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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ PAULO DÍDIMO CAMURÇA VIEIRA FILHO O IMPACTO SOCIAL E JURÍDICO DA MISTANÁSIA NO BRASIL FORTALEZA 2019

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

    PAULO DÍDIMO CAMURÇA VIEIRA FILHO

    O IMPACTO SOCIAL E JURÍDICO DA MISTANÁSIA NO BRASIL

    FORTALEZA

    2019

  • PAULO DÍDIMO CAMURÇA VIEIRA FILHO

    O IMPACTO SOCIAL E JURÍDICO DA MISTANÁSIA NO BRASIL

    Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial à obtenção do título de Graduado em Direito.

    Orientador: Prof. Dr. Felipe Lima Gomes

    Fortaleza

    2019

  • Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

    Biblioteca UniversitáriaGerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

    C17i Camurça Vieira Filho, Paulo Dídimo. O impacto social e jurídico da mistanásia no Brasil / Paulo Dídimo Camurça Vieira Filho. –2019. 73 f. : il.

    Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará,Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2019. Orientação: Prof. Dr. Felipe Lima Gomes.

    1. Morte. 2. Mistanásia. 3. Bioética. 4. Saúde. 5. Sistema prisional. I. Título.

    CDD 340

  • O IMPACTO SOCIAL E JURÍDICO DA MISTANÁSIA NO BRASIL

    Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Programa de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Direito.

    Aprovada em: 25/11/2019.

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________

    Prof. Dr. Felipe Lima Gomes (Orientador)

    Universidade Federal do Ceará (UFC)

    _________________________________________

    Prof. Dr. Regenaldo Rodrigues da Costa

    Universidade Federal do Ceará (UFC)

    _________________________________________

    Mestrando Thiago do Vale Cavalcante

    Universidade Federal do Ceará (UFC)

    Grad

  • Agradeço à Deus por ter me acompanhado por todos os dias da minha vida

    e, aos meus pais e irmãs pelo carinho e apoio.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, Paulo Dídimo e Ana Cléa, pela paciência e carinho que tiveram

    comigo durante o processo.

    As minhas irmãs, Ana Paula e Ana Clara, que me apoiaram com todo amor do

    mundo.

    Ao Thiago do Vale Cavalcante pelo apoio acadêmico;

    Ao professor Felipe Lima pelo apoio e exemplo como pessoa e profissional;

    Ao professor Regenaldo Rodrigues da Costa pelas palavras de motivação,

    confiança e sensibilidade, fonte de inspiração para o tema com aulas cativantes;

    Aos funcionários da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará;

    Aos amigos Rafael Guedes e Julio Biasoli pelos ensinamentos e momentos de

    amizade;

  • “(..)Morte igual, mesma morte severina:

    que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta,

    de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia.”

    João Cabral de Melo Neto

  • RESUMO

    Nessa pesquisa é analisado o problema da mistanásia. Para isso, conceitos

    importantes como o do biodireito e o da bioética são tratados, para depois a morte

    ser examinada como um fenômeno complexo que pode ser classificada de

    diferentes formas, no intuito de se chegar ao conceito de mistanásia. Com base

    nesse conceito, é realizado uma análise de qual forma acontece a ocorrência da

    mistanásia na área da saúde e da área da segurança, incluindo o sistema prisional,

    áreas que representam bem a realidade de uma sociedade. Dessa forma, tal

    fenômeno é observado sob uma perspectiva social, no qual é trazido casos notáveis

    e analisados dados estatísticos. Além de uma perspectiva social, esse fenômeno é

    analisado na perspectiva jurídica sob a ótica dos direitos humanos, para culminar

    em uma análise de decisões do Supremo Tribunal Federal acerca dessa temática,

    resultando na observação efeitos do sistema jurídico em realidades sociais fáticas

    como a realidade brasileira.

    Palavras-chave: Mistanásia. Morte. Bioética. Saúde. Sistema prisional.

  • ABSTRACT

    In this research, the problem of mistanasia is analyzed. For this, important concepts

    such as biolaw and bioethics are treated, and then death is examined as a complex

    phenomenon that can be classified in different ways in order to arrive at the concept

    of mistanasia. Based on this concept, an analysisis performed about of how the

    mistanasia happen in the health and the safety area, including the prison system, in

    the context that these are aspects of the society represent well the social reality.

    Thus, this phenomenon is observed from a social perspective, in which remarkable

    cases are brought and statistical data analyzed. In addition to a social perspective,

    this phenomenon is analyzed from the legal perspective under the perspective of

    human rights, culminating in an analysis of decisions of the Supreme Court of Brazil

    about this issue, resulting in the observation of effects of the legal system on factual

    social realities such as the Brazilian reality.

    Keywords: Mistanasia. Death. Bioethics. Health. Prison system.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Foto de um campo de concentração em decorrência da seca ...........41

  • LISTA DE GRÁFICOS

    Gráfico 1 - O Índice de Desenvolvimento Humano e a Desigualdade.................36

    Gráfico 2 - Mortes por desnutrição no Brasil........................................................45

    Gráfico 3 - Mortes em presídios brasileiros..........................................................48

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 - Perfil da desigualdade no Brasil...............................................37

    Tabela 2 - Mortes por desnutrição no Brasil.........................................44-45

    Tabela 3 - Análise Estatística – Mortes por Desnutrição...........................46

    Tabela 4 - Mortes em presídios brasileiros................................................47

    Tabela 5 - Análise Estatística - Mortes em presídios brasileiros...............48

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    STF Supremo Tribunal Federal

    STJ Superior Tribunal de Justiça

    CF Constituição Federal

    DATASUS Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do

    Brasil

    CNJ Conselho Nacional De Justiça

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

    ADPF Ação de descumprimento de Preceito Fundamental

    PNUD

    OMS

    Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

    Organização Mundial da Saúde

  • SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................16

    1.1 Objetivos ........................................................................................................... 17

    1.1.1 Objetivo Geral...............................................................................................17

    1.1.2 Objetivos Específicos..................................................................................17

    1.2 JUSTIFICATIVA ..................................................................................................17

    2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS .............................................................20

    2.1 Classificação da pesquisa..............................................................................20

    2.2 Fontes e tipos de dados.................................................................................22

    2.3 Procedimentos de Análise dos Dados..........................................................23

    2.4 Delimitação da pesquisa.................................................................................24

    3 A QUESTÂO DA ÉTICA.......................................................................................24

    3.1 O conceito de Saúde.......................................................................................25

    3.2 bioética e biodireito........................................................................................25

    4 A TANATOLOGIA................................................................................................28

    4.1 A morte e suas perspectivas..........................................................................28

    4.2 A morte como fato jurídico.............................................................................29

    4.3 Eutanásia e outros conceitos........................................................................30

    4.4 O conceito de mistanásia (eutanásia social).................................................31

    5 A ESSÊNCIA DO SISTEMA SOCIAL DO PAÍS................................................... 33

    5.1 O sistema social e jurídico brasileiro sob a ótica da teoria geral dos

    sistemas.................................................................................................................32

    5.2 Desigualdade social como essência do sistema social brasileiro.............34

    6 UMA ANÁLISE DE CASOS NOTÁVEIS NO BRASIL ......................................... 39

    6.1 A mistanásia ocorrida no chamado Holocausto Brasileiro.........................39

    6.2 A mistanásia decorrente das secas do Nordeste..........................................40

    7. ANÁLISE DA MISTANÁSIA SOB UMA PERSPECTIVA DOS SISTEMAS

    PÚBLICOS ATUAIS..................................................................................................43

    7.1 A mistanásia das mortes por desnutrição no sistema público de

    saúde......................................................................................................................43

  • 7.2 A mistanásia no sistema prisional brasileiro ................................................ 47

    8 A MISTANÁSIA SOB A PERPECTIVA DO SISTEMA JURÍDICO ...................... 50

    8.1 Os direitos humanos.......................................................................................50

    8.1.1 O Princípio da dignidade da pessoa humana...........................................51

    8.1.2 O Direito à vida.............................................................................................52

    8.1.3 O Direito à Saúde.........................................................................................53

    8.1.4 O Direito à Segurança.................................................................................54

    8.2 O conceito de mistanásia sob a perspectiva dos direitos humanos.........52

    8.3 Os direitos humanos sob a perspectiva do Supremo Tribunal Federal....52

    8.3.1 Uma análise do papel do Supremo Tribunal Federal acerca da

    mistanásia.............................................................................................................54

    8.3.2 A mistanásia e a preservação do direito à saúde....................................54

    8.3.3 A mistanásia e a preservação do direito à segurança.............................57

    9 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................60

    10 REFERÊNCIAS.................................................................................................62

    11 ANEXO..............................................................................................................67

  • 16

    1 INTRODUÇÃO

    Esse trabalho tem como objetivo analisar o fenômeno da mistanásia sob

    uma perspectiva multidisciplinar, para tanto tratará de tanto de casos reais

    brasileiros. Para que, em um segundo momento, o fenômeno seja observado sob

    uma perspectiva jurídica

    Dessa forma, são apresentados nesta introdução, a exposição do tema

    e do problema, o objetivo geral e os objetivos específicos, além da justificativa. No

    capítulo seguinte, são apresentados os procedimentos metodológicos. Depois, os

    principais conceitos necessários ao entendimento do trabalho serão analisados,

    para nas seções seguintes serem apresentados casos ocorridos no Brasil e os seus

    impactos na sociedade brasileira para, dessa forma, fazer uma análise jurídica

    sobre o assunto, de forma a expor os resultados do estudo, considerando objetivos

    previamente descritos e inclui sugestões para estudos futuros.

