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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA
LÉO BARBOSA NEPOMUCENO
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA PRÁTICA PSICOLÓGICA NA ATENÇÃO
PRIMÁRIA À SAÚDE DO SUS
FORTALEZA
2014
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LÉO BARBOSA NEPOMUCENO
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA PRÁTICA PSICOLÓGICA NA ATENÇÃO
PRIMÁRIA À SAÚDE DO SUS
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva,
Doutorado em Saúde Coletiva da Universidade
Federal do Ceará, Universidade Estadual do
Ceará e Universidade de Fortaleza, como
requisito parcial para obtenção do Título de
Doutor em Saúde Coletiva. Área de
Concentração: Políticas, Gestão e Avaliação
em Saúde.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo José Soares
Pontes.
FORTALEZA
2014
9
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências da Saúde
N362c Nepomuceno, Léo Barbosa. A construção social da prática psicológica na atenção primária à saúde do SUS. / Léo Barbosa
Nepomuceno. – 2014. 221 f. : il. color., enc. ; 30 cm. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Universidade Estadual do Ceará,
Universidade de Fortaleza, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Doutorado em Saúde Coletiva, Fortaleza, 2014.
Área de Concentração: Políticas, Gestão e Avaliação em Saúde. Orientação: Prof. Dr. Ricardo José Soares Pontes. 1. Saúde Pública. 2. Estratégia Saúde da Família. 3. Atenção Primária à Saúde. I. Título.
CDD 362.1
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LÉO BARBOSA NEPOMUCENO
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA PRÁTICA PSICOLÓGICA NA ATENÇÃO
PRIMÁRIA À SAÚDE DO SUS
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva,
Doutorado em Saúde Coletiva da Universidade
Federal do Ceará, Universidade Estadual do
Ceará e Universidade de Fortaleza, como
requisito parcial para obtenção do Título de
Doutor em Saúde Coletiva. Área de
Concentração: Políticas, Gestão e Avaliação
em Saúde.
Aprovada em 25/08/2014
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Prof.Dr. Ricardo José Soares Pontes (Orientador)
Universidade Federal do Ceará – UFC
_________________________________________________
Profª.Drª.Márcia Maria Tavares Machado
Universidade Federal do Ceará - UFC
_________________________________________________
Profª.Drª.Maria Lúcia Magalhães Bosi
Universidade Federal do Ceará - UFC
__________________________________________________
Profª.Drª. Maria Vaudelice Mota
Universidade Federal do Ceará - UFC
__________________________________________________
Prof.Dr.Aluísio Ferreira Lima
Universidade Federal do Ceará - UFC
12
AGRADECIMENTOS
À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP)
pelo apoio financeiro durante o doutorado.
À Polyana, meu amor, pela paciência e incentivo em toda minha trajetória.
Ao Cauê, meu lindo filho, por encher de alegria e responsabilidade minha existência.
À minha família, por sempre me acolher e estimular a ser mais e melhor.
À Bárbara, amada irmã, pela parceria acadêmica e existencial tão importante para meu
caminhar de formação humana.
Aos amigos Alex e Ana Helena pelas sempre instigantes conversas sobre as teorias e práticas
acadêmicas.
Ao Ricardo Pontes pela oportunidade de cursar o Doutorado e confiança dedicada durante a
orientação do presente trabalho.
13
RESUMO
A inserção da Psicologia na Estratégia Saúde da Família (ESF) é representativa da ampliação
dos serviços de Atenção Primária à Saúde (APS), no Sistema Único de Saúde do Brasil
(SUS), significando a expansão das práticas psicológicas na sociedade brasileira, através das
políticas públicas de saúde. Na APS, a psicologia engaja-se num complexo processo social de
construção das práticas profissionais, marcado por lutas por reconhecimento e autonomia
profissional. Dentro desse contexto, o presente trabalho objetiva interpretar sentidos das
práticas profissionais da Psicologia no contexto da APS do SUS, a partir da visão de
psicólogos com experiências de atuação no campo. Como objetivos específicos, busca: 1)
Descrever o campo de práticas profissionais da APS e o lugar ocupado pelos psicólogos nele;
2) Analisar a construção social das demandas pra prática psicológicas na APS; 3)
Compreender o modo distinto como a Psicologia intervém profissionalmente; e 4) Analisar o
significado histórico da inserção da Psicologia na APS. O trabalho tem como referencial
teórico a sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu, especialmente nos conceitos de campo
social, habitus e poder simbólico. Como parte também das referencias teóricas utilizadas,
discute as categorias autonomia e identidade profissionais, bem como pauta-se na proposição
hermenêutica de Paul Ricoeur para a construção de um estudo de cunho interpretativo.
Constitui-se de pesquisa com enfoque qualitativo, baseada em entrevistas semi-estruturadas
junto a 18 psicólogos com experiência na atenção e formação voltada para a ESF. O material
empírico construído foi codificado e categorizado com auxílio do software Atlas TI, dando
origem a 22 unidades de significação, que subsidiaram a análise e discussão. Os resultados
revelam que a ESF é marcada por divisões desiguais de poder e hegemonia da Medicina na
organização e classificação das práticas profissionais. A ESF é percebida como espaço
contraditório onde algumas prerrogativas de interdisciplinaridade, intersetorialidade e
territorialização convivem com a prevalência de um modelo técnico-assistencial biologizante
e focado em doenças. A psicologia é reconhecida como uma profissão voltada para a
compreensão dos processos subjetivos, afetivos e relacionais implicados no processo saúde-
doença-cuidado. A construção social das demandas para a psicologia é bastante influenciada
pela identidade hegemônica da profissão ligada à prática da clínica liberal. Nesse contexto, a
clínica psicológica é objeto de intensas lutas simbólicas em torno da legitimação da prática da
Psicologia na ESF. A experiência de trabalho na APS do SUS é percebida como marcante
para a construção da identidade profissional dos psicólogos participantes da pesquisa, sendo
reconhecida como impulsionadora de modificações nas disposições para agir e pensar
profissionalmente. Ademais das potencialidades práticas, a ESF é percebida como um espaço
de precárias condições de trabalho, revelando importantes desafios para o avanço das práticas
psicológicas no contexto estudado.
Palavras-Chave: Psicologia; Profissionalização; Cuidados Primários de Saúde; Estratégia
Saúde da Família; Sistema Único de Saúde do Brasil
14
ABSTRACT
The insertion of Psychology in the Family Health Strategy (ESF) is representative of the
expansion of Primary Health Care (APS) services, in the Brazilian National Health System
(SUS), meaning the expansion of psychological practices in brazilian society, through public
health policies. In APS, psychology engages in a complex social process of building
professional practices, marked by struggles for recognition and professional autonomy.
Within this context, this work aims to interpret meanings of professional practice of
psychology in the context of APS of the SUS, from the perspective of psychologists with
experience in the field of acting. Specific aims were to search: 1) Describe the field of
professional practices of APS and the place occupied by psychologists in this field; 2)
Examine the social construction of demands for psychological practice in the APS; 3)
Understand how the distinguished psychology intervenes professionally; and 4) Analyze the
historical significance of the insertion of the Psychology in the APS. The paper has like
theoretical framework the reflexive sociology of Pierre Bourdieu, especially the concepts of
social field, habitus and symbolic power. But also part of the theoretical references used,
discusses the categories autonomy and professional identity, and is guided in the
hermeneutics of Paul Ricoeur proposition for the construction of an interpretive study.
Constitutes research with qualitative approach, based on semi-structured interviews with 18
psychologists with expertise in focused attention and training for ESF. The empirical material
was coded and categorized constructed with the aid of Atlas TI software, giving rise to 22
units of meaning, which supported the analysis and discussion. The results reveal that the ESF
is marked by unequal divisions of power and hegemony of Medicine in the organization and
classification of professional practices. The ESF is perceived as contradictory space where
some prerogatives of interdisciplinary, intersectoral and territorial coexist with the prevalence
of a disease in biologizing and focused technical assistance model. Psychology is recognized
as a profession focused on understanding the implied subjective, affective and relational
processes in the health-illness care. The social construction of demands for psychology is
heavily influenced by the hegemonic identity linked to the practice of the profession of
clinical liberal. In this context, clinical psychology is the subject of intense symbolic struggle
over the legitimacy of the practice of psychology in the ESF. Work experience in the APS of
the SUS is perceived as remarkable for the construction of the professional identity of survey
participants psychologists and is recognized as a driving force for changes in dispositions to
act and think professionally. Besides the practical potential, the ESF is perceived as an area of
poor working conditions, revealing important challenges for the advancement of
psychological practices in the context studied.
Keywords: Psychology; Professionalization; Primary Health Care; Family Health Strategy;
Brazilian National Health System.
15
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 17
1.1 Uma incursão reflexiva sobre a trajetória que subjaz a pesquisa 18
1.2 Objetivos da pesquisa e organização do texto 26
2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA 27
2.1 A Construção do SUS e da Saúde Coletiva 27
2.2 Estratégia Saúde da Família: priorização da atenção primária à saúde no SUS. 32
2.3 A Psicologia nas políticas públicas de saúde 38
2.3.1 Psicologia na Atenção Primária à Saúde do SUS 43
2.4 Apontamentos sobre os sentidos históricos das práticas psicológicas no Brasil 46
3 REFERÊNCIAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS 52
3.1 A sociologia reflexiva de Bourdieu 53
3.2 Entre objetivismo e subjetivismo 54
3.3 Campo social 58
3.4 Habitus 62
3.5 Poder simbólico 65
3.6 Autonomia e identidade profissionais 67
3.7 Hermenêutica de Ricoeur 76
3.8 Apropriações 79
4 METODOLOGIA 85
4.1 Sobre a epistemologia da pesquisa 85
4.2 Delimitação do campo de estudo, participantes e construção das informações 91
4.3 A análise do material empírico produzido 96
5 A ESF DOS PSICÓLOGOS 101
16
5.1 Visões do campo: características, prerrogativas e divisão do poder 101
5.2 Lugar da Psicologia e âmbitos das práticas psicológicas 119
6 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA DEMANDA PARA A PSICOLOGIA 133
6.1 Necessidade de tradução e transformação das demandas 142
6.2 Demandas para a clínica nos Centros de Saúde da Família 148
6.3 Mais psicólogos? 161
7 ESPECIFICIDADES DAS PRÁTICAS PSICOLÓGICAS 164
7.1 Especificidade da Psicologia 164
7.2 Lutas pelo reconhecimento 175
8 IMPLICAÇÕES PARA A IDENTIDADE PROFISSIONAL: INTERFLUÊNCIAS
ENTRE CAMPO E HABITUS 186
8.1 Significados da experiência e algumas reflexões sobre a profissão 186
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS 200
10 REFERÊNCIAS 205
APÊNDICES 213
ANEXOS 219
17
1 INTRODUÇÃO
Eu sempre guardei nas palavras os meus desconcertos.
Invento pra me conhecer.
(Manoel de Barros – Menino do mato)
A presente tese de doutorado discute o processo de inserção da psicologia no
contexto da atenção primária à saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS). A inserção de
psicólogos nos serviços públicos de saúde expressa um processo social plural, marcado por
encontros e circunstâncias onde as práticas profissionais se desenvolvem. Como parte de uma
formação realizada num Doutorado em Saúde Coletiva, o presente trabalho representa um
movimento de busca por compreender processos sociais que atravessam a construção de
práticas psicológicas no campo da saúde. Partindo da percepção de profissionais, que viveram
trajetórias de trabalho na atenção à saúde e formação para a Estratégia Saúde da Família
(ESF), busco aqui alcançar um entendimento mais qualificado sobre a constituição social das
práticas psicológicas, no contexto desse campo de práticas em expansão nas políticas públicas
de saúde no Brasil.
Desse modo, o objeto de reflexão da presente tese é a construção social da prática
profissional da psicologia na APS do SUS. Entendendo que a ESF, tomada sob a perspectiva
da APS do SUS, apresenta-se como espaço social, onde se desenvolvem tramas relacionais e
lutas por reconhecimento e poder, que envolvem as diversas categorias de profissionais e
trabalhadores. A partir desse entendimento, foram discutidas questões sociais que perpassam a
tessitura do fazer profissional da psicologia. O processo de construção desse trabalho é,
sobremaneira, marcado pela experiência que tive, no campo estudado. Minha experiência na
ESF facilitou a construção da pesquisa, pela familiaridade com algumas questões e temas,
mas implicou no enfrentamento de grandes desafios, especialmente no que diz respeito à
necessidade estranhar e desnaturalizar uma realidade social vivida com certa cumplicidade e
envolvimento, que precisaram ser problematizados para que a análise e interpretação
propostas pudessem se desenvolver.
Fruto de um programa de estudos construído dinamicamente ao longo de uma
formação escolar e acadêmica, a presente tese de doutorado expressa a articulação de diversos
elementos de história de vida e trabalho. O doutorado é parte marcante de um processo mais
amplo de formação que, dentre os seus elementos, tem se fortalecido através da autoanálise
permanente da experiência vivida, pela reivindicação de uma postura reflexiva capaz de
elucidar a imbricação de questões éticas e epistemológicas na produção do conhecimento. A
presente tese é produto de pesquisa cuja relação com o objeto de investigação fora sendo
18
construída antes mesmo da chegada ao Programa de Doutorado em Saúde Coletiva, em 2010.
Nessa trajetória de formação, me inseri em espaços sociais diversos, que marcaram a
constituição de minha identidade profissional, implicando-me na construção de práticas de
saúde articuladas com questões sociais, éticas e políticas. Assim, me formei psicólogo,
trabalhador e docente no campo da saúde, numa processo biográfico, que deu origem e
conformou o percurso de construção da presente pesquisa.
O estudo foi pautado na noção, fomentada por Pierre Bourdieu (2012; 2011), de que
a prática científica deve ter na reflexividade um componente metodológico fundamental.
Assim, a partir do exercício reflexivo permanente, a produção de conhecimentos passa a ser
percebida como permeada por processos e relações sociais, onde a construção dos objetos
científicos é sempre relacionada ao conjunto de experiências e trajetória do pesquisador no
campo científico, a questões do próprio campo e com outros pertencimentos e fatores sociais
externos. Tomar a reflexividade como elemento metodológico, remete à necessidade de se
colocar em análise a posição, posicionamentos, interesses e pontos de vista adotados numa
investigação. Dentro dessa perspectiva, o pesquisador torna a reflexividade uma disposição
constitutiva, uma postura voltada para um agir sensível aos determinismos sociais e
históricos, controlando-os para qualificar a pesquisa. Esse exercício reflexivo
operacionalizou-se, aqui, no destaque que faço a algumas experiências vividas em minha
trajetória acadêmico-profissional, articulando questões pertinentes aos espaços sociais que
participei e produções científicas atreladas. Esse exercício reflexivo é importante para a
exposição e problematização de minha relação com o objeto de pesquisa, bem como para
delimitar questões que mobilizaram o presente estudo.
1.1 Uma incursão reflexiva sobre a trajetória que subjaz a pesquisa
Como dito, a presente investigação se desenvolveu influenciada por um conjunto de
experiências de formação e atuação. Dentre elas destacarei algumas que julgo terem sido
mais decisivas para a constituição do presente texto. Quando estudante de graduação em
psicologia destaco, como relevante, minha participação no Núcleo de Psicologia Comunitária
(NUCOM) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Formação em Psicologia e
Psicoterapia Fenomenológico-Existencial, ambas em Fortaleza. Quando graduado psicólogo,
é relevante o papel de minhas experiências no programa de Residência Multiprofissional em
Saúde da Família (RMSF) em Sobral e na pós-graduação em Psicologia (Mestrado) e
doutorado (Saúde Coletiva) da UFC. Pertinente especialmente ao último ano de elaboração
19
da pesquisa, destacarei a repercussão de minha inserção recente no Instituto de Educação
Física e Esportes da UFC, para a conformação final de minhas análises. Julgo ser importante
compartilhar com o leitor um pouco de tais experiências, no intuito de expressar minha
interpretação sobre o processo de gestação e desenvolvimento da tese propriamente dita.
Nesse processo de reflexão, comentarei algumas de minhas produções anteriores no intuito de
fortalecer meu exercício de autoanálise das posições ocupadas dentro do campo científico.
No curso de Psicologia da UFC construí uma formação generalista com forte ênfase
na Psicologia Comunitária, mas também de base, apesar de menor envolvimento, na
Psicologia Clínica. Na primeira, tive um engajamento na extensão universitária e uma
formação teórica interdisciplinar agregando elementos de Psicologia Social Crítica,
Psicologia Histórico-Cultural, Pedagogia Freireana e Biodança. A experiência com a
Psicologia Clínica se deu no estágio na Clínica Escola da UFC e na Formação em Psicologia
e Psicoterapia Fenomenológico-Existencial, onde pude entrar em contato com os referenciais
teórico-conceituais e metodológicos da chamada vertente “humanista” em psicologia.
Como membro do NUCOM, participei de experiências de formação ricas para
iniciar minhas reflexões sobre o desenvolvimento teórico, prático e ético da Psicologia. A
experiência de “nuconiano” foi rica na busca por um conhecimento psicológico atrelado à
problematização da realidade social cearense e às práticas de transformação e emancipação
social. Estar no NUCOM facilitava minha aproximação com as questões sociais cearenses,
estimulava a busca por posicionamentos epistemológicos congruentes, bem como me
envolvia na elaboração de estratégias de atuação no desenvolvimento de comunidades.
Permanentemente, nos grupos de estudo e reuniões do NUCOM, estávamos a dialogar em
torno de alguns questionamentos: Como podemos atuar de forma a contribuir para o avanço
de projetos sociais visando a emancipação? Como a Psicologia pode contribuir no campo
social e político? Como nos relacionar com os moradores das comunidades num agir
cooperativo e não-tutelar? Esses desafios colocavam em cheque os saberes e práticas “psis”
vigentes e nos impulsionavam para buscar modelos explicativos e de atuação congruentes
com o contexto social da periferia de Fortaleza e com as perspectivas emancipatórias que, no
plano ético-político, defendíamos. Nesse período, me aproximei especialmente das
psicologias de base marxista, principalmente, a partir das ideias de Vygotsky e de Martín-
Baró. É destacável, também, nas aproximações teórico-metodológicas, a valorização do
método reflexivo-vivencial sistematizado pelo professor Cezar Wagner de L. Góis (2003;
2005; 2008). Entendo que a articulação entre exercício do diálogo, da problematização
coletiva e práticas corporais é uma estratégia potente de intervenção psicológica junto a
20
grupos, organizações e comunidade. Conhecer a psicologia comunitária e fazer parte dela foi
e é um aspecto importante na construção contínua de minha identidade profissional.
Passados 10 anos de minha graduação, penso que minha adesão à psicologia
comunitária fora intensa e isso influenciou de modo decisivo minhas experiências
profissionais posteriores, bem como minhas produções. Minha monografia de graduação
“Nordestinos e Nordestinados: elementos para uma reflexão psicossocial sobre
subdesenvolvimento no Brasil” expressa minhas inquietações sobre as relações entre
desenvolvimento socioeconômico e os processos de produção da pobreza e exclusão social
extrema em nossa região. O artigo “Elementos Psicossociais Para Compreender o Nordeste”
(NEPOMUCENO; PINHEIRO, 2010), fruto de reflexões posteriores a monografia, revela a
utilização do referencial da Psicologia Social de Martín-Baró (1998), bem como minha
propensão para fazer análises mais sociologizantes em diálogo com autores como Josué de
Castro e Paulo Freire. Minha aproximação com o referencial estruturalista ganhou bastante
impulso, nesse período, e serve de base, ainda hoje, para que reconheça a importante
influência das macroestruturas sociais econômicas e culturais sobre os fenômenos sociais e
psicológicos.
Após concluir minha graduação em Psicologia, fui morar em Sobral (CE), para
ingressar na RMSF, um programa de pós-graduação, pautado na formação em serviço para o
SUS. Neste processo de formação, vários profissionais da saúde (Odontologia, Psicologia,
Serviço Social, Fisioterapia, Enfermagem, Educação Física, Nutrição, Terapia Ocupacional,
Farmácia e Fonoaudiologia) se inserem nas atividades da Estratégia Saúde da Família (ESF)
do sistema municipal de saúde de Sobral. Durante dois anos, os residentes fazem do mundo
cotidiano do trabalho em saúde um grande cenário de aprendizagens. Participei da 5ª turma
de residentes, durante o período de maio de 2005 até março de 2007. Tal experiência, além de
firmar minha identidade profissional como trabalhador do campo saúde, deu continuidade ao
processo de problematização da realidade e busca por conhecer e transformar a realidade
social, colocando esse movimento no campo das políticas públicas de saúde. Meu interesse
pelo campo da formação em saúde se tornou grande, de forma que, posteriormente, retornei a
trabalhar na ESF, de junho de 2008 a fevereiro de 2010, no mesmo programa de RMSF,
dessa vez na condição de membro do corpo docente – abordarei adiante.
Na época de psicólogo-residente, me engajei com o trabalho na ESF e me inquietei
com diversos desafios para o avanço das ações desenvolvidas e propostas, principalmente,
questionando os impactos destas no atendimento das necessidades de saúde da população.
Nós, profissionais-residentes, desenvolvemos uma série de atividades de formação em serviço
21
dentro da ESF, as quais se estruturaram a partir de equipes multiprofissionais, que se
constituíram baseando-se no modelo dos Núcleos de Atenção Integral à Saúde da Família1
(NAISF), trabalhando nos territórios de saúde do município, junto aos outros profissionais
que compõem a ESF. Nestes Núcleos, foram desenvolvidos trabalhos em equipe
multiprofissional para dar suporte, ou apoio matricial, à prática sanitária num território amplo,
atuando junto a 9 (nove) ou 10 (dez) equipes mínimas de Saúde da Família (composta por
médico, enfermeiro, cirurgião-dentista, agente comunitário de saúde, auxiliar de enfermagem,
auxiliar de consultório dentário e de higiene dental). Naquele tempo, em Sobral estruturaram-
se 5 (cinco) NAISF, a partir da 5ª turma de RMSF. Minhas inquietações eram compartilhadas
com a equipe multiprofissional que participava, bem como com vários profissionais de saúde
e usuários dos serviços. Novamente, uma preocupação presente era a construção de um
trabalho psicológico que, agora em equipe, pudesse trazer contribuições significativas para a
resolução dos problemas sociais e de saúde, que se apresentavam cotidianamente. As
reformulações teóricas e práticas eram mobilizadoras para nós residentes. No caso dos
psicólogos-residentes, o que se colocava era o encontro entre a Psicologia, com sua
diversidade de correntes teórico-metodológicas concorrentes (as Psicologias), e os saberes e
práticas construídos no campo saúde, muito influenciados pelo campo interdisciplinar da
Saúde Coletiva.
Começavam já, naquele tempo, a delinearem-se questões pertinentes a esta pesquisa:
Como melhor dispor das novas categorias profissionais nas ações da ESF? Como lidar com a
imensa demanda social, que se expressa no cotidiano de Centros de Saúde da Família (CSF)?
Como nós psicólogos poderíamos contribuir para a melhoria da atenção à saúde na ESF?
Qual o diferencial da Psicologia na produção das práticas de atenção à saúde? Qual a
relevância social do fazer psicológico no campo das práticas multiprofissionais da ESF?
Minha monografia de conclusão de curso da RMSF, intitulada “Contribuições da
Psicologia para Intervenção Social na Estratégia de Saúde da Família do Sistema Único de
Saúde: reflexões sobre uma caminhada”, representa um período de transformações
identitárias muito ligadas aos ajustes e desajustes decorrentes de minha inserção na APS do
SUS. Vejo que a monografia, depois atualizada e publicada sob o título de “Psicólogos na
ESF: caminhos percorridos e desafios a superar” (NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011), é
parte de um movimento de reconstituição de minhas disposições para agir e pensar como
profissional, onde é representativo a transformação de um psicólogo (comunitário) em
1 Adiante abordarei o NAISF e também o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) como políticas de
ampliação da Atenção Primária à Saúde no SUS.
22
profissional da saúde, em trabalhador do SUS. A presente tese é uma clara retomada de
algumas questões já trabalhadas em minhas produções acadêmicas atreladas à RMSF.
No período de março de 2007 a maio de 2009, realizei o curso de Mestrado em
Psicologia na UFC. Depois de dois anos de intensa imersão no processo de residência, que me
fizeram (re)formular meu modo de pensar e agir, estava com muita vontade de “parar um
pouco”, sair da chamada “ponta” dos serviços de saúde e estudar. O mestrado representou um
período de relativo distanciamento crítico que tornara-se necessário após o intenso período de
imersão nos serviços de saúde do SUS. A dissertação que desenvolvi expressa essa nova etapa
de minha caminhada no campo saúde, trabalhando com temas pertinentes à interface da
Psicologia com a Saúde Coletiva, a saber: a participação comunitária e ESF. A dissertação
defendida se intitulou “Para Atuar Com a Comunidade: estudo sobre a relação entre
participação comunitária e Estratégia de Saúde da Família do SUS, no bairro Terrenos Novos
em Sobral, Ceará”. Tratou-se de uma pesquisa qualitativa que contribuiu para elucidar
nuances do processo de trabalho em saúde na ESF, bem como para analisar, a partir de um
referencial psicológico, a questão da participação comunitária no SUS (NEPOMUCENO,
2009). Novamente o referencial da psicologia comunitária fora bastante relevante para minhas
reflexões, especialmente na articulação com a psicologia da libertação e teoria da
complexidade (NEPOMUCENO et al., 2008), bem como nas discussões relacionadas à
participação comunitária (NEPOMUCENO; BRITO; GÓIS, 2009) e à participação social em
saúde (NEPOMUCENO et al., 2013). É notável, portanto, minha implicação com o
referencial da psicologia comunitária, o que influenciou direta e indiretamente a construção
do presente estudo, requerendo certo distanciamento durante momentos decisivos de
realização das análises e interpretações sobre a prática psicológica na APS do SUS.
Como dito anteriormente, retornei a Sobral (em junho de 2008) para novamente
trabalhar no programa de RMSF, agora atuando nas atividades de docência duas turmas
posteriores a minha. O trabalho realizado na docência da RMSF constituiu-se como impulso
para novos reposicionamentos em minha imersão no mundo da formação em saúde. Essa
experiência, pelas vivências deflagradas, possibilitou-me boas compreensões sobre a
educação permanente em saúde, percebida como caminho possível para a transformação de
práticas cotidianas, dentro do contexto das lutas concorrenciais inter e intraprofissionais.
Nesse período, é destacável o constante contato com as dificuldades de diversos profissionais
em desenvolver suas práticas em sintonia com os “desejados” princípios do SUS e da ESF.
Construir uma atuação qualificada no processo saúde-doença-cuidado tem reivindicado novos
paradigmas, novos modelos explicativos, novas práticas. Vejo que as profissões e ciências de
23
saúde, por exigências internas e externas, em maior ou menor grau, tem se dedicado a rever
seus modelos teórico-metodológicos problematizando saberes e práticas, que caracterizam
tanto as especificidades profissionais, quanto os campos de interface na atuação e produção
do conhecimento. A ESF configura-se como cenário atual propulsor de revisões de discursos
e práticas profissionais, haja vista, que muitas profissões ainda apresentam uma trajetória
histórica de distanciamento frente às questões colocadas no cotidiano da atenção à saúde no
SUS. A Psicologia é uma ciência e profissão que vem compondo esse movimento de
emergência de inovações e ampliações, bem como reprodução de antigas formas de construir
conhecimentos e atuar no campo da Saúde Coletiva (NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011).
O período de minha inserção no programa de Doutorado em Saúde Coletiva
representa a continuidade de minha trajetória de aproximação com o campo da docência em
saúde. Para concluir essa reflexão sobre minha trajetória, creio ser importante destacar minha
inserção no Instituto de Educação Física e Esportes, em agosto de 2013, como professor da
UFC, cargo que ocupo atualmente, no último ano de produção da tese. A importância desse
fato, para a presente tese de doutorado, é que esta veio sendo concluída em concomitância
com o instigante trabalho iniciado no setor de estudos Fundamentos Socioantropológicos e
Psicológicos da Educação Física e Esportes. Nesse contexto, tenho me envolvido no estudo
de questões psicossociais, que perpassam as práticas corporais, o esporte e a constituição da
chamada cultura corporal do movimento, muito marcada pelas práticas profissionais da
Educação Física. Notadamente, as articulações entre a tese e meu trabalho como docente são
possíveis especialmente pela adoção de um referencial sociológico para a discussão da prática
profissional na APS do SUS, onde se encontram psicologia e educação física. Um conjunto
de questões também se agrega no bojo dessa interface disciplinar e profissional,
especialmente, questões referentes à reflexão sociológica sobre a ação das profissões da
saúde nos planos da cultura e da sociedade.
Ao compartilhar minhas experiências e algumas das perguntas que foram
propulsoras do presente texto, viso esclarecer o laço existente entre a tese e minha trajetória
de inserção no campo da psicologia, da APS do SUS, da Saúde Coletiva e, mais
recentemente, da Educação Física. Esse laço reflete-se na tessitura de um texto marcado pela
experiência e implicação com certas visões da realidade, com certas lutas e interesses. Nesse
contexto, a construção dessa tese passa a ser marcada pelo esforço de abertura interdisciplinar
constitutiva do campo da Saúde Coletiva que, em nosso caso, potencializou minha
aproximação reflexiva com alguns autores e temas. A dinâmica dessas aproximações teóricas
decorre da conjuntura de como a escrita da tese fora se desenvolvendo associada a um
24
conjunto de dilemas e falsos dilemas, elucidados num movimento de familiarização e
desfamiliarização de minhas concepções e visões. Esse dilema vivido na escrita da tese é um
dos problemas epistemológicos mais importantes vividos no processo de elaboração do
presente texto. E aproxima-se do dilema exposto por Geertz, quando discute a escrita
etnográfica:
A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que dizem tem menos a
ver com uma aparência factual, ou com um ar de elegância conceitual, do que com
sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem
realmente penetrado numa outra forma de vida (ou se você preferir de terem sido
penetrados por ela) – de realmente haverem, de um modo ou de outro,‘estado lá’. E
é aí, ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu, que entra a
escrita (GEERTZ, 2009, p15).
A perspectiva de construir um conhecimento marcado pela experiência e trajetória
implicou na necessidade de um encontro com outras visões sobre a prática da psicologia,
sobre a APS e sobre a ação profissional. Fora preciso reconhecer minhas implicações com
algumas visões da realidade, os limites das abordagens adotadas e necessidade de transitar
entre os lugares e posições para delimitar o referencial da pesquisa no enfrentar o sentimento
paradoxal de estar próximo e estar distante simultaneamente.
Como poderemos ver no decorrer do texto, percebemos que as práticas do psicólogo
são fruto de sua inserção nos campos da Psicologia e APS, (o que implica na influencia da
Saúde Coletiva e outros movimentos do campo da saúde). Tornou-se notável na presente
pesquisa, que os posicionamentos dos psicólogos, em muitas de suas práticas, são decorrentes
de suas vinculações históricas às lutas internas aos referidos campos, encarnadas nas
trajetórias de formação e atuação profissional. Isso também é pertinente à minha trajetória
nos mesmos campos sociais/científicos. Especialmente, minha trajetória de vinculação à
psicologia comunitária, o que me implica numa visão materialista e histórica da realidade
social e que tem a tendência a reconhecer e contribuir para legitimar todo um clamor social e
crítico frente ao elitismo histórico da psicologia. Claramente, minha formação acadêmica e
profissional deve muito a esse paradigma que, pra mim, é de grande estima. É claro, no
entanto, nesse processo de construção da tese, que tive certas dificuldades iniciais de me
desvincular a esse ponto de vista, quando necessário, já que este se encontra encarnando em
meu habitus2 acadêmico-profissional. Em minhas reflexões, as lutas políticas e
questionamentos oriundos desse campo de produção de saberes e práticas (da Psicologia
Comunitária), especialmente por minha aproximação pessoal e afetiva com pessoas dentro do
2 Conceito de Bourdieu, que será abordado adiante.
25
campo, colocaram desafios para pensar a realidade e produzir trabalhos acadêmicos e
profissionais a partir de um olhar mais distanciado. Isso pode ser exemplificado pela
recorrência na utilização de categorias como comunidade, saúde comunitária, atividade e
consciência, participação social e comunitária em minha trajetória de produção científica.
Nesse ínterim, a adoção do referencial bourdieusiano, que será apresentado adiante,
representou ao mesmo tempo um posicionamento crítico e uma negociação frente a um modo
de pensar e fazer que se tornara incorporado por mim. No que diz respeito às práticas
psicológicas na APS, é fácil notar a disputa entre os agentes vinculados à psicologia social e
os mais próximos, em suas trajetórias, à psicologia clínica. Essa polaridade entre clínica e
social/comunitária precisou ser analisada e repercutiu em certa vigilância frente aos meus
posicionamentos e visões, para que o processo de análise dos nossos resultados não ficasse
comprometido.
Nessa análise de trajetória, é também destacável certa retomada de interesses em
minha vinculação à correntes fenomenológico-existenciais de pensamento. Desse modo,
tenho um conjunto de interesses que me aproximam de uma visão fenomenológica da
realidade social, especialmente quando que esta reconhece os indivíduos como produtores de
sentidos e significados. Novamente, a proposição de um “estruturalismo construtivista” de
Bourdieu, veio a se mostrar congruente com a trajetória de estudos desenvolvida
concomitantemente à elaboração da tese. Foi também pertinente à tese, a adoção do
referencial de Paul Ricoeur e sua proposição de uma hermenêutica fenomenológica.
Partindo dessas reflexões e autoanálises, pudemos pensar a inserção da prática
psicológica na APS, como reflexo de disputas entre inovações e tradições, entre ortodoxia e
heterodoxia existentes nos campos em questão (Psicologia, APS e Saúde Coletiva). Os
modelos e abordagens psicológicas tendem a se reproduzir no contexto da APS, fazendo com
que as práticas se adaptem a questões colocadas especialmente pelo campo da Psicologia. Há,
no entanto, e isso ficou evidente na pesquisa de campo, certo tensionamento criado pelos
desafios do SUS, desafios que parecem ser progressivamente incorporados pelas diversas
abordagens, mas que tendem a ser respondidos a partir da interface com modelos de saúde
existentes na APS e Saúde Coletiva, a partir da proximidade entre os paradigmas e coletivos
organizados, tendendo a expressar negociações, disputas e resistências, que incidem na
direção das mudanças operadas na renovação teórica e metodológica das práticas
profissionais. As interfaces e colaborações teóricas e metodológicas existem, mas ainda
parecem incipientes para dar conta dos problemas políticos, éticos e epistemológicos, que se
26
colocam na luta concorrencial, que demarca o espaço social das práticas nos serviços de
saúde, pelas divisões desiguais de poder.
1.2 Objetivos da pesquisa e organização do texto
A presente pesquisa teve como objetivo geral interpretar a construção social da
prática profissional da Psicologia na APS do SUS, numa perspectiva de compreender da
articulação de elementos sociais do fazer profissional, a partir do ponto de vista de psicólogos
com experiências na ESF.
Para operacionalização da pesquisa, quatro objetivos específicos foram construídos:
1) Descrever o campo de práticas profissionais da APS e o lugar ocupado pelos psicólogos
nele; 2) Analisar a construção social das demandas pra prática psicológicas na APS; 3)
Compreender o modo distinto como a Psicologia intervém profissionalmente; e 4) Analisar
significados da inserção da Psicologia na APS.
Para contemplar os objetivos estabelecidos, baseamo-nos numa abordagem
qualitativa de pesquisa, em diálogo com psicólogos e psicólogas com importantes
experiências vividas na ESF, para sistematizar uma interpretação pertinente sobre as práticas
psicológicas no cotidiano dos serviços públicos de saúde. O texto que segue, apresenta a
contextualização histórica do nosso objeto de pesquisa, nossos fundamentos teórico-
metodológicos, a metodologia e os resultados. A apresentação e discussão dos resultados será
organizada em 4 capítulos, que buscam contemplar cada um dos objetivos específicos
colocados acima.
27
2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
2.1 A Construção do SUS e da Saúde Coletiva
Transformações sociais vividas do decorrer das últimas décadas, desde o último
quartel do século XX, marcadas pelos processos de globalização e re-estruturação capistalista,
acarretam uma série de mudanças em diversas esferas da organização societária, implicando
em movimentos que reinvidicam e, em menor ou maior grau, instauram processos de
renovação cultural, social e política. Nesse ínterim, vemos a consolidação de uma nova ordem
mundial, pautada na hegemonia do ideário neoliberal na estruturação burocrática e
administrativa da gestão pública, tendendo à desresponsabilização estatal frente à provisão de
bens e serviços públicos, à priorização de ações dinamizadoras da integração internacional
dos mercados e à constituição de políticas sociais básicas focalizadas nas camadas mais
pobres da população (CARVALHO, 2005; PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998).
No contexto da saúde, em nível internacional, aprofunda-se o debate sobre as
relações entre o desenvolvimento social e econômico e os processos de adoecimento, bem
como de prevenção de doenças e promoção da saúde. Como expressão desses debates, temos,
em meados da década de 70, o reconhecimento do direito universal à saúde e a discussão da
responsabilidade da sociedade e do Estado em garantir os cuidados básicos de saúde,
estabelecimento do célebre lema ‘Saúde para Todos no Ano 2000’ (PAIM; ALMEIDA
FILHO, 1998). Transições demográficas e epidemiológicas apontam para uma preocupação
cada vez maior com os problemas de saúde decorrentes da violência, as doenças crônico-
degenerativas e a necessidade de empreender ações de prevenção e promoção capazes de
influenciar, de modo efetivo, na melhoria da qualidade de vida das populações – o que
demanda a construção de políticas públicas saudáveis que transcendem o setor saúde
(CARVALHO, 2005; FERREIRA; BUSS, 2002). A saúde passa a ser problematizada no
nível epistemológico, que implica na discussão das possibilidades de produção de
conhecimentos sobre o processo saúde-doença e a delicada construção de conceitos
científicos, pretensamente universais, capazes de abarcar a complexidade dos fenômenos no
nível da experiência subjetiva da saúde e do adoecer (CAPONI, 2003; CANGUILHEM,
2011).
Todo um conjunto de mudanças, portanto, passa a tencionar o campo das políticas de
saúde influenciando uma série de movimentos de organismos internacionais sistematizando a
proposição de diretrizes para orquestrar as necessárias renovações no campo da teoria e da
28
prática em saúde. Como exemplos desses movimentos temos a realização da Conferência de
Alma Ata, em 1978, que defende os cuidados primários em saúde como via de construção dos
sistemas nacionais de saúde, os movimentos canadenses da Promoção da Saúde expressos
inicialmente no Relatório Lalonde, em 1974, como forte cunho behaviorista (CARVALHO,
2005) e ampliados a partir da proposição da Carta de Ottawa (1986), e a proposição de uma
‘Nova Saúde Pública’, em 1992, pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS), que
renova a proposta de ‘saúde para todos’ e define prioridades na pesquisa e desenvolvimento
em saúde (PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998; CARVALHO, 2005).
A construção histórica do SUS esteve intimamente ligada à luta pela democracia no
Brasil e ao surgimento e fortalecimento de novos modelos explicativos sobre a saúde, a
doença e o trabalho no setor, que buscam superar as limitações do modelo biomédico e o
liberal-privatista. Tal construção histórica tem apontado para a ampliação do conceito de
saúde, considerando as relações entre indivíduo e sociedade na compreensão e atuação sobre
o processo saúde-doença-cuidado. Segundo Andrade (2001), o nascimento da Saúde Pública
no Brasil remonta aos tempos do início da República Velha, quando se empreenderam os
primeiros passos na constituição de um “Estado Moderno” com a supremacia dos grupos
ligados à agroexportação cafeeira. Nesse período, predominam na saúde os saberes ligados à
microbiologia e bacteriologia. O autor destaca que esse período, conhecido como “sanitarismo
campanhista”, dá início à estruturação de um Sistema de Saúde no Brasil. As ações de Saúde
Pública focavam o controle de doenças, para que estas não atrapalhassem o desenvolvimento
da economia de exportação. As campanhas sanitárias direcionaram-se para o saneamento dos
espaços de circulação das mercadorias exportáveis (ANDRADE, 2001). Pustai classifica os
momentos históricos de construção da Saúde Pública no Brasil em três grandes períodos: o
modelo do sanitarismo campanhista, que compreende meados dos anos 1950; o modelo
médico-assistencial privatista, que se desenvolveu a partir dos anos 1960; e o modelo SUS
que se inaugura nos fins da década de 1980 até os tempos atuais (PUSTAI, 1996).
Campos destaca que a constituição histórica do SUS se dá pelo efeito de duas fortes
tradições: a liberal-privatista e a dos sistemas nacionais e públicos de saúde. A primeira
vincula-se a um projeto sócio-econômico-cultural neoliberal, de livre mercado e
mercantilização da saúde. E a segunda a um projeto de inspiração no socialismo e nos Estados
de Bem-Estar Social (CAMPOS, 2007). Estas duas perspectivas influenciam diretamente os
modos de se organizar a atenção à saúde no Brasil. Para Campos (2007), a análise de tais
tradições nos auxilia na compreensão do surgimento e desenvolvimento histórico do SUS, já
que expressam polaridades de um cenário político de disputas. A tradição liberal-privatista é
29
apoiada pelos prestadores de serviços privados, regido pelas leis do mercado (como ordenador
das relações sociais) e tem forte influência do modelo biomédico na organização dos serviços
de saúde. Já a outra tradição é apoiada e construída pela luta dos trabalhadores em prol de
políticas públicas universais ou do socialismo. Antes da “inauguração do SUS, a expansão do
acesso ao cuidado médico-sanitário no Brasil vinha ocorrendo sem que se invocasse qualquer
forma de socialização da atenção” (CAMPOS, 2007, p. 1868), havendo hegemonia da
racionalidade própria do modelo liberal-privado, com o Estado intermediando de forma
passiva o mercado de saúde. Instaurou-se, nesse período, uma supremacia do estímulo
econômico à produção de atos sanitários, onde os serviços eram pagos por procedimentos
realizados, com baixo poder de regulação pelo Estado e pela sociedade (ESCOREL, 1999;
CAMPOS, 2007).
A época da ditadura (1964-1986), que demarca esse período “pré-SUS”, é constituída
por um regime autoritário-burocrático marcado pelas seguintes características: constituição de
anéis burocráticos de preservação de interesses hegemônicos de minorias, que não prestavam
conta à sociedade dos gastos públicos; supressão das mediações entre Estado e sociedade;
mercantilização da saúde; campanhas sanitárias de baixo impacto e de caráter de simulação
para cuidar da Saúde Pública; carência de recursos financeiros; política econômica desigual;
opressão política; baixa oferta de serviços públicos; hegemonia da lógica de racionalização
dos serviços (ESCOREL, 1999).
Assim, as reformas do setor saúde no Brasil se desenvolveram intimamente ligadas à
luta de diversos setores da sociedade pela construção da democracia e da justiça social no
país. Dentro desse processo, as manifestações e movimentos sociais de luta contra a ditadura
foram fundamentais para a estruturação de novas agendas políticas de estruturação dos
modelos de atenção à saúde. A progressiva abertura política do período pós-ditadura
aconteceu em paralelo a um processo de ampliação das discussões sobre o conceito de saúde e
de Saúde Pública, focando a atenção para os determinantes sociais. Tais processos
repercutiram no desenvolvimento e fortalecimento de um pensamento social contra-
hegemônico em saúde no Brasil, que, inicialmente, teve pouca repercussão nos processos
decisórios, mas que progressivamente ganhou força na arena política (CAMPOS, 2007;
CARVALHO, 2005; ESCOREL, 1999; PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998).
Os referidos movimentos sociais (e políticos) atuavam em sintonia com o contexto
geopolítico, num momento histórico de crise da Saúde Pública mundial. Tal crise evidenciou-
se em meados da década de 1980 trazendo à tona reflexões de alcance internacional de crítica
ao paradigma flexneriano-biomédico em saúde e seus elementos: curativismo, biologicismo,
30
unicausalidade, mecanicismo, especialização e individualismo (CARVALHO, 2005; PAIM;
ALMEIDA FILHO, 1998; WESTPHAL; SANTOS, 1999). A ênfase na multiplicidade e
complexidade dos fatores existentes no processo saúde-doença-cuidado foi resultado desse
movimento de rupturas, que veio requisitar reestruturações nas políticas de saúde e práticas
emergentes de um novo pensamento sobre as práticas profissionais em saúde.
No plano técnico e científico das práticas de saúde, toda essa conjuntura
sociocultural de mudanças reflete-se, dentre outras questões, na reelaboração teórica e prática
operada no campo da saúde pública, no Brasil, com a criação da Saúde Coletiva como
movimento social e campo científico. Surgido na década de 1970, este movimento social e
técnico constituiu-se a partir do questionamento dos modos de organização da sociedade e de
sua influência no processo saúde-doença da população (CARVALHO, 2005). A Saúde
Coletiva, como área interdisciplinar de saberes e práticas, constitui-se como campo científico
que tem como objeto “as práticas e os saberes em saúde, referidos ao coletivo enquanto
campo estruturado de relações sociais onde a doença adquire significação” (FLEURY apud
PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998, p. 309). Na Saúde Coletiva, a saúde é concebida como
estado vital, setor de produção e campo de saber, demarcada por processos sociais, históricos,
econômicos e culturais. Os seus objetos de intervenção situam-se no âmbito das políticas, das
práticas, das técnicas e dos instrumentos (PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998). Enquanto campo
científico, a Saúde Coletiva teve sua origem vinculada aos movimentos da Medicina Social
Preventiva e Medicina Comunitária, veio se estruturando na interface entre ciências naturais e
ciências humanas e configura-se, de modo relativamente estável, em torno dos núcleos de
saberes estabelecidos pela Epidemiologia, Ciências Humanas e Sociais em Saúde e
Planejamento e Gestão de Sistemas de Saúde (BOSI; PRADO, 2011).
No Brasil, a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e a Constituição de
1988, fizeram-se a partir da aglutinação de diversos atores sociais em prol de mudanças
sociais e nas políticas de saúde, instituindo o Sistema Único de Saúde (SUS). Os princípios e
diretrizes do SUS expressam uma relativa vitória da tradição dos sistemas nacionais e
públicos de saúde frente à tradição liberal-privada que se tornara hegemônica na estruturação
das políticas sociais no período ditatorial. Segundo Campos (2007), o chamado movimento
sanitário brasileiro, além de adaptar conceitos e diretrizes da tradição socialista ao SUS, o
demarcou com características de um sistema descentralizado, com gestão participativa e
controle social e, ainda empreendeu uma crítica teórica e prática do paradigma tradicional em
Saúde Pública. Esse processo se deu “incorporando, no cotidiano, conceitos e práticas
originárias da Saúde Coletiva, da promoção, da determinação social, da reforma psiquiátrica,
31
da política de humanização, construindo uma concepção ampliada sobre a saúde e sobre o
próprio trabalho sanitário” (CAMPOS, 2007, p.1872). O resultado desses processos históricos
de disputa, que ainda permanecem, é uma configuração complexa e contraditória nos
movimentos de construção política do SUS.
Segundo Sergio Carvalho (2005), o SUS é fruto dos movimentos históricos de
diversos atores em volta dos paradigmas3 da Saúde Coletiva e da Promoção da Saúde. E, a
partir desses movimentos, o SUS é concebido como afirmação do “social” na determinação
do processo saúde-doença. O SUS, portanto, significa um avanço histórico na consolidação da
saúde como direito de todos e dever do Estado, através da conquista de um Sistema Nacional
de Saúde de acesso universal, pautado na integralidade e equidade da atenção e do cuidado.
No entanto, após a sua consolidação, enquanto arcabouço institucional, o movimento de
resistência ao SUS não parou de atuar. Segundo Campos, essas forças de resistência ao SUS
atuaram deslocando o cenário de disputa de princípios e diretrizes,
[...] para elementos programáticos de implantação do acesso universal a uma rede
‘integral’ de assistência, procurando, contudo, sempre buscar meios para atendê-los
segundo seus interesses corporativos e valores capitalistas de mercado. Resistência
permanente a cada programa, a cada projeto e cada modelo de gestão ou de atenção
sugerido segundo a tradição vocalizada pela reforma sanitária (Campos, 2007,
p.1869).
O resultado desses processos históricos de disputa, que ainda permanecem, é uma
configuração complexa e contraditória nos movimentos de construção política do SUS. Para o
mesmo autor, “em síntese: no Brasil, o concreto real resultante de toda história de conflitos é
a existência de um SUS esgarçado, de uma reforma sanitária incompleta” (CAMPOS, 2007,
p.1869).
Partindo das ideias colocadas, podemos pensar o SUS como um relativo avanço e
conquista do povo brasileiro, no plano das políticas públicas de saúde, mas que se encontra
em meio a um contexto geopolítico historicamente desfavorável:
Esse sistema é, nos dias de hoje, um espaço de resistência às políticas neoliberais.
Na contramão das tendências hegemônicas, o SUS vem logrando ampliar o seu
leque de ações e mantém-se na vanguarda das políticas sociais brasileiras no que se
refere ao caráter democrático e participativo de suas instancias. Dificuldades e
limitações à parte, representa uma conquista social que garante, por exemplo, a
assistência à saúde para mais de 70% da população brasileira (CARVALHO, 2005,
p.32).
3 Paradigma é concebido pelo autor citado como um modelo teórico-conceitual composto de crenças
compartilhadas que preparam para a ação (CARVALHO, 2005).
32
Segundo o mesmo autor (Ibid.), vários desafios são permanentemente colocados ao
desenvolvimento do SUS em tempos de neoliberalismo: visão estreita do Estado e da
condição do sujeito na sociedade; saúde entendida como mercadoria sujeita às regras do
mercado; formação de um “Estado-empresário”, “enxuto e eficaz” em cuidar da produção
econômica; crítica das políticas universalistas e redistributivas, pois retiram dinheiro que iria
para áreas de produção e desestimulariam o trabalho e a competição necessária ao mercado;
multiplicação de organizações da sociedade civil na prestação de serviços; focalização nos
grupos de risco, construindo um “pacote mínimo” de serviços essenciais para os mais pobres e
miseráveis; minimizar os direitos sociais e políticos; confundir cidadão com consumidor
(valor situado na dimensão econômica); estímulo ao consumo e à cultura individualista. Para
Campos, os desafios para a constituição do SUS ainda são grandes, segundo o autor:
[...] por meio da corrupção, do corporativismo, do clientelismo, de programas
iníquos, de vários modos, as elites têm dificultado a efetiva distribuição de renda no
país. A gestão participativa, a co-gestão do SUS, ainda é uma potência pouco
explorada, parece que a sociedade civil e os trabalhadores têm dificuldade para
ocupar este espaço de co-gestão legalmente construído [...] O SUS não parece haver
ganhado o ‘coração e mentes’ dos brasileiros, nem para desejá-lo e defendê-lo com
paixão, ou tampouco para combatê-lo com ódio (CAMPOS, 2007, p. 1873).
Pelo já visto até aqui, podemos destacar que o sistema de saúde preconizado pelo
SUS somente desenvolver-se-á a partir de uma revisão crítica dos modelos assistenciais
existentes, da avaliação das estratégias políticas adotadas, da análise da qualidade dos
serviços prestados, da ampliação dos saberes e práticas no campo saúde, e,
fundamentalmente, da articulação de diversos agentes sociais e instituições envolvidos num
projeto de desenvolvimento sociocultural amplo e complexo. Nesse contexto, a análise dos
processos sociais de construção das práticas profissionais é, em nosso entendimento,
fundamental para a redefinição dos serviços de atenção à saúde no SUS.
2.2 Estratégia Saúde da Família: priorização da atenção primária à saúde no SUS.
Dentro do conjunto de mudanças empreendidas recentemente para buscar a
efetivação do SUS, destaca-se o surgimento, em 1994, do Programa Saúde da Família (PSF)
com o objetivo inicial de atender a regiões sem ou com pouco acesso aos serviços de saúde e
de “responder a uma tendência mundial de redução de custos, de desmedicalização da
medicina e humanização dos serviços” (CAMARGO-BORGES; CARDOSO, 2005, p.27). O
processo histórico de mudanças nas práticas decorrentes da implantação do PSF levou ao
reconhecimento de sua efetividade na universalização da atenção à saúde e, de algum modo,
33
na implementação de mudanças buscadas nos movimentos de reforma sanitária no Brasil. O
PSF (programa) passou a configurar-se como Estratégia de Saúde da Família (ESF), uma
política responsável pela Atenção Primária à Saúde (APS) no SUS, com a responsabilidade de
empreender uma reestruturação no modelo de atenção (BRASIL, 1997; CAMARGO-
BORGES; CARDOSO, 2005).
A APS, no plano internacional, enquanto concepção e modelo de práxis assistencial
em saúde, está ligada à ideia de aproximar o trabalho em saúde dos lugares de moradia da
população. Assim, surgiram os conceitos precedentes de Distrito Sanitário e de Centro de
Saúde e ganharam força, nos cenários das políticas e práticas em saúde, as ideias de
fortalecimento do acolhimento nos sistema de saúde, da atenção longitudinal e da
responsabilidade sanitária de serviços comunitários e públicos organizados em torno de áreas
delimitadas geograficamente (ANDRADE; BARRETO; BEZERRA, 2006). Assim:
A Atenção Primária de Saúde é fundamentalmente assistência sanitária posta ao
alcance de todos os indivíduos e famílias da comunidade, com sua plena
participação e a um custo que a comunidade e o país possam suportar. A APS, uma
vez que constitui o núcleo do sistema nacional de saúde, faz parte do conjunto do
desenvolvimento econômico e social da comunidade (ANDRADE; BARRETO;
BEZERRA, 2006, p.784).
Andrade, Barreto e Bezerra (Idem) destacam que a APS relaciona-se com o ideário
do SUS e da ESF. Para os autores, a APS é conceituada como:
[...] o nível de um sistema de saúde que oferece a entrada no sistema para todas as
novas necessidades e problemas, fornece atenção à pessoa (não à enfermidade) no
decorrer do tempo, fornece atenção a todas as situações de saúde, exceto as
incomuns, e coordena ou integra a atenção fornecida em algum outro lugar ou por
terceiros. É o tipo de atenção à saúde que organiza e racionaliza o uso de todos os
recursos, tanto básicos como especializados, direcionados para a promoção,
manutenção e melhora da saúde. Em resumo, pode ser compreendida como uma
tendência, relativamente recente, de se inverter a priorização das ações de saúde, de
uma abordagem curativa, desintegrada e centrada no papel hegemônico do médico
para uma abordagem preventiva e promocional, integrada com outros profissionais
de saúde (ANDRADE; BARRETO; BEZERRA, 2006, p.786).
Percebe-se que a proposição da APS é bastante ambiciosa no que diz respeito a
empreender uma transformação dos modelos de atenção vigentes no Brasil, especialmente na
quebra da hegemonia do modelo biomédico e privatista de organização das práticas em saúde.
A ESF é conceituada dentro da perspectiva da APS e do SUS. Argumenta-se, portanto, que a
ESF apresenta-se como uma expressão dos movimentos de mudança em saúde, dentro da
perspectiva peculiar das políticas públicas de saúde brasileiras (ANDRADE; BARRETO;
BEZERRA, 2006; GIOVANELLA; MENDONÇA, 2008).
34
A Estratégia de Saúde da Família é considerada um modelo de APS focado na
unidade familiar e construído operacionalmente na esfera comunitária. Então, por
definição, pode-se considerar a experiência brasileira de ESF como um modelo
coletivo de atenção primária, com a peculiaridade de ser construído no âmbito de
um sistema de saúde público e universal (ANDRADE; BARRETO; BEZERRA,
2006, p.803).
A ESF situa-se, portanto, na perspectiva da APS, das políticas universais de saúde e é
entendida como mecanismo de reorientação do sistema de saúde, sendo: porta de entrada,
responsabilização institucional e sanitária no processo de cuidado com a saúde articulado a
toda rede de serviços. Outros aspectos são fundamentais para entender a especificidade do
desenvolvimento das práticas em saúde na ESF, como sua busca pela aproximação entre
atenção à saúde e participação comunitária (NEPOMUCENO, 2009).
A ESF, em suas normativas, estrutura-se como atenção primária do SUS,
intencionalmente direcionada para re-orientação do modelo assistencial vigente, incorporando
as características levantadas pelos autores citados e articulando-se com os valores subjacentes,
os princípios e diretrizes do SUS. Os princípios da ESF são: o caráter substitutivo frente às
práticas tradicionais, onde não focaliza apenas o tratamento de doenças e sim, também as
ações de prevenção e promoção da saúde, garantindo a resolubilidade da assistência; a
integralidade e intersetorialidade, onde é preconizada a assistência integral às necessidades
de saúde da população, o que requer uma articulação com outros setores sociais na busca pela
complementaridade das ações; territorialização, onde o trabalho se organiza localmente com
base nas características epidemiológicas e socioculturais da população adstrita; equipe
multiprofissional, partindo da premissa que é necessária a interação e integração de saberes e
fazeres no trabalho; responsabilização e vínculo, que remete a um compromisso da equipe em
oferecer atenção humanizada à população local; e estímulo à participação da comunidade e
ao controle social (BRASIL, 2005, p.16-17).
Já os campos de atuação preconizados para a ESF são: a promoção da saúde, a
prevenção de doenças e agravos, a assistência, o tratamento e a reabilitação (BRASIL, 2005,
p.18-19). A ESF visa a estruturação de equipes em território, composto aproximadamente de
600 a 1000 famílias. A equipe mínima é composta por médicos, enfermeiros, auxiliares de
enfermagem, agentes comunitários de saúde, dentista, atendente de consultório dentário e
técnicos de higiene dental. Esses profissionais estruturam suas ações em território específico4,
com uma população adstrita moradora desse território complexo, o qual é composto de ampla
4 É importante destacar que, geralmente, aglutina-se mais de uma equipe mínima nos Centros de Saúde da
Família para efetivar a cobertura da totalidade da população de uma comunidade (território).
35
rede de relações de elementos ecológicos, sociais, culturais, históricos e econômicos, que
devem ser considerados na construção e efetivação do plano de ação.
Pelo já apresentado, a ESF pode tornar-se um dispositivo instigador de mudanças,
dentre elas, a ampliação da responsabilização sanitária e institucional no processo de
produção do cuidado em saúde em contextos locais, influenciando diretamente nos modos de
pensar e atuar dos profissionais inseridos. É notável também, que a APS não pode representar
a totalidade de um sistema de saúde, que se pretende universal e integral, pois os serviços dos
outros níveis de atenção são fundamentais para a incorporação de tais princípios. No entanto,
colocando-nos, no contexto atual de desenvolvimento do SUS, a ESF se configura,
potencialmente, como estratégia política viabilizadora de práticas condizentes com o ideário
das reformas sanitárias e Saúde Coletiva. Nesse sentido, entendemos ser possível que a ESF
apresente-se como força propulsora de mudanças nos modelos de atenção à saúde no Brasil.
No entanto, é preciso uma análise crítica de suas atuais configurações cotidianas. É claro, no
mínimo, que a priorização desta política pública de saúde, na realidade brasileira, tem
colocado em pauta a formação dos profissionais de saúde e a produção acadêmica no campo
da Saúde Coletiva, que se vêm às voltas com questões advindas dos contextos de prática
atualmente abertos.
Na intenção política de priorizar a APS no SUS e “ampliar a integralidade e
resolubilidade das ações” na atenção à saúde para a população brasileira, pelo fortalecimento
da ESF, foi publicada no dia 04 de julho de 2005 a portaria nº 1065/GM, que criou os Núcleos
de Atenção Integral na Saúde da Família (NAISF). Os NAISF se propunham a incluir novos
profissionais na ESF visando ampliar a abrangência e melhorar a qualidade das ações. As
modalidades de ação eram: atividade física, saúde mental, reabilitação, alimentação e nutrição
e serviço social. A integração dessas equipes multiprofissionais de NAISF - compostas por
psicólogos, nutricionistas, assistentes sociais, fisioterapeutas, educadores físicos, terapeutas
ocupacionais, fonoaudiólogos e psiquiatras – tinha a intenção de fomentar o
compartilhamento de saberes na construção de práticas em saúde frente a problemas
identificados nos territórios (BRASIL, 2005b). Apesar de a portaria referida ser revogada no
dia seguinte, por motivos políticos desconhecidos, e adiada a efetivação dessa política para
todo o Brasil, o município de Sobral adotou as estratégias e diretrizes dos NAISF para
organizar o trabalho da 5ª turma de RMSF nos territórios de saúde do município (VÉRAS et
al., 2007). Como dito anteriormente, participar dessa experiência, de ser psicólogo-residente,
gerou vários questionamentos e reflexões sobre os avanços e desafios para lograr os objetivos
pretendidos pelos NAISF. Dentre os desafios, destaco aqui sinteticamente: as dificuldades
36
referentes à abrangência dos territórios a serem cobertos pelas equipes multiprofissionais de
NAISF, que dificultava a construção de vínculos e da co-responsabilidade nas ações; as
dificuldades de compartilhar os saberes em equipes multiprofissionais pela cultura
corporativista que influencia o desenvolvimento das práticas; o baixo conhecimento das
diversas categorias profissionais sobre ESF, SUS e Saúde Coletiva; e a indefinição das
especificidades profissionais para atuar na ESF. Dentre os avanços, destaco: a inclusão de
novos atores sociais, com seus saberes estruturados e posições epistemológicas diferenciadas,
para pensar e atuar no processo saúde-doença-cuidado; o surgimento de novos dispositivos de
cuidado, de novas práticas; e o aumento da resolubilidade da ESF frente algumas
necessidades de saúde da população sobralense.
Reafirmando esse movimento de valorização da APS, agora de forma mais
permanente, publica-se, em 24 de janeiro de 2008, a portaria 154 (republicada em 4 de março
de 2008) que institui a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Com
objetivos semelhantes ao NAISF, os NASF também se propõem a ampliar a abrangência das
ações da ESF, aumentando o leque de serviços aos usuários e o escopo das ações, bem como
deflagrar processos de compartilhamento de saberes e práticas entre diversas profissões no
âmbito da APS do SUS. Os profissionais que podem compor o NASF, que inclui
especialidades médicas não existentes nos NAISF, são: médico acupunturista; assistente
social; profissional da educação física; farmacêutico; fisioterapeuta; fonoaudiólogo; médico
ginecologista; médico homeopata; nutricionista; médico pediatra; psicólogo; médico
psiquiatra; e terapeuta ocupacional. Há três variações nas possibilidades de implementação
dessas equipes (NASF 1, NASF 2 e NASF 3), que obedecem a critérios populacionais e que
diferem em área de abrangência e composição da equipe multiprofissional. Destaca-se que o
NASF 3 atende às características dos anteriores, mas com a priorização de ações voltadas para
usuários de crack, álcool e outras drogas (BRASIL, 2010). As áreas estratégicas de ação dos
NASF são: práticas integrativas e complementares; reabilitação; alimentação e nutrição; saúde
mental; serviço social; saúde da criança; saúde da mulher; e assistência farmacêutica. Para
cada área estratégica de atuação, se preconiza que um profissional fique como referência
(BRASIL, 2008). A Psicologia, cuja prática profissional é objeto de estudos da presente tese,
esta colocada como profissão de referência para a área de saúde mental.
O NASF tem se tornado objeto de discussões, que buscam avaliar experiências e
construir estratégias para atuação, nos espaços de gestão, atenção, formação e controle social
do SUS. No contexto da psicologia, dentre os vários movimentos de agentes e instituições
voltados para compreender e analisar o campo da ESF, o Conselho Federal de Psicologia, ao
37
se debruçar sobre a inserção recente da Psicologia nos NASF, vem promovendo discussões
sobre a prática da psicologia e o NASF (Conselho Federal de Psicologia, 2009).
Recentemente, dois livros pautados em pesquisas nacionais abordaram, de modo significativo,
a inserção profissional do psicólogo na ESF, a saber, Psicologia em diálogo com o SUS
(SPINK, 2010) e Práticas Profissionais de Psicólogos e Psicólogas na Atenção Básica à
Saúde (Conselho Federal de Psicologia, 2010). O caráter recente desse processo vem
impulsionando os necessários estudos sobre as configurações emergentes das interfaces
Psicologia e SUS, Psicologia e ESF, Psicologia e Saúde Coletiva. As diversas categorias
profissionais e diversas disciplinas científicas envolvidas se vêm imersas nesse cenário
propulsor de novos temas e questões instigantes.
No que diz respeito ao campo da formação em saúde para o SUS, é notável o papel
ocupado pelas experiências de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS). O marco
histórico de origem dessas iniciativas, no Brasil, foi se deu na transformação do Programa de
Residência de Medicina Comunitária da Unidade Sanitária São José Murialdo, no Rio Grande
do Sul, em 1978, em Residência Multiprofissional (Brasil, 2006). Tais experiências tomaram
corpo, principalmente em meados de 1999, numa articulação de alguns atores sociais oriundos
do Movimento Sanitário com o Ministério da Saúde, motivados pela excelência reconhecida
como “padrão ouro” de alguns dos modelos de formação em serviço já experimentados,
principalmente pela medicina, que estabeleceram diretrizes iniciais para os modelos de RMS,
incluindo reflexões sobre financiamento, credenciamento, validação e certificação. As RMS
expressam um movimento de resistência à hegemonia do paradigma da biomedicina e da ação
política do complexo médico-industrial no campo da formação em saúde, o que tem gerado
incômodo e polêmica entre os atores envolvidos no campo da formação em saúde
(DALLEGRAVE; KRUSE, 2008). É notável o potencial que tais experiências têm de
expressar o caráter contraditório do desenvolvimento do SUS, expresso pelas disputas
políticas que entram em cena no cotidiano das práticas em saúde. Aqui, as diversas categorias
profissionais são colocadas, em certa medida, num movimento de questionamento da
especialização, da fragmentação do conhecimento e do biologicismo imperante no setor
saúde, que advoga em favor da integralidade do cuidado, da ação intersetorial e da
interdisciplinaridade. “A intrínseca característica da interdisciplinaridade confere caráter
inovador aos programas de RMS” (BRASIL, 2006, p.13). Nesse ínterim, em 2005, a lei
11.129 criou a Residência em Área Profissional da Saúde e instituiu a Comissão Nacional de
Residência Multiprofissional em Saúde, entidade responsável para aglutinar os representantes
legais oriundos do Ministério da Saúde e da Educação, das Instituições de Ensino, entidades
38
de classe e controle social, autorizados a acompanhar, avaliar, credenciar e certificar os
referidos programas. Ademais das controvérsias, contradições e opiniões contrárias, que a
RMS vem despertando (DALLEGRAVE; KRUSE, 2008), advindas desse lugar de crítica e
contra-hegemonia que alguns de seus atores vem buscando ocupar, é destacável o caráter
inovador de muitas das iniciativas proporcionadas nesse lócus de formação e produção de
conhecimentos. Uma das áreas destinadas como foco de programas de RMS é a ESF.
