo-bal – uma espécie de arranjo – a posteriori. Naverdade o mundo passaria a ser um grande cas-sino, em que somente grandes investimentos,acompanhados por informações as mais bemestabelecidas possíveis, teriam chances de se-rem bem sucedidos. (ALMEIDA, 2001, p.60)

A noção de rede, enquanto elemento agrega-dor, supõe linhas de integração que não seriammais apenas verticais, em que não se falariaem dominação hierarquicamente, mas em prin-cípios de coordenação e agenciamento de in-formação, mais do que de dominação no senti-do de que um superior estabeleceria as regras aserem cumpridas. Desse modo a superioridadenão seria dominação, mas apenas proeminên-cia num determinado entrecruzamento de pes-soas ou equipe. Haveria também linhas con-fluentes horizontalmente, em que prevaleceriaa cooperação. Contudo, na realidade, frente talmodelo o sistema capitalista apresenta-se hie-

rárquico e autoritário, no sentido de que a es-pontaneidade das relações na verdade obede-cem ao rigor da lógica do lucro. O capital ope-ra de modo global. As liberdades locais só po-dem subsistir em função das determinações daexpansão do capital.

No que se refere às relações entre capital etrabalho, o paradigma japonês de organizaçãoempresarial, foi aceito como o mais padroni-zado, conforme os cânones reticulares. Essemodelo permitiu ao capitalismo, de acordo comseus defensores, ultrapassar as organizaçõesprodutivas moldadas nos princípios tayloristas-fordistas para uma nova ordem fabril em que opapel do trabalhador será muito mais inteligen-te, ativo, isto é, menos alienado. A este respei-to diz Ripper (1996, p.63) que, para as novasrelações de trabalho, é necessário um trabalha-dor “capaz de trabalho cooperativo e de análi-se e de síntese do conhecimento, com flexibili-dade mental, a fim de, a partir deste conheci-mento, gerar soluções novas inventando\melho-rando novos processos de produção”.

Nada mais em conformidade com o sistemaprodutivo fabril iniciado pela Toyota, em que otrabalhador assume o controle de qualidade coma autoridade de poder parar a produção e darsuas sugestões de como melhorar o processo defabricação. No toyotismo as observações dosoperários são estudadas e eventualmenteimplementadas. Trata-se de um novo perfil deoperário. Deste agora se exige flexibilidade ecapacidade de assumir múltiplas funções.

No que se refere à escola pode-se destacaruma coletânea, denominada Informática e So-ciedade, publicada em 1996 pela Editora doSenac, na qual as autoras Cortelazzo & Olivei-ra afirmam que nem mesmo os professores de-veriam estar defasados em função dessas no-vas possibilidades reticulares para uma reno-vação do projeto pedagógico, devendo se ade-quar às novas condições: “decisão política (de-lineamento de prioridades e destinação de re-cursos financeiros); formação de uma rede deformadores; visão do professor como produtore consumidor do conhecimento” conforme ob-servado em Ripper (1996, p.66), ou seja, inte-grando uma rede de pesquisa e comunicação.(OLIVEIRA, 1996, p. 57)

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Maria de Lourdes Pinto de Almeida

Para as referidas autoras, o novo paradigmapermitiria incorporar as concepções de Piagete Vygotsky, a teoria das múltiplas inteligências,bem como a teoria da inteligência emocionalde Goleman. Historicamente a hegemonia donovo modelo “reticular” estaria em conformi-dade com a passagem de uma sociedade queexigia uma “formação massificada” que seadaptasse bem ao modelo produtivo vigente,que “requeria um grande número de trabalha-dores para tarefas rotineiras a serem executa-das sem questionamento” (OLIVEIRA, 1996,p. 57). Valoriza-se agora o trabalhadorpolivalente, capaz de atuar em equipe (emrede), bem como disponível para atuar em di-versos setores e até mesmo para viajar ou tra-balhar conectado em uma rede de comunica-ção como as nets virtuais, ou seja, cabe à edu-cação preparar um trabalhador não mais paraobedecer e agir conforme “ordens”, mas parasaber lidar com o imprevisível, para saber adap-tar-se às novas situações, enfim, para inovar.Assim, parece que a consciência de classe vi-rou consciência de equipe. As autoras questio-nam o fato de o trabalhador, nesta nova con-cepção, estar perdendo a possibilidade deaprender a visualizar a totalidade e a capacida-de de criticar e opor-se ao sistema. Isso decor-re da fragmentação não só de sua visão cadavez mais míope, mas também do desmantela-mento dos sindicados e dos programas ligadosao Estado de bem-estar social.

Uma educação capaz de resguardar a cons-ciência crítica exige em primeiro lugar um duroembate com e contra a Mídia, e que não se as-simile passivamente os seus meios de transmis-são de informação calcados na rapidez das ima-gens e das redes multimídias em que se interco-nectam e se fragmentam ao mesmo tempo ossaberes. A proposta apresentada nos Parâme-tros não acena para uma pedagogia capaz desuperar a fragmentação do saber e a visão mío-pe da realidade. Longe disso, ela fundamenta-se nas novas tendências pedagógicas atuais, emespecial nas teorias das inteligências múltiplase das inteligências emocionais, voltadas para aformação de indivíduos bem sucedidos nummeio competitivo (CHAVES, 1998). Somente

para quem assume a eficiência insuperável ou ainexorabilidade do mercado a questão da for-mação de cidadãos a partir da integração dostemas e saberes ligados às questões éticas, sociaise políticas pode ter um caráter tão restrito quenão levaria ao advento de uma consciência crí-tica capaz de colocar em xeque a própria estru-tura da sociedade liberal. Mas esse é um temaque tende a se tornar cada vez menos discutido.

Restaria uma esperança para os que seopõem ao modelo vigente. Quem sabe a im-plantação dos Temas Transversais não suscita-ria aquilo que Gramsci denominou de “Catar-se”. Saviani (1993, p.10) expressa este termocomo a superação do senso comum pela cons-ciência filosófica, em que ocorreria “a passa-gem de uma concepção fragmentária, incoeren-te, desarticulada, implícita, degradada, mecâ-nica, passiva e simplista a uma concepção uni-tária, coerente, articulada, explícita, original,intencional, ativa e cultivada”. Mas a posiçãode Saviani é formulada dentro de uma outracorrente hegemônica oposta ao liberalismo. Aproposta dos Temas Transversais obedece aosprincípios metodológicos e ideológicos ineren-tes à atual hegemonia liberal, cuja supremaciatem sido imposta a todos os setores das socie-dades mundiais. Resta saber até que ponto essaproposta ofereceria elementos, que pudessemser resgatados por uma análise crítica, tornan-do-os instrumentos para uma perspectiva coe-rente com os anseios dos oprimidos e excluí-dos, não no sentido de integração num sistemaexcludente por natureza, mas conforme aspossibilidades de serem transformados radical-mente. Não creio que isso seja possível, poisos fundamentos científicos, metodológicos, fi-losóficos e pedagógicos da proposta apresen-tada pelos Parâmetros, ainda que importantesno questionamento da tradicional forma deintegração das disciplinas, e no resgate de te-mas como a ética e a justiça, ao proporem afragmentação e o pluralismo dos saberes tor-nam a escola mais um cenário midiatico, comforte apelo às estratégias televisivas de entre-tenimento, em que não especialistas falam so-bre tudo. A crise das ciências e das especiali-dades enquanto sintoma da superação do

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Educação, mercado, e os temas transversais

positivismo é um bom sinal, mas a substitui-ção da organização das grades curriculares tra-dicionais por saberes não científicos é questio-nável, pois abriria a possibilidade de a escola

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Recebido em 12.07.01Aprovado em 12.08.01

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Geilsa Costa Santos Baptista

A ETNOBIOLOGIA COMO SUBSÍDIO METODOLÓGICO

PARA O ENSINO E A APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA

EM CIÊNCIAS BIOLÓGICAS

Geilsa Costa Santos Baptista *

RESUMO

Este artigo busca demonstrar os resultados de uma pesquisa teórica acercado ensino de Ciência e Biologia na atualidade e a importância do empregodo método etnocientífico, utilizado pela Etnobiologia, como subsídio aoensino e a aprendizagem significativa nestas disciplinas, ao mesmo tempoque busca valorizar o conhecimento tradicional da população estudantil arespeito da natureza.

Palavras-chave: Etnobiologia – Aprendizagem – Ciências Biológicas

ABSTRACT

ETHNO BIOLOGY AS METHODOLOGICAL SUBSIDY FORMEANINGFUL TEACHING AND LEARNING IN BIOLOGICALSCIENCES

This article attempts to demonstrate the results of a theoretical researchabout the current teaching of Science and Biology and the importance ofthe employment of the ethno scientific method, used by Ethno biology, assubsidy to the meaningful teaching and learning of these subjects,concurrently trying to value the traditional knowledge students have ofnature.

Key words: Ethno biology – Learning – Biological Sciences

* Graduada em Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Feira de Santana,especialista em Saúde Aplicada ao Ensino da Biologia pela Universidade Federal da Bahia, é professora deMetodologia e Prática do Ensino de Ciências e Biologia, Departamento de Educação, Universidade Estadu-al de Feira de Santana - UEFS/Bahia, e professora de Biologia na Secretaria de Educação do Estado daBahia. Endereço para correspondência: Rua G, 23, Conjunto Milton Gomes, Centro, 44031-580 – Feira deSantana-BA. E-mail: [email protected]

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A etnobiologia como subsídio metodolõgico para o ensino e a aprendizagem significativa em Ciências Biológicas

INTRODUÇÃO

Até muito recentemente, as técnicas etno-gráficas, ou aquelas voltadas para a descriçãodos povos, sua língua, sua religião, etc., eramutilizadas apenas por antropólogos e sociólo-gos, contudo o interesse dos pesquisadores emeducação por estas técnicas fica evidente a par-tir do final da década de 70, tendo como centrode preocupação o estudo da sala de aula e aavaliação curricular. (ANDRÉ, 1995)

Esse interesse vem ganhando, na atualida-de, cada vez mais espaço e, neste sentido, aEtnobiologia, enquanto campo de pesquisa quebusca evidenciar os conhecimentos das dife-rentes sociedades e suas culturas a respeito danatureza, também a partir da descrição, muitotem a contribuir para o ensino de Ciências e deBiologia. Estas últimas, enquanto integrantesdo currículo escolar, têm hoje reconhecimentoem todo o mundo e isso se deve ao fato de quegrandes são os avanços nas descobertas cientí-ficas, de um modo geral, e nas concepçõesconstruídas pelas crianças para explicar os fe-nômenos naturais. De acordo com Bizzo,(1994, p.79) “(...) o ensino de ciências podeajudar as crianças a pensar de maneira lógicasobre os fatos do cotidiano e a resolver proble-mas práticos”. Do mesmo modo, ao estudar aBiologia, “(...) o aluno é levado a aplicar seusconhecimentos para explicar o funcionamentodo mundo natural, planejar, executar e avaliarações de intervenção na realidade natural”(PCN, 1999, p.108).

Assim, considerando que um dos objetivosda educação no país hoje é promover a práticaeducativa que leve em conta as característicassócio-culturais do aluno, preparando-o para oexercício pleno da cidadania e que, no momentoda aprendizagem escolar, este já traz consigoum conjunto de informações a respeito da na-tureza e seus componentes, o propósito maiordeste artigo é contribuir para que o ensino dasdisciplinas supracitadas ganhe um novoenfoque quanto aos aspectos metodológicos, aodemonstrar a importância do método etnocientí-fico, amplamente utilizado pela Etnobiologia.Vale aqui ressaltar que o presente estudo sur-

giu a partir de observações da autora no cotidi-ano escolar, bem como de levantamento bibli-ográfico, o que a levou a acreditar que somen-te quando o aluno é desafiado a questionar erefletir sobre sua própria realidade e os conhe-cimentos que a envolvem, de modo a compa-rar os conceitos científicos com os que já pos-sui, estará partindo para uma aprendizagem sig-nificativa. Uma aprendizagem dentro de umcontexto cultural amplo que articula o que éaprendido dentro e fora do espaço escolar: umato dinâmico que envolve observação, análise,crítica e síntese em busca do conhecimento.

O ENSINO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICASE SEU SIGNIFICADO ATUAL

De acordo com Melo (2000), o conceito deCiências Biológicas, de um modo geral, encon-tra-se voltado para a interpretação da naturezae o seu estudo. Ciências para o ensino funda-mental e Biologia para o ensino médio, devempossibilitar ao homem conhecer a si próprio,entender suas relações com os demais seres,desvendar os fenômenos que acontecem no seumeio ambiente, de forma a melhorar sua quali-dade de vida. Contudo, é lamentável o fato deque o ensino de Ciências e de Biologia, na atu-alidade, apresenta-se com extrema preocupa-ção na transmissão de informações sobre osavanços científicos, com uma interpretação ar-tificial dos mesmos e sem significados própri-os para os alunos. Estudos realizados por Bizzo,(2000, p.10) descrevem esta situação quandodemonstra a unilateralidade deste ensino.

É comum que diante da falta de compreensãode certa definição, por exemplo, tanto o profes-sor quanto os alunos passem a acreditar que es-tejam diante de uma verdade absoluta e que sãoincapazes, intelectualmente, algo que parece seróbvio para os cientistas. No entanto, muitas ve-zes professor e alunos não entendem afirmações,mesmo algumas que aparecem impressas emseus livros didáticos, pela simples razão de queelas são uma síntese de várias explicações e con-ceitos e que não podem fazer sentido sozinhascomo afirmações isoladas.

Neste sentido, ao que se pode entender, pou-

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Geilsa Costa Santos Baptista

cos são os educadores que buscam conhecer evalorizar os modos de pensar e de agir dos alu-nos de modo que, a partir destes, possam cons-truir seus métodos de ensino. As técnicas utili-zados pelos professores resumem-se à aula ex-positiva e à leitura de livros didáticos sem quehaja nenhum, ou pouco questionamento a res-peito de seus conteúdos. Estes são apresenta-dos como se fossem apenas nomenclatura, comuma acentuada ênfase nas definições como porexemplo: “biosfera”, “condensação”, “biótipo”etc. Um ensino que apresenta ao aluno um co-nhecimento acabado, já pronto e organizado,em que ele é apenas mero repetidor de concei-tos preestabelecidos. Desta forma, a aprendi-zagem acontece apenas para cumprir as deno-minadas “avaliações finais”, ou seja, aquelasque acontecem ao final das unidades em que édividido o ano letivo, por meio de provas e tes-tes, objetivando uma determinada média ao fi-nal de cada uma delas para o aluno ser consi-derado “aprovado” ou “reprovado”.

Assim, sumariamente pode-se afirmar quea maneira como o ensino de Ciências Biológi-cas se organiza hoje, evidencia o desprezo àcultura do aluno e, consequentemente, à dogrupo social a que pertence, ao considerar ape-nas a transmissão do conhecimento acumula-do pela humanidade como tarefa principal daescola e ao desprezar as relações existentesentre o homem, a natureza, a cultura e a socie-dade no momento da apreensão da lógica in-terna do conhecimento científico.

A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DECIÊNCIAS BIOLÓGICAS E A PRÁTICAPEDAGÓGICA

Esta realidade que caracteriza o ensino deCiências Biológicas no país, hoje, pode ter suasorigens na formação de seus profissionais.

Convém aqui considerar que a formação doprofissional em Ciências Biológicas para edu-cação, não só se dá dentro do espaço das uni-versidades, mas também fora destas institui-ções, na prática pedagógica, na formação con-tinuada.

De acordo com Mercado, citado por Mello(2000), a maioria dos cursos de formação dosprofessores, incluindo os de Ciências Biológi-cas, não está preparando professores habilita-dos para utilizar e produzir novas tecnologiasem educação assim como seus impactos nassociedades. Desta maneira, há uma certa inca-pacidade para colocar em prática concepções emodelos inovadores que possam até mesmosubstituir estas tecnologias quando de difícilacesso.

Ainda em relação à preparação acadêmica,outro problema a ser considerado na formaçãodo professor é a relação teoria e prática. A ati-vidade experimental visa contribuir para umamelhor formação de professores e, conseqüen-temente, um melhor ensino. Neste sentido, alegislação determina que a prática de ensinoseja desenvolvida sob a forma de estágio su-pervisionado, contudo é grande o número deestagiários que praticam o estágio apenas comoatividade obrigatória para a conclusão do cur-so. Não se une metodologia do ensino ao con-teúdo de forma crítica. Como já citado anteri-ormente, existe uma mera transmissão de con-teúdos de forma puramente acadêmica e semnenhuma inovação metodológica até mesmodentro das universidades, o que resulta numafutura prática profissional repetitiva e sem ino-vações.

Segundo Nóvoa (2001), o aprender contí-nuo é essencial à formação de qualquer profis-são. Este profissional deve concentrar-se emdois pilares: a pessoa do professor como agen-te e a escola, como lugar de crescimento. As-sim, a formação do professor não só acontecedurante a vida acadêmica mas também comoprofissional. Neste contexto, pesquisas em edu-cação apontam para o fato de que na formaçãoprofissional, através da prática pedagógica,grandes são as dificuldades encontradas, espe-cialmente o elevado número de professores quese queixam dos baixos salários, da falta de re-cursos didáticos e materiais, do elevado núme-ro de alunos por classe, o que os leva à falta deestímulo e consequentemente de compromissocom o ensino e com a própria formação. Nestesentido, somente a reflexão permanente sobre

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A etnobiologia como subsídio metodolõgico para o ensino e a aprendizagem significativa em Ciências Biológicas

sua dinâmica pessoal durante a graduação, comotambém na prática pedagógica, seria capaz depromover mudanças no ensino de Ciências Bi-ológicas hoje. Isto porque somente o profissio-nal da área pode ser o responsável por sua for-mação, que irá refletir na maneira como ele en-sina. Devem considerar que a sala de aula é es-paço de construção do conhecimento, e o ver-dadeiro motivo de se ensinar Ciência e Biologiaé o de proporcionar ao educando uma compre-ensão racional e crítica do mundo e do meioambiente que os cerca, levando-o a uma posturareflexiva e investigativa, colaborando para aconstrução da autonomia de pensamento e ação,o que o levará ao exercício pleno da cidadania.Tal reflexão cabe também às universidades, noincentivo à criação de programas que valorizema articulação entre teoria e prática como semi-nários, criação de laboratórios de análise coleti-va das práticas pedagógicas atuais, de extensãouniversitária às escolas públicas, dentre outros.Programas estes que busquem proporcionar aoaluno-estagiário um contato prévio e, por con-seguinte, uma compreensão do contexto educa-cional de sua realidade.

A RELAÇÃO ENTRE O CONHECIMEN-TO TRADICIONAL E O CONHECI-MENTO CIENTÍFICO A RESPEITO DANATUREZA

O pensamento científico é recente, se consi-derada a história da evolução da humanidade.No decorrer da sua história, o ser humano sem-pre buscou encontrar explicações para compre-ender os fenômenos naturais ao seu redor. As-sim, o conhecimento a respeito desses fenôme-nos foi se desenvolvendo, conferindo-lhe a ca-pacidade de refletir sobre o significado de suaspróprias experiências e realizar novas descober-tas, transmitindo-as aos seus descendentes. Esseconhecimento que é construído ao longo da his-tória do homem, enquanto membro de uma dadasociedade e cultura, que pode ser cotidiano e queé transmitido de uma geração a outra, constitui-se o conhecimento tradicional.

De acordo com Coulon (1995), o conheci-mento tradicional significa a faculdade de in-

terpretação que todo indivíduo, erudito ou não,possui e aplica à rotina de suas atividades prá-ticas cotidianas, incluindo aí aquele voltadopara a natureza. Pode sofrer variações regio-nais e culturais e está fortemente vinculado aoscontextos nos quais é produzido. Já o conheci-mento científico é aquele sistemático e racio-nal, exato, explicativo da realidade e verificá-vel, e cujos significados são vistos de formaunânime por aqueles que dele fazem uso.

No que diz respeito à complexidade, embo-ra existam diferenças no momento do ensino-aprendizagem em Ciências Biológicas, não sepode dizer que entre o conhecimento tradicio-nal e o científico, um seja correto e outro erra-do. Diversos são os estudos que apontam parao fato de que existe uma inter-relação entreambos, pois o conhecimento científico se utili-za do tradicional para formação de seus con-ceitos e pesquisas, uma vez que as sociedadeshumanas possuem um conhecimento amploproveniente de suas necessidades e relaçõescom a natureza e seus componentes.

Desta forma, não se pode entender cientifi-camente a natureza de forma separada das in-terpretações e conceituações que as socieda-des humanas dela possuem. “A natureza temuma história que por sua vez está cada vez maisinterligada com a história das sociedades”(DIEGUES, 2000, p. 22). A sociedade é resul-tado de toda ação e intenção humana e sendoassim, não há forma de descrever os significa-dos naturais distanciando-os das sociedadeshumanas.

O ENSINO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS,A ETNOBIOLOGIA E A METODOLOGIAETNOCIENTÍFICA

De fato, os problemas educacionais que en-volvem o ensino-aprendizagem em ciênciasbiológicas hoje perpassam também pela forma-ção de seus profissionais. Estes, através da prá-tica reflexiva, podem adotar modelos metodoló-gicos que certamente o auxiliarão a superardificuldades, como os que são utilizados pelasEtnociências e, em específico, pela Etnobio-logia. Inicialmente convém aqui definir o que

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Geilsa Costa Santos Baptista

vem a ser a Etnobiologia, a descrição de seumétodo, para por último correlacioná-lo ao en-sino de Ciências Biológicas. Segundo Posey(1986, p.15), “a Etnobiologia é essencialmen-te o estudo do conhecimento e das conceitua-ções desenvolvidas por qualquer sociedade arespeito da biologia”.

A metodologia utilizada por esta ciênciabaseia-se nos estudos etnocientíficos, os quaisbuscam a constatação de que toda e qualquersociedade humana se esforça para compreen-der o mundo à sua volta. Isto se deve ao fato deque, além de terem uma complexa ordem deconhecimentos sobre a natureza e seus compo-nentes (plantas, animais, solo, fenômenos na-turais, etc.), interagem com ela no momentoem que dela necessitam para satisfazer suasnecessidades e curiosidades tais como alimen-tar-se e vestir-se. De acordo com Toledo (1990),a etnociência se dedica a estudar a suma dosconhecimentos que um determinado grupo cul-tural tem sobre o universo social e natural esobre si mesmo. Parte da Lingüística, para es-tudar o conhecimento das populações sobre osprocessos naturais. “E o estudo do papel danatureza no sistema de crenças e de adaptaçãodo homem a determinados ambientes, enfati-zando as categorias e conceitos cognitivos uti-lizados pelos povos em estudo” (DIEGUES,2000, p. 29). Assim, não se pode desprezarqualquer informação que pareça contraditóriae absurda, visto que faz parte de uma cultura.Esta deve servir de base ao desenvolvimentodos métodos de pesquisa.

De um modo geral, pode-se aqui descrevera metodologia etnocientífica com base nos es-tudos de Berlim (1992) que consiste inicialmen-te na realização de surveys, ou visitas em cam-po, para definição e escolha dos “informantes”nos quais deverão ser aplicadas grande núme-ro de entrevistas abertas e semi-estruturadas,em grupos tradicionais, para captar suas expli-cações e interpretações sobre o ambiente natu-ral, respeitando sempre sua cultura e valores.Procedem-se observações naturalísticas dasatividades do grupo com documentações foto-gráficas, desenhos, exemplares de animais,plantas e peças anatômicas conservadas em

coleções, representações icnográficas feitaspelo próprio informante. Por último, a análisedos dados que significa “trabalhar” todo mate-rial e informações obtidas durante a pesquisa,isto é, os relatos, as observações, as transcri-ções da entrevista, as análises dos documentose demais informações disponíveis.