    O cenário de desigualdade social e econômica atual do País retrata os

    problemas graves enfrentados pela população brasileira em que lhes são negados

    direitos fundamentais como alimentação, saúde, moradia, segurança e outros.

    Nesse contexto, o tema da mistanásia merece ser debatido, pois atenta

    contra os direitos da pessoa humana. No sentido de que, a mistanásia se

    caracteriza por uma morte em decorrência de uma situação de miserabilidade

    social.

    Essa é a realidade que atinge milhares de pessoas no fim da vida, pessoas

    essas que poderiam ser assistidas corretamente pelo governo, mas que morrem

    antes do tempo e com sofrimentos evitáveis.

    Assim, este estudo não busca somente conhecer a realidade da mistanásia,

    mas problematizar sobre essas questões e seus impactos na sociedade, com vistas

    a contribuir para a formulação e implementação de políticas públicas pelo Poder

    Executivo que visem diminuir a ocorrência de mistanásia no Brasil. Além disso,

    pretende-se agregar ideias que contribuam para alterações legislativas no futuro,

    no sentido de que a comunidade acadêmica é um grupo formador de opinião.

  • 17

    Dessa forma, a questão norteadora da pesquisa será: De que forma a

    mistanásia pode ser observada como um problema de interesse social e jurídico no

    País?

    1.1 Objetivos

    A pesquisa científica deve ser realizada com objetivos claramente

    definidos. A correta definição de objetivos permite definir “a natureza do trabalho, o

    tipo de problema a ser solucionado, o material a coletar” (Cervo, apud Marconi e

    Lakatos, 1982, p. 22).

    Os objetivos são os resultados ou fins que se espera conseguir com a

    pesquisa. São úteis à pesquisa científica, pois facilitam a definição da natureza do

    trabalho, o tipo do problema e o material a coletar. Classificam-se em gerais e

    específicos.

    A seguir serão apresentados os objetivos que nortearão a execução

    deste trabalho.

    1.1.1 Objetivo Geral:

    Analisar o problema da mistanásia sob uma perspectiva social e jurídica

    1.1.2 Objetivos específicos:

    - Caracterizar conceitos importantes para o entendimento mistanásia no

    Brasil

    - Analisar casos notáveis de mistanásia na sociedade brasileira

    - Analisar a mistanásia sob perspectiva da realidade social atual

    - Realizar uma análise da mistanásia sob o prisma do sistema jurídico

    nacional e internacional.

    1.2 Justificativa

    Para Hayman (1969, p. 11) “a investigação é a verificação científica da

    teoria”. Já para Ferrari (1982, p. 167), “a pesquisa tem por finalidade tentar conhecer

  • 18

    e explicar os fenômenos que ocorrem no mundo existencial, isto é, a forma como

    se processam, a sua estruturação e função, as mudanças que se operam e até que

    ponto podem ser controlados e explicados”.

    Assim, quando se diz que a pesquisa responde à necessidade de se

    conhecer a natureza dos problemas ou fenômenos, trata-se de validar ou invalidar

    as hipóteses lançadas sobre esses mesmos problemas ou fenômenos.

    Dessa forma, o alcance dos resultados esperados nesse projeto,

    proporcionará um impacto positivo, de modo a influenciar novas pesquisas nessa

    temática e assim tornar mais próxima a possibilidade de uma mudança na realidade

    social. Em relação ao retorno proporcionado pelo projeto para o aluno, é evidente a

    gratificação de realizar uma pesquisa que possui desdobramentos na qualidade de

    vida das pessoas e no acesso aos direitos fundamentais, como o direito à saúde e

    à segurança, podendo se tornar um ponto de partida para a elaboração de mais

    pesquisas na área. Além disso, espera-se que essa pesquisa contribua para a

    ampliação dos horizontes do aluno na compreensão dos aspectos legais inerentes

    a vida e à morte, algo essencial para a formação de um profissional de Direito,

    objetivo da Faculdade.

    Além dos aspectos anteriormente apresentados, a elaboração dessa

    pesquisa também contribuirá para o enriquecimento do saber do estudante, pois

    serão assimilados conhecimentos de várias áreas do conhecimento que certamente

    irá contribuir para a formação profissional.

    Sob uma perspectiva cidadã, é uma pesquisa que contribui para a

    valorização dos direitos humanos, algo importante para a universidade, pois a

    promoção dos valores provenientes dos direitos humanos faz parte da função social

    da universidade. Assim, é grande a satisfação de dar uma parcela de contribuição

    para a realização da função social da universidade.

    Sob uma ótica internacional, vale ressaltar que este trabalho está

    alinhado com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS, propostos pela

    Organização das Nações Unidas, em 2015, mais especificamente com o objetivo 3

    dos objetivos do milênio, o qual versa sobre “Boa saúde e bem-estar” e várias de

    suas metas (ITAMARATY, 2019). Isso decorre do fato de que as mortes causadas

  • 19

    por mistanásia, provém da falha do estado em promover a saúde e o bem-estar de

    seus cidadãos, sendo, portanto, mortes que são evitáveis.

    Assim, fica visível que a pesquisa cientifica é uma ferramenta essencial

    na produção de conhecimento e que por meio dela é possível tornar mais próxima

    a possibilidade de uma mudança na realidade social, pois o reconhecimento da

    mistanásia como um problema jurídico e social é o primeiro passo para uma

    mudança e a principal motivação desse trabalho.

  • 20

    2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

    O estudo corrobora com Cervo, Bervian e Silva (2007) ao entender que

    o conhecimento empírico é adquirido pela própria pessoa através da sua interação

    com pesquisas que visam buscar a razão de ser das coisas e das pessoas.

    Assim, a pesquisa pode ser definida como um “um procedimento

    reflexivo, sistemático, controlado e crítico, que permite descobrir novos feitos ou

    dados, relações ou leis em qualquer campo do conhecimento humano” de acordo

    com (Ander-Egg, 1977, p.167).

    A seguir são apresentadas a classificação da pesquisa, fontes e tipos de

    dados, procedimentos de análise de dados e delimitação da pesquisa.

    2.1 Classificação da pesquisa

    A pesquisa científica pode ser classificada quanto a aplicabilidade e

    quanto ao controle ou não da variável independente.

    Quanto a forma de aplicação, a pesquisa pode ser pura, também

    chamada de pesquisa básica, ou aplicada. Pura, básica, fundamental, teórica ou

    intelectual: é aquela que procura o progresso científico, a ampliação do

    conhecimento teórico, sem a preocupação de utilizá-lo na prática, é a pesquisa

    formal, tendo em vista generalizações, princípios, leis.

    Segundo Kerlinger (1980, p.320), “pesquisa básica é pesquisa feita para

    testar a teoria, estudar relações entre fenômenos com o fim de entender os

    fenômenos, com pouca ou nenhuma preocupação quanto à aplicação dos

    resultados da pesquisa a problemas práticos”. Já a pesquisa aplicada se caracteriza

    pela existência em interesses práticos, isto é, que os resultados sejam utilizados de

    forma que sejam aplicados na solução de problemas que ocorram na realidade.

    Nesse sentido, para o mesmo autor, “a pesquisa aplicada é pesquisa dirigida para

    solução de problemas práticos especificados em áreas delineadas e da qual se

    espera melhoria ou progresso de algum processo ou atividade, ou o alcance de

    metas práticas”.

  • 21

    Dessa forma, verifica-se que esta pesquisa é aplicada, pois tem interesse

    prático para a realidade brasileira sob diferentes perspectivas para o enfrentamento

    de um problema social.

    Quanto ao controle ou não da variável independente, a pesquisa pode

    ser experimental ou não experimental. Quanto a pesquisa experimental ela pode

    ser considerada assim quando

    Descreve o que será quando certos fatores são controlados; estuda o nexo, as relações de causa e efeito entre duas ou mais variáveis. Há uma manipulação da variável independente e o registro dos efeitos das reações provocadas na variável independente” (HAYMAN, 1969, p.107-108).

    Já a Não Experimental (descritiva): caracteriza-se por não controlar a

    variável independente. Pode ser histórica, exploratória ou descritiva. Histórica

    quando “descreve o que era: investigação, registro, análise e interpretação de fatos

    ocorridos no passado, para, através de generalizações, compreender o presente e

    predizer o futuro” (HAYMAN, 1969, p. 173). Exploratória quando “definem,

    descrevem e classificam fatos e variáveis sem, contudo, atingir o nível de

    explicação, nem o de predição encontrados nas pesquisas puras ou teóricas, nem

    o nível do diagnóstico e/ou solução adequada ao problema” (SALOMON, 1977,

    p.141) e Descritiva quando “descreve o que é: registro, análise e interpretação de

    fenômenos, simples, descrição de um fenômeno” (HAYMAN, 1967, p. 107-108).

    Nesse contexto, a pesquisa descritiva, por sua vez pode ser classificada

    em:

    “Estudos de conjuntos (Surveys): recolhem dados de um número relativamente grande de casos num dado momento. Seu método é transversal. Requer planejamento e análise cuidadosa, interpretação clara dos dados e exposição habilidosa e lógica dos resultados, do contrário converte-se facilmente em rotina de coleta e tabulação de cifras” (Salomon, 1977, p.143).

