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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA LÉO BARBOSA NEPOMUCENO A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA PRÁTICA PSICOLÓGICA NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE DO SUS FORTALEZA 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA

DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA

LÉO BARBOSA NEPOMUCENO

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA PRÁTICA PSICOLÓGICA NA ATENÇÃO

PRIMÁRIA À SAÚDE DO SUS

FORTALEZA

2014

8

LÉO BARBOSA NEPOMUCENO

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA PRÁTICA PSICOLÓGICA NA ATENÇÃO

PRIMÁRIA À SAÚDE DO SUS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Saúde Coletiva,

Doutorado em Saúde Coletiva da Universidade

Federal do Ceará, Universidade Estadual do

Ceará e Universidade de Fortaleza, como

requisito parcial para obtenção do Título de

Doutor em Saúde Coletiva. Área de

Concentração: Políticas, Gestão e Avaliação

em Saúde.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo José Soares

Pontes.

FORTALEZA

2014

9

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências da Saúde

N362c Nepomuceno, Léo Barbosa. A construção social da prática psicológica na atenção primária à saúde do SUS. / Léo Barbosa

Nepomuceno. – 2014. 221 f. : il. color., enc. ; 30 cm. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Universidade Estadual do Ceará,

Universidade de Fortaleza, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Doutorado em Saúde Coletiva, Fortaleza, 2014.

Área de Concentração: Políticas, Gestão e Avaliação em Saúde. Orientação: Prof. Dr. Ricardo José Soares Pontes. 1. Saúde Pública. 2. Estratégia Saúde da Família. 3. Atenção Primária à Saúde. I. Título.

CDD 362.1

10

LÉO BARBOSA NEPOMUCENO

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA PRÁTICA PSICOLÓGICA NA ATENÇÃO

PRIMÁRIA À SAÚDE DO SUS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Saúde Coletiva,

Doutorado em Saúde Coletiva da Universidade

Federal do Ceará, Universidade Estadual do

Ceará e Universidade de Fortaleza, como

requisito parcial para obtenção do Título de

Doutor em Saúde Coletiva. Área de

Concentração: Políticas, Gestão e Avaliação

em Saúde.

Aprovada em 25/08/2014

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________

Prof.Dr. Ricardo José Soares Pontes (Orientador)

Universidade Federal do Ceará – UFC

_________________________________________________

Profª.Drª.Márcia Maria Tavares Machado

Universidade Federal do Ceará - UFC

_________________________________________________

Profª.Drª.Maria Lúcia Magalhães Bosi

Universidade Federal do Ceará - UFC

__________________________________________________

Profª.Drª. Maria Vaudelice Mota

Universidade Federal do Ceará - UFC

__________________________________________________

Prof.Dr.Aluísio Ferreira Lima

Universidade Federal do Ceará - UFC

11

Aos psicólogos inseridos nos serviços de atenção à saúde no SUS.

12

AGRADECIMENTOS

À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP)

pelo apoio financeiro durante o doutorado.

À Polyana, meu amor, pela paciência e incentivo em toda minha trajetória.

Ao Cauê, meu lindo filho, por encher de alegria e responsabilidade minha existência.

À minha família, por sempre me acolher e estimular a ser mais e melhor.

À Bárbara, amada irmã, pela parceria acadêmica e existencial tão importante para meu

caminhar de formação humana.

Aos amigos Alex e Ana Helena pelas sempre instigantes conversas sobre as teorias e práticas

acadêmicas.

Ao Ricardo Pontes pela oportunidade de cursar o Doutorado e confiança dedicada durante a

orientação do presente trabalho.

13

RESUMO

A inserção da Psicologia na Estratégia Saúde da Família (ESF) é representativa da ampliação

dos serviços de Atenção Primária à Saúde (APS), no Sistema Único de Saúde do Brasil

(SUS), significando a expansão das práticas psicológicas na sociedade brasileira, através das

políticas públicas de saúde. Na APS, a psicologia engaja-se num complexo processo social de

construção das práticas profissionais, marcado por lutas por reconhecimento e autonomia

profissional. Dentro desse contexto, o presente trabalho objetiva interpretar sentidos das

práticas profissionais da Psicologia no contexto da APS do SUS, a partir da visão de

psicólogos com experiências de atuação no campo. Como objetivos específicos, busca: 1)

Descrever o campo de práticas profissionais da APS e o lugar ocupado pelos psicólogos nele;

2) Analisar a construção social das demandas pra prática psicológicas na APS; 3)

Compreender o modo distinto como a Psicologia intervém profissionalmente; e 4) Analisar o

significado histórico da inserção da Psicologia na APS. O trabalho tem como referencial

teórico a sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu, especialmente nos conceitos de campo

social, habitus e poder simbólico. Como parte também das referencias teóricas utilizadas,

discute as categorias autonomia e identidade profissionais, bem como pauta-se na proposição

hermenêutica de Paul Ricoeur para a construção de um estudo de cunho interpretativo.

Constitui-se de pesquisa com enfoque qualitativo, baseada em entrevistas semi-estruturadas

junto a 18 psicólogos com experiência na atenção e formação voltada para a ESF. O material

empírico construído foi codificado e categorizado com auxílio do software Atlas TI, dando

origem a 22 unidades de significação, que subsidiaram a análise e discussão. Os resultados

revelam que a ESF é marcada por divisões desiguais de poder e hegemonia da Medicina na

organização e classificação das práticas profissionais. A ESF é percebida como espaço

contraditório onde algumas prerrogativas de interdisciplinaridade, intersetorialidade e

territorialização convivem com a prevalência de um modelo técnico-assistencial biologizante

e focado em doenças. A psicologia é reconhecida como uma profissão voltada para a

compreensão dos processos subjetivos, afetivos e relacionais implicados no processo saúde-

doença-cuidado. A construção social das demandas para a psicologia é bastante influenciada

pela identidade hegemônica da profissão ligada à prática da clínica liberal. Nesse contexto, a

clínica psicológica é objeto de intensas lutas simbólicas em torno da legitimação da prática da

Psicologia na ESF. A experiência de trabalho na APS do SUS é percebida como marcante

para a construção da identidade profissional dos psicólogos participantes da pesquisa, sendo

reconhecida como impulsionadora de modificações nas disposições para agir e pensar

profissionalmente. Ademais das potencialidades práticas, a ESF é percebida como um espaço

de precárias condições de trabalho, revelando importantes desafios para o avanço das práticas

psicológicas no contexto estudado.

Palavras-Chave: Psicologia; Profissionalização; Cuidados Primários de Saúde; Estratégia

Saúde da Família; Sistema Único de Saúde do Brasil

14

ABSTRACT

The insertion of Psychology in the Family Health Strategy (ESF) is representative of the

expansion of Primary Health Care (APS) services, in the Brazilian National Health System

(SUS), meaning the expansion of psychological practices in brazilian society, through public

health policies. In APS, psychology engages in a complex social process of building

professional practices, marked by struggles for recognition and professional autonomy.

Within this context, this work aims to interpret meanings of professional practice of

psychology in the context of APS of the SUS, from the perspective of psychologists with

experience in the field of acting. Specific aims were to search: 1) Describe the field of

professional practices of APS and the place occupied by psychologists in this field; 2)

Examine the social construction of demands for psychological practice in the APS; 3)

Understand how the distinguished psychology intervenes professionally; and 4) Analyze the

historical significance of the insertion of the Psychology in the APS. The paper has like

theoretical framework the reflexive sociology of Pierre Bourdieu, especially the concepts of

social field, habitus and symbolic power. But also part of the theoretical references used,

discusses the categories autonomy and professional identity, and is guided in the

hermeneutics of Paul Ricoeur proposition for the construction of an interpretive study.

Constitutes research with qualitative approach, based on semi-structured interviews with 18

psychologists with expertise in focused attention and training for ESF. The empirical material

was coded and categorized constructed with the aid of Atlas TI software, giving rise to 22

units of meaning, which supported the analysis and discussion. The results reveal that the ESF

is marked by unequal divisions of power and hegemony of Medicine in the organization and

classification of professional practices. The ESF is perceived as contradictory space where

some prerogatives of interdisciplinary, intersectoral and territorial coexist with the prevalence

of a disease in biologizing and focused technical assistance model. Psychology is recognized

as a profession focused on understanding the implied subjective, affective and relational

processes in the health-illness care. The social construction of demands for psychology is

heavily influenced by the hegemonic identity linked to the practice of the profession of

clinical liberal. In this context, clinical psychology is the subject of intense symbolic struggle

over the legitimacy of the practice of psychology in the ESF. Work experience in the APS of

the SUS is perceived as remarkable for the construction of the professional identity of survey

participants psychologists and is recognized as a driving force for changes in dispositions to

act and think professionally. Besides the practical potential, the ESF is perceived as an area of

poor working conditions, revealing important challenges for the advancement of

psychological practices in the context studied.

Keywords: Psychology; Professionalization; Primary Health Care; Family Health Strategy;

Brazilian National Health System.

15

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 17

1.1 Uma incursão reflexiva sobre a trajetória que subjaz a pesquisa 18

1.2 Objetivos da pesquisa e organização do texto 26

2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA 27

2.1 A Construção do SUS e da Saúde Coletiva 27

2.2 Estratégia Saúde da Família: priorização da atenção primária à saúde no SUS. 32

2.3 A Psicologia nas políticas públicas de saúde 38

2.3.1 Psicologia na Atenção Primária à Saúde do SUS 43

2.4 Apontamentos sobre os sentidos históricos das práticas psicológicas no Brasil 46

3 REFERÊNCIAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS 52

3.1 A sociologia reflexiva de Bourdieu 53

3.2 Entre objetivismo e subjetivismo 54

3.3 Campo social 58

3.4 Habitus 62

3.5 Poder simbólico 65

3.6 Autonomia e identidade profissionais 67

3.7 Hermenêutica de Ricoeur 76

3.8 Apropriações 79

4 METODOLOGIA 85

4.1 Sobre a epistemologia da pesquisa 85

4.2 Delimitação do campo de estudo, participantes e construção das informações 91

4.3 A análise do material empírico produzido 96

5 A ESF DOS PSICÓLOGOS 101

16

5.1 Visões do campo: características, prerrogativas e divisão do poder 101

5.2 Lugar da Psicologia e âmbitos das práticas psicológicas 119

6 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA DEMANDA PARA A PSICOLOGIA 133

6.1 Necessidade de tradução e transformação das demandas 142

6.2 Demandas para a clínica nos Centros de Saúde da Família 148

6.3 Mais psicólogos? 161

7 ESPECIFICIDADES DAS PRÁTICAS PSICOLÓGICAS 164

7.1 Especificidade da Psicologia 164

7.2 Lutas pelo reconhecimento 175

8 IMPLICAÇÕES PARA A IDENTIDADE PROFISSIONAL: INTERFLUÊNCIAS

ENTRE CAMPO E HABITUS 186

8.1 Significados da experiência e algumas reflexões sobre a profissão 186

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS 200

10 REFERÊNCIAS 205

APÊNDICES 213

ANEXOS 219

17

1 INTRODUÇÃO

Eu sempre guardei nas palavras os meus desconcertos.

Invento pra me conhecer.

(Manoel de Barros – Menino do mato)

A presente tese de doutorado discute o processo de inserção da psicologia no

contexto da atenção primária à saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS). A inserção de

psicólogos nos serviços públicos de saúde expressa um processo social plural, marcado por

encontros e circunstâncias onde as práticas profissionais se desenvolvem. Como parte de uma

formação realizada num Doutorado em Saúde Coletiva, o presente trabalho representa um

movimento de busca por compreender processos sociais que atravessam a construção de

práticas psicológicas no campo da saúde. Partindo da percepção de profissionais, que viveram

trajetórias de trabalho na atenção à saúde e formação para a Estratégia Saúde da Família

(ESF), busco aqui alcançar um entendimento mais qualificado sobre a constituição social das

práticas psicológicas, no contexto desse campo de práticas em expansão nas políticas públicas

de saúde no Brasil.