Na presente pesquisa, reconhecemos o potencial transformador e criativo ensejado
pela ESF, no que diz respeito à produção de práticas de saúde mais efetivas na busca por
viabilizar uma melhoria da atenção à saúde no Brasil. Entendemos, no entanto, que muitos são
os obstáculos para efetivar algumas das mudanças buscadas e que é preciso aprofundar o
estudo sobre o cotidiano das práticas na ESF, para melhor compreender o desafio colocado
para a efetivação dos princípios do SUS. Nesse contexto, buscamos entender o processo de
produção das práticas psicológicas no contexto da APS dos SUS, como reflexo de lutas para
definir e configurar esse novo espaço de práticas. A partir da analise e compreensão de
experiências e percepções de psicólogos nesse espaço de práticas, construímos uma
interpretação sobre o complexo processo de construção social das práticas da Psicologia na
APS do SUS.
Entendemos que o desenvolvimento histórico da ESF reflete-se na constituição de
cenários diversos e, muitas vezes homólogos, onde os profissionais psicólogos participam da
construção de uma nova etapa da relação com o SUS, com a sociedade brasileira e com o
campo da Saúde Coletiva. Para dimensionarmos as nuanças desse encontro entre a Psicologia
e a ESF, cabe questionar o modo como historicamente essa profissão se coloca no campo das
políticas públicas de saúde, quais suas contribuições para a satisfação das necessidades de
saúde da população, quais dilemas enfrentados no cotidiano dos serviços de saúde e quais
perspectivas teóricas, práticas e éticas se abrem no desenvolvimento da prática psicológica no
espaço da atenção à saúde no SUS.
2.3 A Psicologia nas políticas públicas de saúde
É possível afirmar que a Psicologia teve uma atuação incipiente e limitada nas
políticas públicas de saúde no Brasil. Tal afirmativa se ancora na produção científica sobre o
tema (BENEVIDES, 2002; 2005; CAMARGO-BORGES; CARDOSO, 2005; DIMENSTEIN,
1998; 2001; 2003; OLIVEIRA et al., 2005; SPINK, 2003; TRAVERSO-YÉPEZ, 2001;
YAMAMOTO, 2009) e pelo entendimento de que as contribuições da Psicologia para o
39
desenvolvimento do campo saúde são diversas e relevantes. A própria trajetória histórica da
Saúde Pública, de progressiva aproximação a um conceito ampliado de saúde, vem requerer a
construção de uma práxis sanitária necessariamente interdisciplinar, onde os elementos
psicológicos tornaram-se fundamentais.
A Psicologia é uma profissão recente e que tem uma trajetória histórica na sociedade
brasileira fortemente marcada por compromissos com as elites e com a manutenção do status
quo (ANTUNES, 2007; BOCK, 2009; DIMENSTEIN, 2001; YAMAMOTO, 2009). Assim, a
ênfase das atividades deste profissional, geralmente, caracterizou-se pelo “trabalho autônomo,
clínico, individual, curativo e voltado para uma clientela financeiramente privilegiada no
acesso” (CAMARGO-BORGES; CARDOSO, 2005, p.28). A Psicologia constrói, nesse
contexto, um histórico de atuação limitada perpassado pela divisão corpo-mente, pelo
isolamento, pela focalização no “mental” e pela reprodução descontextualizada da atividade
clínica individual (TRAVERSO-YÉPEZ, 2001, p. 51). Atuando hegemonicamente nessa
perspectiva, o fazer dos psicólogos veio a contribuir mais para a manutenção do modelo
biomédico do que para sua transformação. Tais trabalhos se deram, geralmente, reproduzindo
práticas “com enfoque no tratamento de fenômenos da esfera psíquica ou mental sem
necessidade de compreendê-los a partir de suas multideterminações, ou seja, sem considerar o
contexto social, econômico e político no qual o indivíduo está imerso” (CAMARGO-
BORGES; CARDOSO, 2005, p. 28). Esse fazer limitado se deu, dentre outras razões, pela
reprodução de modelos teórico-metodológicos de forma descontextualizada, pela utilização de
concepções abstratas de sujeito e de subjetividade, onde se operam dissociações entre o
individuo e o social, subjetividade e objetividade, entre singular e coletivo (BENEVIDES,
2002; 2005; BOCK, 2003; DIMENSTEIN, 1998; 2001; 2003; OLIVEIRA et al.; 2005).
Na reconfiguração histórica que vem sendo empreendida no setor saúde, novos
espaços são criados (como o NASF e Residências Multiprofissionais) de modo que se
possibilita uma participação diferenciada dos psicólogos nos sistemas de saúde. Nesse
processo, o profissional psicólogo se vê diante de certo “despreparo histórico” da categoria
para desenvolver um trabalho em sintonia com os imperativos de mudança. Em particular, na
realidade brasileira, um modelo de formação limitado ainda apresenta-se como desafio para o
avanço das práticas “psis”. Tal modelo de formação caracteriza-se pela centralização
excessiva na atividade clínica tradicional e na prática psicoterapêutica de longa duração, ainda
apresentando restrições na abordagem formativas das inovações requisitadas para o campo da
Saúde Coletiva (DIMENSTEIN, 2003; TRAVERSO-YÉPEZ, 2001). Diante desta realidade,
diversas iniciativas de modificação de projetos político-pedagógicos vêm sendo empreendidas
40
nos cursos de graduação em Psicologia para tentar suprir as lacunas existentes, como foi o
caso dos cursos de Psicologia da UFC.
Regina Benevides (2005), ao discutir a relação entre a Psicologia e o SUS, destaca a
existência de cenário de disputa no campo saúde, em tempos de capitalismo neoliberal, que
requer um posicionamento ético-político por parte dos psicólogos. A partir de sua experiência
de atuação no Ministério da Saúde, a autora ressalta a necessária luta contra a fragmentação
de processos de trabalho, a desarticulação de projetos, programas e secretarias, bem como a
separação entre os regimes de atenção e gestão da saúde. A autora lamenta a pouca produção
no campo da Psicologia sobre Saúde Pública e critica os modos de intervenção psicológicos
que se restringem à clínica individual e privada, bem como os que não apresentam
proposições efetivas na superação da dicotomia indivíduo-sociedade. Ao pensar os caminhos
e horizontes de aprimoramento da inserção da Psicologia no SUS, Regina Benevides (2005)
defende que a atuação do psicólogo deve sintonizar-se, num nível macro-político, com os
princípios e diretrizes do SUS e, num nível micro político, com processos de construção de
subjetividades dos vários atores envolvidos no trabalho em saúde. A mesma autora critica a
naturalidade com que, muitas vezes, se coloca a Psicologia longe dos domínios da política,
como se subjetividade e política não tivessem uma necessária ligação.
Duas realidades (interna/externa) em constante articulação, mas sempre duas
realidades dadas a serem olhadas com seus específicos instrumentos de análise. Esta
operação não se faz sem conseqüências e uma delas tem sido, justamente, a de
manter em dois registros separados: o sujeito/indivíduo e o social, o desejo e a
política (BENEVIDES, 2005, p.22).
Benevides combate a ideia de que o desejo é da ordem do individual e a política da
ordem do coletivo. Este tipo de análise opera uma despolitização das questões subjetivas, uma
despolitização que acaba por separar a micro da macro-política.
[...] é a partir da fundação da Psicologia nestas dicotomias que o individual se
separou do social, que a clínica se separou da política, que o cuidado com a saúde
das pessoas se separou do cuidado com a saúde das populações, que a clínica se
separou da saúde coletiva, que a psicologia se colocou à margem de um debate
sobre o SUS (BENEVIDES, 2005, p.22).
Magda Dimenstein (2001), ao discutir o componente do compromisso social de
psicólogos na Saúde Coletiva, nos faz pensar no sentido das mudanças a serem empreendidas.
Para ela, trata-se não só da mudança no perfil de um profissional, mas da
construção/formação de agentes de mudança, a partir de um compromisso social perante o
ideário do SUS e seus usuários. Partilhando com as ideias da autora, enfatizamos a
necessidade de um questionamento crítico da prática profissional do psicólogo, nas equipes
41
em saúde, no que diz respeito à sua relevância para o “pensar” e o “fazer” em saúde, quanto
as suas contribuições específicas para a consolidação e melhoria da qualidade do SUS.
Para Dimenstein, “é preciso uma reconstrução da subjetividade dos trabalhadores do
campo da saúde, bem como alterar a cultura hegemônica” (2001, p.58) nas instituições do
setor. A autora discute que as modalidades de trabalho caracterizadas pela burocracia,
alienação e “mecanização” vêm gerando distanciamentos dos trabalhadores entre si e com os
usuários dos serviços de saúde. Os psicólogos, nesse processo, precisam desenvolver uma
nova concepção de prática profissional associada à ação de “cidadanização”. Pelo já dito até
aqui, fica patente que, para o fortalecimento do SUS na perspectiva da Saúde Coletiva,
precisamos de profissionais de saúde que, como agentes de mudança, sejam capazes de
resgatar a historia de vida dos usuários, indo além da sintomatologia e do diagnóstico,
gerando reflexões que articulem e problematizem os determinantes sociais e desenvolvam
estratégias de cuidado capazes de modificar a realidade dos usuários na melhoria da qualidade
de vida e transformação das condições sociais desfavoráveis à promoção da saúde. Estamos
diante, portanto, de um enorme desafio colocado à Psicologia e aos psicólogos.
A Psicologia não pode ficar “míope” frente à realidade social em que os usuários do
SUS estão inseridos (DIMENSTEIN, 2001), sob o perigo de desenvolver uma prática
ideológica de “psicologismo” dos problemas sociais e esconder as relações de opressão e
exploração, que estão na base de problemas psicológicos/de saúde (MARTÍN-BARÓ, 1998).
A discussão sobre os saberes e práticas da Psicologia na Saúde Coletiva, a partir dos cenários
do SUS, deve levar em consideração as críticas que se operam na separação entre clínica e
política, colocando esta cisão como empecilho para o desenvolvimento da Psicologia no
campo (BENEVIDES, 2005). O debate sobre a inserção da Psicologia no SUS é permeado
por alguns princípios éticos destacados, como: a inseparabilidade, a autonomia e co-
responsabilidade e a transversalidade. A inseparabilidade entre a Psicologia e a Política, entre
o individual e o coletivo, entre a clínica e o social ocorre efetivamente, pois “os processos de
subjetivação se dão num plano coletivo, plano de multiplicidades, plano público”
(BENEVIDES, 2005, p.23). O princípio da autonomia e co-responsabilidade remete a
conceber que todos são responsáveis e protagonistas no mundo e assim devem se
comprometer com os caminhos que damos às nossas vidas. O princípio da tranversalidade
fala da necessidade de uma inter-relacão da Psicologia com outros saberes na Saúde Coletiva.
Concordamos com Benevides quanto à necessária integração entre clínica e política,
da necessária compreensão e reforçamento da dimensão social da clínica. No entanto,
acreditamos que a indissociabilidade da qual a autora fala deve ser tomada criticamente,
42
questionando a acomodação dos profissionais psicólogos dentro de um modelo clínico
hegemônico curativista e individualista, com implicações políticas questionáveis. A
reprodução dos modelos de atuação precisa ser questionada nos planos éticos e científicos,
indagando sobre a pertinência das práticas aos contextos socioculturais dos serviços públicos
de saúde. Dentro do contexto atual, da necessária emergência de novas práticas,
compreendemos a impossibilidade de separação entre clínica e social, pois sabemos o valor
político e social da intervenção clínica. Entendemos, nesse mesmo contexto, que a psicologia
precisa aprimorar seu fazer profissional no âmbito da atuação social, que se diferencia do
trabalho mais especificamente clínico e, ao mesmo tempo, não deve ser separado deste
(NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011).
Carvalho, Bosi e Freire (2009) analisam atuações da Psicologia no campo da Saúde
Coletiva, enfatizando limites e pontencialdades das ações que começam a emergir nessa
interface. Os autores destacam que as relevantes interfaces entre Psicologia e Saúde Coletiva,
advêm de um posicionamento ético-político.
Em suma, o que se reitera é a necessidade de o psicólogo se assumir como um
sujeito ético-político que busca constantemente refletir sobre seu modo de estar a
serviço do outro, sobre as relações construídas em seu entorno e sobre a criação de
espaços de diálogo e de revisão das práticas de saúde, em especial aquelas mantidas
e reproduzidas no espaço público (CARVALHO; BOSI; FREIRE, 2009, p. 72).
Esse defrontar-se com a realidade das demandas do campo da saúde, especialmente
na ESF, coloca a Psicologia diante de necessárias revisões dos modelos de prática. Esse
processo de inserção da profissão no contexto da APS do SUS, evidencia um conjunto de
lutas simbólicas dos agentes e instituições interessados na construção das práticas
psicológicas. Esse processo é prenhe de interlocuções entre diversas perspectivas
epistemológicas, resultando em renovações e ancoragens aonde determinadas tradições
teóricas e metodológicas vem se afirmando historicamente. No contexto da presente pesquisa,
interessa-nos a análise das percepções dos profissionais, sobre o processo de construção
dessas práticas na ESF. Tais percepções nos permitem refletir sobre posições e
posicionamentos da categoria, dentro do contexto dos modelos de prática em saúde, frente aos
dilemas cotidianos dos serviços de saúde no SUS.
43
2.3.1 Psicologia na Atenção Primária à Saúde do SUS
No que tange as ações da Psicologia na ESF, estamos participando do desenrolar de
uma breve, porém rica história cheia de possibilidades e avanços. Para Camargo-Borges e
Cardoso, a ESF requer uma conduta profissional mais coletiva do que individual. E a
Psicologia, nesse contexto, “dispõe de ferramentas que poderão ser úteis para a construção de
um modelo mais integrado e holístico de atenção à saúde” (CAMARGO-BORGES;
CARDOSO, 2005, p.28).
Moreno et al (2004), a partir da experiência de desenvolvimento do Programa de
Residência Multiprofissional em Saúde da Família iniciada em 2001, em Sobral,
estabeleceram como prioridades para a Psicologia na ESF: buscar contribuir para uma
dinâmica familiar saudável; facilitar sistemas democráticos nas organizações que se integram
no território de saúde; fortalecer a autonomia e co-responsabilidade comunitária; e mobilizar
sujeitos promotores da saúde. Veremos que essas prioridades são pertinentes à ESF, mas a
adesão a elas é resultado de processos sociais permeados por disputas simbólicas.
Para Camargo-Borges e Cardoso, a Psicologia traz contribuições importantes para a
ESF, pois tem expertise nos estudos sobre relações humanas, interações e afetos, podendo
contribuir para a construção dessa estratégia do SUS, já que esta vem tentando se pautar por
práticas mais relacionais, onde se valorizam o vínculo e os laços de compromisso
(CAMARGO-BORGES; CARDOSO, 2005, p.31). Em trabalhos anteriores, questionamos as
contribuições que a Psicologia traz para o avanço da ESF, no plano da intervenção social. Os
resultados apontaram que os psicólogos vêm se movimentando no sentido de desenvolver
atividades que vão além da clínica individual e do tratamento de psicopatologias, buscando
dar resposta aos imperativos de ampliação do olhar para o processo saúde-doença-cuidado e
de atuar no fortalecimento do desenvolvimento humano e comunitário no campo da Saúde
Coletiva. Destacamos a necessidade de ampliação do papel historicamente ocupado pela
Psicologia no setor saúde, especialmente, no âmbito da intervenção social como possibilidade
para o aprimoramento da inserção dos psicólogos na ESF. O estudo aponta também que muito
se tem que avançar para a consolidação da ESF como modelo inovador das práticas de saúde.
Ficou exposta a necessidade de se aprofundar os estudos psicológicos no campo saúde,
principalmente, no que concerne ao trabalho social e comunitário (NEPOMUCENO, 2007;
NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011).
Em outro trabalho (Conselho Federal de Psicologia, 2009), a partir das experiências
em RMSF investigadas no estudo citado e da análise da experiência vivida na ESF, em
44
Sobral, expusemos uma diversidade de atividades desenvolvidas pelos psicólogos na ESF.
Vejamos as ações já realizadas por psicólogos nesse cenário:
Ações de territorialização e planejamento local de saúde
Ações de Acolhimento e Humanização dos serviços de saúde
Visitas domiciliares
Ações de suporte à saúde mental (atendimento individual/ambulatorial, atendimento
de casal e famílias, grupos terapêuticos, triagem, grupos de crescimento pessoal,
participação nos processos organização dos serviços ofertados e organização da
demanda)
Atividades nas escolas
Atuação/facilitação em grupos da ESF (gestantes, hipertensos, diabéticos, idosos,
adolescentes, crianças, hanseníase e outros)
Participação nos espaços de formação interdisciplinar e de categoria profissional
Facilitação de processos de educação permanente junto às Equipes de Saúde da
Família e demais profissionais do território, facilitando a disseminação de
conhecimentos próprios da Psicologia para o campo interdisciplinar
Atuação junto a rodas e ou reuniões das equipes multiprofissionais, potencializando
os processos grupais
Ações comunitárias e de articulação de redes sociais
Consultoria social e organizacional a projetos sociais e instituições dos territórios
Outras ações de fomento à participação e controle social, como atuação junto a
conselhos de saúde e associações de moradores. (CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA, 2009).
No referido trabalho, concluímos que “nosso momento histórico revela ainda uma
baixa apropriação das políticas públicas de saúde, pouca consistência teórica, metodológica e
epistemológica para a atuação no novo paradigma de saúde, principalmente, no que tange ao
campo da intervenção social” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009, p.59).
Percebemos que atualmente, as discussões sobre a Psicologia na ESF tem se ampliado e tem
consolidado um conjunto de críticas aos modelos tradicionais de atuação, hegemonicamente
centrados numa clínica reducionista e individualista (NEPOMUCENO, BRANDÃO, 2011).
Macedo e Dimenstein (2011) discutem o processo de expansão e interiorização da
Psicologia, especialmente como decorrência da ampliação de espaços abertos pelas políticas
sociais e, bem como pela expansão dos cursos de formação em psicologia nas últimas
décadas. O deslocamento de profissionais em cidades de médio e pequeno porte e sua
ampliada participação nas políticas de saúde e assistência social é problematizada no sentido
de indagar sobre os modelos de prática e posicionamentos da profissão frente aos problemas
sociais vividos na esfera municipal. A expansão dos espaços de prática para a psicologia é
analisada pelos autores:
Foram as articulações junto aos movimentos sociais e demais setores da sociedade
civil organizada, bem como as negociações com o Estado brasileiro, que
fortaleceram a presença da Psicologia no campo das políticas públicas, garantindo
assim a sustentabilidade da profissão através da ampliação de suas possibilidades de
45
inserção no mercado profissional. [...] Isso diversificou, sobremaneira, tanto os
domínios clássicos de atuação desse profissional, até então voltados maciçamente
para o consultório privado e, em menor número, para a prestação de serviços na
esfera da educação e da educação especial e para empresas ligadas à administração
pública ou ao setor privado nos mais variados ramos da indústria, do comércio e de
serviços; quanto as localidades de atuação dos psicólogos, de forma a não mais
restringir a profissão apenas às capitais e aos grandes centros urbanos, mas,
sobretudo, às cidades de médio e pequeno [...]Foi esse um movimento, portanto, de
duplo reposicionamento da profissão no País, que evitou, assim, o seu colapso em
função do crescimento significativo do número de psicólogos a cada ano, o que
resultaria, em um futuro próximo, na saturação do seu mercado profissional.
(MACEDO; DIMENSTEIN, 2011, p.299).
As políticas e programas sociais (como a ESF, os Centros de Atenção Psicossocial,
os CREAS etc) são responsáveis pela expansão dos espaços de prática da psicologia e pela
interiorização da psicologia no Brasil, onde há uma maior participação de psicólogos nos
municípios de médio e pequeno porte. Diante desse contexto, concordamos com Macedo e
Dimenstein (2011), que a psicologia enfrenta desafios colocados pela realidade dos
municípios, e que expõe os limites das práticas psicológicas tradicionais. Os problemas
socioeconômicos e políticos dos municípios brasileiros constituem uma realidade a qual a
psicologia se vê pouco instrumentalizada para atuar. Nesse âmbito, a psicologia precisa se
questionar diante de novas conjunturas de reorganização de saberes e poderes na relação com
a sociedade brasileira. Assim, é preciso se posicionar frente a uma “permanente ação
reatualizadora do clássico modelo individualizante/privatizante que deu visibilidade à
Psicologia como profissão e que disseminou profundamente nossa identidade e nossa cultura
profissional para vários estratos da sociedade brasileira na atualidade” (MACEDO;
DIMENSTEIN, 2011, p.302).
Os mesmos autores, em estudo sobre o trabalho de psicólogos nas políticas sociais no
Brasil, problematizam os modos de atuar da psicologia no cotidiano de políticas de atenção
básica em saúde e na assistência social (MACEDO; DIMENSTEIN, 2012). Os dilemas
vividos por psicólogos nesses espaços, especialmente no que tange à precariedade das
condições de trabalho e as limitações dos modelos de prática vigentes na psicologia, nos
permitem destacar a importância da discussão do papel social da psicologia e da necessidade
de reformular as bases técnicas e conceituais para a atuação nas políticas sociais. Macedo e
Dimenstein (2012) destacam a precarização das condições de trabalho nas políticas sociais
brasileiras como geradoras de insatisfações permanentes aos profissionais psicólogos. Nesse
contexto, os profissionais convivem com fragilidades nos vínculos empregatícios, baixa
remuneração, estruturas insuficientes para a realização dos atendimentos, falta de material
para o trabalho, problemas de transporte para realização de visitas domiciliar e precariedade
46
da rede de serviços para dar o suporte necessário aos encaminhamentos. As condições
precárias de trabalho corroboram para o desprestígio desses espaços como campos de
trabalho. Dentre as questões apontadas por Macedo e Dimenstein (2012), destacamos que as
experiências de psicólogos nas políticas sociais têm proporcionado situações de
problematização cotidiana das práticas profissionais pela aproximação com a realidade da
população assistida nessas políticas. O encontro dos psicólogos com a dura realidade dos
problemas sociais é marcado por inseguranças e desconfortos, colocando os profissionais em
permanentes tensões e sensações de impotência, no lidar com a magnitude dos desafios aos
quais estão expostos. Evidencia-se, nesse contexto a necessidade de se construir uma atuação
profissional do psicólogo diferenciada dos modelos tradicionais de atuação voltada para
questões coletivas e posicionamentos políticos diante das condições sociais e relações de
força instituídas nesses espaços de prática.
Como vimos, os cenários da ESF configuram-se de forma complexa em terrenos
férteis para investigações, onde podem ser feitas diversas pontes, interlocuções e
sistematizações para discutir as práticas constituídas na interface entre Psicologia e Saúde
Coletiva. Fica patente a necessidade de compreender a participação dessa categoria
profissional no processo de trabalho em saúde, quais as práticas desenvolvidas, quais desafios
são enfrentados pelos psicólogos inseridos na ESF, como os atores sociais implicados vêm
atribuindo sentidos e significados às experiências vividas, como elaboram respostas teóricas
para os desafios do cotidiano de práticas e qual a posição epistemológica que a Psicologia
vem ocupando nesse entrelaçamento com o campo interdisciplinar da Saúde Coletiva.
2.4 Apontamentos sobre os sentidos históricos das práticas psicológicas no Brasil
Segundo Pereira e Pereira Neto (2003), o processo de consolidação da psicologia no
Brasil pode ser dividido em três períodos: o período pré-profissional (1833-1890): onde temos
a circulação de ideias psicológicas no período colonial; o período da profissionalização
propriamente dita (1890/1906-1975), onde temos a constituição de um mercado de trabalho
para os psicólogos; e o período profissional (1975 até os dias atuais), onde há a expansão da
profissão.
O período pré-profissional é marcado pela produção das ideias psicológicas no Brasil
e é bastante influenciada por um conjunto de instituições que se construíram após a chegada
da família real (1808) e a oficialização da independência frente à metrópole Portugal (1822).
No que diz respeito ao período colonial, as ideias psicológicas aparecem associadas ao
47
empreendimento colonizador, subsidiando a constituição de estratégias de dominação social
como, por exemplo: a preocupação com a educação dos índios e a aculturação, a educação
moral e o controle/cura das emoções (ANTUNES, 2007). As ideias psicológicas aparecem
especialmente por meio da criação de cursos superiores e sociedades científicas onde se
destacam as faculdades de Medicina (Bahia e Rio de Janeiro) responsáveis pelo
desenvolvimento de trabalhos dentro das perspectivas da higiene mental, psiquiatria forense,
neuropsiquiatria e neurologia. A psicologia experimental marcava os estudos a partir da
mensuração e classificação dos comportamentos e indivíduos, num trabalho de forte
influência da psicofísica e do uso de testes na psiquiatria e posteriormente na educação e no
trabalho (ANTUNES, 2007; PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003).
No final do século XIX e início do século XX, dentro de um conjunto de mudanças
socioeconômicas que modificavam progressivamente o perfil e a dinâmica das cidades, cresce
o interesse pelos ‘desvios’ e ‘erros’ individuais, tornando relevante socialmente as
intervenções psicológicas. Nesse contexto, a psicologia coloca-se como alicerce para um
conjunto de estratégias de controle social. Segundo Antunes (2007), transformações sociais e
políticas decorrentes do avanço do capitalismo, transformaram-se em fortes influenciadoras
da psicologia.
Era necessário buscar o controle, não apenas de problemas como epidemias, mas
também da conduta humana. A isso acrescenta-se que a ideologia burguesa
colocava no indivíduo o fundamento de uma sociedade baseada na propriedade
privada, portanto pessoal e individual; fazia-se necessário compreender o homem
nessa dimensão. (ANTUNES, 2007, p. 33).
Nesse período evidencia-se o desenvolvimento dos testes de inteligência, as técnicas
de mensuração e diferenciação como estratégias de pensamento e ação da Psicologia. A
psicologia científica tem sua participação, de destaque, notadamente no contexto das
instituições educacionais e da medicina (ANTUNES, 2007; PEREIRA; PEREIRA NETO,
2003).
A psicologia encontra no campo da Educação um espaço de expansão e
reconhecimento, particularmente no que diz respeito a sua importância como ciência base
para a prática pedagógica. Destacam-se nesse processo histórico de inserção da ciência
psicológica na educação a Reforma Benjamim Constant (1890), que incorpora a disciplina de
psicologia nos currículos das Escolas Normais, e a criação do Laboratório de Psicologia
Experimental no Pedagogium (1890-1919) - instituição educacional com museu, cursos e
pesquisas pedagógicas, onde se produzia conhecimento sobre inteligência, motivação,
atividades sensoriais. No contexto do escolanovismo, que preconizava uma escola de base
48
científica para o desenvolvimento social, o ensino da psicologia começa a ser praticado no
relacionamento com a pedagogia, que usa a psicologia para adquirir status científico. Nesse
período, temos um avanço na institucionalização, mas uma vinculação da psicologia a outra
profissão (ANTUNES, 2007; PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003).
Além da educação/pedagogia a medicina é um campo onde a psicologia encontra
espaço para sua institucionalização. Em 1923, encontramos um exemplo especial da
materialização do interesse pela psicologia com a criação de um Laboratório de Psicologia
Experimental na Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, o qual
voltava-se, em geral, para a realização de testes psicométricos e psicoterapia. Difundiram-se
laboratórios de psicologia em vários hospícios (ANTUNES, 2007). A relação com a Medicina
geralmente era de subordinação do psicólogo frente ao médico, que buscava se apropriar o
espaço de saber e fazer psicológico:
Se, por um lado, a medicina, através da psiquiatria, criou condições para o
desenvolvimento da psicologia brasileira, por outro, ela buscou apropriar-se do
universo psi. Com isso, sua estratégia passou a ser a de transformar a psicologia em
especialidade médica (PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003, p.22).
O processo de profissionalização da psicologia no Brasil, nas décadas de 30 e 40,
refletiu-se na formação de cátedras de psicologia nas Universidades ligadas à medicina,
educação e filosofia. Em 1942, a portaria 272 (Decreto de lei 9092) institucionaliza a
formação do profissional psicólogo: “O psicólogo habilitado legalmente deveria freqüentar os
três anos primeiros de filosofia, biologia, fisiologia, antropologia ou estatística e fazer então
os cursos especializados de psicologia” (PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003, p.23). Nas
décadas de 40 e 50, temos a expansão da atuação nas áreas do trabalho
industrial/organizacional, servindo à administração racional do trabalho, ajustamento dos
funcionários para o desempenho otimizado de tarefas, através das classificações, seleção e
recrutamento de pessoal. Nos anos 50, 60 e 70, temos a criação de vários cursos de psicologia
no Brasil, inicialmente no Rio de Janeiro (PUC-RJ) e São Paulo (USP). Com a consolidação
de cursos de psicologia na graduação e também pós-graduação (décadas de 60 e 70), como
destacam Pereira e Pereira Neto (2003, p.23), o exercício profissional “passou a estar
amparado cada vez mais em um conhecimento esotérico, inatingível e incompreensível por
leigos. Assim, a profissão legitimou-se academicamente para lutar pelo domínio de segmentos
importantes do mercado de trabalho”.
Até os anos da ditadura militar e no decorrer desses travam-se disputas no processo
de produção de subjetividades, em que os ideais de esquerda e as lutas populares transitam na
49
construção social das realidades cotidianas brasileiras. Esse processo é marcante nas relações
entre Estado e Sociedade, em que o governo ditatorial militar impõe um brutal aparato
repressivo demarcando um modelo de desenvolvimento socioeconômico e cultural
extremamente excludente e antidemocrático. O terrorismo de Estado passa a caracterizar as
ações governamentais nos campos políticos e culturais e instituir-se na produção de
subjetividades silenciadas (COIMBRA, 1996). A família e a intimidade aparecem como os
territórios de fuga, espaços de resistência à repressão e também de controle, onde se produz
subjetividades entre a ortodoxia e heterodoxia sociocultural. Como destaca Coimbra:
O privado, o familiar, torna-se o refúgio contra os terrores da sociedade, nega-se o
que acontece fora e volta-se para o que acontece dentro de si, de sua família. [...]Esta
visão intimista da sociedade, na qual as pessoas se preocupam apenas com as
histórias de suas próprias vidas e com suas emoções particulares, em que o mundo
exterior parece nos decepcionar, parece vazio e sem atrativos, fortalece, deste modo,
a privacidade familiar e a interiorização das pessoas. No capitalismo, o intimismo
penetra obsessivamente nas relações humanas e torna-se natural sempre se estar
perguntando o que uma pessoa ou um acontecimento significam. A intimização
passa a ser uma preocupação constante, particularmente nos anos 70, nas classes
médias urbanas brasileiras, criando a ilusão de que uma vez que se tenha um
sentimento ele precisa ser manifestado (COIMBRA, 1996, p.32-33).
O intimismo como elemento sociocultural está diretamente associado às relações dos
sujeitos com seus corpos, com os outros, com os processos sociais e com a esfera do público.
Diretamente relacionado à construção de um espaço de intervenções para a psicologia, como
ciência e profissão, bem como à transformação de problemas socioculturais, econômicos e
políticos em questões psicológicas, reduzidas a variáveis individuais e a problemas de ordem
“interior” e de “conhecimento de si”. A psicologização de problemas sociais é uma das
decorrências práticas da atuação da psicologia, que se constitui hegemonicamente na América
Latina (MARTÍN-BARÓ, 1998) e no Brasil (COIMBRA, 1996).
Coimbra (1996) destaca que, no período da ditadura, os profissionais "psi",
colaborando com as estratégias de repressão política do Estado, forneceram, com suas práticas
nas diferentes abordagens, aval teórico/técnico para fortalecer uma cultura intimista e
individualista e, dentre outras questões, justificar intervenções estatais sobre indivíduos
classificados como desequilibrados, desestruturados e doentes. Para a autora, algumas práticas
"psis" nos anos 70 colaboraram “para a manutenção e o recrudescimento das subjetividades
hegemônicas que sustentaram em muitos aspectos o estado de terror que se abateu sobre o
país” (COIMBRA, 1996, p. 206).
A regulamentação da profissão veio em 27 de agosto de 1962, através da lei nº 4119.
Em 1971, são criados os Conselhos de Psicologia e, em 1975, é criado o código de ética da
50
profissão. Todos marcos apresentados aqui são importantes para a análise do processo de
institucionalização da profissão de psicólogo no Brasil. No contexto da presente pesquisa, o
processo de profissionalização da psicologia remete a um complexo contexto em que agentes
e instituições lutam pela autonomia e reconhecimento social da profissão. No que diz respeito
ao presente estudo, é importante destacar que o processo de inserção da psicologia na
sociedade brasileira tem sido ampliado a partir da ESF. Especialmente no que tange ao campo
das políticas públicas de saúde, entendemos que vivemos um processo histórico de
atualização dos campos de saber e fazer profissionais da psicologia, que vem ampliando os
diálogos com a sociedade brasileira.
Para Coimbra e Leitão (2003), as práticas psicológicas em muito tem contribuído
para a reificação da cultura individualista, em sintonia com o modo de produção de
subjetividades capitalístico, perpassado pela constituição histórica de uma psicologia
privatista, intimista e familiarista, integrada ao desenvolvimento sociocultural do capitalismo,
e incumbida de naturalizar e normatizar o que as autoras chamam de “modo-de-ser
indivíduo”. Assim a psicologia constitui-se historicamente como um equipamento social
voltado para a psicologização da vida social.
Diante das mudanças que vem ocorrendo no campo da saúde, tanto em nível
internacional como nacional, os fatores psicológicos passam a ser cada vez considerados
como relevantes na produção de saberes e práticas. Nesse contexto, vemos a subjetividade ser
colocada como um categoria analítica central para compreender o processo saúde-doença. A
Psicologia, nesse contexto, passa a ser requisitada em diversos cenários de atuação e produção
científica em saúde, possibilitando uma ampliação de suas práticas no contexto das políticas
públicas de saúde. Partindo do reconhecimento de um contexto de histórico de compromisso
social da psicologia com as elistes brasileiras (BOCK, 2009), bem como das possibilidades de
mudança decorrentes da expansão e interiorizaçao das práticas psicológicas nas políticas
sociais (MACEDO; DIMENSTEIN, 2011; 2012; YAMAMOTO, 2009), entendemos ser
importante a busca por ampliar análises e compreensões sobre o processo complexo de
inserção da psicologia na ESF.
Nossa perspectiva, aqui, é contribuir com o debate sobre a ampliação da inserção da
psicologia nas políticas públicas de saúde, especialmente a partir da análise das práticas
psicológicas na APS do SUS. Nosso intuito é possibilitar, a partir de diálogos com atores
envolvidos com os cenários de práticas, uma melhor compreensão sobre o papel desenvolvido
pela profissão na construção de alternativas práticas na atenção às necessidades de saúde da
população assistida nos cenários da ESF. Esperamos, com o presente trabalho, subsidiar a
51
produção de saberes e práticas profissionais contextualizados aos desafios éticos e políticos
colocados no cotidiano das práticas de atenção à saúde no SUS.
52
3 REFERÊNCIAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Em toda a elaboração desse trabalho nos orientamos pela ideia de que há uma
inseparabilidade entre elementos teóricos e metodológicos. Nessa imbricação teoria-método, o
uso de um conceito, na pesquisa, já implica num conjunto de escolhas metodológicas e, vice-
versa, cada escolha metodológica tem repercussões no tipo de reflexão teórica que se propõe.
Assim, algumas referências nos foram importantes na construção do objeto, nos
direcionamentos de investigação, na relação com o objeto, enfim, num conjunto articulado de
questões de fundamentação epistemológica da pesquisa.
Na presente pesquisa temos como referenciais teóricos algumas das ideias de Pierre
Bourdieu, de suas proposições para uma sociologia reflexiva, e de Paul Ricoeur e sua
proposta hermenêutica. Em Bourdieu, trabalhamos com os conceitos de campo social, habitus
e poder simbólico como instrumentos teóricos para delimitar o objeto da pesquisa e
aprofundar análises. Em Paul Ricoeur, trabalhamos com a ideia de uma hermenêutica que
integra as atitudes explicativa e compreensiva, tanto diante do texto quanto diante da ação
humana e da história. Fez parte também de nossa pesquisa teórica, uma breve incursão no
campo da sociologia das profissões, especificamente no que diz respeito à discussão sobre o
processo de profissionalização a partir das categorias de autonomia e identidade profissionais.
Como abordado na introdução, a pesquisa foi construída no contexto de um
movimento de análises e autoanálises, em que a aproximação com a sociologia de Bourdieu
foi importante, especialmente, para encontrar um caminho intermediário entre o
distanciamento e a aproximação frente à realidade estudada. Um elemento decisivo na escolha
do referencial bourdieusiano foi a necessidade de, na construção do objeto, delimitar um
posicionamento crítico frente a uma realidade com a qual o pesquisador tem imbricada uma
trajetória de formação e atuação profissional. A obra de Bourdieu nos forneceu grandes
impulsos e inspirações teóricas. No que diz respeito a referenciais mais explicitamente
epistemológicos, a noção de reflexividade, de vigilância epistemológica e a proposição de
uma abordagem estruturalista-construtivista (BOURDIEU, 2004b), foram notáveis
contribuições de Bourdieu para a delimitação teórico-metodológica realizada. Entendemos,
em consonância com o pensamento do próprio autor, que as ideias e conceitos científicos
precisam ser colocados em prática, fazendo parte de um movimento permanente de
contextualizações e redirecionamentos. Assim, a utilização do referencial bourdieusiano se
deu de forma relativa ao contexto de estudo proposto aqui, num movimento singular de
apropriações. Nesse contexto, as ideias do referido autor são bastante inspiradoras:
53
Diferente da teoria teórica – discurso profético ou programático que tem em si
mesmo o seu próprio fim e que nasce e vive da defrontação com outras teorias –, a
teoria científica apresenta-se como um programa de percepção e de ação só revelado
no trabalho empírico em que se realiza. [...] tomar verdadeiramente o partido da
ciência é optar, asceticamente, por dedicar mais tempo e mais esforços a pôr em
ação os conhecimentos teóricos adquiridos investindo-os em pesquisas novas, em
vez de os acondicionar, de certo modo, para a venda, metendo-os num embrulho de
metadiscurso, destinado menos a controlar o pensamento do que a mostrar e a
valorizar a sua própria importância ou a dele retirar diretamente benefícios fazendo-
o circular nas inúmeras ocasiões que a idade do jacto e do colóquio oferece ao
narcisismo do pesquisador. (BOURDIEU, 2012, p.59).
Colocar em prática os conceitos de Bourdieu e Ricoeur, foi uma experiência de
enriquecimento intelectual significativa, especialmente pela imbricação entre a análise
científica da realidade social e a autoanálise da relação de pertença com a mesma realidade.
Aqui a teoria é entendida como “um modus operandi que orienta e organiza praticamente a
prática científica” (BOURDIEU, 2012, p. 60). Nessa prática da pesquisa os construtos
teóricos dos autores nos forneceram importantes princípios de composição. Assim, no diálogo
com a dimensão empírica da pesquisa, os conceitos progressivamente foram sendo
reelaborados e ganharam relevância heurística para o contexto específico investigado.
3.1 A sociologia reflexiva de Bourdieu
Para Bourdieu (2012), o ensino da pesquisa deve fazer referência à experiência em
primeira pessoa, aproximando os conceitos e métodos da realidade prática e circunscrita do
pesquisar. É nesse contexto que o conceito de vigilância epistemológica é proposto, visando
a delimitação de uma espécie de postura de pesquisar, que deve colocar a análise dos objetos
ligada a análise do percurso metodológico, das tentativas de aproximação e apreensão. Assim,
vigilância epistemológica constitui-se como processo permanente de reflexão capaz de
colocar em análise o uso das técnicas, teorias e métodos frente à construção do objeto. Dessa
forma, toda operação metodológica (em vias de se fazer) deve ser analisada por si mesma e
pela aplicação a casos particulares. Podemos dizer que a palavra vigilância, representa uma
postura ativa de criticidade atenta ao devir da pesquisa. Vigilância epistemológica, por sua
vez, refere-se à necessidade de uma ação e uma disposição para “apreender a lógica do erro”
no esforço para submeter os produtos da ciência e seus métodos à retificação metódica
permanente (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2010). Na proposição de que “a
sociologia da sociologia deve acompanhar a prática da sociologia” (BOURDIEU, 2008,
p.155), a ciência social, tomando-se a si mesma como objeto, se serve das suas próprias armas
54
para se compreender e se controlar. Esse processo operacionaliza-se na prática da vigilância
epistemológica, bem como na construção coletiva de estratégias de censuras mútuas, num
trabalho de criação de mecanismos voltados para uma crítica técnica, que permite controlar de
forma mais atenta os fatores sociais e políticos susceptíveis de alterar o sentido da
investigação. Nessa perspectiva, a proposta é a de buscar exercer uma forma específica de
vigilância partindo do entendimento de que obstáculos epistemológicos são também sociais e
políticos.
A reflexividade na pesquisa, então, diz respeito ao fato de que “um trabalho de
objetivação só é cientificamente controlado em proporção da objetivação que se fez
previamente sobre o sujeito da objetivação” (BOURDIEU, 2008, p.128). Para Bourdieu, é
preciso objetivar a objetivação, constituindo na pesquisa uma relação dialética entre análise
do objeto e auto-análise da relação com o objeto. Colocam-se em questionamento as
condições de possibilidade da experiência do sujeito cognoscente. Esse questionamento
direciona-se para: 1) objetivar a posição no espaço social global do pesquisador, sua posição
de origem e trajetória, elucidando sua pertença e adesões sociais e religiosas; 2) objetivar a
posição ocupada no campo dos especialistas, da disciplina e suas especificidades; e 3) prestar
particular atenção à ilusão da ausência de ilusão, do ponto de vista puro, absoluto,
‘desinteressado’ (Bourdieu, 2008, p.130). O objetivo da reflexividade, na prática, é buscar
libertar o cientista das distorções ligadas à sua posição e disposições. Como consequência,
podemos ter a destruição de falsos problemas, o esclarecimento do ponto de vista e trajetória
do pesquisador, tornar mais claro o interesse na “verdade” e no “desinteresse científico”. A
ausência de reflexividade na pesquisa pode significar: “deixar em estado impensado o seu
próprio pensamento [...] ficar condenado a ser apenas instrumento daquilo que ele quer
pensar” (BOURDIEU, 2012, p.36).
Como já apontado, durante todo o processo de realização da pesquisa, fomos
colocando em exercício o princípio da reflexividade, no sentido de reconhecer a necessidade
de autoanálise de nossa relação com o objeto de estudo, o que implicou na necessidade de
distanciamento frente a um conjunto de pertencimentos já referidos na introdução.
3.2 Entre objetivismo e subjetivismo
Construtivismo estruturalista é a autodenominação que Bourdieu utiliza para falar de
sua perspectiva sociológica, construída na busca por superar a dicotomia entre objetivismo e
subjetivismo. O autor esclarece os termos:
55
Por estruturalismo ou estruturalista, quero dizer que existem, no próprio mundo
social e não apenas nos sistemas simbólicos – linguagem, mito, etc. -, estruturas
objetivas, independentes da consciência e da vontade dos agentes, as quais são
capazes de orientar ou coagir suas práticas e representações. Por construtivismo,
quero dizer que há, de um lado, uma gênese social dos esquemas de percepção,
pensamento e ação que são constitutivos do que chamo de habitus e, de outro, das
estruturas sociais, em particular do que chamo de campos e grupos, e
particularmente do que se costuma chamar de classes sociais. (BOURDIEU, 2004b,
p.149).
Integra-se, em Bourdieu, a consideração de aspectos objetivos - que influenciam a
prática e a representação produzida pelos agentes - e o reconhecimento da gênese social do
habitus e dos campos sociais e grupos, que reserva uma especial atenção ao caráter ativo dos
agentes. A contribuição do estruturalismo é pensar a realidade, não como substância, mas
como conjunto de relações. Uma análise sociológica, em seu momento objetivista, constitui
uma visão topológica que identifica posições relativas e relações objetivas entre posições.
Constrói-se um modo de pensar relacional (BOURDIEU, 2004b).
Sob o intuito de discutir o valor heurístico da categoria estrutura, o autor
problematiza a relevância do conceito na apreensão do mundo social – dos grupos,
instituições e indivíduos – e das práticas sociais. Bourdieu propõe-se a uma apropriação
crítica do conceito de classe social como modo de analisar a constituição social dos grupos.
Cada classe social, em sua concepção, ocupa uma posição numa estrutura social
historicamente construída e é afetada pelas relações que estabelece com as outras partes e que
as unem ao todo da mesma estrutura. E é dessas relações historicamente constituídas entre as
partes, posições (dentro da estrutura) e destas com o todo, que advém o que o autor chama de
propriedades de posição. Segundo Bourdieu:
Levar a sério a noção de estrutura social supõe que cada classe social, pelo fato de
ocupar uma posição numa estrutura social historicamente definida e por ser afetada
pelas relações que as unem às outras partes constitutivas da estrutura, possui
propriedades de posição relativamente independentes de propriedades intrínsecas
como por exemplo um certo tipo de prática profissional ou de condições materiais
de existência. (BOURDIEU, 2011b, p.3).
É preciso, no entanto, analisar a estrutura social a partir da relação indissociável no
cotidiano entre propriedades de posição e propriedades de situação. Coloca-se aqui o debate
sobre as possibilidades de generalização na análise sociológica de casos particulares. Nesse
contexto temático, Bourdieu aponta para a necessidade de analisar com profundidade as
relações que se estabelecem entre o todo da estrutura social e os seus elementos relacionados.
A proposição de Bourdieu é que “as estruturas sociais de duas sociedades diferentes podem
apresentar propriedades estruturalmente equivalentes, a despeito das diferenças profundas ao
56
nível das características objetivas das classes que as constituem” (BOURDIEU, 2011b, p.6).
O autor argumenta que a análise estrutural deve levar em conta algumas questões ligadas ao
contexto específico do objeto de estudo sociológico. Há uma variação no modo de explicação
de acordo com a relação de independência entre propriedades de posição e propriedades de
situação. Segundo Bourdieu, a abordagem estrutural não deve somente centrar-se na reflexão
sobre a posição dos grupos, classes e indivíduos, mas também considerar o peso funcional
destes dentro da estrutura, ou seja, deve-se considerar o “peso proporcional à contribuição
dessas classes para a constituição desta estrutura” (BOURDIEU, 2011b, p.12).
Nessa discussão, a posição de um indivíduo ou de um grupo na estrutura social não
pode ser definida e analisada de modo estático, vale-se aqui de uma abordagem da trajetória
social e do destaque ao sentido dessa trajetória dentro de determinados contextos sociais. Em
determinadas situações, em que o sentido da trajetória aponta para direções diversas, grupos
situados em posições semelhantes no presente podem situar-se em lugares opostos e mesmo
conflitantes no futuro. O mesmo pode acontecer com o inverso, posições opostas no presente
podem levar a convergências no futuro, sempre a depender do sentido da trajetória social dos
indivíduos e grupos. A discussão dos sentidos das trajetórias sociais, dentro das estruturas, já
ressalta a contribuição de Bourdieu para a compreensão da dimensão simbólica das relações
sociais, permeadas por uma economia das trocas simbólicas. Para Bourdieu:
Uma classe não pode ser definida apenas por sua situação e por sua posição dentro
da estrutura social, isto é, pelas relações que mantém objetivamente com as outras
classes sociais. Inúmeras propriedades de uma classe social provém do fato de que
seus membros se envolvem deliberada ou objetivamente em relações simbólicas
com os indivíduos das outras classes, e com isso exprimem diferenças de situação e
de posição segundo uma lógica sistemática, tendendo a transmutá-la em distinções
significantes. (BOURDIEU, 2011b, p.14).
Bourdieu considera importante a análise das práticas de socialização dos agentes, as
quais se ligam diretamente às condições e posições de classe ocupadas dentro da estrutura
social. Adotando uma postura crítica para com a busca da compreensão do caráter consciente
dos atos dos agentes, Bourdieu destaca que a ação individual decorre, em muito, da posição
do agente dentro da estrutura social. Mesmo que ainda se preserve uma autonomia relativa
dos agentes, essa dimensão individual da ação é perpassada pela constituição de disposições
incorporadas pelos agentes através de processos de socialização vividos em espaços sociais
organizados historicamente.
Na descrição de todo o processo de construção de sua abordagem sociológica,
situada entre o objetivismo e o subjetivismo, Bourdieu reconstrói-se teoricamente na
passagem da física social para a fenomenologia social:
57
A ‘realidade social’ de que falam os objetivistas também é um objeto de percepção.
E a ciência social deve tomar como objeto não apenas essa realidade, mas também a
percepção dessa realidade, as perspectivas, os pontos de vista que, em função da
posição que ocupam no espaço social objetivo, os agentes têm sobre a
realidade.[...].A ruptura objetivista com as pré-noções, com as ideologias, com a
sociologia espontânea, com as folk theories, é um momento inevitável, necessário,
do trabalho científico [...] Mas é preciso operar uma segunda ruptura, mais difícil,
com o objetivismo, reintroduzindo, num segundo momento, o que se precisou
descartar para construir a realidade objetiva. A sociologia deve incluir uma
sociologia da percepção do mundo social, isto é, uma sociologia da construção das
visões de mundo, que também contribuem para a construção desse mundo.
(BOURDIEU, 2004b, p.156-157).
As representações dos agentes variam de acordo com sua posição no espaço social e
segundo um conjunto de disposições incorporadas através de condicionamentos sociais e
históricos. Nesse contexto, o espaço social, para o autor:
[...] apresenta-se sob a forma de agentes dotados de propriedades diferentes e
sistematicamente ligadas entre si[...] Tais propriedades, ao serem percebidas por
agentes dotados das categorias de percepção pertinentes – capazes de perceber que
jogar golfe ‘é coisa’ de grande burguês tradicional -, funcionam na própria realidade
da vida social como signos: as diferenças funcionam como signos distintivos – e
como signos de distinção, positiva ou negativa -, e isso inclusive à margem de
qualquer intenção de distinção[...] Em outros termos, através da distribuição das
propriedades, o mundo social apresenta-se, objetivamente, como um sistema
simbólico que é organizado segundo a lógica da diferença, do desvio diferencial. O
espaço social tende a funcionar como um espaço simbólico, um espaço de estilos de
vida e de grupos de estatuto, caracterizados por diferentes estilos de vida.
(BOURDIEU, 2004b, p.160).
É pela reprodução de relações objetivas entre agentes e instituições nos espaços
sociais e pela constituição de disposições através das trajetórias de socialização dos agentes
que a percepção do mundo é duplamente estruturada. No entanto, os objetos do mundo social
guardam um elemento de incerteza e indeterminação. A pluralidade de visões de mundo e a
elasticidade semântica dos conceitos/categorias precisam ser reconhecidas na busca de
produzir conhecimento sobre o espaço social. A indeterminação dos objetos e a riqueza
semântica das categorias utilizadas para descrever e classificar o mundo também são
pertinentes para pensar as lutas simbólicas para a definição legítima do mundo social, lutas a
propósito da percepção do mundo. As lutas simbólicas pela percepção legítima do mundo se
expressam nas ações de representação individuais ou coletivas, que visam mostrar e fazer
valer elementos específicos como realidades. Tais lutas também se refletem nas ações, que
visam modificar as categorias de percepção e apreciação do mundo, ou seja, as palavras e
categorias que constroem a realidade social. Nesse ínterim, as lutas simbólicas se expressam
nas constantes negociações em que as categorias utilizadas remetem à construção social de
identidades e de sistemas de classificação (BOURDIEU, 2004).
58
No presente estudo, voltado para a interpretação de práticas de psicólogos nos CSF,
buscamos reconhecer a existência de estruturas, que tendem a se reproduzir influenciando e
sendo reconstruídas nas relações sociais cotidianas. Tais estruturas expressam-se nas posições
relativas das profissões e agentes dentro do espaço social e das relações entre as posições.
Dito de outro modo, as estruturas podem ser pensadas como reproduções de posições no
espaço das posições de poder, de posições no espaço do campo do poder (BOURDIEU,
2011b).
O enfoque adotado aqui se volta, especialmente, para a análise das percepções dos
agentes sobre o espaço social da APS, reconhecendo a influência de vetores estruturais
(relações objetivas entre posições relativas no espaço social) existentes, que influem na
reprodução de posições e posicionamentos dos agentes. Estamos assim, nos posicionando no
plano da abordagem dos processos intersubjetivos construídos historicamente nos espaços
estudados, reconhecendo a relação entre aspectos subjetivos e objetivos no contexto das
práticas em saúde. A presente tese volta-se para a análise das percepções, perspectivas e
pontos de vista dos agentes, psicólogos inseridos na realidade cotidiana dos CSF. Reconhece-
se aqui, a possibilidade de discutir de modo significativo parte da heterogeneidade/pluralidade
das posições e posicionamentos da psicologia na ESF, bem como a possibilidade de abertura
de canais de discussão e pesquisa sobre questões pertinentes à realidade social investigada,
que refletem o encontro de vetores diversos que incidem nas práticas profissionais.
3.3 Campo social
Para iniciar nossa discussão sobre o que é um campo social e quais as implicações da
utilização desse conceito em nossa pesquisa, vamos utilizar o exemplo da ciência como
espaço social particular, o campo científico. O conceito de campo social retrata a intenção de
Bourdieu em desenvolver um posicionamento de recusa do internalismo e externalismo no
estudo histórico dos processos sociais. Uma abordagem internalista é aquela que se coloca no
interior mesmo das obras científicas para analisar as operações e “normas específicas que
permitem defini-la como ciência e não como técnica ou ideologia” (PENNA, 1991, p.26). O
internalismo ou história interna foca-se na história intelectual, incorpora biografias, pretende
ser autônoma e toma como referência uma perspectiva indutivista de produção de
conhecimento histórico (PENNA, 1991). Do internalismo, Bourdieu critica a concepção que
entende o processo de perpetuação histórica das ciências como “partenogênese”, onde a
ciência é compreendida como engendrada a si própria, “fora de qualquer intervenção do
59
mundo social” (BOURDIEU, 2004, p.20). O externalismo ou história externa é aquela que,
considerando o conceito hegeliano Zeitgeist5, destaca que “a compreensão da história
significava a compreensão das forças históricas que influenciaram homens e mulheres que
viveram numa determinada época” (GOODWIN, 2005, p.31). Assim, o externalismo utiliza-
se de métodos dedutivos, foca-se na história social e nas influências sociais e culturais à
ciência, condicionando “um ou mais acontecimentos às suas relações com interesses
econômicos e sociais, com exigências e práticas técnicas, com ideologias políticas e
religiosas” (PENNA, 1991, p.26). Das perspectivas externalistas, Bourdieu combate a ideia de
limitar-se a fazer correlações entre textos e contextos sócio-econômicos de modo inapropriado
e sem a consideração das especificidades micro-sociais pertinentes ao meio científico. Assim,
a abordagem teórico-metodológica dos campos sociais, deve levar o pesquisador a ir para
além da obra dos agentes, entendendo-a como sintoma, “sinal intencional dominado e
regulado por qualquer coisa de diferente, de que ela é também sintoma” (BOURDIEU, 2012,
p.73).
Caminhar entre as polaridades do internalismo e externalismo, remete à nossa busca
por um posicionamento frente ao processo histórico analisado aqui, da inserção da Psicologia
na APS do SUS. A ideia é demarcar um universo intermediário (o campo social) onde
estariam inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem e divulgam um
conjunto de práticas sociais específicas. Existem vários campos sociais, são eles: o campo
artístico, o campo econômico, o campo científico, o campo político, o campo esportivo, etc.
Em todos encontramos “um mundo social como outros, mas que obedece a leis sociais mais
ou menos específicas” (BOURDIEU, 2004, p.20). Fala-se aqui de um espaço relativamente
autônomo frente ao macrocosmo social, um microcosmo dotado particularidades. Essa relação
entre macro e micro é, portanto, refletida numa permeabilidade variante entre campos, em que
as fronteiras dos campos hora se apresentam mais bem estabelecidas e fechadas, hora se re-
configuram. O grau de autonomia que um campo ou sub-campo social usufrui, a natureza das
pressões externas e sua influência no meio interno, revelam questões fundamentais para
compreender o dinamismo de funcionamento do campo em sua relação com o contexto
macrossocial. Bourdieu destaca a pertinência de analisar os “mecanismos que o microcosmo
aciona para se libertar dessas imposições externas e ter condições de reconhecer apenas suas
próprias determinações” (BOURDIEU, 2004, p.21).
5 Zeitgeist pode ser traduzido, grosso modo, como espírito do tempo.
60
Para ele, no caso exemplar do campo científico, é necessário um caminho
intermediário, que nos leve a escapar da radicalidade arbitrária das ideias de “ciência pura” e
de “ciência escrava”:
O campo científico é um mundo social e, como tal, faz imposições, solicitações, etc.,
que são, no entanto, relativamente independentes das pressões do mundo social
global que envolve. De fato, as pressões externas, sejam de que natureza forem, só
se exercem por intermédio do campo, são mediatizadas pela lógica do campo.
(BOURDIEU, 2004, p.21-22).
Em suma, a ideia de campo científico remete à busca de delimitar teórica e
metodologicamente um espaço específico e relativamente autônomo de ciência frente ao
mundo social mais amplo que, contra as tradições internalistas e externalistas de analisar a
história das ciências, considera questões internas e externas na análise da dinâmica das
relações sociais que movem a ciência. Nessa concepção, a ciência é um espaço de relações de
forças e luta concorrencial que se organiza como estrutura estruturante de relações objetivas
entre agentes situados em posições, que são reproduzidas socialmente. Assim, as práticas
científicas e toda uma pluralidade epistemológica representativa da ciência expressam as lutas
internas e também as demandas construídas na relação entre ciência e sociedade. Nessa
perspectiva, as ações dos cientistas decorrem da posição ocupada por estes na estrutura de
divisão do poder, bem como do capital de crédito (reconhecimento científico) já acumulado
em lutas anteriores (BOURDIEU, 2012; 2010). Como destaca o autor: “um cientista é a
materialização de um campo científico e as suas estruturas cognitivas são homólogas à
estrutura do campo e, por isso, constantemente ajustadas às expectativas inscritas no campo”
(BOURDIEU, 2008, p.62).
Podemos ver na reflexão bourdieusiana sobre o campo científico o que chama de
uma tripla ruptura: 1) ruptura com a ideia de ciência pura, própria da visão internalista que
valoriza a dimensão microssocial e que relaciona a produção de ideias ao mundo específico da
ciência e ou da história particular dos autores; 2) ruptura com a ideia de comunidade
científica, numa visão homogeneizadora das práticas e da dinâmica científica; e 3) ruptura
com a visão externalista, que sobrevaloriza o contexto socioeconômico como determinante
das ideias e questões elegidas pela ciência.
Para o autor, quanto maior a autonomia de um campo específico, maior a capacidade
de refratar as pressões e demandas externas. Estas serão transfiguradas e, por vezes,
irreconhecíveis. Numa situação contrária, quando há uma grande heteronomia do campo, a
permeabilidade às demandas e pressões externas é bastante significativa. Todo campo é
61
[...] um campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar esse
campo de forças. [...] É a estrutura das relações objetivas entre os agentes que
determina o que eles podem e não podem fazer. Ou, mais precisamente, é a posição
que eles ocupam nessa estrutura que determina ou orienta [...] suas tomadas de
posição. (BOURDIEU, 2004, p.23).
Essa estrutura de relações objetivas entre os agentes comanda os pontos de vista mais
reconhecidos, as intervenções, os lugares ocupados, as trajetórias possíveis, os limites da ação
dos agentes. E tal estrutura é determinada pela distribuição do capital simbólico acumulado
pelos agentes num dado momento. Aqui, novamente remetemo-nos à noção de campo
científico em que “os agentes fazem os fatos científicos e até mesmo fazem, mas a partir de
uma posição nesse campo” (BOURDIEU, 2004, p.25). O capital de crédito e a posição
ocupada na estrutura de distribuição do capital influenciam as possibilidades e
impossibilidades dos agentes submeterem o campo aos seus próprios desejos. O capital, aqui,
é apresentado pelo autor como um tipo de capital simbólico, que é dado pelo reconhecimento
ou crédito atribuído pelos pares-concorrentes no interior do campo. O capital simbólico,
embora se relacione com a ordem econômica e política da sociedade, não é o mesmo que o
capital econômico. Cada campo tem sua especificidade e suas regras de funcionamento.
No presente estudo, utilizamos a noção de campo como forma de aprofundar nosso
olhar para o processo de construção social das práticas profissionais no espaço social da APS
do SUS, trabalhando a ideia de campo (de práticas) da ESF e Psicologia. Concebemos que
esse campo é permeado por questões pertinentes aos campos científicos da Saúde Coletiva e
os que participam nos processos de formação e de atuação das profissões inseridas na ESF.
Assim, ao olhar para a APS, entendemos que esta se estrutura de modo relativamente
específico, constituindo um espaço social particular e relativamente autônomo, mas sofrendo
influência de diversos outros campos sociais, do campo de estruturação das políticas sociais e
econômicas e das práticas vigentes em diversas disciplinas científicas e profissões de saúde.
A utilização do conceito de campo social remete a conceber que a ação dos agentes é
sempre permeada por atravessamentos sociais histórica e objetivamente estruturados a partir
de relações de poder. Assim, busca-se a compreensão da ação, considerando aspectos
situacionais, estruturais e simbólicos do espaço social. Há, portanto, o reconhecimento de que
determinadas posições no espaço social constituem relações objetivas que, sob determinadas
condições, tendem a se reproduzir de modo semelhante. Estudar o campo da APS é voltar-se
para compreender as relações de poder existentes no espaço de construção social das práticas
de saúde nos CSF, analisando divisões de poder estruturantes do espaço, posições,
relacionamentos, posicionamentos e estratégias adotadas pelos agentes e instituições.
62
A ESF como um espaço social marcado por relações de poder, pela luta
concorrencial, e pela distribuição desigual do capital simbólico. Este espaço, que se produz e
é produzido em posições hierarquizadas ligadas a interesses conflitantes, expressa uma
distribuição desigual das possibilidades de ganho nas relações de troca. A ESF, como
veremos, é atravessada pela luta entre ortodoxia, encarnada nos agentes posicionados em
torno dos interesses em conservar a estrutura desigual do campo, e heterodoxia, representada
pelos interesses em transformar a estrutura do campo e fundar uma nova ortodoxia. Há entre
ortodoxia e heterodoxia, no entanto, um acordo tácito que remete às regras de funcionamento
do campo e ao reconhecimento de um espaço legítimo de disputa.
3.4 Habitus
O habitus é outro conceito bourdieusiano utilizado na presente pesquisa. Dentro da
perspectiva de superar a polarização entre objetivismo e subjetivismo, que discutimos acima,
o conceito de habitus, remete à proposta de ruptura parcial com o estruturalismo onde o
agente é, muitas vezes, reduzido ao papel de suporte da estrutura. Outra ruptura importante,
que remete à proposição antidicotômica do estruturalismo construtivista, é com a filosofia do
sujeito ou da consciência. Como já vimos acima, Bourdieu preocupa-se em dar uma intenção
ativa e inventiva à prática, mas reconhecendo a influência relativa dos campos sociais. O que
perpassa a noção de habitus, nessa perspectiva, é a necessidade de indagar o lugar da cultura
de pertença e das trajetórias de socialização na construção das práticas sociais dos sujeitos.
Assim, essa categoria é expressiva da vontade de integração metodológica da abordagem de
tipo estrutural com a de cunho fenomenológico (BOLTANSKI, 2005).
O habitus é uma disposição cultivada, um conjunto de esquemas interiorizados,
incorporados – inscritos no próprio corpo. Retrata a dimensão corporal de um aprendizado
passado, fruto de socialização. Segundo Bourdieu:
Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência
produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas
estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como
princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser
objetivamente adaptadas ao seu objeto sem supor a intenção consciente de fins e o
domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente
‘reguladas’ e ‘regulares’ sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras
e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação
organizadora de um maestro. (BOURDIEU, 2011, p.87).
63
O conceito de habitus constitui-se como elemento teórico-metodológico de destaque
para a presente pesquisa. Este se relaciona à ideia de uma subjetividade socializada, em que o
social é incorporado na trajetória do sujeito constituindo esquemas ou disposições para agir,
pensar e sentir. Aqui, visando compreender e analisar a prática profissional da psicologia, a
utilização da noção de habitus pauta-se na ideia de que a cultura profissional é inscrita nos
corpos através de processos de formação, influenciando na concepção de uma teoria da ação
profissional que considera a determinação sociocultural e o caráter ativo do agente. A prática
profissional, com seu leque de ações e representações, traduz de modo exemplar o habitus (a
presença ativa de experiências passadas, sistema incorporado de esquemas de percepção,
pensamento e ação, que garantem a conformidade e constância das práticas). O habitus
profissional nos possibilita pensar os determinantes socioculturais dos estilos e modalidades
técnicas, permitindo uma sociologia das práticas.
o conceito de habitus tende a incorporar a questão da situação. O analista considera
então que foi até o fim de sua tarefa, quando consegue mostrar que, mergulhado em
situações diferentes, o autor agiu atualizando os esquemas inscritos em seu habitus,
ou seja, de certo modo, de maneira previsível, o que tende a fazer desaparecer a
própria questão da ação. (BOLTANSKI, 2005, p.162).
O habitus é um sistema de disposições transponíveis, um princípio gerador de
práticas bem como um sistema de classificação destas, onde entra em cena o trabalho de
categorização realizado pelos agentes. Nessa perspectiva, o estudo do habitus visa dar vazão
às questões de uma sociologia da experiência vivida do social. As raízes do habitus podem ser
identificadas na noção de hexis em Aristóteles que, segundo Wacquant, significa “um estado
adquirido e firmemente estabelecido do carácter moral, que orienta os nossos sentimentos e
desejos numa situação e, como tal, a nossa conduta” (WACQUANT, 2007, p.65). Reflete-se
em um saber dado pela experiência social, incorporado a partir da trajetória biográfica dos
agentes em diversos campos sociais. Pode ser entendido, grosso modo, como hábito psíquico
e corporal, que reflete uma tradição prática e, ao mesmo tempo, um princípio ativo e criativo
matriciador de práticas, que opera na intermediação da ação individual e social diante de um
espaço de possibilidades dadas por uma situação específica em um campo. Em Bourdieu, a
noção busca colocar em prática uma construção teórica de referência para superar as
dicotomias já apontadas. O habitus é matriz de percepções, apreciações e ações que, colocado
em relação dialética com as situações vividas em diversos campos sociais, é propulsora e
mediadora ativa de práticas diferenciadas a partir da transferência e atualização de esquemas,
aprendidos em experiências anteriores (WACQUANT, 2007).