    Esse método engloba os seguintes tipos: investigações sociais ou de

    conjuntura – diagnósticos; investigações sobre opinião pública – enquetes; e

    investigações estatísticas comerciais (mercadológicas) – amostra, motivação;

    Sobre o estudo de caso, ele pode ser definido como “estudo em profundidade de

  • 22

    casos particulares, enfoque longitudinal, interesse voltado para a história e

    desenvolvimento do caso, é uma análise intensiva, estuda a interação dos fatos que

    produzem mudanças” (SALOMON, 1977, p.144). Dessa maneira, o estudo de caso

    “reúne informações tão numerosas e tão detalhadas quanto possível, com vistas a

    apreender a totalidade de uma situação” (BRUYNE, 1977, p. 224-225); por outro

    lado, os estudos comparativos, conforme Bruyne (1977, p. 228):

    Permitem estudar as relações entre um grande número de variáveis no contexto de uma amostra. Sua análise está centrada na realidade concreta e complexa das organizações e não, como na experimentação em laboratório, num objeto de pesquisa artificialmente reduzido à capacidade de manipulação do pesquisador.

    Enquanto que o caso da simulação é diferente pois ela é:

    Um tipo de modelo formal construído com vistas a programar em computador certos processos teóricos, observar o que eles geram e comparar eventualmente os resultados obtidos com os dados empíricos recolhidos. É dinâmico, em contraste com os demais modos de investigação (BRUYNE, 1977, p. 241-242).

    Assim, verifica-se que esta pesquisa é do tipo não experimental,

    descritiva e estudo de caso, pois não há controle da variável independente e se

    propõe a descrever a mistanásia no Brasil, que é um caso específico, identificando

    como ela se insere na realidade social e jurídica do país.

    2.2 Fontes e tipos de dados

    Segundo Ferrari (1982, p. 209-210), “na pesquisa científica existem pelo

    menos quatro caminhos para a obtenção de dados: (1) a pesquisa bibliográfica; (2)

    o levantamento documental; (3) a pesquisa de campo; e (4) a pesquisa de

    laboratório”. Assim, a pesquisa bibliográfica é “o ato de ler, selecionar, fichar,

    arquivar tópicos de interesse para a pesquisa em pauta”, “a pesquisa documental

    tem por finalidade reunir, classificar e distribuir os documentos de todo gênero dos

    diferentes domínios da atividade humana”, enquanto que a pesquisa de campo

    “corresponde à coleta direta de informação no local dos acontecimentos” e a

  • 23

    pesquisa de laboratório “caracteriza-se por ser uma experiência limitada ao recinto

    fechado de um laboratório e condicionada a manipulações”.

    Os dados são de 2 tipos: primários e secundários. Os dados primários

    são aqueles levantados especificamente para a pesquisa em referência. Já os

    secundários são dados já levantados anteriormente à pesquisa e que serão

    utilizados na mesma.

    Assim, verifica-se que esta pesquisa se trata de uma pesquisa

    bibliográfica e documental, pois serão, conforme Marconi & Lakatos (2001, p. 50),

    “investigados documentos que podem descrever e comparar usos e costumes,

    tendências, diferenças e outras características” e que serão utilizados dados

    secundários.

    Quanto a pesquisa documental, para atingir os objetivos propostos,

    Foram incluídos documentos como publicações oficiais de Leis e jurisprudências,

    além de fontes oficiais do DATASUS e do CNJ, que disponibilizam várias

    informações, que nesta pesquisa serão considerados dados secundários, no

    sentido metodológico do termo.

    Sob a perspectiva da metodologia de pesquisa jurídica, as fontes do direito,

    que serão utilizadas são a Doutrina, a Jurisprudência e a Lei no sentido amplo do

    termo.

    2.3 Procedimentos de Análise dos Dados

    Os tipos de procedimentos de análise, segundo Ferrari (1977, p.240-

    241), são: (1) análise descritiva: “tem por finalidade enumerar ou descrever as

    características dos fenômenos com base em dados protocolares e ideográficos”; (2)

    análise preditiva: “é a forma antecipada de responder sobre a probabilidade de que

    certos eventos venham a acontecer”; (3) análise normativa: “processa-se através

    de um valor ou sistema de valores”; (4) análise prescritiva: “está voltada para a

    determinação de sugestões para atingir objetivos”; (5) análise quantitativa: “é o

    procedimento que consiste em aplicar princípios, técnicas e métodos das ciências

    matemáticas e estatísticas às ciências factuais”; e (6) análise qualitativa: “tem por

    finalidade decompor o fenômeno, considerando as partes essenciais”.

  • 24

    Nesse sentido, a pesquisa proposta detém uma abordagem qualitativa,

    pois a análise do problema, não foi quantificada, não houve predominância de

    análise estatística e sim aspectos descritivos que promoveram a compreensão e

    aproximação com o fenômeno em questão (FACHIN, 2003).

    Isso ocorre porque a pesquisa não realiza a coleta, formulação e

    organização de dados estatísticos diretamente, propondo-se apenas a utilizar dados

    coletados por outros autores, no caso dessa pesquisa, dados de autoria de

    instituições, como referência na análise do fenômeno examinado nesse trabalho.

    Trata-se, portanto de uma análise qualitativa e descritiva, pois decompõe

    e descreve os elementos do fenômeno da mistanásia no Brasil, possuindo também

    elementos de uma abordagem normativa e prescritiva, porque se propõe a analisar

    o fenômeno sob a ótica da justiça e do sistema de valores presentes na Constituição

    de 1988 e sugere formas de enfrentamento para os problemas abordados no exame

    do fenômeno observado.

    2.4 Delimitação da pesquisa

    “A pesquisa científica para sua efetiva realização deverá ser

    convenientemente delimitada em termos de três fatores fundamentais: (1) espaço,

    (2) tempo e (3) funções” (Ferrari, 1982: 196). Dessa forma, esta pesquisa tem como

    objeto delimitado a mistanásia, no Brasil, até os dias atuais.

  • 25

    3 A QUESTÃO DA ÉTICA

    A palavra ética vem do grego, "Ethos", e em seu significado original podia

    ser escrita com “e” minúsculo, significando morada, ou com “E” maiúsculo,

    significando costumes, sentido que mais se aproxima da ideia que temos de moral,

    de virtude. Segundo Aristóteles (1991), a ética está na "práxis", ou seja, em nossas

    ações. Todas os conceitos que se tem de ética, normativas ou não, baseiam-se em

    na racionalidade, na liberdade e na responsabilidade das pessoas, individualmente

    e entre si, ou seja, na convivência.

    A ética tem, portanto, aspectos simultaneamente individuais e sociais.

    Agir eticamente é construir o próprio caráter em direção à virtude, ou seja, o “ser”.

    E é, também, ao mesmo tempo, construir o bem comum e saber viver juntos.

    Ética é uma característica inerente a toda ação humana e é um elemento

    vital na produção da realidade social. Todo homem possui um senso ético, uma

    espécie de "consciência moral", e em função dela, avalia e julga suas ações para

    saber se são boas ou más, certas ou erradas, justas ou injustas. Embora

    relacionada com o “agir” na sociedade, esses julgamentos sempre têm relação com

    cada cultura que prevalece em determinada sociedade, grupo social ou contexto

    histórico.

    Analisado o conceito de ética, faz-se necessário o exame do conceito de

    saúde, para compreender que tanto a saúde, quanto o biodireito e a bioética, vão

    muito além, da natureza biológica dessas áreas, possuindo um impacto social muito

    grande.

    3.1 Conceito de saúde

    Para examinar a bioética e o biodireito é necessário primeiro

    compreender o conceito de saúde a ser utilizado na pesquisa, da qual a ideia de

    bioética e biodireito podem ser inferidas.

    De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), “Health is a

    state of complete physical, mental and social well-being and not merely the absence

    of disease or infirmity.” Ou seja, não se trata apenas de um estado de ausência de

  • 26

    doenças ou de enfermidades, mas um estado de bem-estar social completo, algo

    visivelmente ausente no sistema prisional brasileiro e que precisa ser trabalhado

    mais no Sistema Único de Saúde brasileiro.

    Nesse mesmo sentido, a OMS não é a única organização preocupada

    com a saúde, a própria ONU, tem em um órgão chamado PNUD, que idealizou o

    conceito dos objetivos do milênio, presentes na agenda 2030. Dentre esses

    objetivos, o objetivo 3, que aborda Saúde e Bem-Estar, fala em “Assegurar uma

    vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades”, baseando-

    se para isso no conceito de Saúde da OMS, do qual a bioética e o biodireito tem

    suas raízes.

    3.2 Bioética e o Biodireito

    O termo Bioética, segundo Diniz (2008, p.9) “foi empregado pela primeira

    vez pelo oncologista e biólogo norte-americano Van Rensselder Potter, da

    Universidade de Winsconsin, no seu livro Bioethics: Bridge to the future, publicado

    em 1971. “

    Nesse contexto, Amaral (1999, p. 36) define a Bioética como “a disciplina

    que examina e discute os aspectos éticos relacionados com o desenvolvimento e

    as aplicações da biologia e da medicina, indicando os caminhos e os modos de

    respeitar os valores da pessoa humana. ” Nesse sentido, Diniz (2008, 10-11)

    complementa a definição ao afirmar que:

    Bioética é uma resposta da ética às novas situações decorrentes da evolução da ciência na área de saúde, abrangendo não só problemas éticos, mas também a vários aspectos das pesquisas em seres humanos, como, por exemplo, a clonagem, mudança de sexo, esterilização, eugenia, eutanásia, dentre outros.

    Sobre a bioética, ela pode ser dividida em macrobioética e microbioética.

    A macrobioética se refere a questões ecológicas e a preservação da vida humana

    e a microbioética tem como objeto as relações entre médico e paciente, instituições

    de saúde públicas ou privadas e entre estas instituições e os profissionais da saúde.

  • 27

    No entanto, Segundo Loureiro (2009) os princípios da Bioética não

    possuem natureza coercitiva por si só. É necessário que o Direito estabeleça o que

    é lícito e ilícito. Dessa forma, surge o Biodireito, estabelecendo regras e sanções,

    tendo como base o princípio da dignidade humana.