Desse modo, o objeto de reflexão da presente tese é a construção social da prática

profissional da psicologia na APS do SUS. Entendendo que a ESF, tomada sob a perspectiva

da APS do SUS, apresenta-se como espaço social, onde se desenvolvem tramas relacionais e

lutas por reconhecimento e poder, que envolvem as diversas categorias de profissionais e

trabalhadores. A partir desse entendimento, foram discutidas questões sociais que perpassam a

tessitura do fazer profissional da psicologia. O processo de construção desse trabalho é,

sobremaneira, marcado pela experiência que tive, no campo estudado. Minha experiência na

ESF facilitou a construção da pesquisa, pela familiaridade com algumas questões e temas,

mas implicou no enfrentamento de grandes desafios, especialmente no que diz respeito à

necessidade estranhar e desnaturalizar uma realidade social vivida com certa cumplicidade e

envolvimento, que precisaram ser problematizados para que a análise e interpretação

propostas pudessem se desenvolver.

Fruto de um programa de estudos construído dinamicamente ao longo de uma

formação escolar e acadêmica, a presente tese de doutorado expressa a articulação de diversos

elementos de história de vida e trabalho. O doutorado é parte marcante de um processo mais

amplo de formação que, dentre os seus elementos, tem se fortalecido através da autoanálise

permanente da experiência vivida, pela reivindicação de uma postura reflexiva capaz de

elucidar a imbricação de questões éticas e epistemológicas na produção do conhecimento. A

presente tese é produto de pesquisa cuja relação com o objeto de investigação fora sendo

18

construída antes mesmo da chegada ao Programa de Doutorado em Saúde Coletiva, em 2010.

Nessa trajetória de formação, me inseri em espaços sociais diversos, que marcaram a

constituição de minha identidade profissional, implicando-me na construção de práticas de

saúde articuladas com questões sociais, éticas e políticas. Assim, me formei psicólogo,

trabalhador e docente no campo da saúde, numa processo biográfico, que deu origem e

conformou o percurso de construção da presente pesquisa.

O estudo foi pautado na noção, fomentada por Pierre Bourdieu (2012; 2011), de que

a prática científica deve ter na reflexividade um componente metodológico fundamental.

Assim, a partir do exercício reflexivo permanente, a produção de conhecimentos passa a ser

percebida como permeada por processos e relações sociais, onde a construção dos objetos

científicos é sempre relacionada ao conjunto de experiências e trajetória do pesquisador no

campo científico, a questões do próprio campo e com outros pertencimentos e fatores sociais

externos. Tomar a reflexividade como elemento metodológico, remete à necessidade de se

colocar em análise a posição, posicionamentos, interesses e pontos de vista adotados numa

investigação. Dentro dessa perspectiva, o pesquisador torna a reflexividade uma disposição

constitutiva, uma postura voltada para um agir sensível aos determinismos sociais e

históricos, controlando-os para qualificar a pesquisa. Esse exercício reflexivo

operacionalizou-se, aqui, no destaque que faço a algumas experiências vividas em minha

trajetória acadêmico-profissional, articulando questões pertinentes aos espaços sociais que

participei e produções científicas atreladas. Esse exercício reflexivo é importante para a

exposição e problematização de minha relação com o objeto de pesquisa, bem como para

delimitar questões que mobilizaram o presente estudo.

1.1 Uma incursão reflexiva sobre a trajetória que subjaz a pesquisa

Como dito, a presente investigação se desenvolveu influenciada por um conjunto de

experiências de formação e atuação. Dentre elas destacarei algumas que julgo terem sido

mais decisivas para a constituição do presente texto. Quando estudante de graduação em

psicologia destaco, como relevante, minha participação no Núcleo de Psicologia Comunitária

(NUCOM) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Formação em Psicologia e

Psicoterapia Fenomenológico-Existencial, ambas em Fortaleza. Quando graduado psicólogo,

é relevante o papel de minhas experiências no programa de Residência Multiprofissional em

Saúde da Família (RMSF) em Sobral e na pós-graduação em Psicologia (Mestrado) e

doutorado (Saúde Coletiva) da UFC. Pertinente especialmente ao último ano de elaboração

19

da pesquisa, destacarei a repercussão de minha inserção recente no Instituto de Educação

Física e Esportes da UFC, para a conformação final de minhas análises. Julgo ser importante

compartilhar com o leitor um pouco de tais experiências, no intuito de expressar minha

interpretação sobre o processo de gestação e desenvolvimento da tese propriamente dita.

Nesse processo de reflexão, comentarei algumas de minhas produções anteriores no intuito de

fortalecer meu exercício de autoanálise das posições ocupadas dentro do campo científico.

No curso de Psicologia da UFC construí uma formação generalista com forte ênfase

na Psicologia Comunitária, mas também de base, apesar de menor envolvimento, na

Psicologia Clínica. Na primeira, tive um engajamento na extensão universitária e uma

formação teórica interdisciplinar agregando elementos de Psicologia Social Crítica,

Psicologia Histórico-Cultural, Pedagogia Freireana e Biodança. A experiência com a

Psicologia Clínica se deu no estágio na Clínica Escola da UFC e na Formação em Psicologia

e Psicoterapia Fenomenológico-Existencial, onde pude entrar em contato com os referenciais

teórico-conceituais e metodológicos da chamada vertente “humanista” em psicologia.

Como membro do NUCOM, participei de experiências de formação ricas para

iniciar minhas reflexões sobre o desenvolvimento teórico, prático e ético da Psicologia. A

experiência de “nuconiano” foi rica na busca por um conhecimento psicológico atrelado à

problematização da realidade social cearense e às práticas de transformação e emancipação

social. Estar no NUCOM facilitava minha aproximação com as questões sociais cearenses,

estimulava a busca por posicionamentos epistemológicos congruentes, bem como me

envolvia na elaboração de estratégias de atuação no desenvolvimento de comunidades.

Permanentemente, nos grupos de estudo e reuniões do NUCOM, estávamos a dialogar em

torno de alguns questionamentos: Como podemos atuar de forma a contribuir para o avanço

de projetos sociais visando a emancipação? Como a Psicologia pode contribuir no campo

social e político? Como nos relacionar com os moradores das comunidades num agir

cooperativo e não-tutelar? Esses desafios colocavam em cheque os saberes e práticas “psis”

vigentes e nos impulsionavam para buscar modelos explicativos e de atuação congruentes

com o contexto social da periferia de Fortaleza e com as perspectivas emancipatórias que, no

plano ético-político, defendíamos. Nesse período, me aproximei especialmente das

psicologias de base marxista, principalmente, a partir das ideias de Vygotsky e de Martín-

Baró. É destacável, também, nas aproximações teórico-metodológicas, a valorização do

método reflexivo-vivencial sistematizado pelo professor Cezar Wagner de L. Góis (2003;

2005; 2008). Entendo que a articulação entre exercício do diálogo, da problematização

coletiva e práticas corporais é uma estratégia potente de intervenção psicológica junto a

20

grupos, organizações e comunidade. Conhecer a psicologia comunitária e fazer parte dela foi

e é um aspecto importante na construção contínua de minha identidade profissional.

Passados 10 anos de minha graduação, penso que minha adesão à psicologia

comunitária fora intensa e isso influenciou de modo decisivo minhas experiências

profissionais posteriores, bem como minhas produções. Minha monografia de graduação

“Nordestinos e Nordestinados: elementos para uma reflexão psicossocial sobre

subdesenvolvimento no Brasil” expressa minhas inquietações sobre as relações entre

desenvolvimento socioeconômico e os processos de produção da pobreza e exclusão social

extrema em nossa região. O artigo “Elementos Psicossociais Para Compreender o Nordeste”

(NEPOMUCENO; PINHEIRO, 2010), fruto de reflexões posteriores a monografia, revela a

utilização do referencial da Psicologia Social de Martín-Baró (1998), bem como minha

propensão para fazer análises mais sociologizantes em diálogo com autores como Josué de

Castro e Paulo Freire. Minha aproximação com o referencial estruturalista ganhou bastante

impulso, nesse período, e serve de base, ainda hoje, para que reconheça a importante

influência das macroestruturas sociais econômicas e culturais sobre os fenômenos sociais e

psicológicos.

Após concluir minha graduação em Psicologia, fui morar em Sobral (CE), para

ingressar na RMSF, um programa de pós-graduação, pautado na formação em serviço para o

SUS. Neste processo de formação, vários profissionais da saúde (Odontologia, Psicologia,

Serviço Social, Fisioterapia, Enfermagem, Educação Física, Nutrição, Terapia Ocupacional,

Farmácia e Fonoaudiologia) se inserem nas atividades da Estratégia Saúde da Família (ESF)

do sistema municipal de saúde de Sobral. Durante dois anos, os residentes fazem do mundo

cotidiano do trabalho em saúde um grande cenário de aprendizagens. Participei da 5ª turma

de residentes, durante o período de maio de 2005 até março de 2007. Tal experiência, além de

firmar minha identidade profissional como trabalhador do campo saúde, deu continuidade ao

processo de problematização da realidade e busca por conhecer e transformar a realidade

social, colocando esse movimento no campo das políticas públicas de saúde. Meu interesse

pelo campo da formação em saúde se tornou grande, de forma que, posteriormente, retornei a

trabalhar na ESF, de junho de 2008 a fevereiro de 2010, no mesmo programa de RMSF,

dessa vez na condição de membro do corpo docente – abordarei adiante.

Na época de psicólogo-residente, me engajei com o trabalho na ESF e me inquietei

com diversos desafios para o avanço das ações desenvolvidas e propostas, principalmente,

questionando os impactos destas no atendimento das necessidades de saúde da população.

Nós, profissionais-residentes, desenvolvemos uma série de atividades de formação em serviço

21

dentro da ESF, as quais se estruturaram a partir de equipes multiprofissionais, que se

constituíram baseando-se no modelo dos Núcleos de Atenção Integral à Saúde da Família1

(NAISF), trabalhando nos territórios de saúde do município, junto aos outros profissionais

que compõem a ESF. Nestes Núcleos, foram desenvolvidos trabalhos em equipe

multiprofissional para dar suporte, ou apoio matricial, à prática sanitária num território amplo,

atuando junto a 9 (nove) ou 10 (dez) equipes mínimas de Saúde da Família (composta por

médico, enfermeiro, cirurgião-dentista, agente comunitário de saúde, auxiliar de enfermagem,

auxiliar de consultório dentário e de higiene dental). Naquele tempo, em Sobral estruturaram-

se 5 (cinco) NAISF, a partir da 5ª turma de RMSF. Minhas inquietações eram compartilhadas

com a equipe multiprofissional que participava, bem como com vários profissionais de saúde

e usuários dos serviços. Novamente, uma preocupação presente era a construção de um

trabalho psicológico que, agora em equipe, pudesse trazer contribuições significativas para a

resolução dos problemas sociais e de saúde, que se apresentavam cotidianamente. As

reformulações teóricas e práticas eram mobilizadoras para nós residentes. No caso dos

psicólogos-residentes, o que se colocava era o encontro entre a Psicologia, com sua

diversidade de correntes teórico-metodológicas concorrentes (as Psicologias), e os saberes e

práticas construídos no campo saúde, muito influenciados pelo campo interdisciplinar da

Saúde Coletiva.

Começavam já, naquele tempo, a delinearem-se questões pertinentes a esta pesquisa:

Como melhor dispor das novas categorias profissionais nas ações da ESF? Como lidar com a

imensa demanda social, que se expressa no cotidiano de Centros de Saúde da Família (CSF)?

Como nós psicólogos poderíamos contribuir para a melhoria da atenção à saúde na ESF?

Qual o diferencial da Psicologia na produção das práticas de atenção à saúde? Qual a

relevância social do fazer psicológico no campo das práticas multiprofissionais da ESF?