No ensino de Ciências Biológicas, a utili-zação do método etnocientífico se fará com amesma descrição acima citada de maneira asubsidiar a coleta de dados dentro e fora doespaço escolar, isto é, em sala de aula e em cam-po onde o professor, no desenvolver de todoprocesso ensino-aprendizagem, buscará evi-denciar todos os conhecimentos e conceitua-ções que os alunos possuem sobre seu ambien-te natural e que possam estar associados aosconteúdos ou temas a serem trabalhados. Oobjetivo primordial da aplicação deste métododeverá ser sempre compreender a realidade naqual se insere o aluno, ao considerar amultiplicidade dos significados atribuídos porele a suas ações e interações com a natureza demaneira que possam ser significativos na cons-trução dos conhecimentos, ou seja, devem levá-lo do senso comum para a construção do con-ceito científico.

Segundo Hanazaki (1999), neste sentido, osPCNs (1998) apoiam a utilização deste méto-do, quando propõem diretrizes para o ensinofundamental e médio em todo o país atravésdos temas transversais (ética, saúde, meio am-biente, pluralidade cultural, orientação sexuale trabalho e consumo) que devem abranger to-das as áreas do conhecimento, incluindo tam-bém Ciências Biológicas. Cada escola devereconhecer a diversidade como parte integran-te da identidade nacional e, especificamente,para esta disciplina escolar, a busca pela valo-rização do saber plural etnobiológico, pois res-salta e valoriza a diversidade cultural, organi-zando conhecimentos e contextualizando-os.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi aqui exposto, não se podepensar no ensino de Ciências e Biologia demaneira apenas acadêmica, não levando em

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A etnobiologia como subsídio metodolõgico para o ensino e a aprendizagem significativa em Ciências Biológicas

conta as necessidades e conhecimentos prévi-os do aluno, além de seus interesses e curiosi-dades, uma vez que acredita-se nestas comoconstruções do saber científico, que jamais es-tará voltado para a transmissão de informaçõespré-determinadas, como as que acompanhamos métodos de ensino atuais.

É fato conhecido que o homem, enquantoespécie, possui diferentes formas de “perce-ber” e “conceber” a natureza e que, para ele,observar é uma atitude natural, dependendode sua história pessoal e do contexto culturalno qual está inserido dentro de uma socieda-de. Destarte, não se poderia impor um mode-lo de conhecimento como algo acabado e quenão sofre interferências no momento da apren-dizagem escolar. Assim, a utilização de mé-todos que valorizem o conhecimento préviodo homem a respeito da natureza de um modogeral, como os que são aplicados aos estudosEtnobiológicos, valorizando a sua realidadesociocultural, não significa abandonar o va-lor científico do ensino de Ciências Biológi-cas por uma ciência empírica, ao contrário,significa articulá-los no momento ensino-aprendizagem. Porque a utilização do méto-do etnocientífico permite um contato pessoalestreito entre os alunos e seus ambientes na-turais, recorrendo aos conhecimentos e expe-riências pessoais como auxiliares no proces-so de aprendizagem, na compreensão e inter-pretação dos conteúdos estudados ao lado dabusca do conhecimento científico.

Além disto, a utilização de tal método emCiências Biológicas, enquanto disciplina esco-lar, é extremamente útil para “descobrir” as-

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pectos novos, pois a medida em que o alunoacompanha in loco as experiências diáriasvivenciadas, não só por ele como também porseus colegas, pode entender a sua própria vi-são de mundo e o significado que atribui à rea-lidade bem como à diversidade cultural exis-tente, além do fato de que supera dificuldades,tais como a falta de recursos didáticos que de-veriam ser enviados pelo governo, por traba-lhar basicamente com elementos naturais. Istocertamente contribui para a melhoria da quali-dade de ensino no país e a formação de cida-dãos mais críticos e éticos, conforme o objeti-vo maior da educação. Contudo, é extremamen-te importante que o professor ao aplicá-lo te-nha o cuidado de não impor inadequadamentesuas próprias idéias e categorias culturais aosseus alunos, tais como a descrença e ou asupervalorização das suas informações e con-cepções. É necessário sim, neste momento, umintercâmbio em que os conhecimentos cientí-ficos se articulem aos que são consideradoscomuns aos alunos, próprios de seu meio, desuas diferentes culturas, rompendo-se estrutu-ras e relações de poder.

É importante também aqui ressaltar que osdados obtidos a partir da utilização do métodoetnocientífico no ensino de ciências e biolo-gia, podem servir de base para pesquisadoresem educação e outros que queiram aplicar emsuas escolas programas de educação ambientalna busca do desenvolvimento sustentável dosrecursos naturais, uma vez que refletem não sóos conhecimentos a respeito destes como tam-bém suas possíveis formas de utilização pelascomunidades locais.

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185Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 179-185, jan./jun., 2002

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Recebido em 19.04.02Aprovado em 26.05.02

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Jaqueline Maria Barbosa Vitorette; Herivelto Moreira; João Augusto de Souza Leão de Almeida Bastos

TECNOLOGIA, EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA E CURSOS

SUPERIORES DE TECNOLOGIA:

uma busca da dimensão cultural, social e histórica

Jacqueline Maria Barbosa Vitorette***Herivelto Moreira***

João Augusto de Souza Leão de Almeida Bastos***

RESUMO

O objetivo desse artigo é discutir os conceitos de tecnologia, educaçãotecnológica na visão dos principais autores que tratam dessas questões noBrasil. É possível perceber duas correntes distintas, mas complementares.Uma delas trata a tecnologia de uma forma restrita, e a outra corrente abor-da aspectos mais abrangentes ampliando as fronteiras do entendimento doque é tecnologia.

Palavras-chave: Tecnologia – Educação Tecnológica – Implantação deCurso Superior de Tecnologia

ABSTRACT

TECHNOLOGY, TECHNOLOGICAL EDUCATION AND UNDER-GRADUATE COURSES ON TECHNOLOGY: in search of a cultural,social and historical dimension

The objective of this article is to discuss the concepts of technology,technological education in the view of the mains authors who deal withthis issue in Brazil. It is possible to perceive two distinct yet complementarylines of thought. One of them deals with technology in a restricted fashion,and the other tackles broader aspects, widening the frontiers of theunderstanding of what technology is.

Key words: Technology – Technological Education – Implementation ofUndergraduate Course on Technology

* Mestre em Educação e Professora de Química da Escola Agrotécnica Federal de CERES-Go. Endereçopara correspondência: Rodovia Carmo do Rio Verde, Km 2, Zona Rural, Caixa Postal 51 – 76300.000 –CERES-GO. E-mail: [email protected]** Doutor e Professor do Programa de Pós-Graduação do Centro Federal de Educação Tecnológica doParaná. Endereço para correspondência: Av. Sete de Setembro, 3165 – 80230.901 – CURITIBA-PR. E-mail: [email protected]*** Doutor e Professor do Programa de Pós-Graduação do Centro Federal de Educação Tecnológica doParaná. Endereço para correspondência: Av. Sete de Setembro, 3165 – 80230.901 – CURITIBA-PR. E-mail: [email protected]

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Tecnologia, educação tecnológica e cursos superiores de tecnologia: uma busca da dimensão cultural, social e histórica

Introdução

O objetivo desse artigo é discutir os con-ceitos de tecnologia baseados no pensamentoe nas idéias de Vargas (1994a, 1994b) e Gama(1986, 1994a) para depois tratar da questão daeducação tecnológica. Nesse sentido, é possí-vel distinguir duas correntes distintas, porémcomplementares. Uma trata a tecnologia deforma restrita, e a outra aborda aspectos maisabrangentes ampliando assim as fronteiras doentendimento do que é tecnologia.

A análise desses conceitos de tecnologia éfundamental para entendimento da educaçãotecnológica e as suas repercussões na criação eimplementação de cursos de tecnologia.

Os Conceitos de Tecnologia

Vargas (1994b, p.213) propõe que tecnolo-gia seja “(...) o estudo ou o tratado das aplica-ções de métodos, teorias, experiências e con-clusões das ciências ao conhecimento dos ma-teriais e processos utilizados pela técnica.”

Nessa definição, a tecnologia é vista comouma ciência aplicada. No entanto, em seu livro“Para uma filosofia da tecnologia”, Vargas(1994a, p.20) argumenta que a tecnologia serelaciona à “resolução de problemas práticos”.A partir dessa definição, ele passa a afirmarque, de fato, a tecnologia é uma ciência direcio-nada a uma intenção, uma aplicação, para asolução de problemas práticos.

Já para Gama (1986, p.178), “(...) a tecnolo-gia moderna é a ciência do trabalho produtivo”e ela tem início, historicamente, com o conceitode Christian Wolf Beckmann e dos tecnólogosalemães do século XVIII. Gama (1986) enfatizaque só faz sentido falar de tecnologia a partirdos últimos anos do século XVIII quando o ca-pitalismo começa a se afirmar.

A partir dessa visão, a tecnologia se relacio-na ao trabalho produtivo, isto é, ao trabalhovinculado ao capital, que produz um valor demercadoria, ou seja, trabalho trocado por capi-tal, excedente e, portanto, relaciona-se ao sis-tema econômico capitalista. Então, não faz sen-

tido falar de tecnologia em outro modo de pro-dução, como por exemplo, no período Neolíticoou na Idade Média, onde existia uma organiza-ção social diferenciada. “O que distingue o tra-balho produtivo do trabalho improdutivo nãoé o produto, mas o como é produzido, em con-dições da divisão social do trabalho.” (GAMA,1986, p.192)

Para efetivar esse processo o homem utili-za-se da tecnologia que, embora esteja ligadaao capitalismo, não pode estar presa a ele, pois“(...) a tecnologia não se confunde com o modode produção capitalista” (GAMA, 1986, p.207).Há necessidade de se compreender a dimensãosocial da tecnologia, que está por natureza li-gada ao ser humano, pois se vincula ao traba-lho do homem. Assim, a tecnologia não é umsimples estudo mecânico, mas tem sentido so-cial, inerente à condição humana.

A visão de Gama (1986, p.192), quanto aoaspecto de “tecnologia moderna”, resulta dofato de a tecnologia ser contemporânea ao sis-tema capitalista, pois nasceu no bojo desse sis-tema, uma vez que “é a ciência do trabalho pro-dutivo”.

O conceito de trabalho utilizado por Gama(1986, p.192) é o de Marx, pois, para ele, “(...)antes de tudo, o trabalho é um processo de queparticipam o homem e a natureza, processo emque o ser humano, com sua própria ação, im-pulsiona, regula e controla seu intercâmbiomaterial com a natureza.” (GAMA, 1986, p.28).O processo aqui é entendido como a transfor-mação da natureza pelo homem, e o produtodesse processo tem como conseqüência umbem que corresponde à necessidade do produ-tor e que se transforma em valor de uso. O tra-balho apresenta uma ação consciente articula-da pelo homem que inclui execução e reflexão,tendo em vista que, para a realização desse pro-cesso, leva em consideração o trabalhador(quem faz), o produto (o quê), o objetivo (paraquê) e o modo de produção (para quem) e ain-da os meios, o instrumental de trabalho (ocomo) com um compromisso com o resgate dainteireza do homem e, não, com o capital.

A definição de tecnologia enquanto ciênciaapresenta no seu interior quatro componentes

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explicitados num tetraedro: a tecnologia do tra-balho, dos materiais, dos meios de trabalho e abásica ou praxiologia. Para Gama (1986, p.28),as quatro faces desse tetraedro se inter-relacio-nam e dialogam. Em cada uma delas, fica claroque a atividade tecnológica envolve um con-junto de conhecimentos organizados e sistema-tizados.

Portanto, a tecnologia é o estudo sistemáti-co científico organizado do processo de pro-dução, de diversos processos, relacionados comdeterminadas áreas do saber, os quais possuemuma metodologia.

O primeiro componente da definição detecnologia enquanto ciência, que é a tecnologiado trabalho, diz respeito à reflexão sobre a açãoe o estudo sistemático que se desenvolve pro-piciando um contribuir para o fazer; o segundoconsiste na tecnologia dos materiais, relacio-nada ao estudo da matéria utilizada no proces-so de produção; o terceiro é a tecnologia dosmeios de trabalho, que significa o saberconstruído sobre os instrumentos, as máquinasas ferramentas; e por último, o quarto, que é atecnologia básica ou praxiologia, se relacionaao estudo do como fazer, para se chegar àoperacionalização, dizendo respeito às disci-plinas, às técnicas, aos métodos e às represen-tações que contribuem com o agir.

Para que a atividade tecnológica se realize,são necessários conhecimentos científicos quenão sejam fragmentados, porque a tecnologianão é um agregado de técnicas ou disciplinas.“Tecnologia não é técnica, não é o conjunto dastécnicas. Então, tecnologia não é o fazer, massim o estudo do fazer, é o logos da técnica; é ologos, é o discurso, é o conhecimento sistemati-zado, é o raciocínio racionalmente organizadosobre a técnica.” (GAMA, 1994a, p.21)

Assim, além de propor uma definição detecnologia, Gama relaciona alguns itens quenão a configuram, ou seja, para ele a tecnologianão é um conjunto de técnicas, não é a formade construção das coisas, não é uma apropria-ção da natureza e nem a maneira de extraçãodos alimentos, o abrigo, as roupas e as ferra-mentas para a sobrevivência; não é o conjuntode ferramentas, máquinas, aparelhos ou dispo-

sitivos quer mecânicos quer eletrônicos, quermanuais quer automáticos; não é o conjuntode invenções; a tecnologia não é confundidacom os sistemas de marcas e patentes e com os“mecanismos” de venda; não é ciência aplica-da; não é mercadoria e não deve ser confundi-da com o modo de produção capitalista.

Essa visão abrangente de tecnologia con-templa o aspecto humano e social e entende atecnologia por moderna ao se referir ao capita-lismo contemporâneo, por ciência como umconhecimento organizado sistematizado, portrabalho como um processo, uma transforma-ção com a ação do ser humano sobre a nature-za, e por produtiva por envolver força de tra-balho, que gera a mais-valia do capital. A abor-dagem de Gama se preocupa com um universomaior, integrado aos processos de trabalho ede produção, diferindo assim da definição deVargas (1994b, p.213), a qual se constitui emuma visão mais específica, restrita às aplica-ções técnicas.

No mundo contemporâneo em que vivemos,criou-se a necessidade da atividade tecnológica,sem um comprometimento da tecnologia coma dimensão social. A tecnologia pode ser per-versa, se não estiver aliada à dimensão huma-na e social, pois não é neutra, nem mesmo nasua concepção (FIGUEIREDO, 1989, p.25).Nesse sentido, Faraco (1998, p.7) também afir-ma que a tecnologia modifica os modos do fa-zer humano e apresenta forte impacto sobre oviver do homem, transformando a organizaçãosocial, a consciência humana e os valores cul-turais.

Bastos (1998a, p.32) interpreta essas duasvisões de tecnologia na tentativa de contribuirpara a construção de um arcabouço teórico paraa educação tecnológica, mas não com a inten-ção de criar um novo conceito de tecnologia,mas sim de buscar caminhos para uma educa-ção tecnológica que leve em consideração osaspectos humanos, sociais, históricos, econô-micos e culturais, evitando desenvolver umaeducação eminentemente técnica, na qual o serhumano seja por ela subjugado. Isso corroboraa abordagem defendida por Gama (1986), quecompreende a tecnologia de uma forma mais

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Tecnologia, educação tecnológica e cursos superiores de tecnologia: uma busca da dimensão cultural, social e histórica

ampla, inserindo-a em uma dimensão social,histórica e cultural. Vale a pena, nesse momen-to, enfatizar que Gama não descarta a aplica-ção da tecnologia, ao contrário de Vargas quese atém apenas a ela.

Empenhado em trabalhar o diálogo da edu-cação com a tecnologia, Bastos (1998b, p.32)define-a nos seguintes termos:

Num contexto mais específico, a tecnologia podeser entendida como a capacidade de perceber,compreender, criar, adaptar, organizar e produzirinsumos, produtos e serviços. Em outros termos,a tecnologia transcende à dimensão puramentetécnica, ao desenvolvimento experimental ou àpesquisa em laboratório; ela envolve dimensõesde engenharia de produção, qualidade, gerência,marketing, assistência técnica, vendas, dentreoutras, que a tornam um vetor fundamental deexpressão da cultura das sociedades.

Bastos (1998b, p.33) ainda menciona a apli-cação da ciência, e acrescenta uma dimensãocultural, social e, portanto, humana à tecnolo-gia. Enfatiza que não é uma “dimensão pura-mente técnica”, um somatório de técnicas,como na concepção de Vargas (1994a, p.20).Ela envolve outras dimensões maiores, semdesprezar o aspecto técnico, muito embora nãose confunda exclusivamente com ele. Trata-se,assim, de abandonar uma visão empirista quecompreende a tecnologia como agregado detécnicas.

Gama (1986) não nega que a tecnologia sejavoltada à aplicação; ao contrário, inclui e aamplia ao inserir a idéia de ciência do trabalho.Nesse sentido, Bastos (1998, p.33) reforça a ne-cessidade de nos atermos também ao aspecto daaplicação, mas trabalha a concepção de tecnolo-gia, utilizando-se de conhecimento tácito, pelaexperiência, estabelecendo um diálogo entre in-terpretações opostas, mas complementares,ambas presentes no mundo vivido, em busca deuma reflexão para dialogar sobre a educaçãotecnológica, e apresenta também a idéia de quedevemos agir localmente, especificamente nomicro, mas com a visão do global (macro), paraum avanço da atividade tecnológica.

Uma vez apresentadas as reflexões sobre oentendimento de tecnologia como base para a

compreensão da dimensão de educação tecno-lógica, passaremos a analisar o diálogo da tec-nologia com a educação.

Educação tecnológica: um desafiopara além da aplicação técnica

A partir dos conceitos de tecnologia, Bas-tos (1998, p.32) apresenta sua contribuição ar-gumentando que a característica fundamentalda educação tecnológica é “(...) a de registrar,sistematizar, compreender e utilizar o conceitode tecnologia, histórica e socialmente construí-do, para dele fazer elemento de ensino, pes-quisa e extensão, numa dimensão que ultrapas-se os limites das simples aplicações técnicas,como instrumento de inovação e transforma-ção das atividades econômicas em benefício dohomem, enquanto trabalhador, e do país.”

Nesse contexto, a educação tecnológicadeve se relacionar a outras dimensões que nãodizem respeito somente aos aspectos de apli-cações técnicas, mas também aos aspectos so-cial, econômico, às políticas do processo deprodução, e à reprodução da tecnologia. Naconstrução dessa concepção de educaçãotecnológica, busca-se evitar a fragmentação doconhecimento, procurando vincular a concep-ção à execução, os conhecimentos científicosaos caminhos de suas aplicações e a uma cons-tante reflexão crítica sobre a ação, rompendo,assim, a utilização das técnicas como forma dedominação econômica.

Para Peil (1995, p.59), a educação tecnológi-ca exerce um papel estratégico para propiciaro desenvolvimento do país, sendo preciso, as-sim, “reinventar a roda” na perspectiva de umaeducação tecnológica para unir o que está di-vidido – a concepção e a execução. Na visãode Peliano (1998, p.34) isso é exigido no mun-do do trabalho para desenvolver “um projetoautônomo de gestão de sociedade”.

De acordo com Carvalho (1998, p.100), avisão de educação tecnológica de Bastos é im-portante para que ocorra um processo mais justoe igualitário, para que todos os humanos pos-sam usufruir dos avanços tecnológicos. No

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entanto, é preciso que haja transformações depensamento com relação à tecnologia, consi-derando-a como uma maneira de atender maisas necessidades sociais e o bem-estar de todos,não satisfazendo só os interesses de minoriaseconômicas, que ganham com a propagação deinformações não acessíveis a todos.

No presente cenário histórico, faz-se neces-sária a interação entre o processo produtivo e odesenvolvimento tecnológico, essencial paraque ocorra a democratização da tecnologia.

Uma educação tecnológica humanista, queconstrua o diálogo da educação com a tecnolo-gia pode estar vinculada à intenção de formarpessoas que busquem, na interpretação datecnologia, caminhos para minimizar as injus-tiças sociais por meio da interação com o pro-cesso produtivo.

Nesse processo de interação, existe o técni-co intermediário de nível superior que, de acor-do com Bastos (1998a, p.27), tem um papelfundamental para a geração do novo saber nasociedade moderna denominada de sociedadedo conhecimento. Morin (1991, p.17-23), aoreferir-se à cultura e ao conhecimento, os quaisestão relacionados às questões tecnológicas queenvolvem o desenvolvimento das sociedades,afirma que “(...) não é o saber mais rico, maisverdadeiro que adquire poder: é o saber maisoperacional (mágico ou técnico).”

Nessa perspectiva, o conhecimento é podere, hoje, se organiza de forma diferente. É umsaber gerado nos acontecimentos através dapráxis e não previamente imposto pelas basesdeterministas e positivistas. No seio de umacomunidade prática, ocorre a produção de umconhecimento tácito, que tem sido apropriadopelo capital, incorporado nas máquinas e naprodução da tecnologia, separando o trabalha-dor do seu saber, construído através da própriaexperiência. Esse conhecimento se comunicana prática do fazer e pelo estado da prática, sema lógica do código oficial de comunicação. Nãoé transmitido pelo discurso, sendo incomuni-cável pelo código de linguagem oficial e, alémdisso, extrapola os limites da demonstração.

Esse conhecimento tácito, produzido nomundo da práxis, é de fundamental interesse

estratégico na conjuntura atual. O acesso a esseconhecimento implica em inovações e é maisimportante do que os recursos financeiros parao mercado, pois tem uma importante implica-ção nas inovações demandadas pelo setor pro-dutivo. Nesse sentido, a escolha do processo deinovação relaciona-se à capacidade de interpre-tação, no contexto específico de utilização, comfoco em problemas e soluções imediatas.

Esse processo exige equilíbrio entre o sa-ber formal e o tácito, desenvolvendo a inter-pretação. O trabalho produtivo, fundamentadono saber tácito, reflete-se de forma sensívelsobre a empresa em sua concepção e organiza-ção. Assim, surge uma nova concepção “deorganização”, a toyotista, com base no sabertácito, a qual define, de forma flexível, os pa-péis desempenhados pelas pessoas no mundodo trabalho. Cria-se uma nova cultura de tra-balho, pela resolução de problemas práticos,de forma interativa com discussões e comuni-cação de grupos de trabalho.

Para Bastos (1998a, p.27), tal procedimen-to é oposto ao que se vem sendo praticado comrelação ao conhecimento formal, que tem umcódigo determinado, mecânico e burocrático,em que os papéis das pessoas são previamenteditos, estabelecidos e organizados de forma rí-gida, com pessoas à margem do processo pro-dutivo.

As pessoas realizam atividades intermediá-rias e apresentam condições de elaborar sabe-res e informações para comunicar à rede do tra-balho. “O tratamento destas informações nãovem de cima, segundo os critérios de escalõessuperiores e de acordo com comandos defini-dos pela linha hierárquica. As informações sãotratadas noutro nível, em contato permanentecom o exercício do trabalho.” (BASTOS,1998a, p.27)

Nesse sentido, as interações ocorrem no pro-cesso de reprodução e refazem o agir. A inter-pretação dos conhecimentos articulados nosmanuais emerge como necessidade para enten-der os códigos, muitas vezes confusos,enfocados nos seus conteúdos, favorecendo acriação colaborativa, os trabalhos de equipe epropiciando a elaboração do saber. Isso possi-

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Tecnologia, educação tecnológica e cursos superiores de tecnologia: uma busca da dimensão cultural, social e histórica

bilita a mediação de informações horizontais everticais, trabalhadas permanentemente comrelação aos procedimentos, resolução de pro-blemas e exercícios de escolha.

Na dinâmica da movimentação da informa-ção “os processos se alteram em busca detecnologia” (BASTOS, 1998a, p.28), que secriam a partir da aproximação entre o conce-ber e o executar por via da informação da ino-vação. Em uma outra etapa, as novas dimen-sões do saber reorganizam o processo produti-vo e instaura-se um diálogo da educação coma tecnologia.

De fato, as idéias de Bastos (1998a, p.11)nos levam a pensar que a tecnologia vinculadaà educação pode produzir frutos no desenvol-vimento do país, no sentido de construirmosuma nação soberana. Para tanto, não se podeapartar a técnica do conhecimento científico,no sentido de dividir o indivisível para desen-volver a atividade tecnológica.