    Dessa forma, o Biodireito e a Bioética são distintos. O descumprimento

    de um princípio da Bioética gera sanções sociais, enquanto o descumprimento de

    uma regra legal, implica na utilização de meios coercitivos para exigir o seu

    cumprimento e aplicar punições.

    Desse modo, a evolução da Bioética e o Biodireito decorrem das

    inovações tecnológicas na área de Saúde, que são cada vez mais rápidas, tornando

    as questões cada vez mais complexas, que devem sempre ser discutidas de

    maneira interdisciplinar com outras áreas do conhecimento, como sociologia,

    filosofia e até mesmo a tanatologia.

  • 28

    4 A TANATOLOGIA

    No capítulo anterior foi falado sobre o conceito de saúde, conceito basilar

    para a compreensão da questão da morte. Nesse sentido, para que seja

    aprofundada as questões relativas a esse fenómeno é necessário entrar no campo

    de estudo da Tanatologia, que é um campo do estudo que estuda a natureza da

    morte e do processo de morrer. A raiz grega da palavra vem de “logia” que significa

    estudo, e “thanatos” que significa morte.

    Nesse sentido, o objeto de estudo dessa área do conhecimento é a

    morte. De tal maneira, que não somente a morte em si é estudada, mas todo o

    processo de morrer também.

    Nesse sentido, ela busca melhores maneiras de se lidar com o fenômeno

    da morte e assim conscientizar tanto os leigos no assunto quanto os pesquisadores

    da temática sobre sua própria mortalidade, pois quando o pesquisador do assunto

    adquire essa consciência, fica mais fácil dar suporte a outras pessoas sobre essa

    temática, bem como a realizar pesquisas sobre o assunto.

    4.1 A morte e suas perspectivas

    A morte é um fato inevitável, pois tudo que é vivo está exposto à morte, de

    forma que ela é parte intrínseca da vida. Nesse sentido, a vida humana não escapa

    a esse conceito, pois está submetida às mesmas limitações biológicas de todos os

    seres vivos. No entanto, os seres humanos, devido a sua natureza, possuem a

    consciência de sua própria mortalidade, o que gera uma série de implicações

    Uma das principais é a necessidade de conciliação com a morte, de

    aceitação da própria finitude. Algo difícil de ser realizado. De forma que, sob uma

    perspectiva psicológica, a consciência de sua própria finitude, gera no ser humano

    angustia e a ansiedade. Como uma resposta para enfrentar tais sentimentos, as

    religiões oferecem, pela fé, um processo de continuidade no além.

    No entanto, na atualidade, a religião, apesar de ainda ser forte, vem perdendo

    espaço para uma espiritualidade difusa, bem como para o ateísmo e agnosticismo.

    Isso se deve à natureza cada vez mais materialista da sociedade capitalista

  • 29

    contemporânea, tal aspecto que, inclusive, foi alvo de adaptação pelas religiões,

    utilizando como ferramenta a teologia da prosperidade, fundindo elementos de

    natureza metafísica baseados na fé, com um viés materialista, que estimula a

    acumulação de bens materiais.

    Nesse sentido, pode-se concluir que a morte é algo complexo. Essa

    complexidade decorre do fato que sua natureza fenomenológica, pode ser

    analisada sob a perspectiva de diversos ramos do conhecimento, inclusive o

    conhecimento jurídico como será visto no próximo subcapitulo.

    4.2 A morte como fato jurídico

    Na perspectiva de Paulo Nader (p.424, 2016) “o evento morte é fato jurídico

    que extingue várias relações jurídicas, modifica algumas e cria outras”. Há várias

    situações exemplificativas. Para o Direito de família, a morte é causa de dissolução

    matrimonial. Para o Direito das Sucessões, é causa que dá início ao processo de

    invenção. Para o Direito Penal, é um fato que, a depender de sua causa e como

    ocorrer, pode resultar em ação penal.

    Nesse sentido, fica visível o interesse do direito pelo fenómeno da morte. No

    entanto, vale frisar que o fenómeno da morte jurídica é mais amplo que o conceito

    de morte tradicional, pois ele inclui duas situações que não estão incluídas no

    conceito de morte que será utilizado no estudo. Um exemplo disso é a morte

    presumida, nos termos do artigo 7° do Código Civil:

    “Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência: I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixara data provável do falecimento.”

    Assim, ela é um evento considerado morte para efeitos legais de modo a

    permitir o início da sucessão, mas que cuja ocorrência, de maneira biológica, é

    apenas provável, podendo ter ou não ter se materializado na realidade fática.

  • 30

    Discutido o interesse do direito acerca da morte, faz-se necessário abordar

    os tipos de morte mais discutidos na área da bioética, para só então chegar-se ao

    conceito de mistanásia

    4.3 Eutanásia e outros conceitos

    A palavra “eutanásia” tem origem no grego. “Eu” significa “boa” e “thanatos”

    morte, dessa forma, eutanásia pode ser entendida como “boa morte”. A eutanásia

    consiste em um processo de abreviação da vida de um paciente, com o objetivo de

    aliviar o seu sofrimento. Corroborando com esse pensamento, Guimarães (2011, p.

    25) descreve o conceito de eutanásia:

    Derivando do grego em sua composição etimológica, a significar a morte sem dor ou a boa morte, a eutanásia consubstancia-se, pois, na conduta pela qual o agente, mediante ação ou omissão, causa a morte de alguém acometido por doença incurável, da qual esteja padecendo com sofrimento ou dores insuportáveis.

    Descrito o conceito de eutanásia, é importante discutir os tipos tais como a eutanásia ritualizada, eutanásia medicalizada e eutanásia autônoma.

    A eutanásia ritualizada consiste, por exemplo, em abandonar recém-nascidos com deficiências. Na eutanásia medicalizada o dever do médico é por fim aos sofrimentos e dores dos enfermos já sem esperança, proporcionando a estes uma morte digna. (PESSINI, 2004, p.104).

    Enquanto que na eutanásia autônoma,

    O paciente toma decisão com relação a sua morte. O problema ético consiste em saber se a vontade dos pacientes pode e deve ser respeitada nas situações em que estes recusam terapêuticas que a medicina considera indispensável para a manutenção da vida. ” (PESSINI, 2004, p.107).

    Dessa forma, a eutanásia é aplicada para abreviar a vida de forma ativa ou

    passiva. O paciente não precisa estar em estado terminal, é suficiente que ele não

    suporte viver na sua condição atual. Neste caso, o paciente não está morrendo

    tempestivamente, ou seja, no tempo certo, mas está morrendo melhor, no ponto de

    vista dele. A eutanásia ativa quando acontece alguma ação para antecipar a morte

  • 31

    do paciente e passiva acontece por omissão de ações necessárias para manter o

    paciente vivo.

    Outra forma de morte, tratada muito discutida na bioética é a distanásia,

    também conhecida por obstinação terapêutica, segundo Gadelha (2016: p. 38) “se

    caracteriza pela imposição de tratamentos inúteis, com a intenção de prolongar o

    momento da morte”. Dessa forma, a distanásia prolonga o sofrimento do paciente,

    apesar do mesmo se encontrar em um processo de morte irreversível. Tratando-se,

    portanto, por um comportamento antiético.

    Por outro lado, a ortonásia é “o direito de renunciar os tratamentos inúteis e

    dolorosos, nas enfermidades terminais, quando da ausência de possibilidade de

    cura, podendo ser definida como a não obstinação terapêutica, a não tentativa de

    se prolongar a vida“ (Gadelha, 2016. p. 42).

    Nesse sentido, a ortonásia é o contrário da distanásia, ou seja, é proporcionar

    a morte da forma certa e no tempo certo. Não prolongando, assim, a vida

    desnecessariamente.

    4.4 O conceito de mistanásia (eutanásia social)

    A mistanásia é também conhecida como eutanásia social. No entanto, esse

    conceito é inadequado tendo em vista que eutanásia em grego significa “boa morte”

    e a mistanásia não apresenta essa característica. Fica, portanto, evidente que:

    Esse conceito, cunhado por Márcio Fabri dos Anjos em 1989, vem preencher a lacuna existente entre as definições de eutanásia, que se trata de uma abreviação da vida; de distanásia, quando há o prolongamento fútil e inútil do processo de morrer; e de ortotanásia, que é a morte certa no lugar e momento certos, pertencentes ao campo da Bioética” (Oliveira, 2018, p. 78).

    Sobre a origem da palavra mistanásia, ela tem origem no grego, “mis”

    significa miserável; e “thanatos” que significa morte, conforme já dito anteriormente.

    Dessa forma que a mistanásia se refere à morte miserável, infeliz, prematura, fora

    ou antes do seu tempo. Nas palavras do criador do conceito Marcio Fabril dos Anjos

    (1989): “A mistanásia nos faz lembrar os que morrem de fome, cujo número

  • 32

    apontado por estatísticas é de estarrecer. Faz lembrar, de modo geral, a morte do

    empobrecido, amargado pelo abandono e pela falta de recursos os mais primários”.

    Assim, tal conceito

    Contribui para a responsabilização e conscientização de uma situação que pode ser evitada, visto que o previsível e o evitável anulam o conceito de “morte natural”, transformando-o em fato moral, que causa indignação ético-criativa, com a qual buscamos meios para prevenir a morte precoce” (RICCI, 2017, p. 41).

    Portanto, a mistanásia é uma morte “provocada de forma lenta e sutil por

    sistemas (grifou-se) e estruturas que não favorecem a vida” (PESSINI, 2001,

    p.322), como ocorre no sistema de saúde pública e no sistema prisional brasileiro,

    de forma que ela é uma morte, em sua essência, decorrente de uma situação de

    miserabilidade social, podendo ser considerada uma morte evitável e precoce que

    poderia ser impedida por meio de políticas públicas adequadas, mas que ocorre

    devido à ação ineficaz ou omissão do estado.