64
O habitus designa uma competência prática adquirida na ação e voltada para esta. É
uma aptidão social e historicamente construída. É transferível de um domínio de prática para
outro, é durável, mas finita. É incorporada a partir de esquemas estruturados, que são
estruturantes de práticas socialmente moldadas em determinado contexto social, aprendidos
em processos de socialização pertinentes às trajetórias dos agentes. O habitus opera como o
“‘princípio não escolhido de todas as escolhas’ guiando ações que assumem o carácter
sistemático de estratégias mesmo que não sejam o resultado de intenção estratégica e sejam
objetivamente” (WACQUANT, 2007, p. 68). A partir do habitus, o agente é compreendido
como aquele sujeito singular submetido a uma pluralidade de processos de socialização
responsáveis pela incorporação de estilos de vida, o que inclui uma aprendizagem corporal
(que transcende a noção de consciência ou cognição) interligada a necessidades históricas
socialmente construídas, em que o processo de internalização da exterioridade se constrói
sustentado pela partilha de categorias de percepção e de apreciação.
O uso corrente da categoria habitus, segundo Wacquant, tem expressado, em geral,
quatro incompreensões que precisam ser esclarecidas: 1) O habitus nunca é uma réplica única
da estrutura social – já que é um conjunto dinâmico de disposições soprepostas no processo
de inserção em grupos nas trajetórias individuais e coletivas; 2) O habitus não é
necessariamente coerente e unificado, mas revela graus variados de integração e tensão – em
determinadas situações ou condições irregulares criam-se habitus irregulares, híbridos e
divididos; 3) O conceito não está menos preparado para analisar a crise e a mudança do que
está para analisar a coesão e a perpetuação – o habitus pode falhar ou expressar momentos de
discrepância e perplexidade, implicando na análise da instituição de mudanças e de razões
práticas maleáveis; e 4) O habitus não é auto-suficiente e não pode ser interpretado fora da
consideração dos seus campos relacionados (WACQUANT, 2007).
Como destaca Wacquant, “uma análise completa da prática requer uma tripla
elucidação da gênese e estrutura sociais do habitus e do campo e das dinâmicas da sua
‘confrontação dialética’” (WACQUANT, 2007, p.69). O uso do conceito de habitus, em
Bourdieu, expressa uma abordagem voltada “para escavar as categorias implícitas através das
quais as pessoas montam continuadamente o seu mundo vivido, que tem informado pesquisas
empíricas em torno da constituição social de agentes competentes numa gama variada de
quadros institucionais” (WACQUANT, 2007, p.69).
A presente pesquisa, destacamos a relevância da formação em serviço na RMSF
como proposta de educação permanente para os profissionais em saúde. Especialmente, aqui,
é preciso antecipar que os programas de Residência Multiprofissional em Saúde tem
65
contribuído para instituir relevantes mudanças nos modos de agir de profissionais de diversas
categorias que, dentre outras questões - como veremos nos resultados, tem enfrentado a
hegemonia do modelo biomédico no incentivo de práticas mais diversificadas no serviço de
saúde. Do ponto de vista teórico, a categoria habitus, nos ajuda a pensar a especificidade das
práticas psicológicas, o habitus profissional da psicologia, e a confrontação dialética dessas
disposições incorporadas com as circunstâncias vividas no campo social da APS do SUS.
3.5 Poder simbólico
Os símbolos, concebidos como instrumentos de comunicação e conhecimento,
organizados como sistemas apresentam uma dimensão social e política. Como mediadores da
comunicação e da produção do conhecimento, tornam possíveis consensos sobre o sentido do
mundo social, influindo na reprodução de ordenamentos sociais, na integração lógica e moral
dos grupos e instituições. Assim, os símbolos são instrumentos da integração social
(BOURDIEU, 2012). O poder simbólico pode ser resumido, grosso modo, como poder de
construir o mundo social, impondo uma visão e uma divisão a esse. É “um poder de
construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica” (BOURDIEU,
2012, p.9), que se estabelece certa cumplicidade ontológica com o mundo social.
Num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, [...] é necessário saber
descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é ignorado, portanto, reconhecido:
o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido
com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo
que o exercem (BOURDIEU, p.7-8, 2012).
Diz-se, assim, de uma luta concorrencial na busca de participar ativamente e de
modo efetivo da definição do que é a realidade social. Obter poder simbólico, nesse contexto,
é ser reconhecido como juiz, escritor da história, regulador dos mecanismos de regulação das
ações sociais. Os sistemas simbólicos cumprem função política de imposição e legitimação de
processos de dominação de uma classe sobre outras, garantindo a violência simbólica e a
domesticação dos inferiorizados nessas relações de força (BOURDIEU, 2012).
As diferentes classes e frações de classes estão envolvidas numa luta propriamente
simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus
interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo
em forma transfigurada o campo das posições sociais. Elas podem conduzir esta luta
quer diretamente, nos conflitos simbólicos da vida cotidiana, quer por meio da luta
travada pelos especialistas da produção simbólica (produtores a tempo inteiro) e na
qual está em jogo o monopólio da violência simbólica legítima, quer dizer, do poder
de impor – e mesmo inculcar – instrumentos de conhecimento e de expressão
66
(taxionomias) arbitrários – embora ignorados como tais – da realidade social.
(BOURDIEU, 2012, p.11-12).
Este tipo de poder se define nas relações entre os que exercem o poder e os que lhe
estão sujeitos, no contexto do campo específico em que a relação se constrói, onde se
produzem e reproduzem as crenças.
O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e
fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação
sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o
equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito
específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado
como arbitrário. (BOURDIEU, 2012, p.14).
O reconhecimento dos agentes e instituições, no plano do poder simbólico, significa
ser legitimado no processo de constituição, conservação ou transformação, dos princípios de
divisão e classificação da construção social da realidade. Ou seja, remete à questão da
ampliação do espaço dos possíveis no agir político e social. Como destaca Bourdieu, “para
mudar o mundo, é preciso mudar as maneiras de fazer o mundo, isto é, a visão de mundo e as
operações práticas pelas quais os grupos são produzidos e reproduzidos.” (BOURDIEU,
2004b, p.166). O poder simbólico, assim, está baseado em duas condições: 1) a posse de um
capital simbólico (um crédito adquirido em lutas anteriores - um reconhecimento suficiente
para impô-lo), que decorre de um longo processo de institucionalização; 2) e a constituição de
uma visão alicerçada na realidade. O que faz o poder simbólico é distinguir, segundo
princípios convenientes, um grupo dos outros grupos já existentes, através do conhecimento e
reconhecimento. Segundo Bourdieu: “[...] o poder simbólico é um poder de consagração ou de
revelação, um poder de consagrar ou de revelar coisas que já existem.” (BOURDIEU, 2004b,
p.167).
O poder simbólico é um referencial importante na presente pesquisa para a reflexão
sobre as lutas simbólicas travadas no cotidiano de trabalho profissional de psicólogos do
espaço social da ESF do SUS. Esse conceito é elucidativo das lógicas de poder que permeiam
as ações profissionais dos psicólogos na luta política pela definição da especificidade de suas
práticas, o que remete à busca pela autonomia, pelo reconhecimento e valorização
profissionais. Na presente pesquisa, discutiremos algumas das lutas enfrentadas pelos
psicólogos na busca pela autonomia profissional, o que implica na luta simbólica para definir
as demandas, as técnicas e a própria identidade como profissional da APS. Podemos observar
a relevância do modelo biomédico na estruturação das práticas profissionais e produção
simbólica em torno do processo saúde-doença-cuidado na ESF.
67
3.6 Autonomia e identidade profissionais
O campo científico da sociologia das profissões é marcado por uma diversidade de
proposições conceituais repercutindo em certa pluralidade de opções teóricas para o debate de
questões do mundo social das profissões. Muitas das questões do campo giram em torno das
definições sobre o que é uma profissão e como se constitui o processo de profissionalização
das diferentes ocupações. Tais questões foram importantes para a delimitação conceitual da
pesquisa. Mesmo que não tomados como referencias teóricas centrais do estudo, nossa
aproximação com a sociologia das profissões reflete-se em importantes discussões aqui
desenvolvidas sobre a prática profissional da psicologia na APS do SUS. Essas discussões
sobre o campo social da ESF e das práticas psicológicas nesse espaço são tangenciadas por
algumas contribuições conceituais tiradas da sociologia das profissões (BOSI, 1996; DUBAR,
2005; MACHADO, 1995; PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003).
Ademais das controvérsias e diversidade existente na sociologia das profissões, a
definição de profissão é relativamente consensual em torno de dois aspectos: o corpo
esotérico de conhecimento ou base cognitiva e a orientação para um ideal de serviços (BOSI,
1996; DUBAR, 2005; MACHADO, 1995). A diferenciação entre profissão e semiprofissão,
por exemplo, funda-se na constituição de um corpo específico de conhecimento e de um
mercado de trabalho inviolável. Médicos e advogados são exemplos de profissão, assim como
farmacêuticos e enfermeiros são de semiprofissão, especialmente pelo poder dos primeiros
refletido na autonomia profissional e no domínio de um saber específico, bem como no modo
como negociam frente a uma clientela. Machado (1995) conceitua profissão:
Profissão é uma ocupação cujas obrigações criam e utilizam de forma sistemática o
conhecimento geral acumulado na solução de problemas postulados por um cliente
(tanto individual como coletivo). E atividade profissional é um conjunto de
conhecimentos novos mais fortemente relacionados à esfera ocupacional. Portanto, a
autoridade profissional é centrada no profissional que detém o conhecimento
especializado para o problema específico do cliente. (MACHADO, 1995, p.18).
O termo profissão tem longa história no ocidente, ligada às corporações de ofício na
idade média, que remete à ideia de “profissão de fé” ligada aos rituais de admissão e
iniciação. O termo distinguiu-se historicamente ligado ao desenvolvimento das
Universidades, artes liberais e artes mecânicas, colocando em oposição profissões e ofícios.
As profissões, ligadas às artes liberais ensinadas nas Universidades, tem sua produção mais
voltadas para “o espírito” do que para “as mãos”. Os ofícios, oriundos das artes mecânicas,
68
voltam-se mais para o uso da força braçal. Ademais das divergências entre profissões e ofícios
é possível aproximar ambas pela constituição de uma organização socioinstitucional na qual
seus membros são unidos em prol de alguns preceitos éticos e processos de pertencimento
(DUBAR, 2005).
O processo de profissionalização, também abordado de modo diverso pelos autores
do campo da sociologia das profissões, se dá de modo variável conforme as características das
ocupações e dos campos sociais de prática profissional (BOSI, 1996; DUBAR, 2005;
MACHADO, 1995). Bosi (1996) conceitua a profissionalização destacando a busca do
prestígio e do poder no mercado de trabalho. Para a autora, esse processo consiste num:
[...] conjunto de ações através das quais uma ocupação ou semiprofissão busca
elevar seu prestígio, bem como seu poder e seus ganhos – constitui um processo
vivenciado por um conjunto cada vez maior e mais diversificado de trabalhadores. A
luta pela conquista do status profissional e pelo monopólio de determinadas
competências – e, consequentemente, pela garantia de um espaço no mercado de
trabalho, parece envolver quase todas as atividades hoje (BOSI, 1996, p.35).
A análise das profissões e relações profissionais deve ser criteriosa na consideração
de nuances metodológicas, especialmente, nos processos de generalização e contextualização
dos resultados. Diante de discussões conceituais sobre o que é uma profissão e o que compõe
o processo de profissionalização, constituindo um contexto de divergências e convergências
no campo da sociologia das profissões, Bosi destaca questões importantes para a reflexão
sobre a prática profissional empreendida aqui:
Torna-se assim essencial, para compreensão do fenômeno da profissionalização,
analisar os atributos profissionais como um conjunto de relações, e não como partes
equivalentes que vão se adicionando umas às outras num processo de evolução
natural. Destaca-se, portanto, a impropriedade de definir profissão a partir de
traços/atributos, ou destacando o enfoque da estrutura para o processo. [...] o
problema que se coloca não é tanto o que é uma profissão ‘em termos absolutos’
mas como, numa sociedade, se determina que é e quem não é profissional, num dado
momento histórico [...] Assim, não se trata de abandonar a tarefa de definir o
conceito mas, antes, de redimensioná-lo, considerando a existência de diferentes
perspectivas (BOSI, 1996, p. 54).
Na presente pesquisa, buscamos abordar a profissionalização pela análise da luta
pelo poder sobre o conhecimento técnico-científico e pelo reconhecimento social dentro de
um campo de saber e atuação socialmente relevante, no caso, a ESF. Entendemos, no entanto,
que a análise do processo de profissionalização precisa considerar cada critério teórico
elegido como atributos variáveis e diversos, que implicam em dificuldades para fazer
generalizações. É relevante, assim, não estabelecer modelos ideais e lineares nas análises.
69
Ao analisar as ideias vigentes no campo da sociologia das profissões, Bosi (1996)
destaca que a questão do saber (ou base cognitiva) é aspecto transversal imprescindível em
todo o processo de profissionalização. O saber, aqui, não pode ser analisado como algo
abstrato e dissociado de outros fatores. É importante, nessa perspectiva analítica, considerar a
relação entre o saber e a organização interna das profissões e suas instituições. A construção
de uma base de conhecimento e de doutrina são pontos importantes para a obtenção de status
profissional. O corpo esotérico de conhecimentos
[...] deve funcionar como uma caixa preta, ou seja, contendo segredos e técnicas
profissionais invioláveis e indecifráveis por leigos, mas ao mesmo tempo com uma
visibilidade social acessível a este mesmo público.[...] Assim, podemos definir o
especialista como um indivíduo que conhece tanto que só pode comunicar uma
pequena fração do seu conhecimento. Os clientes veem um mistério nas tarefas a
serem desempenhadas, mistério este que não é dado ao leigo conhecer, visto que o
conhecimento tácito é relativamente inacessível. Reter o conhecimento, torná-lo
específico e suficientemente misterioso é o eixo central que move o
profissionalismo. (MACHADO, 1995, p.21).
Como exemplo dos processos complexos e dinâmicos de profissionalização, é
interessante pensar no modo como as corporações profissionais se organizam na seleção e
treinamento dos profissionais, já que influem diretamente no poder e prestígio das profissões -
atribuídos ao caráter simbólico do saber profissional. Nesse contexto, o papel das
Universidades é fundamental para a legitimação dos saberes profissionais (BOSI, 1996):
[...] uma profissão assume estratégias para garantir sua exclusividade no exercício de
uma tarefa, não tendo condições de definir o seu domínio sobre o conhecimento se
não for capaz de determinar a base cognitiva das ocupações concorrentes. E isso é o
que definirá em grande parte a hierarquização das diferentes categorias numa dada
área. Para tal será necessário ter força suficiente não só para garantir os saberes
necessários às suas atividades, mas para delimitar as esferas de conhecimento e
prática de outras atividades afins. (BOSI, 1996, p.46).
Em nosso caso, reconhecemos um campo rico de discussões sobre as relações entre
os profissionais de saúde em equipes multiprofissionais, numa mescla de competição e
cooperação em busca de se afirmar como agentes importantes nos cenários dos serviços de
saúde. Aqui, perceber as necessidades dos clientes e agir competentemente frente a estas,
obedecendo a certas regras de conduta é outro aspecto relevante pra pensar a
profissionalização. Essa orientação para o serviço é orquestrada por padrões éticos, processos
de formação permanente e padronização de exames de admissão. Essa orientação normativa
dos profissionais pressupõe o reconhecimento dos interesses do público/comunidade na
construção da prática profissional (BOSI, 1996). A educação formal é um dos principais
mecanismos de base para a constituição da especificidade profissional. A praticidade social é
70
outro elemento caracterizador de uma profissão, que se orienta para a prestação de um serviço
e estabelece a atualização e reprodução permanente de normas de atuação em respeito à
clientela e aos pares. A obtenção e manutenção da autonomia prática do profissional está
intimamente ligada à especialização técnica e a determinação de critérios de excelência
(MACHADO, 1995).
Outros autores no campo da sociologia das profissões dão especial ênfase ao
mercado de trabalho na análise das profissões e da profissionalização. Nessa perspectiva,
dentre os elementos analíticos utilizados, compreendemos que é fundamental a consideração
das relações de poder onde “quanto mais independente, de outros mercados, for o mercado da
profissão, e quanto maior a colaboração do Estado na disputa com outros grupos, melhor será
a situação profissional” (BOSI, 1996, p. 49). Outros críticos propõem a adoção de estudos
focados nas mudanças no mercado de trabalho e suas implicações na perda de autonomia
profissional, especialmente, na propriedade ou controle dos meios de produção
(DONNANGELO, 1975; DURAND, 1975). Machado (1995) sintetiza suas ponderações
sobre o conceito de profissionalização:
[...]o problema central com o conceito dominante de profissionalização é seu foco na
estrutura e não no trabalho. Analisar o desenvolvimento profissional é ver como esse
vínculo (elo) é criado no trabalho, como ele está ancorado na estrutura social formal
e informal e como a ação recíproca das ligações jurisdicionais entre as profissões
determinam a história das próprias profissões individuais. (MACHADO, 1995,
p.31).
Larson (MACHADO, 1995; BOSI, 1996) é autora de destaque na discussão das
influências estruturais e ambientais, que constrangem em maior ou menor medida uma
profissão, especialmente, no que tange ao monopólio da competência. Nesse enfoque, dois
aspectos básicos estruturam o processo de profissionalização: a base cognitiva, que consiste
no conhecimento abstrato passível de aplicabilidade; e o mercado, composto pelas condições
socioeconômicas e ideologia dominante. Ressaltam-se, aqui, a relação entre controle do
mercado e monopólio da competência:
A estrutura de um mercado profissional particular é determinada pela estrutura
social que molda a necessidade social para um dado serviço e, além disso, define o
público atual ou potencial da profissão. Quanto a base cognitiva, a autora sugere que
a melhor forma é aquela que revela, ou atua ou maximiza as características do
mercado profissional. Ela deve ser específica o bastante para partilhar com clareza a
utilidade profissional, a ser formalizada ou codificada o bastante para permitir a
estandartização do produto; o que significa essencialmente a estandartização dos
produtores. E ainda, não deve ser tão claramente codificada que não permita efetuar
um princípio de exclusão: onde todos podem reivindicar serem experts, não há
expertise. (MACHADO, 1995, p.23-24).
71
Outro aspecto importante na perspectiva da análise do processo de profissionalização
é a incorporação de tecnologias, inovações, que se constituem como elementos de renovação
gradual e progressiva da base cognitiva e consolidação do monopólio da competência, que
ocorrem em paralelo à legitimação social das mudanças (MACHADO, 1995).
Na presente pesquisa, a discussão da autonomia profissional é fundamental, já que
nos permite pensar o processo de construção social das práticas da psicologia na ESF, sobre o
pano de fundo do processo de profissionalização. Nosso recorte teórico-metodológico visa
delimitar uma proposta de abordagem hermenêutica para compreender e analisar as práticas
psicológicas dentro do processo de socialização profissional vivido na APS do SUS.
Propomos-nos a relacionar autonomia e identidade profissionais como processos sociais que
perpassam as práticas psicológicas aqui analisadas.
A autonomia profissional é entendida como “a capacidade de o profissional ter sua
prática submetida ao seu próprio julgamento e autoridade, com sua responsabilidade como
árbitro” (BOSI, 1996, p.47). Na discussão das profissões médicas e paramédicas, destaca-se a
contribuição de Eliot Friedson, especialmente na discussão da autonomia profissional,
entendida como “capacidade de avaliar e controlar o desenvolvimento do trabalho” (BOSI,
1996, p.51). Essa autonomia, como elemento que melhor possibilita a distinção da profissão
frente à semiprofissão, remete ao controle sobre um saber específico e um processo de
trabalho legitimado socialmente. Friedson distingue duas esferas ou modalidades de
autonomia: a técnica e a socioeconômica. “A primeira seria caracterizada pela possibilidade
de controle sobre a essência do que é próprio à profissão (ou seja, seu conteúdo técnico), ao
passo que a autonomia socioeconômica estaria referida à capacidade de dispor sobre a
organização social e econômica do trabalho” (BOSI, 1996, p. 51-52).
No processo de construção da autonomia profissional, o Estado cumpre um papel
relevante, participando diretamente no fortalecimento ou não da autonomia, das estratégias de
organização das corporações profissionais e da dinâmica do mercado de trabalho e formação.
Bosi (1996) dá importante destaque para a questão da autonomia profissional, especialmente a
autonomia técnica, e sua relação com o poder, como elemento central aglutinador de vários
aspectos do processo histórico de profissionalização. Para Bosi (1996, p.54), a autonomia
técnica é um conceito de forte relevância heurística:
[...] é uma categoria (teórica) que possibilita uma articulação entre a esfera do
conhecimento e a do poder, o que nos auxilia a evidenciar a importância da
dimensão do saber na constituição das profissões.[...] uma vez que se considera a
72
profissionalização como processo, o saber não é visto como uma esfera autônoma,
mas um elemento em relação, daí a escolha do conceito de autonomia.
Entendemos que esse enfoque favorece o reconhecimento de relações indissociáveis,
dinâmicas e complexas entre conhecimento e organização profissional. Nessa perspectiva,
podemos analisar a autonomia de uma determinada categoria profissional como processo
histórico marcado por lutas por reconhecimento em mercados de trabalho dinâmicos. Nesse
contexto, a autonomia e identidade profissional articulam-se diretamente às questões do poder
e do conhecimento estruturados e estruturantes dos campos sociais, onde se constroem os
espaços de prática profissional. Na perspectiva de delimitarmos nossa posição de investigação
diante da questão da autonomia e da identidade profissional, recorremos a algumas
contribuições de Claude Dubar (2005). Adotando um referencial que articula contribuições da
fenomenologia, o autor entende a identidade como: “o resultado a um só tempo estável e
provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos
processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as
instituições” (DUBAR, 2005, p.136). Em sua proposta teórico-metodológica, foca suas
análises na dimensão subjetiva e vivida da identidade, abordando-a a partir de pesquisa sobre
os mundos vividos e exprimidos. Segundo Dubar, o estudo da noção de identidade se
justifica, em sua perspectiva:
[...] pela tentativa de compreender as identidades e suas eventuais cisões como
produtos de uma tensão ou de uma contradição interna ao próprio mundo social, [...]
e não essencialmente como resultados do funcionamento psíquico e de seus
recalques inconscientes. (DUBAR, 2005, p. 137).
Destaca-se, aqui, a ideia da construção social da identidade, que se expressa em
lutas em torno de um saber legítimo, estratégias práticas e afirmação de uma identidade
reconhecida. As relações de poder entre agentes e instituições implicam no engajamento do
sujeito e em lutas por reconhecimento. As estratégicas práticas expressam, dentre outras
questões, a avaliação das oportunidades em um determinado campo, bem como a
interiorização da trajetória histórica do agente e do campo. Do ponto de vista metodológico, a
abordagem do fenômeno da construção social da identidade profissional deve levar em conta
o processo de socialização dos agentes e a percepção que estes tem da experiência.
Nesse contexto de debate, reconhece-se como contribuições da Etnografia (nascente
em meados da década de 1930) a ideia de que “não há nenhuma lei geral que reja a educação
das crianças nas sociedades tradicionais” (DUBAR, 2005, p.XV). Desse modo, não podemos
pensar em mecanismos gerais ou universais que rejam o processo de socialização. Assim,
73
Dubar argumenta na perspectiva de impor uma crítica à ideia de uma teoria geral da
socialização:
A socialização como aprendizagem da cultura de um grupo é tão diversa quanto as
próprias culturas. Às vezes dominam as práticas mais autoritárias, às vezes as mais
permissivas. Às vezes recorre-se a instituições especializadas, às vezes a educação é
completamente difusa. Às vezes as crianças são educadas pela mãe, às vezes por
outras pessoas. (DUBAR, 2005, p. XV).
O autor toma como base um conjunto de autores da sociologia (como Max Weber,
Alfred Schultz, Georg Simmel e, especialmente, Peter Berger e Thomas Lückmann) para
aplicar a noção de socialização ao campo da atividade profissional e das mudanças sociais.
Para Dubar (2005), a socialização reflete-se na “construção de um mundo vivido” que se
efetiva, permanentemente, durante a trajetória dos indivíduos em diversas esferas de atividade
ao longo da vida. Na discussão sobre socialização e identidade, apropria-se das ideias de
Bourdieu para analisar o conceito de habitus (DUBAR, 2005). Em sua apropriação da
definição de habitus de Bourdieu, Dubar nos leva a revisar dois aspectos importantes da
proposição bourdieusiana: o habitus pode ser pensado como incorporação de posições
diferenciais no espaço social, estando ligado, em sua gênese, a uma posição; e o habitus pode
ser visto como forma de percepção e visão do espaço social, de classificação. No primeiro
aspecto, temos a objetividade das posições diferenciais e suas conformações estruturais que se
vinculam na geração do habitus. No segundo, o habitus é vinculado a uma subjetividade que é
produtora de práticas e tomadas de posição num campo social qualquer. Para Dubar, a noção
de identidade social precisa ser entendida a partir da articulação entre uma “orientação
‘estratégica’ e uma posição ‘relacional’ resultante da interação entre uma trajetória social e
um sistema de ação” (2005, p. 92).
Na proposta de articulação entre o estudo da trajetória dos indivíduos, instituições e
sua concretização em sistemas de ação específicos, a trajetória é concebida como um ‘recurso
subjetivo’ do indivíduo que consiste em:
[...] balanço subjetivo das capacidades para enfrentar os desafios específicos de um
dado sistema.[...] Por isso, a hipótese da ‘consolidação da identidade/reprodução do
sistema’ é apenas uma das hipóteses possíveis: a priori, todas as outras também
são.” (DUBAR, 2005, p.92-93).
No que diz respeito à proposição de Dubar para a análise da articulação entre
‘trajetória’ e ‘orientação estratégica’, se intercala o estudo de relações internas ao campo em
que o indivíduo define sua identidade específica. O autor destaca, nesse contexto, que as
visões de futuro dos indivíduos nem sempre são reflexo de reproduções de percepções do
74
passado, não há uma reprodução social total - em que o tempo presente estaria pouco sob o
controle dos indivíduos. Assim, no encontro entre ‘trajetória passada’ e ‘estratégias’ de ação
há uma pluralidade de configurações possíveis que dependem de categorias de representação
herdadas em trajetórias anteriores e de possibilidades estratégicas e categorizações
possibilitadas num espaço social específico. O autor sintetiza o processo de construção social
das identidades:
As identidades resultam, pois, do encontro entre trajetórias socialmente
condicionadas a campos socialmente estruturados. Mas esses dois elementos não são
necessariamente homogêneos, e as categorias significativas das trajetórias não são
necessariamente as mesmas que estruturam os campos da prática social. Essa
defasagem abre espaços de liberdade irredutíveis que tornam possíveis e, às vezes,
necessárias conversões identitárias que engendram rupturas nas trajetórias e
modificações possíveis das regras do jogo nos campos sociais. (DUBAR, 2005,
p.94).
Dubar propõe uma abordagem compreensiva da socialização, na qual o fenômeno
identitário é concebido como fruto de processos de socialização. Em sua elaboração teórica,
uma entrada principal da identidade é apreendida pela perspectiva fenomenológica e
compreensiva exposta pelo autor:
É pela análise dos ‘mundos’ construídos mentalmente pelos indivíduos a partir de
sua experiência social que o sociólogo pode reconstruir melhor as identidades típicas
pertinentes em um campo social específico. Essas ‘representações ativas’ estruturam
os discursos dos indivíduos sobre suas práticas sociais ‘especializadas’ graças ao
domínio de um vocabulário, à interiorização de ‘receitas’, à incorporação de um
programa, em suma, à aquisição de um saber legítimo que permita a um só tempo a
elaboração de ‘estratégias práticas’ e a afirmação de uma ‘identidade reconhecida’.
(DUBAR, 2005, p. 129).
As dimensões mais relevantes dessas representações são: 1)a relação com os
sistemas, instituições e com atores acionam a implicação e o reconhecimento do indivíduo,
seu maior ou menor engajamento ou contestação, aciona tanto a identidade reivindicada,
quanto a realmente reconhecida; 2) a relação com o futuro tanto do indivíduo quanto do
sistema reflete-se nas orientações estratégicas, que resultam da análise das capacidades e
oportunidades e que, remete à interiorização da trajetória e da história do sistema ou campos
sociais específicos; e 3) a relação com a linguagem, que remete às categorias utilizadas para
descrever e analisar uma situação e um mundo vivido. O autor complementa sua proposta de
abordagem compreensiva:
É exatamente na compreensão interna das representações cognitivas e afetivas,
perceptivas e operacionais, estratégicas e identitárias que reside a chave da
construção operacional das identidades. Essa construção só pode ser feita a partir
das representações individuais e subjetivas dos próprios atores. Visto que implica o
75
reconhecimento (ou não reconhecimento) de outrem, ela constitui necessariamente
uma construção conjunta. De fato, a representação como dimensão da identidade não
preexiste totalmente ao discurso que a exprime.[...] Essa passagem do ‘representado’
ao operacional, do passivo ao ativo, do ‘já produzido’ ao ‘em construção’ permite
definir as identidades como dinâmicas práticas e não como ‘dados objetivos’ ou
‘sentimentos subjetivos’. Como consequência de seu arraigamento nos dois tipos de
ação social – a ação instrumental ‘estratégica’, que supõe uma atuação sobre o
mundo, uma caracterização ativa, e a ação comunicativa ‘expressiva’, que supõe o
compartilhamento de uma linguagem, de um código e de sua utilização em relações
diretas -, essas representações ativas que mobilizam diversos tipos de saberes
constituem os melhores indicadores possíveis das identidades sociais, resultados
tanto estáveis como provisórios de um processo de socialização concebido em
termos estratégicos e comunicativos. (DUBAR, 2005, p.129-130).
Adentrando o campo da sociologia das profissões, Dubar articula as noções de
socialização e identidade, destacando um olhar para o processo de construção identitária dos
indivíduos permeados pelo trabalho. O autor utiliza-se dos conceitos de “forma identitária” e
“identidades de ator”, buscando superar as dicotomias entre as abordagens estruturais e
construtivistas à construção da identidade profissional.
A partir do momento em que se recusa a reduzir os atores sociais – inclusive e
primeiramente as pessoas concretas que constituem o objeto das pesquisas empíricas
– a uma ‘categoria’ preestabelecida, seja ela socioeconômica, seja sociocultural – ou
às vezes, a uma combinação das duas-, a questão central, para o sociólogo que
aborda um ‘campo’ qualquer, torna-se a da maneira pela qual esses atores se
identificam uns com os outros. Essa questão é indissociável da definição do contexto
de ação que é também contexto de definição de si e dos outros. [...] O primeiro
procedimento do sociólogo de campo, parece-me, é coletar, nas melhores condições
possíveis, essas diversas ‘definições de situação’, que são condições de sua
compreensão das regras da ação situada, tais como são objetivamente definidas
pelos atores. [...] As identidades de ator estão assim vinculadas a formas de
identificação pessoal, socialmente identificáveis. Elas podem assumir formas
diversas, assim como são diversas as maneiras de exprimir o sentido de uma
trajetória, ao mesmo tempo sua direção e sua significação. (DUBAR, 2005, p. XIX).
A elucidação das “formas identitárias”, como “formas de identificação socialmente
pertinentes a uma esfera de ação determinada” (DUBAR, 2005, p.XX), se dá pelo
reconhecimento de que essas são marcadas permanentemente pelas maneiras como o
indivíduo se define como ator em determinado sistema e como produto de uma trajetória
específica. Nessa abordagem, dito de outro modo, a socialização profissional é entendida a
partir dos modos como os agentes se identificam no entrecruzamento da estrutura de sua ação
com a história pessoal de sua formação. Dubar valoriza a dimensão subjetiva na abordagem às
identificações, que marcam as trajetórias profissionais em determinados espaços
ocupacionais. Em defesa da centralidade do trabalho na vida pessoal e das identificações
profissionais na vida social, o autor destaca: “As formas identitárias [...] não são ‘identidades
pessoais’ no sentido de designações singulares de si, mas construções sociais partilhadas com
76
todos os que têm trajetórias subjetivas e definições de atores homólogas, principalmente no
campo profissional.” (DUBAR, 2005, p.XXI-XXII).
3.7 Hermenêutica de Ricoeur
Já apresentamos as influências teórico-metodológicas de Bourdieu e da sociologia
das profissões, passamos à apresentação das contribuições decisivas de Paul Ricoeur para o
desenho da pesquisa e para o próprio exercício reflexivo constituinte da dinâmica da pesquisa
- que já fora abordado na discussão bourdieusiana sobre a sociologia reflexiva e na análise da
trajetória pessoal que influencia a pesquisa. Assim, é importante destacar a importância da
hermenêutica de Ricoeur para a definição de uma postura epistemológica em relação com o
objeto de estudo permeada pela imbricação entre análise e autoanálise, entre entendimento e
autoentendimento. Nessa busca de posicionamentos mais adequados aos interesses da
pesquisa e com a pesquisa, assumimos a tipologia de um estudo hermenêutico. Para Ricoeur,
a hermenêutica situa-se na busca da interpretação de “expressões de vida fixadas
linguisticamente” (BLEICHER, 1980, p.318).
Para efeitos de fundamentação metodológica da pesquisa, adotaremos a discussão
elaborada por Ricoeur sobre a natureza da interpretação, voltada especialmente para a noção
de texto e de ação humana. Trabalhando com textos produzidos através de diálogos sobre a
prática profissional, interessou-nos especialmente a definição de hermenêutica como “a teoria
das operações da compreensão em sua relação com a interpretação de textos” (RICOEUR,
2008, p.23). A interpretação, assim, será tomada como a “atividade de pensamento que
consiste na decifração do sentido que se encontra oculto no sentido aparente e na revelação
dos níveis de sentido implícitos no sentido literal” (RICOEUR, 1980, p.339).
Situando-se num esforço de estabelecer uma filosofia compreensiva da linguagem,
Paul Ricoeur busca demarcar uma posição crítica que, baseada em um compromisso com a
reflexão, coloca à hermenêutica a necessidade de “desistir de qualquer pretensão imediata à
universalidade em prol da busca de uma fusão entre contingência e universalidade no
exercício da interpretação” (PELLAUER, 2009, p.69). É assim que, entendendo o texto como
“todo discurso fixado pela escrita” (RICOEUR, 1989, p.141), destaca que este pode alcançar
um âmbito universal, que se desvencilha da situação de fala. O autor afasta-se da pretensão de
reconstruir o sentido intencional do autor do texto, pois “dentro do discurso escrito, a intenção
do autor e o sentido do texto deixam de coincidir [...] a carreira do texto escapa ao horizonte
finito vivido pelo autor” (RICOEUR, 1971 apud BLEICHER, 1980, p.318). Ricoeur liberta o
77
sentido do texto em relação à situação dialógica, de modo que se opera uma transformação
nas relações entre linguagem e mundo e as subjetividades de autor e leitores envolvidos.
A referência entre linguagem e o mundo é, portanto, modificada no nascimento do
texto que, ocupando o lugar da fala, modifica a função referencial da linguagem. Com o texto,
o diálogo é interrompido, o autor não pode mais responder, só o leitor atua. Se, por um lado, o
nascimento do texto representa a morte do autor, que será póstumo, por outro, “o texto é
exatamente o lugar onde o autor sobrevive” (RICOEUR, 1989, p.145). Assim, o texto não é
tomado sem referência. A função da leitura, “enquanto interpretação, será precisamente a de
efetuar a referência. [...] o texto está, de certa forma, ‘no ar’, fora do mundo ou sem mundo
[...] as palavras deixam de se esbater face às coisas; as palavras escritas tornam-se palavras
para si mesmas” (RICOEUR, 1989, p.145). Afirma-se, assim, a proposição de uma
hermenêutica do texto como obra aberta a apropriações atualizantes.
O autor propõe uma teoria da interpretação que integra dialeticamente as dimensões
da explicação e da compreensão. Assim, “[...] na explicação explicamos ou desdobramos o
âmbito das proposições e significados, ao passo que na compreensão compreendemos ou
apreendemos como um todo a cadeia de sentidos parciais num único acto de síntese”
(RICOEUR, 2009, p. 102). Explicação, que com Dilthey, fora concebida como própria das
ciências naturais com seus fatos, leis, teorias, hipóteses, verificações e deduções. E
compreensão, que acha seu campo de aplicação nas ciências humanas, trabalha com a
experiência significativa de outros sujeitos e mentes semelhantes aos pesquisadores. Ambas,
explicação e compreensão, em Ricoeur, são tomadas de modos diferentes e não
dicotomizados. Estas, ao contrário da tradição filosófica chamada pelo autor de “hermenêutica
romântica”, são colocadas como pólos indissociáveis, pólos dialéticos, de um mesmo
processo do arco hermenêutico.
Na interpretação de textos, essa relação dialética entre explicação e compreensão se
dá, primeiramente, partindo de um movimento de compreensão naive, ou ingênua, onde se
capta de modo superficial o texto enquanto todo, numa compreensão conjectural. Da
“conjectura” parte-se para um movimento mais sofisticado de compreensão apoiado em
processos analíticos, onde se dá uma espécie de “distanciação” visando à objetivação do texto
e resulta no que o autor chama de “apropriação”. Em suma, “a explicação surgirá, pois, como
a mediação entre dois estádios da compreensão. Se se isolar deste processo concreto, é apenas
uma simples abstracção, um artefacto da metodologia” (RICOEUR, 2009, p.106).
O termo conjectura liga-se à ideia de que não é possível acessar a intenção do autor,
que elaborou o texto. E que
78
[...] com a escrita, o sentido verbal do texto já não coincide com o sentido mental ou
a intenção do texto. Semelhante intenção é realizada e abolida pelo texto, que já não
é voz de alguém presente. O texto é mudo. Entre o texto e o leitor estabelece-se uma
relação assimétrica na qual apenas um dos parceiros fala pelos dois. O texto é uma
partitura musical e o leitor como o maestro que segue as instruções da notação. Por
conseguinte, compreender não é apenas repetir o evento do discurso num evento
semelhante, é gerar um novo acontecimento, que começa com o texto em que o
evento inicial se objetivou. (RICOEUR, 2009, p.106).
O autor destaca que, assim, a busca de uma interpretação “correta” não se resolve na
busca de um retorno à situação do autor. O conceito de conjectura vem, então, como um modo
de explicitar um primeiro passo de interpretação, que logo recorrerá aos procedimentos de
explicação. Uma conjectura visa o texto como obra de discurso, um processo holístico que
supera a soma de partes e sequências de frases, e que apresenta-se como singular.
O texto enquanto todo e enquanto totalidade singular pode comparar-se a um objecto
que é possível de ver a partir de vários lados, mas nunca de todos os lados ao mesmo
tempo. Por conseguinte, a reconstrução do todo tem um aspecto perspectivístico
semelhante ao de um objeto percebido. É sempre possível relacionar a mesma frase
de modos diferentes a esta ou àquela outra frase considerada como a pedra angular
do texto. No acto de ler está implícito um tipo específico de unilateralidade. Esta
unilateralidade fundamenta o caráter conjectural da interpretação. (RICOEUR, 2009,
p.109).
A fase ou procedimento de explicação surge como forma de aprofundar o movimento
conjectural de interpretação, que inicialmente se mostra superficial. A fase explicativa, assim,
deve ser entendida como análise estrutural do texto, que procede à sua segmentação (aspecto
horizontal) e estabelece diversos níveis de integração das partes no todo (aspecto hierárquico).
Através desse movimento, que vai da conjectura (compreensão naive) à explicação (análise
estrutural) e retorna à compreensão, a apropriação acontece, então, na fixação desse arco
hermenêutico “no solo do vivido” (RICOEUR, 1989). Aqui, articulam-se o objeto-texto, o
signo-análise estrutural e o interpretante. E a apropriação se aprimora quando dessa “gestação
de sentido no texto” em que as dimensões estruturais, passíveis de explicação e análise
estrutural, integram-se complementariamente às dimensões subjetivas. Essa apropriação
reflete-se no fato de que “a interpretação de um texto completa-se na interpretação de si dum
sujeito que doravante se compreende melhor, se compreende de outro modo, ou que começa
mesmo a compreender-se” (RICOEUR, 1989, p.155).
Esse movimento de apropriação constitui-se de dois elementos: 1) a busca de se
aproximar daquilo que é estranho, que remete a acercar-se do sentido do texto e seus sistemas
de valores; e 2) a superação da distância com a “fusão da interpretação do texto com a
interpretação de si mesmo” (RICOEUR, 1989, p.156). O processo interpretativo do texto é
79
concluído nas palavras do autor, pela integração dialética entre explicação e compreensão:
“por dialética, entendo a consideração segundo a qual explicar e compreender não
constituíram os polos de uma relação de exclusão, mas os momentos relativos de um processo
complexo a que se pode chamar interpretação” (RICOEUR, 1989, p.164).
Para Ricoeur, há uma homologia entre as teorias do texto, da ação e da história, que
subsidia sua discussão sobre a hermenêutica e a inseparabilidade entre explicação e
compreensão. No que diz respeito à comparação entre teoria da ação e teoria do texto, o autor
destaca a analogia entre texto e ação, quando entendidos como obras abertas à apropriação
hermenêutica.
Direi apenas que, por um lado, a noção de texto é um bom paradigma para a ação
humana, por outro, a ação é um bom referente para toda uma categoria de textos. No
que diz respeito ao primeiro ponto, a ação humana é, em muitos aspectos, um quase-
texto. Ela é exteriorizada de uma forma comparável ao registro característico da
escrita. Ao destacar-se do seu agente, a ação adquire uma autonomia semelhante à
autonomia semântica de um texto; ela deixa um rastro, uma marca; inscreve-se no
curso das coisas e torna-se arquivo e documento. À maneira de um texto, cuja
significação se liberta das condições iniciais da sua produção, a ação humana tem
um peso que não se reduz à sua importância na situação inicial da sua aparição, mas
permite a reinscrição do seu sentido em novos contextos. (RICOEUR, 1989, p. 176-
177).
Assim, na hermenêutica crítica de Paul Ricoeur “a reflexão não é nada sem a
mediação dos signos e das obras, e [...] a explicação não é nada se não se incorporar como
intermediária no processo da compreensão de si; [...] a constituição do si e a do sentido são
contemporâneas” (RICOEUR, 1989, p.155-156). Em suma, se adota a noção de que a tarefa
interpretativa, tarefa que será empreendida junto a todo material textual produzido na pesquisa
– transcrições e gravações e, especialmente sobre a ação humana encarnada nas práticas
profissionais de psicólogos.
3.8 Apropriações
A apropriação, como destacada por Ricoeur (1989; 2009), remete à tarefa
hermenêutica de interpretação de si mediada pelos signos, pelas obras. Nesse contexto, é
importante destacar que nossa relação de diálogo com as teorias adotadas aqui, sempre fora
reflexo de um movimento de aproximação inacabada com os autores e suas obras aqui
analisadas e utilizadas como fundamento de nossas reflexões atuais. Nesse ínterim, a
apropriação de parte da produção teórica de Pierre Bourdieu (2004; 2004b; 2011; 2012;
2008), Paul Ricoeur (1989; 2002; 2008; 2009) e mais especificamente Claude Dubar (2005)
80
fora um desafio de superação ainda inconcluso, que requereu um esforço de reflexão crítica e
autocrítica permanente. Nesse exercício da crítica, algumas ponderações precisaram ser feitas,
para delimitar os entendimentos que temos e as aproximações entre teoria e empiria.
As contribuições de Bourdieu, na presente pesquisa, como referencial metodológico
e teórico, possibilitaram a execução de importantes recortes sobre o objeto de pesquisa,
elucidando os percursos de investigação adotados. Ademais das questões mais diretamente
ligadas ao uso de suas proposições conceituais, podemos destacar como relevante a
contribuição do autor também no plano das reflexões ético-políticas. Nesse contexto,
Wacquant (2005) destaca duas implicações práticas das análises sociológicas bourdieusianas
sobre a política e as possibilidades de uma política democrática, que são pertinentes ao
presente estudo. Segundo o autor, as contribuições de Bourdieu no plano da política
democrática são: a reformulação do papel dos intelectuais nas lutas; e o redirecionamento das
ações políticas. No que diz respeito ao papel dos intelectuais, a proposição de Bourdieu é a
criação de um intelectual coletivo, constituído por competências complementares de ser
cientista e de ser comunicador, capaz de colocar em debates públicos o resultados de
pesquisas rigorosamente construídas cientificamente. No que diz respeito ao redirecionamento
das ações políticas, a contribuição das pesquisas de Bourdieu para a construção da democracia
é notável na ênfase dada ao conceito de habitus para a análise das práticas sociais específicas
aos campos sociais. Pensar uma teoria da ação a partir do conceito de habitus nos leva a
reflexões sobre a relevância dos processos de socialização para a constituição dos modos de
agir e pensar a realidade (WACQUANT, 2005). Isso, no contexto da presente pesquisa, traz
implicações importantes para pensar o direcionamento ético-político das práticas profissionais
e da relevância política de formação. Claude Dubar e suas proposições sobre a articulação
entre socialização e identidade profissionais são bastante pertinentes nesse tópico, o que
contribui também para delimitarmos uma aproximação com a abordagem hermenêutica
fenomenológica que buscamos.
As análises bourdieusianas sobre o poder simbólico constituído nas relações entre
habitus e campos sociais, contribuem para a reformulação dos focos estratégicos das lutas
políticas na sociedade. Nesse contexto, refletindo sobre a construção da democracia,
Wacquant destaca o redirecionamento da ação política que as proposições de Bourdieu
possibilitam:
[...]a ação política deve visar não só as intituições (ou seja, sistemas históricos de
posições objetificados na esfera pública). Para que ocorra a mudança progressista
genuína e duradoura, uma política de campos dirigida às relações estruturadas de
81
poder deve necessariamente ser suplementada por uma política de habitus que dê
atenção cuidadosa à produção social e às modalidades de expressão de proclividades
políticas. (WACQUANT, 2005, p.35).
Bourdieu aborda essa temática a partir da ideia de que a ação política não pode se dar
sem a ausência de transformações das condições de produção e reforço das disposições
incorporadas (BOURDIEU, 2011). A adesão à ordem existente, princípio de constituição dos
campos e de habitus, deve ser reconhecida e analisada para que se imprima uma prática
política e coletiva de realização de futuros históricos alternativos. Em Bourdieu, encontramos
uma visão do mundo social marcada pela disputa em que toda relação de significado é
também uma relação de força e as políticas de reconhecimento são inerentes à condição
humana (WACQUANT, 2005; BOURDIEU, 2012; 2011).
No entanto, na utilização do referencial bourdieusiano, gostaríamos de frisar algumas
ponderações que fazemos à compreensão da ação individual e social. Levamos em
consideração, aqui, as análises realizadas por Lahire (2003) e Dubar (2005). Entendemos que
a teoria do habitus precisa ser criticamente utilizada, para não incorrer em riscos de
inadequações e análises restritas. Um dos elementos que devemos nos apropriar com reservas
é a certa centralização e sobrevalorização do passado com fator preponderante na
determinação das ações presentes (DUBAR, 2005; LAHIRE, 2003). Segundo Lahire (2003),
há uma polaridade nas teorias da ação que, de um lado, colocam as experiências passadas na
origem de todas as ações futuras, de outro, descrevem e analisam a ação sem nenhuma
preocupação sobre o passado dos agentes. Nessa polaridade formam-se duas ordens
epistemológicas radicais e antagônicas, que impõem limites para uma compreensão ampliada
das ações. Segundo o autor:
Na primeira ordem, negligencia-se muitas vezes o estudo da ‘ordem da interação’,
das características singulares e complexas do contexto pragmático, imediato da ação
e, na segunda ordem, negligencia-se voluntariamente ou involuntariamente tudo o
que, na ação presente, depende do passado incorporado dos atores[...] De fato, a
questão do peso relativo das experiências passadas e da situação presente para
explicar ações está fundamentalmente ligada à pluralidade interna do ator, ela
mesma corretativa da pluralidade das lógicas de ação nas quais o ator foi e é levado
a inscrever-se (LAHIRE, 2003, p.60).
O autor critica, em Bourdieu, a força heurística que seu modelo teórico dá ao
processo de antecipação realizada pelo habitus, pautada em certa cumplicidade ontológica
entre estruturas mentais e estruturas objetivas da situação social fomentada pelo poder de
adaptação e seleção do porvir. O conceito de habitus, concebido desse modo, não seria capaz
de explicar as diversas situações de crise vividas no seio de sociedades complexas, em que o
agente se defronta com a inadequação entre disposições incorporadas e novas situações
82
(LAHIRE, 2003; SETTON, 2009). A partir das ideias de Lahire (2003), é preciso reconhecer
os limites da teoria do habitus de Bourdieu, no modo como aborda a relação entre passado e
presente, na concepção de ajustamento entre disposições e posições sociais.
Se a fórmula do ajustamento e da correspondência disposição-posição (ou numa
outra obra, disposições/condições de existência) é interessante teoricamente, ela não
é, contudo, nunca totalmente verificável empírica ou historicamente, e isso, pela
simples razão de que as disposições de um ator não se constituíram numa única
situação social, num único universo social, numa única ‘posição’ social. Um ator (e
as suas disposições) nunca pode, portanto, se definido por uma única ‘situação’, nem
mesmo por uma série de coordenadas sociais.[...] O ‘presente’ tem, portanto, tanto
mais peso na explicação dos comportamentos, das práticas ou das condutas, quanto
os atores são plurais. Quando estes foram socializados em condições particularmente
homogêneas e coerentes, a sua reação às novas situações pode ser previsível. Em
compensação, quanto mais os fatores forem o produto de formas de vida sociais
heterogêneas, e até contraditórias, mais a lógica da situação presente desempenha
um papel central nas reação de uma parte das experiências passadas incorporadas. O
passado está, por isso, ‘aberto’, diferentemente, conforme a natureza e a
configuração da situação presente (LAHIRE, 2003, p. 66-67).
Na perspectiva apresentada por Lahire, vemos o questionamento do modelo de
análise centrado na influência do passado de socialização, para abrir um campo de
investigação que reconhece o presente ou as configurações de situações atuais como
elementos que mobilizam, convocam ou despertam uma parte das experiências passadas
incorporadas. O agente é produto de múltiplas experiências passadas, de múltiplas aquisições
feitas em situações sociais vividas. O contexto presente precisa ser considerado, pois
constitui-se no que possibilita a atualização de disposições adquiridas, impondo-lhes
condições. Assim, esse encontro entre passado e presente é ambíguo, podendo resultar em
situações de inadequações, quando o contexto exige mais do que pode dar um ator.
Na presente pesquisa o CSF é concebido como um espaço de socialização
profissional, que coloca em destaque a relação entre disposições incorporadas no habitus
profissional e as circunstâncias e exigências próprias do espaço social da ESF e suas
prerrogativas. Nesse contexto é preciso reconhecer no conceito de habitus limitações no que
diz respeito a pensar no poder do passado na determinação do presente. Nesse contexto,
Freitas (2006) destaca que a socialização implica que a causalidade do passado sobre o
presente existe, mas que é apenas probabilística, já que o agente é atravessado pelos diversos
espaços de socialização e pertenças:
Isso porque dependendo da multiplicidade e heterogeneidade das pertenças
sucessivas ou simultâneas dos indivíduos, haverá ampliação cada vez maior do
campo de possibilidades e menos se perceberá a causalidade de um provável
determinado (FREITAS, 2006, p.20).
83
De modo semelhante às ideias de Freitas (2006), Setton (2009) aponta para a
necessidade de reconhecermos as múltiplas e heterogêneas influencias socializadoras no
mundo contemporâneo. Assim, os produtos da socialização (os agentes e suas práticas) podem
ser entendidos a partir da análise da maior ou menor ruptura e/ou continuidade entre as
instâncias de socialização influentes nas trajetórias dos sujeitos (SETTON, 2009)
contribuindo com certo hibridismo as práticas dos atores. Entendemos que esse hibridismo é
um dos elementos pertinentes na constituição das práticas profissionais dos psicólogos na
ESF, já que o campo vem colocar um conjunto de exigências novas aos modelos de prática,
aos habitus profissionais tradicionalmente estruturados na formação em psicologia.
No que diz respeito às reflexões sobre a profissão e o processo de profissionalização
por que passa a psicologia na APS do SUS, nos apropriamos do referencial bourdieusiano no
intuito de fazer os recortes metodológicos necessários à pesquisa sobre a prática profissional
da psicologia. Assim, buscamos entender as profissões como resultantes de processos sociais
de nomeação oficial (BOURDIEU, 2012). As práticas profissionais, nessa perspectiva, são
atravessadas por estratégias de luta simbólica em que se situam aqueles graduados em
determinada profissão, constituindo-se como agente autorizado e legitimado socialmente.
Bourdieu (2012) fala da gestão dos nomes, nas taxionomias das profissões realizadas
pelo Estado, como um dos instrumentos da gestão da raridade material e simbólica. O maior e
ou menor prestígio atrelado ao nome das profissões remetem a um conjunto de vantagens
simbólicas e materiais associadas ao pertencimento a determinada classe social, refletindo-se
no capital simbólico de agentes e instituições corporativas.
O nome da profissão de que os agentes estão dotados, o título que se lhes dá, é uma
das retribuições positivas ou negativas (do mesmo título que o salário) enquanto
marca distintiva (emblema ou estigma) que recebe o seu valor da posição que ocupa
num sistema de títulos organizado hierarquicamente e que contribui por este modo
para a determinação das posições relativas entre os agentes e os grupos.
(BOURDIEU, 2012, p.148).
Assim, ser um profissional é ter recebido um título que lhe garante quase que
automaticamente alguns direitos. Como num título de nome familiar de prestígio, o nome da
profissão confere toda uma gama de ganhos simbólicos relativos, que não é possível se
conseguir através somente do dinheiro. Quanto às classificações e poderes de nomeação na
construção da realidade, Bourdieu (2012), no texto “Introdução a uma sociologia reflexiva”,
problematiza a noção de profissão, especialmente o conceito radicado no termo profession em
inglês. Para o autor essa categoria constitui-se como potencialmente perigosa, especialmente
por se constituir como uma palavra corriqueira e tacitamente aceita no senso comum, que
84
remete a uma realidade recorrentemente entendida como tal, ou seja, o termo remeteria a uma
realidade em certo sentido demasiadamente real, pelo fato de apreender uma categoria social e
mental ao mesmo tempo. Nas palavras do autor:
[...] profession é uma palavra da linguagem comum que entrou de contrabando na
linguagem científica; mas é, sobretudo, uma construção social, produto de todo um
trabalho social de construção de um grupo e de uma representação dos grupos, que
se insinuou docemente no mundo social. É isso que faz com que o ‘conceito’
caminhe tão bem.[...] Ele refere-se a realidades em certo sentido demasiado reais,
pois apreende ao mesmo tempo uma categoria social – socialmente edificada
passando, por exemplo, para além das diferenças econômicas, sociais, étnicas, que
fazem da profession dos lawyers um espaço de concorrência – e uma categoria
mental. Mas se, tomando conhecimento do espaço das diferenças que o trabalho de
agregação necessário para construir a profession teve de superar, eu perguntar se não
se trata de um campo, então tudo se torna difícil. (BOURDIEU, 2012, p.40).
Denota-se, da crítica epistemológica de Bourdieu, a necessidade de problematizar as
diferenças que são ofuscadas pela categoria profissão, que nos levam à sua problematização
sobre a ideia de classe social e representação, bem como as lutas concorrenciais internas aos
campos profissionais. Dessa forma, foi nosso intuito discutir o processo social de construção
das práticas profissionais da psicologia na APS do SUS visando, através dos referenciais
adotados, analisar algumas particularidades do processo de inserção de psicólogos nos CSF.
Entendemos que o estudo da experiência vivida pelos psicólogos na ESF, nos permite
repensar a formação em psicologia e em saúde coletiva, tendo como parâmetros de análise as
práticas profissionais no cotidiano de serviços públicos de saúde.
85
4 METODOLOGIA
A metodologia esboça as estratégias elaboradas para lograr os objetivos da pesquisa,
associadas por reflexão epistemológica, em especial, sobre nuances do processo de construção
de conhecimentos, sobre o compromisso ético da pesquisa e estratégias adotadas para a
construção de informações e interpretação do material produzido. Como esclarecido
anteriormente, buscamos dar continuidade a uma caminhada de atuação no campo saúde, com
o doutorado, que atravessou o processo de investigação colocando desafios ligados à
vinculação do pesquisador com o campo estudado. A presente pesquisa visa contribuir com o
campo das práticas profissionais da psicologia da APS, tanto na interlocução e diálogo com os
participantes, mas, sobretudo, com a sistematização da experiência investigativa,
proporcionando a produção de conhecimentos em, pelo menos, três níveis: 1) da análise do
cotidiano e ações da Psicologia desenvolvidas na atenção primária à saúde do SUS; 2) da
interpretação advinda da prática cotidiana; e 3) da aprendizagem metodológica resultante da
reflexão sobre os caminhos percorridos na investigação.
4.1 Sobre a epistemologia da pesquisa
Nessa pesquisa, nos posicionamos a favor da defesa crítica e propositiva do
inacabado projeto SUS. Uma defesa que considera de extrema importância a consolidação de
suas diretrizes e princípios e que compreende que ainda temos muito a fazer para construí-lo.
A defesa crítica do SUS se dá pelo entendimento de que este representa um avanço para
proteção à saúde da população brasileira, mas que é preciso mudar o enorme hiato existente
entre teoria e prática nas políticas públicas brasileiras. Compreendemos, nesse contexto, que a
psicologia pode e deve trazer importantes contribuições ao campo amplo da Saúde Coletiva,
participando da formulação de reflexões importantes para o desenvolvimento do SUS. A
interface com a Saúde Coletiva (e SUS), em contrapartida, pode trazer contribuições
relevantes para o desenvolvimento da psicologia, ciência e profissão ainda distante de muitos
dos problemas de saúde vivenciados pela população brasileira.
Nossa condição epistemológica é bastante influenciada e motivada pela experiência
de trabalho realizada na ESF, tanto no nível da atenção à saúde, quanto na formação de
profissionais. Essa condição epistemológica fora um dos desafios interessantes dessa proposta
metodológica. As ideias de Emerson Merhy (2006) sobre “sujeito implicado e militante”
ajudam a esclarecer um pouco o desafio da construção do conhecimento que se coloca diante
86
de mim. Para entender melhor, vejamos o que o autor escreve a um de seus colaboradores de
pesquisa:
O seu problema é que além de sujeito interessado você é um sujeito implicado. Você
é o pesquisador e o pesquisado. E, assim, o analisador e o analisado. Você é um
sujeito militante que pretende ser epistêmico e os desenhos de investigação que
temos como consagrados no campo das ciências não dão conta deste tipo de
processo (MERHY, 2006, p. 02).
A identificação com essa condição foi um processo parcialmente pertinente ao
desenvolvimento da presente pesquisa a medida em que muitas experiências profissionais
investigadas também foram vividas de modo semelhante na APS do SUS. Assim, buscamos,
nessa empreitada, produzir conhecimento e sistematizá-lo, de forma rigorosa, explicitando os
dilemas vivenciados, para ampliar as interlocuções sobre o tema da pesquisa. Propomo-nos,
aqui, a alargar e ampliar a capacidade de refletir e gerar reflexões, com rigorosidade
científica, sobre fenômenos em que estamos implicados. Considerando a experiência
profissional e acadêmica vivida na APS do SUS, o desenvolvimento da investigação, pôde
gerar ricos processos de autoanálise de nossa condição de agente no contexto estudado.
Percebemos quão fora delicado o desafio enfrentado.
Nesse estudo, nos propomos a tecer uma interpretação pertinente sobre a construção
social da prática profissional da Psicologia, a partir de um “mergulho empírico” no cotidiano
dos territórios em que a APS do SUS é realizada. Demonstramos, assim, nossa vontade de
contribuir na construção de conhecimentos sobre a interface Psicologia e Saúde Coletiva,
colocando-nos na condição necessária de disponibilidade para discutir horizontalmente a
relevância das contribuições, que trazemos.
Horizontalmente, porque não há nenhuma grande verdade mantendo quentes as
nossas costas; nenhum instrumento de inquisição que podemos mostrar para garantir
obediência às nossas ideias. Só podemos arguir e discutir, tal como os demais.
Temos algo a contribuir porque temos um mínimo de disciplinariedade que inclui a
vontade de discutir entre nós a validade daquilo que fazemos [...]Somos somente
uma parte de uma ecologia de saberes, cada uma das quais partindo de um ponto
distinto e pensando que tem algo a contribuir (KEVIN SPINK, 2008, p.76).
Movido pela humildade e curiosidade epistemológica, procuramos, no cotidiano,
conhecer a realidade em diálogo com os outros agentes nela inseridos. Para realizar essa
investigação, partimos da compreensão de que as teorizações são explicações parciais da
realidade (MINAYO, 2002), mas que podem ter grande valor para compreender, explicar e
transformar os fenômenos do cotidiano.
A pesquisa social adquire peculiaridades próprias a partir da natureza de seu objeto,
que é historicamente determinado. Um dos aspectos relevantes é que essa trata de uma
87
realidade da qual o pesquisador, em diferentes níveis, é agente ativo. Nesse contexto, a
cientificidade ganha contornos de relatividade em que as teorias, conceitos, métodos e
técnicas utilizadas adquirem sua legitimidade e validação, numa relação de coerência com os
contextos em que se constrói o conhecimento. A não-neutralidade da ciência evidencia-se
como um pressuposto importante, para destacar a necessária clareza sobre os interesses e
valores, que perpassam a produção do conhecimento. A relação que se constrói entre o
pesquisador e seu campo de estudo, uma realidade social marcada pelo “dinamismo da vida
individual e coletiva com toda a riqueza de significados dela transbordante” (MINAYO, 2000,
p. 15), é marcada pelas visões de mundo de ambos em todo o processo investigativo.
Assim, é necessário o desenvolvimento de estratégias dinâmicas de rigor e vigilância
epistemológica (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2010) capazes de, pelo
permanente exercício da reflexividade, subordinar a utilização das técnicas e métodos à
interrogação sobre condições e limites de validade. A metodologia da pesquisa social,
portanto, apresenta-se como “o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da
realidade” (MINAYO, 2000, p.16), composto por teorias e técnicas articuladas, de modo
criativo e original, num conjunto coerente e claro de procedimentos capazes de dar conta dos
impasses da produção do conhecimento.
Tomando em consideração o referido contexto, nos orientamos em um modelo
epistemológico situado nas ciências sociais, que assume todas as consequências do caráter
histórico-cultural de seu objeto e do conhecimento como construção humana (GONZÁLEZ
REY, 2002). Compreendendo que o conhecimento é “um produto histórico ancorado em
contextos sociais e culturais específicos” (SPINK, 2000, p.19), a pesquisa é considerada uma
prática social, que manifesta a expressão de sujeitos em atos de significar o mundo, de
interferir diretamente na construção contínua da realidade. Realizamos aqui uma pesquisa de
abordagem qualitativa da realidade. A epistemologia qualitativa se apresenta como “esforço
na busca de formas diferentes de produção de conhecimento [...] que permitam a criação
teórica acerca da realidade plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa e histórica, que
representa a subjetividade humana” (GONZÁLEZ REY, 2002, p. 29). Uma epistemologia
qualitativa se apoia em três princípios, de consequências metodológicas importantes, que são:
conceber o conhecimento como uma produção construtivo-interpretativa; ter clareza que o
processo de produção do conhecimento é de caráter interativo; e por ter como nível legítimo,
da produção do conhecimento, a significação da singularidade, destacando a qualidade da
expressão dos sujeitos estudados e não a quantidade destes (Idem).
88
Para a produção de conhecimentos, portanto, a adoção do método qualitativo visa
trabalhar com “o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o
que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que
não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (MINAYO, 2001, p. 21).
Compreendemos ser possível, através do método qualitativo, uma análise detalhada do
fenômeno a ser estudado, na busca de entendê-lo em sua complexidade, a partir de suas
múltiplas dimensões: social, cultural, histórica, individual e singular. As metodologias
qualitativas são entendidas aqui como: “aquelas capazes de incorporar a questão do
significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais,
sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como
construções humanas significativas” (MINAYO, 2006, p. 22-23). O processo de pesquisa
qualitativa remete a levar em conta a historicidade do processo investigativo e investigar
níveis profundos das relações sociais. A pesquisa então se debruçará sobre a complexidade
dos fenômenos subjetivos
[...] cujos elementos estão implicados simultaneamente em diferentes processos
constitutivos do todo, os quais mudam em face do contexto em que se expressa o
sujeito concreto. A história e o contexto que caracterizam o desenvolvimento do
sujeito marcam sua singularidade, que é expressão da riqueza e plasticidade do
fenômeno subjetivo (GONZÁLEZ REY, 2002, p. 51).
Aqui, torna-se fundamental esclarecer o conceito de subjetividade adotado, aqui: a
subjetividade constitui-se como substrato ontológico complexo dos processos psíquicos
definidos na cultura, através de processos de significação e sentido subjetivo que se
constituem historicamente nos diversos sistemas de atividade e comunicação humana. Não é
algo dado, não se situa exclusivamente na esfera intrapsíquica e nem é algo que
aprioristicamente determina o curso da ação humana. A subjetividade
[...] implica de forma simultánea lo interno y lo externo, lo intrapsíquico y lo
interactivo, pues en ambos momentos se están produciendo significaciones y
sentidos dentro de un mismo espacio subjetivo, en el que se integran el sujeto y la
subjetividad social en múltiples formas (GONZALEZ REY, 2002b, p.22).
O que define o caráter subjetivo de um processo ou ação não é seu caráter interno ou
externo, mas o espaço de sentido e significação em que se geram as expressões, espaço que
está indissoluvelmente constituído por processos intersubjetivos. Ou seja, os fenômenos
subjetivos se constituem ou se definem em sujeitos históricos concretos, que atuam de forma
permanente em espaços sociais subjetivados, sendo assim, constituintes destes e constituídos
nestes (GONZALEZ REY, 2002b).