A partir dessas abordagens, é importante ana-lisar como se deu a evolução da idéia da im-plantação dos cursos superiores de tecnologia.

A evolução da idéia dos cursos su-periores de tecnologia

A história do ensino superior de curta dura-ção no Brasil data do século XIX. As primei-ras tentativas interessantes e sugestivas remon-tam à segunda metade do mesmo século. Oscursos de nível superior existentes naquela épo-ca, de curta duração, com carga horária reduzi-da em relação aos cursos tradicionais, ligadosàs faculdades, tiveram como objetivo a forma-ção de profissionais para desempenhar ativi-dades específicas.

Conforme o Departamento de AssuntosUniversitários do Ministério de Educação eCultura – DAU/MEC (BRASIL, 1977, p.286),as primeiras iniciativas de implantação de cur-sos superiores de curta duração “(...) não che-garam a consolidar-se, nem na legislação nemna prática, e foram gradativamente abandona-das.” Até 1918, tivemos notícias de cursos su-periores de curta duração na história da educa-

ção brasileira, porém a discussão sobre eles sófoi retomada na década de 40, com a Consti-tuição de 1946, com o projeto da LDB – Lei deDiretrizes e Bases de Educação Nacional.

No final da década de 1940, com o Projetode Lei de Diretrizes e Bases, Lei Nº 4.024, sóaprovada em 1961, foi possível atender às rei-vindicações de muitos educadores em relaçãoà flexibilidade da lei ao aspecto rígido da dura-ção dos cursos superiores.

A partir de 1962, tivemos a semente de cri-ação dos cursos superiores de tecnologia, atra-vés de vários estudos, planos, relatórios, co-missões e convênios estrangeiros, delineadoresde dois objetos básicos: um para as necessida-des do mercado e outro para a demanda emmassa, pelo ensino superior.

Esses cursos surgiram no final dos anos1960 e início dos anos 1970. Para Bastos (1991,p.12), tinham como objetivo atender parte domercado, a partir de constatação de que as ocu-pações do mercado de trabalho estavam seampliando e se diversificando, exigindo quali-ficação e novos profissionais. Em contrapartida,a formação educacional continuava nos trêsníveis – elementar, médio e superior – nãoabrindo espaço a outras formas de aprendiza-gem profissional.

Nesse período, em meio ao “milagre eco-nômico”, na década de 70, durante o regimemilitar, Lima Filho (1999a) afirma que os Cur-sos de Tecnólogos buscavam ser uma alterna-tiva ao ensino de 3º grau de graduação plena.Esses cursos tinham como características cur-rículos menos densos e mais especificidades,eram mais práticos e intensivos, com menorduração e maior terminalidade, e foram cria-dos na tentativa de conter a demanda por va-gas nas universidades e propiciar uma rápidaformação de técnicos, em cursos de curta du-ração, para atuarem no mercado, de forma in-termediária entre o técnico de nível médio e ode graduação plena da universidade. A esse tipode profissional caberia a execução de tarefas,enquanto ao graduado na universidade caberiaa tarefa de concepção.

Para o desenvolvimento de processos e apli-cação de tecnologia, é necessária a atuação em

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conjunto do tecnólogo e do graduado de forma-ção plena da universidade. E, na opinião de Bas-tos (1991, p.13), “(...) deve haver complemen-taridade e interdependência, como elementosimprescindíveis para compreensão da totalida-de das relações entre esses profissionais, assimcomo das atividades por eles exercidas.”

Com o advento do I Plano Setorial de Edu-cação e Cultura 72/74, o Ministério da Educa-ção e Cultura (MEC) passou a incentivar a im-plantação gradativa dos cursos superiores decurta duração sob a coordenação e apoio finan-ceiro do Departamento de Assuntos Universi-tários (DAU). Esse departamento deu apoio deforma mais sistemática à criação dos cursossuperiores de tecnologia por meio do Projeto19, intitulado “Incentivo à Implantação de Cur-sos Superiores de Curta Duração” MEC/DAU(BRASIL, 1977, p.287).

Segundo o referido projeto, a implantaçãodos cursos superiores de curta duração ocorreusob o discurso de que as mudanças no mundosocial e econômico exigiam formação de pes-soas qualificadas, rapidamente, em nível supe-rior e em tempo hábil atendendo a interessesdiversificados e a especialização de atividades.O incentivo se deu principalmente para cursossuperiores voltados à graduação em tecnologia,aproveitando a infra-estrutura das universida-des federais.

Esse fato foi questionado por alguns teóri-cos como Peterossi (1980) e Bastos (1991), osquais indagaram se a universidade deveria serrealmente o espaço mais adequado a essa cria-ção, já que estes cursos apresentavam caracte-rísticas peculiares, muitas vezes opostas àque-las praticadas nas universidades.

Com a vinda do Projeto 15 (75/79) do IIPlano Setorial de Educação e Cultura (II PSEC),com características do já comentado Projeto 19,estabeleceu-se uma política de educação parao país, para racionalizar a formação de profis-sionais de nível superior, visando atender aodesenvolvimento econômico associado à edu-cação e ao sistema social. Dessa forma, o MECpassou a supervisionar mais de perto a criaçãoe o funcionamento destes cursos superiores, pormeio da Coordenadoria de Cursos de Curta

Duração, conforme recomendava a filosofia doProjeto.

Sobre o assunto, Bastos (1991, p.16) cha-ma a atenção para os requisitos básicos de im-plantação de cursos:

a) aproximação de mercado; b) pesquisa rigoro-sa de mercado de trabalho; c) implantação decursos somente nas áreas profissionais de que omercado necessita e solicita; d) número de va-gas fixado de acordo com condições da institui-ção de ensino e conforme a capacidade de ab-sorção dos formados; e) diminuição do númerode vagas e desativação do curso quando houversaturação de profissionais no contexto regional;f) corpo docente, equipe de laboratorista e ins-trutores dos conteúdos profissionalizantes apro-veitados das empresas.

No entanto, muitas instituições não respei-taram as recomendações e sequer possuíam osrequisitos mínimos, acima citados, criando,muitas vezes, cursos sem estrutura, com pro-blemas os mais diversos. Isso se deu, em parte,devido ao fato de as universidades terem umarelação fraca com a comunidade bem como nãodisporem de um ambiente acadêmico propícioao entendimento dos referidos cursos. A outraface do problema apareceu em algumas insti-tuições privadas que se interessaram em mi-nistrar tais cursos, sem respeitar as exigênciasmínimas requeridas para sua implantação.

Entre 1973 e 1976, ocorreu um aumento donúmero de cursos para formação de tecnólogos,implantados em todo o país, abrangendo as áre-as tecnológicas e agrárias. Mesmo com essecrescimento, houve registro de resistência porparte de alunos e docentes na implantação des-ses cursos voltados para a área de saúde, comexceção de cursos como Fonoaudiologia,Ortóptica e Peripatologia. Apesar dos obstácu-los, verificou-se grande aceitação dos cursosde formação de tecnólogos voltados à forma-ção do Fisioterapeuta e do Terapeuta Ocupacio-nal, afirmando a validade da idéia de se cria-rem cursos intermediários entre 2º grau profis-sionalizante e cursos de longa duração de ní-vel superior. Na mesma época, a criação doCurso de Tecnólogo de Saneamento Ambientalencontrou obstáculos por parte de órgãos em-pregadores no mercado de trabalho. Isso frus-

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Tecnologia, educação tecnológica e cursos superiores de tecnologia: uma busca da dimensão cultural, social e histórica

trava alguns grupos cujos interesses ficavamacima dos desejados pela sociedade, porque ocurrículo desse curso se direcionava as neces-sidades, na expectativa de resolução de proble-mas brasileiros (BRASIL, MEC/DAU, 1977,p.89-90).

Entre 1975 e 1980, em termos quantitati-vos, os cursos superiores de curta duração cres-ceram rapidamente atingindo, em 1980, umtotal de 138, sendo que, entre 1973 e 1975,havia apenas 28. Com o término do Projeto doPlano Setorial de Educação, em 1980, a Coor-denação dos Cursos Superiores de Tecnologiase dissolveu, e a supervisão destes cursos pas-sou a diferentes Coordenadorias da Sub-Secre-taria de Desenvolvimento Acadêmico, confor-me suas áreas de conhecimento e atividade pro-fissional.

Antes de terminar o Projeto do PlanoSetorial de Educação em 1979, o ConselhoFederal de Educação já havia definido, atravésda Portaria de nº 49, de 23 de abril de 1979, noArt. 2º, que o profissional formado nos cursossuperiores de tecnologia, referentes ao Art. 18da Lei 5.540/68, teria a denominação de gra-duado em curso superior de tecnologia com aqualificação e a modalidade determinadas pelorespectivo curso. No Art.3º, ocorreu a aberturaem relação ao Art. 2º para uma denominaçãodiferente. Ademais, o Parecer 1.149/76, doCFE, já havia estabelecido o nome tecnólogopara os egressos desses cursos de nível superior(SOUZA, 1980, p.110).

Diversos estudos foram conduzidos em re-lação a esses cursos, também intitulados cur-sos para formação de tecnólogos. Dentre eles,destacamos o Relatório sobre Carreiras de CurtaDuração, apresentado ao Departamento de As-suntos Universitários - MEC/DAU (BRASIL,1977, p.99) pelo Dr. Victor Spathelf, que foiconsultor do Projeto 19, em julho de 1974, oqual afirmou que a implantação dos cursos detecnólogos não deveria ser feita de forma iso-lada e ocasional.

Ainda segundo Spathelf, dever-se-ia atacaro problema de frente, pois já em 1974 se apre-sentava a necessidade de convencer, através dediscursos, a sociedade e os educadores da seri-

edade e da necessidade dessa formação. Emnosso país, havia carência de profissionais comexperiência e dedicados à educação tecnológi-ca, com formação em planejamento de progra-mas, “avaliação, desenvolvimento de currícu-los, instrução, educação do corpo docente, fa-cilidade de planejamento, supervisão, coorde-nação e administração” (BRASIL, MEC/DAU,1977, p.119). O autor afirma também que asexperiências de implantação de cursos de paraformação de tecnólogos em espaços própriosfora das universidades oferecem melhores re-sultados.

De acordo com o relatório de Haltermansobre os cursos de tecnólogos, na área da agri-cultura, apresentado ao DAU, em outubro de1975, as universidades estavam fortemente di-recionadas para a formação de longa duração,encontrando pouco entusiasmo por parte dosdocentes para trabalharem com cursos de curtaduração (tecnólogo), pois, para a formação des-se novo profissional, se exigia um maior esfor-ço no acompanhamento do processo de forma-ção, de uma maneira diferente do que vinhasendo feito na forma tradicional de educaçãosuperior.

A organização das universidades em seto-res, departamentos e cursos proporciona pou-ca interação entre os saberes que cada um de-les produz. Por uma tradição secular, isso já secristalizou de maneira tal que se observa resis-tência a mudanças nessa ação (CARVALHO,1998, p.90). Os cursos acadêmicos têm apre-sentado fragmentação do saber, proporciona-do uma visão parcial da realidade. As discipli-nas são estudadas de forma isolada e estanque,nos currículos escolares.

Diante dessa situação, houve o entendimen-to por parte do Diretor do MEC/DAU (BRA-SIL, 1977, p.205) da necessidade de recriarcentros destinados a ministrar cursos superio-res de curta duração com início, meio e fim,exigindo-se flexibilidade e agilidade, sem gran-des demoras burocráticas no seu funcionamen-to, possibilitando o bom desempenho dos cur-sos para formação de tecnólogos.

A idéia de criação de Centros de EducaçãoTecnológica pelo DAU/MEC (BRASIL, 1977,

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p.243) estimula a criação, em 1976, do Centrode Educação Tecnológica da Bahia (CENTEC),com o apoio do governo do Estado da Bahia ecom a colaboração do Conselho Britânico, con-forme a Lei de Nº 6.344, de seis de julho de1976. Essa foi a primeira referência de experi-ência em instituição federal, com finalidadeexclusiva de preparar tecnólogos e propiciar odesenvolvimento da Educação Tecnológicacom bom desempenho das atividades, confor-me as orientações do MEC/DAU (BRASIL,1977, p.242).

A formação do tecnólogo é diferenciada datradicional, pois não está vinculada às caracte-rísticas básicas, à organização e à duração doscursos superiores tradicionais. A intenção é deformar um profissional com possibilidades defazer relações, um elo entre o engenheiro tra-dicional e o técnico de nível médio, como ele-mento essencial no desenvolvimento do pro-cesso produtivo, na perspectiva de se criartecnologia brasileira.

As três Escolas Técnicas (de MG, PR e RJ)foram autorizadas a implantar também cursosde tecnólogo, perfazendo três níveis de forma-ção: engenheiro industrial pleno, tecnólogo etécnico de 2º grau. Esse conjunto transformouas três Escolas Técnicas Federais, já mencio-nadas, em Centros Federais de EducaçãoTecnológica – CEFETs.

De acordo com o MEC/DAU (BRASIL,1977, p.83), a proposta dos cursos superioresde tecnologia se voltaria ao desenvolvimento,com ênfase na economia educacional, sabertécnico, recursos humanos, perfil ocupacional,mercado e circunstâncias tecnológicas, pois osreferidos cursos eram de longo alcance e pro-piciavam o desenvolvimento da tecnologia, ede natureza prospectiva, com perspectiva deatender a futuras necessidades nacionais.

O projeto de implantação dos cursos paraformação de tecnólogos tinha como finalidadeatender à dinâmica da realidade vivida pelasociedade brasileira, com modernização, exi-gindo respostas rápidas, sem soluções onero-sas e ultrapassadas, sempre na perspectiva daconstrução de uma sociedade brasileira desen-volvida.

No que diz respeito à duração, esta seriasuficiente para alcançar uma boa formação pro-fissional, em tempo hábil, considerando que aformação seria restrita e intensiva, com carac-terísticas práticas, dispensando-se a sedimen-tação do saber e o amadurecimento pessoal,características do ensino universitário tradici-onal. Porém, para Bastos (1991, p.27), a for-mação de nível superior exige conhecimentoscientíficos e tecnológicos construídos em umtempo mínimo de amadurecimento e aprofun-damento. Esse mínimo é o necessário e não sig-nifica uma formação do tecnólogo a-crítica,sem base histórica e social. Para a sedimenta-ção dos conhecimentos e das concepções dosalunos, importa a compreensão das aplicaçõestecnológicas no processo produtivo.

A formação do tecnólogo, apesar de ser in-tensiva e técnica, não deve ser limitada, no sen-tido de não trabalhar os aspectos de formaçãohumanística de forma geral, buscando evitar cairno erro de proporcionar uma formação eminen-temente técnica e mecânica, formando um “serfunção”, isto é, apenas a serviço das empresas.Dessa forma, a formação do profissional nãopode apontar para um sentido do imediato, ouseja, o de só se conseguir um emprego.

Em geral, no processo de implantação doscursos superiores de tecnologia, ocorrem críti-cas, contribuições, avaliações, perspectivas,pré-conceitos, implicações sociais e humanas,que serão tratados a seguir.

A complexa implantação de cursossuperiores de tecnologia

No processo de implantação dos cursos su-periores de tecnologia (Brasil, 1977, p.227)surgiram alguns problemas. Em princípio, tem-se a relação entre a implantação dos cursos e auniversidade. Uma certa permeabilidade entreos sistemas de cursos superiores tradicionais ede curta duração é salutar, porém as experiên-cias anteriores demonstraram que eles devemser desenvolvidos em estabelecimentos distin-tos de ensino superior para que ambos assu-mam suas identidades.

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Tecnologia, educação tecnológica e cursos superiores de tecnologia: uma busca da dimensão cultural, social e histórica

Um outro aspecto é o relacionamento entreos cursos de curta e os de longa duração. Umcurso superior de curta duração não corres-ponde à primeira parte do curso de longa dura-ção. A intenção não é de impedir a passagemdo ensino superior de curta duração para o cur-so superior de longa duração, mas de possibili-tar o desenvolvimento do primeiro; quando osdois cursos (o curto e o de longa duração) fo-ram ministrados em uma mesma instituição,constatou-se o esvaziamento do primeiro emfunção do segundo.

Somado a esses dois fatores, um terceirofator a ser apontado seria o fato de que o cursosuperior de curta duração não poderia ter a fun-ção de adestramento com o objetivo de formartécnicos com formação restrita, sem o mínimonecessário de conhecimento cultural que lhepossibilite ser um cidadão com o entendimen-to do mundo no qual vive; além disso, poderiaexistir a possibilidade de o curso de tecnólogonão ter identidade própria, correndo o risco dedesfazer-se dentro da estrutura departamentaldas universidades.

Nesse sentido, não foi adequada a formacomo os cursos para formação de tecnólogosforam implantados, pois foram ofertados para-lelamente aos outros cursos superiores de lon-ga duração nas universidades e geraram com-parações diversas, com juízos de valor, pelomenos implícitos, criando sentimentos de in-satisfação e de insegurança, vinculando a idéiaaos estudantes de passarem dos cursos de cur-ta duração para os de longa duração, descaracte-rizando, assim, os objetivos destes, o que le-vou à extinção de muitos cursos de tecnólogos.

Uma outra questão que dificultou a implan-tação dos cursos superiores de curta duraçãofoi de ordem cultural, ou seja, o valor que sedava ao curso superior tradicional, devido ao“status”, mediante a obtenção do diploma de“doutor”, “bacharel”.

Na visão de Peterossi (1980, p.59), não es-tavam claros os objetivos da preparação do téc-nico no país para atender às tendências do mer-cado, bem como não havia clareza com rela-ção aos dados concretos sobre as reais necessi-dades do desenvolvimento do mercado brasi-

leiro. As três funções básicas atribuídas a essaeducação, na opinião de Peterossi (1980, p.59),são as de conter o social com reflexo político,o financeiro e o cultural, tendo como base odiscurso da reforma universitária e o desenvol-vimento econômico. Com relação a este, a jus-tificativa do “mercado de trabalho refere-semais a uma projeção, talvez otimista, talvez ilu-sória, do que a uma realidade percebida ou porse fazer” (1980, p.60).

A concepção frágil de formação para o mer-cado, que se propaga como um discurso ho-mogêneo, cria o “homem função”, sem parti-cipação crítica na sociedade. Na origem da pro-posta do curso de tecnologia, segundo Peterossi(1980, p.63), não foi dito como se daria o cres-cimento econômico com formação social sub-desenvolvida, dentro do contexto mundial.Nesse sentido, caberia questionar se o referidocurso não estaria contribuindo para fortalecero sistema capitalista dependente.

Com relação ao próprio termo tecnólogo,há ambigüidade. Segundo Peterossi (1980,p.70), pode significar “meio para produzir” ou,também, mas não necessariamente, “competên-cia para inovar”. Isso a leva a indagar se otecnólogo é um operador ou um inovador, en-fim, qual é a sua competência. Em relação ao“status” do egresso, que é de natureza interme-diária, torna-se ambígua a interpretação da suaocupação, denominando-a ora como de técni-co, ora como de engenheiro especializado.

Os pontos de conflito na implantação doscursos superiores de tecnologia foram: a clien-tela dos cursos superiores de tecnologia comsuas expectativas e conflitos; a política de cres-cimento dos cursos e sua receptividade no am-biente universitário; a aceitação dos egressosno mercado de trabalho; a organização estru-tural dos cursos com terminalidade, e a sua fun-ção social empresarial.

Segundo Bastos (1991, p.19), os cursos su-periores de tecnologia foram criados em plenodesenvolvimento econômico, dentro do siste-ma capitalista; isso ocorreu também com oscursos tradicionais de nível superior, na áreade engenharia.

Os cursos superiores de tecnologia se dife-

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renciam radicalmente do ensino de 3º grau su-perior tradicional, por estarem estagnados emmétodos e uniformidade na forma de ensinar,com características de repetição e com disci-plinas de conteúdos vazios e ultrapassados, deforma fragmentada.

Além disso, Bastos (1991, p.20) argumentaque os cursos superiores de tecnologia não têma função de adestrar os tecnólogos, ao contrá-rio, exigem uma formação crítica do profissio-nal, para que ele saiba os “porquês” da inser-ção das tecnologias em cada etapa do processoprodutivo, a fim de que, diante desse conheci-mento, seja inovador. O tecnólogo é um “in-térprete” das tecnologias, enfrenta desafios econtribui para o desenvolvimento do país, hojecom vida mais complexa.

Nessa perspectiva, a formação profissionalé direcionada para o imprevisível, ultrapassa otaylorismo, e busca formação flexível e dura-doura, com busca de aprendizagem, e não arma-zenamento de conhecimentos.

O professor, nesse processo, não é o donodo saber, mas é alguém que participa junto como aluno, e não deixa de contribuir com o co-nhecimento que sistematizou ao longo de suavida; dialoga, com atitudes prospectivas e pos-turas de superação de fragmentação do conhe-cimento, e organiza um saber comprometidocom a sociedade e um fazer com característi-cas de criatividade.

Trata-se de propiciar uma “(...) aprendiza-gem baseada na antecipação dos fenômenostecnológicos, na curiosidade dos processos ló-gicos e analíticos e no desenvolvimento depotencialidades para explorar o sentido de par-ticipação, reflexão, crítica e inovação.” (BAS-TOS, 1991, p.54).

Os cursos superiores de tecnologia não nas-ceram ao acaso, mas com base em fundamen-tos da nossa filosofia educacional e de nossalegislação, com amadurecimento das idéiascaracterizando-se em uma experiência inova-dora no processo educacional.

Somada à separação que existe entre os prin-cípios educacionais enunciados na lei e o quese faz no chão da escola, “(...) cria-se, então,uma dicotomia entre o que se pensa e o que se

faz, ou melhor, não se faz o que se pensa.”(BASTOS, 1991, p.25)

Já em 1962, Teixeira afirma que existe essadistância entre os valores proclamados em leie os valores reais. Desde o Brasil Colônia “(...)nos acostumamos a viver em dois planos o“real”, com suas particularidades e originali-dades, e o “oficial” com os seus reconhecimen-tos convencionais de padrões inexistentes.”(1962, p.62). Essa questão é retomada porPeterossi (1997) quando afirma que uma lei,um decreto não forma um tecnólogo.

Essa realidade, com algumas exceções, nãoé diferente nem mesmo nas escolas técnicas eprofissionalizantes com relação aos planos deimplantação de cursos com defasagem e dosesde irrealismo do vivido na escola. Nesse senti-do, Bastos (1997, p.25) argumenta que: “Nes-se ambiente, percebe-se a separação entre osvalores formais e os reais; a famosa discrepân-cia entre a lei e a realidade, teoria e práticas,formação acadêmica e qualificação para o tra-balho. As leis, nesse contexto, são meras pros-pecções de visões de um futuro longínquo eintencional, que não considera o acontecido nopresente e o que se processou no passado.”

Na prática, essas questões provocaramdistorções da proposta inicial para a formaçãode tecnólogos, uma vez que se desconsidera oque acontece no presente e ignora-se o queocorreu no passado, além de que a fragmenta-ção do saber também está presente nas escolasprofissionais. Verifica-se, conforme Carvalho(1998, p.90) que o processo de desenvolvimen-to das capacidades técnicas e de estudos nasescolas profissionais ocorre sem uma preocu-pação de fornecer ao aluno uma visão maiscompleta da realidade.

Dessa forma, falta trabalhar aí uma visãodas implicações sociais e humanas do mundotécnico, evitando separar o conhecimento dasciências humanas daquele das ciências técni-cas, buscando compreender o todo e as partesdo processo produtivo, para formar umtecnólogo crítico. Para tentar reverter este qua-dro, a educação tecnológica se constitui em umapossibilidade de contribuição para a formaçãodo tecnólogo.

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Tecnologia, educação tecnológica e cursos superiores de tecnologia: uma busca da dimensão cultural, social e histórica

De acordo com Bastos (1991, p.26), o for-malismo expande-se também para o meio em-presarial e as associações profissionais, os quaisencaram o tecnólogo como um “concorrenteindesejável no campo profissional”.