Minha monografia de conclusão de curso da RMSF, intitulada “Contribuições da

Psicologia para Intervenção Social na Estratégia de Saúde da Família do Sistema Único de

Saúde: reflexões sobre uma caminhada”, representa um período de transformações

identitárias muito ligadas aos ajustes e desajustes decorrentes de minha inserção na APS do

SUS. Vejo que a monografia, depois atualizada e publicada sob o título de “Psicólogos na

ESF: caminhos percorridos e desafios a superar” (NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011), é

parte de um movimento de reconstituição de minhas disposições para agir e pensar como

profissional, onde é representativo a transformação de um psicólogo (comunitário) em

1 Adiante abordarei o NAISF e também o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) como políticas de

ampliação da Atenção Primária à Saúde no SUS.

22

profissional da saúde, em trabalhador do SUS. A presente tese é uma clara retomada de

algumas questões já trabalhadas em minhas produções acadêmicas atreladas à RMSF.

No período de março de 2007 a maio de 2009, realizei o curso de Mestrado em

Psicologia na UFC. Depois de dois anos de intensa imersão no processo de residência, que me

fizeram (re)formular meu modo de pensar e agir, estava com muita vontade de “parar um

pouco”, sair da chamada “ponta” dos serviços de saúde e estudar. O mestrado representou um

período de relativo distanciamento crítico que tornara-se necessário após o intenso período de

imersão nos serviços de saúde do SUS. A dissertação que desenvolvi expressa essa nova etapa

de minha caminhada no campo saúde, trabalhando com temas pertinentes à interface da

Psicologia com a Saúde Coletiva, a saber: a participação comunitária e ESF. A dissertação

defendida se intitulou “Para Atuar Com a Comunidade: estudo sobre a relação entre

participação comunitária e Estratégia de Saúde da Família do SUS, no bairro Terrenos Novos

em Sobral, Ceará”. Tratou-se de uma pesquisa qualitativa que contribuiu para elucidar

nuances do processo de trabalho em saúde na ESF, bem como para analisar, a partir de um

referencial psicológico, a questão da participação comunitária no SUS (NEPOMUCENO,

2009). Novamente o referencial da psicologia comunitária fora bastante relevante para minhas

reflexões, especialmente na articulação com a psicologia da libertação e teoria da

complexidade (NEPOMUCENO et al., 2008), bem como nas discussões relacionadas à

participação comunitária (NEPOMUCENO; BRITO; GÓIS, 2009) e à participação social em

saúde (NEPOMUCENO et al., 2013). É notável, portanto, minha implicação com o

referencial da psicologia comunitária, o que influenciou direta e indiretamente a construção

do presente estudo, requerendo certo distanciamento durante momentos decisivos de

realização das análises e interpretações sobre a prática psicológica na APS do SUS.

Como dito anteriormente, retornei a Sobral (em junho de 2008) para novamente

trabalhar no programa de RMSF, agora atuando nas atividades de docência duas turmas

posteriores a minha. O trabalho realizado na docência da RMSF constituiu-se como impulso

para novos reposicionamentos em minha imersão no mundo da formação em saúde. Essa

experiência, pelas vivências deflagradas, possibilitou-me boas compreensões sobre a

educação permanente em saúde, percebida como caminho possível para a transformação de

práticas cotidianas, dentro do contexto das lutas concorrenciais inter e intraprofissionais.

Nesse período, é destacável o constante contato com as dificuldades de diversos profissionais

em desenvolver suas práticas em sintonia com os “desejados” princípios do SUS e da ESF.

Construir uma atuação qualificada no processo saúde-doença-cuidado tem reivindicado novos

paradigmas, novos modelos explicativos, novas práticas. Vejo que as profissões e ciências de

23

saúde, por exigências internas e externas, em maior ou menor grau, tem se dedicado a rever

seus modelos teórico-metodológicos problematizando saberes e práticas, que caracterizam

tanto as especificidades profissionais, quanto os campos de interface na atuação e produção

do conhecimento. A ESF configura-se como cenário atual propulsor de revisões de discursos

e práticas profissionais, haja vista, que muitas profissões ainda apresentam uma trajetória

histórica de distanciamento frente às questões colocadas no cotidiano da atenção à saúde no

SUS. A Psicologia é uma ciência e profissão que vem compondo esse movimento de

emergência de inovações e ampliações, bem como reprodução de antigas formas de construir

conhecimentos e atuar no campo da Saúde Coletiva (NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011).

O período de minha inserção no programa de Doutorado em Saúde Coletiva

representa a continuidade de minha trajetória de aproximação com o campo da docência em

saúde. Para concluir essa reflexão sobre minha trajetória, creio ser importante destacar minha

inserção no Instituto de Educação Física e Esportes, em agosto de 2013, como professor da

UFC, cargo que ocupo atualmente, no último ano de produção da tese. A importância desse

fato, para a presente tese de doutorado, é que esta veio sendo concluída em concomitância

com o instigante trabalho iniciado no setor de estudos Fundamentos Socioantropológicos e

Psicológicos da Educação Física e Esportes. Nesse contexto, tenho me envolvido no estudo

de questões psicossociais, que perpassam as práticas corporais, o esporte e a constituição da

chamada cultura corporal do movimento, muito marcada pelas práticas profissionais da

Educação Física. Notadamente, as articulações entre a tese e meu trabalho como docente são

possíveis especialmente pela adoção de um referencial sociológico para a discussão da prática

profissional na APS do SUS, onde se encontram psicologia e educação física. Um conjunto

de questões também se agrega no bojo dessa interface disciplinar e profissional,

especialmente, questões referentes à reflexão sociológica sobre a ação das profissões da

saúde nos planos da cultura e da sociedade.

Ao compartilhar minhas experiências e algumas das perguntas que foram

propulsoras do presente texto, viso esclarecer o laço existente entre a tese e minha trajetória

de inserção no campo da psicologia, da APS do SUS, da Saúde Coletiva e, mais

recentemente, da Educação Física. Esse laço reflete-se na tessitura de um texto marcado pela

experiência e implicação com certas visões da realidade, com certas lutas e interesses. Nesse

contexto, a construção dessa tese passa a ser marcada pelo esforço de abertura interdisciplinar

constitutiva do campo da Saúde Coletiva que, em nosso caso, potencializou minha

aproximação reflexiva com alguns autores e temas. A dinâmica dessas aproximações teóricas

decorre da conjuntura de como a escrita da tese fora se desenvolvendo associada a um

24

conjunto de dilemas e falsos dilemas, elucidados num movimento de familiarização e

desfamiliarização de minhas concepções e visões. Esse dilema vivido na escrita da tese é um

dos problemas epistemológicos mais importantes vividos no processo de elaboração do

presente texto. E aproxima-se do dilema exposto por Geertz, quando discute a escrita

etnográfica:

A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que dizem tem menos a

ver com uma aparência factual, ou com um ar de elegância conceitual, do que com

sua capacidade de nos convencer de que o que eles dizem resulta de haverem

realmente penetrado numa outra forma de vida (ou se você preferir de terem sido

penetrados por ela) – de realmente haverem, de um modo ou de outro,‘estado lá’. E

é aí, ao nos convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu, que entra a

escrita (GEERTZ, 2009, p15).

A perspectiva de construir um conhecimento marcado pela experiência e trajetória

implicou na necessidade de um encontro com outras visões sobre a prática da psicologia,

sobre a APS e sobre a ação profissional. Fora preciso reconhecer minhas implicações com

algumas visões da realidade, os limites das abordagens adotadas e necessidade de transitar

entre os lugares e posições para delimitar o referencial da pesquisa no enfrentar o sentimento

paradoxal de estar próximo e estar distante simultaneamente.

Como poderemos ver no decorrer do texto, percebemos que as práticas do psicólogo

são fruto de sua inserção nos campos da Psicologia e APS, (o que implica na influencia da

Saúde Coletiva e outros movimentos do campo da saúde). Tornou-se notável na presente

pesquisa, que os posicionamentos dos psicólogos, em muitas de suas práticas, são decorrentes

de suas vinculações históricas às lutas internas aos referidos campos, encarnadas nas

trajetórias de formação e atuação profissional. Isso também é pertinente à minha trajetória

nos mesmos campos sociais/científicos. Especialmente, minha trajetória de vinculação à

psicologia comunitária, o que me implica numa visão materialista e histórica da realidade

social e que tem a tendência a reconhecer e contribuir para legitimar todo um clamor social e

crítico frente ao elitismo histórico da psicologia. Claramente, minha formação acadêmica e

profissional deve muito a esse paradigma que, pra mim, é de grande estima. É claro, no

entanto, nesse processo de construção da tese, que tive certas dificuldades iniciais de me

desvincular a esse ponto de vista, quando necessário, já que este se encontra encarnando em

meu habitus2 acadêmico-profissional. Em minhas reflexões, as lutas políticas e

questionamentos oriundos desse campo de produção de saberes e práticas (da Psicologia

Comunitária), especialmente por minha aproximação pessoal e afetiva com pessoas dentro do

2 Conceito de Bourdieu, que será abordado adiante.

25

campo, colocaram desafios para pensar a realidade e produzir trabalhos acadêmicos e

profissionais a partir de um olhar mais distanciado. Isso pode ser exemplificado pela

recorrência na utilização de categorias como comunidade, saúde comunitária, atividade e

consciência, participação social e comunitária em minha trajetória de produção científica.

Nesse ínterim, a adoção do referencial bourdieusiano, que será apresentado adiante,

representou ao mesmo tempo um posicionamento crítico e uma negociação frente a um modo

de pensar e fazer que se tornara incorporado por mim. No que diz respeito às práticas

psicológicas na APS, é fácil notar a disputa entre os agentes vinculados à psicologia social e

os mais próximos, em suas trajetórias, à psicologia clínica. Essa polaridade entre clínica e

social/comunitária precisou ser analisada e repercutiu em certa vigilância frente aos meus

posicionamentos e visões, para que o processo de análise dos nossos resultados não ficasse

comprometido.

Nessa análise de trajetória, é também destacável certa retomada de interesses em

minha vinculação à correntes fenomenológico-existenciais de pensamento. Desse modo,

tenho um conjunto de interesses que me aproximam de uma visão fenomenológica da

realidade social, especialmente quando que esta reconhece os indivíduos como produtores de

sentidos e significados. Novamente, a proposição de um “estruturalismo construtivista” de

Bourdieu, veio a se mostrar congruente com a trajetória de estudos desenvolvida

concomitantemente à elaboração da tese. Foi também pertinente à tese, a adoção do

referencial de Paul Ricoeur e sua proposição de uma hermenêutica fenomenológica.

Partindo dessas reflexões e autoanálises, pudemos pensar a inserção da prática

psicológica na APS, como reflexo de disputas entre inovações e tradições, entre ortodoxia e

heterodoxia existentes nos campos em questão (Psicologia, APS e Saúde Coletiva). Os

modelos e abordagens psicológicas tendem a se reproduzir no contexto da APS, fazendo com

que as práticas se adaptem a questões colocadas especialmente pelo campo da Psicologia. Há,

no entanto, e isso ficou evidente na pesquisa de campo, certo tensionamento criado pelos

desafios do SUS, desafios que parecem ser progressivamente incorporados pelas diversas

abordagens, mas que tendem a ser respondidos a partir da interface com modelos de saúde

existentes na APS e Saúde Coletiva, a partir da proximidade entre os paradigmas e coletivos

organizados, tendendo a expressar negociações, disputas e resistências, que incidem na

direção das mudanças operadas na renovação teórica e metodológica das práticas

profissionais. As interfaces e colaborações teóricas e metodológicas existem, mas ainda

parecem incipientes para dar conta dos problemas políticos, éticos e epistemológicos, que se

26

colocam na luta concorrencial, que demarca o espaço social das práticas nos serviços de

saúde, pelas divisões desiguais de poder.

1.2 Objetivos da pesquisa e organização do texto

A presente pesquisa teve como objetivo geral interpretar a construção social da

prática profissional da Psicologia na APS do SUS, numa perspectiva de compreender da

articulação de elementos sociais do fazer profissional, a partir do ponto de vista de psicólogos

com experiências na ESF.