89
Na perspectiva adotada aqui, o conhecimento sobre a realidade é um dos resultados
do processo de apropriação inerentes à atividade humana. A apropriação remete à
interiorização da realidade como um processo ativo e de significação. Remete ao ato de dar
significado às coisas, onde o indivíduo se apropria da realidade transformada e a reconstrói
internamente de modo singular (GÓIS, 2005).
Considerando os objetivos propostos, buscamos estruturar estratégias que possam dar
conta de apreender os sentidos e significados atribuídos às práticas desenvolvidas no
cotidiano da atenção primária à saúde no SUS. Tomando em consideração as reflexões de
Uchimura e Bosi (2002) sobre qualidade e subjetividade, na avaliação de serviços e
programas de saúde, direcionamos o presente estudo numa perspectiva de “busca do sentido
dos fenômenos no espaço da intersubjetividade, ou melhor, no espaço do encontro entre a
subjetividade que se inscreve na vivência dos informantes e na vivência do próprio
pesquisador, através das compreensões e interpretações compartilhadas” (UCHIMURA;
BOSI, 2002, p.1567). Mesmo que nossa intencionalidade de pesquisa não seja a de avaliar,
esse movimento de imersão na experiência intersubjetiva irá demarcar todos os atos de
pesquisar.
Em outro estudo, as mesmas autoras empreendem importante crítica a modelos
tradicionais de avaliação da qualidade de serviços de saúde, que sobrevalorizam dimensões
objetiváveis passíveis de quantificação e desconsideram dimensões intersubjetivas próprias da
atividade humana (BOSI; UCHIMURA, 2007). O interesse da presente pesquisa, em
consonância com as críticas colocadas, é compreender dimensões intersubjetivas da realidade
social da atenção à saúde no SUS, a partir de uma inserção comprometida em cenários onde
esse processo se produz.
Nesse sentido, entendemos que a pesquisa qualitativa “convoca” o pesquisador a um
certo “jeito de ser”. E esse jeito de ser, me parece, deve guardar uma “sintonia fina” com o
modus vivendi do mesmo, o modo como descobre e vive os mistérios da vida social. Essa
“convocação” lhe aparecerá durante todo o processo investigativo colocando-se como
exigência de coerência entre epistemologia, teoria, métodos e técnicas. Exigirá criatividade,
presença, inteireza, abertura ao outro e a si mesmo – reconhecendo limitações e
potencialidades próprias do humano. Aparecerá diretamente ligada ao caráter não-neutro da
construção do conhecimento, permeada por valores, interesses, intencionalidades e
tensionamentos políticos. Essa “convocação” emergirá do olhar do outro, da alteridade
radical, que se coloca pela e na presença dos sujeitos-objetos-participantes do estudo. O
imperativo ético é o elemento regulador e impulsionador dessa necessária congruência e
90
autenticidade. Entendo, portanto, que esse modelo de pesquisa impõe, ao pesquisador, ocupar
um lugar de necessária exposição e interatividade.
A pesquisa qualitativa, para aqueles que pretendem construí-la de modo qualificado e
autoral, implica numa compreensão da ontologia desse modus operanti de abordar a realidade
social-humana, num modo autêntico de aproximar-se ao objeto de pesquisa e escolher-
construir modelos epistemológicos adequados ao que se pretende conhecer. A delimitação
desses aspectos fundamentais já deve se refletir na emergência de princípios praxiológicos a
ser incorporados e encarnados, no desenvolvimento da pesquisa. Isso implica num modo
específico de relacionar-se socialmente, movimentar-se no não-conhecido, transitar pelos
espaços, estar presente, interrogar a si e ao mundo. Nesse modelo investigativo, o corpo
lança-se no movimento de inter-ação com o outro, dialeticamente, deixando marcas e sendo
marcado.
Nesse modo qualitativo de ser pesquisador, a tradicional “coleta de dados”, que
preconiza a exequibilidade de um processo pseudo-asséptico de pesquisar sem interferir no
curso de uma realidade intersubjetiva já dada supostamente como “natural”, é substituída pela
“construção das informações”, que já torna claro o papel influente e responsável daquele que
mergulha na busca por conhecer a realidade e é obrigado a conhecer a si mesmo. Os supostos
“dados” são, portanto, construções históricas e de cada trajetória de pesquisa: informações
contextualizadas a um contexto intersubjetivo específico. Os chamados “fatos”, do mesmo
modo, como colocam Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2010), são conquistados e
construídos no exercício crítico da pesquisa. Ou seja, são construídos na prática de pesquisa e
conquistados pelo mérito das incursões investigativas na teoria e na prática.
A análise das informações construídas, por sua vez, deve induzir a um novo
movimento recursivo: a reformulação das perguntas. Paradoxalmente, uma pergunta feita
induz a muitas outras, abre questões e, somente as fecha para abrir em momentos mais
adequados. Como expressa Mercado-Martinez (2007, p.159), ao defender um modelo de
retroalimentação permanente entre análise e definição do problema de pesquisa, “uma vez
obtida certa informação, nenhum processo precede obrigatoriamente os outros”. Então, a
necessária coerência epistêmico-metodológica da pesquisa qualitativa “convoca” para fluir
com maleabilidade e rigor sistemático, exige inteireza e abertura no agir. Exige controle,
perícia, ginga, coragem e entrega: uma presença comprometida. Esse modo peculiar de agir,
em nosso entendimento, é o diferencial da pesquisa qualitativa. Um modo necessariamente
promíscuo e promissor, uma ontologia demasiado humano-mundana, um jeito de ser crítico,
afetivo, criativo, racional e sensível.
91
4.2 Delimitação do campo de estudo, participantes e construção das informações
O presente estudo volta-se para analisar a construção social da prática de
profissionais psicólogos inseridos na APS do SUS no Ceará. Tais psicólogos, atualmente,
inserem-se na APS do SUS através de duas grandes portas de entrada: os Núcleos de Apoio à
Saúde da Família (NASF) e os programas de Residência Multiprofissional em Saúde da
Família (RMSF). A ESF é um espaço que tem se aberto para várias profissões em saúde,
configurando-se como importante porta de entrada para a psicologia no SUS. Para termos
uma noção dessa ampliação basta observamos a expansão dos NASF e a abertura de
programas de RMSF. Em 2010, tínhamos 994 profissionais psicólogos inseridos em NASF no
Brasil. No Ceará, tínhamos 83 psicólogos. Em janeiro de 2014, tínhamos 2993 psicólogos
inseridos nos NASF no Brasil, e 641 no Ceará6. Importante notar que os psicólogos compõem
a segunda maior categoria profissional inserida nos NASF no Brasil, ficando atrás somente
dos fisioterapeutas. Vejamos a Tabela 1 abaixo:
Tabela 1: Total profissionais vinculados ao NASF, por modalidade, em ordem
de prevalência. (CNES, jan/2014).
NASF 1 NASF 2 NASF 3
Fisioterapeuta 3.045 Fisioterapeuta 711 Fisioterapeuta 452
Psicólogo Clínico 2.067 Psicólogo Clínico 558 Psicólogo Clínico 368
Nutricionista 1.846 Nutricionista 444 Nutricionista 322
Assistente Social 1.587 Assistente Social 328 Assistente Social 176
Fonoaudiólogo 1.071 Fonoaudiólogo 203 Fonoaudiólogo 119
Farmacêutico 946 Farmacêutico 132 Farmacêutico 108
Terapeuta
Ocupacional 558 Outros 76 Outros 38
Médico Pediatra 440
Terapeuta
Ocupacional 47 Médico Pediatra 22
Médico Gineco
Obstetra 395
Médico Gineco
Obstetra 24
Médico Gineco
Obstetra 17
Outros 371 Médico Pediatra 24 Terapeuta 15
6 CNES, 2010 e 2014.
92
Ocupacional
Médico Psiquiatra 182 Médico Psiquiatra 20 Médico Clínico 6
Médico Clínico 85
Médico
veterinário 16 Médico Psiquiatra 5
Médico
veterinário 54 Médico Clínico 9
Médico
veterinário 5
Médico
Homeopata 13 Educador Social 1 Educador Social 4
Educador Social 9
Médico
Homeopata 1
Médico
Homeopata 1
Médico
Acupunturista 9
Médico
Acupunturista 0
Médico
Acupunturista 0
Médico Geriatra 9
Médico do
Trabalho 0
Médico do
Trabalho 0
Médico do
Trabalho 2 Médico Geriatra 0 Médico Geriatra 0
Fonte: CNES (2014).
O NASF, assim, configura-se como uma importante porta de entrada para os
psicólogos na APS do SUS, a ESF. Os programas de RMSF também se ampliam. No Ceará, a
psicologia participa desses programas desde 2001. Atualmente, com a criação do programa de
RMSF em Fortaleza, em 2009, e sua posterior ampliação para outros municípios do Estado,
em 2013, através das Residências Integradas em Saúde, coordenadas pela Escola de Saúde
Pública do Ceará, temos um aumento na participação dos psicólogos na ESF do SUS.
No intuito de estudar esse fenômeno de ampliação da inserção da psicologia na ESF,
optamos por priorizar o estudo das práticas de psicólogos inseridos na atenção à saúde, que
foi o foco principal de nossas análises, mas também nos detemos no estudo do trabalho de
formação de psicólogos para o espaço da ESF, através da entrevista junto a profissionais
engajados na graduação em psicologia e na RMSF. Priorizamos a participação de
profissionais inseridos na RMSF por acreditar que esse espaço é promotor de importantes
experiências de formação e atuação, relevantes para nosso objeto de investigação. No entanto,
contamos também com a participação de profissionais com experiência nos NASF. Ao final
tivemos participantes egressos da RMSF, NASF e universidades públicas.
93
Os municípios de Fortaleza e Sobral foram escolhidos como os locais de pesquisa.
Dentre as razões da escolha, destaca-se o fato de que de que ambos municípios implantaram
programas RMSF, que tinham psicólogos inseridos em processos de formação em serviço, nas
equipes de APS do SUS, no período da realização da fase de campo da pesquisa. É importante
destacar que a escolha dos participantes, desde o início da pesquisa, veio se tornando um tema
crítico, que expressa a própria dinâmica complexa das pesquisas qualitativas, interessadas
mais na compreensão dos significados da experiência do que na mensuração dos fenômenos.
Na busca de dar resposta a essa questão, foi empreendida uma reflexão de modo a eleger
critérios, que possibilitassem a boa escolha dos caminhos a seguir, no decorrer da pesquisa.
Os critérios utilizados para realizar os recortes necessários foram perpassados pelo princípio
da exequibilidade da pesquisa, que pondera sobre prazos e períodos em observância dos
objetivos estabelecidos, atividades planejadas e realizadas e da qualidade do material
construído. Os critérios eleitos para delimitação dos participantes foram: 1) abertura dos
sistemas municipais para a realização de pesquisas nos serviços de saúde, bem como diálogos
com Universidade. Tal abertura foi encontrada em Fortaleza e Sobral, especialmente pela
política de educação permanente em saúde construída, que possibilitou a legitimação de nossa
aproximação com os participantes; 2) os participantes deveriam ter o máximo de experiência
acumulada com os cenários de prática da Estratégia de Saúde da Família, no que diz respeito
ao exercício da prática de atenção ou formação em saúde. Estabelecemos que os participantes
deveriam ter no mínimo de 1 (um) ano de experiência na ESF; 3) disponibilidade de tempo,
dos sujeitos, para participar da pesquisa; 4) interesse, dos sujeitos, em participar da pesquisa.
Para clarificar um pouco mais o sentido dos recortes realizados, tornou-se necessário,
aqui, esclarecer outros fatores específicos considerados para a escolha de desenvolver a
pesquisa prioritariamente junto aos profissionais inseridos em RMSF. Foram eles: 1) o arranjo
institucional dos programas de RMSF, propício ao diálogo com as Universidades –
viabilizando minha aproximação junto aos participantes; 2) a organização do processo de
Residência, que prioriza a criação de espaços de diálogo e reflexão sobre as práticas,
realizadas pelas diversas profissões inseridas e que propicia a construção de conhecimentos
relevantes ao objeto da pesquisa; 3) reconhecimento de que as experiências de RMSF
proporcionam a produção de ricos materiais, advindos da reflexão sistemática do cotidiano de
inserção da psicologia no SUS, que são potentes para pensar a formação em saúde e a
inclusão e criação de novos saberes e práticas no campo da Saúde Coletiva. Os fatores citados
fizeram com que priorizássemos a RMSF, em detrimento inicial do NASF. No decorrer da
pesquisa de campo, no entanto, sentimos a necessidade de contar com a participação de
94
profissionais inseridos em NASF, para ter acesso a informações diferenciadas quanto à
inserção da psicologia na ESF.
Seguindo a intencionalidade epistemológica da pesquisa qualitativa, a construção das
informações necessária aos objetivos da pesquisa se deu pela realização de 16 entrevistas
junto a 18 psicólogos com experiência na formação e atenção à saúde na ESF. As entrevistas
seguiram roteiros que, no decorrer das primeiras entrevistas sofreram pequenas alterações.
Foram elaborados 2 roteiros, um voltado para entrevistar psicólogos inseridos na formação e
outro para entrevistar os inseridos na atenção. O roteiro voltado para entrevistar os
profissionais inseridos na atenção sofreu modificações no decorrer das primeiras 4 entrevistas,
de modo que tivemos três roteiros utilizados (ver Apêndices B, C e D). Os roteiros nos
possibilitaram assegurar a discussão de questões importantes para nosso objeto de pesquisa e
referenciais teóricos adotados. Estes foram utilizados seguindo o modelo das entrevistas semi-
estruturadas, concebidos como facilitadores e orientadores das discussões, todas dinâmicas e
relativamente abertas à conversação, que resultou em um material diversificado a partir de
cada encontro singular de entrevista.
Inicialmente, foram identificados como potenciais participantes, psicólogos egressos
de RMSF em Sobral e Fortaleza, bem como aqueles que trabalhavam como membros do
corpo docente dos referidos programas. Alguns potenciais participantes eram egressos de
RMSF e trabalhavam como docentes dos mesmos programas. Foram também identificadas
professoras de psicologia da Universidade Federal do Ceará e Universidade Estadual do
Ceará, que trabalhavam a formação voltada para a ESF do SUS. Iniciamos com entrevistas
com egressos e docentes da RMSF em Sobral e Fortaleza. Entrevistamos 2 professoras
universitárias, sendo uma da UFC e uma da UECE. Percebemos, no decorrer das primeiras
entrevistas, a necessidade de entrevistar profissionais psicólogos inseridos em NASF, para
que tivéssemos referências de outro espaço de atuação.
Foram realizadas 16 entrevistas individuais e 2 entrevistas com duplas, totalizando
18 participantes, sendo 11 mulheres e 7 homens, todos com graduação em psicologia. A
maioria dos participantes tinha mais de 2 anos de experiência na ESF, tendo somente 2,
apenas 1 ano de experiência. Quanto à formação dos participantes, uma já tinha concluído
doutorado em Psicologia, 5 concluíram mestrado em Saúde Pública, 3 em Saúde da Família e
1 em Psicologia, 2 outras eram mestrandas em Saúde Pública. Dentre os participantes, 3
tiveram experiências em NASF em Fortaleza, tendo 1 deles também cursado RMSF em
Sobral. Quanto às experiências profissionais, somente uma entrevistada não teve experiência
como profissional da atenção à saúde (portanto, 17 já tinham trabalhado como psicólogos da
95
APS do SUS), 7 dos entrevistados tiveram experiências como profissionais voltados para a
formação para a ESF, sendo 2 na graduação e 5 nos programas de RMSF, sendo 3 em Sobral
e 2 em fortaleza. Quanto aos participantes egressos de RMSF tivemos 6 do programa de
Sobral e 7 de Fortaleza. Pudemos observar que os participantes tinham vasta experiência no
campo das práticas psicológicas na ESF, o que ficou evidente no decorrer das entrevistas.
Buscamos os contatos com os participantes e muitos deles eram-nos conhecidos, o que
facilitou a aproximação e a realização das entrevistas. Ademais do desafio ético de
preservação do sigilo dos participantes, entendemos que nossa experiência de trabalho na
RMSF, como egresso e docente, facilitou bastante a aproximação e realização das entrevistas.
A escolha por encerrar as entrevistas, delimitando o corte amostral de nosso estudo,
se deu pela quantidade e riqueza semântica do material e sua relevância, para a análise que
nos propomos a realizar tendo em vista nosso referencial teórico. Nesse ponto, nos orientamos
pelo princípio da saturação teórica (BAUER; AARTS, 2004; FONTANELLA; RICAS;
TURATO, 2008), onde percebemos que a inclusão de novos participantes já estava se
tornando pouco significativa para as reflexões teóricas que nos propusemos fazer, pela
redundância ou repetição dos significados e representações percebida nas últimas entrevistas.
Saturação é o critério de finalização: investigam-se diferentes representações, apenas
até que a inclusão de novos estratos não acrescente mais nada de novo. Assime-se
que a variedade representacional é limitada no tempo e no espaço social. A
identificação de mais variedade iria acrescer desproporcionalmente os custos do
projeto; então o pesquisador decide parar de investigar novos estratos. (BAUER;
AARTS, 2004, p.59).
As entrevistas tiveram os diálogos realizados transcritos em textos. A transcrição foi
feita por uma profissional contratada e a revisão minuciosa das transcrições foi feita por nós.
As gravações tiveram duração média de 60 minutos, de modo que as entrevistas totalizaram
aproximadamente 16 horas de gravação. As transcrições dos diálogos gravados produziram o
material empírico da pesquisa. Tivemos problemas parciais com uma das entrevistas
gravadas, de modo que restaram 15 entrevistas gravadas.
Em respeito ao princípio ético de preservação do sigilo dos participantes (FLICK,
2009), na exposição de falas oriundas das entrevistas, usadas no decorrer da tese, não
identificamos os participantes. Mantivemos a identidade dos participantes e suas entrevistas
somente para controle interno, necessário ao processo de interpretação do material. Esse
procedimento sigiloso fora necessário já que muitos dos participantes se conhecem e a reunião
das falas já possibilitaria a identificação do entrevistado pelos seus pares. Assim, também no
sentido de dificultar qualquer identificação, agimos transformando todos os participantes em
96
gênero masculino. A contextualização das falas, assim, obedece ao procedimento de dificultar
a identificação. Nosso desafio ético de preservação da identidade dos participantes é, também,
decorrente da relevância do presente estudo para os próprios participantes, muitos inseridos
nos debates atuais sobre a prática da psicologia na ESF, onde muitos se conhecem
intimamente. A pesquisa foi aprovada no comitê de ética em pesquisa da Secretaria de Saúde
do Estado do Ceará (Anexo).
4.3 A análise do material empírico produzido
A pesquisa qualitativa origina uma vasta e densa quantidade de informações e
materiais, que devem ser organizados e analisados de modo sistemático, possibilitando o
desenvolvimento de categorias potentes para descrever e explicar os fenômenos sociais
(POPE; ZIEBLAND; MAYS, 2009). Segundo Minayo, a fase de análise dos dados, de modo
sintético, visa alcançar três objetivos: ultrapassagem da incerteza, voltando-se às questões e
perguntas colocadas no estudo; enriquecimento da leitura, aprofundando um olhar que supera
o imediatismo e espontaneísmo; e integração das descobertas, onde se apreende uma lógica
interna ao material produzido no campo (MINAYO, 2010). É o momento onde são
apresentados os resultados da pesquisa, construídas as discussões sobre as questões de
pesquisa e as considerações finais, a partir de cruzamentos entre o corpus empírico, os
objetivos da pesquisa e o marco teórico utilizado.
Em Paul Ricoeur (1989, 2009), como vimos em nossas referências teórico-
metodológicas, buscamos colocar em prática a proposição de uma hermenêutica do texto
como obra aberta a apropriações. Essa foi nossa postura interpretativa diante dos textos
transcritos das entrevistas. Procedemos de modo a executar, várias vezes e de diversas formas,
movimentos de análise e compreensão das entrevistas para a elaboração de uma interpretação
pertinente sobre a prática psicológica na ESF. Nosso embasamento teórico em Ricoeur nos
permitiu colocar em prática de modo fundamentado o estudo hermenêutico dos 15 textos
produzidos nas entrevistas e que compuseram o material empírico da pesquisa.
Primeiramente, partindo de um movimento de compreensão naive, ou ingênua, onde
se conhece de modo superficial o todo dos textos das entrevistas, numa compreensão
conjectural. Dessa “conjectura” inicial partimos num movimento mais aprofundado de
compreensão apoiado em processos analíticos das partes e relações entre as partes do texto,
problematizando nossa perspectiva de interpretação. Nesse processo, onde se busca uma
97
espécie de “distanciação” visando à objetivação do texto, pode-se chegar ao que Ricoeur
chama de “apropriação” (RICOEUR, 2009).
O termo conjectura liga-se à ideia de que não é possível acessar a intenção do autor,
que elaborou o texto. Assim, Ricoeur propõe o conceito de conjectura como modo de
explicitar um primeiro passo de interpretação, que logo recorrerá aos procedimentos de
explicação e análise dos textos. A passagem da conjectura à apropriação deve contemplar um
processo de encadeamento de “um discurso novo no discurso do texto” (RICOEUR, 1989,
p.155), a partir de um exercício hermenêutico que entrelaça explicação e compreensão.
Assim, visando à apropriação dos textos das entrevistas, na composição de uma interpretação
apropriada para a prática da psicologia na APS, recorremos a vários movimentos de leitura e
releitura dos textos, bem como de composição e recomposição de nossas interpretações.
Nesse movimento de interpretação das entrevistas, primeiramente, identificamos,
como resultado da escuta das gravações e de leituras e revisões das entrevistas já uma
estrutura inicial do material, que podemos identificar como parte dessa interpretação
conjectural inicial, composta por alguns temas: âmbitos e prerrogativas de atuação, a
construção da demanda, especificidade de psicólogo, o espaço da APS, a busca do
reconhecimento, perspectivas e a experiência na APS. Com o intuito de aprimorar e agilizar a
codificação dos textos das entrevistas e subsidiar a análise aprofundada das unidades de
significação do material, utilizamos como ferramenta o software Atlas TI, especificamente
para auxiliar no processo de codificação dos textos das entrevistas.
O programa Atlas Ti consiste em uma ferramenta para a análise de dados qualitativos
que pode facilitar a codificação, categorização e interpretação de textos. Tal programa permite
ao pesquisador realizar a codificação e categorização do material, a criação de notas de
pesquisa e de comentários, assim como o estabelecimento de relações entre as categorias
analisadas e o agrupamento e gerenciamento de tais categorias, bem como a visualização
gráfica de todos esses procedimentos (WALTER; BACH, 2009). Utilizamos o software de
modo bem delimitado, somente para a criação e identificação de unidades de significação
pertinentes aos textos das 15 entrevistas, que compõem o material empírico da pesquisa.
Interessou-nos, assim, a utilização do programa para a organização dos dados pelas
facilidades que este permite na codificação e categorização das partes dos textos. Nesse
processo, criamos 22 unidades de significação associadas a citações de partes das entrevistas,
compostas por falas dos participantes ou pequenos diálogos entre pesquisador e participantes.
As unidades de significação foram as seguintes (TABELA 2):
98
Tabela 2: Unidades de Significação
Unidades de Significação
1. Âmbitos da Prática Psicológica na APS
2. Demandas pra Psicologia
3. Especificidade da Psicologia na APS
4. O reconhecimento da Psicologia
5. Desafios do trabalho na APS
6. O problema da Psicoterapia
7. Prerrogativas para atuar na APS
8. Experiências na APS
9. Obstáculos para o reconhecimento
10. Hierarquia no CSF
11. O desafio da formação
12. Objeto da Psicologia na APS
13. O Lugar do Psicólogo na Hierarquia da APS
14. O trabalho com outras profissões
15. O que se espera do psicólogo
16. Exemplos de casos
17. Tradução da Demanda
18. A relação com a rede de Saúde Mental
19. A necessidade de ter psicólogo na equipe mínima
20. A transformação da demanda
21. Características do trabalho da APS
22. Serviço Social e Psicologia Fonte: Elaborado pelo autor
As 22 unidades de significação foram organizadas de acordo com nossos objetivos
específicos de pesquisa e referenciais teóricos, que subsidiaram a organização dos resultados
em 4 capítulos de discussão. A organização das unidades de significação a partir dos objetivos
específicos é ilustrada na Tabela 3, apresentada a seguir:
A tabela reflete o processo de organização dos capítulos de apresentação e discussão
dos resultados. Esse processo fora bastante complexo e marcado por um movimento espiral de
análise e compreensão das entrevistas permeado por análises de partes e do todo do material
empírico. O programa de estudos realizado no decorrer da pesquisa cumpriu também função
importante na delimitação dos recortes e na composição do texto final da tese. De modo
resumido, o processo de análise do material empírico da pesquisa pode ser expresso nas
etapas abaixo:
1) Escutas livres das entrevistas (2 vezes para cada entrevista)
99
2) Escutas para a correção das transcrições (cada escuta aqui era mais demorada e
detalhada).
3) Leituras naive de material impresso e definição de um conjunto inicial de temas
organizadores das discussões.
4) Utilização do software Atlas Ti para a organização e definição de unidades de
significação (implica em novas leituras do material das entrevistas).
5) Organização de 22 unidades de significação em 4 capítulos.
6) Adaptações e recomposições dos capítulos e da ordem da discussão.
7) Revisões dos capítulos e articulação entre estes e o objetivo geral.
Tabela 3: Unidades de significação em função dos objetivos específicos
OBJETIVOS
Descrever o
campo de
práticas
profissionais
da APS e o
lugar ocupado
pelos
psicólogos nele
Analisar a
construção
social das
demandas pra
prática
psicológicas na
APS
Compreender o
modo distinto
como a Psicologia
intervém
profissionalmente
Analisar o
significado
histórico da
inserção da
Psicologia na
APS
UNIDADES DE
SIGNIFICAÇÃO
Características
da APS
Demandas pra
Psicologia
Especificidade da
Psicologia na
APS/
Objeto da
Psicologia na
APS (mesclados
na análise)
Desafios da
Formação
O trabalho com
outras
profissões
Exemplos de
Caso
Experiências
na APS
Psicologia e
Serviço Social
Tradução da
demanda
O lugar do
Psicólogo na
hierarquia
Prerrogativas
pra atuar
Transformação
da Demanda
O reconhecimento
da Psicologia
Desafios da
APS
A relação com
a rede de SM
Obstáculo para o
reconhecimento
Hierarquia no
CSF
O que se espera
do psicólogo
Âmbitos da
prática
O lugar da
psicoterapia
A necessidade
de psicólogos
na equipe
mínima
100
Fonte: Elaborado pelo autor
A interpretação do material empírico, dentro de nossa proposta hermenêutica de
inspiração ricoeuriana, foi marcada pelo esforço de apropriar-se do enorme material
produzido nas entrevistas, e composição de um texto de discussão pertinente à experiência
vivida pelos psicólogos na ESF. Assim compomos um escopo de temas e reflexões
pertinentes ao mundo dos textos e ao necessário encadeamento de novos discursos aos
discursos já existentes, próprio do processo de interpretação que, ao buscar compreender os
textos como obras abertas, permite-nos alcançar uma maior compreensão de nós mesmos.
101
5 A ESF DOS PSICÓLOGOS
As informações construídas, a partir dos diálogos realizados nas entrevistas, nos
levam a um conjunto de visões da APS, representativas dos processos cotidianos de
construção das práticas psicológicas. Essas visões nos ajudam a identificar o lugar das
práticas psicológicas nos CSF e os âmbitos percorridos por estas no espaço social em questão.
Nesse capítulo, o primeiro onde trabalhamos os resultados, discorremos sobre questões
retiradas das perspectivas de visão dos psicólogos sobre a ESF, reconstruindo o cenário onde
se desenvolvem as práticas psicológicas.
5.1 Visões do campo: características, prerrogativas e divisão do poder
Os participantes apresentam visões que subsidiam uma interessante análise da ESF, a
partir de diversos aspectos e perspectivas de interpretação. Tendo como foco o conceito de
campo social de Bourdieu (2012, 2008, 2004), buscamos desenvolver uma interpretação desse
espaço de práticas, apontando atravessamentos pertinentes a lutas e estratégias de ação
desenvolvidas pelos profissionais. A APS, assim, é compreendida e analisada como campo
social, onde a estruturação das práticas é atravessada por prerrogativas de atuação, que se
colocam como normatizações vigentes no cotidiano profissional. Tais prerrogativas de
atuação instituem novos processos de socialização profissional dos agentes, constituindo
novas disposições práticas e identidades profissionais caracterizadas pelo espaço das práticas
no campo. A análise das entrevistas, nesse sentido, nos possibilitou um repensar sobre as
características do espaço social da ESF, a partir das visões apresentadas pelos psicólogos,
reconstruindo a ESF dos psicólogos, como um produto histórico de intensos processos
socioprofissionais.
Para iniciarmos, destacamos algumas características do campo que são percebidas
como importantes para analisar a construção social das práticas psicológicas. Dentre os
aspectos ou características relevantes da APS, os participantes apontaram que o campo é
marcado por um tipo específico de demandas, em que se destaca a dimensão coletiva do
sofrimento ou dimensão comunitária dos casos individuais como um elemento de distinção,
que influencia a construção das práticas profissionais desenvolvidas. Desse modo, as práticas
em saúde desenvolvidas na ESF devem orientar-se por uma leitura social dos problemas de
saúde, onde o indivíduo precisa ser percebido em sua inserção no território/comunidade.
102
Assim, o objeto das práticas, nesse campo, é diretamente ligado ao entrelaçamento entre
contextos individuais e sociocomunitários.
Nesse ponto, a APS impõe a necessidade de territorialização das práticas, que
implica no reconhecimento das condições de vida dos usuários, bem como na possibilidade de
intervir coletiva e individualmente nelas. O CSF, situado perto do local de moradia das
pessoas, pode representar uma base de apoio para garantir o acesso aos serviços e a busca por
uma atenção integral às necessidades de saúde. Assim, o usuário da ESF é percebido em sua
especificidade, o que remete a um imperativo de reformulação de práticas para adequar-se ao
contexto de uma linha de produção atravessada pela necessidade de ações voltadas para uma
atuação na perspectiva social-comunitária.
O que fica mais pra mim, da atuação na atenção primária, é que a gente tem que
construir essa atuação a partir das demandas e das necessidades do território, porque
elas vão dizendo o que a gente vai desenvolver [...] Tem que ser flexível mesmo a
essa realidade, flexível, sensível.
Essa abertura para o território é uma das mais notáveis características do campo da
APS, percebidas pelos participantes, que se impõe na delimitação da prática profissional nos
diversos âmbitos onde ela se desenvolve. A territorialização é, assim, uma característica que
marca o tipo de prática profissional pela necessidade de abertura a diversas áreas e
abordagens técnico-científicas. Inserida nas diretrizes estabelecidas desde a criação do PSF, o
termo “territorialização” é compreendido como “ferramenta metodológica que possibilita o
reconhecimento das condições de vida e da situação de saúde da população de uma área de
abrangência” (MONKEN et al., 2008, p.246). Também pode ser considerada uma ferramenta
para o planejamento das ações, enfatizando seu caráter de coleta de dados para elaboração de
diagnósticos de condições de vida e situação de saúde. Assim, o processo de territorialização
visa à demarcação de limites das áreas de atuação dos serviços, o reconhecimento da dinâmica
social existente e o estabelecimento de relações com outros serviços da rede de atenção à
saúde. Acrescentamos que esse processo também permite o estabelecimento de vínculo entre
os profissionais e usuários-moradores do território comunidade, favorecendo a co-
responsabilização pela saúde, um dos princípios da ESF (CAMARGO-BORGES;
CARDOSO, 2005; OLIVEIRA; FURLAN, 2008).
Outro aspecto marcante da APS e que foi percebido como caracterizador desse
espaço social pelos participantes, é a necessidade de um trabalho de generalista. Como
relatada na frase de um participante: “Quando a gente está na ESF, existe uma perspectiva de
trabalho generalista, porque a gente tem que saber de tudo um pouco”. Esse trabalho de
103
generalista é uma matriz de identidade profissional, que demarca a definição e a representação
legítima das práticas em saúde nos CSF. Aqui, em certa medida, há pouco espaço para
especialismos ou abordagens profissionais limitadas a áreas específicas. Assim, a APS é
percebida pela certa promiscuidade teórica e metodológica que perpassa a construção das
representações das práticas, classificadas como articuladoras de áreas de atuação e abordagens
entre profissões e dentro das profissões. Essa articulação entre áreas inter e intraprofissionais,
além de uma marca do espaço de práticas da ESF, revela uma necessidade imposta como
prerrogativa de atuação colocada no cotidiano dos CSF. Assim, por exemplo, como relatam
alguns participantes, para atender à demanda, é necessário transitar entre diversas áreas do
conhecimento e saber reconstruir permanentemente as práticas nesse trânsito. Destaca-se,
novamente, a importância dos processos históricos situados nos territórios. Nesse processo de
trânsito entre áreas de atuação e saber é que, como apontado nas entrevistas, constrói-se um
caminho de atuação profissional adequado ao campo da APS do SUS.
E no meio de interfaces teóricas e técnicas, os agentes buscam estruturar pontos mais
estáveis para tecer uma delimitação de espaço através da negociação permanente de limites e
alcances da atuação. Criam-se, assim, pontos de encontro entre as áreas, que demarcariam
âmbitos específicos de prática interdisciplinares pertinentes à ESF. Esse ponto de encontro
deverá estar situado no trânsito entre diversas áreas de atuação.
Eu acho que a gente tem que tentar pensar um ponto de encontro em tudo, porque
não dá pra gente ser especialista em tudo, não dá pra eu ser especialista em
psicologia escolar, especialista em psicologia social.
Pesquisador: Isso aí já seria um desafio enorme.
É. Então, assim, nessa interseção de tudo, o que eu posso? É aquela história que a
gente vê nas categorias interdisciplinares e agora eu fiquei pensando como um
paralelo do campo e núcleo. Então assim, vai ter o núcleo ali que é a Estratégia,
aliás, o campo, e alguns núcleos vão se tocando. Então o núcleo escola, o núcleo
social, o núcleo saúde, o núcleo saúde mental. Mas, nessa interseção, aqui o que eu
posso fazer?
Um fazer de interseção entre áreas de atuação demarca o modo de desenvolvimento
das práticas, necessariamente interdisciplinares e promíscuas quando de suas interinfluências
com diversas áreas de atuação das profissões inseridas na APS. Como na entrevista abaixo
citada, várias áreas se comunicam para estruturar e fundamentar epistemológica e
tecnicamente as práticas psicológicas.
Psicologia da saúde, psicologia organizacional, psicologia clínica, como se cada
uma delas você fosse pra instituições diferentes. E, pra mim, na atenção primária
você precisa de conhecimento de todas elas pra atuar nessa perspectiva de ver o
indivíduo nessa sua trajetória e propor, mesmo pra ele, propor pras pessoas, não sei
se caminhos, mas alguns horizontes que talvez em alguns momentos o adoecimento
faz com que você não veja. [...].Então, hoje eu vejo que é necessário transcender as
104
áreas, as caixinhas, porque na atenção primária são diversas as demandas, porque no
fundo, no fundo ali é vida pulsante. Eu estou indo na escola, eu vou no posto de
saúde, eu adoeço, eu brinco. Sabe, é uma coisa que é tão dinâmica que exige que o
profissional também utilize de vários recursos tanto de conhecimento, quanto de
práticas.
Essa interseção permanente das áreas de atuação e abordagens teóricas aponta para a
complexidade da dimensão epistemológica da produção das práticas, sempre impondo certa
tensão atualizadora, um revisitar dos conceitos, teorias e técnicas mobilizados, nos encontros
cotidianos da ESF. Nesse aspecto, destacamos o limite das teorias existentes pra ligar com os
processos de trabalho na APS, percebidos como “angustiante novidade” pelos participantes:
Tudo é motivador, mas ao mesmo tempo angustiante. Saber que naquela semana
alguma hora, oito da manhã da sexta-feira, vai ter uma pessoa, que você ainda não
conhece ou se conhece vai apresentá-lo a uma questão, a uma problemática que você
não sabe pra onde ir, que você não sabe pra onde vai. Tem os nortes, que é a teoria,
o papel da teoria é fundamental. Mais ou menos, sabe-se que a gente não vai fazer
isso ou aquilo outro, a gente vai tentar trabalhar segundo tais horizontes, etc e tal.
Mas que efetivamente é tudo muito inédito.
O ineditismo percebido da APS se coloca como mais um imperativo histórico de
criação de práticas, que precisam ser sistematizadas e problematizadas nos níveis micro e
macropolíticos. Essas práticas precisam lidar com uma diversidade de sérios problemas de
saúde individuais e comunitários, casos graves e numerosos, que foram desafios para os
participantes da pesquisa. Nesse contexto, o desafio de compartilhar os saberes nas equipes e
entre CSF e comunidade fora também apontado. Nessa mesma perspectiva, outra
característica da ESF apontada nas entrevistas, é o caráter de rede que entrelaça os serviços de
saúde. Assim, esse fazer de interface, marcado pela interlocução, é também situado em rede
de serviços, que atende à prerrogativa de pensar-se na articulação não somente de profissões
intra e interequipes, mas entre serviços, entre políticas de saúde.
Você está aqui, mas você tem outros serviços, você tem outras coisas que estão
atuando conjuntamente ou eram pra estar, mesmo que não esteja, mas a organização
é essa. Então pensando nisso você não pode ter uma mentalidade de que “ah eu faço
a minha prática do jeito que eu quiser”, “ah eu faço minha prática sem pensar o que
existe pra além do centro de saúde que eu estou lotado”, digamos assim. Então eu
acho que isso dá uma marcação, isso dá uma marcação de que? De você precisar
entender como é que funciona o SUS, de você precisar conhecer um pouco os outros
serviços, de você precisar fazer uma prática que faça sentido dentro disso, dentro
dessa lógica.
A delimitação do espaço de atuação, dos âmbitos onde se deve atuar ou não, muitas
vezes, parece não estar nas mãos dos profissionais. Nesse aspecto, percebemos que o
generalismo do campo impõe certa pressão aos agentes, para que estes mantenham-se sempre
abertos a receber uma variedade enorme de demandas. Essa pressão pode implicar na perda de
105
autonomia das profissões na delimitação dos alcances e possibilidades de suas práticas.
Assim, percebemos que a APS impõe-se a partir de um processo estruturante das práticas, que
tendem a desenvolver um fazer com limites disciplinares flexíveis e permeáveis a outros
campos de saber e fazer.
Por exemplo, quando se chega na ESF, eu não vou dizer assim “eu quero só atender
criança”, “eu só sei atender adulto”, “olha, eu foquei e particularizo tal e tal ciclo de
vida”, não tem isso. “Visita domiciliar eu acredito que não seja interessante fazer
nesse aspecto”. Não tem isso.
Pensar o campo de práticas da ESF, nesse caso, é pensar no desafio de um fazer
interdisciplinar, intersetorial e em permanente tensão por mudança e permeabilidade, mas que
precisa se colocar como específico, sistematizar e consolidar alguns referenciais técnico-
científicos, para constituir posições e posicionamentos necessários às relações e trocas
existentes dentro do campo. Ademais das questões estruturais colocadas, que podem ser
pensadas como representativas do campo, algumas prerrogativas de trabalho parecem ser
denotativas do modo como os psicólogos vem se organizando em posições específicas e
definindo posicionamentos na definição de caminhos mais adequados ao fazer específico da
psicologia na APS. Tais prerrogativas, portanto, parecem específicas para a Psicologia,
mesmo que extremamente influenciadas pelas questões do campo de atuação e de produção de
saberes interdisciplinares da Saúde Coletiva. Aqui, muitos dos participantes apontam para
uma necessidade de modificação das práticas psicológicas, que seriam tradicionalmente
clínico-individuais e que precisavam mudar para uma abordagem mais contextualizada
socialmente. Entendemos que o espaço da ESF, pela imposição do caráter territorializado e
interdisciplinar, reatualiza o desafio histórico da psicologia de rever seus fundamentos
teóricos e práticos e compromissos sociais no contexto das políticas públicas brasileiras,
como apontado por outros estudos (BOCK, 2009; DIMENSTEIN, 1998; 2001; 2003;
MACEDO; DIMENSTEIN, 2011; 2012; YAMAMOTO, 2009).
As tensões por mudança nas práticas envolvem grandes discussões sobre as
prioridades de ênfases, que representam uma verdadeira disputa simbólica para definir o fazer
legítimo da Psicologia na APS. Percebemos aqui que agentes situados em diferentes
abordagens e interesses colocam-se em posicionamentos, muitas vezes conflituosos,
influenciados certamente pelas trajetórias anteriores de vinculação a grupos filiados a
abordagens teórico-metodológicas das psicologias. A polaridade entre a clínica e o social é
uma das dicotomias, ou falsa dicotomia – como aponta Benevides (2005), que o psicólogo
inserido na APS deve superar. Essa polaridade é alimentada por rivalidades, ora pequenas, ora
106
bastante intensas, que se evidenciam na maior ou menor adesão às abordagens clínicas e
psicoterápicas, por um lado e, por outro, às abordagens da psicologia social e comunitária. As
questões referentes à polêmica criada em torno das práticas psicoterápicas na APS serão
discutidas nos próximos capítulos.
Voltando nossa atenção para as características e prerrogativas da APS, percebemos
que os psicólogos identificam diversos desafios para o desenvolvimento das práticas
profissionais específicas. Além da dimensão social e comunitária, que chama para um
reconhecimento de questões do território na determinação do processo saúde-doença-
cuidado, outro exemplo significativo desses desafios é o trabalho com as famílias, que impõe
um conjunto de questões éticas e técnicas no delineamento das práticas.
Assim, porque esse entrar nas famílias, eu acho que tinha muitos desafios e que eu
considero éticos é com os outros profissionais não cuidarem mesmo das pessoas ta
entendendo, cuidar que eu acho nesse sentido ético, do respeito. [...] Enfim, por
exemplo, porque eu acho que muitas ações são, por exemplo, profissionais entraram
na casa das pessoas de um modo assim invasivo, isso pra mim era uma coisa ética
muito forte “meu Deus você ta entrando na casa do outro”, “você ta invadindo, e
você ta invadindo o modo de ser”, tipo assim, criticava tudo isso aqui não pode, tudo
gritando e tipo assim “você tem que fazer desse jeito e pronto”.
Nesse contexto a intervenção familiar apresenta-se como um desafio ético para a
prática psicológica. Aqui, temos uma prática marcada pelas questões intimas e confidenciais,
que ganham certa peculiaridade pelo fato de lidar com pessoas que moram num mesmo
bairro. As questões éticas que envolvem o sigilo com as informações obtidas na atenção à
saúde constituem-se como desafios, que remetem ao estabelecimento de acordos nas equipes,
de modo a estabelecer certos padrões aceitáveis de respeito às pessoas envolvidas nas práticas
de atenção à família. Muitos foram os questionamentos, nas entrevistas, sobre o trabalho na
perspectiva de um cuidado compartilhado que, muitas vezes, reflete-se em problemas de
desrespeito a intimidade das pessoas tão primada pela formação em psicologia.
Nesse contexto de discussão, percebemos que o fato de ser um agente do Estado
incomodou alguns dos participantes, que relataram sentir o peso desse lugar normativo, de
quem participa de um fazer disciplinar e tutelar. Assim, pelo que foi colocado pelos
participantes, as posturas “policialescas” precisam ser combatidas, visando o fortalecimento
da autonomia dos usuários, num contexto de um agir profissional ético e emancipatório.
Acho que tem um dilema que é da autonomia das pessoas. Assim que, às vezes, na
atenção primária, a postura é muito policialesca, dentro de uma visão até mesmo de
uma verticalização das ações, você tem que fazer isso, “a gestante tem que ser
acompanhada!”. Então assim, acaba que um dos dilemas éticos e políticos também,
nessa perspectiva, é de garantir autonomia, “eu não quero ser acompanhada”, “eu
não quero essa coisa”. Vamos entender porque, mas eu não posso ir na casa das
107
pessoas, entrar na casa das pessoas ou fazer aquilo porque o Ministério quer que eu
faça. [...] o papel nosso não é de obrigar ele a se cuidar, é de entender e pensar junto
com ele aquela realidade e ajudar na decisão do caminho que ele vai seguir. Então,
acho que esse seria assim o principal dilema.
A verticalidade dos programas da ESF é percebida como um obstáculo para o
desenvolvimento de ações mais contextualizadas com as necessidades de saúde dos usuários,
já que engessa os processos de trabalho voltados para uma atenção mais ampliada. Há certo
consenso de que a APS, no caso brasileiro, reduz-se a um programa restritivo e limitado, no
que tange à resolução prioritária de problemas de saúde restritos. As informações construídas
nas entrevistas, também colocam em evidência a precarização do trabalho na ESF.
Corroborando com as ideias de Gil (2006), que analisa concepções e experiências de Atenção
Primária e Atenção Básica no Brasil, torna-se importante questionar o processo de
precarização por qual vem passando as políticas de atenção primária ensejadas pela ESF.
Segundo Gil (2006), articulam-se conflituosas propostas de ampliação da cobertura com a
racionalização e redução dos gastos, no seio da constituição de um SUS híbrido, resultado de
lutas pela melhor definição das políticas públicas num contexto de afirmação do
neoliberalismo. Destacam-se, nesse processo contraditório, grandes fragilidades no que tange
ao atendimento das necessidades de saúde, onde as práticas profissionais enfrentam
problemas ligados à gestão rígida, na linha das ações programáticas de saúde, que estruturam
as práticas de uma ESF restrita e subfinanciada (GIL, 2006).
Voltando-nos ao conjunto de características e desafios próprios da APS, relatados
nas entrevistas, um problema a ser superado, no sentido de aprofundamento e qualificação da
inserção da prática da psicologia na ESF, é a falta referencias orientadores da ação. Ainda na
perspectiva de saber lidar com um fazer generalista e suas exigências cotidianas, a falta de
referências inquieta, desconforta e, de certo modo, vulnerabiliza o profissional frente a uma
ampla gama de problemas de saúde.
Quando eu cheguei na ESF eu disse “legal, parece um campo aberto a muitas
possibilidades”. Mas aí é uma liberdade tão grande [...] e aí por essa liberdade às
vezes o psicólogo, ele acaba estando tão solto que ele acaba dizendo amém pra
algumas concepções, que se tem da psicologia e outras que vão se formando dentro
da ESF.
O espaço da APS é aquele marcado por uma diversidade e uma intensidade de
demandas oriundas de graves e, muitas vezes, incontornáveis problemas de saúde da
população, frente aos quais os profissionais têm de se posicionar de modo adequado na
delimitação de práticas consequentes e efetivas. Em meio às pressões das demandas, as
representações do que é ou deve ser a prática profissional nos espaços do CSF, abrem espaços
108
para intensas lutas entre os agentes inseridos no cotidiano dos serviços. Dentro de uma
perspectiva bourdieusiana (BOURDIEU, 2012; 2008; 2004), campo constitui-se como um
espaço social marcado por estruturas estruturantes específicas, que impõem limites para o
desenvolvimento das práticas. Todo o espaço social da ESF, assim, é marcado por lutas pela
legitimação das práticas profissionais desenvolvidas, onde os agentes investem na busca de
consolidar uma visão favorável a ampliação da autonomia profissional. O capital acumulado
por agentes e instituições, que é fruto de um trabalho passado, definem probabilidades de
ganho a partir da posição ocupada no espaço. No que diz respeito ao capital simbólico,
expresso no prestígio e reputação, podemos pensar as relações de lutas pelo poder de fazer,
ver, crer e mesmo impor uma classificação legítima. Desse modo, são travadas disputas
profissionais para definir o que é e o que não é legítimo de se fazer na ESF. No caso da
psicologia, o que é e o que não é papel do psicólogo, o que é e o que não é demanda para a
psicologia, qual a melhor forma de agir, quais as ações mais efetivas, etc. Essa discussão será
melhor desenvolvida no próximo capítulo.
A inserção da psicologia no cotidiano dos CSF tem colocado aos psicólogos desafios
ligados ao revisitar de suas abordagens, visando o fortalecimento de determinadas
perspectivas de atuação. Tais perspectivas, que também constituem os campos da psicologia e
Saúde Coletiva e são por eles constituídos, são diversas e conflituosas e revelam geralmente
uma disputa entre a hegemonia/ortodoxia e contra-hegemonia/heterodoxia. Assim, o campo
de práticas da ESF, constitui uma arena onde lutas históricas das profissões se apresentam e
também cria novos embates que reverberam nos campos intra e interprofissionais. Assim,
vivemos um momento fértil de possibilidades e entraves políticos e epistemológicos a
superar. No que tange a preparação dos novos profissionais para inserir-se nesse contexto,
vivemos um momento de consolidação de algumas práticas e perspectivas teórico-
metodológicas. Adiante teremos oportunidade de conhecer os âmbitos de prática em que os
participantes se envolveram, com vistas a identificar posições ou lugares ocupados pela
psicologia no campo.
A partir das visões apresentadas pelos participantes da pesquisa, a ESF é um espaço
também marcado pelo trabalho em equipe multiprofissional e pela divisão e classificação
hierárquica das ações profissionais. No trabalho com outras profissões destacam-se
colaborações, articulações e disputas. Numa trama relacional característica da ESF, os
profissionais apontam alguns pontos em comum, entre as disciplinas e entre as trajetórias de
formação dos agentes, para estabelecer bases de comunicação e trocas voltadas para
estabelecimento de consensos satisfatórios em torno das práticas a realizar. No caso da prática
109
dos psicólogos nas equipes multiprofissionais, alguns temas e questões foram identificados
como facilitadores de diálogos e articulações profissionais. O trabalho com o corpo e a
corporeidade, um exemplo de prática discutida em uma das entrevistas, constitui-se como um
objeto de intervenção onde profissionais da nutrição, educação física e psicologia se
mobilizam em ações complementares. Tais ações em equipe apontaram para algumas
aprendizagens:
Eu aprendi de repente a tentar objetivar mais algumas coisas, a fuçar mais algumas
coisas também, inclusive a partir de outros olhares. Como eu tava te falando, eu fui
aprender coisas sobre nutrição, sobre fisiologia, sobre os processos fisiológicos. Fui
aprender sobre questões musculares, sobre tensões musculares, sobre as limitações
do próprio corpo e aí eu fui começando a observar essa pessoa de uma maneira
integral mesmo. Fui começando a ver a pessoa de uma maneira inteira. Então assim,
você começa a aprender a função ou potencial ou pra quê é que serve aquela outra
categoria. Você se apropria desse discurso a nível de campo, de algo mais amplo ao
o que você consegue compreender e isso te permite dialogar com essas outras
categorias. Eu acho que isso foi a maior assim sacada, acho que foi o que foi mais
legal sabe, de eu sentir que eu podia dar uma escuta melhor.
O diálogo com outras profissões remete a uma abertura pra conhecer, entender e
negociar possibilidades de práticas colaborativas articulando múltiplos pontos de vista. A
interpenetração de saberes e práticas no desenvolvimento do trabalho em equipe na ESF foi
uma característica apontada por alguns dos entrevistados. As relações interprofissionais são
complexas e abrem brechas para amplas possibilidades de investigação na ESF. Em nosso
caso, interessa-nos problematizar as relações interprofissionais que atravessam o
desenvolvimento das práticas psicológicas.
Na APS a proposição é isso, você trabalhar com outros profissionais, com outras
categorias. E é difícil em alguns momentos. Mas assim, é muito bom [...] eu me
deixei me atravessar muito pelas profissões [...] eu gosto assim de me deixar
atravessar e saber o que isso vai trazer pra mim, e também com as equipes assim de
entender esse lugar do outro.
O desenvolvimento das práticas psicológicas na ESF é permeado pelo conjunto de
relações do CSF, como um todo, com as comunidades e suas instituições, bem como pelas
relações micropolíticas estabelecidas entre as equipes existentes e seus profissionais. Isso
implica, do ponto de vista da investigação sobre as práticas, reconhecer o caráter específico e
local dos processos de definição das ações. Em nosso caso, identificamos um conjunto de
relações que se estabeleceram no processo de produção das práticas profissionais em equipes
da ESF. Dentre esse conjunto de relações, os diálogos da psicologia com outras profissões e
ocupações citadas pelos participantes foram: enfermagem, nutrição, educação física,
medicina, agentes comunitários de saúde e serviço social.
110
Nesse contexto de articulações profissionais, as relações de aproximação e
distanciamento com os profissionais do serviço social nos são exemplares, pois apontam para
o caráter complexo e contraditório das relações interprofissionais, marcadas pela cooperação,
negociação e pela disputa de poder. Assim, percebemos que as relações entre psicologia e
serviço social, foram marcadas pela tensão da disputa por âmbitos de práticas decorrentes de
uma aproximação entre os objetos de intervenção profissionais. Nesse processo de
aproximação tensa entre objetos de intervenção, pudemos identificar um terreno de lutas
profissionais, entre aqueles focados na leitura do social e dos direitos de cidadania e aqueles
focados no olhar para o sujeito diante dos problemas sociais. Essa luta é uma luta para
definição da melhor perspectiva, um luta pelo direcionamento das práticas, pela legitimação
de um foco específico – que implica diretamente no reconhecimento e valorização das
especificidades profissionais.
Por exemplo, eu queria colocar o exemplo das assistentes sociais porque muitas
coisas são parecidas das assistentes sociais, são convergentes assim da psicologia.
Debruçar-se sobre esses processos sociais do território, das famílias. Só que quando
a gente, psicólogo, entra, eu acho que a gente olha mais pra esse processo das
pessoas, das famílias, esses processos singulares, nesse sentido de como eles estão
acontecendo e a partir disso a gente vai trabalhando. Eu acho que a gente escuta
mais... não é que a escuta seja do psicólogo, mas que a escuta do deixar a pessoa, o
que aquela pessoa está dizendo, o que aquela família está dizendo, o que aquela
realidade ta dizendo e aí a gente atuar, eu vi muito isso. Por exemplo, as assistentes
sociais tende a tratorar os processos [...]
(outro participante)
O serviço social já é mais próximo, enfim, por cuidar de muitos processos comuns,
mas existiam dificuldades do serviço social com psicólogo. Pelo menos aqui de
Fortaleza quase ampliada sente isso, porque existe, o serviço social ele pede uma
leitura crítica da realidade, mas falta como olhar pra esse sujeito. Às vezes, a questão
do sujeito de direito... sujeito de direito até é um conceito que eu acredito, mas a
cidadania está pra além daquele sujeito de verdade. Então, muitas vezes, era mais
importante resolver aquela situação de violação de direito e não sei o quê, do que
enxergar o sujeito naquilo. E aí foi sempre um exercício assim, foi sempre um
exercício de troca, de estar “não, mas espera aí vamos olhar assim”, não é que foi
mais difícil, mas deu mais trabalho.
(outro participante)
Assim, é uma relação muito simbiótica assim. Ao mesmo tempo, porque a gente
vive uma problemática social, a problemática social perpassa tudo, assim como a
problemática psicológica dos afetos.
A disputa e a colaboração profissional na APS revelaram um terreno ambivalente e
contraditório em que o trabalho em equipe é reconhecido como um fator de potencialização
das práticas profissionais (pelo contributo interprofissional), mas também de tensão pela
demarcação do melhor ponto de vista e objeto de intervenção. As dificuldades de articulação
de ações entre equipes, especialmente das equipes de apoio (os NASF e RMSF) com as
111
equipes mínimas, fora um desafio explicitado na análise do campo da APS, pelos
participantes. Como exemplo desse desafio citado, o exercício de práticas dentro da
proposição de uma clínica compartilhada, expressa o modo como uma prerrogativa da APS, a
do trabalho em equipe, entre equipes e serviços, remete a uma negociação permanente dos
processos coletivos, que perpassam o trabalho de definição, execução e avaliação das práticas.
Essa história da gente fazer uma clínica com outras pessoas [...] tentando encaixar na
rotina de trabalho de um médico, numa atuação conjunta. Um atendimento conjunto
com a gente, tentando puxar o médico com a enfermeira da equipe mínima, pra fazer
uma atividade com a gente. A gente começava a mexer em questões do cotidiano de
trabalho dessa galera e da própria forma do trabalho do posto ser organizado. [...]
Porque assim, ao mesmo tempo, a gente tentava organizar a minha rotina de trabalho
enquanto psicólogo, a rotina de trabalho da equipe multiprofissional da Residência e
também da equipe mínima. Porque, se tinha um atendimento que tinha que ser feito
com ele - com o médico, por exemplo, porque tinha que organizar, pra, em algum
momento, ele ter um espaço pra o atendimento em saúde mental ou, em algum
momento, ele fazer uma visita institucional pra gente na escola ou participar de um
grupo de promoção, que a gente tava fazendo. Então assim, se você trabalha
conjuntamente você mexe com o seu trabalho, mas mexe com o do outro também. E
aí, isso é um desafio grande também.
A organização de uma agenda de encontros entre categorias profissionais é uma
necessidade política para organização das práticas na APS, pelas interfaces estabelecidas nos
processos de trabalho em equipe multiprofissional. As articulações eram necessárias para
compartilhar os desafios cotidianos do trabalho e criar um espaço de participação coletiva
para a problematização e definição das responsabilidades, alcances e limites das práticas
profissionais. Na APS, o profissional conta com a equipe, seja para receber casos ou
problemas encaminhados, seja para contar com o apoio de outros na resolução de problemas a
enfrentar.
A gente estruturou um cronograma, que toda, pelo menos uma vez no mês, a gente
tem uma reunião com a equipe. Toda equipe, a gente tem uma reunião. [...] Porque
eles pegavam a gente no corredor, passavam as coisas assim como se fosse bem
soltas. [...] Surgiu essa necessidade de sentar e conversar. Sentar sobre as visitas,
sentar sobre os grupos, que a gente pretende fazer.
A visão dos participantes da pesquisa sobre a ESF é determinada pelo lugar que eles
ocupam no campo. Esse lugar é caracterizado pelos significados e sentidos construídos sob o
prisma de quem faz parte de uma equipe de apoio, matriciadora de ações junto a outras
equipes situadas em vários CSF. Essa condição de equipe de apoio marca o tipo de fazer
profissional desenvolvido e suas representações, bem como demarca a perspectiva de análise
que desenvolvemos aqui. Falamos, assim, da perspectiva de um agente promotor de práticas
voltadas, além de questões específicas da profissão, para responder demandas construídas
pelo encaminhamento realizado pelas diversas equipes mínimas, já estruturadas na ESF,
112
situadas nos territórios amplos em que os profissionais estiveram inseridos. Nesse contexto, é
importante destacar a prerrogativa estabelecida pelas diretrizes da APS, nos planos macro e
micropolíticos, de que os psicólogos, como membros de equipes multiprofissionais de NASF
e RMSF, não deveriam ser porta de entrada para a APS – o que implica numa relação de
condicionalidade das práticas das equipes de apoio. O fazer psicológico, assim é amarrado às
demandas de outras categorias, especialmente as já consolidadas da equipe mínima da ESF7.
Essa condição de equipe de apoio será uma demarcação fundamental para a classificação
hierárquica das ações profissionais nos CSF.
Os participantes, em sua grande maioria, constroem uma percepção das relações
profissionais marcada pela hegemonia da medicina e do modelo biomédico na organização e
classificação das práticas em saúde nos CSF. As relações, assim, são percebidas como
hierarquizadas e o lugar do psicólogo, de onde analisamos essa hierarquia, é subalternizado
frente ao poder ensejado pelas práticas médicas. Essa hierarquia, claro, é relativa aos lugares
ocupados singularmente pelos participantes, no campo da APS. Desse modo, algumas
vivências de trocas, negociações e conflitos profissionais vão determinar a visão que se tem
sobre o campo. No entanto, encontramos aqui a exposição e discussão de posicionamentos
que, embora diversos, no que diz respeito a contextos específicos de práticas vivenciados, nos
permitem fazer uma interpretação sobre o modo complexo como as práticas profissionais se
relacionam no campo de práticas da ESF.
Barros (2002) desenvolve uma análise do modelo biomédico e sua limitação e
pertinência no processo saúde-doença, que é bastante útil a nossas pretensões de analisar o
espaço social da APS do SUS. Segundo o autor, a constituição desse modelo explicativo e de
intervenção em saúde decorre de um longo processo histórico de raízes na renascença e
perpassa a construção do método científico moderno de produção de conhecimento sobre o
corpo humano, as doenças, suas manifestações e cura-tratamento. Todo esse processo
histórico e social remete à própria construção social da medicina como ciência e profissão
socialmente reconhecida. A legitimação social da medicina implica direta e indiretamente na
crescente medicalização da sociedade que, por sua vez, é também fruto do desenvolvimento
do capitalismo, da mercantilização da saúde. Segundo o autor:
Na medida em que o acesso ao consumo foi convertido no objetivo principal para o
desfrute de níveis satisfatórios de bem-estar, bons níveis de saúde passaram a ser
7 Os relatos dos participantes da pesquisa corroboram com essa prerrogativa apenas parcialmente. Muitas
demandas tinham como porta de entrada os próprios psicólogos. No entanto, a prerrogativa era respeitada em
muitas situações, por sua legitimidade legal, aceitando-se apenas as demandas que chegavam pelas equipes
mínimas dos CSF. Assim era preciso saber manejar a seu favor a condição de apoiador.
113
vistos como possíveis na estreita dependência do acesso a tecnologias diagnóstico-
terapêuticas. A eficácia e efetividade das mesmas passam a confundir-se com seu
grau de sofisticação.[...] Os fenômenos referidos foram sendo instaurados ao longo
da evolução técnico-científica por que vão passando as ciências biomédicas, antes
comentada, e se intensificam no último século, consolidando o modelo biomédico e,
como parte dele, a medicalização. Esta pode ser entendida como a crescente e
elevada dependência dos indivíduos e da sociedade para com a oferta de serviços e
bens de ordem médico-assistencial e seu consumo cada vez mais intensivo. [...] Está
aberto o campo para a gestação do 'complexo-médico-industrial' e para a mais ampla
possível mercantilização da medicina, com todos os malefícios daí decorrentes,
especialmente no acesso não equânime e universal aos serviços médico-
assistenciais, inclusive aos essenciais e o que é mais grave, ainda, nas sociedades,
como a nossa, marcada por cruel concentração da renda e, daí, de todos os bens e
serviços. (BARROS, 2002, p.76-78).
Barros (2002) destaca que muitas limitações do modelo biomédico se tornaram
evidentes em paralelo ao seu próprio desenvolvimento. A percepção de tais limitações abre
espaço para um conjunto de práticas em saúde, entendidas como complementares ou
alternativas. Na presente pesquisa, pudemos evidenciar a hegemonia da categoria médica na
constituição do espaço de práticas na ESF, o que reverbera no prestígio e reputação adquiridos
pelas práticas pautadas no modelo biomédico. No intuito de testar o pressuposto, derivado de
experiências profissionais e de pesquisa, de que o espaço da APS é marcado por uma estrutura
hierarquizada de relações de poder entre as profissões, buscamos incluir nas entrevistas
perguntas referentes a percepção de hierarquias nas relações dentro dos CSF, do
reconhecimento e valorização da psicologia na ESF (ver em anexos os roteiros de entrevista).
No que diz respeito à percepção de hierarquias nas relações, em apenas um dos 18
entrevistados, pudemos analisar uma experiência exitosa no que diz respeito ao
desenvolvimento de práticas interprofissionais percebidas como horizontais, com pouca
ênfase em desigualdades de poder. Nessa experiência, deve-se ressaltar, destacou-se a
vivência de relações de cooperação e diálogo com outras profissões, especialmente a médica.
Para o participante, a cooperação interprofissional com a medicina é destacável como um
diferencial positivo de sua experiência vivida na APS. Em seu caso, foram ressaltados os
dispositivos de troca criados entre RMSF e Residência de Medicina de Família e
Comunidade. Os diálogos e cooperações também foram destacados na experiência de muitos
outros entrevistados, e foram descritos como facilitadores de processos de negociação e
parcerias interprofissionais. No entanto, a análise do todo do material construído nas
entrevistas, nos permite afirmar que os diálogos e cooperações existentes não foram
suficientes para a negação ou transformação de relações hierarquicamente estruturadas na
ESF. A experiência dos participantes da presente pesquisa, nos dá subsídios para uma reflexão
sobre desigualdades de poder e estratégias de dominação nas práticas do campo.
114
Assim, a hierarquia de poder nas relações profissionais é uma marca relevante da
APS. Dentro dessa hierarquia percebida, o modelo biomédico aparece como estruturador das
trocas simbólicas e elemento de regulação das classificações e valorações das práticas.
Eu tenho a impressão que ainda tem uma hierarquia regulada por essa hegemonia da
medicina, enquanto a profissão de ponta ainda desses espaços, muito embora o
campo, ele tenha se constituído, enfim, a partir de uma crítica a essa hegemonia. E
eu acho que ele não conseguiu ainda se livrar dela.
A percepção da hierarquia médica na ESF corrobora com a hegemonia da medicina
no plano sociocultural, o que já fora problematizada por estudos clássicos e mais gerais
(ILLICH, 1975; NOGUEIRA, 2003) e também focados na perspectiva da desmedicalização
nos serviços de saúde (ROMAGNOLI, 2009; TESSER; NETO; CAMPOS, 2010). Na
experiência dos participantes, essa hierarquização marca o processo de trabalho da APS com
um conjunto de privilégios e regalias da categoria médica na organização de uma agenda de
trabalho e de favorecimentos quando da definição das condições de trabalho e contratação.
Dentre as questões apontadas, essa hierarquia de poder produz sofrimento aos demais
trabalhadores, pela não autorização de algumas práticas, que ficam subalternizadas frente ao
controle imposto pelo modelo biomédico. Um exemplo dessa hierarquia, no plano
macropolítico, é a regra de avaliação da composição das equipes mínimas da ESF nos
municípios, em que somente é considerada completa a equipe se esta tiver médico. Outros
exemplos, trazidos nas entrevistas, apontam para o poder do encaminhamento médico, como
evidência do domínio desse especialista no desenvolvimento e legitimação das práticas. A
centralização do poder de encaminhar casos para outros profissionais, especialmente para os
de outras especialidades médicas, implica na desautorização de outros agentes envolvidos na
construção das práticas da APS.