Além desses fatores, considere-se que “(...)a regulamentação da carreira, por parte do Mi-nistério do Trabalho, é também um processolento e cartorial que nem sempre leva em con-ta a objetividade das experiências profissio-nais.” (BASTOS, 1991, p.26)

Com relação ao mercado de trabalho e oscursos de tecnólogos, é perigoso estabeleceruma vinculação excessiva com o mercado, queé variável. O mercado é um referencial da rea-lidade do mundo produtivo para o exercícioprofissional; assim, ele não deve direcionar otecnólogo para ações restritas a tarefasocupacionais. Em princípio, deseja-se, com aformação do tecnólogo, “(...) preparar o indi-víduo para projetar a teoria sobre a prática,desenvolvendo o pensamento crítico em con-dições de enfrentar os desafios da ação. Trata-se de um processo lento, que exige maturaçãoe tempo de aprofundamento.” (BASTOS, 1991,p.27). Portanto, a formação se distancia enor-memente do treinamento para a ocupação detarefas. Assim, trata-se de vincular a concen-tração dos conteúdos tecnológicos como ele-mento fundamental e necessário para formar otecnólogo.

Além dos aspectos acima citados, inúme-ros problemas afetam os cursos superiores detecnologia, grande parte deles originados peladistorção da filosofia inicial desses cursos que,com defasagem tecnológica, não atendem àsnecessidades locais e regionais, com currícu-los estáticos e outros fatores.

Destaca-se, por exemplo, a facilidade decopiar planos de cursos já aprovados pelo Con-selho Federal de Educação deixando-se de cri-ar novas modalidades de cursos, segundo asnecessidades regionais e locais, distanciando-se enormemente do princípio inovador e cria-tivo, peculiar dos cursos superiores de tecnolo-gia, o qual propõe originalidade face às carac-terísticas de cada região.

Para a implantação de um novo curso de

tecnologia, é necessário um diagnóstico sócio-econômico, com características das condições easpirações da sociedade, com perspectivas eco-nômicas, e estudo de desenvolvimento tecnoló-gico regional, com projeção para o futuro.

Soma-se a este fato a estruturação do currí-culo, que deve primar pela verticalidade, comaprofundamento em determinado ramo tecnoló-gico, com densidade e intensidade dos saberesespecíficos dos ramos escolhidos. Os conteú-dos devem ser inseridos de forma integral, evi-tando-se fragmentar o conhecimento.

Faz-se necessária também a horizontalidade,que se dá no sentido de propiciar coesão inter-na na organização escolar, buscando diluir aidéia de disciplinas, pela busca de uma interdis-ciplinaridade, evitando a fragmentação dentrodas disciplinas e no conjunto. É fundamental oaprofundamento histórico e crítico da origeme do desenvolvimento das técnicas e das tec-nologias.

Para se evitar a separação entre teoria e prá-tica, sugere-se a interdependência dos conhe-cimentos teóricos com as suas aplicações, ne-cessitando de um direcionamento dos conteú-dos, em relação aos aspectos teóricos rumo aoprático, trabalhados de forma sistematizada.

A visão dos processos produtivos é neces-sária para a compreensão precisa da realidadeempresarial, da eficiência econômica, na ten-tativa de propiciar uma aproximação da for-mação do tecnólogo e das condições de traba-lho no mundo vivido. Para tanto, o estágiotecnológico não deve ser improvisado, pois é omomento, de fato, em que o tecnólogo irá de-sempenhar, na prática, os conhecimentos ela-borados e sistematizados em sua formação.

Finalmente, a visão didática sugerida éaquela que tenha o entendimento da aprendi-zagem como um processo inacabado, isto é,alguém sempre estará aprendendo (WENGER,1999, p.53), pois a formação de uma pessoanunca estará pronta; ela sempre estará apren-dendo ao longo de toda a sua vida, negociandosignificados. As atividades nunca acabam, sem-pre se está fazendo e refazendo tudo.

Os cursos para tecnólogos no Brasil foramrejeitados por algumas camadas sociais, visto

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que a sociedade é marcada pelo formalismo epela tradição.

A resistência e os preconceitos com relaçãoao valor desses cursos, em comparação com osdemais desenvolvidos pelas universidades,criaram juízos de valor sendo aqueles, supos-tamente, destinados a uma parcela de pessoasque não passaram nos vestibulares oferecidosàs formações tradicionais. Ademais, a Univer-sidade, em grande parte, rejeitou o projeto doscursos superiores de tecnologia considerando-o como um projeto político que iria alinhavarpara formar um profissional a-crítico, mais um“robô”, uma máquina sofisticada.

Diante disso, deparamo-nos, então, comuma aparente contradição na concepção e noencaminhamento da criação dos cursos detecnologia. De um lado, o preconceito sócio-cultural em relação às profissões técnicas, e deoutro, uma economia dependente e reguladapelo capital estrangeiro.

Desde 1968, os cursos superiores detecnologia, reconhecidos pelo MEC, formado-res de tecnólogo têm recebido diversas críticase enfrentado muitas dificuldades. A implanta-ção de tais cursos recebeu apreciações favorá-veis dos Ministros e do Presidente da Repúbli-ca, em 1975. Ela foi, segundo autores, exausti-vamente estudada pelo Conselho Federal deEducação, como também por parte de técnicosbrasileiros e especialistas estrangeiros. Entre-tanto, com o passar do tempo, diante das difi-culdades perdeu o seu vigor inicial.

Além de tudo, de acordo com Bastos (1991,p.31), os cursos superiores de tecnologia nãoforam assumidos pelo sistema que o criou, oque se comprova pelo fato de que, há anos, tra-mita no Congresso Nacional a legislação acer-ca da profissão de tecnólogos no Brasil semque haja aprovação, em parte por pressões dosÓrgãos de Classe e de outros segmentos danossa sociedade.

A implantação dos cursos de tecnologia vemsendo conflituosa e complexa, havendo inter-pretações as mais diversas com relação ao pró-prio curso, dificultando o sucesso de sua im-plantação. Bastos (1991, p.24) argumenta quenão houve clareza com relação ao entendimento

dos seus objetivos, da sua filosofia, não porqueo projeto não tenha sido bem fundamentado, maspelos erros cometidos por parte do governo naestratégia de implantação e na ausência de umamaior discussão com a comunidade e o merca-do num contexto de regime militar.

Contudo, percebemos que, quando houvecasos de compreensão da proposta e procurou-se seguir as recomendações mínimas para a suacriação, de acordo com a MEC/DAU (BRASIL,1977, p.232) obteve-se sucesso, no sentido dese atender aos objetivos propostos, como, porexemplo, ocorreu nos cursos desenvolvidos foradas universidades ou em universidades que nãotinham como tradição a formação de profissio-nais tradicionais e cujas dificuldades burocráti-cas e administrativas eram mínimas. No âmbitodas universidades e onde não houve completacompreensão das propostas e da filosofia inicialdo projeto dos cursos superiores de curta dura-ção, gerou-se muita controvérsia e, conseqüen-temente, houve a extinção desses cursos, acar-retando prejuízos na institucionalização da pro-fissão de tecnólogo.

Na opinião de Lima Filho (1999b), ao tér-mino dos anos 1970 os cursos superiores detecnologia se propagaram por todo o País, emtorno de uma centena e meia de cursos minis-trados em mais de 50 instituições de caráterpúblico, privado e em escolas técnicas. Elesapresentavam características diferenciadas dasdos cursos tradicionais da universidade, queapresentavam métodos de repetição e unifor-mização no ensino. Eles se propunham a seruma proposta alternativa ao sistema tradicio-nal de 3º grau, curso com certa flexibilidade,currículo de menor densidade, com especifici-dade, atividade prática e intensiva, com menorduração e terminalidade. A atuação do profis-sional egresso desses cursos se situaria em umnível intermediário, entre o profissional da gra-duação tradicional e o técnico de nível médio.(BASTOS, 1991; LIMA FILHO, 1999b).

Segundo Bastos (1991, p.13), o técnico denível superior estaria voltado para a execuçãode tarefas, o “como” fazer, voltado para a apli-cação dos saberes científicos, com domínio datécnica, e os graduados pelos cursos de longa

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Tecnologia, educação tecnológica e cursos superiores de tecnologia: uma busca da dimensão cultural, social e histórica

duração estariam atuando na atividade de con-cepção, desenvolvendo ciência e análise críti-ca da sociedade. Isso não significa que um sejainferior ao outro profissional quanto à constru-ção do conhecimento que exige a atuação emconjunto dos diversos níveis profissionais parainventar e reinventar a tecnologia.

Em 1980, a Coordenação dos Cursos Supe-riores de Tecnologia do MEC foi dissolvida.Dessa data até 1996, não houve estratégias go-vernamentais e discussões amplas com a soci-edade brasileira a respeito desta questão doscursos superiores de tecnologia. Em conseqü-ência da Lei 9.394, de 20.12.96 – Lei de Dire-trizes e Bases da Educação Nacional do De-creto 2.208, houve a retomada da implantaçãodos cursos superiores de tecnologia.

Considerações finais

Na busca de significados desses conceitos,trabalhamos o ponto de vista de alguns autoresde forma singular e localizada. Na dimensãoteórica, discutimos o entendimento de tecnolo-gia e educação tecnológica tendo como base,sobretudo, os substratos teóricos de Vargas,Gama e Bastos. Na dimensão histórica retoma-mos a história dos cursos superiores detecnologia.

Abordamos a tecnologia dentro de duas cor-rentes, opostas, mas complementares entre si.Uma corrente trata a tecnologia de forma menosabrangente, como uma ciência aplicada próximada concepção de Vargas (1994a, p.192). A outracorrente entende a tecnologia de forma maisabrangente inserindo-a numa dimensão social ehistórica indo além da aplicação sem descartá-la,e tem como seu representante Gama (1986).

Para avançarmos na relação entre a tecnolo-gia e a educação tecnológica, e assim alcançarmelhor compreensão da questão histórica, dis-cutimos algumas idéias trabalhadas por Bastos(1991, 1997, 1998a e 1998b). Ele interpreta atecnologia desenvolvendo um diálogo que vin-cula a educação, no sentido amplo, com atecnologia e acredita que a criação e a inter-pretação da tecnologia estão comprometidas

com a história, pois este elo é importante nocaminho da compreensão do que são os cursossuperiores de tecnologia e como isso se refletena sua implantação.

Observamos que, ao longo da história daeducação, o discurso para o enfrentamento daimplantação dos cursos superiores de tecnolo-gia foi o seguinte: a) atender às necessidadesdo mercado e à demanda de ensino superior;b) atender ao mercado de trabalho que se am-pliava e se diversificava; c) atender ao merca-do de trabalho e às mudanças no mundo sociale econômico; d) atender ao desenvolvimentoeconômico associado à educação e ao sistemasocial e, na seqüência, atender necessidadessociais e resolver problemas brasileiros.

Os cursos superiores de tecnologia surgi-ram das necessidades da sociedade, e do mer-cado de trabalho, e tinham como objetivoresolver os problemas sociais brasileiros. Nogeral, esses cursos não tiveram aceitação nossetores envolvidos, ocorreram distorções na suaimplantação, produziram resultados indeseja-dos, foram impostos por decretos, utilizarammodelos de cursos transplantados de outrasculturas, não se preocuparam com preparaçãodo corpo docente, infra-estrutura adequada,pesquisa de mercado rigorosa com a intençãode implantar cursos superiores de tecnologia,além de diagnóstico sócio-econômico com ascaracterísticas da sociedade; os interesses in-dividuais se sobrepujaram aos interesses decoletividade.

Enfim, houve necessidade de convencer asociedade e os educadores da importância daformação do tecnólogo, prejudicada pela fasedo período autoritário em que não havia espa-ços para discussão sobre essas questões. A pre-ocupação com a contextualização socioeco-nômica permaneceu enfraquecida pelo cuida-do excessivo com o mercado de trabalho, afe-tando assim as dimensões críticas, que devemmarcar os caminhos dos cursos superiores detecnologia.

Gostaríamos de enfatizar a importância dosconceitos de tecnologia e de educação tecno-lógica com a finalidade de fornecer uma basepara a escolha dos critérios, dos modelos e dos

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Jaqueline Maria Barbosa Vitorette; Herivelto Moreira; João Augusto de Souza Leão de Almeida Bastos

cuidados a serem tomados na implantação decursos superiores de tecnologia, pois essesconceitos poderão influenciar diretamente a for-mação do futuro tecnólogo. As propostas de for-mação de tecnólogos poderiam ficar comprome-tidas se, na base da implantação desses cursos,essas questões não fossem consideradas.

Acreditamos que, uma vez entendidos e tra-balhados esses conceitos, eles contribuirão parauma projeção maior dos cursos superiores detecnologia, abrindo novas perspectivas de qua-lificação do profissional tecnólogo voltada parauma formação entrelaçada com as ciências exa-tas e humanas.

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Sidney Reinaldo Silva

UTOPIA, JUSTIÇA E EDUCAÇÃO EM RAWLS

Sidney Reinaldo Silva *

RESUMO

Este artigo é uma análise inicial da relação entre a formação moral e ajustiça em John Rawls. Contrariamente aos que advogam a impossibilida-de de um consenso a respeito do ideal de uma sociedade justa, que possaser concebido e implementado eficientemente, sem agredir individualida-des, Rawls propõe que princípios de justiça podem ser estabelecidosconsensualmente para modular as instituições sociais. Frente à utopia rea-lista rawlsiana, cabe à “educação moral” possibilitar o desenvolvimentode cidadãos capazes de se desprenderem do real e vislumbrarem o possí-vel, e que sobreponham uma perspectiva política comum às perspectivasparticulares, herdadas das comunidades em que foram formados.

Palavras-chave: Rawls – Justiça – Utopia – Educação

ABSTRACT

UTOPIA, JUSTICE AND EDUCATION IN RAWLS

This article is an initial analysis of the relationship between moral formationand justice in John Rawls. Opposing the ones who advocate the impossibilityof a consensus on the ideal of a just society, which can be effectivelyconceived and implemented, without hurting individuals, Rawls proposesthat justice principles be consensually established in order to module soci-al institutions. Taking the rawlsian realistic utopia into account, it is up to“moral education” to make it possible to develop citizens who are capableof detaching from the real and envisioning the possible, and who juxtaposea political perspective that is common to private perspectives, inheritedfrom the communities in which they were formed.

Key words: Rawls – Justice – Utopia – Education

* Filósofo formado pela PUCCAMP, Mestre e Doutor em Filosofia Política pelo IFCH da UNICAMP, pós-doutorando em Filosofia da Educação pela FE da Unicamp. Professor de Filosofia da UNIMEP – Univer-sidade Metodista. Endereço para correspondência: Av Francisco Glicerio 1458, apt. 34, Centro, 13012-100– CAMPINAS/SP. E-mail: [email protected]

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Utopia, justiça e educação em Rawls

INTRODUÇÃO

A utopia é uma estrutura para utopias, um lugaronde pessoas têm liberdade de se associaremvoluntariamente para seguir e tentar realizar suaprópria visão da boa vida na comunidade, masonde ninguém pode impor [grifo do autor] suaprópria visão utopista aos demais. (NOZICK,1994, p.338)

A utopia não [grifo do autor] é uma sociedadena qual a estrutura é realizada. Por que quempoderia acreditar que, dez minutos depois deimplantada a estrutura, teríamos a utopia? (NO-ZICK, 1994, p.356)

A reflexão filosófica sobre a moral diz res-peito à definição dos indivíduos entre diversoscursos possíveis de ação, à cultura em que fo-ram formados, às crenças e saberes, aos valo-res, aos bens e normas que influenciam suasopções. A ética descritiva expõe os costumes,as regras e as maneiras de agir das pessoas emuma determinada sociedade. A ética normativainvestiga as formas pelas quais os indivíduos egrupos estabelecem e justificam o que é bom eo que é mal, justo ou injusto, o que é vício evirtude, direito e dever. Por fim, tem-se ametaética, que procura levantar questões deordem epistemológica, lógica e semântica arespeito das outras formas de discursos éticos.(GOSSELLIN, 1998, p.233) A reflexão filo-sófica sobre a moral de um povo analisa tam-bém a existência ou não de projetos coletivos eos interesses ligados a eles, e estuda como issoreflete nas instituições sociais e nas decisõesdos indivíduos. A filosofia moral, afirmaHudson (1983, p.1) “não diz o que as pessoasdevem fazer, mas o que elas fazem quando elasfalam acerca do que elas devem fazer”. Em ter-mos metodológicos, ocorre um distanciamentodo filósofo da vida prática. Contudo, suas re-flexões, ao apontar contradições e incoerênciasdo discurso moral, devem influenciar, de algu-ma forma, as práticas das pessoas. Sem essecaráter retórico, a filosofia tornar-se-ia apenasum inócuo discurso de segunda ordem. Nessesentido, há uma dimensão prática, política epedagógica da filosofia moral que é inseparávelde seu caráter crítico e analítico.

Há vários modos de entrecruzarem-se aque-les diversos níveis de investigação ética parase enfocar a relação da educação, em especialdo ensino formalizado, com a moral. Assim,pode-se averiguar que tipo de identidade indi-vidual está se formando; que normas as narra-tivas escolares inculcam; que padrões defineminstitucionalmente a escola e o agir de seusoperadores; como esses padrões são estabele-cidos e justificados; quais as questões lógicase epistemológicas suscitadas pelas formas deargumentar e/ou de promover as justificaçõesdas posições adotadas por aqueles que estãoenvolvidos com o ensino; quais as relações daescola com a identidade de um povo, com seusmitos, suas utopias e projetos coletivos. A re-flexão sobre o nexo da escola com a ética, emsua dimensão pedagógica, refere-se, especial-mente, às possibilidades e aos limites da for-mação sistemática dos indivíduos para agir deacordo com certo padrão de comportamento,para definir e julgar não só normas de condutaindividual, mas, sobretudo, para definir padrõesde justiça conforme os quais as intuições sociaispodem ser avaliadas.

A Escola é uma instituição que supõe a açãointencional, um propósito conforme um ideáriocoletivo. A crise de sua legitimidade acompa-nha o embaraço da fundamentação epistemo-lógica, moral e política da era denominada depós-moderna. Essa crise põe em questão a pos-sibilidade e a necessidade dos projetos políti-cos coletivos.

Hayek (1995) e Lyotard (1996) admitem quenenhum consenso substantivo sobre padrões dejustiça pode ser concebido e implementado efi-cientemente sem ferir alguma integridade in-dividual. Sendo assim, para eles, seria melhordeixar tudo à deriva, isento das ilusões dos finspolíticos coletivos. Esse pragmatismo supos-tamente pessimista se reflete na escola, em es-pecial com as políticas de privatização,flexibilização e desregulamentação curricular.

Já para Rawls, um povo que deseja umasociedade justa deve guiar-se conforme finséticos definidos coletivamente. Este pensadoradmite que princípios de justiça podem ser es-tabelecidos consensualmente e devem modu-

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Sidney Reinaldo Silva

lar as instituições sociais de um povo. Noideário de “liberalismo político” rawlsiano, aeducação desempenha um papel fundamental.Sem ela, nenhuma “utopia realista” poderia serestabelecida. Uma democracia “razoável” nãopoderia manter a estabilidade de uma socieda-de supostamente “bem-ordenada” sem recor-rer a uma formação intencional da identidadepública (moral) do cidadão.

EDUCAÇÃO E PROJETO COLETIVO

O que significa dizer que os seres humanossão capazes de fazer projetos, num mundo emque a idéia de finalidade não tem mais signifi-cado científico1 e numa época em que as pes-soas parecem viver à deriva, sem ter utopiascomuns? A questão da capacidade de agir in-tencionalmente, de fazer projetos coletivos, nãopode estar fora do debate sobre a justiça. Atéque ponto os seres humanos poderiam entrarem um acordo a respeito da melhor sociedade?Em que sentido poderíamos projetar ou apenasdelinear parâmetros capazes de nos guiar nacriação de instituições justas? Qual seria o pa-pel da educação nesse suposto processo?

A instituição da escola é um processo cons-ciente de intervenção coletiva para formar in-divíduos, transmitindo-lhes saberes e desenvol-vendo as mais diversas habilidades: cognitivas,técnicas, administrativas, políticas, artísticas emorais. O ensino também deve estar ou nãoem conformidade com um projeto social, ex-presso ou tácito.

Ao se questionarem as possibilidades e apertinência dos projetos coletivos, a “raciona-lidade” ou a “eficácia” de tal empreitada e anoção de uma finalidade “consciente” dos em-preendimentos sociais, questiona-se a própriainstituição escolar. Se os projetos coletivos sãoapenas ilusões, são ineficazes e, o que seria pior,

coadunariam apenas com ambições totalitáriase integralistas, então, um povo democrático,pluralista e tolerante, não deveria permitir o usoda escola para formar cidadãos conforme umadeterminada utopia social ou projeto político.

De acordo com essa hipótese, a escola nãodeveria preparar indivíduos para viver confor-me nenhum projeto ou utopia abrangente, ouseja, que estaria em conformidade com aidiossincrasia de um ou outro grupo. Sendo as-sim, na impossibilidade de se ter um projeto quecontemple a todos, não se deveria propor ne-nhum. Os pensadores pós-modernos recusam osgrandes projetos políticos ou utopias como ne-gam as grandes narrativas históricas e nacionais,alegando que ambos levam ao totalitarismo.

Conforme essa perspectiva pós-moderna,surgem as propostas curriculares multiculturais,objetivando manter a escola como um espaçodemocrático e aberto. Propõe-se também, deacordo com uma concepção pragmática do en-sino, que a escola deveria voltar-se para umaeducação operacional, isto é, que lide com sa-beres e habilidades que ampliam a capacidadede agir dos indivíduos, aqui e agora. Trata-sede saberes que não são nem bons nem ruins deacordo com este ou aquele ideário ou utopiasocial, mas que são eficazes no sentido de am-pliar a capacidade de agir dos indivíduos, deinseri-los de forma eficiente no meio em quevão sobre/viver. Os resultados obtidos na edu-cação pragmática justificariam os investimen-tos públicos que se fazem nela. A razão de serda escola estaria na sua eficácia, que é o valormaior do pragmatismo. Caberia à educaçãoformal contribuir para o aumento da compe-tência individual, que seria a única forma de semaximizar a eficiência na perspectiva coleti-va. A escola pragmática deveria desenvolvercompetências lingüísticas, econômicas, e atémesmo morais, sem fazer referências a nenhumprojeto político quer coletivo global quer maisamplo. Assim, a escola se adaptaria aos tem-pos do fim da utopia.

Contudo, essa visão da escola não deixa deestar conforme a um determinado ideal de so-ciedade. Com isso, ela contribuirá também paraum certo ideário que valoriza o viver à deriva,em que tudo se torna experimentação. Esse

1 Sobre o nexo dessa questão com a educação, ver aobra de Henri Atlan (1991) Tudo, não, talvez. Educaçãoe verdade. A partir dos problemas atuas da ciência, emespecial a biologia, e da ética, o autor faz uma análise daeducação numa época em que “a alma do mundo e seuprojeto” desapareceram.

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Utopia, justiça e educação em Rawls

ideário é calcado na denúncia de que todo pro-jeto coletivo é por princípio autoritário, nãoplural, integralista e ineficaz. Ele caminhariapara a sua implosão, como se acredita. Contu-do, esse ideário pós-moderno adquire cada vezmais uma característica moral, ou seja, ele seimpõe como um fim comum, um critério parase julgar a eficácia ou a ineficácia. Esse ideáriode sociedade estaria para além do bem e do mal,do justo e do injusto, mas não do eficaz ou ine-ficaz como critérios de avaliação do agir hu-mano. Esses critérios tendem a ser cada vezmais amplamente aceitos, pois as retóricas queos promovem se apresentam como implacáveis.