Para operacionalização da pesquisa, quatro objetivos específicos foram construídos:

1) Descrever o campo de práticas profissionais da APS e o lugar ocupado pelos psicólogos

nele; 2) Analisar a construção social das demandas pra prática psicológicas na APS; 3)

Compreender o modo distinto como a Psicologia intervém profissionalmente; e 4) Analisar

significados da inserção da Psicologia na APS.

Para contemplar os objetivos estabelecidos, baseamo-nos numa abordagem

qualitativa de pesquisa, em diálogo com psicólogos e psicólogas com importantes

experiências vividas na ESF, para sistematizar uma interpretação pertinente sobre as práticas

psicológicas no cotidiano dos serviços públicos de saúde. O texto que segue, apresenta a

contextualização histórica do nosso objeto de pesquisa, nossos fundamentos teórico-

metodológicos, a metodologia e os resultados. A apresentação e discussão dos resultados será

organizada em 4 capítulos, que buscam contemplar cada um dos objetivos específicos

colocados acima.

27

2 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

2.1 A Construção do SUS e da Saúde Coletiva

Transformações sociais vividas do decorrer das últimas décadas, desde o último

quartel do século XX, marcadas pelos processos de globalização e re-estruturação capistalista,

acarretam uma série de mudanças em diversas esferas da organização societária, implicando

em movimentos que reinvidicam e, em menor ou maior grau, instauram processos de

renovação cultural, social e política. Nesse ínterim, vemos a consolidação de uma nova ordem

mundial, pautada na hegemonia do ideário neoliberal na estruturação burocrática e

administrativa da gestão pública, tendendo à desresponsabilização estatal frente à provisão de

bens e serviços públicos, à priorização de ações dinamizadoras da integração internacional

dos mercados e à constituição de políticas sociais básicas focalizadas nas camadas mais

pobres da população (CARVALHO, 2005; PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998).

No contexto da saúde, em nível internacional, aprofunda-se o debate sobre as

relações entre o desenvolvimento social e econômico e os processos de adoecimento, bem

como de prevenção de doenças e promoção da saúde. Como expressão desses debates, temos,

em meados da década de 70, o reconhecimento do direito universal à saúde e a discussão da

responsabilidade da sociedade e do Estado em garantir os cuidados básicos de saúde,

estabelecimento do célebre lema ‘Saúde para Todos no Ano 2000’ (PAIM; ALMEIDA

FILHO, 1998). Transições demográficas e epidemiológicas apontam para uma preocupação

cada vez maior com os problemas de saúde decorrentes da violência, as doenças crônico-

degenerativas e a necessidade de empreender ações de prevenção e promoção capazes de

influenciar, de modo efetivo, na melhoria da qualidade de vida das populações – o que

demanda a construção de políticas públicas saudáveis que transcendem o setor saúde

(CARVALHO, 2005; FERREIRA; BUSS, 2002). A saúde passa a ser problematizada no

nível epistemológico, que implica na discussão das possibilidades de produção de

conhecimentos sobre o processo saúde-doença e a delicada construção de conceitos

científicos, pretensamente universais, capazes de abarcar a complexidade dos fenômenos no

nível da experiência subjetiva da saúde e do adoecer (CAPONI, 2003; CANGUILHEM,

2011).

Todo um conjunto de mudanças, portanto, passa a tencionar o campo das políticas de

saúde influenciando uma série de movimentos de organismos internacionais sistematizando a

proposição de diretrizes para orquestrar as necessárias renovações no campo da teoria e da

28

prática em saúde. Como exemplos desses movimentos temos a realização da Conferência de

Alma Ata, em 1978, que defende os cuidados primários em saúde como via de construção dos

sistemas nacionais de saúde, os movimentos canadenses da Promoção da Saúde expressos

inicialmente no Relatório Lalonde, em 1974, como forte cunho behaviorista (CARVALHO,

2005) e ampliados a partir da proposição da Carta de Ottawa (1986), e a proposição de uma

‘Nova Saúde Pública’, em 1992, pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS), que

renova a proposta de ‘saúde para todos’ e define prioridades na pesquisa e desenvolvimento

em saúde (PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998; CARVALHO, 2005).

A construção histórica do SUS esteve intimamente ligada à luta pela democracia no

Brasil e ao surgimento e fortalecimento de novos modelos explicativos sobre a saúde, a

doença e o trabalho no setor, que buscam superar as limitações do modelo biomédico e o

liberal-privatista. Tal construção histórica tem apontado para a ampliação do conceito de

saúde, considerando as relações entre indivíduo e sociedade na compreensão e atuação sobre

o processo saúde-doença-cuidado. Segundo Andrade (2001), o nascimento da Saúde Pública

no Brasil remonta aos tempos do início da República Velha, quando se empreenderam os

primeiros passos na constituição de um “Estado Moderno” com a supremacia dos grupos

ligados à agroexportação cafeeira. Nesse período, predominam na saúde os saberes ligados à

microbiologia e bacteriologia. O autor destaca que esse período, conhecido como “sanitarismo

campanhista”, dá início à estruturação de um Sistema de Saúde no Brasil. As ações de Saúde

Pública focavam o controle de doenças, para que estas não atrapalhassem o desenvolvimento

da economia de exportação. As campanhas sanitárias direcionaram-se para o saneamento dos

espaços de circulação das mercadorias exportáveis (ANDRADE, 2001). Pustai classifica os

momentos históricos de construção da Saúde Pública no Brasil em três grandes períodos: o

modelo do sanitarismo campanhista, que compreende meados dos anos 1950; o modelo

médico-assistencial privatista, que se desenvolveu a partir dos anos 1960; e o modelo SUS

que se inaugura nos fins da década de 1980 até os tempos atuais (PUSTAI, 1996).

Campos destaca que a constituição histórica do SUS se dá pelo efeito de duas fortes

tradições: a liberal-privatista e a dos sistemas nacionais e públicos de saúde. A primeira

vincula-se a um projeto sócio-econômico-cultural neoliberal, de livre mercado e

mercantilização da saúde. E a segunda a um projeto de inspiração no socialismo e nos Estados

de Bem-Estar Social (CAMPOS, 2007). Estas duas perspectivas influenciam diretamente os

modos de se organizar a atenção à saúde no Brasil. Para Campos (2007), a análise de tais

tradições nos auxilia na compreensão do surgimento e desenvolvimento histórico do SUS, já

que expressam polaridades de um cenário político de disputas. A tradição liberal-privatista é

29

apoiada pelos prestadores de serviços privados, regido pelas leis do mercado (como ordenador

das relações sociais) e tem forte influência do modelo biomédico na organização dos serviços

de saúde. Já a outra tradição é apoiada e construída pela luta dos trabalhadores em prol de

políticas públicas universais ou do socialismo. Antes da “inauguração do SUS, a expansão do

acesso ao cuidado médico-sanitário no Brasil vinha ocorrendo sem que se invocasse qualquer

forma de socialização da atenção” (CAMPOS, 2007, p. 1868), havendo hegemonia da

racionalidade própria do modelo liberal-privado, com o Estado intermediando de forma

passiva o mercado de saúde. Instaurou-se, nesse período, uma supremacia do estímulo

econômico à produção de atos sanitários, onde os serviços eram pagos por procedimentos

realizados, com baixo poder de regulação pelo Estado e pela sociedade (ESCOREL, 1999;

CAMPOS, 2007).

A época da ditadura (1964-1986), que demarca esse período “pré-SUS”, é constituída

por um regime autoritário-burocrático marcado pelas seguintes características: constituição de

anéis burocráticos de preservação de interesses hegemônicos de minorias, que não prestavam

conta à sociedade dos gastos públicos; supressão das mediações entre Estado e sociedade;

mercantilização da saúde; campanhas sanitárias de baixo impacto e de caráter de simulação

para cuidar da Saúde Pública; carência de recursos financeiros; política econômica desigual;

opressão política; baixa oferta de serviços públicos; hegemonia da lógica de racionalização

dos serviços (ESCOREL, 1999).

Assim, as reformas do setor saúde no Brasil se desenvolveram intimamente ligadas à

luta de diversos setores da sociedade pela construção da democracia e da justiça social no

país. Dentro desse processo, as manifestações e movimentos sociais de luta contra a ditadura

foram fundamentais para a estruturação de novas agendas políticas de estruturação dos

modelos de atenção à saúde. A progressiva abertura política do período pós-ditadura

aconteceu em paralelo a um processo de ampliação das discussões sobre o conceito de saúde e

de Saúde Pública, focando a atenção para os determinantes sociais. Tais processos

repercutiram no desenvolvimento e fortalecimento de um pensamento social contra-

hegemônico em saúde no Brasil, que, inicialmente, teve pouca repercussão nos processos

decisórios, mas que progressivamente ganhou força na arena política (CAMPOS, 2007;

CARVALHO, 2005; ESCOREL, 1999; PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998).

Os referidos movimentos sociais (e políticos) atuavam em sintonia com o contexto

geopolítico, num momento histórico de crise da Saúde Pública mundial. Tal crise evidenciou-

se em meados da década de 1980 trazendo à tona reflexões de alcance internacional de crítica

ao paradigma flexneriano-biomédico em saúde e seus elementos: curativismo, biologicismo,

30

unicausalidade, mecanicismo, especialização e individualismo (CARVALHO, 2005; PAIM;

ALMEIDA FILHO, 1998; WESTPHAL; SANTOS, 1999). A ênfase na multiplicidade e

complexidade dos fatores existentes no processo saúde-doença-cuidado foi resultado desse

movimento de rupturas, que veio requisitar reestruturações nas políticas de saúde e práticas

emergentes de um novo pensamento sobre as práticas profissionais em saúde.

No plano técnico e científico das práticas de saúde, toda essa conjuntura

sociocultural de mudanças reflete-se, dentre outras questões, na reelaboração teórica e prática

operada no campo da saúde pública, no Brasil, com a criação da Saúde Coletiva como

movimento social e campo científico. Surgido na década de 1970, este movimento social e

técnico constituiu-se a partir do questionamento dos modos de organização da sociedade e de

sua influência no processo saúde-doença da população (CARVALHO, 2005). A Saúde

Coletiva, como área interdisciplinar de saberes e práticas, constitui-se como campo científico

que tem como objeto “as práticas e os saberes em saúde, referidos ao coletivo enquanto

campo estruturado de relações sociais onde a doença adquire significação” (FLEURY apud

PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998, p. 309). Na Saúde Coletiva, a saúde é concebida como

estado vital, setor de produção e campo de saber, demarcada por processos sociais, históricos,

econômicos e culturais. Os seus objetos de intervenção situam-se no âmbito das políticas, das

práticas, das técnicas e dos instrumentos (PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998). Enquanto campo

científico, a Saúde Coletiva teve sua origem vinculada aos movimentos da Medicina Social

Preventiva e Medicina Comunitária, veio se estruturando na interface entre ciências naturais e

ciências humanas e configura-se, de modo relativamente estável, em torno dos núcleos de

saberes estabelecidos pela Epidemiologia, Ciências Humanas e Sociais em Saúde e

Planejamento e Gestão de Sistemas de Saúde (BOSI; PRADO, 2011).

No Brasil, a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e a Constituição de

1988, fizeram-se a partir da aglutinação de diversos atores sociais em prol de mudanças

sociais e nas políticas de saúde, instituindo o Sistema Único de Saúde (SUS). Os princípios e

diretrizes do SUS expressam uma relativa vitória da tradição dos sistemas nacionais e

públicos de saúde frente à tradição liberal-privada que se tornara hegemônica na estruturação

das políticas sociais no período ditatorial. Segundo Campos (2007), o chamado movimento

sanitário brasileiro, além de adaptar conceitos e diretrizes da tradição socialista ao SUS, o

demarcou com características de um sistema descentralizado, com gestão participativa e

controle social e, ainda empreendeu uma crítica teórica e prática do paradigma tradicional em

Saúde Pública. Esse processo se deu “incorporando, no cotidiano, conceitos e práticas

originárias da Saúde Coletiva, da promoção, da determinação social, da reforma psiquiátrica,

31

da política de humanização, construindo uma concepção ampliada sobre a saúde e sobre o

próprio trabalho sanitário” (CAMPOS, 2007, p.1872). O resultado desses processos históricos

de disputa, que ainda permanecem, é uma configuração complexa e contraditória nos

movimentos de construção política do SUS.