Por exemplo, uma criança só pode chegar por encaminhamento via o parecer do
médico. O paciente que vai encaminhado pro CAPS ele também precisa do parecer
do clínico, do médico, pra poder esse encaminhamento se efetivar. E eu acho que aí
nessa ponta mesmo, assim estão os agentes comunitários da saúde, eu acho que a
produção de um sofrimento também se dá por uma desautorização em que eles se
acham, que eles experimentam de que a sua atuação possa ser uma atuação
consequente. Por exemplo, eles falam muito “poxa a gente identifica, a gente
encaminha, a gente consegue inclusive estabelecer uma referência pra receber esse
sujeito e no meio do caminho esse trabalho se perde, porque ele tem que passar pelo
médico ou aqui ou lá e esse encaminhamento não consegue ser efetivado”.
A estrutural desautorização das práticas não-médicas é uma característica da ESF
percebida pelos psicólogos. O poder médico impõe-se na definição de uma dinâmica de
relações profissionais e entre serviços, cujo ritmo e perspectivas das práticas estão sob
115
controle de médicos. Nesse contexto, a prática psicológica é inferiorizada frente a prática
médica, e sua dinâmica é afetada pelo domínio imposto pela hegemonia do modelo
biomédico. Dentre as características da APS apontadas pelos participantes, a sua estrutura
hierarquizada e dominada pela medicina, corrobora para a desvalorização da ESF como
espaço profissional de atuação para os psicólogos. Assim, para a maioria dos entrevistados, a
ESF representa um período de passagem em suas trajetórias profissionais. Isso não é só
psicólogos, mas também para muitos outros profissionais. Defende-se a ideia de que, pela
precariedade das condições de trabalho da APS, os profissionais sempre estão à espera de ter
oportunidades para abandonar. As condições precárias de trabalho da APS são percebidas
como desfavoráveis ao bom desenvolvimento das práticas profissionais. E isso não se
restringe à condição da psicologia, estende-se para todas as profissões. Assim a APS, como
dito em uma das entrevistas, é percebida como “uma chuva que passa na vida da pessoa:
deve-se sair dela”. Vários são os profissionais incluídos nesse grupo de insatisfeitos com a
ESF.
Você pode ver que pro enfermeiro a atenção primária também é uma chuva, tudo
que o enfermeiro quer é se livrar dali porque a demanda é enorme, porque são
quarenta horas, porque é a população batendo na porta. Pro médico é uma fila
interminável. Pro profissional da psicologia uma agenda lotada [...] Você não ganha
bem, você não tem segurança no trabalho, você trabalha quarenta horas [...] Então,
eu vejo isso hoje, tanto é que muito dos psicólogos que estão na atenção primária
são recém formados.
Concebido dessa forma, o campo de práticas é apreendido como um espaço de
passagem na carreira profissional, um espaço constituído por condições precárias ou
indesejáveis de atuar. Um espaço que se deve buscar sair, já que não reserva atrativos e
perspectivas de práticas a se investir a médio e longo prazo. Coloca-se aqui, a necessidade de
fortalecimento das condições de trabalho, que precisa ser objeto de reflexões renovadoras das
políticas de contratação e que possam, no plano da gestão do trabalho para o SUS, possibilitar
a constituição de planos de cargos e carreiras atrativas para os profissionais. Estamos assim,
diante de problemas macropolíticos, referentes à constituição precária de um campo de
práticas em saúde que, contraditoriamente, como vimos, é entendido como estratégico para a
estruturação do SUS. No NASF, por exemplo, as condições de trabalho são vistas como
precárias. Dentre os aspectos apontados pelos participantes estão: as condições de
contratação, os salários, a carga horária inflexível e a grande demanda existente decorrente de
um território de atuação também grande.
Lancman, Gonçalves, Cordone e Barros (2013) destacam importantes aspectos para
pensar o trabalho profissional desenvolvido nos NASF e que corroboram com os resultados
116
que obtivemos na presente pesquisa. No que diz respeito às características da organização e
das condições de trabalho no NASF, as autoras apontam para uma grande variabilidade de
tarefas centradas, prioritariamente, para ações compartilhadas entre NASF e equipes mínimas
da ESF. Assim como vimos em nossa pesquisa, muitas ações encontram empecilhos, pois
dependem diretamente da relação entre NASF e equipes mínimas, as quais tem processos de
trabalho diversos e exigências também diversas, implicando em permanentes conflitos de
interesses. Destacam-se carências de recursos para o desenvolvimento do trabalho específico
das equipes multiprofissionais do NASF, bem como a precariedade das redes de serviços para
viabilizar a atenção integral às necessidades de saúde em articulação com a APS. Outro
aspecto relevante da organização do trabalho do NASF é a inadaptação dos critérios de
produtividade existentes para contemplar a complexidade do processo de trabalho
desenvolvido.
No que diz respeito à psicodinâmica do trabalho no NASF, Lancman et al. (2013)
apontam para dúvidas e incompreensões, que perpassam a implantação das ações no espaço
da ESF. Segundo as autoras:
Dúvidas, ambiguidades e dificuldades perpassavam a implantação dessa proposta
pioneira. O cenário de trabalho era algo a ser inventado cotidianamente, para
viabilizar a criação de espaços em que fosse possível trabalhar e construir uma nova
prática na atenção primária. Como o trabalho do NASF dependia diretamente do da
EqSF, cada iniciativa tornava-se um processo de reafirmação constante de parceria.
(LANCMAN et al., 2013, p. 972).
Uma espécie de invenção cotidiana do trabalho do NASF é permeada pela luta
permanente pela constituição de um lugar, ainda impreciso e desconhecido, na produção das
práticas na ESF. A necessidade de articulação e dependência quanto às equipes mínimas
aponta para uma limitação de poder na implantação das ações no espaço dos CSF, que
também fora observado em nossa análise das práticas psicológicas. Assim, nesse contexto,
Lancman et al. (2013) apontam para a ambiguidade e invisibilidade que perpassam a
experiência subjetiva dos trabalhadores nos NASF:
Dessa ambiguidade de relações, da invisibilidade do seu trabalho, da sensação de
não lugar e de não pertencimento, decorria a dificuldade de serem reconhecidos
pelas suas ações e contribuições. Tais condições dificultavam a construção da sua
própria identidade. De forma geral, todos se esforçavam para definir uma prática que
os diferenciasse dos demais profissionais que compunham o mesmo cenário nas
UBS. (LANCMAN et al., 2013, p.973).
APS do SUS tem se estruturado a partir da prática médica que, como pudemos ver, é
o profissional que domina o campo. Além da reinterada desigualdade a favor da categoria
médica, foi também apontado pelos participantes, certa inadequação de perfil dos médicos
117
envolvidos nas experiências que tiveram na ESF. Essa inadequação fora percebida como
baixo engajamento nas ações, elitismo, falta de compromisso com o trabalho e falta de
conhecimentos técnicos para atuar dentro das prerrogativas da APS, já apontadas acima como
territorialização, trabalho interdisciplinar e intersetorial. Podemos, desse modo, pensar o
campo da APS como um espaço de práticas de saúde onde a categoria médica direciona o
processo de desenvolvimento das práticas, com significativa independência frente às diretrizes
e princípios preconizado pela política da ESF e pela gestão local dos serviços estudados. Esse
domínio dos médicos é constituído de diversos modos e demarcações de poder, que se
estruturam no cotidiano percebido das relações de trabalho.
Eu acho que tem algumas demarcações de poder. Por exemplo, a gente ta lidando
com quem da equipe mínima? É com médico, enfermeira e o agente comunitário de
saúde. A gente percebe que o médico tem uma flexibilidade pra produzir o horário
dele do jeito que ele quiser. Então, assim, tem médico que diz “olhe, quinta-feira
tenho plantão no hospital tal e eu não trabalho”, e o cara não trabalha. É contratado
pra quarenta horas de segunda a sexta, mas quinta-feira ele não trabalha, ele definiu
isso. Ou então o cara diz assim: “não, eu atendo tantos pacientes por dia e
terminando esses pacientes eu vou embora”, o cara atende rápido e pode tipo, dez
horas, ele ter terminado. Ou até assim, isso não acontecia no meu posto, mas eu
sabia de posto que era assim: o cara chegava seis e meia, sete horas e dava nove, ele
já tinha atendido uma galera e ia embora. E aí assim todo o resto das coisas do posto
acontecendo ali naquele turno. Mas ele tinha terminado a prática dele, né! Então
assim, quem é que consegue fazer isso? Quem é que tem essa autoridade pra dizer
“eu trabalho assim e ponto final”?
O poder simbólico dos médicos para definir o melhor modo de organização das
práticas de forma arbitrária é uma das marcas do processo de trabalho em equipe da ESF.
Ficou claro, na análise das entrevistas realizadas, o poder da categoria impor uma definição de
suas práticas profissionais à revelia dos interesses dos outros agentes inseridos no campo.
Dentre os problemas decorrentes de usos e abusos do poder médico, que marca o cotidiano na
ESF, os participantes percebem que o sistema de saúde é, geralmente, colocado como refém
dos interesses médicos, que conseguem legitimar um lugar privilegiado nas relações
construídas no campo. Percebe-se que a própria APS, tem sofrido influencia das lutas em
torno do desenvolvimento da prática médica incorrendo em contradições especialmente no
que diz respeito ao impulso desmedicalizador da ESF.
Romagnoli (2009), em estudo sobre as práticas da ESF em Betim (Minas Gerais),
destaca a hegemonia da medicina na constituição do modelo assistencial desenvolvido, o qual
apresenta fragilidades no conhecimento do território e das necessidades de saúde da
população. A autora identifica como problemas da ESF, a ênfase preponderante nas práticas
centradas na terapêutica medicamentosa, a pouca articulação das redes de atenção em saúde
mental e a dificuldade de se trabalhar com grupos. Para Romagnoli, o processo de
118
institucionalização das práticas, é marcado pela prevalência de relações hierarquizadas de
saberes e poderes, em que se percebe a hegemonia do modelo biomédico e da frequente
medicalização do sofrimento.
Os outros profissionais agentes no campo da APS absorvem diretamente o caráter de
complementaridade e subalternidade frente às práticas médicas. A enfermagem, como
exemplo de profissão que já conquistou seu lugar na equipe mínima da ESF, vem ocupando
um lugar de relativo destaque na organização dos processos de trabalho, o que representa a
ocupação de uma posição de certo privilégio na hierarquia das práticas profissionais. Embora
em desvantagem frente à medicina, a enfermagem ocupa um lugar privilegiado na
estruturação das práticas na ESF, pois desenvolve um papel importante na coordenação das
ações das equipes mínimas, tendo como função, dentre outras, a coordenação do trabalho dos
Agentes Comunitários de Saúde, agentes que tem grande permeabilidade nos
territórios/comunidades em que as práticas desenvolvem-se.
A odontologia, também componente da equipe mínima, fora percebida como uma
profissão reconhecida e procurada pela população, mas que desenvolve um trabalho bastante
isolado ou em paralelo frente às outras profissões. Reconhecida por um dos participantes
como uma espécie de “apêndice da ESF”, a odontologia se coloca num nível semelhante ao da
enfermagem – pois é uma profissão estruturada nas equipes mínimas, mas um pouco abaixo,
na hierarquia, pelo baixo poder de influenciar a organização dos processos de trabalho em
equipe. Dito de outro modo, podemos pensar a odontologia como uma profissão bem situada
na estrutura do campo, mas pouco poder estruturante das ações multiprofissionais da ESF,
desenvolvendo um conjunto de práticas voltadas mais para o interior do contexto do
consultório odontológico. Quando fora do consultório, o dentista é visto nas escolas públicas
do território, mas com baixa articulação com as equipes multiprofissionais da ESF. Os
problemas de saúde odontológicos parecem definir um espaço de atuação autônomo dentro da
ESF e que, no mínimo, em nosso caso, não apresentou interelação com a prática psicológica.
Ademais das relevantes oportunidades práticas, muitas vezes contra-hegemônicas e
heterodoxas, criadas com a implementação dos NASF, as desigualdades de poder demarcam o
cotidiano de trabalho nos CSF. A região ocupada por esses profissionais no campo da ESF
compõe um espaço plural de onde se origina uma diversidade de perspectivas de práticas em
saúde. No entanto, o espaço ocupado pelo NASF fora percebida como inferior frente ao das
equipes mínimas. Nessa visão do campo, as novas profissões, que integram a ESF, ocupam
uma posição complementar e inferior, especialmente, no que diz respeito à hegemonia dos
saberes e práticas construídos na perspectiva do modelo biomédico. A partir das experiências
119
analisadas, percebemos que há certa polarização de poder entre equipes mínimas e NASF na
definição e no desenvolvimento das práticas no cotidiano dos CSF. A ESF, assim, constrói-se
a partir de relações profissionais desiguais, tecendo um espaço hierarquizado e marcado por
segregações.
Digamos que o Saúde da Família é a casa da medicina de titulo, de propriedade, mas
quem governa é a enfermagem.[...] os agentes de saúde são os empregados fixos da
casa de Saúde da Família e bastante explorados em todas as formas. As outras
profissões, inclusive a psicologia são os convidados pra consertar TV a cabo, os
técnicos que vem e são chamados pra algum tipo de serviço, nós somos esse outro
rol de profissões, são as profissões que ainda atuam sobre a lógica a prestação de
serviço pelo entendimento de quem solicita.
Percebeu-se, pela análise das entrevistas, que a posição ocupada pela psicologia na
hierarquia das práticas profissionais na ESF é bastante marcada pelos signos de pertencimento
à equipe de apoio. Esse pertencimento, ademais do ressentimento que pode despertar pela
subalternidade frente às posições mais nobres, especialmente a ocupada pelos médicos, não
indica uma correspondência de valoração igualitária nas práticas profissionais, dentro do nível
das equipes de apoio. Na estrutura hierárquica das práticas profissionais da APS do SUS, as
práticas dos psicólogos são relativamente bem valorizadas, se olharmos para todos
profissionais inseridos no NASF. Assim, o psicólogo é um agente especializado que ocupa
um lugar privilegiado dentro do grupo de profissionais de apoio. Esse lugar subalterno e
privilegiado, longe de ser percebido como regalia, é um espaço de construções práticas
diversas, que apontam para várias direções nos serviços prestados.
5.2 Lugar da Psicologia e âmbitos das práticas psicológicas
Para conhecer aspectos constituintes do lugar ocupado pelo profissional psicólogo
na APS, foi preciso reconhecer algumas características do espaço social, um pouco de suas
prerrogativas, relações interprofissionais e marcas distintivas, já que influenciam o modo
como se desenvolvem as práticas e lhe impõem limites de abrangência. Como vimos, o NASF
é este espaço delimitador de fronteiras e possibilidades, espaço em que se situa o fazer
psicológico. No entanto, para chegar a construir uma visão mais ampliada e complexa da
posição ocupada pelos psicólogos, no campo estruturado da APS, é preciso fazer uma reflexão
capaz de reconhecer o processo histórico da profissão. Assim, ressaltamos que nossa análise
passa pelo reconhecimento da influencia de representações sociais da profissão construídas
historicamente no Brasil.
120
Os resultados da pesquisa nos permitem problematizar a influência de uma visão da
prática psicológica permeada pelo imaginário social construído em torno da hegemonia da
prática da clínica, que popularmente tem uma referência na imagem do médico, que atende
em seu consultório. A visão que identifica o profissional psicólogo como um clínico, está
impregnada no cotidiano da ESF. Essa visão, por um lado, aproxima a psicologia de outras
categorias, como a médica, e a diferencia de outras como a dos profissionais de Educação
Física, pouco reconhecidos no espaço das práticas clínicas. O consultório psicológico, nesse
imaginário social, é um elemento marcante na representação social típica da Psicologia.
Eu acho que a psicologia tem um peso grande ainda, peso grande. Eu acho que a
psicologia está muito aproximada da representação social que as pessoas tem da
medicina, muita gente me chama de médico: “ah, que a enfermeira, a ACS tal me
mandou aqui pra você, que ela disse que você é um médico, e vai conversar comigo
e não sei o que né”. Elas tem essa visão, essa aproximação da coisa do doutor e do
consultório coisa que, por exemplo, o educador físico não tem, a gente nota muito o
educador físico é o único que não é chamado de doutor, todos os outros são. É uma
coisa social, cultural e eu acho que a psicologia tem muito status, por si só, aí
independente do profissional, eu acho que ela se eleva acima das outras no sentido
dessa representação que as pessoas tem, até pela própria forma como ela é
divulgada, os filmes, essa coisa toda, é o doutor que está esperando no consultório.
[...] Então, por conta disso, dessa história da psicologia já está bem estabelecida
como um campo assim, do doutor, eu acho que isso faz com que, de alguma forma,
ela se eleve com relação as outras.
A psicologia, dentro de um CSF, pode obter significativo respeito e ser muito
demandada por usuários e outros profissionais. Percebemos, em nosso estudo, que muitos
agentes inseridos no cotidiano prático da atenção à saúde vêm no psicólogo um profissional
que tem uma contribuição prática significativa para a resolução dos problemas de saúde
trabalhados na ESF. Esse reconhecimento indica, ambiguamente, que há certa relevância
social adquirida pelo profissional psicólogo na produção de práticas de APS, mas também que
as práticas psicológicas sofrem pressão de mecanismos de reprodução social de prática, dentro
de um imaginário da profissão questionável.
A gente sempre foi muito respeitado, digamos assim, entre os médicos mesmo, eles
escutavam muito o que a gente falava. Eles solicitavam muito atendimento. Às
vezes, a gente tava lá no auditório do CSF fazendo alguma coisa, aí de repente vinha
um “tu pode vir atender esse paciente comigo?” Num é, já pra pedir o suporte
mesmo. Ou, então, o outro psicólogo que tava, chamava também sabe, assim “tu
pode atender esse caso comigo?”, “eu acabei de pegar um caso e a gente tem que
atender junto sabe, eu marquei com ele dia tal”. Eles sempre foram muito, sempre
solicitaram muito a gente. [...]Eu acho que a psicologia era uma das mais solicitadas
assim, e eu acho que ela é importante, tanto no NASF, como ela é importante na
equipe mínima também, se houvesse essa abertura.
Assim, a percepção das muitas demandas para a psicologia pode ser um indicativo da
necessidade de acesso aos serviços prestados por esse profissional no campo. Pudemos, aqui,
121
constatar que o psicólogo, em comparação com os outros profissionais do NASF, é um
profissional bastante solicitado e, assim, valorizado. No entanto, tornou-se manifesta uma
percepção divergente e ambivalente dessa necessidade social de psicólogos na APS.
Especificamente no que se refere aos permanentes chamados ou solicitações para
engajamento nas práticas da ESF, os participantes da pesquisa manifestaram posicionamentos
divergentes. Alguns perceberam que as solicitações expressavam uma valorização da
profissão e outros já as concebiam como um indicador negativo de reconhecimento. Assim,
alguns participantes viram nas recorrentes solicitações o desenrolar de estratégias de
dominação, que buscavam tutelar o profissional em modos de agir incongruentes com uma
visão da psicologia mais adequada, na concepção dos participantes. Desse modo, as demandas
para a psicologia têm significados ambivalentes no contexto das lutas entre as profissões nos
CSF. O chamado pode expressar o reconhecimento do valor significativo da prática
psicológica para a APS, mas, contraditoriamente, pode significar sua desvalorização, a partir
da aceitação de pedidos inadequados frente ao compete à psicologia. As frequentes
solicitações para a prática da psicologia, quando inadequadas - no que diz respeito a ideia que
se tem da profissão, pode representar o comprometimento do psicólogo com determinadas
perspectivas de práticas vulneráveis a interesses de dominação simbólica, que restringem a
psicologia a uma posição auxiliar e subalterna frente às práticas desenvolvidas. Além do mais,
as solicitações frequentes também representam, em muitos casos, uma forma de
encaminhamento irresponsável de demandas. Abordaremos melhor essa questão no próximo
capítulo.
Na construção de um conjunto de amplo de práticas, os psicólogos produzem
posicionamentos diversos frente à hegemonia do modelo biomédico, por vezes aderindo, por
vezes se contrapondo. Na perspectiva de uma análise crítica das influências do modelo
biomédico, alguns psicólogos destacam que há uma problemática produção de demandas
equivocadas para a psicologia, a partir de uma visão, muitas vezes, restritiva da profissão.
Como consequência da influência do modelo biomédico no campo, teremos posicionamentos
diversos a partir de cada contexto específico e suas configurações. Vejamos no exemplo
abaixo:
Os agentes de saúde adoram o psicólogo. Assim, é a minha experiência com os
agentes de saúde. E os médicos, eu vejo, os médicos e enfermeiros, às vezes, nessa
psicologização de que tudo precisa ir pro psicólogo. Mas, ao mesmo tempo, acho
que não entende o psicólogo. Assim, não sei como dizer esse não entende, mas do
achar que o psicólogo não é objetivo, que o psicólogo ele não faz o que dele se
espera, essas problematizações. E aí eu vejo que tem profissionais que amam e tem
profissionais que odeiam essas questões. E aí também estou baseando em mim, que
122
também a gente tem, na nossa profissão, diversos psicólogos, que são biomédicos,
que tão dentro dessa concepção bem biomédica.
Pesquisador:Como assim?
Por exemplo, um paciente com TOC. “Tem TOC, então ela precisa de psicoterapia
comportamental, que vai trabalhar tal e tal e tal” tem médico que é assim...
Pesquisador: Ah... trabalhando em cima da patologia, é isso? O que caracteriza o
biomédico seria o trabalho com a patologia?
Em cima da patologia, da especialização, do procedimento, de coisas que são bem
lineares. Por exemplo, na minha prática não sou assim, mas tem pessoas que são.
A produção das práticas psicológicas, em muitas de suas abordagens teórico-
metodológicas, obedece a lógicas diversas da lógica do modelo biomédico. Como veremos
melhor em capítulo posterior, tais práticas voltam-se para objetos específicos a uma dimensão
subjetiva e afetiva do processo saúde-doença-cuidado, o que difere da lógica das práticas
centradas nos fatores biológicos. Esse caráter distinto das práticas psicológicas possibilita a
demarcação de espaços de produção em que há mais autonomia profissional, estabelecida pelo
domínio de códigos próprios que garantem a legitimação classificatória das ações (DUBAR,
2005). É no vazio deixado pelo modelo biomédico, que a psicologia ressalta-se como
profissão de referência para as práticas na ESF. Como podemos pensar, corroborando com as
ideias de Barros (2002), as limitações da biomedicina abrem um espaço de atuação no
processo saúde-doença, onde poucos profissionais parecem estar preparados.
Paralelamente ao avanço e sofisticação da biomedicina foi sendo detectada sua
impossibilidade de oferecer respostas conclusivas ou satisfatórias para muitos
problemas ou, sobretudo, para os componentes psicológicos ou subjetivos que
acompanham, em grau maior ou menor, qualquer doença. As críticas à prática
médica habitual e o incremento na busca de estratégias terapêuticas estimulada pelos
anseios de encontrar outras formas de lidar com a saúde e a doença (no seu conjunto
designadas como medicinas alternativas ou complementares) constituem uma
evidência dos reais limites da tecnologia médica. Mesmo que muitos profissionais
cheguem a admitir a existência de componentes de ordem subjetiva ou afetiva que
exercem influência mesmo em casos de doenças em que as evidências orgânicas
sejam mais explícitas, não se sentem, com frequência, à vontade para lidar com os
mesmos, pois para isto, via de regra, não foram preparados. (BARROS, 2002, p.79).
Ocupando esse espaço pouco habitado e, em determinadas situações, inabitado, a
psicologia goza de certa autonomia relativa para gerir seus processos de trabalho que, ademais
de algumas restrições impostas pela precariedade e escassez do campo, lhe garante um espaço
diferencial na hierarquia, que representa um poder simbólico conquistado pela profissão e
exercido no campo da APS.
Eu fico com a impressão de que a psicologia, ela ainda consegue ter certa autonomia
técnica no sentido de assim “pô a enfermeira ela acaba ficando meio como
paraprofissional do médico”, o médico muito assim “o que é a necessidade de
saúde?”, ele domina conhecimentos que acabam sendo talvez maiores do que os da
enfermeira. E a enfermeira fica designada a fazer atividades de cuidados, mas que
tão dentro da prática médica também, isso acaba se repetindo também, às vezes, um
123
pouco assim com a fisioterapia, com a fonoaudiologia, acaba ficando as coisas meio
de paraprofissional. A psicologia acho que tem uma espécie assim de caixa preta,
tem um certo funcionamento que é só a gente que entende. Então assim, o médico
com o psiquiatra acaba sendo uma relação diferente, mas com o médico do saúde da
família, o clínico geral, acaba sendo assim “olha eu tenho um conjunto de coisas que
acontecem aqui que eu não faço a menor ideia de como é”. Então acaba tendo uma
relação pouco menos hierárquica nesse sentido sabe. E isso é diferente
principalmente na atenção primária, na estratégia saúde da família, por que? Porque
eu comparo com a vivência de colegas meus, que fizeram residência em hospitais e
lá tinha muita demarcação do “paraprofissional” mesmo, de assim o psicólogo chega
no paciente quando o médico chama, quando o médico autoriza, quando o médico
quer, enquanto que lá no posto de saúde da atenção primária tinha uma relação um
pouco mais horizontal. Eu acho que com a enfermagem é a mesma coisa, eu acho
que você comparar uma enfermeira de hospital com a enfermeira de atenção
primária eu acho que a hierarquia é muito mais demarcada no hospital, isso fica
ainda mais forte.
Esse poder de gerir seu processo de trabalho na APS, especialmente no que diz
respeito a certa ruptura com o paradigma biomédico, é um signo de distinção, que representa
uma posição de maior autonomia relativa, por exemplo, quando comparamos com a posição
da enfermagem que, como vimos, contraditoriamente ocupa já um espaço reconhecido e
valorizado de profissional da equipe mínima. Como apontado acima, no que diz respeito a
essa dimensão de domínio de certo saber específico do profissional, quando comparamos a
psicologia com as outras profissões do NASF, pudemos identificar uma posição de destaque,
como apontada pelos participantes.
Eu acho que dentro desse grupão aí a gente ta bem, vou dizer porque a gente ta bem.
Por conta de lidar com muitas questões de saúde mental, as quais boa parte dos
profissionais das profissões do NASF não estão acostumados a lidar. A gente ta até
bem porque a gente sabe fazer algo diferente, tem algo que, às vezes, é da ordem do
imponderável e do não saber fazer, como lidar em algumas coisas. Então, nesse
sentido, a gente ta até bem, eu não vou dizer que a gente ta no topo, mas a gente ta
bem e quase no topo.
A comparação interna aponta para uma posição diferenciada da psicologia dentro do
NASF, garantida pelo modo particular como a ação é desenvolvida, especialmente o modo
como lida com os problemas de saúde e pela instituição de um espaço reconhecido de atuação
psicológica relativo a saúde mental. Nesse contexto, a psicologia se destaca pelos modos
específicos como atua, revelando a posse de um conjunto de disposições diferenciadas e
particulares no enfrentamento de problemas de saúde mental. Os participantes destacam a
posse de procedimentos distintos como demarcador de um espaço de domínio da psicologia.
(diálogo na entrevista com uma das duplas)
Participante A - Eu acho que, assim, a profissão enquanto, pelo menos é essa a ideia
que eu sinto assim, que quando você tem um procedimento que parece ser só seu
você cada vez mais é valorizado. E aí um psicólogo ele faz atendimento individual e
aí ele é praticamente o único profissional capaz de lidar com o sofrimento humano e
o sofrimento humano é o que você vê o tempo inteiro, todo dia. Então, imagina, nós
124
temos realmente, somos vistos com grande apreço.
Participante B - Eu afirmo sim, que as outras profissões do NASF são ainda presas a
muito procedimento, os nossos procedimentos são meios diferentes assim, a gente
lida com algumas coisas bem diferentes que chegam na unidade ou pelo menos nós
somos demandados pelos outros profissionais que a gente lida. Fisioterapia tem os
seus procedimentos, assistente social tem os seus procedimentos, a TO e tal, todo
tem os protocolos e a gente é muitas vezes chamado a lidar com o imponderado que
os protocolos não dão conta. É isso que eu quero lhe dizer que a gente ta bem nesse
sentido das profissões NASF, eu afirmo isso assim.
Pesquisador: Isso tem a ver com doença?
Participante B:Sim.
Pesquisador:De como a psicologia lida com a doença?
Participante B: Sim, com a doença.
Pesquisador:Ou com aquilo que não ta dentro do rol das doenças?
Participante A: Com a porção não explicada da doença eu acho que é, porque todas
as demandas que chegam aqui. Porção não explicada da doença, a loucura, o
doidinho entendeu? Como é que lida com o doidinho? E vai ser o psicólogo que tem
que ver, não tenho a menor dúvida. Essa mulher com gastrite que já passou pela
nutricionista, fez dieta e não resolveu, já tomou omeprazol e não resolveu.
Participante B:As dores, o fisioterapeuta já ta fazendo exercícios respiratórios e não
rola, você chama todo mundo e faz todos os negocinhos e cada um faz a sua parte do
cuidado e ela não melhora, a criatura, aí vai ter que chamar o psicólogo e vai ter que
descobrir que diabo é isso aí.
Configura-se assim, um lugar de destaque dentro do NASF. Esse destaque, pelo que
percebemos, é dado pela posse de um jeito particular de lidar com determinadas demandas
para as quais outros modos de agir, próprio das outras profissões do NASF e equipes
mínimas, são menos efetivos ou reconhecidos como tal. A busca da autonomia nas práticas
profissionais está intimamente ligada à especialização técnica e a determinação de critérios de
excelência (MACHADO, 1995), bem como a propriedade ou controle dos meios de produção
(DONNANGELO, 1975; DURAND, 1975). Percebemos que a psicologia tem relativa
autonomia profissional na ESF pela demarcação de um conjunto de saberes específicos
legitimados como próprios da psicologia.
Ademais do lugar de destaque ocupado pela psicologia nessa zona intermediária do
NASF, esse lugar de equipe de apoio é percebido como um posição subalterna, como
discutido acima. Esse lugar de menos valia na economia das trocas simbólicas do CSF e da
estruturação dos cargos efetivos dentro da ESF, fora questionado pelos participantes da
pesquisa. Um elemento destacável nesse questionamento é a reflexão sobre o papel
secundário, que esses profissionais sentiam desempenhar, como exemplificado na experiência
abaixo:
É como se a gente tivesse ali na zona média, entre a equipe de saúde da família e não
colocando ela toda, mas médico e enfermeiro. Aí vem ali os profissionais da
multidisciplinaridade, que não fazem parte da equipe mínima chamada. E, abaixo
deles, viria os agentes de saúde, abaixo assim entre aspas, porque às vezes até os
agentes de saúde querem chegar junto, porque eles são da equipe, são efetivos e o
vínculo nosso não favorece porque o vínculo empregatício da gente é frágil. Então,
125
nós não somos concursados e isso aí, às vezes, eu percebia assim: Será que o pessoal
do NASF é uma espécie de pelego, que é aquele troço lá que se bota debaixo da sela
pro cavalo não sentir que ta sendo montado né? E que é daí que você tira, é alguém
que fica entre o opressor e o oprimido pra que o oprimido não se sinta oprimido. E
assim que eu pensava quando eu chegava e via aquele negócio da sala de espera.
Você pode ver a sala de espera de duas formas, uma prática legal ali que você ta
aproveitando o espaço, no corredor que você ta esperando pra ser atendido pelo
médico. Mas eu sempre tinha um olhar assim meio obscuro e pensava assim, “será
que o pessoal do NASF são palhaços, que ficam distraindo o povo pra que eles não
fiquem com raiva porque o médico está atendendo outro, entendeu?” Pode ser visto
assim também dessa outra forma.
Pesquisador: Isso tudo acontece né?
Acontece. “Faça isso, atende esse cara pra mim”. Por um lado você pode ter a
seguinte visão, o cara tava elogiando o meu trabalho, ele acha que eu vou poder
fazer alguma coisa. E por outro, “rapaz, é o seguinte, testa esse serviço aqui pra
mim”, “faz isso aí pra mim”. Eu não mando ele fazer nada, entendeu? Não tem
muito essa contra-referência, tem mais é referência, pouco tem a contra-referência.
Eu não sei se o fato de ter mais referência do que contra-referência seria o indicio de
que teria uma hierarquia velada aí né, eles é que mandam e a gente tem que fazer o
serviço que eles mandam a gente fazer. “Ó psicólogo, caiu o reboco aqui vem
colocar o reboco aqui de volta da minha casa”. Então já tem uma cultura, um
negócio assim meio até arquetípico deles, o pessoal que ta lá de branco né tão lá pra
poder comandar e tal.
O lugar do NASF é, então, desprestigiado como dispositivo promotor de práticas na
APS, classificadas como potencialmente tuteladas e auxiliares dentro da hierarquia constituída
no campo da APS. Ser profissional do NASF é ser um pelego, aquilo que se coloca abaixo da
sela do cavalo para amortecer-lhe o sofrimento de ser montado, é ser um profissional auxiliar
dos serviços médicos, compreendidos como os mais nobres e importantes, aos quais deve-se
servir de suporte. Podemos, aqui, também pensar o NASF como grupo de profissionais
responsável pelo alívio da tensão presente nas relações de opressão estabelecidas nas práticas
médicas na ESF.
De um modo geral, a experiência aqui analisada nos permite identificar alguns
fatores responsáveis pelo desprestígio do trabalho no NASF e RMSF: a tensão imposta pelas
relações de encaminhamento entre equipes mínimas e equipes de apoio; a hierarquia médica
legitimada na classificação das prioridades; e as precárias condições de trabalho. A
precarização das condições de trabalho no campo foi algo bastante presente dos diálogos
realizados nas entrevistas. Sempre que esse tema surgiu nas entrevistas, os participantes
expressavam certo pesar, já que muitos já viam, no período das entrevistas, a experiência da
APS como passado de suas trajetórias profissionais. A ESF, assim, para a maioria dos
participantes da pesquisa, não lhes apresentou perspectivas interessantes de construir de uma
carreira na APS do SUS.
Ademais das restrições estruturais decorrentes da estrutura hierarquizada da APS, há
uma notável amplitude de possibilidades de atuação percebida pelos os psicólogos
126
entrevistados, a partir da posição situada no campo em questão. É assim que se desenha uma
posição geradora de práticas multidirecionais, que corrobora com uma visão do campo como
espaço de múltiplas áreas de intervenção. Essa amplitude vem convidar os profissionais
psicólogos a um revisitar permanente de sua formação e possibilidades de atuação no campo,
que demarca o fazer psicológico com características híbridas, formadas a partir da integração
de expertises de várias áreas de atuação. As práticas dos psicólogos, assim, percorrem
diversas direções e espaços da ESF, envolvendo amplas possibilidades de intervenção e de
construção de posicionamentos na hierarquia das práticas profissionais dos CSF, bem como
de uma especificidade no modo como aborda os seus objetos de prática.
Assim, a articulação de saberes e práticas, construídos historicamente em áreas
distintas dos campos das Psicologias, é um processo percebido na experiência dos
participantes do presente estudo:
Uma coisa importante é que na atenção primária esses âmbitos tradicionais que a
gente conhecia da psicologia, eles se engendram, eles são todos articulados e você
não consegue separar.
(outro participante)
Você está atuando na escola, você está atuando na unidade básica de saúde com
esses conhecimentos da psicologia organizacional, quando você ta na Roda[de
gestão no CSF], facilita uma Roda[...] Então você está fazendo isso, você ta usando
os recursos da psicologia comunitária pra articular a rede no território, pra você
fazer um encontro que junte diversas instituições daquele lugar em prol de alguma
coisa. E você é um catalizador daquela vontade das pessoas ali e você não pode
deixar também de fazer a avaliação e o acompanhamento dentro da saúde mental.
Vários exemplos de articulações entre as áreas da psicologia foram citadas e
compuseram exemplos de articulações teóricas e técnicas percebidas como necessárias à APS,
para dar resposta aos problemas de saúde dos usuários. Foram citadas as seguintes
articulações entre áreas da psicologia: 1) entre psicologia comunitária e clínica; 2) entre
psicologia clínica e organizacional; 3) psicologia social e psicologia escolar; e 4) psicologia
da saúde e psicologia social. Essas e outras articulações não citadas possibilitam também
pensar num fértil espaço de articulações e conflitos entre as diversas psicologias na produção
das práticas na APS.
Em contato com as prerrogativas colocadas pela APS, já discutidas acima, outra
dimensão do processo de construção das práticas é a necessidade de estabelecer diálogos com
usuários e instituições do território/comunidade. Nesse ínterim, desenvolveram-se práticas
permeadas pelas concepções de saúde, doença e cuidado vigentes no espaço social da APS,
implicando em diferentes perspectivas ou linhas de ação muito influenciadas pelas questões
sociais e comunitárias. O campo da APS apresenta-se assim, como um espaço de práticas
127
relativamente aberto a diversos paradigmas de atuação, possibilitando o desenvolvimento de
ações em diversos âmbitos. O repensar das práticas e sua contextualização à ESF é notória na
experiência dos participantes.
A noção de apoio matricial, elemento teórico que tem tido destaque no debate sobre a
ESF, especialmente impondo um tensionamento bastante significativo na definição das
práticas dos NASF (CAMPOS; DOMITTI, 2007; DIMENSTEIN et al. 2009), teve destaque
nas entrevistas realizadas. Especialmente junto aos participantes de Fortaleza, esse conceito
tem orientado as práticas psicológicas desenvolvidas na RMSF e mesmo no NASF, sob o
signo da colaboração profissional.
Eu acho que uma coisa, do jeito que está hoje, fundamental é o apoio matricial, do
jeito que a política está colocada hoje, desse trabalhar conjunto, de formas
compartilhadas desse trabalho, que não é só o psicólogo sozinho que vai atuar com a
população nessa coisa de ferramentas de colaboração entre os profissionais.
Campos e Domitti (2007) apresentam o apoio matricial como uma alternativa
metodológica e arranjo organizacional voltado para a gestão do trabalho em equipes
interdisciplinares de saúde. Visando promover a retaguarda especializada, no suporte
assistencial e técnico-pedagógico, para o trabalho de equipes de atenção à saúde, o apoio
matricial consiste em metodologia de trabalho complementar à vigente em sistemas
hierarquizados e expresso em mecanismos de referência e contra-referência, protocolos e
centros de regulação. Os autores sintetizam a proposta:
O apoio matricial pretende oferecer tanto retaguarda assistencial quanto suporte
técnicopedagógico às equipes de referência. Depende da construção compartilhada
de diretrizes clínicas e sanitárias entre os componentes de uma equipe de referência
e os especialistas que oferecem apoio matricial. Essas diretrizes devem prever
critérios para acionar o apoio e definir o espectro de responsabilidade tanto dos
diferentes integrantes da equipe de referência quanto dos apoiadores matriciais.
(CAMPOS; DOMITTI, 2007, p.400).
Essa proposta, bastante disseminada no contexto de políticas e serviços como a ESF,
visa ampliar possibilidades de fortalecimento de vínculos entre profissionais e usuários, de
operacionalização da clínica ampliada, de facilitar o diálogo entre profissões e disciplinas
técnico-científicas, de ampliação do escopo de ações clínicas e sanitárias na perspectiva de
uma abordagem integral aos problemas de saúde. Apontando os desafios para a
implementação do apoio matricial, Campos e Domitti (2007) destacam o elemento político da
organização dos processos de trabalho entre equipes de referência e apoiadores matriciais. Os
autores destacam a distinção do apoiador matricial em relação à equipe de referência:
O apoiador matricial é um especialista que tem um núcleo de conhecimento e um
128
perfil distinto daquele dos profissionais de referência, mas que pode agregar
recursos de saber e mesmo contribuir com intervenções que aumentem a capacidade
de resolver problemas de saúde da equipe primariamente responsável pelo caso. O
apoio matricial procura construir e ativar espaço para comunicação ativa e para o
compartilhamento de conhecimento entre profissionais de referência e apoiadores.
(CAMPOS; DOMITTI, 2007, p.401).
Os autores argumentam que a proposta é que se substituam as relações verticais,
própria dos sistemas hierarquizados, por relações mais horizontalizadas e instituindo
processos de co-gestão democrática dos processos de trabalho. Assim, propõe-se o termo
matriz, para a explicitação de uma proposta de reorganização dos serviços. A proposta de
apoio matricial volta-se para o enfrentamento da divisão do trabalho em saúde permeada
fortemente pela concentração de poder pelas especialidades médicas, o que vem constituindo
serviços de atenção à saúde fragmentados no cuidado e gestão do trabalho. Dentre os
problemas a serem atenuados pela proposta estão: a baixa eficácia e a iatrogenia nos serviços
de saúde. Obstáculos decorrentes do excesso de demanda e carência de recursos são
reconhecidos, mas a proposta propõe-se também a ser um atenuante, potencialmente na
melhoria da eficiência dos modelos de atenção vigentes.
Entre outros arranjos, também o apoio matricial poder ser relevante para racionalizar
o acesso e o uso de recursos especializados, alterando-se ainda a ordenação
predominantemente multidisciplinar do sistema para uma outra mais consentânea
com a interdisciplinaridade. Esse arranjo permite um uso racional de recursos,
quando cria oportunidade para que um único especialista integre organicamente seu
trabalho com o de várias equipes de referência. (CAMPOS; DOMITTI, 2007,
p.404).
Em nosso estudo, o apoio matricial foi uma ferramenta organizacional presente na
construção social das práticas psicológicas, que facilitou o desenvolvimento de práticas
interessantes de diálogo da Psicologia com as outras profissões, mas também foi
representativo dos limites impostos atualmente pela ESF ao fazer profissional dos psicólogos.
Ademais das potencialidades ensejadas pela prática psicológica nas equipes de apoio
matricial, observamos obstáculos políticos para o avanço das práticas psicológicas nas
equipes de APS.
Os tipos de apoio desenvolvidos apontam para diversas possibilidades de articulação
e pactuação entre as profissões, instituições e agentes no território da ESF. Quatro vetores de
prática de apoio, que influenciaram o desenvolvimento das práticas psicológicas na APS em
Fortaleza, foram: 1) Apoio Institucional, que trata das questões institucionais e
organizacionais do CSF e de suas interfaces com outros programas e políticas de saúde do
Sistema Municipal de Saúde; 2) Apoio Assistencial, atuando diretamente no atendimento de
demandas para a atenção psicológica, especialmente a atenção em saúde mental, junto às
129
diversas demandas colocadas pela ESF; 3) Apoio Comunitário, que visava um trabalho de
articulação com grupos e associações comunitárias na perspectiva de uma psicologia
comunitária ou mesmo no estímulo à participação comunitária na saúde; e 4) Apoio Matricial,
com suporte técnico-assistencial nas questões de saúde mental atuando em colaboração com
as equipes mínimas.
Como vimos, pela delimitação de uma posição geradora de práticas no e do NASF, a
ideia de apoio já demarca significativamente os âmbitos de prática em que a psicologia atuou,
representando uma divisão classificatória das práticas elucidativa para pensar o espaço
ocupado pela psicologia na ESF, na experiência dos participantes. Nesse contexto, cabe
reinterar que o espaço ocupado pelas práticas psicológicas na APS, é caracterizado em grande
medida pelo seu caráter complementar frente às práticas desenvolvidas pelas equipes
mínimas, as quais deixam lacunas, que abrem espaço para construção de novas práticas e
demandas em saúde.
Ainda nesse contexto, como já enfatizado, a prática psicológica está situada em um
campo dominado pela biomedicina, em que diversos agentes atuam tendo como referência os
saberes e práticas fundamentados por uma compreensão biofisiológica do corpo e da saúde. O
modelo biomédico será, então, uma referencia para a construção das práticas psicológicas, na
perspectiva de que a ele deve-se posicionar corroborando ou contrapondo-se a sua proposta
estruturante do campo. A dinâmica das práticas psicológicas na APS é também atravessada
pela administração biomédica do campo, o que implica a necessidade de permanentes
negociações e lutas simbólicas para impor novas visões da saúde.
Pesquisando as estratégias de apoio matricial junto às redes de saúde mental,
Dimenstein et al. (2009) constatam que há uma enorme demanda não acolhida pelos serviços
de atenção primária, precariedade dos serviços substitutivos em saúde mental e das redes de
serviços do SUS em geral, onde dentre outras questões apontadas, encontramos isolamento do
CAPS, como serviço especializado com baixa comunicação com a ESF. A APS é vista como
um dispositivo necessário para a efetivação da reforma psiquiátrica e sua proposta de
desinstitucionalização da loucura. O matriciamento em saúde mental é identificado como
importante para promover a articulação da APS com a rede de serviços. As autoras destacam,
dentre outros problemas apontados, o desafio de enfrentar no cotidiano dos serviços a lógica
medicalizante de organização das práticas, em que o uso de medicamentos e a atenção
especializada constituem-se como as principais terapêuticas desenvolvidas nas práticas. Nesse
contexto, o papel da APS reduz-se à renovação acrítica de receitas psiquiátricas, esse
fenômeno é agravado pela grande demanda e pelo baixo poder de resolutividade dos
130
profissionais frente ao campo especializado da saúde mental. Em nossos resultados de
pesquisa, em consonância com o que fora destacado pelas autoras (Dimenstein et al., 2009),
entendemos ser relevante o papel das equipes de apoio matricial no enfrentamento da
hegemonia biomédica na organização da ESF. No entanto, destacamos que, em nosso caso, as
práticas psicológicas não podem se restringir às equipes de apoio matricial. Como veremos
adiante, existem muitas demandas ainda descobertas e que exigem uma participação mais
ampla do profissional psicólogo.
De modo geral, como aponta Paim (1999, 2001), modelos de atenção à saúde ou
modelos assistenciais têm sido definidos como combinações de tecnologias utilizadas nas
intervenções sobre problemas e necessidades sociais de saúde. Assim, como destaca o autor,
um modelo assistencial não é um padrão ou exemplo a ser seguido, mas uma racionalidade,
uma razão de ser, que no caso da atenção à saúde, deve se constituir na busca por atender a
necessidades individuais e sociais de saúde. O autor trata de problematizar os modos de
combinar estratégias e modelos de intervenção, técnicos e científicos, o que inclui as práticas
dos profissionais de saúde, capazes de resolver os problemas de saúde individuais e coletivos.
O modelo médico hegemônico pode ser entendido como aquele organizado em torno do
atendimento de doentes a partir de demanda espontânea ou induzida pela oferta, e que
segundo Paim, revela-se limitado no que tange ao desenvolvimento de uma “atenção
comprometida com a efetividade, eqüidade e necessidades prioritárias em saúde, ainda que
possa proporcionar uma assistência de qualidade em determinadas situações” (PAIM, 2001,
p.5).
Nesse contexto de estruturação biomédica do trabalho interprofissional na APS,
outro tema que se tornou significativo para pensar a atuação da psicologia, foi a
medicalização do sofrimento. A posição da psicologia, como uma categoria que
historicamente acumulou capital cultural e científico frente às questões do campo da saúde
mental, que envolve as práticas de atenção à saúde voltadas para o sofrimento humano, parece
impulsionar alguns participantes a se posicionarem criticamente ao modelo biomédico, numa
perspectiva de desmedicalização das práticas de saúde mental na APS. Um posicionamento
que, no campo da APS, significa uma luta contra a hegemonia arbitrária do saber biomédico
na estruturação das práticas em saúde mental.
Outra questão que eu vejo assim como sendo extremamente complicada é essa
questão da medicalização do sofrimento psíquico também. Assim, acaba que você
tem uma intervenção muito a nível farmacológico de questões que poderiam ser
diluídas por outras estratégias e que acabam, de algum modo sendo, enfim,
131
absorvidas no campo da medicina ou pelo campo do discurso médico. E eu acho que
ela poderia ser um pouco mais explorada pela própria psicologia.
A medicalização do sofrimento e dos problemas sociais e psicológicos é apontada
como um problema a ser enfrentado na produção das práticas psicológicas na APS. A luta
contra a medicalização do sofrimento aponta para o reconhecimento de um posicionamento
ético e político da ação profissional voltada para a construção de processos de cuidado mais
transgressores e (cri)ativos. Como aponta Romagnoli:
Medicalização pode emergir como dispositivo de controle da vida, de biopoder.
Mediante práticas sistemáticas de adoecimento, geridas por esse tipo de poder, o uso
excessivo de remédios torna-se necessário para suportar a vida adoecida, a vida
despotencializada pelos maus encontros, gerida por paixões tristes, separada de sua
potência. Dessa maneira, a grande maioria dos usuários da rede de saúde pública,
que fazem um elevado uso de medicamentos, tem a vida contida, carente e
empobrecida, que se conserva em modos de impotência. A vida encontra-se presa
em um sistema de julgamento que reproduz a vida obediente, a vida anestesiada
(ROMAGNOLI, 2009, p.532).
Defrontando-se com as questões estruturantes do campo da ESF, as práticas
psicológicas transitam por diversos âmbitos e enfrentam obstáculos referentes à posição que a
profissão ocupa nos espaços cotidianos dos CSF. Tais práticas apontam para diferentes
direções e envolvem agentes e instituições na constituição de um escopo abrangente de ações
voltadas para a resolução de amplos problemas de saúde. No que diz respeito às áreas de
atuação psicológica mobilizadas pelas práticas, os participantes citaram: Psicologia
Organizacional e do Trabalho, Psicologia Institucional, Psicologia Comunitária, Psicologia
Clínica, Psicologia Escolar/Educacional. O campo da saúde mental, no entanto, fora referido
como demarcador especial do fazer do profissional psicólogo na APS. Mesmo diante da
predominância de problemas de saúde mental, o psicólogo envolve-se na busca pela resolução
de uma vasta gama de problemas, a depender dos territórios, que perpassam diversas doenças
citadas, como: hipertensão, diabetes, tuberculose, dependência química, hanseníase, DSTs,
transtornos mentais, etc. Outras demandas foram trabalhadas no processo de trabalho desse
profissional e serão abordadas no próximo capítulo.
Foi notável que as práticas psicológicas se incluíram nas ações intersetoriais, a partir
da interface da APS, com outras políticas e programas em saúde. Destacou-se, nas entrevistas,
a participação dos psicólogos nas políticas educacionais, nas políticas de assistência social,
em algumas ações da sociedade civil organizada como as promovidas por igrejas, associações
e grupos comunitários diversos. Os participantes relataram também participar dos grupos
promovidos na ESF: grupo de idosos, adolescentes, mulheres, gestantes, etc. Algumas ações
de educação permanente e apoio matricial foram destacadas, como as preceptorias das
132
especialidades médicas, com especial ênfase à preceptoria de psiquiatria (saúde mental). Foi
notável a participação dos profissionais da psicologia nas ações municipais de educação
permanente em saúde, onde os entrevistados promoveram trabalhos na facilitação de
encontros de formação voltados para a discussão de temas diversos. Foram também citados
trabalhos voltados para o fomento da participação e controle social nas políticas públicas, com
recorrentes referencias às ações de formação e fortalecimento dos conselhos locais de saúde.
As práticas desenvolvidas pelos psicólogos na APS do SUS vem sendo estudadas por
vários vieses e refletem uma diversidade de tipos de procedimentos técnicos
(NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011). No presente estudo os procedimentos técnicos citados
foram: visita domiciliar, atendimentos clínicos individuais e em grupo, a partir de diversas
abordagens; terapia comunitária; interconsultas com outros profissionais; facilitação de
grupos diversos (atuação junto a processos grupais especialmente voltados para a organização
de processos de trabalho na ESF e grupos comunitários); jogos, dinâmicas e vivências
grupais; rodas de quarteirão; círculos de cultura; e práticas corporais.
133
6 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA DEMANDA PARA A PSICOLOGIA
O mundo social pode ser percebido, dito e construído segundo diferentes princípios
de visão e divisão. O conhecimento de um espaço social e as categorias que o tornam possível
são elementos que estão em jogo na ação política. Esta constrói-se socialmente numa luta pela
imposição de princípios de visão e divisão do mundo social a partir de um ponto de vista
(BOURDIEU, 2010). As profissões passam a ser valorizadas social e historicamente não
somente pelos serviços prestados à sociedade. Esse reconhecimento é resultante, sobretudo,
de lutas travadas em torno de demarcações de poder que buscam ampliar as possibilidades da
ação profissional, dentro de um determinado campo de práticas (DUBAR, 2005). Tomando
como referência o conceito de poder simbólico (BOURDIEU, 2012), o poder profissional -
fruto do reconhecimento e prestígio acumulados historicamente, que define o espaço dos
possíveis da prática, é resultado do poder de fazer ver, fazer crer, de impor um sentido
legítimo ao mundo social.
Em um dos momentos mais marcantes das entrevistas, quando conversava com um
dos participantes sobre as demandas que eram trabalhadas rotineiramente pelos psicólogos no
CSF, ele falava que a visão que temos da realidade influencia na criação de demandas e
práticas para a profissão. Para o mesmo, na ESF, a psicologia é reconhecida por sua
capacidade de transcender as dimensões orgânicas do processo saúde-doença, de lidar com
aquilo que escapa à lógica biologicista.
O primeiro olhar é para o orgânico, isso é básico na atenção primária ainda. Não
gostaria que fosse assim, mas é a realidade. E aí a gente já é percebido pelos outros
profissionais como alguém que pode trazer um algo a mais, nesse outro que é a mais
do orgânico.
Como pudemos ver no capítulo anterior, em que reunimos aspectos das visões dos
participantes sobre o campo da ESF, o processo de construção das práticas é marcado por uma
divisão hierarquizada do poder profissional, em que o modelo técnico-assistencial biomédico
destaca-se como hegemônico na estruturação das ações profissionais. Nesse processo de
dominação médica sobre o conjunto das práticas profissionais de saúde nos CSF, os
participantes destacam limitações do modelo biomédico para a satisfação das necessidades de
saúde da população. O primeiro olhar, que se impõe como prioritário no senso comum, que
identifica, constitui e classifica as práticas em saúde é aquele voltado para a priorização da
face orgânica dos problemas. Esse organicismo naturalizador das práticas se reflete na
organização dos serviços e na produção social das demandas na APS do SUS.
134
No intuito de melhor interpretar os sentidos das práticas psicológicas no contexto da
APS, buscamos entender a construção das demandas como processo social historicamente
situado e marcado pela luta simbólica para definição de limites e alcances das práticas. Assim,
em diálogo com autores da sociologia (BOURDIEU, 2012; DUBAR, 2005), concebemos que
as demandas em saúde são produzidas a partir de um emaranhado de relações sociais, em que
as ações de instituições e agentes profissionais desempenham um papel destacável a partir,
dentre outras práticas, pela oferta de serviços. Tais relações sociais de produção das práticas
são perpassadas pelo entendimento que profissionais e usuários tem das necessidades de
saúde, bem como da tradição de modelos de atenção à saúde oriundos do campo social e
científico das profissões. Assim o profissional inserido na ESF tem que lidar com hierarquias
de poder existentes no CSF e com as tradições de prática que se impõem na construção das
demandas em saúde.
A já anteriormente abordada hegemonia da categoria médica é um elemento
destacado na produção das práticas na ESF, que implica na construção de enormes demandas
para atenção médica. O cotidiano de um CSF é extremamente influenciado pela organização
do trabalho médico. Em determinadas circunstâncias, a ausência desse profissional, pode
representar a quase ausência de usuários. Como reflexo dessa hegemonia, dentre outras
questões, instituiu-se uma proeminente ordem de priorização ao atendimento de necessidades
de saúde identificadas, a partir de sinais e sintomas orgânicos, situados no contexto de um
corpo biofisiologicamente interpretado.
Como vimos no capítulo anterior, as profissões inseridas nos CSF tem que lidar
direta e indiretamente com a hegemonia técnico-assistencial e de poder da biomedicina, onde
as práticas médicas são colocadas no topo da hierarquia de poder e de valor, influenciando o
desenvolvimento das outras práticas, como colaboradoras ou como concorrentes, em menor
ou maior grau, constituindo-se diante da ordem vigente. As demandas de prática para o
psicólogo, assim discutidas pelos participantes, apontam para um âmbito de intervenções no
processo saúde-doença, de certo modo muito influenciado pelo modo de organização
hegemônica dos serviços, onde o psicólogo parece ocupar um lugar vazio deixado pelo
modelo biomédico. Atuando “nesse outro que é a mais do orgânico”, o psicólogo traz sua
contribuição e esta é percebida como legítima. Assim, a profissão direciona-se para olhar e
cuidar de âmbitos de prática voltados para suprir determinadas brechas abertas perspectiva
biomédica, podendo contrapor-se ou corroborar com a lógica vigente de organização dos
serviços.
135
A psicologia, nessa perspectiva de análise, desempenha uma atuação profissional
focada, muitas vezes, naquilo que está para além da dimensão orgânica, inserindo-se num
processo social de construção de uma visão dicotomizada e dicotomizante do ser humano. A
prática profissional é atravessada por certa divisão política e epistemológica, que separa as
demandas a partir de conceitos de mental e corporal, e que se reflete no direcionamento das
questões desse “algo a mais do orgânico” para um plano inferior na hierarquia das
necessidades de saúde. Nesse segundo plano, um leque enorme de demandas se estrutura e vai
se configurando como legítimas, dentro do rol das possibilidades de atuação profissional. É
nesse plano que o lugar do psicólogo passa a ser reconhecido e valorizado.
Nesse leque de demandas, com as quais a psicologia lida cotidianamente, as práticas
desenvolvidas serão direta e indiretamente influenciadas pelo lugar ocupado pelos
profissionais na trama relacional construída no CSF. Essa trama relacional tecida no cotidiano
de trabalho é influenciada pelo maior ou menor poder dos agentes em definir o que é e o que
não é legítimo em termos de atuação profissional de um psicólogo. Abre-se, assim, uma arena
de disputas interprofissionais notável, em que o processo de trabalho é pactuado, planejado e
avaliado nos contextos de prática dentro dos limites instituídos pelas relações de força.
Ademais dos esforços dos agentes específicos, todos se situam dentro das tradições de
práticas existentes. É preciso lidar com estas tradições já instituídas do agir em saúde, do agir
em saúde da família e do agir psicológico. No intuito de analisar o processo de construção das
demandas para as práticas psicológicas na ESF, identificamos algumas de suas nuances
caracterizadoras, as quais trazem questões bastante pertinentes para pensarmos os processos
de luta para definição das práticas legítimas para a psicologia.
Uma das nuances marcantes pra pensarmos as demandas recorrentes para psicologia,
é seu recorte de gênero. As demandas para a atuação profissional da Psicologia constituíram-
se, predominantemente, em torno de necessidades de saúde trazidas por mulheres. A mulher é
apresentada como a principal porta-voz da família. Constituindo-se como a classe
predominante dentre os usuários atendidos pelos psicólogos, elas foram geralmente
identificadas como o primeiro contato do profissional com as necessidades de saúde das
famílias e, consequentemente, das comunidades. Nesse primeiro contato, a condição da
mulher e suas relações familiares revelam contextos de vida difíceis.
Eu percebo uma demanda enorme de mulheres, senhoras, mulheres de todas as
idades, mais na idade adulta, com demanda de sofrimento tremenda devido a
relações familiares construídas com os maridos e com os filhos. A questão da
anulação em relação ao feminino, de cuidar de tudo e não cuidar de si. E assim
136
mesmo elas são as únicas que procuram, assim em relação a família, elas são as que
trazem a demanda da família como um todo, elas que são as portas abertas, porta
voz da família [...]
“Atender a mulher” significa lidar com sua condição social e de gênero atravessada
pela violência imposta por uma sociedade machista e pelas condições sociais precárias de
vida, típicas da maioria dos usuários atendidos pelos participantes, em situação de pobreza e
miséria. O estudo, análise e intervenção psicológica no contexto da condição feminina nas
classes populares destacam-se como pré-requisitos para o desenvolvimento da prática desse
profissional, no contexto estudado.
Demanda de mulheres que usam benzodiazepínicos e com a queixa que diz logo que
é depressão, mas se for ver é ansiedade e depressão, essa queixa dos transtornos
mentais leves. Ansiedade e depressão eram muito grande. “Ah eu tenho problema
com meu marido”, algumas vezes eram relações de violência, coisas que as pessoas
não conseguiam falar.
(outro participante)
[Demandas decorrentes da] Violência intrafamiliar, violência sexual, violência
contra a mulher, suspeita de abuso contra a criança.
Mulheres em depressão e ansiedade, sofrendo com os chamados “transtornos mentais
leves” e inseridas em contextos de vulnerabilidade social e violência, esse é o perfil da
maioria dos usuários atendidos pelo psicólogo. Esse conjunto de demandas recorrentes para os
psicólogos expõe novamente, no contexto das análises realizadas na presente pesquisa, o
problema da medicalização do sofrimento das mulheres como processo comum nas práticas
da ESF, especialmente pela limitação do modelo assistencial vigente, no que diz respeito ao
reconhecimento e atuação junto a dimensões sociais e econômicas dos problemas de saúde.
Corroborando com os resultados de estudo realizado por Carvalho e Dimenstein (2004), fica
claro a limitação do medicamento para satisfazer as necessidades de saúde das mulheres nos
serviços de saúde.
Para momentos de forte tensão, o medicamento assume, na vida dessas mulheres,
uma importância singular, na medida em que é o responsável por controlar a agonia
vivenciada. Elas imaginam que, tomando o medicamento, conseguirão dar conta dos
acontecimentos violentos presentes no seu dia-a-dia, ou ainda manterão um
comportamento normal. O medicamento tem, portanto, o objetivo de agir sobre as
suas angústias, seus fantasmas, para que possam se manter “equilibradas”, mesmo
em se tratando de uma mordaça química, que as impossibilita de descobrir outras
formas de lidar com essas perturbações “nervosas” e seus determinantes individuais
e coletivos. (CARVALHO; DIMENSTEIN, 2004, p.125-126).
Desse modo, um pré-requisito importante para a construção das práticas psicológicas
na presente pesquisa, é a construção de uma abordagem satisfatória às demandas femininas e
de gênero. Entendemos que essa abordagem de gênero somente será satisfatória se constituir
137
um posicionamento crítico frente à medicalização da vida apontada por alguns autores
(ROMAGNOLI, 2009; BARROS, 2002; CARVALHO; DIMENSTEIN, 2004; TESSER;
NETO; CAMPOS, 2010), construindo alternativas mais pontencializadoras da autonomia dos
sujeitos. Como colocamos acima, as mulheres constituem-se como porta-voz das demandas
que chegam para os psicólogos. Dentre as demandas recorrentes, as práticas psicológicas
voltaram-se bastante para resolver problemas de saúde de crianças e jovens, geralmente
atrelados a questões educacionais. Nesse contexto, as necessidades de saúde dos filhos
configuraram grande frente de demandas para a prática profissional dos psicólogos.
Chegou uma pessoa chorando e não se alimentando bem, problemas pra dormir,
sentindo uma agonia e tudo. Ou toma medicação a muito tempo ou então “o meu
filho ta com problema de aprendizagem, ta muito agressivo”, vai chegar pro
psicólogo, pode chegar pra qualquer profissional até da equipe multi, da Residência,
mas eles vão enviar pro psicólogo. As crianças principalmente vão lotar tua agenda e
as mulheres também vão lotar sua agenda.
(outro participante)
Mas a maioria dos que buscavam psicólogo eram as mães pras crianças: “meu filho
precisa de psicólogo, meu filho precisa de psicólogo”.
(outro participante)
Crianças com problema de fala ou algum problema na escola e a gente via que tinha
uma questão psíquica e uma questão que envolvia, sei lá, os processos afetivos ou a
própria subjetivação dessa criança, no contexto familiar e na escola dela.
A demanda de atendimento de crianças também chegava pela escola que requeria da
ESF a ação do psicólogo para lidar com problemas de aprendizagem, cognitivos e de
comportamento infantil e juvenil ou mesmo com situações de autismo e de condições
especiais.
As escolas do território, eu fiz muitos trabalhos com as escolas que era um trabalho
sempre na perspectiva de educação e saúde ou então de um apoio junto aos
professores, pra eles saberem lidar com algumas situações.
(outro participante)
A demanda de criança [...] geralmente era um sofrimento que a família enfrentava
no seu processo. E por isso que eu incluo, dentro dessa demanda infantil, o processo
de sofrimento das famílias de uma forma geral, porque a criança, às vezes, acabava
tendo um sintoma da família que tava sofrendo. E que, muitas vezes, a gente fazia
mais atendimento com os pais do que com a própria criança.
As demandas infantis e escolares impulsionam os psicólogos a requerem a abertura
de um âmbito intersetorial de práticas profissionais que articule as ações de saúde e educação.
As demandas escolares e familiares geralmente chegavam para o profissional da APS, e
consequentemente para o psicólogo, através de mães ou escolas, que se constituíam, muitas
vezes, como as principais interlocutoras na construção das práticas. As questões familiares e
138
escolares são marcantes na produção das demandas trazidas pelas escolas e se encarnam de
diversas formas em casos singulares.
A variabilidade das práticas na ESF decorre de questões estruturais e locais
articuladas. Nesse espectro de questões entrelaçadas, pudemos constatar que a maioria das
demandas psicológicas advém direta e indiretamente de condições de vida precarizadas, onde
se evidenciam dimensões comunitárias, sociais e familiares emaranhadas em trajetórias
pessoais. A seguinte fala, que se refere a um momento de entrevista em que o participante da
pesquisa aborda a questão da violência como propulsora de demandas para a psicologia,
expressa uma síntese de reflexões sobre a demanda psicológica na APS:
Sempre surgem coisas diferentes, coisas novas e, todos os dias até hoje, surge uma
coisa que eu nunca lidei antes. E aí eu tenho que pensar sobre isso. Assim, desde
quadros clínicos diversos, que aparece no território, até outras coisas, que estão
muito escondidos nesses quadros clínicos. Mas, ao mesmo tempo, são talvez as
questões centrais, questões da comunidade, das relações da comunidade e como a
violência chega num serviço assim e de todas as formas, desde as mães adoecidas
até pessoas com quadro de ansiedade com medo com a violência, enfim, a violência
chega de várias formas no serviço.
A condição social de vida, os determinantes sociais decorrentes do modo de vida
comunitário, os vetores de desigualdade social e violência são grandes fatores etiológicos para
os tipos de demanda que chegam à Psicologia. A reflexão sobre determinantes sociais da
saúde torna-se relevante, aqui, como estratégia de formação voltada para o fortalecimento do
agir profissional na APS. Outro conjunto de demandas, que também fizeram parte do
cotidiano das práticas psicológicas no CSF, decorrem de variáveis estruturais de organização
e gestão das políticas de APS no SUS. Aqui, ganham destaque as demandas decorrentes das
prioridades de atenção estabelecidas pela ESF como acompanhamentos de hipertensos,
diabéticos, gestantes e puericultura. As prioridades estabelecidas pela política nacional
impõem certa fixação das demandas que chegam localmente para os psicólogos.