A UTOPIA REALISTA DE RAWLS

A partir dessas considerações, proponho ana-lisar as idéias de Rawls sobre a necessidade deconstrução de projetos morais coletivos. A uto-pia rawlsiana diz respeito à implementação deuma sociedade bem ordenada e estável. Issoimplica que princípios de justiça modulem suaestrutura básica (Constituição, acordos econô-micos). A justiça apresenta-se, na história da fi-losofia, como a virtude em referência ao outro enão ao próprio virtuoso. Ela é a disposição dedar ao outro o que lhe é devido. Rawls a toma,sobretudo, como a capacidade de propor e acei-tar acordos justos na cooperação social, no sen-tido de reciprocidade (universalidade e benefí-cio mútuo). A educação do cidadão torna-se fun-damental para uma sociedade que visa moldarsuas instituições conforme princípios de justiçapreviamente aceitos. É a formação moral doscidadãos que torna esse processo não autoritá-rio, pois, com ela, todos, de certa forma, partici-pariam dele. Trata-se de formar pessoas capa-zes de participarem de uma esfera de entendi-mento mútuo, em que todos seriam tomadoscomo livres e iguais. Sem essa formação moralespecífica dos cidadãos, uma “utopia realista”de justiça para uma sociedade democrática se-ria mesmo impossível.

Como lembra Wright (1996), os biólogostêm mostrado que os indivíduos nascem comsemelhante propensão para a cooperação sociala despeito das tendências competitivas também

inatas.2 Mas as concepções de justiça se deli-neiam no mundo humano, sempre no interiorde uma cultura, marcada por conflitos e com-petições econômicas, por diversas concepçõesde mundo e do que vem a ser uma vida boa. Ostermos “cooperar” e “competir” não seriamexcludentes, pelo menos é assim que eles seapresentam em certas concepções liberais dejustiça.

Para Rawls, por exemplo, a competição so-cial só pode ser resguardada se tiver como baseacordos cooperativos capazes de definir os ter-mos da própria competição ou convivência nointerior da diversidade irredutível de interes-ses, valores e visões de mundo3. É em funçãodessa concepção de “liberalismo político” queRawls admite a possibilidade de se criarem pro-jetos ou de se delinear o tipo de sociedade de-sejável coletivamente.

O projeto de justiça rawlsiano pretende serválido tanto para a estrutura básica de uma so-ciedade (de tradição liberal) quanto para a re-gulamentação dos direitos dos povos (liberaise decentes). É neste último sentido que ele pro-põe o conceito de “utopia realista”:

Começo e termino com a idéia de uma utopiarealista. A filosofia política é realisticamenteutópica quando expande aquilo em que geral-mente se pensa como os limites da possibilida-de política prática. Nossa esperança para o futu-ro da sociedade baseia-se na crença de que anatureza do mundo social permite a sociedadesdemocráticas constitucionais razoavelmente jus-tas existirem como membros da Sociedade dosPovos. Em tal mundo social, a paz e a justiçaseriam obtidas entre povos liberais e decentesnacional e internacionalmente. A idéia dessa

2 Conforme o darwinismo, a seleção natural “não dese-nha organismos conscientemente”. Ela “conserva às ce-gas as características hereditárias que intensificam a so-brevivência e a reprodução.” (WRIGHT, 1992, p.17). “Elanão espreita o futuro e não procura promover uma melhoriageral.” (Id., Ibid., p. 34). Assim o egoísmo e o altruísmosurgem ou são mantidos nos indivíduos de acordo com aeficácia para promover a perpetuação da espécie.3 “Trata-se de saber como é possível existir, ao longo dotempo, uma sociedade justa e estável de cidadãos livrese iguais, mas que permanecem profundamente divididospor doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis.”(RAWLS, 2000 b, p.45-6)

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Sidney Reinaldo Silva

sociedade é realisticamente utópica no sentidode que retrata um mundo social alcançável quecombina o direito político e a justiça para todosos povos liberais e decentes em uma Sociedadedos Povos”. (RAWLS, 2001, p.6-7)

A partir desse ideário ou utopia realista, aformação da cidadania deve ser ao mesmo tem-po um empreendimento comprometido comprojetos de justiça para um povo em particulare também para a associação de povos visandoum direito internacional comum. Assim umgrande leque de perspectivas culturais se abrecomo referência para a formação dos cidadãos.O fato de um indivíduo passar anos na escola otransforma, pois a educação modela e remode-la identidades. Mas quais são os impactos des-sa transformação nas relações dos indivíduoscom suas comunidades e tradições? Na con-cepção de justiça rawlsiana, a educação para acidadania manteria uma certa interface entreuma perspectiva pública e as perceptivas parti-culares das diversas comunidades das quais oscidadãos seriam oriundos.

A questão refere-se às possibilidades de aescola tornar um indivíduo bom ou justo e emrelação a quê? Conforme Rawls, uma forma-ção adequada prepararia o indivíduo para es-colher, buscar e/ou rever racionalmente seupróprio bem (concepções de mundo, objetivos,estilo de vida, religião, agremiações) e tambémpara participar de acordos e de negociaçõespolíticas que decidem o padrão social confor-me o qual cada um poderá buscar sua felicida-de ou conjunto de bens. Neste último caso,forma-se a pessoa para que tenha uma concep-ção do que é justo, para que pratique o exercí-cio da razoabilidade.

O termo “justo” seria mais neutro do que otermo bom, para Rawls. Ele admite a possibili-dade e a necessidade de se determinar parâme-tros consensuais para definir o justo numa so-ciedade democrática. Contudo, ele não admitea idéia de um bem comum que deva ser impos-to como meta social no sentido de regulamen-tar todas as esferas da vida individual. O bemdeveria estar vinculado apenas à idiossincrasiae ao plano de vida de cada um. Sendo assim, obem se refere ao conjunto dos objetivos quecada um persegue em sua vida e não a uma

concepção pública do que vem a ser uma vidaboa ou feliz.

A proposta rawlsiana de justiça como eqüi-dade admite que os cidadãos corretamente for-mados estariam não só dispostos a buscar acor-dos a respeito da melhor forma de se garantir aliberdade de concepção e de revisão de seus bense as formas de buscá-los como também prepa-rados para isso. Eles poderiam delinear coleti-vamente modulações ou critérios para julgar asnormas admitidas para regulamentar à convivên-cia social, as quais delimitariam as possibilida-des de cada um na busca de seus bens.

A perspectiva comum de entendimento en-tre os cidadãos é denominada por Rawls de cam-po político4. Este espaço específico se funda emvalores próprios capazes de modular a diversi-dade dos bens particulares e uma determinadaconcepção de justiça. O campo político seria umespaço em que todas as concepções abrangentes,isto é, as mais diversas doutrinas sociais, religi-osas, filosóficas, políticas e morais que deter-minam amplos aspectos da vida das pessoas,poderiam participar sem se anularem, desde queelas fossem razoáveis. Ser razoável significaapoiar uma concepção política de justiça parauma sociedade democrática constitucional, deforma que seus ideais estejam em conformida-de com o critério de reciprocidade

Uma educação não deveria apenas ser multi-cultural, mas também formar para a participa-ção no espaço político comum, cujos valores eformas de julgar são específicos. Os valores ca-racterísticos do espaço político são, especialmen-te, a tolerância, a reciprocidade, o respeito mú-

4 “O liberalismo político tem por objetivo uma concep-ção política de justiça que se constitua numa visão auto-sustentável. Não defende nenhuma doutrina metafísicaou epistemológica específica, além daquela que a pró-pria concepção política implica. Enquanto interpretaçãode valores políticos, uma concepção política auto-sus-tentável não nega a existência de outros valores que seapliquem, digamos, àquilo que é pessoal, familiar ou pró-prio das associações; tampouco afirma que os valorespolíticos são separados de outros valores ou que estejamem descontinuidade com eles. Um objetivo, como disse,é especificar a esfera política e sua concepção de justiçade tal forma que as instituições possam conquistar o apoiode um consenso sobreposto.” (RAWLS, 2000, p.53)

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Utopia, justiça e educação em Rawls

tuo e a razoabilidade. O modo de operar no es-paço público expressa a razão pública, que cons-tituiria uma esfera própria para se debater a jus-tiça. Nesse espaço, as leis, as decisões públicasseriam constantemente analisadas e avaliadasconforme os valores morais ou os princípios dejustiça previamente admitidos pelos cidadãos.Com isso, manter-se-ia um constante debateentre as pessoas em suas mais diversas funçõese posições políticas (como cidadão comum,como membro da Suprema Corte, etc). Os cida-dãos, ao fazerem parte de comunidades, tradi-ções e culturas específicas, são diferentes, mascomo participantes da esfera pública eles devemser tomados como iguais, livres e racionais. Oideário de justiça ou liberalismo político deRawls visa dar coesão a essas duas identidades(privada e pública) das pessoas. Cabe à educa-ção preparar o indivíduo para ir além da pers-pectiva de sua cultura particular, propiciando-lhe habilidades morais (lingüísticas, políticas)para se expressar como membro da comunida-de de cidadãos e ver as coisas a partir da pers-pectiva da razão pública.

Atuando no campo político, os cidadãospodem e devem, de certo modo, controlar odestino da coletividade. Eis como Rawls (2001,p.16) se expressa a respeito das possibilidadese dos limites desse empreendimento:

Reconheço que há problemas a respeito decomo os limites do praticamente possível sãodiscernidos e quais são, na verdade, as condi-ções de nosso mundo social. O problema, aqui,é que os limites do possível não são dados peloexistente, pois podemos, em maior ou menorgrau, mudar as instituições políticas e sociais emuito mais. Portanto, temos de nos valer daconjectura e da especulação, argumentando damelhor maneira possível no sentido de que omundo social a que aspiramos é factível e podeexistir efetivamente, se não agora, em um fu-turo sob circunstâncias mais felizes.

O ESTABELECIMENTO DOS PRINCÍ-PIOS DA JUSTICA.

A filosofia moral rawlsiana conflita com cer-tas tendências do pensamento pós-moderno, em

especial as de Lyotard e as de Hayek. Retoman-do as concepções sistêmicas da evolução dosseres humanos, esses dois autores supõem queuma sociedade humana (especialmente a liberale democrática) é de tal modo aberta e incertaque seria impossível um controle central. A esterespeito diz Lyotard que as “revoluções, guer-ras, crises, deliberações, invenções não são ‘obrado homem’, mas efeitos e condições da com-plexidade. Estes são sempre ambivalentes paraos humanos, trazem-lhe o melhor e o pior.”(1996, p.96). Seria ilusório, então, falar de justoe injusto, pois o pior ou o melhor não somos nósquem efetivamente decidimos.

Essa idéia de complexidade de Lyotard nãodifere, pelo menos em seus efeitos retóricos,da concepção de sociedade autogerada deHayek. Segundo este pensador, as estruturassociais não são nem biologicamente determi-nadas, nem artificiais. Elas não seriam, de qual-quer forma, produzidas por um desenho inteli-gente. Tais estruturas resultariam de um pro-cesso semelhante ao “peneirar ou filtrar, orien-tado pelas vantagens diferenciais adquiridaspelos grupos, devido à prática adotada por al-guma razão desconhecida e quem sabe pura-mente acidental.” (HAYEK, 1995, p.186). As-sim, se há algum objetivo na vida social seria a“adaptação permanente às mudanças das cir-cunstâncias.” (p.111). Contudo, os indivíduosnão poderiam estar conscientes da naturezadesse processo de autogeração social. As re-gras são tácitas5. Não se deveria, nem mesmose poderia, portanto, conceber e implemen-

5 Para Hayek, o processo de emergência e de seleçãodas regras sociais é extremamente complexo e incerto.A consciência representa um papel secundário, pois “(...)o processo de seleção não começa por um raciocínio,mas pela observação, a difusão, a transmissão e o desen-volvimento de práticas que tornavam mais eficazes asações individuais, que aumentavam as hipóteses de so-brevivência assim como a sua prosperidade. Os indiví-duos estão, portanto, raramente em condições de tradu-zir em palavras o que sabem destas regras, são simples-mente capazes de se conformar a elas na prática. (...)Idealmente e, no limite, as regras de justa conduta nãonecessitam sequer do indivíduo que ele tenha consciên-cia destas regras.” (GOSSELIN, 2000, p.259-261)

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tar consensualmente um padrão global dejustiça.6

Nesse prisma, o conhecimento torna-se irre-levante na perspectiva de um suposto ponto devista moral. Segundo Lyotard (1996, p.97), ain-da que o homem possa “fabular” sobre o seudestino coletivo, tal saber “ignora o bem e omal.”. O “verdadeiro e o falso” são determina-ções que se dão de acordo com um saberoperacional e no momento em que se julga.

A legitimidade do sistema, conformeLyotard, consiste na sua capacidade deautoprodução. Disso decorre um “direito pelofato”, do qual “resultam algumas dificuldadesna administração da justiça, por exemplo, ouna finalidade da educação.” (p.180) A concep-ção de um “direito pelo fato” como expressãoda legitimidade é uma tendência ligada à idéiade sociedade como um processo autoprodutivoreticular, isto é, sem um comando central, nemintencionalidade. São os agenciamentos locaisdesse processo que definem o que se poderiachamar de justo, ou melhor, que determinam oque cada um recebe.

Dessa forma, a ausência da finalidade soci-al na evolução das sociedades supõe a inviabili-dade e mesmo a impossibilidade de se conce-ber, sem ilusões, um projeto regulador orien-tando os processos autoprodutivos. Os rumosque o sistema social toma seriam rigorosamenteimprevisíveis. Disso decorre a impossibilida-de de se regularem intencionalmente as moda-lidades da convivência social. Projetos sociaisamplos não poderiam ser concebidos e imple-mentados consensualmente e de modo eficaz

ou vantajoso para os próprios membros da so-ciedade. Promover supostos padrões justos atra-vés de planos ou mesmo de delineamentos pré-vios para a estrutura básica da sociedade seriacontraproducente. Enfim, os resultados alme-jados seriam mais facilmente alcançados se nãose interviesse de modo utópico para modular osistema social, que é autoprodutivo e auto-regulável.7

Contrariamente ao que foi exposto acima, aidéia de justiça em Rawls vincula-se à possibi-lidade de se intervir estruturalmente conformeum certo ideal moral que, embora não seja umbem comum a ser realizado a todo custo, cons-titui-se num conjunto de princípios para se ava-liarem e se corrigirem as instituições sociais.Esses princípios ou ideais de justiça não resul-tam de uma descoberta racional de um fim so-cial, mas de um procedimento de construçãoimparcial que garante a eqüidade dos parâme-tros escolhidos consensualmente.

Rawls não defende, como necessários, oplanejamento e a regulamentação das ativida-des econômicas dos agentes no mercado. Ocontrole é moral e político e o seu objetivo égarantir um sistema mais extenso possível deliberdade igual para todos. Contudo, a modula-gem social pelo político afeta o econômico, namedida em que exige ajustes para que se man-tenha a igualdade de oportunidades e para re-gulamentar as desigualdades econômicas, demodo que elas favoreçam os menos favoreci-dos e sejam por eles consentidas, conforme osprincípios da justiça distributiva. Os padrõesde justiça são resultados de livres acordos co-

6 Eis como Nozick caracteriza a idéia de padrão emHayek: “(...) argumenta Hayek que (...) ‘nossa objeção écontra todas as tentativas de impor à sociedade um pa-drão de distribuição deliberadamente escolhido, seja eleuma ordem de igualdade ou de desigualdade’. Nãoobstante, conclui ele que numa sociedade livre haverádistribuição de acordo com o valor, e não mérito moral,isto é, de acordo com o valor percebido das ações e ser-viços de uma outra pessoa. (...) Hayek sugere um padrãoque ele considera justificável: a distribuição de acordocom os benefícios percebidos conferidos a outros, dei-xando espaço para a queixa de que a sociedade livre nãocumpre esse padrão.” (1994, p. 178)

7 Gosselin (2000, p. 259) afirma que, para Hayek, “(...)as regras morais mais exemplares e mais sábias sãoaquelas que não incitam os indivíduos a trabalhar con-juntamente para a realização de um objetivo comum im-plicando a colocação em funcionamento de uma ordemsocial planificada. Esses códigos devem compor-se deuma série de regras que torna possível o acordo e a pazentre indivíduos que compõem uma ordem espontânea,sem que esses indivíduos sejam obrigados a porem-sede acordo sobre os fins de um campo de atividade, masapenas sobre os meios susceptíveis de servir todos ecada um, de ajudá-los na perseguição dos seus objeti-vos pessoais (...).”

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letivos ou consenso sobreposto. Eles são pro-dutos de uma contínua reflexão coletiva “pon-derada”, em que os princípios filosóficos sãocorrelacionados com as crenças e os valoresdos diferentes indivíduos e comunidades, demodo a engendrar um patamar de convicçõespartilhadas.

PROJETO COLETIVO E FORMAÇÃOMORAL

Para um pensador como Lyotard, o equilí-brio entre a democracia e o consenso seria im-possível, pois as concordâncias não deixariamde ser uma forma totalitária de definir acordoscoletivamente. Segundo ele, seria mais aceitá-vel, menos violenta a idéia de uma sociedadese constituindo de forma precária, ou à deriva,por dissensos. Isso repercute diretamente na suaconcepção de escola.

A violência está nesse dilema: ou você recusaráo jogo desconhecido do seu parceiro, recusará,até, que aquilo seja um jogo, você o excluirá,pegará suas bolas de volta e procurará uminterlocutor válido; e isso é uma violência aoacontecimento e ao desconhecido, de maneiraque você cessará de escrever ou de pensar; ouentão você irá violentar a si mesmo para tentaraprender os movimentos que seu parceiro silen-cioso impõe às bolas, isto é, às palavras e às fra-ses que você ignora. Isso se chama a violênciado aprender a pensar ou a escrever que está con-tida em qualquer educação. (LYOTARD, 1996,p.137)

A violência estaria ligada, sobretudo, à no-ção de soberania. A idéia de um bem sobera-no, de um valor absoluto, cujo acatamento se-ria necessário por todos, fundamenta, como jádisse, as críticas aos projetos ou utopias soci-ais e tem um reflexo direto na educação. A esterespeito diz Atlan (1991, p.134) que “a verda-de – a sua procura, a sua descoberta e a suadefesa – serve de fundamento à legitimidade,simultaneamente política e educativa.” Isso éimportante para se compreender a lógica dasoberania, pois a forma como se faz aceitar estaou aquela origem para a verdade constitui jáboa parte do poder.

Contudo, como escreve ainda Atlan (1991,p.66), embora para o pensamento científicocontemporâneo “alma do mundo e do seu pro-jeto” desapareceu e não há mais sentido emfalar rigorosamente de finalidade em qualquerdomínio que seja, os homens continuam fazen-do projetos. Nossos projetos são incertos, massão necessários para nossa existência. Contu-do, a única fonte para o conteúdo dos projetoshumanos é a imaginação. A razão não podemais dar um caráter definitivo aos nossos in-tentos. Cabe a ela exercer o controle sobre aimaginação criadora de projetos.

Na perspectiva política, os planos humanosnão deveriam ter, necessariamente, um carátertotalitário. Frente às condições de articulaçãodo possível com o real, Atlan (1991, p.206)propõe o seguinte desafio à educação: “A edu-cação poderá, então, tentar libertar-se do dile-ma no qual a valorização científica da naturezaa encerrou ou ficar à escuta da natureza cujalinguagem e cujos discursos seriam precisa-mente aqueles que as ciências nos fazem ou-vir, ou mudar a natureza com a ajuda de proje-tos mais ou menos inspirados, perseguindo,racionalmente ou não, fins vindos de um ima-ginário mais ou menos profético.”

É em torno da articulação entre o real e opossível que se define a idéia de direito dospovos para Rawls, o que ele denominou de uto-pia realista. Trata-se de um procedimento deconstrução baseado, sobretudo, na imaginaçãoconjetural, na reflexão e no julgamento. Naperspectiva do autor, o limite do possível não édado pelo existente. Os homens podem mudar,em maior ou menor grau, “as instituições polí-ticas e sociais e muito mais”. Para isso, diz,são usadas as capacidades humanas de conje-turar e especular. Trata-se de argumentar damelhor maneira possível para propor o tipo demundo social que aspiramos e mostrar que eleé factível.

O autor propõe a hipótese de um amplo ce-nário político mundial, em que os princípiosde convivência seriam discutidos e negociadospor cidadãos representantes dos povos consi-derados razoáveis e decentes. Através de umarazão pública cosmopolita, poder-se-ia discu-

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tir mundialmente medidas que orientassemações comuns, por exemplo, para conter polí-ticas expansionistas e a violação dos direitoshumanos. Trata-se da criação de uma Socieda-de dos Povos razoavelmente justa.

A utopia realista proposta por Rawls paraos povos é, de certa forma, uma ampliação doque ele sugeriu para as nações em sua obra Umateoria da justiça, publicada em 1971. Trata-seda hipótese de um contrato social entre indiví-duos racionais e razoáveis, segundo o qual, emcondições especiais de escolha imparcial, elesoptariam pelos princípios de justiça que mo-dulariam as instituições básicas da sociedadeem que iriam viver. A escolha dos princípiosseria feita em condições controladas de infor-mação, de modo que os indivíduos não pudes-sem saber qual o lugar que efetivamente elesocupariam na sociedade para a qual eles esta-riam definindo os critérios de justiça. A partirdesses princípios seriam avaliadas as decisõespúblicas e as instituições sociais.

Uma sociedade bem ordenada conformeprincípios de justiça razoáveis não pode existirsem um espaço ampliado de debate nacionalque Rawls denomina de “razão pública”. Tra-ta-se de um espaço em que cidadãos, tomadoscomo livres e iguais, debateriam sobre as con-cepções políticas de justiça mais razoáveis. Arazão pública seria fundamental para uma de-mocracia deliberativa. Esta só poderia se man-ter enquanto tal com uma educação apropriadados seus cidadãos:

(...) sem uma instrução ampla sobre os aspectosbásicos do governo democrático para todos oscidadãos, e sem um público informado a respei-to dos problemas prementes, decisões políticase sociais cruciais simplesmente não podem sertomadas. Mesmo que lideres políticos previden-tes desejassem fazer mudanças e reformas sen-satas, não poderiam convencer um público malinformado e descrente a aceitá-las e segui-las.(RAWLS, 2001, p.184)

Essa instrução não só se daria nas escolas epela mídia, mas dentro da própria práticademocrática. Na democracia deliberativa, os ci-dadãos seriam levados a refletir sobre as ques-tões da organização social. Com isso, eles se

educariam. Trata-se de focalizar a atenção emquestões constitucionais básicas. “Isso educaos cidadãos para o uso da razão pública e seuvalor de justiça política.” (2000, p.290). A con-cepção de justiça tanto no nível nacional quan-to no nível mundial supõe cidadãos com umamoral adequadamente formada.

A teoria da justiça de Rawls encontra cor-relações, do ponto de vista da formação moraldo indivíduo, nas idéias do psicólogo Kohlberg,a respeito das etapas do desenvolvimento mo-ral. Este autor, aprofundando o construtivismode Piaget (1981, p.409-412), dividiu os estági-os morais em seis etapas. Ele destaca a seguin-te seqüência de estágios: 1) da punição e daobediência; 2) do individualismo, da intençãoinstrumental e da troca; 3) das expectativasinterpessoais mútuas, relações e da conformi-dade interpessoal; 4) do sistema social e daconsciência, da capacidade para cumprir obri-gações assumidas; 5) do contrato social ou dautilidade, dos direitos prévios; 6) dos princípioséticos universais.

Atingir a última etapa da formação moralou estagio seis é fundamental para se tornar umcidadão idôneo, para poder atuar, de forma ati-va, como membro de uma sociedade democrá-tica que se regula conforme princípios da jus-tiça. É neste último estágio (o da justiça: im-parcialidade e universalidade), que a pessoamanifesta a autonomia intelectual e moral su-ficiente para atuar conforme princípios éticos.No sexto estágio, a pessoa superou as etapasmorais em que agia conforme as normas hetere-nômicas, o medo, o interesse, o apego às pes-soas próximas e/ou importantes e a defesa daordem social estabelecida tradicionalmente oupor contrato. O cidadão plenamente formadoreconhece e respeita a incondicionalidade dadignidade humana, da igualdade e da liberda-de da pessoa.