Segundo Sergio Carvalho (2005), o SUS é fruto dos movimentos históricos de

diversos atores em volta dos paradigmas3 da Saúde Coletiva e da Promoção da Saúde. E, a

partir desses movimentos, o SUS é concebido como afirmação do “social” na determinação

do processo saúde-doença. O SUS, portanto, significa um avanço histórico na consolidação da

saúde como direito de todos e dever do Estado, através da conquista de um Sistema Nacional

de Saúde de acesso universal, pautado na integralidade e equidade da atenção e do cuidado.

No entanto, após a sua consolidação, enquanto arcabouço institucional, o movimento de

resistência ao SUS não parou de atuar. Segundo Campos, essas forças de resistência ao SUS

atuaram deslocando o cenário de disputa de princípios e diretrizes,

[...] para elementos programáticos de implantação do acesso universal a uma rede

‘integral’ de assistência, procurando, contudo, sempre buscar meios para atendê-los

segundo seus interesses corporativos e valores capitalistas de mercado. Resistência

permanente a cada programa, a cada projeto e cada modelo de gestão ou de atenção

sugerido segundo a tradição vocalizada pela reforma sanitária (Campos, 2007,

p.1869).

O resultado desses processos históricos de disputa, que ainda permanecem, é uma

configuração complexa e contraditória nos movimentos de construção política do SUS. Para o

mesmo autor, “em síntese: no Brasil, o concreto real resultante de toda história de conflitos é

a existência de um SUS esgarçado, de uma reforma sanitária incompleta” (CAMPOS, 2007,

p.1869).

Partindo das ideias colocadas, podemos pensar o SUS como um relativo avanço e

conquista do povo brasileiro, no plano das políticas públicas de saúde, mas que se encontra

em meio a um contexto geopolítico historicamente desfavorável:

Esse sistema é, nos dias de hoje, um espaço de resistência às políticas neoliberais.

Na contramão das tendências hegemônicas, o SUS vem logrando ampliar o seu

leque de ações e mantém-se na vanguarda das políticas sociais brasileiras no que se

refere ao caráter democrático e participativo de suas instancias. Dificuldades e

limitações à parte, representa uma conquista social que garante, por exemplo, a

assistência à saúde para mais de 70% da população brasileira (CARVALHO, 2005,

p.32).

3 Paradigma é concebido pelo autor citado como um modelo teórico-conceitual composto de crenças

compartilhadas que preparam para a ação (CARVALHO, 2005).

32

Segundo o mesmo autor (Ibid.), vários desafios são permanentemente colocados ao

desenvolvimento do SUS em tempos de neoliberalismo: visão estreita do Estado e da

condição do sujeito na sociedade; saúde entendida como mercadoria sujeita às regras do

mercado; formação de um “Estado-empresário”, “enxuto e eficaz” em cuidar da produção

econômica; crítica das políticas universalistas e redistributivas, pois retiram dinheiro que iria

para áreas de produção e desestimulariam o trabalho e a competição necessária ao mercado;

multiplicação de organizações da sociedade civil na prestação de serviços; focalização nos

grupos de risco, construindo um “pacote mínimo” de serviços essenciais para os mais pobres e

miseráveis; minimizar os direitos sociais e políticos; confundir cidadão com consumidor

(valor situado na dimensão econômica); estímulo ao consumo e à cultura individualista. Para

Campos, os desafios para a constituição do SUS ainda são grandes, segundo o autor:

[...] por meio da corrupção, do corporativismo, do clientelismo, de programas

iníquos, de vários modos, as elites têm dificultado a efetiva distribuição de renda no

país. A gestão participativa, a co-gestão do SUS, ainda é uma potência pouco

explorada, parece que a sociedade civil e os trabalhadores têm dificuldade para

ocupar este espaço de co-gestão legalmente construído [...] O SUS não parece haver

ganhado o ‘coração e mentes’ dos brasileiros, nem para desejá-lo e defendê-lo com

paixão, ou tampouco para combatê-lo com ódio (CAMPOS, 2007, p. 1873).

Pelo já visto até aqui, podemos destacar que o sistema de saúde preconizado pelo

SUS somente desenvolver-se-á a partir de uma revisão crítica dos modelos assistenciais

existentes, da avaliação das estratégias políticas adotadas, da análise da qualidade dos

serviços prestados, da ampliação dos saberes e práticas no campo saúde, e,

fundamentalmente, da articulação de diversos agentes sociais e instituições envolvidos num

projeto de desenvolvimento sociocultural amplo e complexo. Nesse contexto, a análise dos

processos sociais de construção das práticas profissionais é, em nosso entendimento,

fundamental para a redefinição dos serviços de atenção à saúde no SUS.

2.2 Estratégia Saúde da Família: priorização da atenção primária à saúde no SUS.

Dentro do conjunto de mudanças empreendidas recentemente para buscar a

efetivação do SUS, destaca-se o surgimento, em 1994, do Programa Saúde da Família (PSF)

com o objetivo inicial de atender a regiões sem ou com pouco acesso aos serviços de saúde e

de “responder a uma tendência mundial de redução de custos, de desmedicalização da

medicina e humanização dos serviços” (CAMARGO-BORGES; CARDOSO, 2005, p.27). O

processo histórico de mudanças nas práticas decorrentes da implantação do PSF levou ao

reconhecimento de sua efetividade na universalização da atenção à saúde e, de algum modo,

33

na implementação de mudanças buscadas nos movimentos de reforma sanitária no Brasil. O

PSF (programa) passou a configurar-se como Estratégia de Saúde da Família (ESF), uma

política responsável pela Atenção Primária à Saúde (APS) no SUS, com a responsabilidade de

empreender uma reestruturação no modelo de atenção (BRASIL, 1997; CAMARGO-

BORGES; CARDOSO, 2005).

A APS, no plano internacional, enquanto concepção e modelo de práxis assistencial

em saúde, está ligada à ideia de aproximar o trabalho em saúde dos lugares de moradia da

população. Assim, surgiram os conceitos precedentes de Distrito Sanitário e de Centro de

Saúde e ganharam força, nos cenários das políticas e práticas em saúde, as ideias de

fortalecimento do acolhimento nos sistema de saúde, da atenção longitudinal e da

responsabilidade sanitária de serviços comunitários e públicos organizados em torno de áreas

delimitadas geograficamente (ANDRADE; BARRETO; BEZERRA, 2006). Assim:

A Atenção Primária de Saúde é fundamentalmente assistência sanitária posta ao

alcance de todos os indivíduos e famílias da comunidade, com sua plena

participação e a um custo que a comunidade e o país possam suportar. A APS, uma

vez que constitui o núcleo do sistema nacional de saúde, faz parte do conjunto do

desenvolvimento econômico e social da comunidade (ANDRADE; BARRETO;

BEZERRA, 2006, p.784).

Andrade, Barreto e Bezerra (Idem) destacam que a APS relaciona-se com o ideário

do SUS e da ESF. Para os autores, a APS é conceituada como:

[...] o nível de um sistema de saúde que oferece a entrada no sistema para todas as

novas necessidades e problemas, fornece atenção à pessoa (não à enfermidade) no

decorrer do tempo, fornece atenção a todas as situações de saúde, exceto as

incomuns, e coordena ou integra a atenção fornecida em algum outro lugar ou por

terceiros. É o tipo de atenção à saúde que organiza e racionaliza o uso de todos os

recursos, tanto básicos como especializados, direcionados para a promoção,

manutenção e melhora da saúde. Em resumo, pode ser compreendida como uma

tendência, relativamente recente, de se inverter a priorização das ações de saúde, de

uma abordagem curativa, desintegrada e centrada no papel hegemônico do médico

para uma abordagem preventiva e promocional, integrada com outros profissionais

de saúde (ANDRADE; BARRETO; BEZERRA, 2006, p.786).

Percebe-se que a proposição da APS é bastante ambiciosa no que diz respeito a

empreender uma transformação dos modelos de atenção vigentes no Brasil, especialmente na

quebra da hegemonia do modelo biomédico e privatista de organização das práticas em saúde.

A ESF é conceituada dentro da perspectiva da APS e do SUS. Argumenta-se, portanto, que a

ESF apresenta-se como uma expressão dos movimentos de mudança em saúde, dentro da

perspectiva peculiar das políticas públicas de saúde brasileiras (ANDRADE; BARRETO;

BEZERRA, 2006; GIOVANELLA; MENDONÇA, 2008).

34

A Estratégia de Saúde da Família é considerada um modelo de APS focado na

unidade familiar e construído operacionalmente na esfera comunitária. Então, por

definição, pode-se considerar a experiência brasileira de ESF como um modelo

coletivo de atenção primária, com a peculiaridade de ser construído no âmbito de

um sistema de saúde público e universal (ANDRADE; BARRETO; BEZERRA,

2006, p.803).

A ESF situa-se, portanto, na perspectiva da APS, das políticas universais de saúde e é

entendida como mecanismo de reorientação do sistema de saúde, sendo: porta de entrada,

responsabilização institucional e sanitária no processo de cuidado com a saúde articulado a

toda rede de serviços. Outros aspectos são fundamentais para entender a especificidade do

desenvolvimento das práticas em saúde na ESF, como sua busca pela aproximação entre

atenção à saúde e participação comunitária (NEPOMUCENO, 2009).

A ESF, em suas normativas, estrutura-se como atenção primária do SUS,

intencionalmente direcionada para re-orientação do modelo assistencial vigente, incorporando

as características levantadas pelos autores citados e articulando-se com os valores subjacentes,

os princípios e diretrizes do SUS. Os princípios da ESF são: o caráter substitutivo frente às

práticas tradicionais, onde não focaliza apenas o tratamento de doenças e sim, também as

ações de prevenção e promoção da saúde, garantindo a resolubilidade da assistência; a

integralidade e intersetorialidade, onde é preconizada a assistência integral às necessidades

de saúde da população, o que requer uma articulação com outros setores sociais na busca pela

complementaridade das ações; territorialização, onde o trabalho se organiza localmente com

base nas características epidemiológicas e socioculturais da população adstrita; equipe

multiprofissional, partindo da premissa que é necessária a interação e integração de saberes e

fazeres no trabalho; responsabilização e vínculo, que remete a um compromisso da equipe em

oferecer atenção humanizada à população local; e estímulo à participação da comunidade e

ao controle social (BRASIL, 2005, p.16-17).

Já os campos de atuação preconizados para a ESF são: a promoção da saúde, a

prevenção de doenças e agravos, a assistência, o tratamento e a reabilitação (BRASIL, 2005,

p.18-19). A ESF visa a estruturação de equipes em território, composto aproximadamente de

600 a 1000 famílias. A equipe mínima é composta por médicos, enfermeiros, auxiliares de

enfermagem, agentes comunitários de saúde, dentista, atendente de consultório dentário e

técnicos de higiene dental. Esses profissionais estruturam suas ações em território específico4,

com uma população adstrita moradora desse território complexo, o qual é composto de ampla

4 É importante destacar que, geralmente, aglutina-se mais de uma equipe mínima nos Centros de Saúde da

Família para efetivar a cobertura da totalidade da população de uma comunidade (território).

35

rede de relações de elementos ecológicos, sociais, culturais, históricos e econômicos, que

devem ser considerados na construção e efetivação do plano de ação.

Pelo já apresentado, a ESF pode tornar-se um dispositivo instigador de mudanças,

dentre elas, a ampliação da responsabilização sanitária e institucional no processo de

produção do cuidado em saúde em contextos locais, influenciando diretamente nos modos de

pensar e atuar dos profissionais inseridos. É notável também, que a APS não pode representar

a totalidade de um sistema de saúde, que se pretende universal e integral, pois os serviços dos

outros níveis de atenção são fundamentais para a incorporação de tais princípios. No entanto,

colocando-nos, no contexto atual de desenvolvimento do SUS, a ESF se configura,

potencialmente, como estratégia política viabilizadora de práticas condizentes com o ideário

das reformas sanitárias e Saúde Coletiva. Nesse sentido, entendemos ser possível que a ESF

apresente-se como força propulsora de mudanças nos modelos de atenção à saúde no Brasil.