    Nesse sentido, tais políticas públicas, são bastante necessárias para que a

    mistanásia não ocorra devido a falhas no sistema público de saúde e no sistema

    prisional.

    Esses sistemas são bons indicadores da situação social de uma sociedade,

    pois, respectivamente, estão responsáveis pela saúde, uma necessidade de toda

    população, e pelo bem-estar dos presos, que são o grupo social mais excluído da

    sociedade, pois são vistos como elementos não-desejáveis.

  • 33

    5. A ESSÊNCIA DO SISTEMA SOCIAL DO PAÍS

    Para compreender o fenômeno da mistanásia, é necessário compreender o

    contexto no qual ele ocorre. Nesse sentido, o ambiente de ocorrência desse

    fenômeno é um ambiente marcado em sua essência pela desigualdade social, de

    forma que as vítimas desse fenômeno caracteristicamente se encontram em uma

    situação de vulnerabilidade social provocado pela maneira como a sociedade

    brasileira está estruturada.

    5.1 O sistema social e jurídico brasileiro sob a ótica da teoria geral dos

    sistemas

    De acordo com Ludwig von Bertalanffy (1968) um sistema pode ser

    conceituado como um conjunto de elementos integrantes, mas que possuem uma

    relação de interdependência entre eles, de modo que cada parte do sistema está

    conectada a outra de maneira direta ou indireta. Dessa forma, pode-se dizer que

    um sistema tem duas propriedades. Ele possui um propósito e totalidade. Um

    propósito, porque ele possui um objetivo inalcançável por apenas um de seus

    elementos estando isolado do restante. Totalidade, porque qualquer mudança que

    um dos elementos sofra produzirá efeitos em todos os outros elementos do sistema.

    No contexto dessa pesquisa, defende-se que o sistema jurídico está inserido

    no sistema social do país, de forma que as características de propósito e totalidade

    podem ser observadas no sistema social e no sistema jurídico. Nesse sentido, eles

    possuem um propósito último que é o atendimento dos direitos e garantias

    presentes na Constituição de 1988, algo impossível de ser realizado apenas com

    uma norma, órgão do governo ou outro elemento do sistema jurídico ou social

    atuando isoladamente. Além disso, os dois sistemas possuem a característica da

    totalidade, já que qualquer mudança na forma de atuar de um órgão do estado, de

    parte da legislação ou de outro elemento do sistema gera efeitos nos outros

    elementos que o compõe.

    Sobre a classificação dos sistemas, segundo Ludwig von Bertalanffy (1968),

    eles podem ser físicos ou abstratos. Físicos quando tratam de coisas materiais e

  • 34

    objetos físicos como equipamentos, maquinas, circuitos, seres vivos e etc.,

    entretanto eles também podem ser abstratos, como teorias, pensamentos, sistemas

    de valores, áreas de pesquisa entre outros. Também podem ser considerados

    sistemas abertos ou fechados. Abertos quando estão suscetíveis influencias

    externas e fechados quando não interagem com outros sistemas.

    No exame do sistema social e do sistema jurídico brasileiro, é visível que eles

    se encaixam nessa classificação, correspondendo eles a dois sistemas abstratos e

    abertos. O caráter abstrato desses sistemas é evidente, pois no caso do sistema

    jurídico, ele obedece a normas gerais abstratas além de obedecer a uma série de

    princípios que possuem carga valorativa intimamente ligados com o sistema de

    valores do sistema social.

    Além disso pode-se afirmar que se tratam de sistemas abertos, pois se

    encontra sujeito a influências externas, como mudanças em outros sistemas

    existentes, como o sistema econômico

    Dessa forma, fica evidente a abordagem multidisciplinar da teoria geral dos

    sistemas, teoria desenvolvida pelo biólogo Ludwig von Bertalanffy, podendo ser

    aplicada para as mais diversas áreas do conhecimento cientifico. Desse modo, foi

    feito um recorte teórico de forma a caracterizar o ambiente no qual o objeto de

    estudo dessa pesquisa pode ser observado, que é o sistema social e o sistema

    jurídico, a partir de uma abordagem cientifica.

    5.2 Desigualdade social como essência do sistema social brasileiro

    A desigualdade e a pobreza resultante sob a ótica do modelo econômico

    de Amartya Sen representam uma diferente abordagem nas pesquisas econômicas

    contemporâneas, pois envolve diversos aspectos relacionados a esse fenômeno

    como: a dimensão humana e o papel do Estado e das ações sociais para melhoria

    da qualidade de vida. Esse olhar singular o posiciona em destaque perante outros

    economistas, porque oportuniza conhecer um mundo diverso que representa uma

    complexidade teórica de ideias e de evidencias empíricas (SUNANDO, 1998).

    Portanto, essa pesquisa parte da perspectiva de Kerstenetzky (2000)

    sobre a obra de interdisciplinar de Amartya Sen em relação a desigualdade, ao

  • 35

    examinar a atividade econômica sob enfoque ético, intenciona conciliar os

    imperativos de justiça com eficiência econômica a partir da ética e racionalidade,

    além da desigualdade e pobreza, e extrapola os limites da fragmentação do

    conhecimento.

    Consequentemente a mitigação das desigualdades é importante porque,

    entre outros fatos,

    A desigualdade é prejudicial porque aumenta a pobreza e ao reduzi-la o país cresce. A relação entre a distribuição e o crescimento econômico é controversa, mas a maioria dos autores afirma que a desigualdade reduz o crescimento. A distribuição desigual também prejudica uma resposta adequada à volatilidade econômica e choques macroeconômicos. Além disso, há fortes evidências de que a desigualdade econômica aumenta a violência e o crime, o que por sua vez diminui a coesão social (PINTO, 2006, p.1).

    Sob outra perspectiva, partindo-se de uma abordagem jurídica, afirma-se

    como objetivo social e jurídico a redução das desigualdades sociais no Brasil,

    conforme a Constituição Federal preconiza, de forma expressa, no Artigo 3º inciso

    III que diz: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

    (...) III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais

    e regionais; ”

    No entanto, para enfrentar essa problemática, é necessário compreender,

    nas palavras do próprio Amartya Sen (2010, p.358), que “a política pública tem o

    papel não só de implementar afirmações sociais, como também facilitar e garantir a

    discussão pública mais completa”.

    Sob uma perspectiva de econômica, de forma a estimular uma maior

    discussão pública sobre o assunto e divulgar que a perda no Índice de

    Desenvolvimento Humano (IDH,2017) no Brasil é de 23,92%, quando levada em

    conta a desigualdade, de acordo com o Programa de Desenvolvimento Humano da

    Organização das Nações Unidas. Perda muito grande se comparada a outros

    países da ONU.

    Ainda sobre o gráfico, é possível observar que quando analisadas a renda, a

    educação e a expectativa de vida, o fator que representa maior impacto causado

    pela desigualdade no Índice de Desenvolvimento Humano é a renda.

  • 36

    Gráfico 1 - O Índice de Desenvolvimento Humano e a Desigualdade

    Fonte: Disponível em: http://hdr.undp.org/en. Acesso: em 30 de abril de 2019

    No intuito de realizar uma abordagem da realidade brasileira sobre

    desenvolvimento humano, é evidente a necessidade de analisar o perfil da

    desigualdade no Brasil na tabela 1 feita com dados do Programa de

    Desenvolvimento das Nações Unidas.

    Além disso, pode-se abordar o índice chamado Palma Ratio. Esse índice é

    oriundo da razão entre a fatia do Renda Nacional Bruta dos 10 por cento mais ricos

    do país dividido pela Renda Nacional Bruta dos 40 por cento mais pobres.

    No caso brasileiro, esse índice nos leva a concluir que a soma da renda dos

    10 por cento mais ricos tem uma renda equivalente a 3,5 vezes à soma da renda

    dos 40 por cento mais pobres. Tal conclusão torna visível a disparidade entre o topo

    http://hdr.undp.org/en

  • 37

    e a base da pirâmide das classes sociais aqui no Brasil, levando em conta que a

    renda é o fator mais determinante atualmente para a definição das classes sociais

    no País e a exclusão social de parte considerável da população do país.

    Outro índice que chama a atenção é o “income quintile share ratio”. Esse

    índice também é uma forma de medir a desigualdade na distribuição de renda. Para

    atingir esse objetivo, ele calcula a razão entre o total de renda recebida por 20 por

    cento da população com maior renda com o total de renda recebido pela por 20 por

    cento da população com menor renda. A peculiaridade desse índice é que consegue

    observar com maior eficácia a desigualdade entre os extremos da população em

    análise.

    Tabela 1- Perfil da desigualdade no Brasil

    Fonte: UNDP. Disponível em: http://hdr.undp.org/en/countries/profiles/BRA. Acesso em 30 de abril

    de 2019.

    Assim, verificada a existência de uma grande desigualdade social, de forma

    que fica evidente esse aspecto importante do sistema social brasileiro e assim

    entender a desigualdade no tratamento dos cidadãos brasileiros, e,

    http://hdr.undp.org/en/countries/profiles/BRA

  • 38

    consequentemente, a ocorrência da mistanásia, no sentido que ela se caracteriza

    pela morte de pessoas que de alguma forma foram excluídas socialmente, exclusão

    que a desigualdade social, como essência do sistema social brasileiro, possibilita

    que o fenômeno da mistanásia ocorra. Tal fato, acaba resultando em efeitos

    jurídicos, pois os direitos humanos das pessoas mais desfavorecidas socialmente,

    são os direitos mais violados, como poderá ser visto nos capítulos seguintes.