Na obra Uma teoria da justiça, Rawls (2000,p.513-516) especifica três estágios: o damoralidade de autoridade, a moralidade de gru-po e a moralidade de princípios. No primeiroestágio, a criança não apresenta ainda a capa-cidade de julgar a validade dos preceitos einjunções que lhe são impostos pelas pessoas

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que ocupam posição de autoridade sobre elas.Neste primeiro momento, a estrutura familiaré fundamental para a formação da moral, poisnela desenvolver-se-iam as condições neces-sárias para o advento dos novos níveis demoralidades, em especial a confiança na auto-ridade, nas regras prescritas e em si mesmo8.Contudo, uma formação moral repressiva econstrangedora tenderia a bloquear o desenvol-vimento moral.

A moralidade de grupo refere-se aos papeise às normas a eles correspondentes. Trata-se sede uma moral especificada conforme os ideaiscomuns e os papeis desempenhados pelo indi-víduo nos vários grupos aos quais pertence(2000, p.518). Nessa fase do desenvolvimentomoral, a pessoa aprende a considerar as coisasa partir de uma variedade de pontos de vistaexpressa pelas diferentes posições dadas em umesquema cooperativo e também pela varieda-de de intenções, motivos e deveres dos outros.Na moralidade de grupo, quando esta atinge asua forma mais complexa, estão presentes oideal de cidadania igual e uma concepção dejustiça baseada no princípio de equidade.

O terceiro estágio moral proposto por Rawlsdecorre do desenvolvimento da moral de gru-po. O primeiro elemento característico desseúltimo estágio refere-se ao motivo pelos quaisos padrões de justiça são adotados. Trata-se dadisposição para agir segundo os princípios deque pessoas racionais, livres e iguais escolhe-

riam numa hipotética posição original9. En-quanto que no estágio anterior a obediência aosprincípios da justiça como eqüidade se dá pelaafeição comunitária, pelos laços de amizade ecompanheirismo e pelo interesse de aprovaçãosocial, no terceiro estágio da moralidade, acei-tam-se os princípios se/quando o indivíduo estámotivado pela idéia de que “o corpo dos cida-dãos como um todo não se liga por laços decompanheirismo entre indivíduos, mas pelaaceitação de princípios públicos de justiça.”(2000, p. 525-526). Neste caso, é conforme umaconcepção de cidadão como pessoa livre e iguale não como “amigo” que se julga e age moral-mente. Os sentimentos de culpa são explica-dos não mais a partir da referência à autoridade,nem à comunidade, mas aos princípios da jus-tiça.10

Contudo, para Rawls, a formação da auto-nomia moral não é um processo de rupturaentre a racionalidade e as tradições ou as comu-nidades nas quais as pessoas foram inicialmen-te formadas. Na sua obra Uma teoria da Justi-ça, publicada em 1971, a qual Kohlberg se refe-re, prevalece uma inspiração nitidamenteiluminista. Contudo, nas obras posteriores,marcadas pela idéia de consenso sobreposto, aautonomia moral caracteriza-se mais por umatensão entre tradições e racionalidade. Na obraUma teoria da justiça, os padrões propostos re-

8 “Quando o amor dos pais pela criança é reconhecidopor ela com base em suas intenções evidentes, a criançafica segura de seu próprio valor como pessoa. Ela se tor-na consciente de que é apreciada em si mesma, por aque-les que para ela são as pessoas poderosas e dominantesde seu mundo. (...) No devido tempo, a criança vem aconfiar nos seus pais e no mundo que a rodeia; e isso aleva a aventurar-se e a testar as suas capacidades em de-senvolvimento (...) gradualmente, ela adquire várias ha-bilidades e desenvolve um senso de competência que reafirma a sua auto-estima.” (RAWLS, 2000, p. 514)“Se ama seus pais e confia neles, tenderá a aceitar assuas injunções. Também se esforçará para ser como eles,supondo-se que sejam realmente pessoas dignas de esti-mas, e para aderir aos preceitos que eles impõem.” (Id.,Ibidem, p. 515)

9 “A posição original é o status quo inicial apropriadopara assegurar que os consensos básicos nele estabeleci-dos sejam eqüitativos.” (2000, p. 19). Trata-se de uma si-tuação que impõe restrições, garantindo que todos tenhamos mesmos direitos no processo de escolha dos princípi-os. Assim nenhuma vantagem e conhecimento relaciona-dos com as condições particulares dos parceiros são rele-vantes para definir a pessoa na posição original.10 “Primeiro princípio: Cada pessoa deve ter um direitoigual ao mais abrangente sistema total de liberdade bási-cas iguais que seja compatível com um sistema seme-lhante de liberdade para todos. Segundo princípio: Asdesigualdades econômicas e sociais devem ser ordena-das de tal modo que, ao mesmo tempo: (a) tragam o maiorbenefício para os menos favorecidos, obedecendo às res-trições do principio de poupança justa, e (b) sejam vin-culadas a cargos e posições abertos a todos em condi-ções de igualdade de oportunidades.” (2000, p.333)

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ferir-se-iam a todas as sociedades ou a socieda-de em geral; nos escritos posteriores, marcadospela idéia de consenso sobreposto, Rawls visa,sobretudo, os povos de tradição política liberal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O finalismo e a justiça não existem comorealidades objetivas, são ficções construídaspelos seres humanos. Eles são invenções quese apresentam como guias e objetivos. Elesdependem mais da força retórica, “de uma ar-gumentação da melhor maneira possível”, doque das verdades científicas. O finalismo sig-nifica a possibilidade de se conceberem metascomuns. Na obra O liberalismo político, Rawlsdiz que a sociedade bem ordenada da justiçacomo eqüidade não é uma sociedade privada,pois nela os cidadãos têm fins compartilhados.Numa sociedade que se orienta conforme a“justiça como eqüidade”, diz o autor:

(...) embora seja verdade que (os cidadãos) nãoendossem a mesma doutrina abrangente, afir-mam, sim, a mesma concepção política de justi-ça; e isso significa que compartilham um fimpolítico muito fundamental e de grande priori-dade, qual seja, o objetivo de manter institui-ções justas e, de acordo com isso, distribuir jus-tiça entre si, para não falar de outros fins quetambém devem compartilhar e realizar por meiode seus arranjos políticos. (2000, p.250-1)

Contudo, o “fim político” difere dos finspropostos pelas teorias teleológicas. SegundoRawls, em nome de nenhum bem maior (feli-cidade do maior número, eudemonismo, perfec-cionismo, valorização do mérito) pode se sa-crificar direitos dos indivíduos, em especialaqueles reconhecidos pela tradição liberal. Parao liberalismo político rawlsiano, especifica-mente, não se pode desprezar, em nome de qual-

quer bem coletivo que seja, a liberdade, a igual-dade de oportunidade e o acesso aos bens pri-mários ou essenciais para uma vida digna. Ofim político refere-se à garantia das condiçõesde possibilidade da existência ao longo dotempo de uma sociedade justa e estável de ci-dadãos livres e iguais, mas que permanecemprofundamente divididos por concepções filo-sóficas, religiosas e morais razoáveis.

Lançar mão ou não de padrões de justiça eprojetos coletivos diz respeito às opções políti-cas dos povos. Rawls tem se destacado por tervalorizado essas noções e por viabilizar formasrazoáveis de intervenção coletiva nas institui-ções sociais, para modelá-las conforme princí-pios de justiça estabelecidos como parâmetrospara avaliar as decisões políticas. Ainda que taisprincípios não suponham uma forma predeter-minada a ser tomada pelas sociedades, ou umprojeto social planificador, eles permitem avaliar,conforme critérios de justiça previamente acei-tos, os rumos tomados pelas instituições soci-ais. É, a partir disso, que se pode discutir e pro-por ações afirmativas para que se corrijam asinjustiças e os desequilíbrios sociais.

A escola torna-se fundamental para umademocracia que propõe a si mesma um ideáriode justiça como padrão. Sem cidadãos aptos“moralmente”, isso seria inviável. Assim, cabeà escola preparar indivíduos razoáveis, capa-zes de participar da vida política, de se colocarcomo cidadãos representantes na posição ori-ginal em que se efetivam hipoteticamente asnegociações em torno dos princípios da justi-ça, de intercambiar virtualmente posições comos políticos nas instâncias públicas, em espe-cial com os membros de uma Corte Suprema.Para a filosofia política rawlsiana, cabe à esco-la compulsória, sobretudo, preparar cidadãosque não se prendam ao mero real, mas que vis-lumbrem o possível.

REFERÊNCIAS

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HAYEK, F. Droit, législation et liberté. Paris: PUF, 1995. (L’ordre politique d’un peuple libre, v. 3).

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_____. O liberalismo político. Tradução de D. Azevedo. São Paulo: Atica, 2000.

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WRIGHT. R. O animal moral. Por que somos como somos: a nova ciência da psicologia evolucionista. Riode Janeiro: Campos, 1996.

Recebido em 07.02.02Aprovado em 14.07.02

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Célia Rosângela Dantas Dórea

Prof. Jader – Trabalhei com Anísio Teixeiradurante toda a gestão dele no INEP. Quandochegou eu era estudante ainda, ia fazer vesti-bular para a Faculdade Nacional de Filosofia.Durante o curso trabalhava na Revista Brasi-leira de Estudos Pedagógicos – RBEP, e aospoucos fui assumindo vários papéis. No finalda gestão dele, nos últimos quatro anos, tor-nei-me editor da RBEP, pela qual tive a res-ponsabilidade durante vinte anos.

Minha aproximação maior com Dr. Anísioocorreu após a demissão dele do INEP, quandoficou no “ostracismo”. Ia procurá-lo para ob-ter sua colaboração para os números da Revis-

ta que continuou, mesmo com a ditadura, pu-blicando seus trabalhos. Daí minha aproxima-ção com ele. Dizia-me que poucas pessoas oprocuravam lá na Editora Nacional, da qual erao Consultor principal.

Célia – Esse período é posterior a 64?J. – De 64 a 71, ano em que ele morreu.C. – Nesse período ele continuou no Rio de

Janeiro?J. – Exato. Estava morando e trabalhando

no Rio. A única função pública que exercia eraa de conselheiro do Conselho Federal de Edu-cação. É que o mandato dele só terminaria em68. Continuou, mas foi demitido do INEP, da

ANÍSIO TEIXEIRA: A JUSTIÇA SOCIAL NA EDUCAÇÃO

Entrevista com o professor Jader de Medeiros Britto

Célia Rosângela Dantas Dórea *

O Prof. Jader de Medeiros Britto**, um dos organizadores do Dicioná-rio de Educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais, publicado em1999 pela Editora da UFRJ, foi colaborador de Anísio Teixeira durante asua gestão no INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacio-nais), no período de 1952 a 1964, e atualmente é Pesquisador Associadodo Proedes/UFRJ (Programa de Estudos e Documentação Educação e So-ciedade).

Nesta entrevista/depoimento, ele nos apresenta um relato de sua convi-vência com o Mestre Anísio Teixeira, destacando a luta desse educador emprol de uma escola pública, universal, gratuita e obrigatória. Para o Prof.Jader, “Anísio tentou realizar a justiça social, pelo menos no campo daeducação”.

Segundo o Prof. Jader, Anísio Teixeira não tinha compromisso com osaber estagnado. Para ele o conhecimento estava em constante reformulação,em recriação contínua e, como educador atento às realidades sociais ia,cada vez mais, apurando suas percepções e adensando suas idéias...

* Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus X - Teixeira de Freitas. Doutoranda emEducação: História, Política, Sociedade - PUC/SP. Endereço para correspondência: Av. São Paulo, 1400,Apto. 1203 B, Praia da Costa – 29101.300 - Vila Velha-ES. E-mail: [email protected]

** Esta entrevista me foi concedida pelo Prof. Jader de Medeiros Britto, no dia 07/11/2000, por ocasião doI Congresso Brasileiro de História da Educação, no Rio de Janeiro, como atividade de minha pesquisa dedoutorado intitulada “Arquitetura e Educação: Anísio Teixeira e a organização do espaço escolar”, desen-volvida na PUC/SP, sob a orientação da Profª Dra. Marta Maria Chagas de Carvalho.

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Anísio Teixeira: a justiça social na educação – Entrevista com o professor Jader de Medeiros Britto

Universidade de Brasília, da cátedra interinana Faculdade Nacional de Filosofia (Adminis-tração Escolar e Educação Comparada).

Então, nesse período, tive maior aproxima-ção com ele. Certo dia, em 1967, telefonou lápara casa me convidando para ser seu assisten-te num projeto de pesquisa sobre as universi-dades brasileiras. Aceitei o convite de imedia-to. Num período de dois anos tivemos um con-tato diário, em função desse projeto.

C. – Esse trabalho sobre as Universidades,foi um trabalho dele, uma produção individual?

J. – Foi uma encomenda do BID, interme-diada pelo professor Oscar Vera, da Universi-dade do Chile, que lhe fez o convite para reali-zar o projeto, um survey sobre as universida-des brasileiras. Na época eram quarenta e três,e o Chile estava realizando a mesma pesquisacom suas universidades, da qual o Oscar Veraera o coordenador. Eram duas universidades noChile, pesquisadas por uma equipe de dezesseispessoas. Anísio contava com a secretária e eupara realizarmos um survey de vinte e cincoitens cobrindo todos os aspectos de Universi-dade, compreendendo o histórico, corpo docen-te, produção científica, corpo discente, exten-são universitária, enfim, todos os aspectos.Imaginava que, em seis meses, poderíamos darconta dessa tarefa. Aos poucos foi se dandoconta de que precisaria de uma grande equipe,seria preciso viajar aos estados para um levan-tamento geral, de matrículas, conclusões, etc.Obtivemos inicialmente as informações do Ser-viço de Estatística do MEC. Com elas organi-zamos uma série de quadros que o subsidioupara uma análise histórico-crítica da universi-dade brasileira. E o BID ficou satisfeitíssimo.Terminado esse trabalho continuamos manten-do um contato assíduo. Ia freqüentemente àEditora e ele me entregava textos dele parapublicação, como o intitulado: “Uma perspec-tiva histórica da universidade no Brasil”, quesaiu na Revista nº 111, do INEP.

C. – Já foi em função dessa pesquisa reali-zada?

J. – Exatamente, esse mesmo texto ele uti-lizou no depoimento que prestou na CPI daCâmara dos Deputados, sobre a Reforma doEnsino Superior.

C. – O Sr. entrou no INEP junto com Aní-sio, em 1952?

J. – Um ano antes dele. Entrei em dezem-bro de 51, e ele tomou posse em abril de 52,porque o então diretor do INEP, Murilo Braga,morreu num acidente de avião da Panamérica.Simões Filho era o Ministro da Educação eAnísio dirigia a CAPES. Foi então nomeadoDiretor do INEP pelo Presidente Vargas.

C. – Essa revista que o Sr. falou, que foipublicada só sobre construções escolares, so-bre arquitetura escolar, é do INEP?

J. – Em meado dos anos 60, depois da ges-tão de Anísio, veio a idéia de organizarmosnúmeros monotemáticos sobre vários proble-mas da educação. O INEP tinha a responsabi-lidade de administrar o Fundo Nacional do En-sino Primário, e entre outras atribuições cuida-va da edificação e reaparelhamento das esco-las públicas e das escolas normais.

C. – Essa revista do INEP é a...J. – Revista Brasileira de Estudos Pedagó-

gicos. A de nº 104 é dedicado especialmenteàs construções escolares. É um assunto que lheinteressa porque tem, inclusive, colaboração deum arquiteto, apresentando um plano geral paraas construções escolares no Brasil.

C. – O Sr. se lembra de que ano?J. – Não lembro bem, mas foi ainda na dé-

cada de 60. Anísio já não era mais diretor doINEP.

C. – Estive lendo o livro da Terezinha Ebolisobre a Escola Parque [Uma experiência deeducação integral: Centro Educacional Car-neiro Ribeiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Gryphus,2000], e ela fala sobre alguns documentos queo INEP, na época, colocou à sua disposição.Será que esses documentos ainda existem epodemos ter acesso a eles?

J. – Sobre esse tema há dois textos de Aní-sio Teixeira que foram publicados na Revista.Um intitulado “uma educação primária inte-gral” e outro “a experiência da Escola Par-que”. Esses dois trabalhos foram publicadosno início dos anos 60. O segundo foi um dis-curso que ele proferiu numa Conferência Na-cional de Educação, lá em Salvador, sediadana Escola Parque.

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Célia Rosângela Dantas Dórea

C. – Como a Escola Parque terminou sendoconcluída depois, durante a gestão de Anísiono INEP, será que existe alguma documenta-ção a respeito dessas verbas, a respeito da cons-trução?

J. – É possível que exista no Arquivo Histó-rico do INEP, lá em Brasília. Esse arquivo foiorganizado durante a gestão do Prof. MarcosFormiga; mas a partir do Governo Collor foidesativado e não houve continuidade desse tra-balho, com recuperação dessas fontes. Não te-nho informações hoje como você teria acesso aesses documentos e o que poderia encontrar lá;parece que não teria havido empenho das admi-nistrações sucessivas em preservar esse acervo.

C. – As plantas da escola, por exemplo?J. – Imagino que devam existir lá, a não ser

que tenham jogado fora. Você teria que ir aBrasília. Na época, havia o Acioly e os arqui-tetos que trabalharam com o Dr. Anísio. Aciolyfez vários projetos; um deles para a Escola deDemonstração do Instituto Joaquim Nabuco,do Centro Regional de Pesquisas Educacionais,em Recife.

Dr. Anísio pensava que o professor deveriater uma formação similar à do médico. Então, àsemelhança do hospital de clínicas, onde osmédicos fazem a residência, no caso da educa-ção, seria a Escola de Demonstração ou o Colé-gio de Aplicação, onde os métodos seriam tes-tados, a experimentação seria feita, de modo quea preparação do mestre, para o ensino básico,seria realizada nas escolas de demonstração.

Estive lá, nessa escola de demonstração doRecife, um bonito prédio, com um amplo audi-tório. Extinguiram o Centro Regional, os de-mais centros regionais e o Centro Brasileirodurante o período militar. Então o Instituto Jo-aquim Nabuco incorporou o edifício da Escolade Demonstração ao seu acervo.

C. – Como podemos notar, Anísio Teixeiratinha um interesse muito grande pelo planeja-mento das escolas, nesse aspecto da arquitetu-ra, do espaço, uma preocupação toda voltadapara a escola como um lugar específico para aeducação. Gostaria de saber se ele deixavatransparecer isso no dia a dia, nas conversas...

J. – Creio que a própria Escola Parque já éuma demonstração disso. Ele tinha essa preo-

cupação, porque Anísio era um artista também.Dava grande importância à arte. Leu Platão. EPlatão dizia que as artes devem estar na baseda educação, conforme assinala nos livros da“República”, que registram sua preocupaçãocom a presença da arte na formação da mentedo jovem. Talvez por influência de grandeseducadores ocidentais, como Pestalozzi, Aní-sio tinha também a idéia de jardins nas esco-las. Você vê a Escola Parque, é um campus,com imensas árvores. Não sei hoje como é queestá, visitei-a em 68. Então era um campusmuito verde, um ambiente agradável.

Quando estive na Bahia (30/10/2000), parti-cipando de uma reunião no Liceu de Artes eOfícios, me ocorreu a idéia que à semelhançado Campus da Universidade de Brasília, querecebeu o nome de Campus Darcy Ribeiro, su-geri que se apresentasse uma proposta de mu-dança do nome da Escola Parque para CampusAnísio Teixeira, homenageando seu criador.

C. – Inclusive porque ele falava que a pro-posta era de uma “universidade infantil”.

J. – Uma “mini-universidade”, com essascaracterísticas: as escolas-classe, os artesana-tos, a área para atividades artísticas, o ginásiode esportes, as atividades sociais...

Naquela época Anísio freqüentava a Es-colinha de Arte do Brasil, preocupado em as-sociar as habilidades artísticas à educação.A Escolinha de Arte do Brasil foi um movi-mento liderado pelo Prof. Augusto Rodrigues,do Recife. A sede desse movimento era o Riode Janeiro, na Escolinha de Arte do Brasil.Então, pelo Brasil todo, e até na América La-tina, surgiram várias escolinhas, nas diversascapitais. Em Natal, por exemplo, havia a Es-colinha Cândido Portinari, seguindo os mes-mos princípios. E a base teórica é o livro doHerbert Read, considerado o papa da arte-educação. O livro dele, “A educação atravésda arte”, que já tem tradução, defende a idéiade que em todo ser humano há um potencialcriativo, e de que é preciso respeitar a liber-dade de expressão da criança. Não submetera criança às formas estereotipadas, apresen-tando toda uma fundamentação pedagógica,psicológica e filosófica.

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Anísio Teixeira: a justiça social na educação – Entrevista com o professor Jader de Medeiros Britto

C. – Essas Escolinhas de Arte funcionavamna educação formal, junto às escolas, ou eram“alternativas”?

J. – O que acontecia é que os professoresdo sistema escolar público iam estagiar nessasescolas. Anísio mesmo teve uma relação mui-to estreita com Augusto Rodrigues na Escolinhade Arte do Brasil, e trouxe professores dos Es-tados para estagiarem lá. Entre eles, da Bahia,por exemplo, veio Dolores Campos, que traba-lhou na Escola Parque. E professores de todo oBrasil vieram ao Rio de Janeiro fazer cursosde educação e integração da arte no processoeducativo, inclusive professores de recreação.Muitos desses cursos se realizaram na sede daEscolinha de Arte do Brasil.

C. – Era uma organização civil, semelhantea uma ONG de hoje?

J. – Não tinha fins lucrativos. Vivia muitodas contribuições dos alunos, que eram módi-cas, e do patrocínio do INEP ou da Secretariade Educação do Estado. A Escolinha adotouum ideal pedagógico muito elevado e jamaishouve essa preocupação de lucro; pelo contrá-rio, ela sempre estava no vermelho. Anísio deumuito apoio à Escolinha com os convênios queo INEP realizou para reciclagem e treinamen-to de professores da escola primária da redepública dos Estados.

Recordo que esse livro de Herbert Read temum capítulo que trata da arquitetura escolar,contendo planta de Walter Gropius, na pers-pectiva da Bauhaus. O interessante nessaplanta é que todas as salas de aula dão para ojardim. O centro da escola é um jardim. É umaidéia mais ou menos romana, sendo a praça ojardim, um grande jardim, que é o coração daescola.

C. – De certa forma, com o modelo da Es-cola Parque, também se pode fazer uma analo-gia com essa idéia de Gropius, onde todos osprédios circundam o campo de esportes, nocentro, como uma grande praça.

J. – Com as árvores, os jardins, tudo isso évida para as crianças.

C. – Existe algum artigo que fala sobre es-sas escolinhas de arte?

J. – Vários trabalhos. Um artigo num jornal

chamado Arte & Educação (o número zero),de 1970, contém o depoimento de Anísio so-bre “As Escolinhas de Arte de AugustoRodrigues”.

C. – Naquele artigo “Anísio Teixeira: ar-quiteto da educação brasileira” [Contato,Brasília, n. 7, p.147-149, abr./jun. 2000], o Sr.não faz nenhuma analogia com o arquitetoquanto à questão da organização do espaço fí-sico mas, de certa forma, poderíamos dizer queesse título foi inspirado pelo interesse demons-trado por Anísio pelas edificações escolares?

J. – Há certa analogia; a idéia de arquiteturaé de uma construção. Então, ele foi o arquitetoporque edificou a educação brasileira, concebeu,deu estrutura, deu bases, parâmetros, do pré-es-colar à universidade. Ele apresentou idéias, pro-postas, tentou realizar essas propostas, destacan-do sua preocupação básica com a formação dequadros. Como Diretor da CAPES, foram trezeanos dedicados à qualificação de professorespara o ensino superior, sobretudo em cursos depós-graduação no país e no exterior. Como Di-retor do INEP, durante doze anos, intensificou otreinamento e reciclagem do professor primá-rio, além de estimular as construções escolares.Tratava-se de uma construção completa, do pro-fessor ao edifício. A proposta dele para a Lei deDiretrizes e Bases mostra essa visão global daeducação brasileira. Em termos de construçãoda educação brasileira, ele foi o grande ar-quiteto. Não houve nenhum que chegasse àmesma amplitude de concepção. Como disseHermes Lima, ele foi um “Estadista da Educa-ção”. Colocou em primeiro plano a questão dapolítica da educação, ressaltando a prioridadepara a escola pública, universal, gratuita e obri-gatória. Não ficou só na política, buscou a defi-nição de métodos e projetos.