No entanto, é preciso uma análise crítica de suas atuais configurações cotidianas. É claro, no

mínimo, que a priorização desta política pública de saúde, na realidade brasileira, tem

colocado em pauta a formação dos profissionais de saúde e a produção acadêmica no campo

da Saúde Coletiva, que se vêm às voltas com questões advindas dos contextos de prática

atualmente abertos.

Na intenção política de priorizar a APS no SUS e “ampliar a integralidade e

resolubilidade das ações” na atenção à saúde para a população brasileira, pelo fortalecimento

da ESF, foi publicada no dia 04 de julho de 2005 a portaria nº 1065/GM, que criou os Núcleos

de Atenção Integral na Saúde da Família (NAISF). Os NAISF se propunham a incluir novos

profissionais na ESF visando ampliar a abrangência e melhorar a qualidade das ações. As

modalidades de ação eram: atividade física, saúde mental, reabilitação, alimentação e nutrição

e serviço social. A integração dessas equipes multiprofissionais de NAISF - compostas por

psicólogos, nutricionistas, assistentes sociais, fisioterapeutas, educadores físicos, terapeutas

ocupacionais, fonoaudiólogos e psiquiatras – tinha a intenção de fomentar o

compartilhamento de saberes na construção de práticas em saúde frente a problemas

identificados nos territórios (BRASIL, 2005b). Apesar de a portaria referida ser revogada no

dia seguinte, por motivos políticos desconhecidos, e adiada a efetivação dessa política para

todo o Brasil, o município de Sobral adotou as estratégias e diretrizes dos NAISF para

organizar o trabalho da 5ª turma de RMSF nos territórios de saúde do município (VÉRAS et

al., 2007). Como dito anteriormente, participar dessa experiência, de ser psicólogo-residente,

gerou vários questionamentos e reflexões sobre os avanços e desafios para lograr os objetivos

pretendidos pelos NAISF. Dentre os desafios, destaco aqui sinteticamente: as dificuldades

36

referentes à abrangência dos territórios a serem cobertos pelas equipes multiprofissionais de

NAISF, que dificultava a construção de vínculos e da co-responsabilidade nas ações; as

dificuldades de compartilhar os saberes em equipes multiprofissionais pela cultura

corporativista que influencia o desenvolvimento das práticas; o baixo conhecimento das

diversas categorias profissionais sobre ESF, SUS e Saúde Coletiva; e a indefinição das

especificidades profissionais para atuar na ESF. Dentre os avanços, destaco: a inclusão de

novos atores sociais, com seus saberes estruturados e posições epistemológicas diferenciadas,

para pensar e atuar no processo saúde-doença-cuidado; o surgimento de novos dispositivos de

cuidado, de novas práticas; e o aumento da resolubilidade da ESF frente algumas

necessidades de saúde da população sobralense.

Reafirmando esse movimento de valorização da APS, agora de forma mais

permanente, publica-se, em 24 de janeiro de 2008, a portaria 154 (republicada em 4 de março

de 2008) que institui a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Com

objetivos semelhantes ao NAISF, os NASF também se propõem a ampliar a abrangência das

ações da ESF, aumentando o leque de serviços aos usuários e o escopo das ações, bem como

deflagrar processos de compartilhamento de saberes e práticas entre diversas profissões no

âmbito da APS do SUS. Os profissionais que podem compor o NASF, que inclui

especialidades médicas não existentes nos NAISF, são: médico acupunturista; assistente

social; profissional da educação física; farmacêutico; fisioterapeuta; fonoaudiólogo; médico

ginecologista; médico homeopata; nutricionista; médico pediatra; psicólogo; médico

psiquiatra; e terapeuta ocupacional. Há três variações nas possibilidades de implementação

dessas equipes (NASF 1, NASF 2 e NASF 3), que obedecem a critérios populacionais e que

diferem em área de abrangência e composição da equipe multiprofissional. Destaca-se que o

NASF 3 atende às características dos anteriores, mas com a priorização de ações voltadas para

usuários de crack, álcool e outras drogas (BRASIL, 2010). As áreas estratégicas de ação dos

NASF são: práticas integrativas e complementares; reabilitação; alimentação e nutrição; saúde

mental; serviço social; saúde da criança; saúde da mulher; e assistência farmacêutica. Para

cada área estratégica de atuação, se preconiza que um profissional fique como referência

(BRASIL, 2008). A Psicologia, cuja prática profissional é objeto de estudos da presente tese,

esta colocada como profissão de referência para a área de saúde mental.

O NASF tem se tornado objeto de discussões, que buscam avaliar experiências e

construir estratégias para atuação, nos espaços de gestão, atenção, formação e controle social

do SUS. No contexto da psicologia, dentre os vários movimentos de agentes e instituições

voltados para compreender e analisar o campo da ESF, o Conselho Federal de Psicologia, ao

37

se debruçar sobre a inserção recente da Psicologia nos NASF, vem promovendo discussões

sobre a prática da psicologia e o NASF (Conselho Federal de Psicologia, 2009).

Recentemente, dois livros pautados em pesquisas nacionais abordaram, de modo significativo,

a inserção profissional do psicólogo na ESF, a saber, Psicologia em diálogo com o SUS

(SPINK, 2010) e Práticas Profissionais de Psicólogos e Psicólogas na Atenção Básica à

Saúde (Conselho Federal de Psicologia, 2010). O caráter recente desse processo vem

impulsionando os necessários estudos sobre as configurações emergentes das interfaces

Psicologia e SUS, Psicologia e ESF, Psicologia e Saúde Coletiva. As diversas categorias

profissionais e diversas disciplinas científicas envolvidas se vêm imersas nesse cenário

propulsor de novos temas e questões instigantes.

No que diz respeito ao campo da formação em saúde para o SUS, é notável o papel

ocupado pelas experiências de Residência Multiprofissional em Saúde (RMS). O marco

histórico de origem dessas iniciativas, no Brasil, foi se deu na transformação do Programa de

Residência de Medicina Comunitária da Unidade Sanitária São José Murialdo, no Rio Grande

do Sul, em 1978, em Residência Multiprofissional (Brasil, 2006). Tais experiências tomaram

corpo, principalmente em meados de 1999, numa articulação de alguns atores sociais oriundos

do Movimento Sanitário com o Ministério da Saúde, motivados pela excelência reconhecida

como “padrão ouro” de alguns dos modelos de formação em serviço já experimentados,

principalmente pela medicina, que estabeleceram diretrizes iniciais para os modelos de RMS,

incluindo reflexões sobre financiamento, credenciamento, validação e certificação. As RMS

expressam um movimento de resistência à hegemonia do paradigma da biomedicina e da ação

política do complexo médico-industrial no campo da formação em saúde, o que tem gerado

incômodo e polêmica entre os atores envolvidos no campo da formação em saúde

(DALLEGRAVE; KRUSE, 2008). É notável o potencial que tais experiências têm de

expressar o caráter contraditório do desenvolvimento do SUS, expresso pelas disputas

políticas que entram em cena no cotidiano das práticas em saúde. Aqui, as diversas categorias

profissionais são colocadas, em certa medida, num movimento de questionamento da

especialização, da fragmentação do conhecimento e do biologicismo imperante no setor

saúde, que advoga em favor da integralidade do cuidado, da ação intersetorial e da

interdisciplinaridade. “A intrínseca característica da interdisciplinaridade confere caráter

inovador aos programas de RMS” (BRASIL, 2006, p.13). Nesse ínterim, em 2005, a lei

11.129 criou a Residência em Área Profissional da Saúde e instituiu a Comissão Nacional de

Residência Multiprofissional em Saúde, entidade responsável para aglutinar os representantes

legais oriundos do Ministério da Saúde e da Educação, das Instituições de Ensino, entidades

38

de classe e controle social, autorizados a acompanhar, avaliar, credenciar e certificar os

referidos programas. Ademais das controvérsias, contradições e opiniões contrárias, que a

RMS vem despertando (DALLEGRAVE; KRUSE, 2008), advindas desse lugar de crítica e

contra-hegemonia que alguns de seus atores vem buscando ocupar, é destacável o caráter

inovador de muitas das iniciativas proporcionadas nesse lócus de formação e produção de

conhecimentos. Uma das áreas destinadas como foco de programas de RMS é a ESF.

Na presente pesquisa, reconhecemos o potencial transformador e criativo ensejado

pela ESF, no que diz respeito à produção de práticas de saúde mais efetivas na busca por

viabilizar uma melhoria da atenção à saúde no Brasil. Entendemos, no entanto, que muitos são

os obstáculos para efetivar algumas das mudanças buscadas e que é preciso aprofundar o

estudo sobre o cotidiano das práticas na ESF, para melhor compreender o desafio colocado

para a efetivação dos princípios do SUS. Nesse contexto, buscamos entender o processo de

produção das práticas psicológicas no contexto da APS dos SUS, como reflexo de lutas para

definir e configurar esse novo espaço de práticas. A partir da analise e compreensão de

experiências e percepções de psicólogos nesse espaço de práticas, construímos uma

interpretação sobre o complexo processo de construção social das práticas da Psicologia na

APS do SUS.

Entendemos que o desenvolvimento histórico da ESF reflete-se na constituição de

cenários diversos e, muitas vezes homólogos, onde os profissionais psicólogos participam da

construção de uma nova etapa da relação com o SUS, com a sociedade brasileira e com o

campo da Saúde Coletiva. Para dimensionarmos as nuanças desse encontro entre a Psicologia

e a ESF, cabe questionar o modo como historicamente essa profissão se coloca no campo das

políticas públicas de saúde, quais suas contribuições para a satisfação das necessidades de

saúde da população, quais dilemas enfrentados no cotidiano dos serviços de saúde e quais

perspectivas teóricas, práticas e éticas se abrem no desenvolvimento da prática psicológica no

espaço da atenção à saúde no SUS.

2.3 A Psicologia nas políticas públicas de saúde

É possível afirmar que a Psicologia teve uma atuação incipiente e limitada nas

políticas públicas de saúde no Brasil. Tal afirmativa se ancora na produção científica sobre o

tema (BENEVIDES, 2002; 2005; CAMARGO-BORGES; CARDOSO, 2005; DIMENSTEIN,

1998; 2001; 2003; OLIVEIRA et al., 2005; SPINK, 2003; TRAVERSO-YÉPEZ, 2001;

YAMAMOTO, 2009) e pelo entendimento de que as contribuições da Psicologia para o

39

desenvolvimento do campo saúde são diversas e relevantes. A própria trajetória histórica da

Saúde Pública, de progressiva aproximação a um conceito ampliado de saúde, vem requerer a

construção de uma práxis sanitária necessariamente interdisciplinar, onde os elementos

psicológicos tornaram-se fundamentais.

A Psicologia é uma profissão recente e que tem uma trajetória histórica na sociedade

brasileira fortemente marcada por compromissos com as elites e com a manutenção do status

quo (ANTUNES, 2007; BOCK, 2009; DIMENSTEIN, 2001; YAMAMOTO, 2009). Assim, a

ênfase das atividades deste profissional, geralmente, caracterizou-se pelo “trabalho autônomo,

clínico, individual, curativo e voltado para uma clientela financeiramente privilegiada no

acesso” (CAMARGO-BORGES; CARDOSO, 2005, p.28). A Psicologia constrói, nesse

contexto, um histórico de atuação limitada perpassado pela divisão corpo-mente, pelo

isolamento, pela focalização no “mental” e pela reprodução descontextualizada da atividade

clínica individual (TRAVERSO-YÉPEZ, 2001, p. 51). Atuando hegemonicamente nessa

perspectiva, o fazer dos psicólogos veio a contribuir mais para a manutenção do modelo

biomédico do que para sua transformação. Tais trabalhos se deram, geralmente, reproduzindo

práticas “com enfoque no tratamento de fenômenos da esfera psíquica ou mental sem

necessidade de compreendê-los a partir de suas multideterminações, ou seja, sem considerar o

contexto social, econômico e político no qual o indivíduo está imerso” (CAMARGO-

BORGES; CARDOSO, 2005, p. 28). Esse fazer limitado se deu, dentre outras razões, pela

reprodução de modelos teórico-metodológicos de forma descontextualizada, pela utilização de

concepções abstratas de sujeito e de subjetividade, onde se operam dissociações entre o

individuo e o social, subjetividade e objetividade, entre singular e coletivo (BENEVIDES,

2002; 2005; BOCK, 2003; DIMENSTEIN, 1998; 2001; 2003; OLIVEIRA et al.; 2005).