  • 39

    6 UMA ANÁLISE DE CASOS NOTÁVEIS DE MISTANÁSIA NO BRASIL

    Nesta seção será apresentado casos notáveis de mistanásia no Brasil, suas

    características e seus impactos sobre a sociedade brasileira, envolvendo questões

    de saúde, bem como questões prisionais no Brasil.

    6.1 A mistanásia ocorrida no chamado Holocausto Brasileiro

    O chamado Holocausto Brasileiro, é o nome dado às mortes que ocorreram

    no Hospital Colônia de Barbacena. Provavelmente o nome é inadequado, pois

    significa morte queimada, possuindo um viés de sacrifício, e foi por esses motivos

    que nomenclatura foi utilizada para nomear o massacre de judeus na segunda

    guerra mundial. No caso do Holocausto Brasileiro, foi diferente, segundo Queirós e

    Magalhães (2018, p. 2 e 3):

    Os motivos das internações no Hospital Colônia poderiam ser

    considerados kafkianos, pois os pretextos são os mais diversos. Desde epilépticos, prostitutas, alcoólatras, homossexuais, pessoas que perturbavam a ordem. Havia ainda casos de meninas grávidas violentadas por seus patrões, esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento, homens e mulheres que haviam perdido seus documentos. Até timidez se tornava desculpa para internação. Ao chegarem ao hospício, os internos tinham as cabeças raspadas, roupas arrancadas, além do fato de os funcionários rebatizarem os pacientes, pois desprezavam seus verdadeiros nomes.

    Entretanto, a situação era tão desumana, que os fatos que ocorreram no local

    fazem jus ao nome, tamanha a barbaridade e banalização do mal. Nesse sentido,

    os autores acrescentam (2018, p.16) “Não trata apenas sobre a história de um

    hospício, nem sobre saúde pública, mas de humanos e a maneira como foram

    desumanizados. Homens e mulheres, cujas vidas foram banalizadas”.

    Segundo Rosa e Szavniawski (2018, p. 133) esses pacientes “além de não

    possuírem uma assistência plena do Estado, no sentido de garantir a prestação de

    medicamentos ou outros materiais, ainda são submetidos a procedimentos

    degradantes, violentos e muitas vezes abusivos, afrontando de maneira direta o

    Princípio da Dignidade da Pessoa Humana”.

  • 40

    Dessa forma, a banalização da vida é algo grave, pois afeta uma série de

    direitos fundamentais, inclusive violando esse princípio que, na opinião de muitos,

    é o princípio fundador da concepção de direitos fundamentais e direitos humanos.

    Vale lembrar que, infelizmente, esse não é o único caso notável.

    6.2 A mistanásia decorrente das secas do Nordeste

    Os vários períodos de seca no Nordeste motivaram famílias inteiras a

    migrarem do interior para as capitais dos estados nordestinos e também para outros

    estados. Esse é um problema social, apesar de ser provocado pela natureza, pois

    ele permanece assolando as famílias nordestinas, devido a inércia do Estado

    Brasileiro na solução dessa problemática.

    Um exemplo disso, foi, que no fim do século XIX início de século XX,

    Segundo Cavalcante apud Paterra (2015, p. 3), “Fortaleza converteu-se na capital

    do desespero. De 21 mil habitantes pelo censo de 1872, passou a ter 130 mil; para

    completar o quadro de tragédia, houve um surto de varíola, dizimando milhares de

    pessoas. ” Ocorreu, portanto, um aumento significativo de pessoas de maneira

    repentina, em um volume que a cidade não estava preparada, resultando em uma

    verdadeira tragédia de saúde pública.

    Já em 1915, quando ocorreu uma nova seca no Nordeste, o

    Governo cearense resolveu criar “campos de concentração”, como medida preventiva para o êxodo para Fortaleza. Esses campos eram cercados por arames farpados e vigiados 24 horas por dia pelo Exército. Esses campos foram desativados em 1915 quando foi implementada uma política de incentivos para migração para a Amazônia (Theóphilo apud Paterra, 2015, p. 4).

    Conforme pode ser visto nessa foto:

  • 41

    Figura 1- Foto de um campo de concentração em decorrência da seca

    Fonte: ALBANO, Ildefonso. O secular problema da seca. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1918. Fotografia: preto e branco,

    dimensões desconhecidas. Disponível em: Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na seca de 1932 /

    Kênia Sousa Rios. -Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.

    Essa atitude como forma de prevenir o êxodo do sertanejo para a cidade,

    logrou em impedir uma crise sanitária em Fortaleza, entretanto, provocou a morte

  • 42

    de milhares de pessoas nos campos de concentração do Ceará, devido as

    condições precárias a que estavam submetidas essas pessoas.

    Anos depois, o governo não aprendeu com os erros anteriores e uma nova

    seca atingiu o Nordeste, provocando novas migrações para as cidades, mais uma

    vez foram feitos campos de concentração com a população nordestina e mais uma

    vez a população teve seus direitos violados e teve como consequência muitas

    mortes. Nesse mesmo sentido, sobre essa seca do ano de 1932, fala Rios apud

    Paterra (2015, p.4) ao dizer que “Após dezessete anos, nem o governo federal, nem

    os governos estaduais haviam se precavido para diminuir os efeitos da seca e a

    solução, novamente desumana, passou a ser a criação e ampliação dos campos de

    concentração nordestinos”.

    Dessa forma, fica evidente nesse caso de segregação de seres humanos

    caracterizado pela violência e o descaso com a vida, como ocorreu a prática de

    mistanásia pelo Estado Brasileiro. Infelizmente, não só ocorreu, mas continua

    ocorrendo em números alarmantes, mas de maneira sutil ainda nos dias de hoje

    como é possível ver no capítulo a seguir.

  • 43

    7. ANÁLISE DA MISTANÁSIA SOB UMA PERSPECTIVA DOS SISTEMAS

    PÚBLICOS ATUAIS

    Segundo Kerlinger (1980, p.352), “análise é a categorização, ordenação,

    manipulação e sumarização de dados. Seu objetivo é reduzir grandes quantidades

    de dados brutos, passando-os para uma forma interpretável e manuseável de

    maneira que características de situações, acontecimentos e de pessoas possam ser

    descritas sucintamente e as relações entre variáveis estudadas e interpretadas”.

    Desse modo, nesse capítulo são utilizados dados secundários obtidos de do CNJ e

    do DATASUS para a análise do fenômeno da mistanásia. Nesse sentido, para

    compreender a análise que será feita, é necessário entender que:

    A utilização da análise tem por escopo um ou a combinação dos seguintes objetivos: (1) aumentar o conhecimento sobre o passado e o presente; (2) proporcionar prognoses apropriadas em termos de predição sobre o futuro; (3) estabelecer linhas ou pontos de vista normativos sobre o passado, presente e futuro; (4) prescrever certas metas e proporcionar planos e meios para atingir essas metas; e (5) diagnosticar a natureza do fenômeno” (Ferrari, 1977, p.240).

    Com base nessa ideia, esse capítulo tem como objetivo realizar uma análise

    de dados secundários com o intuito de aumentar o conhecimento sobre o passado

    e do presente, para no fim, diagnosticar a natureza do fenômeno encontrado e como

    ele pode ser observado. Para tanto, é observado o sistema de saúde pública e o

    sistema público prisional, por se caracterizarem por sistemas de elevada

    importância dentro do sistema social.

    7.1 A mistanásia das mortes por desnutrição no sistema público de saúde

    A tabela a seguir apresenta a quantidade de mortes por desnutrição no Brasil,

    por ano, desde o ano de 1979. Vale ressaltar que a morte por desnutrição é uma

    morte antecipada e evitável, o que caracteriza a mistanásia. Além de, na própria

    definição de Pessini (2001, p.322) é uma morte “provocada de forma lenta e sutil

    por sistemas (grifou-se) e estruturas que não favorecem a vida”.

  • 44

    Tabela 2 – Mortes por desnutrição no Brasil

    Ano Brasil

    1979 11784

    1980 11671

    1981 10697

    1982 9956

    1983 9858

    1984 12134

    1985 10195

    1986 9552

    1987 8652

    1988 8189

    1989 7219

    1990 6955

    1991 5970

    1992 6814

    1993 6762

    1994 6714

    1995 6003

    1996 5864

    1997 6073

    1998 6769

    1999 6307

    2000 6418

    2001 6858

    2002 6679

    2003 7260

    2004 7147

    2005 6876

    2006 6694

    Continua

  • 45

    Tabela 2 – Mortes por desnutrição no Brasil

    2007 6701

    2008 6373

    2009 6510

    2010 6652

    2011 6641

    2012 6412

    2013 6819

    2014 6306

    2015 6239

    2016 6107

    2017 5653

    Fonte: DATASUS. Tabela do autor

    Ao colher esses dados brutos e confeccionar o Gráfico a seguir, constata-se

    que o número de mortes por desnutrição no Brasil, no período 1979 a 2017,

    apresenta uma curva decrescente, o que evidencia crescente efetividade das

    políticas públicas e redução da mistanásia.

    Gráfico 2 - Mortes por desnutrição no Brasil

    Fonte: DATASUS. Gráfico do autor

  • 46

    Verifica-se que houve uma pequena melhora a partir da época da

    Constituição de 1988, mas que essa melhora nos indicadores não foi significativa,

    o que evidencia a manutenção da realidade nos anos seguintes.