Tem as demandas fixas e tem as demandas variáveis [...] As fixas são aquelas dos
grupos fixos, tem grupo de quinze em quinze dias [...] De dentro desses grupos, às
vezes, surgem algumas demandas variáveis assim, uma pessoa que vai pro
ambulatório e que eu atendo no consultório, escuto, tento dar uma escuta pra aquela
angústia ali daquela pessoa.
Na busca por elucidar o lugar ocupado pelo profissional psicólogo nos CSF e seu
campo de ação, nos deparamos com outro conjunto de demandas para a psicologia. Esse
conjunto é formado a partir de necessidades de intervenção nos processos de trabalho na ESF
e ilustram-se nos convites para que os psicólogos pudessem atuar na resolução de cotidianos
problemas interpessoais na gestão do trabalho nas equipes multiprofissionais, na intervenção
139
junto a situações de sofrimento relacionado ao trabalho. Aqui o psicólogo é convidado a
direcionar sua agenda de trabalho para intervir na ordenação do processo de trabalho em
equipe, intervindo como mediador das relações entre profissionais e destes com os usuários e
suas demandas.
Aí tem esses trabalhos dentro do centro de saúde, com os profissionais também, de
poder cuidar desses profissionais, de poder organizar os espaços de Roda [de gestão
do CSF] e que também é uma demanda que o psicólogo recebe muito.
(outro participante)
Uma das coisas muito claras que eu contribuía e que a psicologia contribuía muito
era [...] no processo da Residência, no sentido da equipe.
(outro participante)
Eu cheguei a atender, muitas vezes, os próprios profissionais que vinham pra
conversar, pra pedir um conselho.
As demandas recorrentes para a prática psicológica nos CSF foram, assim,
caracterizadas: pela sua relação com uma clientela feminina, porta-voz privilegiada da família
e comunidade; pela necessidade de abertura de espaços intersetoriais de ação, especialmente
junto a escolas do território; pela imbricação de fatores pessoais, familiares e
sociocomunitários, geralmente refletidos em condições de vida precários; pelo
reconhecimento de alguns atributos históricos da psicologia como profissão e das práticas
desenvolvidas pelos agentes. Esse reconhecimento, como inicialmente discutido acima, pauta-
se na legitimação da prática para intervir numa dimensão não-orgânica do processo saúde-
doença, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento de ações de atenção ao
sofrimento humano, seja decorrente dos estilos de vida individuais e comunitários, ou dos
processos de organização dos trabalhos em equipe na ESF.
Além da caracterização já exposta, o processo social que envolve a construção da
demanda para a psicologia na APS é marcado pela forte expectativa social em torno das
práticas clínicas, especialmente de atendimento individual. Nesse aspecto, fica evidente a
relevância da compreensão da história da psicologia no campo da saúde mental, já que
hegemonicamente a construção das demandas é atravessada pela tradição profissional. Esse
imperativo de lidar com a tradição clínica da Psicologia aparece em diversos momentos da
pesquisa e, no tocante à demanda, tem como consequência a abertura de um espaço de disputa
em torno da problematização das demandas de saúde que estariam, em maior ou menor grau,
atribuindo ao atendimento clínico individual um método eficiente na resolução de problemas
de saúde na ASP.
140
A demanda para o atendimento clínico, constituída como a maior demanda por
procedimento específico da psicologia, chega por várias frentes, seja referenciada pelos
profissionais das equipes mínimas, como preconiza a política NASF e as prerrogativas
adotadas pelos programas de RMSF, ou diretamente pelo usuário ou pela equipe
multiprofissional de RMSF ou NASF.
A principal demanda que me chega é sempre pelo atendimento clínico individual. E
aí os profissionais solicitam isso muitas vezes e os usuários também, inclusive, a
lógica do apoio, que a gente tenta, às vezes, ela é burlada assim.
A condição de membro de uma equipe de apoio, como colocada pelo NASF e
seguida pelos programadas RMSF é, muitas vezes desconsiderada, ou mesmo colocada de
lado, quando os profissionais e usuários dos CSF se veem diante das demandas identificadas
para a prática do psicólogo. As demandas para o atendimento clínico são recorrentes e, em
muitos desses casos, o NASF e a RMSF são portas de entrada. Discutiremos adiante o tema
do atendimento clínico da Psicologia e suas diversas questões no processo de construção da
demanda.
Na construção das demandas para a psicologia, como pudemos analisar nas
entrevistas, a intensidade e o peso dos problemas de saúde são percebidos como obstáculos às
práticas de psicólogos na APS. Os profissionais se vêm muito pressionados pela condição
precária que, muitas vezes, relatam ter para dar retornos práticos eficientes. As demandas são
percebidas, em alguns casos, como ilimitadas. A prática profissional parece não poder dar
respostas satisfatórias às necessidades de saúde. Nessa pressão percebida, a demanda para a
Psicologia parece generalizada e muito abrangente.
É pessoa com tuberculose, com dificuldade de adesão ao tratamento, hanseníase,
enfim... grávidas que rejeitavam a criança, grupo de grávidas que as enfermeiras
sempre têm. A saúde mental também, claro. Mas, muita coisa, o que você imaginar
aparece na atenção primária, tudo.
(outro participante)
Aí é tudo que você imaginar, depressão, síndrome do pânico, transtorno de
ansiedade, conflitos familiares, luto, todo tipo de perda, fobias, isso não sou eu que
estou na categoria que diagnostica, não, isso vem no encaminhamento, entendeu,
porque eu mesmo não me importo muito com diagnóstico não, isso vem
encaminhado.
(outro participante)
Acabava que assim as demandas vinham de vários lugares, de vários âmbitos e aí eu
me senti também na exigência de mim mesmo de também dar uma filtrada, porque
aquilo ali se eu não cuidasse de mim mesmo quem ia acabar adoecendo era eu.
Uma rica variedade de demandas foi apresentada nas entrevistas e demonstra
algumas facetas importantes da complexidade das necessidades de saúde trabalhadas no CSF,
141
às quais o psicólogo é identificado como agente ativo, muitas vezes, como protagonista. Além
das demandas já relatadas, foi possível identificar outras bastante significativas: atenção aos
casos de estupro, questões relacionadas à perda da ereção, vítimas de violência sexual, brigas
de gangue, uso e abuso de drogas, exploração sexual, prostituição, enfim, casos que mereciam
estudos posteriores e aprofundados no plano local, para analisar as questões que se colocam
para a atuação profissional. Destaca-se, inicialmente, nesse contexto, que recorrentemente os
casos citados configuravam-se num nível de gravidade e complexidade percebida, onde o
acompanhamento singularizado, em nosso entendimento, aparece como uma necessidade.
Um aspecto importante da construção das demandas para a Psicologia é a relação que
a APS estabelece com a rede de saúde mental dos municípios. A histórica contribuição da
Psicologia no campo da saúde mental irá refletir numa participação ativa desse profissional na
rede. Nos municípios em que os participantes desenvolveram suas experiências, o fazer do
profissional fora bastante influenciado pela capacidade de resolução da rede de saúde mental.
O trabalho desenvolvido na atenção aos problemas de saúde mental é, assim, parte do
processo de trabalho do psicólogo, que ao interagir com outros agentes e serviços, vê e analisa
a rede da qual fez parte. Nas entrevistas realizadas percebemos que a ineficiência da rede de
atenção à saúde mental constituiu-se como fonte de insatisfações para os profissionais.
Outras coisas eu me senti muito ruim, principalmente, quando a gente dependia do
CAPS. Porque a gente não conseguia criar, por exemplo, as pessoas que estavam no
CAPS não precisavam estar no CAPS e bastava atenção primária, muito das pessoas.
E num caso grave mesmo, não tinha apoio do CAPS, às vezes, casos muito graves e
que precisava lidar com a crise naquele momento e aí a gente nunca conseguiu
CAPS a gente tinha que chamar SAMU.
(outro participante)
Então, não posso ficar tradicionalmente em sessões abertas ad infinitum. Então eu
vou pensar o quê? Eu vou aqui na atenção primária e marcar três encontros, no
primeiro eu faço uma avaliação, que demanda ela traz? É grave? É moderada? Se for
eu vou ter que encaminhar porque não é pra mim sustentar aqui, mas eu vou
acompanhando e encaminho pro CAPS e vejo a forma, encaminho pro apoio
matricial que é a porta de entrada pra ir pro CAPS.
É preciso, então, situar o trabalho na perspectiva de uma série de prerrogativas de
atuação em equipe e em rede, já discutidas em capítulo anterior. O lugar do psicólogo
perpassa o campo da saúde mental e de suas possibilidades de intervenção profissional.
Percebemos que a configuração das relações no campo da saúde mental impõe um modo de
agir à APS. Um conjunto de dilemas profissionais, que influenciam diretamente no processo
de construção das demandas para o psicólogo, decorre da capacidade de outros níveis de
atenção e equipamentos de atenção à saúde em resolver os problemas de saúde da população.
142
Tal capacidade de resolução irá delimitar a função a ser desenvolvida pelos profissionais
envolvidos com a saúde mental nos territórios da APS.
6.1 Necessidade de tradução e transformação das demandas
Um elemento de destaque, nas discussões que realizamos junto aos psicólogos sobre
o processo de construção das demandas para a prática do psicólogo no CSF, é a necessidade,
apontada por eles, de se fazer sempre a tradução da demanda. Tal tradução é percebida como
uma espécie de imperativo para a organização das práticas psicológicas na APS, um modo
estratégico de agir melhor diante de circunstâncias colocadas pelo contexto de atuação. A
necessidade de tradução da demanda e de sua posterior e progressiva transformação aparecem
como uma estratégia de luta pela autonomia no trabalho no campo da APS. A forma como as
demandas chegam e como o profissional se coloca diante delas tornam-se importantes para a
construção de estratégias de demarcação de espaço e recriação de horizontes definidores dos
âmbitos de atuação profissional. Entram em jogo as concepções sobre a prática psicológica, a
implicação dos profissionais com os problemas de saúde identificados, a vinculação dos
diversos profissionais a determinadas correntes teóricas, o poder de barganha dos agentes em
questão e as possibilidades de colaboração e luta inter e intraprofissional. A concepção que se
tem de Psicologia e o lugar que os diversos agentes pretendem que ela ocupe contribuem para
o direcionamento da demanda.
Um dos caminhos por onde as demandas são direcionadas ou redirecionadas para a
psicologia é através de encaminhamentos de casos. Muitas vezes, como exposto nas
entrevistas, esses encaminhamentos refletem um modo típico de falta de compromisso em que
um profissional não quer se implicar com os problemas de saúde do usuário. Assim, a
necessidade de traduzir uma demanda começa:
Então, tem muita coisa que o pessoal empurra mesmo pra não ter que lidar. Mesmo
o que não é problema vira, isso aí já pode ser um problema, aí já vira demanda pra
psicologia. E a gente tem que ter cuidado pra não simplesmente aceitar a demanda,
ter aquela tradução que eu falei, tentar olhar um pouco mais criticamente pra “que
pedido é esse que tão fazendo?”.
Fazer a leitura crítica dos pedidos que chegam cotidianamente é um dos requisitos
fundamentais para o trabalho dos psicólogos na ESF, é uma das dimensões do processo de
tradução. A conversa, nas entrevistas, sobre as demandas geralmente apontava, em menor ou
maior grau, pra certa incoerência ou inadequação percebida nas demandas destinadas à
profissão na ESF por usuários e especialmente profissionais. Como vimos brevemente no
143
capítulo anterior, a psicologia é bastante solicitada nos CSF. Essa demanda era percebida, às
vezes, como reconhecimento e valorização da profissão naquele contexto de prática. Mas esse
reconhecimento tinha um preço caro a pagar, o preço de arriscar imobilizar-se num fazer
percebido, pelo profissional psicólogo, como inadequado e ineficiente frente às demandas que
chegam. Era preciso permanentemente situar a profissão no novo contexto, situar o fazer
diante dos problemas de saúde que se apresentavam, mas os encaminhamentos realizavam-se
em torno de visões equivocadas da psicologia. Era preciso dizer o que é psicologia e o que ela
faz ali. Os outros, com seus pedidos e expectativas, já impunham visões. As experiências aqui
analisadas mostraram a importância de reconstruir cotidianamente novas visões da prática
psicológica.
Percebemos uma realidade de trabalho marcada por: excesso de demanda de
trabalho, variedade de casos, problemas profundos decorrentes da base social na determinação
dos problemas de saúde identificados, enormes necessidades de saúde para as quais não
existiam serviços destinados. As relações do profissional psicólogo com as equipes
multiprofissionais do CSF e usuários, são permeadas por certa tensão gerada por uma
necessidade de reconhecimento, que se depara com uma representação equivocada da prática
psicológica. A necessidade de tradução da demanda, como colocada nas entrevistas, não
reduz-se somente a uma capacidade de dialogar com o outro, no intuito de melhor escutá-lo.
Mas, sobretudo, de ser capaz de negociar significados, de convencer o outro a enxergar um
novo ponto, uma nova questão. Decorre assim, que a tradução da demanda é, sobremaneira,
uma estratégia de sobrevivência e de luta no campo das práticas, permeado por certa escassez
de oportunidades, que a posição ocupada pelo agente proporciona. É parte de uma luta pelo
poder de atuar de modo mais autônomo, pelo poder de nomear o real.
Uma profissão, dentro de uma leitura bourdieusiana da realidade social, pode ser
interpretada dentro das lutas simbólicas pela produção do conhecimento ou visões de mundo
legítimas. Sendo equivalente a um título outorgado pelo Estado, que oficializa determinados
agentes ou grupos de agentes como legítimos, a profissão, constituída e reconhecida
socialmente envolve-se permanentemente nas lutas pela “produção do senso comum ou, mais
precisamente, pelo monopólio da nomeação legítima como imposição oficial – isto é,
explícita e pública - da visão legítima do mundo social [...]” (BOURDIEU, 2012, p.146). É
preciso, dentro dessa perspectiva, retomar o entendimento sobre a natureza desse tipo
particular de poder:
O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e
fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação
144
sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o
equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito
específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado
como arbitrário. (BOURDIEU, 2012, p.14).
Este tipo de poder se define nas relações entre os que exercem o poder e os que lhe
estão sujeitos, no contexto do campo específico em que a relação se constrói, onde se produz
e reproduz as crenças sobre o mundo social. “O que faz o poder das palavras e das palavras de
ordem, poder de manter a ordem ou de subverter, é a crença na legitimidade das palavras e
daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras.”
(BOURDIEU, 2012, p.15). Interessa aqui, a posição do agente e seu capital simbólico
acumulado em lutas anteriores. No nosso entendimento, a tradução da demanda para as
práticas profissionais da Psicologia deve ser interpretada como uma estratégia dentro do
contexto das lutas concorrenciais que perpassam a construção das demandas em saúde na
APS. Desse modo, traduzir uma demanda é parte de um imperativo de se impor, de negociar
uma inovação, de escapar do risco de ser “aprisionado pela demanda” e impor um modo de
ver as coisas. A tradução da demanda reflete diretamente no modo como novos sentidos vão
sendo atrelados às práticas, podendo gerar novas demandas de trabalho.
Dependendo da forma como a gente enxerga alguns processos a gente acaba criando
algum tipo de demanda e não atendendo a outras que talvez sejam até mais pulsantes
no território que a gente trabalha.
(outro participante)
Eu fico pensando assim, isso é uma coisa muito perigosa, quando alguém demanda
um atendimento da gente, demanda uma escuta, uma atenção da gente no caso.
Porque assim, você recebe a demanda, mas você tem sempre meio que traduzir essa
demanda dentro do que faz sentido pra você e pra aquela pessoa.
No texto “A identidade e a representação. Elementos para uma reflexão sobre a ideia
de região”, Bourdieu (2012) aborda a problema das lutas simbólicas pelo poder de definir e
classificar a realidade, especialmente no que diz respeito à construção da identidade social.
Assim, o autor expõe um pouco de suas ideias sobre sua economia das trocas simbólicas, que
envolve as estratégias de dominação simbólicas de construção do mundo social. Nessa
economia, as lutas envolvem, dentre outras questões:
[...] a conservação ou a transformação das leis de formação dos preços materiais ou
simbólicos ligados às manifestações simbólicas (objetivas ou intencionais) da
identidade social. Nesta luta pelos critérios de avaliação legítima, os agentes
empenham interesses poderosos, vitais por vezes, na medida em que é o valor da
pessoa enquanto reduzida socialmente à sua identidade social que está em jogo.
(BOURDIEU, 2012, p.124).
145
A busca pela autonomia, nessa perspectiva bourdieusiana, consiste no esforço de
poder “definir os princípios de definição do mundo social em conformidade com os seus
próprios interesses” (BOURDIEU, 2012, p.125). O que remete a se apropriar de vantagens
simbólicas atreladas à posse de uma identidade publicamente e legalmente afirmada e
reconhecida, bem como de libertar-se do julgo e avaliação sob critérios desfavoráveis. É nesse
processo de luta para impor uma visão de mundo e, mais especificamente do que é a prática
da psicologia, que o profissional é chamado para intervir em problemas de saúde, os quais não
reconhece que deve intervir, especialmente para defender uma visão sobre as demandas mais
pertinente aos seus interesses.
Dentre os princípios doutrinários do SUS e princípios ordenadores da APS, a
integralidade merece aqui especial atenção. Esta é colocada como uma das principais
“bandeiras” do movimento sanitário brasileiro, que busca demarcar politicamente um
horizonte desejável para o sistema de saúde e os serviços desenvolvidos junto à população,
marcando as práticas pelo signo da atenção ampla e de qualidade às diversas demandas e
profundas necessidades de saúde da população. No que diz respeito às práticas de saúde,
Matos (2004) problematiza os diversos significados colocados na interpretação da
integralidade na prática. Destacando ela como uma apreensão ampla das necessidades de
saúde, o autor destaca ser fundamental o desenvolvimento da habilidade de reconhecer a
adequação entre os serviços ofertados aos contextos específicos, onde se dão os encontros
entre profissionais de saúde e usuários. Para ele, a defesa da integralidade no SUS é a defesa
de uma adequação e sintonia dos serviços e ações de saúde com as realidades específicos de
cada encontro entre os sujeitos. Nesse contexto, Matos defende a importância de articular
ações de assistência às demandas espontâneas, que chegam aos serviços, com ações de
prevenção capazes de ampliar a integralidade da atenção e cuidado em saúde no contexto
onde se situam. Isso remete à capacidade dos profissionais de responder adequadamente aos
sofrimentos manifestos de forma a articular ações curativas e preventivas, o que remete à
capacidade de estabelecimento de diálogos permanentes entre profissionais de saúde e
usuários.
Discutindo as demandas em saúde, Franco e Merhy (2005) abordam a dimensão
imaginária da produção das demandas. Partindo do pressuposto de que há uma construção
social das demandas, destacam que a relação entre oferta e demanda é de interdependência e
constitui-se como um fenômeno que pode gerar certos constrangimentos na relação usuário-
profisssionais/ usuário-serviços de saúde aumentando a tensão nos processos de produção do
cuidado. Em tais situações estamos lidando com um processo social de produção
146
intersubjetiva de demandas nos serviços de saúde, que se efetivam na relação entre oferta de
serviços e a percepção desta por parte dos usuários (FRANCO; MERHY). Os autores partem
da ideia de que a demanda se produz a partir da oferta e do processo histórico construído na
relação entre as instituições e a sociedade. Nessa perspectiva, “ninguém demanda aquilo que
sabe que não pode ser obtido no serviço de saúde” (FRANCO; MERHY, 2005, p.2). Outro
aspecto considerado é que a demanda por um serviço se dá, geralmente, pela não satisfação de
necessidades de saúde por outros serviços ou dispositivos de cuidado. Muitas vezes, se produz
certa “fetichização” de alguns procedimentos, como determinados exames ou mesmo um
determinado tipo de atendimento, pelo fato do usuário associar a satisfação de necessidades à
realização de tais procedimentos, muitas vezes, desconsiderando a complexa linha de
cuidados que deve se desenvolver para a efetiva satisfação das necessidades. A associação
entre o procedimento e a satisfação de necessidades de saúde é entendida como uma
construção imaginária. Aqui, ou ocorre o deslocamento de sentido, onde os símbolos
existentes são investidos de outras significações, ou mesmo uma invenção absoluta. Nos dois
casos, o imaginário pretende colocar-se no lugar do real, havendo certa separação entre estes,
havendo o tensionamento para que o imaginado passe do plano virtual ao real. Seguindo esse
raciocínio, os autores estabelecem que a construção imaginária de um procedimento leva à
produção imaginária da demanda:
Ao demandar o procedimento ele (o usuário)8 está acessando em nível imaginário,
aquele universo simbólico que dá significado amplo ao procedimento, atribuindo-lhe
uma potencialidade que ele não tem, que é a de produzir o cuidado por si mesmo.
(FRANCO; MERHY, 2005, p.5).
Tais processos de construção imaginária de procedimentos, abordagens e técnicas
são pertinentes aos modelos técnico-assistenciais de saúde existentes e postos em prática na
oferta de serviços de saúde e permeiam o universo relacional nos processos de trabalho em
saúde. Assim, há uma produção imaginária da oferta e da demanda, onde é preciso reconhecer
o processo histórico-social que impacta no modo como usuários e profissionais percebem o
serviço de saúde, tendendo a reproduzir determinados modos de oferta e demanda por
procedimentos específicos. É diante do processo de produção imaginária das demandas
psicológicas que, alguns participantes, colocam a necessidade de tradução das demandas
como uma recusa em agir em situações em que percebem o risco de que sua ação possa
perpetuar um problema de saúde ou obscurecer a natureza do mesmo. Ou seja, em
8 Grifo nosso.
147
determinados contextos, na percepção dos participantes, a intervenção psicológica pode servir
para obscurecem a reflexão sobre os determinantes sociais das demandas e conduzir a um
fazer limitado no que tange ao atendimento das necessidades de saúde da população. Nesse
contexto, a tradução remete a uma leitura abrangente dos determinantes e das estratégias de
atuação, e uma crítica ao psicologismo na produção das demandas.
A gente começa atender individualmente, todo caso que chega de criança com
problema na escola. Meu irmão, daqui a pouco todas as escolas ali próximo tão
sabendo disso e tão mandando gente. E aí tão mandando os casos mais graves e
depois os menos graves, depois aqueles que podem chegar a ser grave um dia. Então
assim, tudo vira psicologizado, todo mundo mesmo.
(outro participante)
A gente começa a perceber essas demandas “ah fulano tem transtorno”, “ah fulano é
estranho”, “ah fulano tem algum problema”, “atenda”. E aí quando a gente começa a
investigar o que realmente está por trás dessas queixas, desses sintomas ou desses
diagnósticos, a gente começa a perceber que tem situações sociais por trás.
(outro participante)
É uma situação de bolsões da miséria e que você vai pra oferecer algo diferente. Mas
são pessoas que já resistem à morte do dia a dia mesmo, tão ali já resistindo a tudo.
E aí o que você vai dizer pra elas?
O Nordeste do Brasil apresenta-se como uma região marcada historicamente pela
exploração da maioria da população, vivendo em condições socioeconômicas precárias e de
exclusão social, que impõe a necessidade de revisões éticas e epistemológicas nos referenciais
da psicologia para construir uma prática contextualizada e posicionada a favor das classes
populares (NEPOMUCENO, 2010). Nessa perspectiva, entendemos que os contextos de APS
estudados aqui se apresentam como espaços locais em que as desigualdades regionais
brasileiras e seus precários índices sociais e econômicos se expressam de modo intensificado
na determinação dos processos de saúde-doença-cuidado. Tais problemáticas sociais podem
também ser relacionadas, quando da contextualização macroeconômica global, com a
participação subalterna dos países latinoamericanos no capitalismo contemporâneo. As
condições de vida das populações latinoamericanas e um amplo escopo de problemas
políticos, culturais, éticos e identitários ligados a processos de dominação social no
continente, colocam questões permanentes para a construção de uma psicologia mais
autêntica e implicada socialmente com as questões locais e as lutas populares (GÓIS, 2008;
MARTÍN-BARÓ, 1998).
A psicologização de problemas sociais remete ao problema do reducionismo dos
problemas sociais a variáveis psíquicas individuais, incorrendo na transformação ideológica
de questões sociais em questões psicológicas (MARTÍN-BARÓ, 1998). A psicologização de
problemas sociais, acaba por reduzir os problemas de saúde a problemas psíquicos, o que
148
pode refletir-se na culpabilização da vítima e numa atuação psicológica pífia no plano
sociocomunitário, plano esse bastante relevante na ESF. Assim, a leitura da base social dos
casos, da determinação social do sofrimento psicológico e dos interesses e relações sociais,
que estão por trás das demandas, é um imperativo da tradução necessária, que o profissional
precisa realizar para desenvolver um trabalho mais adequado, que faça sentido dentro de uma
concepção de Psicologia pertinente ao que se tem e o que se quer conseguir no contexto da
APS.
Então, infelizmente chega pra gente quase sempre o adoecimento psíquico. Agora,
eu acho que o grande lance é a gente olhar para além do adoecimento psíquico.
Chega pra gente também os pepinos das instituições, chega pra gente aquilo que
ninguém consegue resolver no âmbito institucional [...]
(outro participante)
Às vezes, a demanda dele [falando de um usuário] é ele não conseguir ser acolhido,
ele não ser cuidado por aquele serviço. A questão dele é com o serviço e isso gerou
outras questões, demandas.
(outro participante)
E o próprio serviço, assim, como o serviço ele gera demandas, assim dele não
acolher, dele não cuidar, daquela pessoa não ser olhada integralmente. E isso vai
gerando outras demandas, que já estavam ali, mas que aparecem pelo próprio
serviço.
A densidade social e complexidade das demandas ganham um peso diferenciado, na
percepção dos participantes da pesquisa, dos limites do seu fazer frente ao contingente de
demandas decorrentes da pobreza e miséria vivida nos territórios da APS. A situação parece
agravada pela percepção da ineficiência dos serviços ofertados para lidar com as necessidades
de saúde da população assistida, limitação decorrente de um olhar e um fazer ainda longe de
princípios como integralidade e humanização, que constituem como aglutinadores de
interesses atrelados à melhoria da atenção à saúde no SUS. A tradução da demanda, aqui,
significa reconhecer os limites da prática profissional. Ela pode significar um passo inicial na
luta pelo fortalecimento de ações voltadas para o enfrentamento da pobreza e da desigualdade
social e pela melhoria da capacidade dos serviços de saúde de responder aos desafios sociais.
6.2 Demandas para a clínica nos Centros de Saúde da Família
Como já citado anteriormente, outro elemento significativo, quando da discussão das
demandas e da necessidade de sua tradução, refere-se à grande e, muitas vezes, incômoda
expectativa em torno do atendimento clínico individual do psicólogo. Motivo de potenciais
conflitos e desentendimentos na estruturação da agenda de trabalho do profissional, essa
149
expectativa social em torno dos procedimentos clínicos da psicologia fora marcante para
muitos dos entrevistados. Há uma clara polêmica no que diz respeito à clínica psicológica na
APS. Muitas questões de reconhecimento e valorização da profissão, bem como questões
ligadas a como os participantes concebem a atuação psicológica nos CSF, envolvem o tema
polêmico da clínica ou da psicoterapia, especialmente quando se refere ao atendimento
individual de longa duração. Dentre as questões colocadas, ficou evidente que há uma grande
demanda para o atendimento clínico e individual e que isso se tornou um dos motivos para a
necessidade de tradução e transformação das demandas. Um dos motivos principais dessa
tradução da demanda clínica é a impossibilidade de dar conta das demandas existentes,
partindo somente do modelo de prática clínica. Foi necessário, então, negociar um novo modo
de agir, era preciso evidenciar outras facetas do repertório prático da Psicologia.
Pesquisador- Como é que foi esse contato com esse campo da APS?
Foi meio tumultuado. Assim, porque as pessoas tinham uma expectativa em mim, do
que eu ia fazer, do que eu ia fazer só e de que eu ia cuidar, de que eu ia atender e
pronto, acabou a história.
Pesquisador - Quer dizer, então, que a expectativa pra psicologia é atendimento
clínico?
Sim. E aí eu tinha outros desejos, outros anseios e outras paixões que eu queria
fazer. Psicologia é “saúde, clínica e psicoterapia”, num é? Acho que era a imagem
das pessoas. E eu dizia assim: “não, eu vou pros grupos, eu quero ir pras reuniões de
Conselho [Local de Saúde], de Fórum Comunitário, eu quero conhecer outras
práticas de saúde que o pessoal tem, eu quero atender com outros profissionais”.
O imperativo do fazer clínico individual, com uma formação mais voltada para a
psicoterapia e o conhecimento do trato com as psicopatologias, de preferência que dialogue
com os referenciais da Psiquiatria, fora apresentada como uma necessidade imperiosa,
percebida por alguns participantes, para as quais tinham que se adaptar, ora por força de uma
demanda enorme de sofrimento percebida, ora por uma concepção, muitas vezes, equivocada
de atuação bastante estimulada no CSF e imposta direta e indiretamente no cotidiano das
práticas. Era preciso, por um lado, reconhecer os problemas apresentados como dignos de
uma intervenção, mas por outro lado, era preciso negociar um novo modo de ver o fazer
psicológico, o que remetia a negociar seu valor diante das expectativas anteriores.
Costumeiramente, o psicólogo é identificado como o profissional da saúde mental,
ora como o temível “profissional que visita os doidinhos da rua” – que ninguém quer precisar
um dia em sua família. Ora como o prestigiado profissional que pode ajudar a resolver os
diversos e multifacetados problemas subjetivos vividos no cotidiano. Pode-se até afirmar que
o psicólogo tem ampliado seu leque de atuações e público assistido, pela inserção cada vez
mais ampliada da profissão na sociedade (MACEDO; DIMENSTEIN, 2011; 2012). Nas
150
entrevistas, alguns participantes relataram a existência de certo fetiche em torno do
atendimento psicológico. Esse “fetiche” pelo atendimento clínico individual implicou
diretamente no modo como os psicólogos construíram seu espaço de atuação, ora negando a
clínica, ora afirmando-a. Essa modalidade prática, esse conhecimento técnico-científico, os
saberes tácitos da clínica psicológica tornaram-se, na experiência dos participantes, moeda de
negociação e luta pelo reconhecimento e valorização num CSF. Negar ou afirmar a clínica,
ampliá-la e também reduzi-la fizeram parte das estratégias profissionais visando barganhar
mais espaços de atuação na política de saúde.
Porque assim, a gente já chegou e logo fui muito solicitado. Não sei, eu acho que
tem muito já do que as pessoas pensam do que é um psicólogo. Assim, da imagem
que o psicólogo, de uma forma geral, [...] “de ajudar”, no sofrimento mental, que a
pessoa tem um estresse, na ansiedade, na depressão. E eu acho que de uma forma
bem do senso comum mesmo. [...] Assim, eu acho que as pessoas, a maioria dos
profissionais eles [...] não tem suporte pra trabalhar com o sofrimento, pra ficar ali
junto quando a pessoa que ta chorando. E ta ali junto quando a pessoa, ta muito ruim
mesmo emocionalmente, entendeu? E aí eu acho que as pessoas já veem no
psicólogo isso, tipo assim, esse suporte que o psicólogo pode dar.
É notável na análise das demandas que chegam aos psicólogos, a necessidade do
profissional, do ponto de vista de sua atuação, acolher e trabalhar efetivamente no trato com
as demandas de sofrimento apontadas. Na fala acima podemos refletir sobre um dos objetos
da prática profissional do psicólogo na APS, que remete a desenvolver um olhar mais apurado
para o sofrimento humano nos serviços de saúde. Nesse processo de trabalho, as atividades
clínicas são bastante valorizadas no CSF, entendidas pela maioria de usuários e profissionais.
Os psicólogos sofrem, assim, certa convocação nos processos de disputa interprofissional e
tramas intersubjetivos dentro do CSF, para definir o que é um fazer legítimo de psicólogo,
tendo em vistas esse lugar vazio deixado pelas demais profissões de saúde e pelo modelo
biomédico, essa fragilidade no acompanhamento de algumas dimensões mal acolhidas do
sofrimento humano. Como as experiências dos participantes nos revelam, o agir clínico
demarca modos de atuar bastante potentes de reconhecimento e valorização para a psicologia,
já que remete ao atendimento de necessidades de saúde pertinentes à ESF e, ainda por cima,
negocia com o imaginário social da profissão. A clínica aparece como um elemento central na
definição do agir psicológico na APS, parte do processo de produção imaginária das
demandas, que muitas vezes reflete-se na priorização excessiva em um procedimento
(FRANCO; MERHY, 2005). A discussão da clínica psicológica, entre os participantes da
pesquisa, expressa tomadas de posição contraditórias e antagônicas dentro da APS e do
conjunto das abordagens em Psicologia.
151
Na trajetória de atuação profissional vivida pelos psicólogos na ESF, a identificação,
recorrente em algumas das entrevistas, de uma demanda específica de transtornos mentais
para a Psicologia da APS, reconhecidos como transtornos leves e moderados, revela a
incorporação de uma lógica de trabalho em equipe, que concebe um lugar relevante para a
profissão dentro da rede de atenção à saúde mental dos municípios, onde a organização e
desenvolvimento das práticas psicológicas vão ter de adaptar-se. Nesse contexto das práticas
de saúde mental, entendemos que o modelo de psicoterapia privado não pode ser reproduzido
na ESF, sob pena de incorrer em erros políticos e técnicos. O modelo privatista de
psicoterapia de longa duração deve ser abordado de modo crítico, em vistas de construir novas
propostas de abordagem clínica. Em cima dessa perspectiva de mudança, no cotidiano das
práticas, os agentes disputam poder para definir o que seria ou não mais adequado, no que diz
respeito às práticas clínicas da psicologia na APS. A estrutura do campo também influencia
diretamente na conformação das práticas. No contexto da saúde mental, o fazer psicológico
pode sofrer influência direta e indireta das redes de serviço existentes dentro e fora da ESF.
Uma lacuna deixada pelos CAPS, por exemplo, pode repercutir na definição da agenda de
trabalho do psicólogo inserido na APS. Nesse trabalho interprofissional e interinstitucional, o
sucesso do profissional em conseguir instaurar processos de trabalho compartilhado e que
superem a noção do encaminhamento desresponsabilizado, é um dos desafios do psicólogo.
Assim, a demanda significativa para que o trabalho do psicólogo seja realizado na perspectiva
do atendimento individual precisa der problematizada, de modo a evidenciar os interesses que
estão em jogo na definição do fazer psicológico, tomando, como especial referência, as
necessidades de saúde da população e a busca da integralidade, numa perspectiva micro e
macropolítica.
Cecílio (2006) nos ajuda a compreender teoricamente o conceito de necessidade de
saúde. Para o autor, o conceito deve ser concebido a partir de uma taxonomia, que é composta
por quatro conjuntos de dimensões: necessidades decorrentes das condições de vida, o que
implica diretamente na reflexão sobre os determinantes sociais em saúde e da necessidade de
criar políticas públicas intersetoriais e saudáveis; necessidades decorrentes do acesso às
tecnologias de saúde capazes de prolongar e melhorar a vida, onde o direito à saúde liga-se
diretamente a ideia do acesso aos serviços de saúde, de diferentes níveis de complexidade;
necessidades de saúde ligadas à criação de vínculos afetivos e efetivos entre usuários e
profissionais dos serviços de saúde, que colocam em questão os canais de diálogo e
cooperação entre profissionais e usuários e entre os serviços e comunidades ou público
assistido; e as necessidades de saúde decorrentes do desenvolvimento da autonomia dos
152
sujeitos, que associam, dentre outras questões, a ideia do cuidado e autocuidado (CECÍLIO,
2006). Na busca pela construção da integralidade em saúde, o autor cita duas dimensões em
que acredita que a integralidade precisa ser trabalhada. Uma primeira diz respeito ao que ele
denomina de integralidade focalizada, que seria a integralidade como resultante da
confluência de diferentes saberes em um espaço real e singular, bem delimitado, dos serviços
de saúde, onde deveria haver a melhor escuta possível das necessidades de saúde. Nesse caso,
ocorre a tradução da demanda. Essa seria o pedido objetivo do usuário que deveria ser
compreendido para se encontrar as necessidades que nem sempre são tão objetivas. Essa
integralidade se daria no contexto da micropolítica dos serviços. Já a outra dimensão desse
princípio colocada pelo autor seria a da integralidade ampliada, vista como fruto da
articulação dos diversos serviços de saúde em uma rede complexa formada por vários agentes
e instituições que, em muitos casos, transcendem o setor saúde. Nessa dimensão, a
integralidade é compreendida no plano da macropolítica.
Assim, diferenciam-se as necessidades de saúde das demandas em saúde, que já
implicam em processos sociais distintos. Em nosso caso, muitos dos relatos dos participantes,
apontam para uma demanda para a clínica psicológica inadequada frente a visão que os
mesmos tem da psicologia na ESF. Essa demanda foi percebida como um obstáculo para
poder experimentar um fazer psicológico mais ampliado, para tornar legítima a oferta de
serviços mais variados, no que diz respeito ao papel profissional a ser desempenhado no CSF
e seus territórios. A demanda clínica colocou-se como um desafio para o reconhecimento de
outras áreas de atuação, de outras abordagens, de outros referenciais teórico-metodológicos e
técnicos da Psicologia.
No geral, os participantes de nosso estudo, tinham que se adaptar criativamente à forte
demanda de atendimentos clínicos. A análise das práticas psicológicas revela, em muitos
casos, o movimento de buscar a transformação da demanda, de sua recriação pelo
desenvolvimento de práticas diferenciadas, pela imposição de novos olhares para a prática
psicológica, pela afirmação da autonomia em ditar prioridades e modalidades de fazer
Psicologia na APS.
A gente tem muita oportunidade [de desenvolver uma prática diferente], mas, às
vezes, a forma como a gente se compromete com outras atividades, que são tidas
como prioritárias, acaba nos sobrecarregando. E a gente não tem tempo de se dedicar
a essas atividades e acaba não sendo prioridade pra nós.
(outro participante)
A gente precisa ter um trabalho que não é transformar uma concepção das outras
pessoas da noite pro dia. E nem tão pouco alimentá-la pro resto da vida. Mas a gente
precisa de um jeito de poder transformar o que já existe, que são os atendimentos
153
individuais, essa forma de poder atender, seja através de uma visita, seja através do
atendimento individual e poder utilizar também o nosso momento pra poder se
organizar dentro da comunidade.
(outro participante)
Então, o cara começa a ver algo acontecendo ali a partir daquela proposta. Aí
começa a valorizar mais e aí isso vale tanto pros atendimentos quanto também pra
outras atividades que a gente faz de, tipo assim, de grupos que às vezes o médico
participava e, às vezes não participava, mas ele começava a ver que “ah aquele cara
que era só remédio agora posso encaminhar direto pra esse grupo”. Então assim,
“essa profissão tem um sentido de ta aqui”.
A participação ativa na construção das demandas, a partir da oferta em novos
serviços questionadores de visões estereotipadas da profissão, é um dos avanços da Psicologia
em sua inserção na APS do SUS. Representa um desafio ao desenvolvimento da autonomia
profissional. Aqui, encontramos uma ambivalência do sentido da clínica psicológica para o
psicólogo na ESF. Por um lado, representa um saber específico, uma competência técnica
dominada pela profissão - que é um dos aspectos fundamentais no processo de
profissionalização (BOSI, 1996; DUBAR, 2005; MACHADO, 1995), representando um signo
de poder e reconhecimento. Por outro lado, a demanda clínica é percebida como parte de um
processo produção imaginária das práticas psicológicas, pautadas numa visão entendida como
restrita. Nesse contexto, as lutas simbólicas da profissão, na busca pela autonomia
profissional implicam na reconstrução de sua identidade, a partir da implementação de novas
práticas em saúde, capazes de também reconstruir o imaginário social da profissão. Essa
conquista de novos espaços de prática, como entendemos, deve ser buscada não na negação
do que surge como demanda, mas pela ampliação do olhar dos diversos agentes envolvidos na
APS, o que inclui necessariamente os próprios psicólogos. Nesse processo, pudemos ver que
novos sentidos das práticas psicológicas começam a ser percebidos como legítimos e
relevantes dentro de escopo de práticas do CSF.
As pessoas começaram a perceber que existem outros processos de cuidados que
podem ser instaurados e que não seja só nesse âmbito fechado da clínica.
(outro participante)
Foram feitas outras coisas que, no começou, causaram estranhamento e as pessoas
não entendiam o porque. Por exemplo, o psicólogo, eu ao invés de estar ali e atender
não sei quantas pessoas, eu ia pra comunidade fazer outra coisa e aí as pessoas não
compreendiam e realmente era uma estranhamento disso. Mas o próprio convite pra
ta fazendo essas outras coisas depois me fez ver que os profissionais estavam
começando a reconhecer o papel do psicólogo pra além desse “fetiche” do psicólogo
clínico.
Na experiência de alguns dos entrevistados, outras demandas passaram a surgir e a
contribuir para ampliar as visões sobre o fazer da Psicologia na ESF (e mesmo sobre a própria
154
ESF), o que fora avaliado positivamente por estes participantes da pesquisa. O modo como as
demandas chegavam também fora transformado, gerando processos de implicação e novas
agendas de trabalho.
E uma demanda interessante que tem surgido agora, que é convocar a gente pra
construção de processos comunitários. O pessoal chamando a gente pra compor as
redes comunitárias e entendendo que a psicologia pode contribuir com isso.
(outro participante)
O agente de saúde tinha a ideia de fazer alguma coisa que mexesse com a operação
de serviço, eu vi que ele me procurava muito. E eu comecei a perceber isso com o
tempo. Assim, ele ta me reconhecendo com uma pessoa que pode ajudar ele a pensar
um grupo, poder ajudar ele a pensar a Roda de Gestão, que pode ajudar ele a pensar
o prontuário. Assim e aí eu comecei a me reconhecer quando os outros começaram a
me reconhecer muito com isso assim e foi uma surpresa pra mim ser reconhecida
por outros profissionais com esse papel também.
(outro participante)
Eu posso dizer assim que, no início (o encaminhamento), era pra se livrar, mas teve
um momento que eu senti algumas equipes com necessidade de compartilhar,
queriam mesmo fazer alguma coisa diferente no seu território e que desse até prazer
de trabalhar porque tinha isso.
A construção das demandas em saúde aponta para a relação direta entre oferta e
demanda de serviços de saúde e para a necessidade de acolhimento e tradução do que chega
para esse profissional. Na experiência de alguns participantes da pesquisa, fora necessário
impor-se na demarcação de uma visão mais ampliada de Psicologia, que supere a visão
atrelada a um fazer ambulatorial e entendido como “psicologizante”. Outros participantes,
mais vinculados às abordagens clínicas, e com trajetórias anteriores e paralelas de trabalhos
com a clínica de consultório particular, adaptaram-se mais facilmente às demandas colocadas
pelos serviços e desenvolveram uma agenda de trabalho bastante marcada pelos atendimentos
individuais. Estes tiveram que lidar, no entanto, com as críticas à clínica colocadas pelo
campo científico e pelos outros agentes, que reinvidicaram um lugar diferenciado para o
psicólogo, bem como com a enorme demanda para atendimento, percebida como
desproporcional aos serviços que podia ofertar.
Aí, mesmo os atendimentos também eu fui experimentando uma nova perspectiva de
atendimento, não é mais aquele atendimento tão criticado tradicional de clínica com
aquelas horas e tudo. Mas eu fui pensando uma nova forma de contribuir com a
bagagem da psicologia clínica na realidade da atenção básica. E aí foi muito de ir
tateando ali, de ir experimentando e de ir construindo mesmo.
Entendemos que, em parte, a expectativa social para o atendimento clínico na APS
do SUS revela uma reconhecia importância da clínica psicológica para intervir
terapeuticamente junto a muitas necessidades de saúde da população. A população e os
profissionais esperam desse profissional o acolhimento de um conjunto de problemas de
155
saúde presentes no cotidiano dos serviços que, supostamente, o psicólogo pode proporcionar
um retorno significativo para “atender” a população, como um modo apropriado de agir
diante das demandas múltiplas já apresentadas. O “atendimento clínico” é, assim, colocado
como questão polêmica, quando os psicólogos inseridos na ESF veem-se diante de uma
multiplicidade de demandas e prerrogativas que pressionam para desenhar um modo de fazer
psicologia complexo e contraditório. Algumas questões se colocaram no decorrer das
entrevistas: Será o atendimento clínico individual possível e necessário na ESF? Como essa
questão é analisada pelos psicólogos inseridos nos Centro de Saúde da Família?
Reconhecemos a psicoterapia como elemento possível de produção de cuidado e
como elemento técnico relevante no acolhimento aos diversos modos de sofrimento existentes
na ESF. A discussão desse elemento expressa posicionamentos de defesa e crítica da clínica
na APS, como parte do processo de lutas para afirmar um fazer legítimo e apropriado para o
contexto dos CSF. Observemos o diálogo abaixo:
[Perguntado se a psicoterapia teria espaço na APS, o participante desenvolve sua
resposta:]
É porque eu acho que ela é muito perigosa, a psicoterapia de longo prazo no sentido
de você ficar na sua sala e não ir para o território. E o que eu acho que é o principal
da atenção primária é essa clínica no território.[...]o acompanhamento ele já
acontece, não ocorre a psicoterapia, o acompanhamento individual de longa duração
já acontece porque, por exemplo, uma pessoa
Pesquisador:Mas, sem o espaço psicoterápico?
R:Sem o espaço psicoterápico, sem a clínica.
Pesquisador:Sem a escuta no setting terapêutico?
R:Sem aquele setting. Por exemplo, acontece nas visitas, acontece quem está no
meio da rua, acontece porque a gente conversa com agente comunitário, conversa
né. Então, principalmente o acompanhamento, ele ocorre nesses espaços do
território. E por isso que eu acho que é um acompanhamento longitudinal, não é a
psicoterapia assim no restrito do termo da psicoterapia. Mas é outro
acompanhamento, eu acho que é um acompanhamento clínico individual e de outra
forma.
[...]
Pesquisador:Agora, a psicoterapia clássica ela não teria espaço nesse sentido?
R:Não, assim, eu acho que ela não tem logística do jeito que a gente está. Não tem
condições [...]
Buscamos conduzir a discussão se há ou não a demanda para a psicoterapia, na
tentativa de evidenciar necessidades de saúde possivelmente negadas no processo de luta para
organizar a agenda de trabalho de psicólogos na APS. Nesse contexto, observamos restrições
à clínica individual e de longa duração devido a falta de condições “logísticas” para o
desenvolvimento dessa prática.
Pesquisador: Mas a demanda existe, tu acha?
Não sei, porque assim, o que eu acho é que, realmente, algumas pessoas tem sim
essa demanda da psicoterapia, de trabalhar questões, sentar lá e falar de questões e
156
de trabalhar essas questões [...] eu acho que algumas pessoas precisariam sim,
muitas pessoas tem demanda, tem vontade.
O desenvolvimento de atendimentos individuais aparece como uma questão delicada
dentro do campo, já que a abertura da agenda do profissional pode representar o
aprisionamento do fazer apenas na perspectiva clínica de agir, prejudicando o
desenvolvimento de outras práticas. As discussões em torno da inserção recente da Psicologia
na APS do SUS conduzem a um conjunto de críticas ao fazer clínico individual de longa
duração, como um fazer a ser superado na ESF (CAMARGO-BORGES; CARDOSO, 2005;
DIMENSTEIN, 1998; 2000; 2001; 2003; NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011; TRAVERSO-
YÉPEZ, 2001). Tais questionamentos à clínica foram pertinentes, ao impor certo conjunto de
prerrogativas, aos processos de organização e negociação da agenda dos psicólogos. Na
presente pesquisa, a demanda, por vezes, surgia com listas explícitas e implícitas de pacientes
que eram construídas pelos profissionais do CSF e do território (especialmente das escolas).
Os psicólogos se viam na necessidade de se impor e delimitar limites para poder ter mais
autonomia pra decidir alguns dos rumos de seu fazer profissional na ESF.
Participante:A gente desenvolveu atividades tanto relacionada assim a clínica, tinha
uma discussão assim no começo se haveria ou não haveria atendimento individual e
aí a gente iniciou inclusive, eu falo a gente porque isso era uma coisa discutida
dentro da Residência.
Pesquisador: Decidida no coletivo.
Participante:Isso, no coletivo dos psicólogos especificamente. Que a gente tem uma
coisa assim, “olha a gente acha que não faz sentido a gente abrir agenda para
atendimento individual, porque senão a gente vai lotar rapidamente a agenda e aí
não vai ter espaço mais pra nada e pelo o que a gente já estudou, já discutiu aqui,
não é por aí, não é esse caminho”. E aí por outro lado, tinha uma demanda de CAPS.
Então, “ta aqui uma galera pra vocês atenderem, vocês psicólogos se organizem aí e
deem conta disso”. Então era meio que assim a gente dizendo “não” e os cara “mas é
isso que vocês fazem, é isso que vocês fazem” e isso gerou assim um estresse
tamanho que teve uma roda de categoria que, a gente se reunia semanalmente, os
seis psicólogos com a preceptora de psicologia e teve uma roda que a coordenadora
da residência foi pra entender melhor e, na verdade, pra argumentar que a gente
deveria atender individualmente e causou um estranhamento nesse ponto assim,
inclusive nela própria.
Uma alternativa criada para o atendimento clínico individual foi sua restrição através
da definição de limites para as sessões individuais. Assim, atendia-se clinicamente os usuários
em intervalos de, no máximo, entre 3 a 8 sessões. Mas se houvesse uma demanda por mais
tempo, dever-se-ia encaminhar para outros dispositivos do território ou da rede de saúde
mental. Diante da precariedade das redes estudadas, no que tocante à capacidade dos serviços
de prover atendimento clínico individual de longa duração, alguns dos participantes atendiam
157
alguns casos clandestinamente9, por longos períodos. A clandestinação da clínica talvez seja
uma prática recorrente nos serviços de psicologia na APS, o que represente, em nossa opinião,
um problema não discutido no enfrentamento dessa questão. Outros profissionais, muitas
vezes com certo pesar, encaminham para os dispositivos de cuidado que existem no território.
Porque não tem como você fazer acompanhamento de uma pessoa na Atenção
Primária, tendo em vista assim, trabalhando em três Unidades de Saúde, em diversas
áreas. Então, a gente delimitou mais ou menos, quatro encontros, cinco encontros.
Então não é aquela psicoterapia, é um encontro mesmo pra avaliação e pra trabalhar
alguns pontos. Se essa pessoa tiver uma demanda mesmo de acompanhamento, aí a
gente tende a encaminhar. Só que, muitas vezes, não tem pra onde encaminhar,
porque não é demanda de CAPS. Então a gente fica tentando colocar ela no grupo
terapêutico, que a gente tem.
Por um lado, a necessidade de tradução e transformação da demanda clínica
configura-se como um imperativo para se fazer um trabalho de ampliadas possibilidades de
agir, o que remete a superar o modelo da psicoterapia e evidenciar um novo leque de
alternativas, de acordo com os interesses dos agentes e grupos de psicólogos. Aqui, como já
explicitado acima, vemos o processo de luta simbólica para impor uma visão sobre a
demanda, para demarcar um limite para a atuação mais próximo de uma perspectiva menos ou
mais clínica de atuar, mais condizente com os interesses dos participantes. Essa luta pela
autonomia profissional, assim, não pode ser desvencilhada dos interesses dos agentes
especialmente no tocante à sua filiação a determinadas abordagens ou áreas de atuação da
Psicologia. Ficou claro, na análise dos posicionamentos dos participantes, que o modo como
defendiam ou criticavam a enorme demanda para a clínica psicológica, era bastante
influenciada pela sua trajetória anterior de adesão a determinadas perspectivas teóricas dentro
da Psicologia, mais abertas ou fechadas às abordagens clínicas10
. Encontramos aqui um
condicionante forte na produção das práticas psicológicas, justificável epistemologicamente e
politicamente. Evidenciou-se a influência da posição ocupada no campo científico
(BOURDIEU, 2012; 2010) da Psicologia, onde os profissionais mais vinculados à Psicologia
Social e Comunitária tinham uma prática mais contraposta aos atendimentos clínico
individuais de longa duração, com uma agenda mais restritiva a essas práticas. Já os
psicólogos mais vinculados anteriormente às abordagens clínicas tiveram uma maior abertura
9 Na percepção da impossibilidade de encaminhar o usuário para outros serviços, o profissional se vê na
obrigação técnica e moral de continuar o atendimento, mas não divulga aos outros pelo receio de ser criticado
pelos pares ou mesmo de aumentar a demanda. 10
Nesse ponto, é necessário esclarecer que essa reflexão somente foi possível, de modo mais enfático, pelo fato
do pesquisador conhecer muitas das trajetórias dos participantes, bem como - quando não conhecia – pela análise
de seus currículos ou mesmo pela explicitação de suas abordagens em seus relatos.
158
da agenda para os atendimentos. É certo, no entanto, que alguns, se constituíam em trajetórias
híbridas onde a clínica já era incorporada no seu quefazer profissional. Mas, nesses casos, a
prática mais aberta ou fechada à abordagem clínica, remete aos interesses futuros dos agentes.
É necessário também ponderar, nesse ínterim, todo um debate sobre clínica ampliada, que
vem sendo desenvolvido no campo da Saúde Coletiva (CAMPOS, 2000; CUNHA, 2005)
especialmente pela incorporação de questões sociais implicadas na prática clínica.
Na presente experiência, no que diz respeito à defesa da clínica psicológica, alguns
dos argumentos dos participantes merecem destaque, especialmente, a partir do deslocamento
da clínica para o plano da dimensão epistemológica do fazer psicológico. Aqui, ela não se
reduz à esfera da técnica, mas é entendida (e defendida) como um dispositivo epistemológico,
que permeia todo o agir profissional do psicólogo quando na APS. Dentro dessa reflexão,
todo o fazer da Psicologia nos territórios da ESF, encontraria na clínica psicológica, uma
relevante e irrevogável matriz de constituição de práticas. Um dos participantes argumenta:
Eu tenho uma dificuldade com essa reflexão, que é uma reflexão muito clássica
dentro do campo, de que esse aluno ele tem dificuldade de se livrar da hegemonia de
um modelo clínico de escuta.
Pesquisador: Estou entendendo, está se tornando clássico né?
R: É, tudo bem, acho que era preciso que alguém dissesse isso em algum momento
[falamos sobre a crítica recorrente ao modelo clínico tradicional], mas eu acho que
justificar tudo por essa via me parece empobrecedor.
Pesquisador: É, eu concordo.
E eu acho que esse é um desafio assim. É poder compreender de que ordem é essa
clínica, nesse sentido mesmo que eu ia falar, qual é a especificidade dessa escuta?
Como é que ela realmente não está relacionada à definição de um espaço físico, pra
que você escute e pra que você faça o seu atendimento.
Pesquisador: Estou entendendo, não é uma questão de setting, de ter ou não ter o
ambulatório no Cento de Saúde da Família.
R:Isso. Então, eu acho que esse é um dos desafios. Assim, eu não acho que é só pra
Psicologia não, eu acho que pra Medicina também isso é um desafio, embora seja
um outro setting, mas há uma cobrança de determinadas condições também pra que
uma intervenção seja feita. Eu acho que esse é um desafio da formação, é poder
compreender essa clínica. Mas poder pensar sobre essa ampliação da clínica, e não
só como uma ampliação do espaço físico, mas uma ampliação da compreensão desse
sujeito também.
Analisando a demanda clínica, a partir desse ponto de vista - dessa tomada de
posição que afirma a clínica como constituinte de uma escuta psicológica e um olhar para o
sujeito, assume-se a ideia de que o dispositivo clínico é um elemento de extrema relevância
para o fazer psicológico e que é constitutivo de uma diversidade de práticas possíveis. Nesse
sentido, defende-se o elemento teórico de fundamentação das práticas clínicas que sustenta o
argumento da indissociabilidade entre a clínica e social (BENEVIDES, 2002; 2005) e
reconhece-se uma ampliação necessária à clínica tradicional. Grosso modo, essa perspectiva
de abordagem da clínica ancora-se, dentre outros argumentos, na ideia de que toda psicologia
159
é social, sendo, portanto, pertinente pensar que todas as práticas clínicas teriam um olhar
socialmente situado. Esses argumentos, no entanto, retomados no contexto das estratégias de
luta por espaço na ESF, lutas dos agentes e instituições situados dentro do campo das
psicologias, pode servir como justificativa para a acomodação do fazer profissional dentro de
uma perspectiva predominantemente de atendimento clínico individual.
Nessa pesquisa, um dos desdobramentos importantes da reflexão sobre a questão da
clínica é analisar até que ponto os psicólogos estão dando respostas efetivas para resolver os
problemas de saúde da população, no que diz respeito às demandas relatadas acima. Nossa
curiosidade, contemplada parcialmente nesse estudo, mas que já nos dá subsídios para
reflexão, é que muitas necessidades de saúde são negligenciadas no debate crítico, que se
refletiu na negação da psicoterapia nos serviços públicos de saúde. Assim, um ponto
importante dessa discussão é a necessidade de ampliarmos nossa percepção para essa
demanda específica de acompanhamento clínico individual de longa duração, visando uma
melhor apreensão das necessidades de saúde. Como vimos, o modo como os psicólogos
percebem e representam a demanda para essa prática específica é permeado pela experiência
do trabalho multiprofissional e com as redes de saúde mental, bem como pelas prerrogativas
que a APS impõe nesse contexto.
Pesquisador: Você acha que a psicoterapia cabe na atenção primária de saúde?
R: Eu acho que sim. Eu acho que ela cabe na atenção primária enquanto atenção
primária e se a gente não tiver um outro local intermediário onde ela aconteça. Se a
gente tivesse esse outro local intermediário nesse sistema, sei lá, que eu estou
inventando, de certa forma.
Pesquisador: Vamos dizer assim que fosse numa espécie de policlínica.
R: Mas a preocupação é sempre assim, que os modelos que existem sempre isolam
quem faz o atendimento ambulatorial, isolam quem faz a psicoterapia, esse que é o
problema.
(outro participante)
Pesquisador: Seria importante para a população ter acesso a esse serviço
[psicoterapia]?
R: Sim, eu acho. Eu acho que a psicoterapia poderia ser organizada, ser instalada
assim. E não agenda igual ao médico não, de jeito nenhum, mas eu não vejo
problema na psicoterapia dependendo de alguns casos lá dentro da atenção primária,
eu acho que o psicólogo pode, ele é importante tanto no NASF como na equipe
mínima, porque assim, a gente era um dos mais solicitados pelo menos lá na nossa,
os outros também eram muito solicitados, mas eu sentia que a gente tinha não sei um
foco maior na psicologia até porque lá as pessoas tem muito sofrimento mesmo e
não só um sofrimento orgânico, um sofrimento mental, psíquico.
(outro participante)
Eu acredito que não faz sentido na estratégia dos programas que a gente tem e com
as demandas que a gente tem na estratégia de saúde da família. Eu acho que o que
precisa ter é sim, uma policlínica, que possa ter uma psicoterapia [...] eu reivindico
sim, essa rede.
160
O psicólogo parece estar diante de um beco sem saída. Deve proceder de modo a
situar seu fazer na rede de saúde mental, articular-se com os outros níveis de atenção e com as
outras profissões inseridas na ESF. Assim, deve acolher as demandas que lhe chegam dando-
lhes os encaminhamentos necessários e assumindo um lugar de acompanhamento de um
grande número de casos. No entanto, se o problema apresenta uma necessidade de
acompanhamento longitudinal com atenção individualizada, ou mesmo com clara demanda
para a psicoterapia de longa duração, o profissional vê-se num contraditório lugar onde não
pode dar prosseguimento ou encaminhamento ao acompanhamento do usuário. Esse conflito
pode ser permeado por questões técnicas, que remetem à identificação diagnóstica de alguns
casos onde a psicoterapia é percebida como eficiente. E também questões éticas, em que o
profissional depara-se com a injustiça social imposta pela negação de diversos direitos sociais,
inclusive o direito aos serviços de saúde. Assim, a necessidade de atendimento individual do
usuário é negligenciada. Se o lugar do acompanhamento individual de longa duração é ou não
na APS, isso irá depender da rede de saúde mental do município e da disponibilidade de
profissionais psicólogos nesse sistema. Percebemos que a questão da negação da psicoterapia
é um reflexo da precariedade da APS para dar conta uma resposta efetiva às necessidades de
saúde da população. Nesse contexto, é preciso questionar esse vazio deixado pelo cuidado a
saúde mental dos usuários da APS e redes interligadas.
Questionamos aqui, portanto, a qualidade do atendimento individual prestado nesses
novos arranjos supostamente mais adequados de atendimento promovidos na ESF, claramente
marcados pela imposição de restrições severas às práticas clínicas de acompanhamento
individual, impostas pelo caráter precário e seletivo da política de APS do SUS. Entendemos
que a restrição à clínica individual, como analisamos aqui, apresenta-se como expressão de
injustiças sociais ensejadas no cotidiano da ESF, decorrente da precarização do processo de
trabalho dos profissionais psicólogos e fragilização dos serviços prestados à população
brasileira.
Ademais das visões restritas de sujeito e de mundo, que podem estar perpassando as
práticas clínicas, e que precisam ser criticadas, é preciso questionar, sobretudo, as questões
referentes à qualidade e a condições adversas de acompanhamento psicológico fragilizadas
pelas precárias condições de trabalho em que estão submetidos os psicólogos no serviço
público. Essas condições precárias, acrescidas a grandes demandas, marcam as práticas pela
ânsia do encaminhamento, pela restrição à psicoterapia. Concordamos que o campo da ESF
está cheio de possibilidades de interface com outros profissionais, que o trabalho em equipe e
em rede proporcionam. No entanto, omite-se perversamente, nesse debate, as necessidades de
161
saúde as quais o acompanhamento clínico individual de longa duração, poderia ser
importante. Necessidades negligenciadas não somente por um equívoco teórico-metodológico
ou uma visão elitista da psicologia e dos psicólogos. Mas, sobretudo, pela precariedade da
inserção da categoria no SUS. Sob a aparência de avanço tecnológico ou de superação de um
modelo elitista e ineficaz para os serviços de saúde, o modelo da clínica tradicional, esconde-
se o processo de precarização do trabalho nas políticas públicas de saúde, que marcam a APS
do SUS com a mais explícita faceta neoliberal de organização dos serviços públicos de saúde:
sua seletividade. Em nosso entendimento, no que diz respeito à prática da psicologia, o acesso
é restrito e a integralidade do cuidado encontra-se ferida e ofuscada por discursos ideológicos
de reformulação dos modelos de prática, que muito podem estar contribuindo para a
reprodução das desigualdades no acesso. Entendemos, aqui, que vivemos o momento de dar
um passo a mais na efetivação e desenvolvimento de serviços psicológicos na APS,
ampliando a qualidade e quantidade do serviço realizado.
6.3 Mais psicólogos?
Coloca-se, aqui, uma reflexão particular sobre a questão da percepção, por parte dos
participantes, de uma escassez de serviços ofertados pelos psicólogos no SUS. Assim, uma
questão rica em termos de subsidiar a avaliação da inserção da psicologia na APS, é a análise
da necessidade de termos mais psicólogos na APS. Seria o lugar do psicólogo na ESF ainda
muito restrito? Caberia, por exemplo, a inclusão da categoria na condição de membro da
equipe mínima?
Em torno dessas questões, conversamos com os participantes e pudemos vislumbrar
a insatisfação dos psicólogos com o lugar que ocupam no CSF e na ESF. Uma das
perspectivas apontadas em nossos diálogos, fora a inclusão do psicólogo nas equipes mínimas
da ESF. A defesa de sua inserção na equipe mínima corrobora com a ideia de que o serviço
existente, hoje, ainda está muito aquém do que deveria ser. O lugar reservado ao psicólogo,
nas equipes de apoio à ESF, no NASF, é bastante insuficiente e limitado. Advoga-se, no
entanto, sua inclusão em novo espaço, o que não remete, necessariamente, à exclusão do
espaço já ocupado.
Se tivesse um psicólogo quarenta horas num Posto de Saúde, assim como tem um
dentista, ele teria demanda pra atender e agenda lotada. Não tenho dúvida disso.
Porque a demanda é muito grande. A Atenção Secundária não consegue dar conta.
Aí o que é que acaba acontecendo? As pessoas vão piorando, piorando, piorando e
tem que ir pra lá. Porque não tem essa primeira parte aqui, da escuta aqui.
162
(outro participante)
Eu fico pensando o seguinte: pensando três lugares diferentes, certo? Uma coisa é
você ser parte da equipe de referência ou sei lá parte da equipe mínima ou você ser o
psicólogo do posto, esse é um local. Outro local é você ser apoio institucional que
você ta dando esse suporte inclusive nível organizacional e como é que funcionam
as coisas. E tem o terceiro lugar que eu acho que é você ta numa função de apoio
matricial, que é como o NASF é proposto, que é como a nossa residência era
proposta também, porque aí é um apoio que você ao mesmo tempo ta olhando pra
prática do outro, mas você ta tendo uma prática lá dentro também, enquanto que no
apoio institucional eu acho que você acaba olhando exclusivamente pra instituição.
[...] Eu acho que são possíveis todos esses espaços sabe.
(outro participante)
Pesquisador:Tu acha que cabe o profissional da psicologia na equipe?
Caber eu acho que cabe, eu acho que é fundamental, é necessário, eu diria até que é
necessário.
Pesquisador: Você está falando da equipe mínima?
Na equipe mínima. Porque assim, você tem o profissional no NASF, o NASF é
importante, é uma conquista, com todas as críticas que a gente tem é uma conquista
dos profissionais, das profissões, da ampliação desse conceito de saúde. Agora
parece que ainda assim o NASF, quer dizer, o NASF trabalha com uma série de
dificuldades, que a gente observa, no sentido assim de ter que estar em vários
lugares ao mesmo tempo.
O questionamento sobre o acesso restrito ao serviço psicológico parece ser
fundamental para pensarmos as necessidades de saúde, que poderiam estar sendo melhor
acompanhadas, de modo mais adequado para a população assistida na APS. Isso parece
patente nos diálogos realizados em entrevista, nos diversos âmbitos de prática da psicologia.