Na reconfiguração histórica que vem sendo empreendida no setor saúde, novos

espaços são criados (como o NASF e Residências Multiprofissionais) de modo que se

possibilita uma participação diferenciada dos psicólogos nos sistemas de saúde. Nesse

processo, o profissional psicólogo se vê diante de certo “despreparo histórico” da categoria

para desenvolver um trabalho em sintonia com os imperativos de mudança. Em particular, na

realidade brasileira, um modelo de formação limitado ainda apresenta-se como desafio para o

avanço das práticas “psis”. Tal modelo de formação caracteriza-se pela centralização

excessiva na atividade clínica tradicional e na prática psicoterapêutica de longa duração, ainda

apresentando restrições na abordagem formativas das inovações requisitadas para o campo da

Saúde Coletiva (DIMENSTEIN, 2003; TRAVERSO-YÉPEZ, 2001). Diante desta realidade,

diversas iniciativas de modificação de projetos político-pedagógicos vêm sendo empreendidas

40

nos cursos de graduação em Psicologia para tentar suprir as lacunas existentes, como foi o

caso dos cursos de Psicologia da UFC.

Regina Benevides (2005), ao discutir a relação entre a Psicologia e o SUS, destaca a

existência de cenário de disputa no campo saúde, em tempos de capitalismo neoliberal, que

requer um posicionamento ético-político por parte dos psicólogos. A partir de sua experiência

de atuação no Ministério da Saúde, a autora ressalta a necessária luta contra a fragmentação

de processos de trabalho, a desarticulação de projetos, programas e secretarias, bem como a

separação entre os regimes de atenção e gestão da saúde. A autora lamenta a pouca produção

no campo da Psicologia sobre Saúde Pública e critica os modos de intervenção psicológicos

que se restringem à clínica individual e privada, bem como os que não apresentam

proposições efetivas na superação da dicotomia indivíduo-sociedade. Ao pensar os caminhos

e horizontes de aprimoramento da inserção da Psicologia no SUS, Regina Benevides (2005)

defende que a atuação do psicólogo deve sintonizar-se, num nível macro-político, com os

princípios e diretrizes do SUS e, num nível micro político, com processos de construção de

subjetividades dos vários atores envolvidos no trabalho em saúde. A mesma autora critica a

naturalidade com que, muitas vezes, se coloca a Psicologia longe dos domínios da política,

como se subjetividade e política não tivessem uma necessária ligação.

Duas realidades (interna/externa) em constante articulação, mas sempre duas

realidades dadas a serem olhadas com seus específicos instrumentos de análise. Esta

operação não se faz sem conseqüências e uma delas tem sido, justamente, a de

manter em dois registros separados: o sujeito/indivíduo e o social, o desejo e a

política (BENEVIDES, 2005, p.22).

Benevides combate a ideia de que o desejo é da ordem do individual e a política da

ordem do coletivo. Este tipo de análise opera uma despolitização das questões subjetivas, uma

despolitização que acaba por separar a micro da macro-política.

[...] é a partir da fundação da Psicologia nestas dicotomias que o individual se

separou do social, que a clínica se separou da política, que o cuidado com a saúde

das pessoas se separou do cuidado com a saúde das populações, que a clínica se

separou da saúde coletiva, que a psicologia se colocou à margem de um debate

sobre o SUS (BENEVIDES, 2005, p.22).

Magda Dimenstein (2001), ao discutir o componente do compromisso social de

psicólogos na Saúde Coletiva, nos faz pensar no sentido das mudanças a serem empreendidas.

Para ela, trata-se não só da mudança no perfil de um profissional, mas da

construção/formação de agentes de mudança, a partir de um compromisso social perante o

ideário do SUS e seus usuários. Partilhando com as ideias da autora, enfatizamos a

necessidade de um questionamento crítico da prática profissional do psicólogo, nas equipes

41

em saúde, no que diz respeito à sua relevância para o “pensar” e o “fazer” em saúde, quanto

as suas contribuições específicas para a consolidação e melhoria da qualidade do SUS.

Para Dimenstein, “é preciso uma reconstrução da subjetividade dos trabalhadores do

campo da saúde, bem como alterar a cultura hegemônica” (2001, p.58) nas instituições do

setor. A autora discute que as modalidades de trabalho caracterizadas pela burocracia,

alienação e “mecanização” vêm gerando distanciamentos dos trabalhadores entre si e com os

usuários dos serviços de saúde. Os psicólogos, nesse processo, precisam desenvolver uma

nova concepção de prática profissional associada à ação de “cidadanização”. Pelo já dito até

aqui, fica patente que, para o fortalecimento do SUS na perspectiva da Saúde Coletiva,

precisamos de profissionais de saúde que, como agentes de mudança, sejam capazes de

resgatar a historia de vida dos usuários, indo além da sintomatologia e do diagnóstico,

gerando reflexões que articulem e problematizem os determinantes sociais e desenvolvam

estratégias de cuidado capazes de modificar a realidade dos usuários na melhoria da qualidade

de vida e transformação das condições sociais desfavoráveis à promoção da saúde. Estamos

diante, portanto, de um enorme desafio colocado à Psicologia e aos psicólogos.

A Psicologia não pode ficar “míope” frente à realidade social em que os usuários do

SUS estão inseridos (DIMENSTEIN, 2001), sob o perigo de desenvolver uma prática

ideológica de “psicologismo” dos problemas sociais e esconder as relações de opressão e

exploração, que estão na base de problemas psicológicos/de saúde (MARTÍN-BARÓ, 1998).

A discussão sobre os saberes e práticas da Psicologia na Saúde Coletiva, a partir dos cenários

do SUS, deve levar em consideração as críticas que se operam na separação entre clínica e

política, colocando esta cisão como empecilho para o desenvolvimento da Psicologia no

campo (BENEVIDES, 2005). O debate sobre a inserção da Psicologia no SUS é permeado

por alguns princípios éticos destacados, como: a inseparabilidade, a autonomia e co-

responsabilidade e a transversalidade. A inseparabilidade entre a Psicologia e a Política, entre

o individual e o coletivo, entre a clínica e o social ocorre efetivamente, pois “os processos de

subjetivação se dão num plano coletivo, plano de multiplicidades, plano público”

(BENEVIDES, 2005, p.23). O princípio da autonomia e co-responsabilidade remete a

conceber que todos são responsáveis e protagonistas no mundo e assim devem se

comprometer com os caminhos que damos às nossas vidas. O princípio da tranversalidade

fala da necessidade de uma inter-relacão da Psicologia com outros saberes na Saúde Coletiva.

Concordamos com Benevides quanto à necessária integração entre clínica e política,

da necessária compreensão e reforçamento da dimensão social da clínica. No entanto,

acreditamos que a indissociabilidade da qual a autora fala deve ser tomada criticamente,

42

questionando a acomodação dos profissionais psicólogos dentro de um modelo clínico

hegemônico curativista e individualista, com implicações políticas questionáveis. A

reprodução dos modelos de atuação precisa ser questionada nos planos éticos e científicos,

indagando sobre a pertinência das práticas aos contextos socioculturais dos serviços públicos

de saúde. Dentro do contexto atual, da necessária emergência de novas práticas,

compreendemos a impossibilidade de separação entre clínica e social, pois sabemos o valor

político e social da intervenção clínica. Entendemos, nesse mesmo contexto, que a psicologia

precisa aprimorar seu fazer profissional no âmbito da atuação social, que se diferencia do

trabalho mais especificamente clínico e, ao mesmo tempo, não deve ser separado deste

(NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011).

Carvalho, Bosi e Freire (2009) analisam atuações da Psicologia no campo da Saúde

Coletiva, enfatizando limites e pontencialdades das ações que começam a emergir nessa

interface. Os autores destacam que as relevantes interfaces entre Psicologia e Saúde Coletiva,

advêm de um posicionamento ético-político.

Em suma, o que se reitera é a necessidade de o psicólogo se assumir como um

sujeito ético-político que busca constantemente refletir sobre seu modo de estar a

serviço do outro, sobre as relações construídas em seu entorno e sobre a criação de

espaços de diálogo e de revisão das práticas de saúde, em especial aquelas mantidas

e reproduzidas no espaço público (CARVALHO; BOSI; FREIRE, 2009, p. 72).

Esse defrontar-se com a realidade das demandas do campo da saúde, especialmente

na ESF, coloca a Psicologia diante de necessárias revisões dos modelos de prática. Esse

processo de inserção da profissão no contexto da APS do SUS, evidencia um conjunto de

lutas simbólicas dos agentes e instituições interessados na construção das práticas

psicológicas. Esse processo é prenhe de interlocuções entre diversas perspectivas

epistemológicas, resultando em renovações e ancoragens aonde determinadas tradições

teóricas e metodológicas vem se afirmando historicamente. No contexto da presente pesquisa,

interessa-nos a análise das percepções dos profissionais, sobre o processo de construção

dessas práticas na ESF. Tais percepções nos permitem refletir sobre posições e

posicionamentos da categoria, dentro do contexto dos modelos de prática em saúde, frente aos

dilemas cotidianos dos serviços de saúde no SUS.

43

2.3.1 Psicologia na Atenção Primária à Saúde do SUS

No que tange as ações da Psicologia na ESF, estamos participando do desenrolar de

uma breve, porém rica história cheia de possibilidades e avanços. Para Camargo-Borges e

Cardoso, a ESF requer uma conduta profissional mais coletiva do que individual. E a

Psicologia, nesse contexto, “dispõe de ferramentas que poderão ser úteis para a construção de

um modelo mais integrado e holístico de atenção à saúde” (CAMARGO-BORGES;

CARDOSO, 2005, p.28).

Moreno et al (2004), a partir da experiência de desenvolvimento do Programa de

Residência Multiprofissional em Saúde da Família iniciada em 2001, em Sobral,

estabeleceram como prioridades para a Psicologia na ESF: buscar contribuir para uma

dinâmica familiar saudável; facilitar sistemas democráticos nas organizações que se integram

no território de saúde; fortalecer a autonomia e co-responsabilidade comunitária; e mobilizar

sujeitos promotores da saúde. Veremos que essas prioridades são pertinentes à ESF, mas a

adesão a elas é resultado de processos sociais permeados por disputas simbólicas.

Para Camargo-Borges e Cardoso, a Psicologia traz contribuições importantes para a

ESF, pois tem expertise nos estudos sobre relações humanas, interações e afetos, podendo

contribuir para a construção dessa estratégia do SUS, já que esta vem tentando se pautar por

práticas mais relacionais, onde se valorizam o vínculo e os laços de compromisso

(CAMARGO-BORGES; CARDOSO, 2005, p.31). Em trabalhos anteriores, questionamos as

contribuições que a Psicologia traz para o avanço da ESF, no plano da intervenção social. Os

resultados apontaram que os psicólogos vêm se movimentando no sentido de desenvolver

atividades que vão além da clínica individual e do tratamento de psicopatologias, buscando

dar resposta aos imperativos de ampliação do olhar para o processo saúde-doença-cuidado e

de atuar no fortalecimento do desenvolvimento humano e comunitário no campo da Saúde

Coletiva. Destacamos a necessidade de ampliação do papel historicamente ocupado pela

Psicologia no setor saúde, especialmente, no âmbito da intervenção social como possibilidade

para o aprimoramento da inserção dos psicólogos na ESF. O estudo aponta também que muito

se tem que avançar para a consolidação da ESF como modelo inovador das práticas de saúde.