    Sob outra perspectiva, a tabela a seguir apresenta alguns indicadores que

    retratam a situação da desnutrição no Brasil, no qual foram analisados 39 anos e

    durante todo esse tempo, 292483 pessoas, portadoras de dignidade humana,

    tiveram seus mais básicos direitos fundamentais negados, amargando em uma

    morte totalmente evitável e precoce, definição que morte associada a desnutrição

    certamente se encaixa.

    Tabela 3 – Análise Estatística – Mortes por Desnutrição

    Brasil

    Média 7499,564

    Erro padrão 288,5729

    Mediana 6762

    Moda #N/D

    Desvio padrão 1802,137

    Variância da amostra 3247699

    Curtose 0,834805

    Assimetria 1,433388

    Intervalo 6481

    Mínimo 5653

    Máximo 12134

    Soma 292483

    Contagem 39

    Fonte: DATASUS. Tabela do autor.

    Comparando a análise gráfica com a análise estatística descritiva, pode-se

    inferir, por exemplo, que o valor mínimo é o dado mais recente e o valor máximo é

    um dos mais antigos. Já o desvio-padrão, é alto, o que indica que as quantidades

    dos diversos anos estão distantes da média.

    Conclui-se, portanto, que a situação de hoje é diferente da situação de

    décadas atrás, no entanto, ainda é uma situação ainda passível de preocupação.

    Assim, fica visível com a análise de dados do Sistema Único de Saúde que

  • 47

    ocorre a manifestação da mistanásia no sistema de saúde pública brasileiro, devido

    a falhas na promoção de políticas públicas preventivas adequadas. No entanto, a

    ocorrência desse fenômeno não se limita ao SUS. Ele também pode ser observado

    na população que sofre menos estima do restante da sociedade, a população

    carcerária, como será visto no subcapítulo seguinte.

    7.2 A mistanásia no sistema prisional brasileiro

    Da mesma forma que as mortes por desnutrição, as mortes nos presídios são

    mortes evitáveis e precoces, pois os presos estão sob a responsabilidade do

    Estado, que deveria zelar por sua integridade física e saúde e cujas mortes não

    deveriam ocorrer.

    Infelizmente, elas ocorrem, como mostra a Tabela a seguir que apresenta o

    número de mortes no sistema prisional brasileiro.

    Tabela 4 – Mortes em presídios brasileiros

    Fonte: CNJ. Tabela do Autor

    Esses dados são preocupantes, não apenas pelos números absolutos, mas

    também pelo aumento do número de mortes, desde 2015 conforme o gráfico a

    seguir mostra:

    Ano Mortes

    2015 1271

    2016 1714

    2017 1598

    2018 1613

  • 48

    Gráfico 3 – Mortes em presídios brasileiros

    Fonte: CNJ. Gráfico do autor.

    Ao realizar uma análise gráfica simples fica visível, portanto que houve uma

    evolução na quantidade de mortes, entre os anos 2015 e 2018, apesar do número

    ter se estabilizado de 2016 a 2018. Entretanto, é necessário realizar uma análise

    mais profunda, do tipo análise estatística descritiva, para melhor compreensão do

    problema, como é possível ver a seguir:

    Tabela 5 – Análise Estatística – Mortes em presídios brasileiros

    Mortes

    Média 1549

    Erro padrão 96,17952

    Mediana 1605,5

    Modo #N/D

    Desvio padrão 192,359

    Variância da amostra 37002

    Curtose 2,900855

    Assimetria -1,55604

    Intervalo 443

    Mínimo 1271

    Máximo 1714

    Soma 6196

    Contagem 4

    Fonte: DATASUS. Tabela do autor

  • 49

    A análise estatística apresentada na Tabela 4 evidencia, por exemplo, um

    baixo desvio padrão e um baixo intervalo entre os valores mínimos e máximos, de

    modo que, apesar do aumento, a quantidade de mortes se manteve relativamente

    estável no período, conforme fica evidente ao olhar o relatório de cada ano

    disponível no anexo I da pesquisa.

    No entanto, vale frisar, que as informações denunciam uma tragédia

    humana lamentável, pois no decorrer de 4 anos, 6196 vidas foram ceifadas, por

    omissão estatal. Tal omissão se caracteriza não somente como uma omissão de

    um dever social, mas também com a omissão do dever jurídico de ser garantidor de

    direitos fundamentais, conforme será examinado com mais detalhes no próximo

    capitulo.

  • 50

    8 A MISTANÁSIA SOB A PERPECTIVA DO SISTEMA JURÍDICO

    Para a compreensão da mistanásia sob a perspectiva do sistema jurídico, é

    necessário, que ela seja analisada sob a ótica de certos conceitos jurídicos. Esses

    conceitos tratam de direitos humanos violados pela ocorrência do fenômeno

    mistanásico.

    8.1 Os direitos humanos

    Os direitos humanos são assim tratados, pois são direitos inerentes a todo

    ser humano, independente da etnia, sexo, religião ou qualquer outra característica,

    pois são derivados da natureza humana e, portanto, devem ser garantidos pelo

    estado brasileiro.

    Tais direitos são uma conquista civilizatória, e fazem parte de uma mudança

    paradigmática que o Direito sofreu em sua evolução como uma construção teórica

    derivada da compreensão do ser humano como sujeito de direitos.

    Essa construção é dinâmica, e em permanente evolução. De forma que mais

    direitos humanos podem ser reconhecidos no decorrer do tempo, e é por isso que

    existem várias dimensões ou gerações de direitos humanos. Inclusive, mais e mais

    direitos humanos são recepcionados pela Constituição de 88, por meio de

    declarações, tratados, convenções ratificadas. Vale ressaltar, no entanto, que todos

    os direitos humanos que serão abordados nesse capítulo estão positivados na

    Constituição de 88, bem como presentes no ordenamento jurídico internacional,

    devendo o brasil observar o artigo 4º da CF que afirma que “A República Federativa

    do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...)II

    - prevalência dos direitos humanos; ”, De forma que essa prevalência na realidade

    dos direitos humanos na realidade teórica do direito será demonstrada nas próximas

    páginas, por meio das construções normativas internacionais adotadas pelo Estado

    Brasileiro

  • 51

    8.1.1 Princípio da dignidade da pessoa humana

    No início, depois do mundo vivenciar a catástrofe da segunda guerra mundial,

    era necessário não apenas afirmar a existência de direitos humanos, porém era

    necessário também justificar essa existência.

    Nesse sentido, A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada

    pela Organização das Nações Unidas em 1948, já no seu preâmbulo, destaca a

    importância da dignidade humana “Considerando que o reconhecimento da

    dignidade (grifou-se) inerente a todos os membros da família humana e de seus

    direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no

    mundo”. Em seguida, estabelece em seu artigo 1º: “Todos os seres humanos

    nascem livres e iguais em dignidade (grifou-se) e direitos. São dotados de razão

    e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

    Essa declaração foi seguida por outros tratados e convenções internacionais

    e continentais, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969,

    também conhecida como Pacto De San José Da Costa Rica, que estabelece em

    seu artigo 11, sobre a proteção da honra e da dignidade: “Toda pessoa tem direito

    ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade (grifou-se) ”.

    Já no século XXI, a noção da dignidade da pessoa humana, foi trazida para

    a bioética e para o biodireito, por meio da Declaração Universal sobre Bioética e

    Direitos Humanos, elaborada em 2005, pela Organização das Nações Unidas para

    a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO, que estabelece em seu preâmbulo:

    “Reconhecendo que questões éticas suscitadas pelos rápidos avanços na ciência e suas aplicações tecnológicas devem ser examinadas com o devido respeito à dignidade da pessoa humana (grifou-se) e no cumprimento e respeito universais pelos direitos humanos e liberdades fundamentais”

    Nesse preâmbulo, é reconhecida, a importância da observância da dignidade

    da pessoa humana nas discussões éticas que permeiam o biodireito e bioética.

    Nesse sentido, essa declaração estabelece em seu artigo 2 os seguintes objetivos:

  • 52

    “(iii) promover o respeito pela dignidade humana (grifou-se) e proteger os direitos humanos, assegurando o respeito pela vida dos seres humanos(grifou-se) e pelas liberdades fundamentais, de forma consistente com a legislação internacional de direitos humanos; (iv) reconhecer a importância da liberdade da pesquisa científica e os benefícios resultantes dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, evidenciando, ao mesmo tempo, a necessidade de que tais pesquisas e desenvolvimentos ocorram conforme os princípios éticos dispostos nesta Declaração e respeitem a dignidade humana (grifou-se), os direitos humanos e as liberdades fundamentais”

    Vale ressaltar, que essa declaração ao tratar de questões relacionadas à

    bioética e ao biodireito em seus objetivos, não somente pregam o respeito à

    dignidade da pessoa humana, mas também aos direitos humanos dela derivados,

    de forma que se afirma categoricamente na declaração que “A dignidade humana,

    os direitos humanos e as liberdades fundamentais devem ser respeitados em sua

    totalidade. ”

    Consciente da existência dessas construções normativa internacionais,

    Barroso (2014), propôs uma ideia mínima de que a dignidade da pessoa humana

    se identifica como o valor intrínseco e especial de todos os seres humanos, de modo

    a proporcionar a autonomia de cada pessoa, sob a limitação do valor comunitário

    que existe em função de algumas restrições legítimas impostas a autonomia do

    indivíduo em nome de valores sociais ou interesses estatais.