Especificamente, como vimos acima, a psicoterapia ou mesmo qualquer acompanhamento
individual de longa duração, algo que ultrapasse os 6 a 8 atendimentos, parece inviável para a
organização da agenda de trabalho do profissional psicólogo no modelo NASF, ficando
evidente, uma enorme demanda descoberta ou mesmo coberta precariamente. Isso remete a
reenfatizar o contexto de precarização das práticas psicológicas já discutido. Essa reflexão
toma uma conotação mais pública e tensa, pelas lutas simbólicas efervescentes intra e
interprofissionais do trabalho nos serviços de APS, no âmbito das práticas clínicas. Assim, em
nossa pesquisa tornou-se evidente, após a análise do material construído nas entrevistas, que
corrobora com a experiência vivida anteriormente pelo pesquisador, a necessidade de
ampliação do acesso aos serviços psicológicos.
[Entrevista com dois participantes]
Pesquisador: E se o morador de uma Unidade dessa, que vocês trabalham, enfim,
numa Unidade de Saúde, em geral, apesar de ter as especificidades, se ele quiser
fazer psicoterapia, por exemplo, como fica?
Participante A- Ou se ele precisar que eu possa articular essa psicoterapia com outro
setor, que possa dar esse suporte, ele vai ter dificuldade de chegar até a mim.
Participante B - Até você e até o outro serviço.
Participante A- Até se eu puder acompanhar durante um tempo, fazer uma avaliação
e tal, um cuidado primeiro, talvez eu nem possa ficar com ele por longo tempo
163
porque a demanda é grande. Mas nem sequer articular com outro serviço eu consigo,
porque a demanda [com gestos -braços abertos- indica que é grande].
Pesquisador: E essa demanda é uma demanda que existe?
Participante A. Existe, no meu território existe. Existem essas pessoas que ficam
desassistidas, na maioria das vezes, ficam desassistidas, afirmo categoricamente
isso, nesse momento histórico.
A análise do momento histórico de inserção da psicologia na APS aponta que as
contribuições da profissão são ainda incipientes e que muito poderia melhorar não somente
com a inserção de mais psicólogos na ESF e rede articulada, mas, sobretudo, pela melhoria
das condições de trabalho desse profissional, o que inclui uma diminuição do seu território de
atuação e uma ampliação de sua participação na ação direta junto à população, diferente da
prática de apoio matricial. Destacamos aqui mais uma arena de disputas pelo controle sobre as
tarefas nobres, como a clínica, e que são representativas do processo de profissionalização
(DUBAR, 2005) vivido pela psicologia em sua inserção na ESF. Nesse contexto, a discussão
da demanda, implica em repensar um conjunto de questões como: o risco da
hiperprofissionalização do campo saúde, que restringem as práticas de cuidado a processos de
submissão aos saberes técnico dos profissionais (ILLICH,1975; NOGUEIRA, 2003); as lutas
por reconhecimento e autonomia (BOSI, 1996; DUBAR, 2005; MACHADO, 1995); o tema
da formação em saúde e a necessidade de reformulação dos modelos ideais de agir.
164
7 ESPECIFICIDADES DAS PRÁTICAS PSICOLÓGICAS
Neste capítulo, temos como objetivo refletir sobre a especificidade da prática
psicológica na APS. Exporemos os resultados de nosso esforço por entender o lugar
diferenciado que a psicologia ocupa dentro das profissões inseridas na ESF, bem como
tentamos apreender o objeto de suas intervenções dentro do campo em questão. Interessou-
nos a investigação sobre os modos como a psicologia é reconhecida dentro desse espaço
social, bem como os obstáculos enfrentados na sua luta por reconhecimento nesse campo, que
é relativamente novo dentro do rol das políticas públicas de saúde no Brasil.
Tomando o referencial de Bourdieu e sua sociologia da ação, a especificidade de
uma determinada prática é constituída pela inserção histórica dos agentes e instituições em
determinados campos sociais, construindo o que o autor chama de habitus. No nosso caso,
refletiremos aqui sobre a constituição de um habitus profissional da psicologia, que já remete
a própria história da Psicologia como ciência e profissão no contexto brasileiro, especialmente
nos espaços sociais criados pelas políticas públicas de saúde. Como apresentado nos
fundamentos teóricos da presente pesquisa, a partir das ideias de Bourdieu (2012; 2011;
2008), a ação de um agente é analisada pelo entrecruzamento de uma visão construtivista, que
considera que o indivíduo é ativo na produção de saberes e práticas, e estruturalista, em que a
ação é decorrente de um conjunto de questões sociais históricas influentes dentro e fora do
campo da ação, especialmente no tocante às lutas pelo poder. Sob esse referencial, o olhar que
tentamos desenvolver para pensar a especificidade da prática da psicologia na APS é resultado
da consideração de processos históricos, que se refletem e se encarnam na ação dos sujeitos,
como agentes no campo das psicologias e da ESF, bem como questões específicas e
situacionais pertinentes às redes intersubjetivas constituídas na história singular vivida nos
CSF. Assim, interessa-nos pensar a constituição de um habitus psicológico, que distingue os
psicólogos dos outros agentes profissionais situados no campo da ESF, a partir da análise da
experiência vivida pelos participantes da pesquisa.
7.1 Especificidade da Psicologia
A especificidade da psicologia, como profissão distinta na APS, fora abordada nas
entrevistas no decorrer de uma reflexão sobre o diferencial da profissão frente às outras
inseridas na ESF. A psicologia é identificada como aquela profissão responsável pelo
desenvolvimento de um olhar e uma escuta qualificada para a pessoa, para a subjetividade ou
165
para o sujeito nos diversos processos sociais no campo da APS. A profissão, em geral,
destaca-se no cotidiano de trabalho pela reconhecida capacidade de ligar com componentes
afetivos e subjetivos dos processos de saúde-doença, de ter uma visão privilegiada sobre os
fatores interpessoais envolvidos nos processos de trabalho em equipes multiprofissionais na
promoção do cuidado, de entender a constituição histórica e contextualizada de relações
sociais entre agentes, instituições e territórios. Todos esses atributos, reconhecidos e
construídos socialmente, fazem da psicologia uma profissão diferenciada das outras na APS
do SUS. Vejamos como alguns participantes expressam seus entendimentos sobre a questão.
Bom, que ele traz esse olhar, ele chama pra olhar subjetivamente os processos. Não
é só o psicólogo isso, mas ele chama sim pra olhar, fazer outras leituras, a partir de
outros lugares, pra isso. E ele olhar pra todos esses processos, processos de
saúde/doença dos usuários, os processos que acontecem na comunidade, os
processos de relações ali de serviços. Enfim, os processos tanto do profissional
como do usuário que, muitas vezes, o profissional, ele se coloca não como sujeito
ali, ele se coloca como o profissional, está ali o objeto de cuidado dele e não numa
relação entre sujeitos. Eu acho que ele [psicólogo] se diferencia por isso, assim, de
estar fazendo esse olhar subjetivo sobre essas questões todas, que perpassam a
relação do usuário com a comunidade, relações institucionais. [...] de trazer, além
desse olhar, uma proposta transformadora. Eu acho que o psicólogo como um todo
ele traz uma proposta de transformação assim, bem tradicionalmente, pra aquele
sujeito, mas ampliando isso pra uma realidade, pra uma comunidade, pra um
serviço. Uma proposta de mudança, de transformação daquele contexto, seja
contexto especifico do sujeito, seja contexto do serviço, seja contexto da
comunidade.
[outro participante]
Dentro dessa prática multiprofissional eu comecei a perceber que algumas coisas
que são básicas né e que nós enquanto psicólogos somos treinados, digamos assim
né, entre aspas. Treinados ou somos sensibilizados na faculdade pra perceber, passa
despercebido por outros profissionais. Ás vezes, eu pergunto tipo: “bom dia, como é
que você tá se sentindo?” “Como vai à família?” As orientações: “você vai fazer isso
e aquilo outro, mas isso aqui dá pra você?”, “Como é que é pra você assim estar
hipertenso, tá com hipertensão?” Então assim, eu acho que são exemplos, mas que
eu percebo que você falar assim a subjetividade, a subjetividade do usuário, digamos
assim. E esse seria, esse é um recorte muito claro de qual é o objeto da psicologia. E
aí de uma maneira prática é de como esse psiquismo se constrói, de como esse
psiquismo se manifesta. De que forma você pode cuidar dele pra que ele se
desenvolva, pra ele tenha cada vez mais processos saudáveis.
Podemos pensar que os psicólogos são reconhecidos, por eles mesmos e por outros
agentes inseridos na ESF, como pertinentes a uma classe profissional que promove um olhar
especial para os usuários e suas necessidades de saúde e, também, para os profissionais e as
configurações relacionais, intersubjetivas, que perpassam os modos de organização do
trabalho das equipes, e para os arranjos institucionais responsáveis pela estruturação e
regulação normativa das práticas. Essa escuta e olhar colocam o psicólogo como uma
profissão estratégica para a elaboração e condução de alguns processos de cuidado
específicos, voltados para o reconhecimento da dimensão subjetiva e singular dos processos
166
cotidianos dos territórios da ESF. Como vimos nos capítulos anteriores, a psicologia vem,
dentro de determinadas configurações da ESF, ocupar um lugar vazio deixado pelo modelo
biomédico na estruturação das práticas no campo. Sua especificidade situa-se na convocação
dessa dimensão do sujeito, da criação de possibilidades de sua elaboração, pela expressão de
seus afetos.
Assim, nesse sentido, que cabe ao psicólogo compreender o tempo de cada sujeito. E
eu acho que ele está ali de alguma maneira pra convocar a singularidade desse
sujeito frente aos discursos que são hegemônicos nas práticas de saúde. Eu acho que
é essa, da convocação desse sujeito, mas ao mesmo tempo, também, de poder dar
condições pra que de algum modo ele possa se responsabilizar ou se implicar
também na sua forma de sofrimento. Eu acho que essa implicação e essa
responsabilização eu acho que é própria do campo da psicologia e que esse sujeito
ele possa, em algum momento, ser chamado a pensar ou a falar sobre aquilo que lhe
afeta. Então, assim, que ele tem que poder, de algum modo, denunciar algo a partir
do seu sofrimento. Eu acho que isso é a especificidade do campo da psicologia.
Um agir problematizador e mobilizador, capaz de criar condições de reflexão, fala e
vivência sobre o que afeta os sujeitos, é parte desse modo específico de ação profissional,
voltada pros referidos processos subjetivos e intersubjetivos pertinentes à ESF. Esse agir, por
mais que seja identificado como específico do profissional psicólogo, como pertinente ao seu
modo distinto de agir, incorre num processo extremamente paradoxal de questionamento de
qualquer domínio especialista, já que chama o sujeito para movimentar-se. É uma ação
voltada para movimentar o sujeito, pra fomentar a transformação de realidades subjetivas na
perspectiva da autonomia, uma emancipação relativa, inclusive frente a qualquer especialismo
das profissões da saúde.
E qual é a especificidade da psicologia? Eu acho que também está relacionada com
essa condição de fazer esse sujeito se movimentar, se deslocar. Por isso que eu acho
que ela não pode coincidir com nenhum discurso, que se identifique com o discurso
de uma maestria ou um discurso que, de alguma maneira, seja o discurso do
especialista, por exemplo. Eu acho que um psicólogo ele deve sempre estar se
esvaziando da sua... é paradoxal isso. A gente está falando qual a especificidade da
psicologia e a especificidade da psicologia é se esvaziar do discurso do especialista.
[...] Então, eu acho que essa condição de poder, enfim, receber esse outro e assim,
receber essa alteridade num campo que seja um campo mais permeável e menos, não
é que seja ateórico, eu acho que não deixa de ser teórico por isso. Mas é onde não
comparece a especialidade ou o saber, que não aquele que possa vir a ser também
produzido pelo sujeito. Assim, eu acho que essa é uma outra especificidade, essa
aposta que o psicólogo deve fazer de que o sujeito pode produzir um saber sobre o
seu sofrimento, esse sujeito também sabe sobre o seu sofrimento.
Spink (2003) nos auxilia na compreensão de uma perspectiva de desenvolvimento para
as práticas psicológicas na ESF. A autora analisa diversas perspectivas de compreensão dos
processos de construção social de saberes sobre a doença e sobre saúde, propondo um modelo
de compreensão psicossocial, que “possibilita o confronto entre o significado (social) da
167
experiência e o sentido (pessoal) que lhe é dado pelo indivíduo” (SPINK, 2003, p. 47). Nessa
perspectiva, a doença e a saúde são concebidas a partir da relação entre indivíduo e sociedade,
entre história individual e história da sociedade, onde se produzem sentidos e significados que
expressam modos de construção dos sujeitos e da realidade. Spink (2003) ainda destaca as
interfaces existentes entre representação e comportamento, entre o saber popular e o saber
oficial nas concepções de saúde e de doença. As representações e os saberes, portanto, vem a
influir nas relações sociais construídas no processo saúde-doença-cuidado. É necessário,
portanto, conhecer as representações que orientam a ação dos atores sociais, para embasar as
atuações da psicologia no campo saúde.
A psicologia, compreendida em sua relação com os usuários da APS do SUS, deve
constituir-se como uma profissão comprometida com a construção de saberes da saúde,
marcados pela experiência vivida pelos indivíduos nos seus diversos cenários socioculturais.
Coimbra e Leitão (2003) nos auxiliam nessa reflexão sobre as possibilidades de pensar uma
prática psicológica plural e mais distanciada dos especialismos. O especialismo psicológico,
como fruto histórico da divisão social do trabalho é responsável por agenciamentos
implicados, hegemonicamente, com os modos de produção de subjetividades capitalísticas,
que vem sendo forjados pelos diferentes equipamentos sociais. Nesse contexto, a psicologia
tem, historicamente, contribuído para a atribuição de essências à natureza do homem, para
construção de uma cultura individualista e psicologizadora dos problemas sociais (LEITÃO;
COIMBRA, 2003; MACEDO; DIMENSTEIN, 2012). Para Coimbra e Leitão (2003, p.12) “a
crença nas essências produz a reificação do indivíduo”. Essa reificação do indivíduo, dentro
do modo de produção de subjetividades capitalístico, perpassa a constituição histórica de uma
psicologia privatista, intimista e familiarista, integrada ao desenvolvimento sociocultural do
capitalismo, e incumbida de naturalizar e normatizar um “modo-de-ser indivíduo”. Assim é
que a psicologia vem constituindo-se, historicamente, como um equipamento social voltado
para a psicologização da vida social (COIMBRA; LEITÃO, 2003).
A construção das práticas da psicologia na ESF se efetiva diante da contradição de
ter de lutar por um espaço legitimado de atuação, que remete ao domínio de um saber
específico como vimos nas discussões pertinentes ao campo da sociologia das profissões
(BOSI, 1996; DUBAR, 2005; MACHADO, 1995) e, como discutido, agir de modo a facilitar
a construção de saberes sobre a saúde e o sofrimento mais plurais e decorrentes de outros
modos de produção de subjetividade. No sentido da quebra dos especialismos psicológicos e
da busca por construir uma psicologia politicamente situada na APS do SUS, concordamos
com Coimbra e Leitão:
168
Não tendo uma natureza, o homem, a sociedade, a psicologia e a política não são.
Sempre estão sendo, sempre estarão se fazendo. Renunciamos, portanto, aos
modelos, às identidades, às permanências, às homogeneidades. Estamos, com isso,
afirmando as especificidades dos diferentes e diversos saberes que se encontram no
mundo; especialmente alguns que têm sido secularmente desqualificados e, mesmo,
ignorados pela arrogância daqueles hegemônicos, nomeados como oficiais e, por
isso, produzidos como verdadeiros, únicos, universais, totalizantes. Pensar dessa
forma traz efeitos para nossas práticas enquanto psicólogos: de especialistas a
interventores/agenciadores. Essa proposta é, sem dúvida, um compromisso político
que aposta na criação e na mudança, em formas diversas de existência, de
sociabilidade. Trata-se de afirmar as potências, as diferenças, as multiplicidades e
possibilidades finitas e ilimitadas do homem, da sociedade, da psicologia e da
política (COIMBRA; LEITÃO, 2003, p.14).
Além da contradição de uma especificidade não-especializante, o lugar distinto da
psicologia na ESF é difícil de ser percebido pelos participantes, seja por uma insegurança em
definir-se como um profissional com objetos imprecisos, mas também pelo aprisionamento
que a definição de objeto acaba por instituir. Esse paradoxo é expresso na necessidade de se
delimitar um espaço específico de atuação, que já traz o peso do risco do aprisionamento
decorrente da instituição de tradições de práticas profissionais. A ampliação da especificidade,
aqui, precisa ser compreendida como o esforço para criar um agir mais autônomo frente aos
modos tradicionais de agir da profissão.
Eu não saberia dizer, poxa, o que é específico, na verdade eu tenho receio de dizer
isso, eu tenho receio de dizer o que é específico, eu tenho receio de criar esse campo
que, por sinal, já está criado, de poder. E que, às vezes, me maltrata, entendeu?
Porque o que é específico do psicólogo? Na verdade, a gente está ampliando cada
vez mais pra ver se a gente cria possibilidade de respirar e de criar algo novo.
Porque, se eu for dizer “ah ta são os transtornos mentais, são sofrimentos
psicológicos”, eu vou estar me amarrando. [...] Então, é uma coisa que está se
fazendo a cada dia e o que eu vejo assim que tem seu bônus e tem seu ônus. Da
mesma forma que você parece que fica perdida querendo dar conta do mundo e isso
também é sofrível, mas também é um campo de possibilidades que vai pra além
daquilo que a gente foi trabalhando.
Essa especificidade de olhar e agir, como já dito, volta-se para o reconhecimento da
dimensão subjetiva e pessoal dos processos da ESF, para a constituição histórica e
contextualizada de um sujeito num espaço de relações. A ação profissional, assim como
colocada, busca o fomento da autonomia dos sujeitos frente as suas formas de enfrentar os
problemas de saúde. Várias são as possibilidades de se efetivar no cotidiano dos CSF um
trabalho voltado para facilitar a construção de sujeitos mais autônomos. Uma dessas
possibilidades, bastante apontada pelos participantes, é na intervenção junto à organização de
ações em equipe. O trabalho em equipe e seus vários dispositivos de gestão e ação são
identificados como âmbitos de prática em que essa especificidade profissional tem sido
reconhecida, o que possibilita o desenvolvimento de práticas e a ocupação de um espaço
169
distinto no campo da ESF. Um desses espaços distintos para a psicologia é o das práticas
clínicas em saúde mental. Aqui, o psicólogo é reconhecido como um agente importante nas
lutas cotidianas para construir uma atenção mais qualificada no que diz respeito à atenção ao
sofrimento na ESF. Aos psicólogos cabe ocupar um lugar especial na busca pela ampliação da
clínica.
A psicologia vai entrar tanto num cuidado direto a esse sujeito de acolher esse
sofrimento, de tratar ele a partir da escuta mesmo e ajudar um diagnóstico caso
precise incluir outra rede de atenção nisso. Mas muito eu vejo na contribuição do
psicólogo, a minha contribuição, muito mais no sentido de, junto com os
profissionais ampliar a clínica daquele sujeito. E assim, uma clínica que pra alguns
poderia ser só farmacológica, por exemplo. A gente conseguir ampliar a clínica e o
que vai cuidar daquele sujeito vai ser pra além do medicamento, pra além de só
encaminhar ele, ele pode ser cuidado por outras formas.
Uma discussão importante, nesse contexto da identificação de especificidades do
olhar psicológico na atuação na APS, é a discussão da constituição desse olhar, como fruto da
formação acadêmica/profissional na área da psicologia clínica. O olhar do profissional
psicólogo na APS é reconhecido como um olhar clínico que não se restringe ao espaço das
práticas estritamente clínicas. Falamos, assim, de um habitus constituído pela clínica psi na
formação dos psicólogos, especialmente, como fruto das trajetórias de inserção dentro da
formação e atuação nas abordagens clínicas e que parecem subsidiar ações pautadas numa
relação terapêutica diferenciada entre usuário e profissionais, capaz de reconhecer a história e
constituição das individualidades nos territórios de atuação da ESF.
Então, eu acho que específico seria esse olhar diferenciado da relação da
constituição do indivíduo no lugar que ele vive. E nessa parte da avaliação e do
acompanhamento, tem mesmo esse aspecto dos conhecimentos da clínica e da
psicoterapia, que ajudam nessa relação terapêutica diferenciada. [...] eu acho que os
conhecimentos da clínica permitam que a gente tenha uma relação terapêutica, um
outro olhar. Então, no fundo, eu acho que o que é específico do psicólogo é o olhar.
Porque aí, como vai reverberar na prática, isso varia muito de lugar pra lugar, e de
como eu tenho ou não outros profissionais pra equipe.
À psicologia é atribuída a competência de agir de modo qualificado no processo de
trabalho em equipe, especialmente, na mediação de relações entre agentes em pequenos e
grandes grupos multiprofissionais, intra e inter equipes. O lugar de mediador é sobremaneira
atribuído ao psicólogo, que encontra um espaço privilegiado para atuações significativas na
definição de estratégias práticas no cotidiano de trabalho na ESF, seja para superar crises
relacionais entre profissionais, seja para repensar a atuação junto a alguns casos difíceis. Esse
lugar de mediador de conflitos e solucionador de casos difíceis é parte da representação social
170
do psicólogo no campo e, como vimos no capítulo anterior, implica na criação de demandas
para a profissão.
Mediador, esse é o lugar onde eles nos colocam. Eu sei que esse lugar é o lugar que
as outras categorias colocam o profissional de psicologia, mediador. O psicólogo é o
que vai, por exemplo, mediar um conflito dentro da própria equipe. “Ah ta tendo
dificuldade com uma pessoa pra aderir tal e tal tratamento e chama o psicólogo pra
mediar isso aí né”[...] sempre como se houvesse um problema de comunicação entre
aquela pessoa, que está ali e o grupo. E aí o psicólogo é colocado no meio ou esse
cara ou essa pessoa que vai conseguir abrir caminhos. Eu acho que se eu tiver que
resumir em uma palavra seria essa daí: o profissional da mediação.
Entrelaçando alguns temas pertinentes às entrevistas, podemos destacar que o
diferencial da psicologia, como profissão na ESF, é sua capacidade, desenvolvida em
formação específica, para entender de modo ampliado a constituição dos processos pessoais e
grupais, reconhecendo a dimensão subjetiva que é inerente á construção das práticas de saúde,
dos estilos de vida, dos processos de cuidado e de adoecimento. Essa capacidade, parte do
habitus psicológico aprimorado nesse espaço da APS do SUS, é expressa num tipo de escuta e
de olhar específicos, que desvendam dimensões subjetivas dos problemas de saúde. Os
psicólogos são, assim, responsáveis por análises mais apropriadas quanto à formação dos
processos psicológicos, pelos quadros de saúde e doença que se estruturam na história dos
indivíduos. A constituição histórica e intersubjetiva dos problemas de saúde (individuais e
coletivos) é um dos objetos de sua reflexão prática, ponto de partida, para a construção de
saberes e práticas, que podem ter como consequência, uma intervenção mais apropriada da
ESF frente às demandas. Nesse contexto, a intervenção dos psicólogos pode ser ligada à
possibilidade de contribuir para promover o desenvolvimento humano nas práticas de atenção
à saúde.
Então, assim, o que coloca pra mim o diferencial, que é específico da psicologia, é a
questão do acompanhamento, do ouvir. Mas vendo dentro do contexto daquele
sujeito, no sentido de desenvolvimento psicológico. [...] Mas essa questão, assim, de
compreender aquele sujeito naquela formação familiar, que essa formação familiar
ela é mais ampla, que vem também do avô, que vem também não sei do que...
[outro participante]
Eu vejo o ser humano como um poço de potencialidade e de dificuldades. E, às
vezes, ele não consegue se organizar com isso. E não é que nós vamos ajeitar, deixar
tudo ajeitadinho. Mas eu acho que a contribuição é escutar isso de uma forma
qualificada e cuidar disso com carinho, com atenção e permitir esse
desenvolvimento humano. Eu gosto muito assim dessa expressão, desenvolvimento
humano. Então assim, eu acho que a psicologia tem a contribuir com isso. Assim,
observar esses processos, observar os pontos críticos e, principalmente, os pontos de
desenvolvimento. Observar os potenciais de desenvolvimento, que eu acho que isso
é o principal. Eu acho que isso é o principal, é ajudar eu a lidar com as minhas
questões. É auxiliar nisso, é facilitar nesse processo, que é esse o papel da
psicologia.
171
O processo de formação, muito marcado pelas experiências em psicologia clínica e
social, de uma escuta terapêutica e de compreensão do sujeito e sua história de vida e de
inserção social, marca a constituição de um habitus psicológico que é princípio gerador e
organizador de um conjunto de práticas e representações distintas de uma psicologia da APS.
Capacidades de escuta ampliada aos problemas de saúde, habilidade de se posicionar frente ao
sofrimento e a situações de crises no cotidiano e competência para entender a formação
histórica dos sujeitos como marcadas pelos episódios típicos da saúde e da doença são
atributos atrelados à prática psicológica na ESF.
Eu acho que o psicólogo ele tem a capacidade de ter uma compreensão, tem
facilidade e não é bem a capacidade é a facilidade de compreender melhor a
dinâmica de funcionamento das pessoas, o comportamento. Eu acho que ele tem a
facilidade da escuta, pelo menos isso eu percebia que a gente, enquanto psicólogo, a
gente tinha a facilidade da escuta, de saber acolher mesmo as pessoas de supetão
assim como chegava algum caso.
[outro participante]
Acho que se eu olho essa pessoa primeiro, na sua inteireza, na sua caminhada
histórica, sua caminhada de vida, no seu processo de adoecimento, eu tenho como
acompanhar a sua história de adoecimento na saúde mental de outra forma, melhorar
a relação dessa pessoa com os outros membros da equipe. Por exemplo, quem faz a
coordenação do cuidado geral é a enfermagem. Mas, muitas das vezes, ela está
alheia ao que se passa pra vida daquela pessoa, que projeto de vida aquela pessoa
tem, o que ela quer dessa saúde, da sua vida e, às vezes, o profissional da psicologia
com esse olhar pode ajudar nessa articulação.
Essa facilidade de compreender os processos de constituição dos sujeitos como
agentes históricos com trajetórias de vida singulares, pode ser expressa em diversas ações
desenvolvidas pelos profissionais psicólogos. Uma das ações tipicamente relacionadas às
responsabilidades específicas de psicólogos inseridos na ESF, é a facilitação de grupos. Nesse
contexto, a inserção desse profissional nas equipes multiprofissionais possibilita o
aprimoramento de ações desenvolvidas junto aos grupos atendidos, pelas relações de troca
estabelecidas entre os profissionais inseridos no campo.
As diferenças do psicólogo, também, foi essa de ensinar sei lá, como é que se facilita
um grupo, o que é o grupo, como é que se forma um grupo. E eu acho que a gente
ajudou muito nisso. [...] Eu não gosto de falar essa palavra “ensinar” porque parece
que o outro não sabe. Mas é de tentar dar um apoio, dar segurança pra aquele
profissional, pra ele ver que ele também pode facilitar um grupo de uma outra
forma, entende?
Quando pensamos e discutimos as ações específicas da psicologia alguns atributos
são destacáveis na análise das entrevistas. Dentro desse contexto, a escuta individual, a partir
de um viés de atendimento clínico psicológico, destaca-se como um procedimento padrão da
classe, como uma marca da categoria. Como é apontado na seguinte fala: “talvez se fosse
172
caracterizar o que é o trabalho do psicólogo, talvez dissesse isso, que é o atendimento
individual, da escuta individual e só isso assim, basicamente a escuta como procedimento”.
Como já discutido nos capítulos anteriores, a prática de atendimento clínico da psicologia
compõe o imaginário social em torno da profissão e o processo de trabalho do psicólogo é
construído em diálogo ativo com as representações da psicologia ligadas à prática de
consultório.
No campo da APS, essa escuta volta-se para o conjunto de demandas que chegam
com uma intensidade notável para o psicólogo, como já visto no capítulo anterior. Nesse
conjunto de demandas, o sofrimento da população parece colocar os profissionais da ESF
diante de dificuldades tremendas para o enfrentamento cotidiano dos problemas de saúde
apresentados nos CSF. Nesses contextos, que também remete ao já apontado vazio deixado
pelo modelo biomédico hegemônico, o psicólogo é reconhecido como profissional habilitado
para lidar junto ao sofrimento humano. Esse é mais uma característica de seu diferencial,
apontado nas entrevistas, como podemos exemplificar, abaixo:
A gente tem uma coisa entendeu, que a gente é melhor capacitado pra esse
atendimento do sofrimento, pra dar algum suporte pelo menos individual. Isso aí já é
estabelecido, respeitado e demandado por diversos profissionais que atuam junto
com a gente. É claro que a gente tenta fazer mais outra gama de coisas.
Pesquisador: Sofrimento, então?
Sim. Nós somos a expertise do cuidado com o sofrimento, principalmente esse que
não se sabe de onde é que vem, o psíquico. É assim que é entendido o psíquico, não
é orgânico, exclui o orgânico, ele tem impacto no orgânico. Já há esse entendimento,
que o psíquico tem impacto no orgânico. Mas aí “como eu não consegui entender o
orgânico, aí então vem o psíquico”. Os outros profissionais: “eu não me sinto
capacitado, tenho que chamar o psicólogo”.
Além do sofrimento, a psicologia, com seu olhar para o subjetivo, vai construindo
um leque enorme de possibilidades de intervenção de acordo com as situações e brechas na
estrutura da ESF. O sofrimento configura-se, assim, como um mote inicial, um primeiro passo
para a estruturação de diversas práticas que podem envolver as perspectivas da prevenção e
tratamento de doenças e agravos, promoção e educação em saúde, dentre outras perspectivas
de cuidado voltadas para o amplo espectro da atenção integral à saúde.
Eu acho que [a psicologia caracteriza-se pela atuação voltada para], sobretudo os
aspectos relacionais que toda sorte de vetores, contingências, contextos produzem.
Toda a sorte de sofrimento produzido por essas coisas, eu acho que, de algum modo,
é o que a gente tem de mote pra atuar, de mote. Eu acho que o tempo inteiro tem
uma negação, pelo menos em minha parte, na Atenção Primária, dessa coisa do
adoecido. Eu acho que não é só nisso que eu trabalho. Tem uma tentativa de olhar, a
gente pode seguir em outros campos. E eu acho que a gente tem capacidade de dar
respostas, enfim, com métodos que trabalham essas questões relacionais. No nível
da política eu acho que sim, que é uma obrigação nossa, tem toda uma estratégia pra
173
isso, enfim. Têm buracos na montagem da ESF, que hoje é o mote organizador da
Atenção Primária. Têm buracos? Tem. E eu acho que é um dever nosso refletir sobre
isso, pensar em métodos, intervenções práticas de um modo se não resolver
finalmente sanar essas questões.
O trabalho com o fenômeno psíquico pertinente ao adoecimento, que perpassa um
amplo conjunto de problemas de saúde da ESF, demarca um objeto de intervenção específico
para o psicólogo. A partir do sofrimento, muitas questões são transformadas em objeto de
intervenção profissional, inclusive, como apontado na fala acima, o espaço da estruturação
política da ESF. Ademais das inúmeras possibilidades de intervenção, que tem como objeto
de reflexão o sofrimento humano e que envolve pensar o espaço social ampliado da ESF, cabe
destacar um pouco mais esse diferencial da profissão, que a coloca como antagônica e
complementar às profissões constituídas a partir do modelo biomédico. Falamos, aqui, do
reconhecimento da psicologia como aquela profissão mais capacitada para lidar com
dimensões incompreendidas do sofrimento humano, especialmente quando o paradigma
biomédico, com seu olhar restrito ao orgânico, apresenta-se como insuficiente. Nesse
contexto, os participantes apontam que a profissão tem uma característica distintiva,
decorrente dessa capacidade de olhar mais aprofundado para a constituição do sujeito no seu
contexto de vida. À psicologia é atribuída a habilidade de lidar com dimensões até mesmo
misteriosas da vida humana. Em uma das entrevistas, o participante chega a identificar o
psicólogo com a Perséfone, deusa grega que lida com o mundo inferior, um mundo de
mistérios humanos.
É quase uma Perséfone.
Pesquisador: O que é isso?
Perséfone não é a Deusa que, Deusa sombria que entende dos mistérios e tal, da
vida. Então assim, ela tem as chaves do submundo, entendeu? E aí, uma amiga
minha, ela sempre usa essa expressão assim, que a questão dos mistérios, de
dominar os mistérios. E aí nós somos convidados a entrar nisso, porque teoricamente
nós entendemos disso, entendeu?
Pesquisador: Tu acha que entende?
R: Léo eu não diria assim. Eu não sei se entende, mas eu acho que a gente é mais
sensível a isso.
Pesquisador: Pelo menos entra.
Exatamente. Tá entendendo? Pelo menos entra. Ás vezes, eu não sei como é que eu
vou lidar com aquele caso, mas é tipo assim, é como se eu tivesse coragem de entrar
naquele caso, entendeu? Que outro profissional? “Não, isso é coisa de
psicólogo”.[...] a contribuição da psicologia é cuidar dessa dimensão humana, dessa
dimensão subjetiva, desses mistérios, de como é que a gente pode lidar com isso.
Esse reconhecimento social, de que a psicologia é a profissão mais preparada para
entrar nos mistérios da vida humana, agrega certo valor à prática desse profissional, que passa
a agregar certa mística. Nesse aspecto, é preciso remeter-nos à ideia do poder simbólico como
apontado por Bourdieu (2012; 2011). A partir desse referencial, podemos entender as
174
profissões como resultantes de processos sociais de luta e legitimação, que tem como
decorrência a consolidação do processo de profissionalização (BOSI, 1996; DUBAR, 2005;
MACHADO, 1995), que tem como produto o reconhecimento legal do ato de imposição
simbólica capaz de nomear e classificar o mundo social, a partir de princípios de visão e
divisão favoráveis (BOURDIEU, 2012, p.146). Quanto a esse poder simbólico do profissional
de nomeação, na construção da realidade:
O ato de magia social que consiste em tentar trazer à existência a coisa nomeada
pode resultar se aquele que o realiza for capaz de fazer reconhecer à sua palavra o
poder que ela se arroga por uma usurpação provisória ou definitiva, o de impor uma
nova visão a uma nova divisão do mundo social: regere fines, regere sacra11,
consagrar um novo limite. (BOURDIEU, 2012, p.116).
No entanto, a crença na psicologia e em sua capacidade de lidar com dimensões
misteriosas dos fenômenos humanos, além do capital simbólico que representa, também é
representativa para pensar um conjunto de estigmas para a profissão, responsáveis pela
criação de demandas problemáticas na APS, já discutidos em capítulo anterior. Aqui, não
estaríamos falando de um impulso de dominação simbólica, mas de resistência. Como vimos,
a psicologia é caracterizada pelo procedimento do atendimento individual e, dentre outros
processos, é concebida como a profissão mais preparada para escutar as pessoas que choram,
bem como para aplicar dinâmicas de grupo.
Quando se pensa algo especifico do psicólogo, dentro da atenção primária, é isso o
que caracteriza o seu trabalho, vai ser um atendimento individual, vai ser a questão
dos conflitos familiares. Então, como é que o agente comunitário de saúde, como é
que o enfermeiro, às vezes, faz uma triagem a partir ou de um transtorno mental, que
eles tem no prontuário como um diagnóstico, um sofrimento gerado seja por
questões, principalmente, por questões de relações, conflitos. Mas também já
quando se pensa, por exemplo, numa pessoa que faz uso de álcool ou outras drogas
também se pensa no encaminhamento pro psicólogo, até questões que, às vezes, a
gente acha cômico, mas que, às vezes, é um pouco doloroso pra gente e a gente
precisa, no dia a dia, está lidando e trabalhando pra que essas coisas, que parecem
engraçadas, não virem mesmo algo tão corrente, que é: “ah ta chorou, manda pro
psicólogo”, “há um encontro com um grupo, precisa de uma dinâmica, cadê o
psicólogo?”. Mas eu vejo que também, por trás disso, você pode utilizar essas coisas
pra mostrar algo que é importante no trabalho do psicólogo como, por exemplo,
trabalhar nesses espaços de cuidado com coletivo.[...] de cuidado com o grupo, eu
acredito que é interessante tanto a escuta como a mediação, como na facilitação dos
processos dialógicos e aí eu vejo que tanto dentro da comunidade e desses espaços
seja em grupos, seja roda de quarteirão e como também dentro do próprio centro de
saúde. E além de facilitar esses processos de comunicação, esses processos também
de diálogo e também de escuta do sofrimento e do sofrimento também dos
trabalhadores e não é só do usuário que chega. Num é só com uma demanda
relacionado a algum transtorno mental ou um sofrimento psíquico, mas de uma
escuta que a gente faz até dos ruídos dentro da própria instituição e aí eu vejo
também o psicólogo, dentro da atenção primária, podendo trabalhar dentro das
11
Ato de instituir limites e regras.
175
formas de organização dos serviços de uma forma que esses serviços possa ser
acolhedor e aí é preciso ta atento mesmo a esses ruídos e às vezes não achar que são
detalhes.
Percebemos, na discussão sobre a especificidade do fazer dos psicólogos, que os
participantes reconhecem um certo modo específico de agir, que os constitui como
profissionais psicólogos. Apesar de certos constrangimentos causados pela exacerbação da
especialidade do saber psicológico, transformado em estereótipo e repercutindo na construção
de demandas problemáticas, há um conjunto de consensos, que colocam a psicologia, em
contraponto com o modelo biomédico, num lugar de reconhecimento e exaltação da dimensão
subjetiva dos processos de adoecimento, do cuidado e promoção da saúde, bem como do
conjunto de questões intersubjetivas, que perpassam a produção das práticas
multiprofissionais nesse campo. Abrem-se, a partir desse reconhecimento, muitos espaços que
serão ocupados pelos profissionais psicólogos, nesse campo hierarquizado da APS.
7.2 Lutas pelo reconhecimento
No intuito de conhecer os desafios colocados pela APS aos psicólogos, indagamos
diretamente sobre como a psicologia era reconhecida como profissão dentro desse espaço, a
partir da experiência dos participantes. Os diálogos nos ajudaram a esclarecer que o
reconhecimento e valorização da prática psicológica nos leva a refletir sobre várias questões
importantes do processo de produção das práticas e evidencia um conjunto de desafios e
estratégias de luta dos profissionais inseridos na APS.
A psicologia é, como já discutido nos capítulos anteriores, uma profissão
reconhecida por ser bastante demandada na ESF, o que repercute em certa visibilidade e
notoriedade no campo, bem como sobrecarga de trabalho para o profissional psicólogo.
A psicologia é uma das categorias que acabava se sobressaindo dentre as dez [da
RMSF], era muito demandada, muito solicitada pra tudo que se pensasse desde a
dengue, passando por puericultura, por tudo a psicologia sempre tava inserida entre
as categorias escolhidas pra participar daquela atuação ali.[...]
Então eu percebi que lá a psicologia acabou sendo um referencial de visibilidade
também. Então, por exemplo, enquanto que na minha equipe eram dez nas épocas de
avaliações né ah o que você acha de fulano de tal? Da categoria tal? Mas, quem é?
Quem é a fulana? Tinham categorias que as pessoas nem sabiam que estavam no
serviço, que eram da residência, e da psicologia não né.
Pesquisador:A psicologia estava no serviço?
R: “ah! aí a psicologia é assim é assado e tal né” e foi conquistando espaço né e tudo
e reconhecimento. Então em todos os três territórios isso foi reconhecido, foi
revalidado né. Mas, ao mesmo tempo que isso era validado, virava também a
sobrecarga.
[outro participante]
176
Eu fico pensando assim, eu acho que, outra coisa que eu notava que era um
diferencial da psicologia e da fisioterapia, falando da residência, assim é que eram
profissões que, são profissões que, assim, que a gente chegava e as pessoas já
sabiam o que a gente fazia ou pensavam que sabiam o que a gente fazia e já
identificavam uma demanda enorme que seria voltada pra gente. Então assim, isso
gera uma expectativa, gera uma demanda e gera um reconhecimento nesse sentido
de dizer “poxa, que bom que chegou psicólogo, que bom que chegou fisioterapeuta”.
[outro participante]
Ave Maria. Quando fala assim: “Tem psicólogo na equipe”, os olhos das
coordenadoras e todos: “Tem psicólogo?” Mas muito naquela visão de clínica, sabe?
Agora eu acho que já tá mais diferente, devido ver os trabalhos da gente com
grupos, de ver que não é só a atendimento de marcar consultas, de ir pra
escola.[...]Se existe uma profissão que todos querem no NASF é psicologia.
Além de ser bastante solicitada nos CSF, outro aspecto que os participantes apontam
no que diz respeito ao reconhecimento da profissão, é a atribuição de saberes “mágicos”
específicos à profissão, inacessíveis aos que não fazem parte da classe profissional.
Eu acho que ele é reconhecido enquanto uma coisa mágica, “o psicólogo, aquela
coisa mágica”.
Pesquisador: Um saber místico?
É, um saber místico que ninguém tem acesso, tá entendendo? E aí isso encanta
algumas pessoas. Isso chama algumas pessoas que, muitas vezes, tem demandas e
querem conversar suas demandas. E isso cria medo nas pessoas, principalmente,
nesse ambiente institucional. Eu reparei, quando eu ia conversar com algumas
pessoas, as pessoas ficavam assim, tipo assim: “vai me analisar”, “vai dizer isso e
aquilo, vai perceber isso e aquilo de mim”.
[outro participante]
Eu acho que inicialmente o profissional da psicologia, diferente até de outras
categorias, ele é reconhecido e valorizado no sentido de que parece que existe um
saber que ele tem que nós não temos, nessa perspectiva de entender o ser humano,
de cuidar do que é difícil, de cuidar de quem ta chorando, de cuidar de quem tem
transtorno mental né. Então, inicialmente, nos diversos espaços que eu me inseri,
parece que é importante que o psicólogo esteja com a gente e não sei nem muito
bem dizer porque. Mas tem coisas que eu não sei lidar e que ele vai saber lidar.
Então eu acho que diferente de outros profissionais é como se o profissional da
psicologia, de cara ele fosse reconhecido como necessário, porque tem coisas que
nós não sabemos lidar e que é com subjetividade, que é com o choro, que é com o
desabafo.
Um aspecto bastante relevante pra pensar as lutas pela autonomia, o que já aponta
para os riscos do reconhecimento, é que nem todas as práticas desenvolvidas são reconhecidas
com a mesma valorização. Isso implica na existência de certa seletividade e classificação
hierarquizada das práticas através do reconhecimento, onde as práticas clínicas da psicologia
são mais bem valorizadas, constituindo um espaço notável de poder.
Eu acho que algumas contribuições não são reconhecidas. Eu acho que a
contribuição clínica é muito mais reconhecida do que a dimensão comunitária. E que
é tão mais importante pra estratégia saúde da família, pelo menos no meu ponto de
vista.
177
Desse modo é preciso lutar pelo reconhecimento de algumas práticas, como já visto
no capítulo anterior onde discutimos as lutas em torno da construção das demandas. O
reconhecimento das práticas psicológicas não se dá de modo adequado aos interesses de
alguns dos profissionais inseridos nesse contexto. Nesse contexto, é preciso intervir para
modificar o olhar para a psicologia, bem como para a ESF. Foram relatados problemas,
especialmente, no que diz respeito ao uma focalização em programas e atendimentos clínicos
decorrentes da ordenação macropolítica da ESF. Aqui percebemos a importância de pensar a
APS ampliada, a partir da noção de território/comunidade. Nesse contexto, ser menos
focalizada pode significar estar mais aberta à descentralização política e à participação social.
Dentro de um confronto entre modelos na organização das práticas, a psicologia e as
outras profissões do NASF, especialmente em Fortaleza, foram alvo de muitas críticas por não
corresponder com as expectativas sociais de atendimento clínico das demandas. Novamente,
como já discutido nos capítulos anteriores, a condição de membro do NASF é criticada.
E não são só da nossa profissão né, mas que eu acho que a gente é muito mais
reconhecido pela dimensão clínica, é tanto que se você não fizesse clínica, não tem
reconhecimento. Por isso que o NASF teve muito problema de entrar, porque ele
justamente negou, “não ia atender”, “o NASF daqui não atende”.
Pesquisador:É mesmo?
R:Foi, era o “NASF não” e só fazia dizer não.
Pesquisador:”NASF não” é?
R:Hurrum.
P:E no caso dos psicólogos?
R:Não de todos os profissionais e aí virou “Nada Se Faz” né, nada se faz, “Nada
Aqui Se Faz”, nada a se fazer é que o povo frescava. [...] depois que a gente entrou
na residência, o NASF entrou um mês depois, aí tinha um motorista que, era o
mesmo motorista do posto e do outro, o do outro trabalhava em outro posto, que
tinha um NASF, e aí ele que chegou com essa coisa do “Nada Aqui Se Faz”, o
NASF, a sigla. “Nada Aqui Se Faz”, então, assim foi muito difícil dizer não para
aquela demanda que as pessoas estavam esperando do psicólogo, que a demanda
dada assim e que todo mundo conhece o que o psicólogo faz, as outras coisas a
gente tem que dizer que a gente faz né.
A necessidade de dizer “não” às expectativas dos outros agentes e de buscar a
legitimação de práticas desconhecidas ou percebidas como ineficientes faz com que os
psicólogos, que compartilham o lugar de equipe de apoio, enfrentem dificuldades na sua
inserção nos CSF. Percebemos, na análise do material empírico produzido, que a condição de
ser do NASF, já discutida anteriormente, concebida como aquela em que o profissional ocupa
um espaço secundário e precarizado no campo, é uma condição de subalternidade a ser
superada na busca pela consolidação das práticas psicológicas na APS. Assim, coloca-se em
questão, não somente os limites das práticas de apoio na ESF, mas, sobretudo, as condições
desiguais em que esses profissionais estão submetidos, no que diz respeito ao alcance possível
178
de suas práticas, gerando claro desprestígio da APS dos SUS como campo de práticas. O
NASF, em seu momento de inserção inicial na ESF, ocupa espaços no campo em que as
práticas são questionadas e enfrentam resistências, talvez decorrente de uma não aceitação da
recente política. No caso específico da psicologia, é possível agregar a esse desafio do NASF,
todo um conjunto de questões de reconhecimento justapostas à sua posição na hierarquia das
profissões na ESF, em que há um potencial enfrentamento da hegemonia do modelo
biomédico e sua normatividade na classificação e avaliação das práticas.
P:Existem obstáculos para que a psicologia seja reconhecida na atenção primária?
R:Existem, devem existir bastante aí pelo contato que eu tenho com outros
profissionais dentro da regional que eu trabalho e tal que é a questão, eu não sei se
eu taria agora falando de uma maneira geral pra toda categoria né, mas essa questão,
por exemplo, da equipe de saúde da família já formada, já estabelecida, sentir
aqueles profissionais não como um apoio, do núcleo de apoio né do saúde da
família, mas como intrusos ali do terreiro deles, do galinheiro deles e tal. E ao
mesmo tempo como inócuos.
[outro participante]
Quando eu entrei, os que já estavam lá me diziam que, por muito tempo o pessoal
brincava, ironizava assim que “NASF era Nunca Atenderemos Família” ou então
“Nada a Se Fazer”, que tinha a sua verdade. E no começo, os próprios profissionais
que entraram tavam meio assim ainda construindo ali alguma coisa. Mas que,
também, eu acredito que veio de uma visão dos outros profissionais, que são mais
técnicos e que a psicologia, muito essa crise. Inclusive a maneira como eu fiz o
curso. Pô, mas a pessoa vai no médico e ela sai com a receita, ela vai ao
fisioterapeuta e ele toca nela, mexe nela e faz aquela técnica e tal, na nutricionista
sai de lá com uma dieta e o psicólogo a pessoa sai com o que né? A sensação é de
que você não ta fazendo “p.n.” pela pessoa e ela entrou e saiu... E eu ficava
impressionado na clínica que as pessoas voltavam. Por que esse cara ta voltando pra
cá? Fico impressionado com aquilo ali né. E por algum tempo eu tive essa crise e os
profissionais da área médica mesmo né, medicina, enfermagem e tal não tem esse
lance assim.
O enfrentamento de uma hierarquia de poder instituída no cotidiano das práticas, que
valoriza os saberes biomédicos percebidos como mais legitimados científica e socialmente, é
uma realidade a qual o psicólogo parece ter de se adaptar engajando-se nas lutas por espaço e
legitimação. Nesse contexto, a experiência dos participantes nos ajuda a entender as relações
de força instituídas no campo. Discutimos, nos capítulos anteriores, que o profissional
enfrenta o problema de uma demanda crescente, decorrente de vários fatores, como do
reconhecimento da importância da psicologia na resolução dos problemas de saúde
pertinentes ao escopo das ações da ESF. Vimos que sua condição de trabalho, na percepção
dos participantes, não permite a elaboração de uma agenda capaz de lidar satisfatoriamente
com tais demandas. Uma das lutas do profissional é, então, buscar legitimar suas práticas e o
modo como as desenvolve no campo, para ampliar sua autonomia e poder. Nesse contexto,
enfrenta a submissão ao modelo biomédico, a partir de estratégias de dominação diversas.
179
Nesse enfrentamento, podemos perceber que a psicologia é também envolvida em
negociações que envolvem a ocupação de espaços contraditórios de prestígio e submissão.
Participante:Quando eu penso na minha prática, enfim, há vinte anos atrás, Vejo que
a gente tem hoje um certo reconhecimento, desse lugar, ou da importância desse
trabalho, eu acho que a gente, dentro dessa hierarquia acaba ocupando, não estou
dizendo, que eu acho isso legal não. Mas eu acho que tem aí, falando aí dos
prestígios, eu acho que tem aí um prestigio que a psicologia ta ganhando nesses
últimos anos. No sentido do reconhecimento da sua prática, muito cooptada, eu acho
que por valores, que ela precisa se perguntar se vale a pena pra ela estar nesses
espaços. Ela ter que abrir mão de tantos pressupostos éticos e teóricos importantes.
Nesse sentido, que às vezes eu acho que o psicólogo, muito rapidamente se coloca
como parceiro desse especialista. E ele estaria ali como um mero facilitador do
trabalho desse especialista.
Pesquisador: Esse especialista que você fala?
Participante: Do médico, por exemplo, do psiquiatra. E, às vezes, até do enfermeiro
ainda que numa condição de submissão a médicos, mas reproduzindo também esse
discurso. Mas é diferente assim do lugar que há vinte anos eu acho que nós
estivemos, assim de um certo lugar de quase apagamento, dentro da instituição. E
aquele lugar da psicologia era o lugar pior que tinha dentro dos postos, não que a
gente não tenha essa realidade hoje.
[...]
Pesquisador: Tu estavas falando desse processo histórico e, na tua opinião, o
psicólogo tem conseguido um reconhecimento maior em cima de alguns valores, que
precisa questionar. Eu não entendi bem isso, queria que você falasse um pouco mais.
Participante: A impressão que eu tenho, às vezes é que...
Pesquisador: Seria de ser aporte da medicina, de ser submisso ao modelo biomédico,
de ser um, enfim...
Participante:Isso, de esquecer, enfim, esquecer entre aspas, mas nesse sentido
mesmo de poder ser um pouco mais crítico também, uma certa criticidade, que eu
não sei e, aí tem a ver com a minha formação talvez[...]
Pesquisador: Essa postura crítica ela é reconhecida nesse campo ou é mais
reconhecido a submissão ao modelo.
Participante: Eu acho que é mais reconhecida a submissão. O medo que eu tenho é
que ele goze desse prestigio, porque ele tem podido se submeter mais, porque ele
tem sido menos crítico. Porque ele tem... está abrindo mão de apontar dentro desses
discursos hegemônicos aquilo que não funciona, aquilo que é o lugar do sujeito e
que fura um pouco com essa lógica totalitária. Eu tenho medo de que esse prestigio
adquirido ele também advenha de uma certa submissão a essa lógica.
A história da psicologia no Brasil, como vimos a partir de alguns autores citados
(ANTUNES, 2007; PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003), é marcada por uma relação de
cooperação e submissão à medicina e à psiquiatria tradicional, o que reverberou em sua baixa
participação nos movimentos de reforma psiquiátrica (VASCONCELOS, 2004). É notável
nesse processo histórico, a participação da psicologia como ciência implicada com as agencias
sociais de controle de corpos e mentes, na perspectiva da Medicina Social Higienista
(ANTUNES, 2007; FIGUEIREDO; SANTI, 2010). Nessa perspectiva, nossa pesquisa, aponta
para a necessidade de um reposicionamento crítico e questionador da psicologia frente ao
modelo biomédico hegemônico. Assim, ao discutir o reconhecimento e valorização da
psicologia na APS, nos deparamos com o desafio do enfrentamento do modelo biomédico
180
como estruturador de relações de força e dominação no campo. Indagamos sobre como ser
reconhecido fora dessa lógica de organização e classificação das práticas.
Pesquisador: O que a gente precisa fazer pra obter esse reconhecimento legítimo,
vamos dizer assim, o que a profissão, lhe pergunto porque sei que você ta
trabalhando nisso, no sentido de que certa forma o papel da formação ela volta assim
pra pensar esse caminho da psicologia nesse processo histórico.
Participante: Eu acho que é fundamental assim, eu não sei se eu estou sendo
redundante e tautológica. Mas, nesse sentido eu acho que caberá a nós ter cada vez
mais claro de que especificidade é essa que se trata. Acho que a demarcação de um
campo ela depende disso, que você possa sempre tencionar essas diferenças né e ao
mesmo tempo autoengendrar uma especificidade. Não sei, acho que depende
também sem dúvida nenhuma, assim quando eu penso nos estagiários que vão pro
campo, eles, engraçado isso, é uma marca do estudante de psicologia, acaba que ele
ta sempre esperando que um outro diga o que ele deve fazer. Se ele ta no posto de
saúde esse posto de saúde não é o lugar dele, é o lugar do outro ainda né e precisa
que um outro diga o que ele vai fazer pra que ele possa se emancipar e se sentir
autorizado a realizar aí o seu trabalho. Não sei o que é isso, eu não sei te dizer o que
é isso, mas eles ficam muito inibidos.
A busca por um reconhecimento, que favoreça aos interesses de ampliação da
autonomia da profissão, é um motivador de várias lutas em torno da legitimação das práticas
profissionais dos psicólogos. Existem várias estratégias que são apontadas, pelos participantes
da pesquisa, que podem ser adotadas para superar os obstáculos colocados no cotidiano da
APS. Uma estratégia de destaque, já apontada nos capítulos anteriores, diz respeito ao
processo de acolhimento de demandas que já construídas em torno das visões que se tem da
psicologia. Aqui, passa a ser relevante o processo de leitura, tradução e transformação das
demandas, que deve se constituir da delimitação de um espaço distinto de práticas.
Pesquisador: Se tu fosse recomendar um profissional psicólogo que está entrando na
atenção primária, uma forma dele conseguir reconhecimento seria o que?
Participante: Seria...
Pesquisador: Ser reconhecido e valorizado no Centro de Saúde da Família.
Participante: Seria ele acolher o que as pessoas trazem, ele tem que acolher e não
pode dizer simplesmente “não” e ficar lá todo tempo dizendo o que ele não faz. Ele
tem que acolher até porque aquela pessoa não tem obrigação nenhuma de saber o
que ele faz e o que ele não faz. Então ele tem que acolher isso e também ler o que ta
por trás dos pedidos.
Ser reconhecido, para alguns entrevistados, significa ser competente no uso de seus
saberes específicos, voltados para os processos subjetivos já abordados acima, constituindo-se
como um articulador e mediador das ações nas equipes multiprofissionais. A partir desse
ponto de vista, destaca-se o reconhecimento dentro de uma atuação já identificada
socialmente como própria do âmbito de práticas da psicologia. Agindo dentro de seu núcleo
específico de práticas, o profissional pode obter a valorização de suas práticas atuando
181
especialmente no espaço de visibilidade e poder, que o papel de mediador nas práticas da
APS, permite.
Pra que ele tenha uma valorização, no sentido pleno, vamos chamar assim, que não é
só essa valorização social da profissão, mas uma valorização daquele psicólogo,
naquela equipe, eu acho que o que precisa é esse papel de grande articulador[...]
Então, acho que a medida que o profissional da psicologia vai fazendo isso nessas
diversas situações, na gestante que não é cuidada ou que não quer se cuidar, no
estudante na escola, na facilitação da Roda [de gestão do CSF] e tal, o profissional
da psicologia vai sendo importante e, muitas vezes, fundamental como um grande
articulador, como alguém que entende da subjetividade, valoriza, respeita e sabe
trabalhar com alguns recursos, que viu na formação e que vai aprendendo ao longo
da caminhada. Então, isso eu acho que, ao longo do tempo, ele vai mostrando
porque ele é importante na equipe. Às vezes é o confidente, é onde alguém que não
aguenta mais estar naquele lugar, naquele CSF e quer conversar com alguém, é o
confidente dos próprios profissionais, então, essa visão social de que aquela pessoa
está ali pra ouvir e que é algo extremamente colado à profissão facilita a chegada das
pessoas e que aí você tem a possibilidade de ajudar construir outros caminhos assim.
[...] Na minha experiência profissional eu provavelmente tive muitos erros e não dei
conta de muitas coisas. Mas sou lembrado assim “ah tempo bom aquele né”, eu
percebo e tinha uma fala que era recorrente e que isso sempre me incomodou que era
assim: “Você não é daqui não né? - não, sou de Fortaleza. - é por isso que você
escuta a gente assim”. Então, tinha uma coisa
P:Tu acha que isso é da categoria profissional?
R:Eu acho que naquele momento se confunde um pouco, mas eu sei que o
profissional da psicologia tem a possibilidade de ouvir melhor e falar melhor nessa
perspectiva da articulação, dentro da formação a gente trabalha isso.
Além dessa habilidade de intervir junto aos processos interpessoais nas práticas da
ESF, é preciso provar publicamente que suas práticas, diversas muitas vezes do que se espera
delas, são resolutivas no enfrentamento dos problemas de saúde trabalhados no cotidiano. É
preciso ser resolutivo para ter reconhecimento e valorização profissional.
Então acho que eles passam a reconhecer não só como uma experiência prévia “ah a
psicologia é importante e eu tenho a expectativa que ela atenda”. Eu acho que eles
passam a reconhecer quando começam acontecer coisas ali que eles percebem que
são resolutivas, que eles percebem que muda a forma daquele problema de saúde ser
abordado ali e aí ele acha bom né, porque no final das contas todo mundo quer a
melhoria do estado de saúde dessa galera né, quer que as coisas melhorem, mas aí
cada um faz do seu jeito e às vezes faz de uma forma sem pensar muito bem nas
consequências, sem pensar muito bem na relação com os outros né e a nossa
proposta era um pouco essa, vamos pensar positivamente como é que a gente
enfrenta a demanda de saúde mental.
O compromisso com os processos de trabalho é outro qualificador positivo das
práticas psicológicas, apontado pelos participantes, e que agrega valores ao reconhecimento
da profissão no campo da APS e das redes de serviço de saúde articulados. Como é possível
interpretar na fala do participante, quando discutíamos sobre os desafios do reconhecimento e
valorização da psicologia na APS, a qualificação da prática psicológica se dá num exercício
de agir socialmente implicado com a busca de autonomia dos sujeitos, o que remete a uma
182
dimensão social e política da prática profissional: “eu acho que passa muito pelo
compromisso e por essa busca de autonomia do sujeito, do sujeito tentar se cuidar, dar conta.
Não sozinho, nunca sozinho, mas no âmbito da rede”. Nesse agir socialmente, questões
organizacionais do processo de trabalho na ESF, como estabelecer uma agenda de atividades
e torná-la clara para os outros da equipe, são desafios estratégicos a enfrentar cotidianamente
na construção das práticas da psicologia. Assim, segundo esse ponto de vista expresso nas
entrevistas, o reconhecimento decorre mais da conduta profissional na relação com os outros
agentes. Essa conduta dever refletir-se na acessibilidade e na habilidade para delimitar e
legitimar o espaço de sua disponibilidade. Esses foram elementos identificados como
potencializadores do reconhecimento e valorização da psicologia.
À medida que a gente consegue estabelecer fluxos claros, fluxos assistenciais, de
intervenções institucionais, fluxos de intervenção na comunidade. [...] Deixando
claro, a comunidade sabe que eu vou participar do fórum comunitário a cada quinze
dias, vou intervir com as minhas contribuições, vou inclusive estar nas repercussões
do fórum comunitário, enfim. É ter um fluxo, o cara estar ali em determinadas ações
e intervenções para as circunstâncias. [...] Eu acho que o nosso reconhecimento tem
haver com o acesso dos profissionais. E quando eu digo acesso não significa dizer
que é fazer o que os outros querem. Não é fazer. [...]é o lance da disponibilidade e
acesso. Eu acho que é acesso, não é nem disponibilidade. [...] Enfim, eu acho que o
nosso reconhecimento tem haver em relação a nossa conduta.
Alguns obstáculos vão se constituindo com certa regularidade e impondo desafios
para o desenvolvimento das práticas psicológicas. Os entrevistados apontam a necessidade de
saber lidar com o problema, já discutido nos capítulos anteriores, da enorme demanda criada
para o atendimento da psicologia, que remete a trabalhar na criação de limites e mecanismos
de adequação dessas demandas. Aqui, ressalta-se a habilidade do profissional saber lidar com
a expectativa do outro e, quando possível, desenvolver uma prática adequada para lidar com
alguma dimensão dos problemas de saúde apresentados, construindo socialmente uma
resposta satisfatória frente aos anseios do outro profissional ou mesmo usuário.
O distanciamento histórico da formação em psicologia para a atuação nas políticas
públicas de saúde também é um obstáculo a ser superado pelo profissional, o que remete à
necessidade de fomento de estratégias educacionais durante e após à graduação em
Psicologia. No próximo capítulo, abordaremos a questão da formação e sua relevância para a
preparação de profissionais para atuar na APS do SUS. Interessa-nos, nesse contexto, também
investigar as consequências que a experiência prática na APS traz para a constituição de um
saber fazer mais apropriado. Dentro desse contexto da reflexão sobre a formação, os
participantes apontam ainda a necessidade de sistematização das práticas como uma estratégia
183
de consolidação de experiências inovadoras, repercutindo no reconhecimento e valorização
das práticas.
A RMSF é elogiada pelos participantes como uma alternativa importante para suprir
as lacunas deixadas pela graduação, instrumentalizando os profissionais para uma atuação
mais potente na APS. No entanto, um dos obstáculos a superar, na busca pelo reconhecimento
da psicologia na APS é a conquista de espaços nos próprios sistemas municipais onde a
RMSF se desenvolveu.
A residência multiprofissional, por exemplo, a gente fez um super trabalho lá, se
inseriu mesmo, criou um vínculo muito legal com a comunidade e nenhum foi
contratado pela prefeitura, ninguém aproveitou a gente né, formaram a gente ali e
ninguém aproveitou né. Nesse sentido a gente não foi valorizada de jeito nenhum né,
não foi reconhecido de jeito nenhum. Hoje em dia tem gente no interior trabalhando
em outro canto, quer dizer, formou pra dar de bandeja um profissional super
formado pra outro município, entendeu, é uma coisa bem incoerente.
Outros obstáculos identificados pelos participantes foram também pertinentes à
precariedade do campo da APS como espaço de práticas psicológicas, como já discutidos
anteriormente no que diz respeito especialmente à condição de ser profissional das equipes de
apoio, como o NASF. Os vínculos trabalhistas precários colocam os profissionais em situação
de vulnerabilidade frente às gestões municipais e instabilidade no emprego, o que convoca o
profissional a entrar em um estado de permanente tensão e busca de outras possibilidades de
trabalho mais estáveis, como nos cargos abertos em concursos. Essa precariedade, própria da
condição NASF já discutida anteriormente, também se reflete na ampla área de
responsabilidade sanitária, ou território de adstrição de clientela, para atuação destinada aos
profissionais entrevistados.
O grande obstáculo que eu acho é a formação de vínculo. Que a gente não consegue
formar vínculo adequado trabalhando em três Unidades de Saúde, trabalhando em
quatro Unidades de Saúde, trabalhando em cinco Unidades de Saúde. Porque
trabalho de psicologia é pra mim trabalho de muito, muito, de formação de vínculo.
Se você não está lá, se a pessoa não pode contar. A pessoa não sabe no mundo
quando, eu vejo uma pessoa hoje e vou ver com um mês? Porque eu não tenho
agenda? O grupo terapêutico eu vejo de quinze em quinze dias e é porque eu
estipulei, o grupo terapêutico eu vou fazer e vai ser quinzenal.
A reformulação de um conjunto de práticas tradicionais e sua integração a uma
representação social da profissão entendida como equivocada, é apontada pelos participantes.
Parece-nos que, por mais que isso envolva um conjunto de lutas em torno da definição
legítima das práticas da APS e da Psicologia, essa reconstrução da identidade profissional é
um fenômeno transversal a todo um conjunto de estratégias, como as que já foram abordadas
até agora, que visam a ampliação do poder da psicologia para atuar de modo mais amplo e
184
autônomo, no sentido de ocupar espaços de maior legitimidade no campo de práticas, para
além do espaço já conquistado historicamente do consultório.
Bom, desafio político também ético até porque ta ligado mesmo a esse ethos do
fazer, do se fazer psicólogo todo dia dentro da atenção primária. Primeiro eu
acredito que um dos desafios é justamente a herança que a gente traz como
psicólogo. E essa herança que a gente traz é algo penoso, pesado e que acaba nos
colocando dentro de um desafio, que também é político e que também é ético.
Então, até porque você, querendo ou não, só por você ser psicólogo, você já se
comprometeu com essa herança. [...] Porque é essa a bagagem ideacional que as
pessoas tem né. E que eu também, querendo ou não, também trago da minha
formação, de um fazer, não vou dizer clínico, mas de um fazer preso a um
consultório, de uma escuta, às vezes, restrita a um problema, que eu acredito ser e eu
não sei como, às vezes, eu consigo dizer que é do âmbito psicológico. E, por isso, só
dá responsabilidade a uma categoria psi e, no caso aqui, se tratando de psicólogo.
Então um dos desafios é justamente ir trabalhando essa concepção que não é só dos
outros é minha também. [...] E tanto a concepção do que é psicólogo e do que é
sofrimento psíquico, do que é produção de subjetividade, do que o seu fazer tanto no
atendimento individual como coletivo, tanto dentro do centro de saúde, como dentro
do bairro, da comunidade, dos grupos da comunidade ou então conversando numa
caminhada no quarteirão lá do bairro com uma pessoa que te chama. [...] E aí existe
um compromisso ético e político, também, de você poder reconhecer suas limitações
e reconhecer o que demanda de você dentro da atenção primária, porque assim, pra
você não cair no outro ponto que é o da integralidade das ações, da generalização
das ações de que você pode tudo e deve tudo.