A experiência da Escola Parque, na Bahia,é uma experiência paradigmática, ilustrativa damaneira como Anísio imaginava, concebia,sonhava, a educação integral do homem brasi-leiro, a educação comum do povo brasileiro.Ele falava: “seria a escola para todos, nãoapenas a escola para alguns”. E ele era umhomem de elite, porque veio de uma escola deelite, altamente qualificada na Bahia, o Colé-

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gio São Luís e o Pe. Antônio Vieira, onde estu-dou com os jesuítas. Ele foi o primeiro educa-dor brasileiro a fazer pós-graduação em edu-cação no exterior. Nem Lourenço Filho, nemFernando de Azevedo, nenhum deles fez a pós-graduação que Anísio realizou na Universida-de de Columbia, nos Estados Unidos, onde segraduou em Filosofia da Educação, comoMaster of Arts.

C. – O que eu vejo de interessante é que eletinha uma preocupação em fazer realizar essasidéias através do sistema formal de educação,da rede pública.

J. – O que me parece fundamental, nestesentido, é a preocupação com o homem comum,com as classes menos favorecidas. Então, a meujuízo, Anísio tentou realizar a justiça social,pelo menos no campo da educação.

C. – Pelo que eu tenho estudado, estou per-cebendo que a gênese desse modelo de escola,que culminou com a construção da Escola Par-que na Bahia, se deu aqui no Rio de Janeiro,quando Anísio Teixeira foi Secretário de Edu-cação, de 1931 a 1935. Nesse período ele ha-via idealizado um sistema escolar que previaas chamadas escolas nucleares ou escolas clas-se e o parque escolar, que congregaria todas asoutras. Era o mesmo sistema, que depois vi-mos concretizado na Bahia. Bem, então eu gos-taria de saber se ele comentava alguma coisa arespeito disso...

J. – É bem possível que a concepção viessede antes. Como educador atento às realidadessociais, Anísio Teixeira ia cada vez mais apu-rando suas percepções e adensando suas idéi-as. O que de fato aconteceu é que ele realizou aexperiência da Escola Parque como Secretáriode Educação do Governo Mangabeira (1947-51). Depois, já como diretor do INEP (1952),deu condições para a continuação da experiên-cia e a conclusão dos prédios. Nesse períodoeu era estudante e tinha pouco contato com ele.Recordo a exposição patrocinada pela UNES-CO, contendo o documentário sobre a EscolaParque, apresentada no Centro Brasileiro dePesquisas Educacionais – CBPE.

C. – Estive lendo uma passagem (de feve-reiro/1971) [citada por Hélio Duarte na

monografia Escolas-classe escola-parque: umaexperiência educacional, 1973, Faculdade deArquitetura da Universidade de São Paulo],pouco antes de sua morte, em que se tem notí-cia da participação de Anísio em uma reuniãocom o diretor do INEP, tentando conseguir re-cursos para dar prosseguimento ao projeto doCentro Educacional Carneiro Ribeiro. Depoisele escreve à sua irmã, dona Carmem Teixeira,diretora da Escola Parque, falando da esperan-ça em conseguir tais recursos.

J. – Realmente, depois da saída dele doINEP, os diretores sempre deram apoio à expe-riência da Escola Parque, porque era uma ex-periência única, modelo. Mas, generalizar essaexperiência era muito dispendioso. Dr. Anísioreiterava que era o caminho certo, a educaçãoprimária integral de oito horas para toda a po-pulação em idade escolar. Quer dizer, para rea-lizar esse ideal, essa meta, haveria necessidadede uma dose maciça de recursos públicos emeducação para o atendimento a essa populaçãomais carente, com destaque para a formação ereciclagem de professores, a construção e ad-ministração dos prédios, e novos equipamen-tos. Mas, generalizar essa experiência requeriarecursos substanciais a serem mobilizados.

Agora mesmo na Bahia, a Secretaria deEducação parece empenhada em uma parceriapara dinamizar, ou revitalizar a Escola Parque.

C. – No caso dessa revitalização, o Sr. acre-dita que ela será realizada dentro da filosofiaidealizada por Anísio Teixeira?

J. – Imagino que a maior parte das idéiasseria retomada. As escolas classe continuan-do, mas os artesanatos hoje seriam diferentes.Eu mesmo sugeri que houvesse uma consultapara saber quais seriam os interesses daquelacomunidade do bairro da Liberdade, hoje. Essaconsulta me parece fundamental para definircom maior precisão que opções, que propos-tas. Mas o esquema de Anísio: educação inte-gral nas escolas classe, com educação artísti-ca, educação esportiva e uma iniciação ao tra-balho, esse esquema básico tenho a impressãoque será preservado. A alteração seria sobretu-do nessa questão dos artesanatos, das oficinas,que oficinas seriam sugeridas na proposta da

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Anísio Teixeira: a justiça social na educação – Entrevista com o professor Jader de Medeiros Britto

Secretaria. A responsabilidade básica continu-aria sendo do Estado, da Secretaria de Educa-ção. Aliás, me parece que a parte pedagógicade treinamento de professores, métodos, tudoisso pudesse ser feito em articulação com aFaculdade de Educação da UFBA. Em se tra-tando de uma experiência modelo, que servede vitrine para todo o país, creio que a EscolaParque seria uma grande contribuição da Bahia.Uma Escola Laboratório, uma experiênciaparadigmática, mas, ao que parece, somenteagora no Centenário de Anísio Teixeira é quese pensou nisso. A escola está lá há quanto tem-po... Foi encolhendo, foi se empobrecendo, eas administrações sucessivas dos governosbaianos não se empenharam, não se interessa-ram em revalorizar a experiência. Houve umagrande omissão das lideranças políticas e dospartidos que dominaram politicamente a Bahia,nesses anos todos, dos militares para cá.

C. – O que se percebe é que houve um apa-gamento do nome de Anísio Teixeira no cená-rio nacional, e no cenário baiano. Anísio eramuito pouco lembrado até dentro da própriaBahia e só agora, com o Centenário, começa aser festejado. Isso pode ser exemplificado como fato de que ao me graduar em arquitetura, háquase vinte anos, não tive conhecimento dessaexperiência da Escola Parque. Como é possí-vel cursar uma Faculdade de Arquitetura, emSalvador, e não tomar conhecimento de um“modelo” de escola que é referência? Bem, te-nho visto em minhas pesquisas que não pode-mos falar de espaço escolar na Bahia, e até noBrasil, sem falar de Anísio Teixeira, porque eletinha essa preocupação toda voltada para aquestão do planejamento da escola, de pensaro espaço adequado para a escola.

J. – Anísio era um idealista, e como já assi-nalei, seguindo Platão, concebia as artes na baseda educação. Quando vejo Anísio idealista éporque ele pensava a educação básica integralcomo ponto de partida para o equilíbrio da so-ciedade. Estava atento às necessidades daque-la população infantil, de jovens procedentes defamílias pobres, lutando pela sobrevivência.Aquela iniciação ao trabalho permitia que ascrianças colaborassem no orçamento familiar.

Eram-lhes oferecidas várias atividades. Porexemplo, Anísio trouxe um sapateiro que, ape-sar de analfabeto, foi ser professor das crian-ças na oficina de sapataria. Eram cerca de vin-te e dois artesanatos orientados por pessoas dobairro que foram convidadas para ensinar ascrianças a aprenderem um ofício.

C.– Inclusive, quando conversamos compessoas que estudaram na Escola Parque, to-das se mostram apaixonadas com aquela expe-riência, com tudo que vivenciaram lá.

J. – Recordo que ele tinha especial preocu-pação com a Biblioteca, que era o centro deirradiação da cultura, e instrumentalização paraestudos e pesquisas. O prédio da Bibliotecaestava numa posição de destaque no campus.

C. – Para concluir, se o Sr. quiser acrescen-tar algum comentário...

J. – A convivência com Dr. Anísio era umaaprendizagem contínua. Estávamos diante deum mestre, por sua cultura, humildade, largue-za de espírito...

Tenho contado este episódio a várias pes-soas – Certo dia ele estava no Centro de Pes-quisas e fez o seguinte comentário: “Não te-nho compromisso com o que eu estou dizen-do agora”. E Darcy Ribeiro traduzia dessamaneira: “Não tenho compromisso com asminhas idéias”. Alguém comentou no dia emque ele fez essa afirmação, na cantina do Cen-tro de Pesquisas: “um homem que faz uma afir-mação dessas não merece a confiança de nin-guém”. Tempos depois contei a ele o episódio,e me explicou o porquê da afirmação. Ele es-clareceu: “Se eu fizer qualquer afirmação ba-seado num esquema de referência determina-do, e daqui a cinco minutos você me apresen-tar um esquema de referência melhor do que omeu, não terei dúvidas em adotar o seu e aban-donar o meu”. Então, ele não tinha compro-misso com o saber estagnado, fechado, conge-lado. Para ele o conhecimento estava emreformulação, em recriação contínua.

Ele me disse isso, mas ao mesmo tempoobservo que poucas pessoas foram mais coe-rentes. Ao voltar dos Estados Unidos fez aque-la análise da educação brasileira, distinguindoa educação para a elite e a educação para o

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Célia Rosângela Dantas Dórea

povo; fez uma análise crítica severa da educa-ção brasileira a partir, talvez, de sua própriaexperiência, porque ele estudara em escolas deelite, com os jesuítas da Bahia, escola particu-lar. E o povão? O povo não tinha escolas, ou asescolas eram de um nível cultural modesto.Eram escolas para o trabalho; o povo tinha quetrabalhar. Já os jovens, as crianças da elite, re-cebiam uma educação intelectual. Essa visãocrítica ele retomou como Secretário de Educa-ção do Distrito Federal, da Bahia e como Dire-tor do INEP. Ele hasteou a bandeira da justiçasocial na educação.

Segundo o Mestre Anísio: “na tradição bra-sileira as instituições pouco sobreviviam aseus fundadores”. Não haveria entre nós pre-ocupação em preservar as experiências maisestimulantes, mais renovadoras. As experiên-cias morriam de inanição, de abandono.

Mas ficou seu exemplo, ficaram suas idéi-as, suas propostas à disposição de outros idea-listas capazes de pensar em nosso país real...

Recebido em 07.05.02Aprovado em 14.06.02

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Ricardo Ottoni Vaz Japiassu

Uma abordagem provocativa às apro-priações contemporâneas da teoriahistórico-cultural da atividade/CHAT

A citação acima, extraída deste polêmicolivro com o qual nos presenteia a EditoraLoyola, resume, no meu entendimento, o obje-tivo geral dos autores: sinalizar uma aborda-gem “marxiana” ao materialismo históricodialético, que possa nos auxiliar a ultrapassaros “limites” de uma interpretação “marxista”stricto sensu – ou o aprisionamento dos múlti-plos sentidos da filosofia advogada por Marx eEngels a apenas um “único” e supostamente“correto” significado.

A tradução competente de Marcos Bagnopossibilita ao leitor fácil acesso ao pensamentodesta dupla de psicólogos e teatro-educadoresnovaiorquinos, fundadores do Instituto paraPsicoterapia de Curta Duração da Costa Lestedos Estados Unidos (East Side Institute for ShortTerm Psychoterapy. Endereço eletrônico: <http://www.eastsideinstitute.org>). Além disso, porser rigorosamente elaborada, expõe com hones-tidade os fundamentos teórico-metodológicos doque os autores convencionaram denominar Te-rapia Social (maiores esclarecimentos sobre estaterapia em: <http://www.westcoastcenter.com/approach.html >)

HOLZMAN, Lois & NEWMAN, Fred. Lev Vygotsky: cientista revolucionário.Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 2002, 241 páginas.

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu *

Para Vygotsky e para nós, o marxismo digno do nome é uma teoria e uma prática darevolução. Não é nem uma análise abstrata do capital (“uma enfiada de citações”)nem uma política programática de um partido dogmático-sectário e/ou de uma buro-cracia estatal. É um guia prático cotidiano (para pessoas comuns) para transformar omundo progressistamente, para fazer história. (p.187)

O livro encontra-se organizado em oito ca-pítulos ao longo dos quais Holzman e Newmanbuscam expor, primeiramente, o contexto his-tórico da produção intelectual vygostkiana; emseguida, o panorama contemporâneo da rever-beração crescente do seu pensamento – parti-cularmente nos Estados Unidos. Só então, lo-gram posicionarem-se na cena norteamericana– e planetária – da trama urdida em torno à te-oria histórico-cultural da atividade/CHAT (Cul-tural Historical Activity Theory / teoria histó-rico-cultural da atividade).

A principal tese, defendida pelos autores,ao longo das páginas fascinantes deste livro, éa de que:

O pensamento de Vygotsky (...) não foi radicalsimplesmente no contexto da psicologia e dametapsicologia dominantes de sua época, masradical também no âmbito da própria tradiçãomarxista. Afinal, ele atacou de frente a questãoda consciência e da psicologia, o que Marx nãofizera – com isso, levou adiante a própriametodologia marxista. (...) Por mais rico que sejao conteúdo de suas descobertas, o valor de seutrabalho reside em seu método – em que os re-sultados do método e o método mesmo sãoinseparáveis (...) simplesmente aplicar Vygotskynão é vygotskiano. (p. 29)

* Professor da Universidade do Estado da Bahia-UNEB, Campus X - Teixeira de Freitas/BA; autor deMetodologia do Ensino de Teatro (Papirus, 2001); doutorando da Faculdade de Educação da USP sob orien-tação da Profª. Drª. Marta Kohl de Oliveira; Mestre em Artes pela ECA-USP; Licenciado em Teatro e Bacha-rel em Direção Teatral pela UFBa. Endereço para correspondência: Rua da Abolição, 144/106, Bela Vista –01319-010 São Paulo/SP. E-mail: [email protected]. Homepage: < http://www.ricardojapiassu.pro.br >

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228 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 227-229, jan./jun., 2002

HOLZMAN, Lois & NEWMAN, Fred. Lev Vygotsky: cientista revolucionário

Holzman e Newman apresentam então, apartir desta sua tese, nos três primeiros capítu-los do livro, um mapeamento “crítico” do pen-samento contemporâneo ancorado nas idéiasvygotskianas. Eles concebem o “palco” do de-bate em torno aos escritos de Vygotsky comouma cena “disputada” ferozmente por doisgrandes “elencos”: (1) os vygotskianos “revo-lucionários” e (2) os vygotskianos “reformis-tas”. Os primeiros, engajados na busca de umapráxis informada pelo método “instrumento-e-resultado”, originalmente proposto por LevVygotsky; os últimos, comprometidos com aaplicação do pensamento de Vygotky, em di-versificados contextos de atividade, tendo emvista fins muito precisos (reformulação das idéi-as vygotskianas com objetivo de as adequar aométodo “pragmatista” do “instrumento pararesultado”).

No quarto capítulo, intitulado A zona dedesenvolvimento proximal: uma unidade psi-cológica ou uma unidade revolucionária? osautores nos explicam que a ZDP é “a desco-berta psicológica-metodológica mais importan-te de Vygotsky” (p.71). Eles a entendem so-bretudo enquanto método, e não apenas como“ferramenta” ou construto teórico possível deaplicação por diversificadas abordagens peda-gógicas à problemática do desenvolvimentohumano. Holzman e Newman advogam intran-sigentemente a defesa da ZDP como conceitoque refere exemplarmente o método “instru-mento-e-resultado” desenvolvido por LevVygotsky: “a ZDP nada mais é do que (...) olugar da atividade revolucionária” (p.82).

O entendimento da dupla de psicólogosnorteamericanos é o de que os vygotskianos “re-formistas” (re)significaram, de acordo com suasnecessidades “pragmáticas”, o conceito de ZDP:

Em vez da metodologia radicalmente monistade Vygotsky ser empregada para pôr em xequeo mentalismo e o dualismo fundamentais da psi-cologia cognitiva, a ZDP, seu instrumento-e-re-sultado, é transformada num instrumento “maissocial” para o resultado, reforçando assim omentalismo e o dualismo (...) A busca contínuade Vygotsky por um método e sua descoberta daunidade de estudo adequada à psicologia foram,em nossa opinião, pragmatizadas (...) Vygotsky

deixou a porta aberta para a objetivação prag-mática da ZDP. É nossa tarefa trancar essa portacom força! (p. 87-102)

Os capítulos 5, 6 e 7 do livro apresentam aconvincente argumentação dos autores na de-fesa de seu ponto de vista. Por fim, Holzman eNewman, no oitavo capítulo, concluem sua ex-posição sinalizando o “não-final” do debatecontemporâneo das teses fundamentais de LevVygotsky. Ali, eles descrevem – embora de ma-neira muito aligeirada e breve – como ambosvêm incorporando o método do “instrumento-e-resultado” (a ZDP) nas intervenções terapêu-tico-pedagógicas conduzidas pelo casal no Ins-tituto para Psicoterapia de Curta Duração daCosta Leste dos Estados Unidos e no TeatroCastillo (palco privilegiado para os experimen-tos cênico-terapêutico-pedagógicos da TerapiaSocial, cujo endereço eletrônico é <http://www.castillo.org/castillo--artisticdirector.html>). No último capítulo, os autores apresen-tam uma proposta concreta para o resgate da“atividade revolucionária” e, conseqüentemen-te, para o desenvolvimento cultural humano: aTerapia Social.

Embora suas idéias possam trazer – e de fato,trazem – algum frescor à disputa epistemoló-gica entre as abordagens histórico-culturais “re-formistas” e as “revolucionárias” à atividade ti-picamente humana, observam-se alguns “nós”na exposição da tese dos autores - que, na mi-nha opinião, precisam ainda ser “desatados”.

Refiro-me particularmente às afirmaçõesque ambos fazem, no sexto capítulo, intituladoReforma e revolução no estudo de pensamentoe linguagem. Neste capítulo, no subtítulo OVygotsky dos reformadores, mais precisamen-te na página 137, Holzman e Newman afirmamque “a atividade humana não é mediada demodo nenhum.” (sic)

Ora, o conceito de mediação é central nasabordagens histórico-culturais ao psiquismohumano (JAPIASSU, 2000; BANKS-LEITE,1991). Eu diria que este conceito é a “estrela”em torno à qual se movimenta todo o “sistemaplanetário” das abordagens histórico-culturaisao desenvolvimento. Trata-se do principal ar-tefato teórico que as distingue das demais

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229Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 227-229, jan./jun., 2002

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu

abordagens construtivistas e sócio-interacio-nistas, como as de Wallon e Piaget, porexemplo.

As teorias de Wallon, Piaget e Vygotsky des-tacam, algumas mais outras menos: (1) a ativi-dade do sujeito em seu movimento de apropria-ção dos objetos do conhecimento, (2) a impor-tância do meio social na impregnação culturaldo sujeito e (3) o papel relevante da afetividadenos processos cognoscitivos (CASTORINA eoutros, 1995).

Todavia, diferentemente de Wallon e Piaget,Vygotsky (1987) nos alerta para o fato de quea relação interativa do sujeito com os objetosdo conhecimento não se dá “diretamente”. Elefoi, incontestavelmente, o primeiro a chamarnossa atenção para o fato de que essa relação émediada pela cultura, ou seja, pelo pensamen-to verbal, pela linguagem. Então, esse papelmediador da linguagem na formação dopsiquismo tipicamente humano é o grande di-

ferencial das abordagens histórico-culturais aodesenvolvimento – se, e quando, comparadasa outras concepções construtivistas da consti-tuição do psiquismo humano.

Então, é preciso que os autores tenham opor-tunidade de esclarecer mais – e melhor – o queestão querendo dizer ao afirmarem que a ativi-dade humana “não é mediada de modo ne-nhum” (p. 137). Talvez, com a publicação noBrasil dos outros livros da dupla – já há muitodisponíveis em inglês – seja possível para nós,leitores, desfazermos os “nós” conceituaisconstatados em Lev Vygotsky: cientista revolu-cionário.

Apesar do “nó” exposto acima – e de ou-tros “becos sem saída” que se encontram aolongo da exposição de Holzman e Newman –o livro revela-se leitura fundamental e indis-pensável para todos os interessados em conhe-cer e pensar o desenvolvimento humano naperspectiva da psicologia sócio-histórica.

REFERÊNCIAS

BANKS-LEITE, Luci. As dimensões interacionista e construtivista em Vygotsky e Piaget. In: CadernosCEDES, n. 24. Pensamento e linguagem: estudos na perspectiva da psicologia soviética. Campinas, 1991.p.30-37.

CASTORINA, José Antônio e outros. Piaget-Vygotsky: novas contribuições para o debate. São Paulo:Ática, 1995.

JAPIASSU, Ricardo. Ensino do teatro nas séries iniciais da educação básica: a formação de conceitossociais no jogo teatral. São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado). ECA/USP – Escola de Comunicações eArtes/Universidade de São Paulo; área de concentração: Artes cênicas.

VYGOTSKY, L. S. Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Ciudad de La Habana:Científico Técnica, 1987.

Recebido em 02.06.02Aprovado em 27.08.02

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230 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 230-232, jan./jun., 2002

ARRUDA, Angela (Org.). Representando a alteridade

ARRUDA, Angela (Org.). Representando a alteridade. Petrópolis, Rio deJaneiro, Vozes, 1998, 164 páginas.

Edmilson de Sena Morais *

* Mestrando do Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade – PEC, no Departamentode Educação I, Salvador, Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Endereço para correspondência: Con-junto G. Marback, setor 2, Rua Rio Parnaíba, bloco 43, apto 102, Boca do Rio, 41706-170 - Salvador/Ba.E-mail: [email protected]

Essa coletânea organizada por AngelaArruda é resultado da III Conferência Interna-cional das Representações Sociais, em Aix-en-Provence, na França, em 1996, e propõe discu-tir a Teoria das representações sociais na pers-pectiva de Serge Moscovici, pioneiro nestaperspectiva teórica, atrelada às mais diversasabordagens e espectros possíveis da aplicabili-dade deste referencial, não só no campo daPsicologia Social, mas em todas as áreas dasciências humanas e sociais, como também dasciências da natureza, enquanto estudo das maisvariadas formas de se estabelecer a relaçãodo(s) eu(s) com o(s) outro(s), e com a naturezade uma forma geral.

Angela Arruda, doutora pela USP, é profes-sora de Psicologia Social do Instituto de Psi-cologia da UFRJ, publicou um capítulo sobrerepresentações sociais da ecologia em O co-nhecimento do cotidiano (organizado por M.J.Spink, Brasiliense, 1994) e artigos em revistasbrasileiras e hispânicas. Atualmente trabalhacom representações sociais e imaginário brasi-leiro sobre ambiente natural e gênero.

O livro, além da apresentação feita por SergeMoscovici e a introdução de Angela Arruda,contém sete estudos de diferentes autores, tan-to nacionais como internacionais, incluindo oprimeiro da própria organizadora da obra, quediscutem novas possibilidades de investigaçãoà luz da Teoria das representações sociais, suasanálises e reflexões, a partir das relações sociaisadvindas do processo do encontro das diversasdiferenças culturais estabelecidas entre os su-jeitos sociais, que são historicamente e social-mente produzidas, emergindo os mais diver-

sos significados enquanto representações daalteridade.

Na apresentação, Moscovici se refere àregião da intersubjetividade ou intermental se-gundo Tarde, como sendo uma região do quenão é mais individual, mas ainda não se tornouplenamente social, plenamente grupal. Para ele,o estudo do eu pela psicologia não é suficientepara entender tipos de ação e de relação com-plexos. Esses tipo de relação ou ação pressu-põem, com efeito, a presença do outro, natu-ralmente; o bem-estar do outro, a obediência aele, a aceitação do seu desejo etc. Nesse senti-do, há distinção entre compreender por que apsicologia social deve levar em conta a noçãodo outro quando encara essa região intersubje-tiva ou intermental, e reconhecer as dificulda-des que tal noção nos coloca. E para tanto,elenca três dificuldades principais – a fenome-nologia do que se denomina como o outro; aespecificidade das relações intersubjetivas ouintermentais e a percepção do outro.