    Baseado nessa ideia, verifica-se que essas 3 importantes construções

    normativas contemplam o princípio da dignidade humana, do qual pode ser intuído

    os direitos humanos dela decorrentes, que serão examinados nos tópicos a seguir,

    começando pelo direito a vida, pois nas palavras de Alexandre de Moraes (2005,

    p.3) “O direito à vida, é o direito mais fundamental de todos os direitos, já que

    constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”

    (MORAES, p.30)

    8.1.2 Direito à vida

    Sobre o direito à vida, é necessário dizer que, como todos os outros direitos,

    ele é decorrente do princípio da dignidade humana, e sua importância é claramente

    manifestada em variados textos legais, como na própria Declaração Universal dos

  • 53

    Direitos Humanos, em seu Artigo III, declara “Todo ser humano tem direito à vida, à

    liberdade e à segurança pessoal”.

    Nesse mesmo sentido, a Convenção Americana de Direitos Humanos ao

    tratar do direito à vida em seu artigo 4° declarou que “Toda pessoa tem o direito de

    que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde

    o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”

    Em uma perspectiva da bioética e do biodireito, essa proteção a vida também

    é estendia ao afirmar, por meio da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos

    Humanos, apresenta a questão do direito à vida, no item 3, do Artigo 2 que versa

    sobre os Objetivos da declaração, conforme já anteriormente citado.

    Para a proteção do direito à vida, outros direitos humanos podem ser intuídos

    como o direito a saúde que também está presente nessas três Construções

    normativas citadas anteriormente.

    8.1.3 Direito à saúde

    Sobre o direito a saúde, pode-se considerar o direito à vida, como um pré-

    requisito, para ele ser usufruído. De tal forma que a sua importância fica evidente

    na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Artigo XXV, que declara:

    Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis

    Nesse mesmo sentido, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos

    Humanos de 2004, estabelece que a saúde é essencial à vida em si e parte do

    pressuposto que o direito a saúde é um direito de todo ser humano, conforme seu

    artigo 14, que versa sobre a Responsabilidade Social e Saúde:

    A promoção da saúde e do desenvolvimento social para a sua população é objetivo central dos governos, partilhado por todos os setores da sociedade. b) Considerando que usufruir o mais alto padrão de saúde atingível é um dos direitos fundamentais de todo ser humano (grifou-se), sem distinção de raça, religião, convicção política, condição econômica ou social, o progresso da ciência e da tecnologia deve ampliar:

  • 54

    (i) o acesso a cuidados de saúde de qualidade e a medicamentos essenciais, incluindo especialmente aqueles para a saúde de mulheres e crianças, uma vez que a saúde é essencial à vida em si (grifou-se) e deve ser considerada como um bem social e humano; (ii) o acesso a nutrição adequada e água de boa qualidade; (iii) a melhoria das condições de vida e do meio ambiente; (iv) a eliminação da marginalização e da exclusão de indivíduos por qualquer que seja o motivo; e (v) a redução da pobreza e do analfabetismo.

    É visível, portanto, que direito à saúde está presente na Declaração Universal

    dos Direitos Humanos e na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos

    de 2004. Nessa mesma perspectiva, a questão está presente de forma dispersa em

    vários artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos, como no artigo 196

    que diz:

    A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

    No entanto, no Brasil, é frequente a mistanásia por omissão de socorro ou

    socorro insuficiente. Essa é a realidade de boa parte da população brasileira, em

    todas as fases de sua vida. São evidências dessa situação as filas para atendimento

    médico, a falta de material adequado, a falta de profissional habilitado, falta de

    acomodação para os doentes. Isso muitas vezes implica sofrimento desnecessário

    e também até na morte dos pacientes, prejudicando, além do direito à saúde, o

    direito à vida das pessoas.

    8.1.4 Direito à segurança

    Sobre uma outra perspectiva do fenômeno da mistanásia, pode ocorrer de o

    direito à segurança ser violado para, logo em seguida, o direto à vida ser

    vilipendiado.

    Esse tipo de mistanásia ocorre quando pessoas são presas, e em

    decorrência de uma situação de miserabilidade social, não têm sua segurança

    garantida de maneira eficiente pelo estado, como foi visto nas estatísticas

    anteriores.

  • 55

    Tal postura por parte do estado não pode ocorrer, pois esse direito é

    protegido na esfera do direito internacional, por meio de tratados dos quais o Brasil

    é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Artigo III, que

    proclama: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal

    (grifou-se) ”. Tal declaração foi um marco na construção teórica pós-positivista dos

    direitos humanos no mundo, e iniciou um movimento mundial de tratados sobre esse

    assunto, inclusive iniciativas regionais como a já mencionada Convenção

    Americana de Direitos Humanos, que define no Artigo 7º que versa sobre o Direito

    à liberdade pessoal: “1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoal”.

    Dessa forma, essas duas declarações reconhecem o direito à segurança.

    No entanto, infelizmente, o sistema carcerário brasileiro é um exemplo de

    mistanásia, pois se caracteriza por negar direitos humanos às pessoas presas, indo

    de encontro à Constituição. Essa situação de omissão do Estado causa situações

    degradantes e indignas, pois se tratam de situações inconstitucionais.

    8.2 O conceito de mistanásia sob a perspectiva dos direitos humanos

    O conceito de mistanásia foi abordado no início desse trabalho, bem como

    diversos casos em que ela ocorreu. Desse modo, é possível criar um conceito para

    o termo sob a luz do direito, baseado nos conceitos jurídicos formulados

    anteriormente.

    Para tanto, observar-se a ordem no qual os direitos humanos são violados

    no decorrer do processo, que tem como último direito a ser violado o direito à vida,

    com o princípio da dignidade humana violado tanto em vida como na morte.

    Assim, notou-se que, em todos os casos em destaque, o estado falhou em

    proteger algum direito humano, como o direito humano a saúde ou o direito humano

    à segurança. Nesse sentido, fica evidente que a mistanásia é, para o direito, um

    processo decorrente da ação ou omissão do estado em suas políticas públicas que

    culmina em mortes resultantes na falha do próprio estado de proteger algum direito

    humano além do próprio direito à vida, em um contexto em que o próprio princípio

    da dignidade da pessoa humana é desrespeitado.

  • 56

    8.3 Os direitos humanos sob a perspectiva do Supremo Tribunal Federal

    Para defender a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais

    dela derivados, o Supremo Tribunal Federal age como guardião da constituição e

    dos direitos fundamentais dela derivados. Assim, o STF tem o papel de Guardião

    da Constituição, pois possui a função de corte constitucional nos termos do artigo

    102.

    Tal artigo, ao atribuir as competências do STF, confere à corte a função de

    proteger os diretos fundamentais dos cidadãos brasileiros. Alguns desses direitos

    encontram-se logo no início da Constituição Federal em seu artigo 5°, tratando-se,

    portanto, de um rol exemplificativo.

    Esses direitos fundamentais possuem uma importância elementar no

    ordenamento jurídico nacional, de tal forma que são cláusula pétrea, não podem ser

    abolidos e nem sequer discutida no congresso qualquer proposta de emenda

    constitucional que tenha como objetivo abolir direitos fundamentais, nos termos do

    parágrafo 4° do artigo 60 que diz: “§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta

    de emenda tendente a abolir: (...)IV - os direitos e garantias individuais. (Grifou-

    se) ”

    Nesse sentido, o desrespeito à dignidade da pessoa humana não deveria

    ocorrer, pois a Constituição é clara quando escreve em seu artigo 1° que a

    “República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e

    Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e

    tem como fundamentos: (...)III - a dignidade da pessoa humana; ”

    Infelizmente, na maior parte da história da humanidade, os direitos

    fundamentais do ser humano eram restritos às camadas privilegiadas da sociedade.

    A proteção aos direitos da personalidade é bastante recente. Nesse contexto,

    Segundo Gagliano & Pamplona Filho (2012. p. 183) “O Homem não deve ser

    protegido somente em seu patrimônio, mas principalmente, em sua essência”.

    Sob essa perspectiva, além de zelar pelo princípio da dignidade da pessoa

    humana, é papel do STF proteger o direito à vida das pessoas, pois esse direito é

    garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil quando é dito no

    caput do art. 5º “ Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

  • 57

    garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade

    do direito à vida (grifou-se), à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”

    Nesse sentido, percebe-se a centralidade do direito à vida na Constituição, pois

    nas palavras de José Carlos Sousa Silva:

    A norma constitucional trata, portanto, do direito à vida como o fundamental, como pré-requisito para o exercício dos demais direitos. É assim uma norma importantíssima no sistema jurídico brasileiro, base e fundamento para as demais normas que tratam dessa matéria. É norma que serve de fundamento na aplicação das demais outras que tutelam a vida humana (SILVA, 2006, p. 42).

    Dessa forma, verifica-se que o ao reconhecer que a Constituição do País

    estabeleceu o Supremo Tribunal Federal como corte constitucional, de forma que

    fica evidente seu papel na proteção dos valores constitucionais, incluiu neles o

    direito à vida e também o direito de que a vida das pessoas, bem como a morte

    delas seja digna.

    Nessa perspectiva, ressalta-se que o direito a uma vida digna, inclui

    também o direito a uma morte digna, pois a morte é parte integrante da vida. Com

    efeito, segundo Dworkin (2003, p.280):

    [...]A morte domina porque não é apenas o começo do nada, mas o fim de tudo, e o modo como pensamos e falamos sobre a morte – a ênfase que colocamos no “morrer com dignidade” – mostra como é importante que a vida termine apropriadamente, que a morte seja um reflexo do modo como desejamos ter vivido.

    Com essa frase, defende-se o alcance da dignidade da pessoa humana, não

    somente no decorrer da vida de cada ser humano, mas também em sua morte e no

    processo de morrer. Sob essa ótica, a morte é tida como parte integrante da vida,

    não podendo os direitos e garantias serem dela dissociados.

    8.3.1 Uma análise do papel do Supremo Tribunal Federal acerca da mistanásia

    Antes de discutir sobre o uso dos princípios do mínimo existencial