A partir do que fora explicitado na fala acima, podemos tomar a reflexividade como
um princípio ético e político qualificador das práticas psicológicas na luta por um
reconhecimento e valorização no campo da APS. O exercício da reflexividade (BOURDIEU,
2012) nos possibilita um olhar crítico e autocrítico frente aos caminhos construídos e
desejados no desenvolvimento das práticas. Assim, os agentes e instituições envolvidos com o
processo de inserção da psicologia na APS, podem direcionar-se criticamente visando a
ampliação do espaço do possível na legitimação da atuação profissional. Diante do conjunto
de obstáculos já apontados, que são constituintes das relações de trabalho no campo da ESF, a
análise da experiência trazida pelos psicólogos entrevistados, nos convida a refletir sobre o
espaço social da APS do SUS como um território de lutas simbólicas, em que as práticas
psicológicas devem constituir-se com certa rebeldia frente ao já está instituído – que tem forte
poder instituinte.
É eu acho que a primeira coisa [...] é saber o que a gente ta fazendo, se
contextualizar do que a gente ta fazendo ali dentro. Eu acho que a gente tem que ser
um pouquinho mais rebelde sabia com algumas coisas, que a gente ainda é uma
profissão muito tutelada, pelo o que se espera que a gente faça. Eu acho que tem que
ser mais rebelde com a equipe mínima entendeu, tem que ser mais rebelde. E o que
eu estou chamando de rebeldia, questionar algumas coisas que já estão estabelecidas
e cristalizadas nas práticas de trabalho, nas práticas de cuidar ou não cuidar das
outras pessoas, que chegam até a atenção primária com sofrimentos mil. Questionar
de forma até mais, e a gente tem alguns elementos já nesse curta caminhada na
atenção primária. E que é possível articular cuidado, que é possível pensar
185
subjetividade e que isso não é um conhecimento privativo nosso, mas que a gente
tem um diferencial por ter se formado com foco um pouco mais nessas questões. E
eu acho que já tem como conversar, não sei se de igual pra igual, no sentido do
exercício de poder das profissões. Mas acho que a gente pode ser um pouquinho
mais ousado pra entrar nesses espaços, porque, às vezes, a gente fica esperando ser
convidado demais pra fazer as coisas sabe. E eu acho que a gente não ta precisando
disso nesse momento histórico não. Está precisando é entrar mais, questionar mais e
colocar também as dificuldades que a gente tem de trabalhar as limitações do nosso
fazer. Então, eu não acredito que fará com que, que será feito o melhor ambiente pra
que a gente possa atuar e darão isso pra gente de graça. O Ministério vai dizer isso
amanhã ou semana que vem apresentar uma portaria que o trabalho do psicólogo é
fundamental e, também, não acho essa luta coorporativa, corporativismo. Nós temos
algum valor no que fazemos e precisamos aprender como dizer isso de forma um
pouco mais clara pros nossos usuários e pras pessoas que trabalham com a gente.
Então eu acho, em resumo da obra, que a gente tem que ser mais rebelde e não estar
muito esperando ser convidado pra festa sabe. E eu não espero isso dos meus
colegas médicos, meus colegas enfermeiros e nem dentistas e talvez de alguns ACS.
Do modo como colocado na fala do participante, o reconhecimento e valorização da
psicologia remete a uma postura ativa e transformadora do campo da APS, rebelde frente à
passividade com que os processos de trabalho, muitas vezes, impõe uma visão equivocada e
restritiva aos âmbitos das práticas psicológicas. Assim, em nosso entendimento, a construção
da especificidade da psicologia deve ser vista como um esforço de luta e resistência simbólica
frente a visões hegemônicas da ESF e da psicologia, visando a instauração de mudanças
radicais.
A revolução simbólica contra a dominação simbólica e os efeitos de intimidação que
ela exerce tem em jogo não, como se diz, a conquista ou reconquista de uma
identidade, mas a reapropriação coletiva deste poder sobre os princípios de
construção e de avaliação da sua própria identidade de que o dominado abdica em
proveito do dominante enquanto aceita ser negado ou negar-se (e negar os que, entre
os seus, não querem ou não podem negar-se) para se fazer reconhecer (BOURDIEU,
2012, p.125).
Na perspectiva dessa luta ou revolução simbólica necessária, as práticas
desenvolvidas devem apontar para a afirmação de novos horizontes éticos, políticos e
epistemológicos mais efetivos diante das necessidades de saúde da população e do processo
de constituição e legitimação de espaços mais qualificados de potencialização da atuação
profissional da psicologia. As práticas psicológicas, assim, precisam ser compreendidas nesse
contexto de disputas entre o tradicional e o novo, entre ortodoxia e heterodoxia.
186
8 IMPLICAÇÕES PARA A IDENTIDADE PROFISSIONAL: INTERFLUÊNCIAS
ENTRE CAMPO E HABITUS
No percurso de desenvolvimento de uma interpretação pertinente à prática da
psicologia na APS, buscamos compreender alguns sentidos da experiência profissional na
trajetória de formação dos participantes. Chegamos à indagação sobre como a experiência
vivida pelos participantes no campo da APS influencia no modo como atuam como
profissionais. Essa reflexão, que será desenvolvida no presente capítulo, visa interrogar o
sentido de possíveis transformações e reproduções, nos modos como as práticas psicológicas
são desenvolvidas, quando da decorrência da inserção da psicologia na APS. Essa
interrogação dos sentidos da experiência nos possibilita refletir sobre algumas dimensões do
processo histórico vivido atualmente pela categoria profissional, no contexto das políticas de
atenção primária à saúde.
Tomando como referência os conceitos de habitus e campo em Bourdieu (2012),
indagamos sobre a força constitutiva que o campo da APS impõe à prática profissional dos
psicólogos, de modo a demarcar significativamente a construção do habitus profissional.
Assim, as experiências profissionais analisadas aqui, foram propulsoras de um conjunto de
mudanças nas formas de atuação decorrente da vivência prática nos CSF. Essas mudanças no
modo de ser do agente como profissional podem ser entendidas como fruto do
desenvolvimento de diversas estratégias políticas e epistemológicas de fundamentação e
legitimação de práticas. Assim, nossa reflexão consistiu em problematizar a relação entre
campo e habitus na experiência na APS do SUS. Partimos do entendimento que a formação
profissional do psicólogo sofre impactos relevantes da experiência de trabalho na ESF e isso
pôde ser analisado, a partir das experiências dos participantes do presente estudo.
8.1 Significados da experiência e algumas reflexões sobre a profissão
Pudemos identificar importantes marcas da experiência dos participantes na APS do
SUS para a construção de suas identidades profissionais. Tais marcas decorrem de
aprendizagens e processos de socialização vivenciados na ESF, que contribuíram para a
formação pessoal e social dos profissionais entrevistados, revelando transformações nos
modos de agir e se posicionar ética e tecnicamente frente aos problemas de saúde da
população. Dentre as inúmeras questões trabalhadas e discutidas nos diálogos de entrevista, os
participantes, especialmente aqueles que tiveram experiências profissionais na RMSF,
187
relataram mudanças positivas no aprimoramento dos modos de agir como profissional. Dentre
as mudanças relatadas destacamos: a ampliação da capacidade de escuta; aprimoramento nos
relacionamentos interprofissionais e intersetoriais; ampliação do olhar para o processo saúde-
doença; desenvolvimento de uma postura ativa frente aos problemas de saúde;
amadurecimento; desenvolvimento técnico; fortalecimento da identidade profissional de
psicólogo; e transformações decorrentes da incorporação da identidade de profissional da
saúde.
Dentre as aprendizagens decorrentes da inserção do profissional no campo da APS,
nos territórios da ESF, destaca-se um conjunto de saberes e práticas desenvolvidos nas
relações com os usuários, suas histórias e contextos de vida. A aprendizagem construída na
relação com o usuário, seus problemas de saúde e as práticas profissionais, influencia
decididamente na formação do psicólogo, consolidando estratégias de atuação que
institucionalizam práticas e modos realização, bem como questionando fazeres tradicionais a
partir dos problemas práticos relativos ao cotidiano das práticas nos CSF.
Eu aprendi a escutar bem mais, eu aprendi a ser mais humano, a aceitar e aí eu acho
que isso é mais fantástico, pra mim foi o que foi mais fantástico, que aí exigiu muito
de mim, pensar alternativas terapêuticas. Porque eu dava uma e aí dava um tempo e
via que não funcionava, aí tá, tudo bem. ‘Mas porque é que não funcionou?” Então
assim, já do meio pro final eu comecei a, sentava aqui com uma pessoa: “olha a
gente tem aqui uma série de possibilidades dentro do que você tá me dizendo. O que
é que é melhor pra você pra gente te ajudar? O que é que é melhor pra você? Vamos
lá escolher? Você escolher. Então assim, isso pra mim, porque uma coisa é vocês
estudar né, você vê que o projeto terapêutico, dentro da clínica ampliada é centrado
no sujeito, mas outra coisa é você vê isso na prática e você vê que o sujeito não tá
topando o teu projeto terapêutico. Ele tem que topar o projeto terapêutico que ele faz
parte. Então assim, eu aprendi muito isso né.
Um conjunto de aprendizagens ligado à experiência de trabalho com equipes
multiprofissionais, também expõe os modelos de prática psicológica tradicionais a revisões
críticas e ampliações no escopo de suas ações. Aqui, como nas aprendizagens das relações
com os usuários, podemos perceber a ampliação do olhar e da intervenção do profissional
psicólogo como resultante da experiência na APS. Esse processo de ampliação do olhar dos
profissionais é fundamental para o desenvolvimento de práticas participativas nos CSF
(NEPOMUCENO et al., 2013). Dentro desse processo de ampliação e revisão crítica, muitos
referenciais teóricos e metodológicos são analisados, discute-se um conjunto de habilidades e
competências necessárias para agir em saúde e no SUS, várias inovações são exigidas no
exercício da prática profissional, subsidiando certa reconstrução de representações e
identificações profissionais, que redireciona alguns processos de subjetivação implicados na
prática. Articula-se assim, na prática profissional, um conjunto de questões afetivas referentes
188
à construção de uma identidade profissional específica ao campo da APS. Nesse processo de
construção da identidade profissional, alguns participantes relataram sentir-se “efetivamente
psicólogos” a partir da experiência de trabalho na RMSF e NASF, pela amplitude do campo e
complexidade de seus problemas, que contribui para que o psicólogo tenha mais “marra
profissional”:
Eu acho que assim, eu me descobri psicólogo quando eu tava na residência. Porque
eu acho que quando eu saí da graduação eu fiz o meu estágio na clínica o último,
mas eu acho que eu só me senti psicóloga mesmo na residência assim realmente
estou sendo psicólogo, eu estou fazendo coisa que o psicólogo faz. Mesmo a gente
tendo essa crise toda, mas eu me senti como psicólogo foi na residência. Então, eu
acho que me fez construir, me construir enquanto profissional. Claro que na minha
formação toda eu me construí como profissional, minha graduação. Mas d’eu me
sentir né, acho que tem a ver com isso d’eu me sentir profissional acho que foi muito
importante assim e me fez eu acho que...
Pesquisador: E como que a atenção primária te fez sentir psicólogo?
Justamente por essa complexidade de demandas. Por exemplo, um psicólogo que
atua só numa coisa ele não tem experiência com outra coisa. Mas a gente, na atenção
primária, tem experiência de tudo, praticamente de tudo.
Pesquisador: E tem uma visão ampla da psicologia é?
É. Por exemplo, tem visão desde o bebê, da criança, do adolescente, dos adultos e
dos idosos. Então, assim, a gente atua com todas as faixas etárias, com diversos
aspectos do conhecimento, da atuação psicológica que envolve. Aqui, por exemplo,
eu aprendi a fazer testes neuropsicológicos pra atuar com os idosos, pra fazer coisas
de acompanhamento terapêutico, coisas de psicologia escolar, de psicopedagogia,
coisas de álcool e drogas, de coisas de saúde mental mais grave, dos diversos tipos
dos transtornos. Porque no território tem de tudo e não é só uma coisa. Então, eu me
construir assim “putz, né?! Tenho experiência em muitas coisas né?!”, não tenho
experiência numa coisa só não [...] mas com a diversidade da vida mesmo, das
pessoas e, o que eu acho muito bom da atenção primária[...] Então eu acho que isso
foi muito bom pra mim, assim, de me construir com... dar marra mesmo ao
profissional.
A experiência da APS levou alguns profissionais participantes a fortalecerem-se na
construção de uma identidade profissional marcada pelos amplos e diversos âmbitos de
possibilidades práticas, aglutinando saberes e práticas oriundos de diversas áreas de atuação
da psicologia e de outras profissões de saúde. Isso nos remete a pensar os desafios da
formação em psicologia para o trabalho nas políticas públicas, que têm crescido atualmente
como na ampliação de espaços de contratação de trabalhadores sociais e que tem se refletido
no deslocamento de um perfil de profissional liberal para um trabalhador social no campo das
políticas públicas (FERREIRA NETO, 2011).
Em nosso caso, vemos a APS como grande desafio pela abertura de diversas
perspectivas práticas. A possibilidade de experimentar diversos espaços de prática, de
submeter à ação e reflexão um conjunto amplo de referenciais, modos de ser e abordagens
teórico-metodológicas da psicologia, qualifica a APS como campo de potencias
transformações na relação entre psicologia e políticas de atenção à saúde. Isso claro, em nossa
189
experiência, sofre influência marcante dos processos instaurados pelos programas de RMSF.
Como destaca o participante, na fala abaixo, a experiência da APS do SUS, tem o potencial de
repercutir na formação dos agentes, especialmente, na preparação para lidar com a relação
entre a prática psicológica e as necessidades de saúde da população, qualificando os agentes
para a produção de ações consistentes e legitimadas no processo saúde-doença-cuidado.
Participante:Eu não sei bem assim dimensionar e tamanha é a importância, porque
eu acho que pra mim foi uma formação, alguma formação aquilo que eu pude ter
assim, me deu. E, assim, quando eu sento e converso sobre, eu percebo que eu acho
que eu não sei tão pouco assim, como eu penso que sei, que acabei absorvendo
alguma coisa por estar lá. Por ter sido dado pra mim essa oportunidade de estar
inserido na atenção primária e de perceber a importância disso. E de me conectar
com gente, de me conectar com pessoas de diversas categorias, de procurar construir
um fazer e um saber que realmente tenha uma eficácia, que traga algum benefício
pra aquelas pessoas que tão ali. E, assim, pra mim, eu considero uma grande parte da
minha formação profissional o fato d’eu ter passado e estar ainda esses dois anos e
cinco meses dentro de um centro de saúde da família, me ajudou demais, me deu
muito mais do que eu dei.
Pesquisador:O que te deu?
Participante:Me deu consistência, mais consistência, não vou dizer que deu a
consistência.
Pesquisador:Consistência em que?
Participante:Consistência profissional. Eu me senti mais psicólogo, lá dentro do
centro de saúde da família.
Pesquisador:O que é esse “me sentir mais psicólogo”?
Participante: Porque isso aí eu já tou falando de uma crise pessoal que eu tive no
curso, de por não ter feito o curso, que eu considerei depois, não sendo... não vou
dizer ideal, porque ideal não tem, mas que eu sabia que eu poderia ter feito, olhando
pra trás pro curso, eu digo que poderia ter feito isso. E eu sempre me achei meio
psicólogo, eu tinha até o constrangimento de dizer pra mim mesmo e pros outros “eu
sou psicólogo”, porque eu via psicólogos perto de mim, eu sabia o que era o
psicólogo, um cara que tem um saber ali. [...] a atenção primária me deu muita coisa
pro meu saber de verdade mesmo pra que eu tivesse condição de ter a tal da práxis e
não só a prática, entendeu. [...] Porque, na atenção primária, eu tive chance de ter
muitas experiências em uma só. Porque eu sempre valorizei, sempre percebi a
riqueza de você, numa segunda-feira, estar indo numa casa de uma pessoa, numa
terça-feira ta numa catequese ouvindo um grupo de idosos, numa quarta-feira você
ta no ambulatório, numa quinta-feira você ta numa escola, numa sexta-feira você ta
numa formação no auditório de uma Regional, numa segunda-feira estar num hotel
fazendo um curso de formação em saúde mental, entendeu? Então onde é que eu vou
ter a chance de ter todas essas experiências numa só?
O fortalecimento de uma identidade profissional, a partir da variação constante de
perspectivas de atuação aparece como resultado parcial das ações desenvolvidas no campo da
APS do SUS. Esses processos de reconstrução identitária não podem ser atribuídos somente à
experiência de realização e reprodução de práticas, mas também ao exercício da
problematização do cotidiano, que é facilitada em atividades formais e não-formais de
educação permanente em saúde, atreladas à RMSF e ao NASF. No campo da sociologia das
profissões, um aspecto bastante discutido na análise do processo de profissionalização é a
incorporação de tecnologias e inovações, que possibilitam a renovação gradual e progressiva
190
da base cognitiva e a consolidação do monopólio da competência (BOSI, 1996; DUBAR,
2005; MACHADO, 1995). Pudemos perceber, nesse contexto, a influência da experiência de
práticas profissionais na ESF, como reconfiguradora da identidade profissional. As
identidades profissionais são, assim, marcadas pelos processos de socialização produzidos no
interior dos espaços sociais da ESF, que reconfiguram as representações que os profissionais
têm de si mesmos como profissionais. A partir de uma abordagem da relação entre
socialização, identidade profissional e autonomia, como proposta por Dubar (2005), pudemos
observar várias “formas identitárias”, que são representativas dos processos sociais de
construção da realidade implicados nas práticas dos psicólogos nesse novo contexto da ESF.
Assim, em nossa abordagem, a socialização profissional vivida no espaço de práticas foi
entendida a partir dos modos característicos como os psicólogos participantes se identificaram
como psicólogos no entrecruzamento da estrutura do campo com suas trajetórias profissionais
e de formação anteriores. Assim, abordamos alguns dos sentidos da experiência profissional
vivida pelos psicólogos, para a identificação de designações compartilhadas pelos
participantes sobre si mesmos como atores profissionais.
A construção da identidade profissional é, como vimos a partir da análise das
entrevistas, impactada pela experiência da prática profissional na ESF. As direções apontadas
nessa construção passam pela reconstrução de uma identidade profissional muito marcado
pelas representações da profissão ligadas à prática da clínica. Um dos entrevistados destaca
sentir-se mais psicólogo clínico a partir da experiência vivida na ESF. Nesse campo,
paradoxalmente como já vimos, a experiência profissional evidencia os limites e necessidades
de revisão do arcabouço teórico-metodológico da clínica diante da complexidade dos
processos de constituição de sujeitos envolvidos nas ações.
É engraçado, hoje eu me considero muito mais um psicólogo clínico. Assim, muito
mais de cuidar dos quadros clínicos, de quadros de adoecimento mesmo, de
transtorno mental, de manejar. Eu me considero muito mais preparado do que antes,
mas ao mesmo tempo também despreparado, porque eu vi como tem questões,
assim, que sempre vão estar pra além do que eu sei, do que eu já vivi. E, ao mesmo
tempo, que eu me considero mais preparado, mas também eu vejo como eu estou
mais distante. Eu não tinha talvez a dimensão do como complexo pode ser o sujeito,
de como ele pode se apresentar de diversas formas assim.
Reconhecer-se como profissional da clínica foi um imperativo de apropriação, das
relações entre um conjunto de saberes e práticas, ligados ao contexto do campo da APS. Na
análise de alguns significados expressos nas entrevistas, o processo de constituição da
identidade de profissional é atrelada ao campo das práticas da saúde, onde a dimensão do
espaço social demarca o tipo e a representação das práticas.
191
Participante:O que eu visualizo assim, foi muito rico e como divisor de águas
mesmo assim a questão da Residência. Então, tudo pós-residência na área da saúde
eu já vejo de uma outra maneira. Não só porque eu vejo teoricamente, mas porque é
uma teoria que foi associada a prática, a vivência, o experimentar no campo né, do
contato. Então, hoje tudo que eu vejo pós eu vejo diferente [...] Na perspectiva de
uma compreensão ampliada. [...]
Pesquisador:E como é que isso reverbera na profissão do psicólogo e na sua prática
psicológica? O que esse campo todo ...
Participante:Eu acho que esse todo, de alguma forma mexeu um pouco na minha
identidade como psicólogo. Porque hoje eu já não me vejo mais tanto como um
psicólogo, hoje eu me vejo mais como profissional da saúde. Eu acho que ela acabou
interferindo muito nisso assim também dessa coisa da identidade. Hoje eu não
consigo, eu sei que tem a história do núcleo e o campo e tudo e eu vejo onde é que
eu estou. Mas hoje eu já não me vejo mais tão rigidamente psicólogo, hoje me vejo
mais o profissional da saúde, o profissional da saúde mental.
O contato com uma rede de serviços interligados com a ESF constitui uma
experiência marcante para os participantes, de aprender a lidar com uma multiplicidade de
vetores influenciadores da prática e influenciados por esta, situados na interface de serviços
de saúde, especialmente no espaço de intersetorialidade com as políticas de ação social e de
intrasetorialidade com outros níveis de atenção à saúde. Observamos aqui, os desafios da
construção cotidiana das políticas e serviços de saúde, onde a participação dos agentes é
fundamental. Na perspectiva da APS, no âmbito municipal, discute-se a importância da
construção de práticas intersetoriais que se processam na ação comunitária, no território, na
articulação de diversas políticas sociais municipais e integração das redes de atenção. Isso
constitui um dos desafios para se efetivar uma APS abrangente e reorientadora dos modelos
de atenção à saúde (GIOVANELLA et al., 2009). Destaca-se, aqui, o papel da RMSF e NASF
na construção das práticas profissionais e processos de formação para atuar no SUS.
Foi uma questão de organização do sistema de saúde, que eu me deparei com isso na
residência. Então assim, me importar com isso surgiu da residência, foi gestado na
residência e foi uma coisa que me modificou. Até pensar assim a minha prática
clínica, mesmo quando eu estou no consultório quando eu estou atendendo
individualmente alguém. Eu não estou mais, mas até o final da residência
praticamente já tava atendendo no consultório na clínica privada. Eu começo a me
perguntar coisas diferentes, eu começo a ter questionamentos diferentes a respeito
daquela pessoa, que extrapolava a relação que eu tinha, anteriormente. E, assim, eu
acho que mudou a minha prática clínica também. Eu acho que mudou a minha forma
de até se pensar, as questões que eu penso hoje tem muito mais a ver com o SUS,
com a saúde mental no SUS, do que uma questão da psicologia. [...]foi a atenção
primária que me fez perceber o SUS enquanto um conjunto, enquanto um sistema e
aí eu posso estar na atenção primária ou secundária ou então na gestão ou no apoio
institucional ou numa articulação, enfim, qualquer ponto e aí eu estou pensando
coisas que eu comecei a pensar por causa da atenção primária.[...] Eu acho que a
atenção primária exige essa abertura pra fora dela mesma sabe, pra fora do posto de
saúde, pra fora só desse serviço. Eu acho que é mais fácil as pessoas se
encapsularem em outros serviços, em outros níveis de atenção do que na atenção
primária. Eu acho que ela exige maior capilaridade, exige maior relação, maiores
articulações com outras coisas tanto com o território quanto com a rede de serviços.
192
Observamos o desenvolvimento das capacidades de pensar o usuário e seu modo de
vida no território, suas relações sociais e institucionais, bem como de reconhecer outros
serviços e instituições potencializadores das práticas de saúde. Isso pode ser concebido como
uma dimensão do habitus profissional sobre o qual a experiência prática na APS incide de
modo transformador no desenvolvimento dos agentes, como profissionais mais plurais na
construção de ações. O habitus profissional, como sistema de disposições incorporados para
pensar e agir formado no decorrer das trajetórias profissionais, da maioria dos participantes
nos permite pensar as possibilidades de transformação identitária proporcionada pela
experiência na ESF. O que, em nosso caso, permite pensar no caráter formativo do campo,
trazendo importantes possibilidades para se pensar e fazer a psicologia, numa perspectiva de
maior e mais qualificado compromisso social. Aqui reconhecemos as potencialidades do
contexto histórico atual, de ampliação da inserção da psicologia na ESF, como propulsor de
contextos práticos ricos de elementos capazes de mobilizar uma parte das experiências
históricas incorporadas pela profissão no Brasil e reconfigurar novos modos de ser psicólogo.
Entendemos, em diálogo com alguns autores (BOURDIEU, 2012; DUBAR, 2005; LAHIRE,
2003), que a formação de um profissional é resultado de múltiplas experiências passadas, de
múltiplas aquisições feitas em situações sociais vividas e da atualização de disposições
adquiridas a partir das novas incursões profissionais. O encontro entre a psicologia e a ESF
tem nos permitido uma reflexão importante sobre a força desse campo de atuação para a
reconstrução das identidades profissionais, para uma formação, bastante explorada nas RMSF,
capaz de marcar as trajetórias e os corpos dos profissionais. Essa relação entre os campos e os
habitus, em nosso estudo, revelou uma ESF rica em possibilidades de transformação e
atualização dos habitus profissionais dos psicólogos.
E se essas forças [do contexto] exigem por vezes de nós outras coisas que não
podemos dar, então não temos geralmente outras opções senão encontrar uma outra
forma de continuar a viver – o menos mal possível – no mesmo contexto (adaptação
mínima), senão mudar de contexto (fuga) ou transformá-lo radicalmente para que
seja mais possível vivê-lo (reforma, revolução). Da natureza dos contextos que
somos levados a atravessar, depende o grau de inibição ou de recalcamento de uma
parte mais ou menos importante da nossa reserva de competências, de habilidades,
de saberes e saber-fazer, de maneiras de dizer e fazer das quais somos portadores.
(LAHIRE, 2003, p. 77).
Na constituição de uma identidade profissional decorrente da experiência da APS do
SUS, encontramos alguns qualificadores importantes para analisar as mudanças
experimentadas pelos psicólogos entrevistados. O relato abaixo é bastante significativo, para
pensar a aprendizagem decorrente da inserção no campo da ESF. O participante relata ser um
193
profissional “mais desenrolado” depois do trabalho desenvolvido, o que na cultura cearense,
em especial, denota uma desenvoltura satisfatória nas práticas do agente, ligadas a uma
reconhecida competência e agilidade na resolução de problemas práticos. Aqui, podemos
dizer, que a APS potencializou a formação dos participantes, no estímulo à criatividade e
apropriação na utilização de métodos e técnicas de intervenção profissional, que refletem-se
em novos modos de ser psicólogo.
Eu acho que eu estou muito mais desenrolado hoje assim sabe no sentido de...
Pesquisador: Maturidade?
De maturidade e desenrolado mesmo. E, assim, de como surgiram muitas questões
que eu não sabia lidar e, de alguma forma, eu tive que criar muitas. Assim, e eu acho
que eu sou mais desenrolado, assim. É engraçado, um dia desse eu tava tendo uma
conversa com a minha equipe, que eu fiz as terapias, assim, que acho que no começo
da residência, e ainda tava fazendo a formação e eu ficava com muita ansiedade
assim “ah... quero, agora aplicar as terapia e tal e não sei o que”, e [...] E, é muito
pra além de um aspecto metodológico da arte de usar, a arte como metodologia, mas
do conceito de sujeito mesmo diante da arte, do processo criativo e tal. E é claro que
algumas ferramentas nas terapias eu usei no processo. Mas essa questão da
criatividade que é exigida ao profissional da atenção primária. [...] E eu acho que,
em alguns momentos, assim, a gente consegue se aproximar da arte mesmo. Assim e
não somente da prática, mas pra além da prática da arte, de criar o novo. Enfim, e eu
acho que isso é muito a cara da minha vivência assim de ter que criar.
A APS, na experiência dos psicólogos participantes, é também relacionada como um
fator influente na formação do profissional, no que diz respeito a sua preparação para lidar
com processos interprofissionais, para desenvolver uma prática em equipes de saúde. A
experiência vivida nas equipes multiprofissionais da ESF levou ao desenvolvimento de um
conjunto de atributos que tornou o participante abaixo citado, “mais seguro” e “preparado”
para atuar em várias frentes de prática psicológica. A fala abaixo é ilustrativa de uma
experiência singular de trabalho em equipe multiprofissional, entendida como satisfatória e
única frente a uma ampla disseminação de problemas relacionais ligados às trocas e
negociações interprofissionais onde as práticas psicológicas são desenvolvidas, como relatado
pelos outros participantes. Na experiência de uma relação classificada como “harmoniosa”
podemos refletir sobre uma potencialidade da APS, especialmente quando articulada por um
processo de formação em serviço como a RMSF, de implicar os profissionais inseridos no
campo, em processo de revisão de práticas nos processos de trabalho em equipe,
desenvolvidos nos territórios da ESF. Para pensar esse processo de revisão, é importante
considerar a relação dialética de imbricação entre o campo, como espaço social específico, e o
habitus, como um conjunto de disposições estruturantes do campo e dele decorrente.
Eu acho que eu sou outro profissional depois que eu saí da residência, mais seguro.
Eu acho que a residência, por a gente atuando, aprendendo na prática, eu acho que
deixa a gente mais seguro mesmo e sabendo o que ta fazendo. Tanto conceitos
194
teóricos como na prática a gente consegue juntar as duas coisas assim. E eu acho que
a pessoa que faz residência sai mais qualificada.
Pesquisador: Essa experiência ela te deixou mais segura em que aspecto?
No sentido de, me deixou mais segura pra trabalhar em equipe, pra trabalhar de uma
forma interdisciplinar, pra dar pra gente conseguir enxergar a integralidade, quando
a gente consegue trabalhar com as várias profissões de uma forma integrada mesmo,
de uma forma harmoniosa.
Outra qualidade percebida como adquirida através da prática na APS, que nos
possibilita pensar o processo de formação profissional, é a habilidade desenvolvida em ser
“mais resoluto” e “prático” no desenvolvimento das práticas de saúde. Esses atributos
distintivos da prática podem ser relacionados à ideia, já trabalhada aqui, de um profissional
“desenrolado” nos serviços de saúde.
Vixe, eu aprendi muito, essa de ser mais resoluto, mais prático. Isso aí eu aprendi
agora. Porque até então, eu meio que tenho uma tendência a acomodação muito
grande. E sou muito paciente. Então, às vezes, essa paciência se confunde com uma
certa passividade minha. E na atenção primária não tem espaço pra você ser passiva.
Pesquisador: Paciente sim?
Paciente sim, claro. Mas passivo não, em hipótese nenhuma. Então, você tem que
encaminhar, você precisa dar uma solução. E não é uma solução que vai resolver os
problemas, mas algum encaminhamento, algum direcionamento, alguma orientação
pra aqueles casos. E isso, de início, foi muito difícil até de entender mesmo. E
interessante como a equipe percebe, percebe como a gente tem na residência esse
processo de avaliação formativa né a gente consegue ter um feedback delas. Então
foi bem interessante, porque elas apontaram exatamente isso.
Pesquisador: E você aprendeu a ser mais resoluto né?
É bem mais. E agora no final, no final. Mas já antes, já consegui alterar essa minha
dificuldade. E já teve um efeito na prática mesmo, esse diálogo, esse feedback com a
equipe
Pudemos evidenciar, a partir de diversas falas e temas pertinentes às entrevistas
realizadas, que a experiência prática na ESF contribui para a formação de um profissional
psicólogo generalista, situado dentro de um contexto que lhe exige um alto grau de
responsabilidade para delimitar seu espaço de atuação, dentro da dinâmica dos processos de
trabalho. Esse generalismo reflete-se, no caso da psicologia, em certo desprendimento e
ousadia com que o profissional busca a fundamentação e a legitimação social de suas práticas
específicas transitando por vários âmbitos e delimita um conjunto diverso de ações integradas
pelo contexto específico dos territórios e características da APS.
Na APS, é lidar com problemas da escola, com problemas das organizações, com os
problemas clínicos, enfim, com problemas de recursos humanos. Eu acho que a
gente fica meio um pouco psicólogo geral, entende? Isso é muito massa. Assim, eu
nunca trabalharia num setor de recursos humanos. E também seria, sei lá, trabalhar
numa escola, também acho que não. Por enquanto, não tenho pretensões não....Eu
acho que, porra, na graduação eu não sei se eu aprendi nada de escola. Mas na APS
eu acho que eu aprendi alguns processos que acontecem na escola, na política de
educação, no dia-a-dia de um professor super, super carregado, da relação que se
estabelece nos processos pedagógicos com estudantes [...] Enfim, é uma viagem
195
assim. Eu acho que a gente acaba resgatando [...] eu acho que a gente resgata a
possibilidade de uma psicologia geral, entendeu?
A experiência de práticas profissionais na ESF pode ser considerada, tomando como
referência a experiência vivida pelos participantes, um exercício de resgate da noção de uma
psicologia geral, da possibilidade, quase utópica, de se construir posicionamento crítico e
pertinente socialmente, diante dos dilemas da formação em psicologia. Assim, a necessidade
de articular saberes e tradições práticas oriundos de campos diversos, das psicologias e suas
áreas de atuação legitimadas, expõe o profissional ao risco do ecletismo e do dogmatismo,
como coloca Figueiredo (2009). No contexto das experiências estudadas aqui, a ESF impôs
aos psicólogos a condição da experimentação do novo, da busca de respostas a problemas e
situações nunca vividos anteriormente. Essa experimentação, do ponto de vista da formação
em psicologia e saúde, precisa ser pesquisada e analisada, para explicitar os desafios éticos e
epistemológicos colocados no cotidiano. A experiência da APS, dentro desse contexto
desafiador de produção de inovações e articulação de saberes e práticas, remete a
enfrentamento de poderes estruturados nas tradições de prática em saúde e em Psicologia.
Assim, para o aprofundamento da inserção da psicologia na APS do SUS e no campo
interdisciplinar mais amplo da Saúde Coletiva, a prática psicológica, do ponto de vista de sua
constituição como vetor de formação profissional, deve apontar para a produção de
inespecificidades, de rupturas com os modos hegemônicos de agir em saúde e em psicologia.
Nesse sentido, a fala abaixo, de um participante envolvido com as práticas de formação em
psicologia, aponta para algumas consequências formativas, que a experiência prática da APS
pode desencadear.
É preciso abrir mão de certa zona de conforto e poder se lançar mais próximo disso,
que é inespecífico. Disso que tem a ver mesmo com o contexto social, cultural,
econômico [...] é quebrar um pouco essas fronteiras né, angustiar um pouco esses
alunos, no sentido mesmo de poder ouvir histórias que jamais escutariam, de poder
conhecer realidades inimagináveis. E eu acho que isso produz cortes extremamente
importantes dentro da formação, no sentido de poder dar condição a esse aluno de
recriar o seu próprio campo e criar a sua especificidade dentro desse campo.
Pesquisador: Esse sair da zona de conforto fez parte da sua trajetória a partir da
atenção primária, vamos dizer assim.
Foi. Dentro da minha formação, como aluno de psicologia, eu fiz estágio [na APS],
em determinado momento. Então assim, essa coisa da psicologia comunitária não
tava muito apartada das outras coisas, naquela época [...] a gente sabia que a
psicologia e a política tinham uma relação inegociável. Então, a gente ia pra esses
campos. E eu acho que isso é tão fundamental quanto uma medida outra, a entrada
de um aluno num hospital psiquiátrico, não é que eu esteja comparando a realidade
da atenção, não é isso. Mas no sentido dessa produção de uma descontinuidade né,
que eu acho que no que diz respeito à formação isso é absolutamente fundamental.
196
A APS, como já discutida aqui, impulsiona os profissionais ao desenvolvimento de
modos de agir que podem ser, em níveis diferentes de gradação, heterodoxos ou ortodoxos
frente ao habitus desenvolvido historicamente pela profissão e pelas tradições de modelos de
práticas em saúde vigentes. Esse habitus, desenvolvido histórica e socialmente por
experiências anteriores e concomitantes de socialização, como conjunto de disposições para
agir, pensar e classificar o mundo (BOURDIEU, 2012; 2011; WACQUANT, 2007;
BOLTANSKI, 2005), repensado aqui como habitus profissional, nos lembra que os
indivíduos influenciam e são influenciados pelos campos profissionais, que constituem-se
como espaços de socialização e atualização de lutas históricas. Isso, no contexto da formação
científica e profissional em saúde, nos remete a prestar uma atenção especial para as
trajetórias sociais e institucionais, bem como nos processos de socialização como
constituintes não somente de ideologias, teorias ou técnicas, mas de estilos de vida e modos
de ser. Os espaços de formação devem ser, por conseguinte, facilitadores de processos de
autoanálises capazes de (re)situar os sujeitos diante de suas trajetórias.
Como vimos até aqui, as entrevistas que realizamos nos ajudam a pensar um
conjunto de questões referentes à experiência prática na APS, que contribuem pra pensar a
formação em psicologia. Fica claro que a ESF produz um tensionamento por mudanças,
possibilita uma renovação da profissão, que pode ser positiva do ponto de vista de sua
inserção no contexto da sociedade brasileira. Essa formação, como aborda Figueiredo, deve se
voltar para pensar éticas e políticas de ser psicólogo.
Formar é proporcionar uma forma, mas não é modelar uma forma. Ao formar
estamos oferecendo um continente e uma matriz a partir dos quais algo possa vir a
ser. [...] Ser-psicólogo é, por exemplo, saber lidar com a multiplicidade sem recorrer
às mais fáceis respostas à angústia que sempre nos acomete quando nos defrontamos
com o indeterminado: o dogmatismo e o ecletismo. Ser-psicólogo é, também, saber
dialogar com áreas afins – disciplinas biológicas e histórico-culturais – já que de
uma forma ou de outra nos compete tratar de uma unidade psico-sócio-biológica.[...]
Mas ser-psicólogo é também ocupar espaços e posições na história e na cultura de
nossa sociedade e estar preparado para lidar com outras posições, para lidar com
alteridades, o que remete à dimensão ética e política de nossa profissão. Em outras
palavras, ser-psicólogo, independente das escolhas teóricas de cada um, implica em
situar-se nos campos da epistemologia e da ética, não sendo jamais apenas um feixe
de habilidades técnicas. (FIGUEIREDO, 2009, p. 152).
Entendemos que experiência prática na APS, por suas características relativamente
específicas de um campo estruturado e estruturante de modos de agir e pensar, pode contribuir
para o desenvolvimento de uma ampliação de olhares para a realidade complexa e
socialmente preocupante, expressa nas demandas de saúde em torno das quais a psicologia
está envolvida. É no sentido de potencialização desse espaço social, como produtor de
197
práticas psicológicas comprometidas ética e politicamente com a resolução dos problemas de
saúde da população brasileira, que podemos pensar numa formação em Psicologia para atuar
no SUS. Essa formação, como aponta Figueiredo (2009), deve evitar as armadilhas do
ecletismo e do dogmatismo, enfrentando o desafio de lidar, com rigorosidade científica, com a
pluralidade interna às Psicologias.
Nesse sentido, um dos desafios de formação que percebemos como relevantes, na
presente pesquisa, é a busca pelo desenvolvimento de uma compreensão transdisciplinar dos
processos saúde-doença-cuidado construída, especialmente, na aproximação junto às ciências
humanas, pra fundamentar ações insurgentes frente a hegemonia do modelo biomédico na
ESF. Aqui, a formação deve capacitar os agentes para o exercício político e epistemológico de
um aprimoramento de olhar e de modos de intervir desmedicalizadores nas práticas na APS,
reconhecendo matizes epistemológicas e éticas, que fundamentam hegemonias e as
heterodoxias no cotidiano das práticas. Nesse contexto, é fundamental reconhecer o campo
como espaço de poder e de lutas simbólicas, onde é preciso saber situar-se.
Dentro desse contexto, como apontamos em outros capítulos, há um imperativo de
sobrevivência no campo de lutas da ESF, em que o agente precisa lidar com o processo de
construção das demandas profissionais de modo a qualificar sua atuação delimitando um
espaço de poder. Aqui, a formação deve ser capaz de instigar os profissionais a realizar uma
ampla leitura das demandas para delimitar política e epistemologicamente objetos legítimos
para as práticas, satisfatórios aos interesses da profissão, em sua relação com a sociedade.
Essa habilidade “tradução da demanda” corrobora com o processo de participação do
profissional na construção social das práticas, que constitui-se como uma estratégia de luta
pela autonomia da profissão na definição dos rumos e limites de seu agir específico. Nesse
contexto, a psicologia se vê diante de alguns limites impostos pelos modelos de formação.
Vejamos no exemplo, expresso na fala abaixo:
Eu acho que, em vários âmbitos de atuação, o profissional, não só o psicólogo, vai
poder negar-se a fazer uma leitura mais profunda daquela realidade, uma leitura
mais ética e política daquela realidade. Mas, na atenção primária, não tem como
negar isso, não tem como negar. Ele nega, muitas vezes. Mas, assim, qualquer
profissional ele vai ter que fazer essa leitura da realidade, pra entender em que
contexto aquelas pessoas estão. E entender os processos de saúde que são instalados
ali e os processos de cuidado também. Então, é um dilema que está na formação da
psicologia, ela não traz isso. [...] Então um profissional, na atenção primária, ele vai
ter que fazer essa leitura, porque daquela leitura, que vai surgir a estratégia de
cuidado dele. Porque ele pode ir pra lá sem fazer essa leitura e continuar fazendo a
mesma prática que ele faz não enxergando essa realidade. E entender essas
realidades e fazer essa leitura mais crítica não só na comunidade, nos processos
saúde/doença da comunidade. Mas no serviço também, que ali como existe relação
de opressão e não é do nada que a relação da atenção primária é dessa forma.
198
As estratégias de interlocução com a realidade das políticas públicas, já na graduação
em psicologia, já demarca um novo universo de possibilidades formativas, que vem se
desenvolvendo nos cursos de graduação recentemente. Como aponta Ferreira Neto (2011),
vivemos um momento importante de ampliação da participação da psicologia nas políticas
públicas de saúde e isso nos convoca para um repensar da psicologia como ciência e
profissão, que já se expressa na reformulação de diretrizes curriculares dos cursos de
graduação e pós-graduação em psicologia. É preciso então, apostar em espaços de formação
capazes de inaugurar novas relações entre as teorias psicológicas e a realidade dos serviços.
Por vezes, rigor teórico é tomado como adequação entre a prática e os conceitos de
autores consagrados, com uma preocupação mais dogmática que inventiva.
Devemos ter em mente que as teorias surgem como resposta a problemas locais e
concretos. Por isso, o que nos leva à permanente leitura dos clássicos não deve ser o
apego à ortodoxia, mas o acompanhamento do movimento intelectual que estes
fizeram no enfrentamento dos problemas de sua época, tomando esse como ponto de
partida para construirmos nossos próprios movimentos, face aos problemas de nosso
próprio tempo.(FERREIRA NETO, 2011, p. 45).
Em nosso estudo, os psicólogos reconhecem o avanço das iniciativas dos estágios e
projetos de formação voltados para a APS do SUS, como um caminho de superação dos
problemas vividos em suas experiências. Muitos fizeram referencias positivas às iniciativas
também de articulação das RMSF com os alunos em estágios na APS. No entanto, a ausência
de um contato com os dilemas cotidianos da APS e o distanciamento quanto às políticas
públicas fora apresentado como um obstáculo ainda a ser superado por alguns participantes.
O principal obstáculo que eu percebo é o aspecto da formação, no sentido mesmo de
você formar pro trabalho nas políticas públicas, que é um outro tipo de público, um
outro tipo de relação institucional, diferente da relação nos diversos espaços
privados. Então, eu acho que talvez o grande empecilho seja esse.
(outro participante)
Então, assim, a gente se aprofundar no SUS, no que é o SUS, no que é esse Sistema
Único de Saúde, que a gente tanto fala e a gente tem observado. [...] Então, assim,
eu acho que esse aprofundamento do que é o SUS, da discussão de processo saúde-
doença, começa aí. Começa aí. E aí, a gente vai e eu acho importante assim ir se
estendendo pra esse conceito do que é uma atenção primária, das especificidades da
atenção primária, qual é a proposta. Então, se aprofundar nessa questão. E que eu
acho que é um dos meus maiores desafios que são, assim, as estratégias mesmo da
atuação na atenção primária.
Podemos, pelo já discutido aqui, entender a APS como um espaço relativamente
novo de inserção da psicologia e outras profissões da saúde no SUS. As políticas de
ampliação da APS, especialmente configuradas no NASF e RMSF, expressam no cotidiano
das práticas um contexto ainda muito aberto em possibilidades de variação no repertório de
199
práticas, em que a experimentação coloca frequentemente o profissional em contato com
experiências profissionais de estranhamento e ineditismo nas ações. A APS é, assim, um
campo também aberto às práticas de formação, em que a psicologia defronta-se com sua
trajetória histórica ainda recente nas políticas públicas de saúde no Brasil.
Um campo muito novo, porque você tem, por exemplo, a psicologia hospitalar, ela
já tem uma estrada. E a saúde mental, ela tem uma estrada. E se a gente for pensar
assim, na atenção primária, embora a gente tenha um tempo já de discussão em cima
disso, mas eu acho que, no campo das práticas isso é muito recente, é muito novo.
Então, eu acho que o maior desafio é, nesse campo, nessa construção das práticas, na
construção das estratégias. Então, assim, da formação dar subsídios na compreensão
do estudante, na interdisciplinaridade, que a gente tem que trabalhar isso, desde a
graduação, porque se ele for só depois fazer isso, é muito complicado.
A formação para atuar na APS dever ser capaz de contribuir para superar modelos
tradicionais de atuação. Na presente pesquisa, em síntese, essa superação de modelos
representa a crítica ao modelo privatista e biomédico buscando, dentre um conjunto amplo de
questões, superar o elitismo da psicologia e em seu distanciamento frente à estruturação de
políticas e lutas sociais em torno das necessidades de saúde da população brasileira. Essa
superação de modelos, aqui, significa a ampliação da capacidade de integrar dimensões
clínicas, sociais e ético-políticas nas práticas psicológicas, como resultado de uma atuação,
contextualizada nos territórios da ESF.
Pra concluir a apresentação e discussão dos resultados, abrindo espaço para as
considerações finais, é preciso esclarecer uma questão importante, que diz respeito ao modo
como a ESF é representada depreciativamente pelos psicólogos participantes do presente
estudo. Ademais da potencialidade e riqueza da experiência vivida pelos participantes na APS
do SUS, de revelar processos instigantes de construção de práticas de saúde relevantes para a
formação e construção da identidade profissional de psicólogos, em nossa análise, somos
levamos a tecer uma interpretação em que a ESF, constitui-se majoritariamente na percepção
de muitos participantes e na nossa, como um campo marcado pela precarização das relações
de trabalho, pelas dificuldades e limitações no processo de trabalho. Assim podemos dizer que
a ESF tem representado um espaço “sem futuro” na trajetória profissional dos participantes.
Revelando um lado mais problemático e preocupante do campo, nossa análise das entrevistas
e das trajetórias dos participantes, revela uma ESF percebida como um espaço de práticas
profissionais pouco prestigiadas e desinteressantes do ponto de vista de se construir uma
trajetória valorizada.
200
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se apresentou aqui é uma análise pertinente a fragmentos de história vividos
por psicólogos nos municípios cearenses de Fortaleza e Sobral. A partir da experiência
analisada aqui, no entanto, julgamos relevantes as questões trazidas para pensar as práticas
profissionais da Psicologia na APS do SUS, o que permite também a outras categorias
profissionais a problematização das práticas de saúde no contexto de expansão da ESF,
especialmente com os NASF e RMSF. Assim, buscamos contribuir para sistematizar uma
interpretação pertinente ao que foi vivido pelos participantes, no que diz respeito à
experiência de inserção da psicologia num contexto de práticas relativamente novo do SUS. A
intenção é contribuir para ampliar entendimentos sobre as práticas psicológicas, sobre a ESF e
sobre os desafios colocados pelas políticas públicas às profissões em saúde.
A ESF compreendida como campo social, expressa uma realidade marcada por
posições objetivamente estruturadas e encarnadas em relações de poder, onde a biomedicina
impõe clara hegemonia na estruturação das práticas. Esse mundo social, que tem se aberto
recentemente para a inserção de novos profissionais, onde o psicólogo está incluso, constitui-
se como arena de lutas políticas e ideológicas, que permeiam o desenvolvimento das práticas
de saúde. Práticas estas que, pretensamente, voltam-se para a resolução da maioria dos
problemas de saúde da população, dentro de um SUS precariamente estruturado em torno de
princípios e diretrizes ainda distantes da realidade cotidiana dos serviços públicos de saúde.
Nossa abordagem sociológica da prática psicológica revelou um conjunto de fatores
sociais influentes na produção das ações profissionais e que configuram possibilidades e
limites para a inserção dos psicólogos nos serviços públicos de saúde. Entendemos que,
embora sejam necessárias apostas cotidianas na ação relacional de profissionais e usuários, no
nível local, é preciso reconhecer também condicionantes estruturais como limitantes e como
formadores de um agir na escassez, que vem se constituindo na APS. Assim, a constituição
social da prática profissional do psicólogo é marcada pelo contexto relacional do campo da
ESF. Esse contexto relacional, ensejado principalmente pela política do NASF, estrutura-se
cotidianamente nas trocas interprofissionais e comunitárias, o que coloca aos psicólogos
desafios socioculturais importantes e que tem implicações para a formação profissional. Tais
desafios socioculturais são representativos da relação entre psicologia e sociedade, mais
especificamente, no modo como a profissão busca dar respostas bem fundamentadas frente às
necessidades de saúde do usuário do SUS. Entra em jogo aí, a habilidade do profissional em
trabalhar o vínculo com os outros agentes, trabalhadores e usuários, tendo em vista uma ação
201
efetiva na resolução dos problemas de saúde. Nesse espaço de trocas, um dos aspectos mais
importantes do trabalho em equipe, uma de suas consequências mais nobres, no nosso
entendimento, é a construção do conhecimento compartilhado entre os agentes. Em nossos
resultados, foram bastante significativos os diálogos e reflexões desenvolvidos nas
cooperações intra e interequipes multiprofissionais e das relações com os usuários, grupos,
instituições e comunidades. Para além do fato de que a ESF constitui-se atualmente como um
espaço social marcado pela hegemonia do modelo biomédico e pela concorrência e
distribuição desigual de poder, pudemos discutir também, além de desafios, alguns aspectos
atrativos desse campo social. Destacamos como relevantes algumas características da ESF,
que evidenciam as potencialidades na construção de práticas desse campo de atuação
profissional. Nesse aspecto, os diálogos e cooperações foram vetores importantes na
construção e aprimoramento ético-político e técnico das práticas psicológicas.
As práticas profissionais da psicologia na ESF são bastante influenciadas pela forma
como o território-comunidade é vivido pelos agentes inseridos na relação entre o CSF e as
comunidades, famílias e indivíduos. Destaca-se, aqui, o desafio de uma aproximação
necessária do psicólogo com as diferentes classes e grupos sociais do território, como modo
de exercitar a compreensão e construir uma ação efetiva frente às necessidades de saúde. Tal
aproximação é reveladora de uma teia complexa de vetores participantes dos problemas de
saúde que se apresentam como demanda para a prática psicológica. Dentre as questões e
debates sobre a prática psicológica na ESF, reativa-se a discussão sobre o distanciamento
histórico da psicologia, frente às classes subalternas (BOCK, 2008; GÓIS, 2003; MARTÍN-
BARÓ, 1998; YAMAMOTO, 2008).
A rede intersetorial de serviços implica diretamente nos limites e alcances da prática
psicológica na APS do SUS, evidenciando elementos estruturais importantes na configuração
das práticas. Em nosso caso, para os psicólogos, torna-se preocupante a ineficiência dos
serviços da ESF e redes correlacionadas frente às enormes dificuldades sociais vividas seus
usuários. É especialmente tocante o contexto de miséria e pobreza, que impõe grandes tensões
no cotidiano, implicando em enormes demandas de sofrimento e adoecimento. Os desafios
para a promoção da saúde são enormes. Mesmo diante desses desafios, despertamos nossa
atenção para as possibilidades de atuação intersetoriais e interdisciplinares, nascidas a partir
de diálogos entre profissionais, serviços de saúde, instituições e grupos dos territórios. Essas
práticas foram importantes para a experiência investigada aqui, ampliando os olhares dos
profissionais para o processo saúde-doença-cuidado. Esse lidar cotidiano com os complexos
202
problemas sociais da população é parte importante do desafio ético-político de inserção da
psicologia na APS do SUS.
Dentro de um campo marcado pela forte pressão social, imposta pelo sofrimento de
usuários e profissionais de saúde insatisfeitos e pela enorme demanda de trabalho, a prática do
psicólogo configura-se dentro da perspectiva de um fazer generalista. Esse generalismo
concorre com a necessidade de lutar por espaços e poder dentro da ESF, que remete a
delimitação de espaços específicos para a prática psicológica nos CSF – necessários à
profissionalização (BOSI, 1996; MACHADO, 1995; PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003). É
nesse contexto, de uma necessária variação e delimitação das práticas frente aos problemas de
saúde dos usuários e comunidades, que muitas lutas simbólicas desenvolvem-se em torno da
definição legítima da psicologia e das práticas profissionais na ESF.
Destacamos, assim, a importância de reconhecer a dimensão simbólica das lutas
socioprofissionais, em que ficou evidente uma complexa teia relacional marcada por relações
ambivalentes e antagônicas, resultantes da mescla entre cooperação e disputa profissionais.
Desse modo, as lutas simbólicas da Psicologia pela autonomia profissional, no presente
estudo, revelaram a necessidade de uma postura ativa dos psicólogos na reconstrução de sua
identidade profissional. Numa trama relacional e política ligada à construção social das
demandas psicológicas, os participantes precisaram de habilidade de negociação e barganha
frente a todo um processo de produção imaginária de demandas (FRANCO; MERHY, 2005),
que vem historicamente reproduzindo uma identidade de psicólogo, a partir do modelo de
referencia da clínica individual privatista. Assim, é parte da agenda política da profissão,
visando aprimorar sua inserção na ESF, a tradução e transformação das demandas voltadas
para a Psicologia, o que inclui o acolhimento e a legitimação de novas práticas psicológicas,
capazes de reconstruir o imaginário social da profissão.
A conquista de novos espaços de prática para a Psicologia na ESF, como
entendemos, deve ser buscada não na negação da enorme demanda clínica existente.
Entendemos que essa alternativa é perversa e fere os direitos sociais à saúde. A busca pela
autonomia profissional dos psicólogos, em nosso entendimento, decorrerá da ampliação do
olhar dos diversos agentes envolvidos na busca por reconhecer as necessidades de saúde
imbricadas nesse clamor pela prática da clínica psicológica na ESF. Nesse processo, pudemos
ver que novos sentidos das práticas psicológicas começam a ser percebidos como legítimos e
relevantes dentro de escopo de práticas do CSF. Essa ampliação do escopo de práticas
psicológicas legitimadas no contexto da ESF já revela um importante passo na reconstrução
203
da Psicologia no SUS. Tal passo pode não significar, pra nós, a exclusão da psicoterapia como
um recurso pertinente à rede de serviços ligada à ESF.
Nossa reflexão sobre a construção social da prática psicológica revelou uma ESF que
se encontra diante de um contraditório movimento de expansão e precarização. Por um lado,
cresce e amplia a participação de outros profissionais de saúde nos serviços. Por outro, as
condições precarizadas de trabalho restringem a produção das práticas de saúde, constituindo
serviços marcados pela seletividade. Em nosso estudo, esses processos foram analisados e
discutidos dentro da perspectiva da busca de alternativas fortalecedoras das práticas
psicológicas. Em nosso caso, ficou patente a necessidade de reformulações micro e
macropolíticas, que ampliem o acesso aos serviços psicológicos e melhorem as condições de
trabalho dos profissionais do NASF.
A reflexão sobre a especificidade das práticas psicológicas mostrou um amplo de
leque de alternativas de ação da profissão no contexto estudado, revelando um diferencial
frente às outras profissões, especialmente contribuindo para a constituição de um contraponto
à hegemonia do modelo biomédico centrado nas dimensões orgânicas do processo saúde-
doença. O olhar voltado para a subjetividade, a capacidade de mediar processos relacionais, a
habilidade de escuta e de intervir terapeuticamente ou visando o desenvolvimento humano e
sociocomunitário, a facilidade de intervir em processos grupais são algumas das marcas de
um habitus historicamente construído pela profissão e que, em contato com o campo da ESF,
encontra condições de atualização em várias circunstâncias criadas na produção do cuidado. A
psicologia é bastante valorizada no espaço social dos CSF, especialmente pelo
reconhecimento que historicamente conquistou no âmbito das práticas clínicas. Lidar com
essa herança clínica, portanto, é parte sua caminhada de reconstrução identitária, de luta por
um reconhecimento mais amplo.
A inserção das práticas psicológicas na ESF, portanto, revela alguns dos desafios da
profissão no Brasil que, ampliando seu contato com os problemas de saúde da população, vê-
se em processo de transformação. Nesse aspecto, em nosso caso, a experiência de trabalho na
ESF foi bastante importante na trajetória dos psicólogos, fortalecendo-lhes a identidade
profissional e instaurando modificações em seus habitus profissionais. O processo de
socialização profissional vivido na ESF agregou novas habilidades e competências aos
psicólogos, que passaram a incorporar novos modos de escuta e princípios de visão,
importantes para um profissional que historicamente lida com as dimensões subjetivas do
processo saúde-doença-cuidado. Ademais das enormes dificuldades e repulsivas condições de
trabalho, que fazem da APS do SUS um espaço pouco atrativo, os participantes da pesquisa
204
relataram mudanças importantes em suas trajetórias de construção de identidade profissionais,
aprendendo a ser mais resolutivos, mais seguros, “desenrolados” e maduros frente aos
problemas de saúde e aos objetos específicos das práticas psicológicas. A relação entre campo
social da ESF e o habitus psicológico, revelou grandes potencialidades de construção da
identidade profissional, ensejados pelos programas de RMSF, a partir da reflexão sobre as
práticas na busca de uma adequada postura ética frente aos desafios colocados no cotidiano
dos serviços. Percebemos que o trabalho na APS do SUS, em toda sua complexidade social, é
bastante rico para o desenvolvimento das práticas psicológicas, permitindo aprimoramentos
técnicos e éticos políticos. No entanto, as condições atuais de trabalho na ESF, apresentaram-
se bastante restritivas ao desenvolvimento profissional dos psicólogos.
Na presente pesquisa, o CSF é concebido como um espaço de socialização que
coloca em destaque a relação entre disposições incorporadas no habitus dos agentes e as
novas exigências da APS, como política prioritária do SUS e que convida a psicologia a se
reelaborar para fortalecer sua identidade e autonomia profissional. Nesse contexto, a
socialização profissional ensejada pela ESF não se reduz à causalidade do passado sobre o
presente, onde o agente apenas seria reprodutor das regras vigentes nos campos dos quais é
oriundo, essa causalidade é apenas probabilística (FREITAS, 2006; LAHIRE, 2003) já que o
agente é atravessado por diversos outros espaços de socialização e pertenças. Cabe, nesse
momento, portanto, um repensar da psicologia e dos psicólogos brasileiros, não somente no
nível de seus referenciais teóricos e metodológicos, mas, sobretudo, de seus posicionamentos
éticos e políticos frente aos desafios micro e macrossociais colocados no cotidiano das
políticas e serviços públicos de saúde.
Desse modo, à guisa de conclusão, consideramos ser importante o reconhecimento
dos processos sociais implicados na construção da prática psicológica, subsidiando novos
reposicionamentos estratégicos da profissão, visando a reconstrução de uma identidade
profissional pertinente ao contexto de lutas do campo da ESF. Essa luta, em nosso
entendimento, deve ser estrategicamente orientada para a transformação das instituições
representativas da profissão, na perspectiva de uma maior apropriação das questões e desafios
da construção do SUS e, principalmente, para o fortalecimento de políticas de formação de
novos habitus profissionais, pautadas na reflexividade e compromisso com a emancipação
social.
205
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214
APÊNDICE A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
Sou aluno do curso de Doutorado em Saúde Coletiva, realizado pela Universidade
Federal do Ceará em parceria com a Universidade Estadual do Ceará e Universidade de
Fortaleza e estou desenvolvendo a pesquisa intitulada “A Inserção do Psicólogo na Atenção
Primária à Saúde do SUS: práxis cotidiana e a interface entre Psicologia e Saúde
Coletiva”, sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo José Soares Pontes. O objetivo geral da
presente pesquisa é interpretar interfaces Psicologia-Saúde Coletiva (Saúde Coletiva-
Psicologia), partindo da compreensão do cotidiano de práticas psicológicas na atenção
primária à saúde do SUS.
Para o alcance do objetivo acima descrito serão utilizadas entrevistas individuais e
grupais. Dessa forma convido você a participar dessa pesquisa. Gostaria de acrescentar que
você não terá nenhum prejuízo profissional nem pessoal, visto que as informações coletadas
serão utilizadas apenas para a realização da pesquisa. Seu nome será preservado caso haja
publicação ou apresentação do estudo. Você tem a liberdade de retirar sua autorização ou
consentimento a qualquer momento, sem que isto lhe traga prejuízo algum. Caso precise
entrar em contato com o pesquisador responsável, utilize o telefone: (85) 92387728.
Sobral, ____ de _________________ de _________
__________________________________________
LÉO BARBOSA NEPOMUCENO
PESQUISADOR RESPONSÁVEL
ATENÇÃO! Para informar ocorrências irregulares ou danosas durante sua participação no estudo,
dirija-se ao:
Instituição Proponente: Universidade Federal do Ceará - Departamento de Saúde Comunitária - Pós-
Graduação em Saúde Coletiva. Rua Professor Costa Mendes, 1608. Bloco Didático. 5º andar. Rodolfo
Teófilo. Fortaleza, Ceará. Telefone: (85) 3366-8045
Comitê de Ética em Pesquisa que avalia o projeto: Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (SES/CE) –
Avenida Almirante Barroso, 600. Praia de Iracema. CEP: 60060-440. Telefone: (85) 3488-2137
215
Consentimento Pós-Esclarecimento
Tendo sido informado (a) sobre a pesquisa “A Inserção do Psicólogo na Atenção
Primária à Saúde do SUS: práxis cotidiana e a interface entre Psicologia e Saúde
Coletiva”, e depois de compreendido suas etapas, bem como objetivos, esclarecidas minhas
dúvidas, e estando ciente de meus direitos, DOU O MEU CONSENTIMENTO PARA
PARTICIPAR, SEM QUE PARA ISSO EU TENHA SIDO FORÇADO OU OBRIGADO.
Sobral,____de______________de______
Assinatura do voluntário(a) da pesquisa
Léo Barbosa Nepomuceno
(Responsável pela pesquisa)
(1ª via pesquisador; 2ª via participante)
216
APÊNDICE B – ROTEIRO DE ENTREVISTA I
Nome: Idade: Sexo: Ano de
Formatura:
Tempo de trabalho na APS: A partir de quais Programas ou serviços de
saúde:
Cargo(s) ocupado(s):
Local da Entrevista:
1- Sobre sua(s) experiência(s) de trabalho na APS do SUS, quais os âmbitos de prática
em que você atuou?
2- Pensando a ESF como campo de saberes e práticas, quais os âmbitos de atuação do
psicólogo?
3- No(s) seu(s) entendimento(s), o que caracteriza o trabalho dos psicólogos (as) na
APS?
4- Na APS, quais demandas ou necessidades sociais chegam ao psicólogo(a)? Quais
destas são melhor resolvidas pela prática psicológica?
(Ou: quais são destinadas à prática dos psicólogos?).
5- Quanto à forma ou tipos de atuação profissional e levando em consideração os outros
sujeitos envolvidos nas práticas, o que um(a) psicólogo(a) precisa fazer conseguir
reconhecimento e valorização no contexto da APS?
6- Existem obstáculos nesse caminho para o reconhecimento e valorização?
7- Na sua experiência, quais os dilemas ético-políticos vivenciados como psicólogo(a) na
APS do SUS?
8- No que diz respeito ao profissional que és e ao modo de atuar, o que o contato com a
APS significou na sua trajetória profissional?
217
APÊNDICE C – ROTEIRO DE ENTREVISTA II (MODIFICADO)
Nome: Idade: Sexo: Ano de
Formatura:
Tempo de trabalho na APS: A partir de quais Programas ou serviços de
saúde:
Cargo(s) ocupado(s):
Local da Entrevista:
1- Sobre sua(s) experiência(s) de trabalho na APS do SUS, quais os âmbitos de prática
em que você atuou?
2- A partir da sua experiência, pensando a ESF como campo de saberes e práticas, quais
os âmbitos de atuação do psicólogo?
3- No seu entendimento, o que caracteriza o trabalho dos psicólogos (as) na APS?
4- Na APS, quais demandas ou necessidades sociais chegam ao psicólogo(a)? Quais
destas são resolvidas pela prática psicológica?
5- O que um(a) psicólogo(a) precisa fazer para conseguir reconhecimento e valorização
no contexto da APS? (Existe uma forma ou tipos de atuação profissional mais
apropriada?).
6- Existem obstáculos nesse caminho para o reconhecimento e valorização?(Se sim,
quais?).
7- Na sua experiência, quais os dilemas ético-políticos vivenciados como psicólogo(a) na
APS do SUS?
8- No que diz respeito ao profissional que és e ao modo de atuar, o que o contato com a
APS significou na sua trajetória profissional?
218
APÊNDICE D – ROTEIRO DE ENTREVISTA COM DOCENTES
Nome: Idade: Sexo: Ano de
Formatura:
Tempo de trabalho na APS: A partir de quais Programas ou serviços de
saúde:
Cargo(s) ocupado(s):
Local da Entrevista:
1- Como é o trabalho que você realiza na APS do SUS?
2- No seu entendimento, quais os âmbitos ou espaços de atuação do psicólogo na APS?
3- Como deve ser a formação em Psicologia para a APS do SUS?
4- Quais os desafios ou obstáculos enfrentados na formação em Psicologia para a APS do
SUS?
5- Pensando as relações entre as profissões envolvidas na APS do SUS (um CSF por
exemplo), você percebe a existência de hierarquias no trabalho desenvolvido? Como a
Psicologia se posiciona nessas relações? (Qual o diferencial dessa profissão?).
6- O que um(a) psicólogo(a) precisa fazer para conseguir reconhecimento e valorização
no contexto da APS?
7- Dentro de sua trajetória profissional, o que significa o trabalho voltado para a APS do
SUS?