Na introdução, Angela Arruda, além deapresentar os principais autores dos textos e umbreve comentário sobre o que discutem em seustrabalhos, chama a atenção pela expansão teó-rica pela qual vem passando nos últimos anosa Teoria das representações sociais, e que seucampo de aplicação vem sendo utilizado emvárias partes do mundo. Uma nova perspecti-va, revigorando a psicologia social e manten-do uma interlocução com outras áreas dosaber. Sua entrada no Brasil na década de 80,segundo a autora, deve-se a Denise Jodelet(uma das fundadoras da escola francesa de re-presentações sociais) quando aqui esteve na-

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Edmilson de Sena Morais

quele período, e que desde então tem se mos-trado profícua sua utilização no campo da saú-de, educação e da própria psicologia.

No primeiro texto, O ambiente natural eseus habitantes no imaginário brasileiro –Negociando a diferença, Angela Arruda tomacomo referência as reflexões teóricas sobreidentidade e diferença, imaginário e represen-tação de alguns historiadores, antropólogos,sociólogos e acadêmicos, como Laura de Meloe Souza, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade,José de Alencar, Castoriadis e outros, e analisaas relações de etnia, natureza e de gênero nostrês momentos do processo de formação dopovo brasileiro: a colonização, a formação doEstado-Nação e a República. Dessa maneira,ela concebe que nesses três momentos deu-seo surgimento de representações hegemônicasque caracterizam a alteridade brasileira atrela-das ao imaginário e teorias européias, andróge-nas, cristãs, desde a colonização que reprodu-ziu o imaginário medieval à formação do Esta-do-Nação, influenciado pelo romantismo, sub-jugado às teorias das escolas européias, o quena realidade, para ela, essas etapas foram “mar-cadas por uma negociação da diferença” (p.18),num processo constante de construção edesconstrução das representações, resultado daprópria dinâmica dialética da história.

Denise Jodelet, em seu trabalho A alteri-dade como produto e processo psicossocial,esboça um quadro teórico a partir de uma pes-quisa sobre a loucura, desenvolvida numacomunidade no interior da França na qual oscitadinos acolheram os pacientes de uma insti-tuição de doentes mentais, experiência piloto,e daí emergiram as mais diversas representa-ções deste convívio: ser contagiado pela doen-ça; aqueles que se socializaram com os doen-tes passaram a ser vistos também como doentes,etc. Para ela, a loucura é uma das maiores “fi-guras” da alteridade (p.47), e nesse estudo elatenta mostrar que “a alteridade é produto deduplo processo de construção e de exclusãosocial que, indissoluvelmente ligados com osdois lados duma mesma folha, mantém suaunidade por meio dum sistema de representa-ções.” (p.47-48)

Sandra Jovechelovitch, no texto Re(des)co-brindo o outro – Para um entendimento da al-teridade na Teoria das representações sociais,aborda a alteridade sob uma ótica socioontoló-gica, e seu argumento é que os estudos empí-ricos têm revelado uma tendência de socieda-de contemporânea para construir a alteridadeem termos negativos, o que para ela não se es-gota e certamente não explica completamenteo outro; sendo assim, ela percorre um outroviés, tomando a positividade da alteridade quenecessita ser discutida, pois é nesse contextoque residem, segundo ela, elementos funda-mentais a toda vida psíquica e social. Ela fun-damenta seu trabalho em dois momentos. Noprimeiro, toma Piaget como referência básicapara discutir os elementos constitutivos da for-ma simbólica, em que procura demonstrarcomo o processo de formação do símbolo está“radicalmente” enraizado no reconhecimentoda alteridade. Num segundo momento projetauma análise da forma simbólica no campo dosocial, onde as representações sociais são for-madas.

Gerard Duveen, através da perspectiva ge-nética, em seu trabalho A construção da alteri-dade, analisa a construção da alteridade do in-divíduo desde sua fase de recém-nascido, ondeuma série de elementos constitutivos fazemparte do modo de pensar de toda a família, pais,irmãos e outros, quando este novo ser deixa deser um “objeto neutro”, e passa a ser revestidocom as características da identidade social.Sendo uma menina ou menino, os objetivos dogrupo familiar inicialmente é que devem defi-nir sua identidade de gênero através da roupa,brinquedos, etc. Para ele, a criança é um objetono mundo social dos outros; são eles que dão aela uma identidade, dando-lhe um nome, colo-cando-a no campo representacional de gênero.

Helene Joffe discute os conteúdos das ex-plicações dadas pelas pessoas de vários gru-pos em relação às crises que surgem em seumundo social. No seu texto Degradação, de-sejo e “o outro” o seu objetivo é desenvolveruma teoria social psicológica de resposta àscrises. A crise apreendida aqui é de amplo es-pectro, desde epidemias, crises econômicas,

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ARRUDA, Angela (Org.). Representando a alteridade

ambientais, políticas, etc. Ela pretende demons-trar no seu trabalho que se pode construir umateoria a respeito da estrutura dos conteúdos quesurgirão nas representações das crises. Ela sefundamenta essencialmente na vertente da te-oria cultural que defende o pensamento ociden-tal como fundamental valor de degradação edo desejo do outro, e que esta resposta se in-tensifica em tempos de crise, além de pesqui-sas psicológicas sobre respostas não ocidentaisàs crises. Propõe que o padrão possui qualida-des universais, que podem ser explicadas porteorias psicodinâmicas e antropológicas.

Nicola Morant e Diana Rose, em Loucura,multiplicidade e alteridade, a partir de doisestudos empíricos sobre as representações daloucura: o primeiro realizado na Inglaterra atra-vés do que se veiculava na programação de doiscanais de televisão, e o segundo, sobre as cren-ças comuns que circulam na comunidade detrabalhadores em saúde mental, concluem que,apesar da Teoria das representações oferecer àpsicologia social um instrumento mais pode-roso de teorizar as compreensões e as reaçõesda sociedade à doença mental do que as de-mais teorias até então usadas, possuem tam-bém seus problemas. A tese por elas defendidaé de que “a representação mental da doençacomo “outro” desafia a premissa teórica bási-ca de que a função de uma representação soci-al é tornar o não familiar, familiar. Representara loucura implica num modo em que o não fa-miliar não é tornado familiar ou, ao menos, nãono sentido geralmente proposto pela Teoria dasrepresentações sociais.” (p.131). Partindo des-sa constatação, propõem que alguns princípiosgerais da Teoria das representações sociais de-vem ser modificados a fim de ajustar as com-plexidades da alteridade no caso da loucura.

Por fim, no texto Alteridade e relação: uma

perspectiva científica, Pedrinho Guareschi par-te do conceito de relação do filósofo Agosti-nho de Hispona que designa o ser humano en-quanto pessoa; e pessoa é relação. Para ele, essenovo conceito não poderia deixar de ajudar narecuperação de uma compreensão redutora darealidade e de ser humano, e por isso toma ain-da um outro, o de anaelética do filósofo latino-americano Enrique Dussel como categoria fi-losófica e analítica que o autor não distingueda ética. Para Dussel, a verdadeira “alterida-de” é a anaelética dialógica, ou seja, “todaeticidade da existência.”(p.157). Guareschiconclui tomando a anaelética enquanto referen-cial “que nos traz novos elementos para se po-der pensar um novo paradigma para a compre-ensão do mundo, do ser humano, e para a cria-ção e constituição de práticas que impliquemuma dimensão ética.” (p.161).

A coletânea nos traz um novo referencialteórico metodológico para repensarmos os fe-nômenos sociais ao longo da nossa história, e,principalmente, mais do que nunca, neste mun-do, hoje, “pulverizado” de inúmeras represen-tações resultantes das mais diversas “alterida-des”, contextualizadas no próprio processo his-tórico de expansão geo-política, movimentoque promoveu o “encontro das diferenças” cul-turais.

Esse texto deve ser leitura obrigatória paraestudantes, pesquisadores, cientistas sociais,além do público em geral, enquanto fonte dereflexão do processo de como se estabeleceuhistoricamente a alteridade na formação dopovo brasileiro, e as diversas representaçõessociais, mentais e ambientais que se estabele-cem no contexto das relações cotidianas entreos indivíduos entre si e a própria natureza, pro-pondo assim, possibilidades para uma altercoexistência.

Recebido em 16.03.02Aprovado em 20.06.02

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233Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 233-234, jan./jun., 2002

Gláucia de Souza Lima

O livro trata, basicamente, da questão dadesmistificação da concepção de conhecimen-to como descoberta em nossa sociedade e seupapel na escola, sendo o resultado de uma tesede doutorado orientada por Paulo Freire.

Além da introdução, em que são levantadasalgumas questões acerca da crise na educaçãobrasileira, o livro possui quatro capítulos. Oprimeiro deles trata da origem e da evoluçãodo homem; o segundo, da questão da origemdo conhecimento e do conceito de verdade; oterceiro, da transmissão/re-construção do co-nhecimento na escola e o quarto trata das ques-tões epistemológicas e políticas que norteiamo conhecimento escolar.

Na introdução, o autor levanta algumasquestões acerca da educação brasileira e dascausas mais prováveis de sua crise, indo desdea falta de justiça social (desde o Brasil Colô-nia) até o acelerado processo de urbanização,o modelo econômico e a redução dos investi-mentos sociais (últimos 30 anos da história).Mostra, ainda, o caráter epistemológico e polí-tico da educação brasileira.

No primeiro capítulo, Humanidade, Cul-tura e Conhecimento, Cortella apresenta vári-as concepções epistemológicas e filosóficasacerca do homem, tratando também, sucinta-mente, da questão dos símios e hominídeos,da evolução biológica e dos seus diferentesestágios até chegar ao momento atual. O autorchama a atenção para o fato de o ser humanoter tido que enfrentar a realidade natural no

CORTELLA, Mário Sérgio. A Escola e o Conhecimento: fundamentosepistemológicos e políticos. 3. Edição. São Paulo: Cortez, Instituto PauloFreire, 1998, 166 páginas.

Gláucia de Souza Lima*

processo de adaptação e através de uma açãotransformadora consciente, formar-se um serhistórico e criador de cultura. Finalizando ocapítulo, o autor trata dos conhecimentoshegemônicos e dos valores dos sentidos e sig-nificados que estão por trás destes, falando tam-bém das suas formas de conservação e inova-ção através das instituições sociais e dos pro-cessos educacionais.

O segundo capítulo, Conhecimento e Ver-dade: a matriz da noção de descoberta, tratada questão do conhecimento e da verdade comoum produto histórico. Primeiramente, Cortellamostra alguns aspectos da evolução do povogrego, com seus períodos e suas respectivas ca-racterísticas, a origem das indagações filosófi-cas correspondentes a cada período, assimcomo o surgimento da filosofia, dos sofistas eo nascimento de uma Antropologia Filosófica.O autor fala, também, de Sócrates e de sua im-portante contribuição no que se refere a “comoestabelecer verdades que sejam válidas paratodas as pessoas?” (p.74) e “como chegar atéelas?” (p.76); porém, se detém mais em Platãoe na sua síntese acerca da origem do mundo,da sua teoria dos dois mundos e, finalmente, asua idéia de verdade como pertencente ao mun-do inteligível, devendo ser descoberta pelaalma, através da razão introspectiva e da abs-tração racional.

Finalizando o capítulo, Cortella faz um apa-nhado geral acerca da origem do conhecimen-to e das verdades, indo desde Platão e Aristóte-

* Aluna da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Departamento de Educação – Campus I, Curso dePedagogia para Educação Básica, Campo de Conhecimento – Produção Científica II, sob a coordenação daProfessora Yara Dulce Bandeira de Ataide. Secretária na Assessoria de Comunicação Social da Secretariada Fazenda Estadual. Endereço para correspondência: Rua da Índia, 92E, Rio Vermelho, 41915-190 –Salvador/BA. E-mails: [email protected]; [email protected]; [email protected]

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234 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 233-234, jan./jun., 2002

CORTELLA, Mário Sérgio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos

les e a idéia de verdades como essências imate-riais, passando pela Idade Média com os co-nhecimentos calcados na Patrística e naEscolástica; do Renascimento, com seu conhe-cimento de verdade fundamentado na oposi-ção entre empirismo e racionalismo, até che-gar à visão atual de conhecimento e verdadecomo construções sociais.

No terceiro capítulo, A Escola e a Cons-trução do Conhecimento, o autor trata da ma-neira como o conhecimento científico é apre-sentado ao senso comum, sendo que, num pri-meiro momento, ele trata da relativização doconhecimento, mostrando através de exemplosque não devemos conceber a construção doconhecimento de uma forma única e inquestio-nável, mas como algo que nós produzimos nacultura ao nos produzirmos.

Num segundo momento, é chamada a aten-ção para a questão da intencionalidade exis-tente nas pessoas e em suas ações, inclusive nométodo pedagógico por elas escolhido; mostraa importância do erro na construção do conhe-cimento, levando os alunos a encarar os mes-mos como um importante passo na elaboraçãode um conhecimento teórico mais completo,ressaltando a importância de se levar em contaa preocupação prévia dos alunos em relaçãoaos conteúdos estudados.

Fechando o capítulo, Cortella fala dos ritua-lismos, encantamentos e princípios existentes

em relação à sala de aula, e as conseqüênciascausadas por estes na maneira como os educan-dos encaram a mesma (sala de aula).

O quarto capítulo, Conhecimento Escolar:Epistemologia e Política, trata primeiramen-te de três concepções pedagógicas: o Otimis-mo Ingênuo, com seu caráter messiânico deeducação e sua autonomia plena, o Pessimis-mo Ingênuo, com sua visão de educação comoreprodutora das desigualdades sociais, forte-mente determinada pela sociedade, e o Oti-mismo Critico que seria uma junção das duasoutras concepções, entendendo a educaçãocomo conservadora e inovadora da realidadesocial.

Cortella chama a atenção também para aquestão do fracasso escolar, o que classificacomo pedagocídio, e suas causas, tanto as ex-tra-escolares (as precárias condições sócio-eco-nômicas, a falta de interesse dos poderes polí-ticos, etc) que se refletem no desempenho es-colar, como as intra-escolares (o uso não refle-xivo dos livros didáticos), mostrando os peri-gos de se acreditar que só as causas extra-es-colares contribuem para o fracasso dos educan-dos. Finalizando o capítulo, Cortella fala dafunção dos educadores que, na união entre aepistemologia e a política, têm que tentar rom-per os valores de uma sociedade desigual, vi-sando a reinvenção de um futuro mais digno,humano e menos injusto para todos.

Recebido em 09.04.02Aprovado em 09.04.02

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235Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, p. 235, jan./jun., 2002

Wagner Braga Batista

O ensino a distância vem sendo empregadohá pelo menos dois séculos. O objetivo de am-pliar a educação pública e a perspectiva desubordiná-la a interesses privados imiscuem-se no ensino a distância. Nele estão subjacentesambivalências tecnológicas que potencializama educação ou reduzem seu alcance social.

Carências educacionais seculares conferiramrelevo às modalidades de ensino supletivo. Gra-ças a elas o ensino por correspondência desen-volveu-se extraordinariamente. Foi impulsiona-do por investimentos privados que se beneficia-ram da falta de intervenção do poder público. Poresta via, ocorre a comercialização do ensino aomesmo tempo em que se verifica a popularizaçãodo conhecimento técnico elementar.

Sob influência liberal, a educação a dis-tância é celebrada como patamar da moderni-zação do ensino. Em suas várias vertentes ocaráter modernizador é enfatizado por inter-médio de tecnologias da informação. Por umlado, a educação a distância dinamiza o ensi-no de elites, por outro contribui para barateare precarizar o ensino destinado a grandes con-tingentes populacionais. Este corte resulta daapropriação privada e da destinação comercialdo ensino a distância. Corporações transna-cionais articulam interesses econômicos nocampo das finanças, da provisão de tecnologia,da comunicação social, do entretenimento, domarketing educacional. Beneficiando-se doseu elevado valor simbólico transformam oensino em objeto de especulação. Habilitadoa expandir a rede pública, o ensino a distân-

cia sofre digressões restritivas decorrentes dasua destinação comercial. O ensino a distân-cia se reveste de caráter regressivo e causaexclusão social. Ao invés de universalizar di-reitos, amplia e internacionaliza mercadoseducacionais periféricos.

ABSTRACT OF DOCTORATE THESIS –Distance education: overcoming or increasingdistances?

Distance education has been used for at leasttwo centuries. In distance education lieperspectives of broadening public educationand subordinating it to private interests. Secu-lar educational lacks have lead distanceeducation to stand out. In that way, educationbecomes a merchandise at the same time it po-pularizes elementary technical knowledge.Under liberal influence, distance education iscelebrated as a springboard for the updating ofeducation, which is emphasized throughinformation technologies. On one hand distanceeducation makes the teaching of the elite moredynamic; on the other it contributes to makecheap and precarious the teaching aimed atgreat populations. Thus, private sectors benefitfrom its symbolic value turning it into aspeculative object. Being enabled to expand thepublic sector, distance education goes underrestrictive digressions from its originalobjective, therefore becoming regressive andcausing social exclusion. Instead of universa-lizing rights, it widens and internationalizesperipheral educational markets.

RESUMO DE TESE DE DOUTORADO

BATISTA, Wagner Braga*. Educação a distância: superar ou aumentardistâncias? Rio de Janeiro, 2002. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).**

* Professor do Departamento de Desenho Industrial, do Centro de Ciências e Tecnologia, Campus II, UFPB.Endereço para correspondência: Rua Francisco Lima Neto, 98, Conjunto dos Professores, 58109-105 –Campina Grande-PB. E-mail: [email protected]** Orientadora: Professora Mabel Tarrré Carvalho de Oliveira; data: 8 fev. 2002; Banca: Professores AlbertoMello e Souza (UFRJ), Gaudêncio Frigotto (UFF), René Louis de Carvalho (UFRJ) e Michel Zaidan Filho(UFPE).

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239Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 11, n. 17, jan./jun., 2002

Revista da FAEEBA - FORMULÁRIO DE AQUISIÇÃO

Nome da Pessoa Física (+ profissão e lugar de trabalho) ou da Instituição:

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Endereço: ...................................................................................................... Bairro .............................

CEP .................... Cidade .......................... Estado .... Tel. ........................ Fax ............................

E-mail .................................................

MODALIDADE DE AQUISIÇÃO

1 – ASSINATURA

- Assinatura: R$ 18,00 (2 números)

- Assinatura estudante da UNEB: R$ 14,00 (2 números)

2 - NÚMEROS AVULSOS

- Compra de números avulsos: R$ 10,00 (vide lista na página seguinte)

Número(s) da revista (e/ou temas) e quantidade de exemplares solicitados (por número):

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3 – PERMUTA

- Troca por publicação congênere – especificar em carta anexa.

OBSERVAÇÕES

Para assinatura ou compra, enviar o formulário preenchido, acompanhado de CHEQUENOMINAL ou de um comprovante de depósito bancário (para o Banco 237 - BRADESCO,agência 3567, conta corrente 10434/5), em nome da: UNEB/Revista da FAEEBA (citando noverso a finalidade do pagamento), para o seguinte endereço:

REVISTA DA FAEEBA – Educação e ContemporaneidadeDepartamento de Educação I – NUPEUNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIAEstrada das Barreiras, s/n, Narandiba – 41150.350 – SALVADOR - BA

Informações complementares: Telefax 0**71.387.5916E-mails: [email protected] / [email protected] / [email protected]

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REVISTA DA FAEEBA - NÚMEROS E TEMAS

Desde o final do ano de 1992, quando foi lançado o primeiro número, já foram publicados:

Nº 1 - EDUCAÇÃO E UNIVERSIDADE (esgotado)

Nº 2 - EDUCAÇÃO E CIDADANIA (esgotado)

Nº 3 - EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO (esgotado)

Número especial sobre CANUDOS – CENTENÁRIO DE BELLO MONTE(Segunda edição corrigida e melhorada)

Nº 4 - EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

Nº 5 - EDUCAÇÃO E EDUCADORES

Nº 6 - EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Nº 7 - EDUCAÇÃO E ÉTICA SOCIAL (com homenagem especial a Paulo Freire)

Nº 8 - EDUCAÇÃO E TERCEIRO MILÊNIO

Nº 9 - EDUCAÇÃO E LITERATURA

Nº 10 - EDUCAÇÃO E POLÍTICA

Nº 11 - EDUCAÇÃO E FAMÍLIA

Nº 12 - EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

Nº 13 - BRASIL 500 ANOS

Nº 14 - A CONSTRUÇÃO DA PAZ

Nº 15 - EDUCAÇÃO, LINGUAGEM E SOCIEDADE

Nº 16 - GLOBALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO

Nº 17 - INCLUSÃO-EXCLUSÃO SOCIAL E EDUCAÇÃO

Vide números, com capa, apresentações e sumários,

no homepage:

http://www.uneb.br/Educacao/centro.htm - Link: Publicações

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INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES

A Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade é uma publicação semestral e aceitatrabalhos originais que sejam classificados em uma das seguintes modalidades:

– resultados de pesquisas sob a forma de artigos, ensaios e resumos de teses ou monografias;– entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes.

Os trabalhos devem ser apresentados em disquete (Winword), ou enviados via Internet para JacquesJules Sonneville: [email protected] / [email protected], segundo as normasdefinidas a seguir:

1. Na primeira página devem constar: a) título do artigo; b) nome(s) do(s) autor(es), endereço,telefone, e-mail para contato; c) instituição a que pertence(m) e cargo que ocupa(m).

2. Resumo (português) e Abstract (língua estrangeira): com no mínimo 200 palavras e no máximo250, cada um, de acordo com a NBR 6028. Logo em seguida, as Palavras-chave (português) eKey words (língua estrangeira), cujo número desejado é de no mínimo três e no máximo cinco.

3. As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias, quando apresentados em folhas separadas, devemter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar referências de suaautoria/fonte. Para tanto devem seguir a Norma de apresentação tabular, estabelecida peloConselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE em 1979.

4. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como osagradecimentos, apêndices e informes complementares.

5. O sistema de citação adotado por este periódico é o de autor-data. As citações bibliográficasou de site, inseridas no próprio texto, devem vir entre aspas ou em parágrafo com recuo e semaspas, remetendo ao autor. Quando o autor faz parte do texto, este deve aparecer em letra cursiva,observando e respeitando a língua portuguesa; exemplo: De acordo com Freire (1982, p.35), etc.Já quando o autor não faz parte do texto, este deve aparecer no final do parágrafo, entre parêntesese em letra maiúscula, como no exemplo a seguir: A pedagogia das minorias está a disposição detodos (FREIRE, 1982, p.35). As citações extraídas de sites devem, além disso, conter o endereço(URL) entre parênteses angulares e a data de acesso. Para qualquer referência a um autor deve seradotado igual procedimento. Deste modo, no rodapé das páginas do texto devem constar apenasas notas explicativas estritamente necessárias, que devem obedecer à NBR 10520, de 2002.

6. Sob o título Referências deve vir, após parte final do artigo, em ordem alfabética, a lista dosautores e das publicações conforme a NBR 6023 2002, da ABNT (Associação Brasileira de NormasTécnicas).

7. Os artigos devem ter, no máximo, 30 páginas, e as resenhas até 4 páginas. Os resumos deteses/dissertações devem ter no mínimo 250 palavras e no máximo 500, e conter título, autor,orientador, instituição, e data da defesa pública.

Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no Winword 97 ou 2000:• letra: Times New Roman 12;• tamanho da folha: A4;• margens: 2,5 cm;• espaçamento entre as linhas: 1,5 linha;• parágrafo justificado.

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8. As colaborações encaminhadas à revista são submetidas à análise do Conselho Editorial,atendendo critérios de seleção de conteúdo e normas formais de editoração, sem identificação daautoria para preservar isenção e neutralidade de avaliação. A aceitação da matéria para publicaçãoimplica a transferência de direitos autorais para a revista.

A Comissão de Editoração