Ficou exposta a necessidade de se aprofundar os estudos psicológicos no campo saúde,

principalmente, no que concerne ao trabalho social e comunitário (NEPOMUCENO, 2007;

NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011).

Em outro trabalho (Conselho Federal de Psicologia, 2009), a partir das experiências

em RMSF investigadas no estudo citado e da análise da experiência vivida na ESF, em

44

Sobral, expusemos uma diversidade de atividades desenvolvidas pelos psicólogos na ESF.

Vejamos as ações já realizadas por psicólogos nesse cenário:

Ações de territorialização e planejamento local de saúde

Ações de Acolhimento e Humanização dos serviços de saúde

Visitas domiciliares

Ações de suporte à saúde mental (atendimento individual/ambulatorial, atendimento

de casal e famílias, grupos terapêuticos, triagem, grupos de crescimento pessoal,

participação nos processos organização dos serviços ofertados e organização da

demanda)

Atividades nas escolas

Atuação/facilitação em grupos da ESF (gestantes, hipertensos, diabéticos, idosos,

adolescentes, crianças, hanseníase e outros)

Participação nos espaços de formação interdisciplinar e de categoria profissional

Facilitação de processos de educação permanente junto às Equipes de Saúde da

Família e demais profissionais do território, facilitando a disseminação de

conhecimentos próprios da Psicologia para o campo interdisciplinar

Atuação junto a rodas e ou reuniões das equipes multiprofissionais, potencializando

os processos grupais

Ações comunitárias e de articulação de redes sociais

Consultoria social e organizacional a projetos sociais e instituições dos territórios

Outras ações de fomento à participação e controle social, como atuação junto a

conselhos de saúde e associações de moradores. (CONSELHO FEDERAL DE

PSICOLOGIA, 2009).

No referido trabalho, concluímos que “nosso momento histórico revela ainda uma

baixa apropriação das políticas públicas de saúde, pouca consistência teórica, metodológica e

epistemológica para a atuação no novo paradigma de saúde, principalmente, no que tange ao

campo da intervenção social” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2009, p.59).

Percebemos que atualmente, as discussões sobre a Psicologia na ESF tem se ampliado e tem

consolidado um conjunto de críticas aos modelos tradicionais de atuação, hegemonicamente

centrados numa clínica reducionista e individualista (NEPOMUCENO, BRANDÃO, 2011).

Macedo e Dimenstein (2011) discutem o processo de expansão e interiorização da

Psicologia, especialmente como decorrência da ampliação de espaços abertos pelas políticas

sociais e, bem como pela expansão dos cursos de formação em psicologia nas últimas

décadas. O deslocamento de profissionais em cidades de médio e pequeno porte e sua

ampliada participação nas políticas de saúde e assistência social é problematizada no sentido

de indagar sobre os modelos de prática e posicionamentos da profissão frente aos problemas

sociais vividos na esfera municipal. A expansão dos espaços de prática para a psicologia é

analisada pelos autores:

Foram as articulações junto aos movimentos sociais e demais setores da sociedade

civil organizada, bem como as negociações com o Estado brasileiro, que

fortaleceram a presença da Psicologia no campo das políticas públicas, garantindo

assim a sustentabilidade da profissão através da ampliação de suas possibilidades de

45

inserção no mercado profissional. [...] Isso diversificou, sobremaneira, tanto os

domínios clássicos de atuação desse profissional, até então voltados maciçamente

para o consultório privado e, em menor número, para a prestação de serviços na

esfera da educação e da educação especial e para empresas ligadas à administração

pública ou ao setor privado nos mais variados ramos da indústria, do comércio e de

serviços; quanto as localidades de atuação dos psicólogos, de forma a não mais

restringir a profissão apenas às capitais e aos grandes centros urbanos, mas,

sobretudo, às cidades de médio e pequeno [...]Foi esse um movimento, portanto, de

duplo reposicionamento da profissão no País, que evitou, assim, o seu colapso em

função do crescimento significativo do número de psicólogos a cada ano, o que

resultaria, em um futuro próximo, na saturação do seu mercado profissional.

(MACEDO; DIMENSTEIN, 2011, p.299).

As políticas e programas sociais (como a ESF, os Centros de Atenção Psicossocial,

os CREAS etc) são responsáveis pela expansão dos espaços de prática da psicologia e pela

interiorização da psicologia no Brasil, onde há uma maior participação de psicólogos nos

municípios de médio e pequeno porte. Diante desse contexto, concordamos com Macedo e

Dimenstein (2011), que a psicologia enfrenta desafios colocados pela realidade dos

municípios, e que expõe os limites das práticas psicológicas tradicionais. Os problemas

socioeconômicos e políticos dos municípios brasileiros constituem uma realidade a qual a

psicologia se vê pouco instrumentalizada para atuar. Nesse âmbito, a psicologia precisa se

questionar diante de novas conjunturas de reorganização de saberes e poderes na relação com

a sociedade brasileira. Assim, é preciso se posicionar frente a uma “permanente ação

reatualizadora do clássico modelo individualizante/privatizante que deu visibilidade à

Psicologia como profissão e que disseminou profundamente nossa identidade e nossa cultura

profissional para vários estratos da sociedade brasileira na atualidade” (MACEDO;

DIMENSTEIN, 2011, p.302).

Os mesmos autores, em estudo sobre o trabalho de psicólogos nas políticas sociais no

Brasil, problematizam os modos de atuar da psicologia no cotidiano de políticas de atenção

básica em saúde e na assistência social (MACEDO; DIMENSTEIN, 2012). Os dilemas

vividos por psicólogos nesses espaços, especialmente no que tange à precariedade das

condições de trabalho e as limitações dos modelos de prática vigentes na psicologia, nos

permitem destacar a importância da discussão do papel social da psicologia e da necessidade

de reformular as bases técnicas e conceituais para a atuação nas políticas sociais. Macedo e

Dimenstein (2012) destacam a precarização das condições de trabalho nas políticas sociais

brasileiras como geradoras de insatisfações permanentes aos profissionais psicólogos. Nesse

contexto, os profissionais convivem com fragilidades nos vínculos empregatícios, baixa

remuneração, estruturas insuficientes para a realização dos atendimentos, falta de material

para o trabalho, problemas de transporte para realização de visitas domiciliar e precariedade

46

da rede de serviços para dar o suporte necessário aos encaminhamentos. As condições

precárias de trabalho corroboram para o desprestígio desses espaços como campos de

trabalho. Dentre as questões apontadas por Macedo e Dimenstein (2012), destacamos que as

experiências de psicólogos nas políticas sociais têm proporcionado situações de

problematização cotidiana das práticas profissionais pela aproximação com a realidade da

população assistida nessas políticas. O encontro dos psicólogos com a dura realidade dos

problemas sociais é marcado por inseguranças e desconfortos, colocando os profissionais em

permanentes tensões e sensações de impotência, no lidar com a magnitude dos desafios aos

quais estão expostos. Evidencia-se, nesse contexto a necessidade de se construir uma atuação

profissional do psicólogo diferenciada dos modelos tradicionais de atuação voltada para

questões coletivas e posicionamentos políticos diante das condições sociais e relações de

força instituídas nesses espaços de prática.

Como vimos, os cenários da ESF configuram-se de forma complexa em terrenos

férteis para investigações, onde podem ser feitas diversas pontes, interlocuções e

sistematizações para discutir as práticas constituídas na interface entre Psicologia e Saúde

Coletiva. Fica patente a necessidade de compreender a participação dessa categoria

profissional no processo de trabalho em saúde, quais as práticas desenvolvidas, quais desafios

são enfrentados pelos psicólogos inseridos na ESF, como os atores sociais implicados vêm

atribuindo sentidos e significados às experiências vividas, como elaboram respostas teóricas

para os desafios do cotidiano de práticas e qual a posição epistemológica que a Psicologia

vem ocupando nesse entrelaçamento com o campo interdisciplinar da Saúde Coletiva.

2.4 Apontamentos sobre os sentidos históricos das práticas psicológicas no Brasil

Segundo Pereira e Pereira Neto (2003), o processo de consolidação da psicologia no

Brasil pode ser dividido em três períodos: o período pré-profissional (1833-1890): onde temos

a circulação de ideias psicológicas no período colonial; o período da profissionalização

propriamente dita (1890/1906-1975), onde temos a constituição de um mercado de trabalho

para os psicólogos; e o período profissional (1975 até os dias atuais), onde há a expansão da

profissão.

O período pré-profissional é marcado pela produção das ideias psicológicas no Brasil

e é bastante influenciada por um conjunto de instituições que se construíram após a chegada

da família real (1808) e a oficialização da independência frente à metrópole Portugal (1822).

No que diz respeito ao período colonial, as ideias psicológicas aparecem associadas ao

47

empreendimento colonizador, subsidiando a constituição de estratégias de dominação social

como, por exemplo: a preocupação com a educação dos índios e a aculturação, a educação

moral e o controle/cura das emoções (ANTUNES, 2007). As ideias psicológicas aparecem

especialmente por meio da criação de cursos superiores e sociedades científicas onde se

destacam as faculdades de Medicina (Bahia e Rio de Janeiro) responsáveis pelo

desenvolvimento de trabalhos dentro das perspectivas da higiene mental, psiquiatria forense,

neuropsiquiatria e neurologia. A psicologia experimental marcava os estudos a partir da

mensuração e classificação dos comportamentos e indivíduos, num trabalho de forte

influência da psicofísica e do uso de testes na psiquiatria e posteriormente na educação e no

trabalho (ANTUNES, 2007; PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003).

No final do século XIX e início do século XX, dentro de um conjunto de mudanças

socioeconômicas que modificavam progressivamente o perfil e a dinâmica das cidades, cresce

o interesse pelos ‘desvios’ e ‘erros’ individuais, tornando relevante socialmente as

intervenções psicológicas. Nesse contexto, a psicologia coloca-se como alicerce para um

conjunto de estratégias de controle social. Segundo Antunes (2007), transformações sociais e

políticas decorrentes do avanço do capitalismo, transformaram-se em fortes influenciadoras

da psicologia.

Era necessário buscar o controle, não apenas de problemas como epidemias, mas

também da conduta humana. A isso acrescenta-se que a ideologia burguesa

colocava no indivíduo o fundamento de uma sociedade baseada na propriedade

privada, portanto pessoal e individual; fazia-se necessário compreender o homem

nessa dimensão. (ANTUNES, 2007, p. 33).

Nesse período evidencia-se o desenvolvimento dos testes de inteligência, as técnicas

de mensuração e diferenciação como estratégias de pensamento e ação da Psicologia. A

psicologia científica tem sua participação, de destaque, notadamente no contexto das

instituições educacionais e da medicina (ANTUNES, 2007; PEREIRA; PEREIRA NETO,

2003).

A psicologia encontra no campo da Educação um espaço de expansão e

reconhecimento, particularmente no que diz respeito a sua importância como ciência base

para a prática pedagógica. Destacam-se nesse processo histórico de inserção da ciência

psicológica na educação a Reforma Benjamim Constant (1890), que incorpora a disciplina de

psicologia nos currículos das Escolas Normais, e a criação do Laboratório de Psicologia

Experimental no Pedagogium (1890-1919) - instituição educacional com museu, cursos e

pesquisas pedagógicas, onde se produzia conhecimento sobre inteligência, motivação,

atividades sensoriais. No contexto do escolanovismo, que preconizava uma escola de base

48

científica para o desenvolvimento social, o ensino da psicologia começa a ser praticado no

relacionamento com a pedagogia, que usa a psicologia para adquirir status científico. Nesse

período, temos um avanço na institucionalização, mas uma vinculação da psicologia a outra

profissão (ANTUNES, 2007; PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003).

Além da educação/pedagogia a medicina é um campo onde a psicologia encontra

espaço para sua institucionalização. Em 1923, encontramos um exemplo especial da

materialização do interesse pela psicologia com a criação de um Laboratório de Psicologia

Experimental na Colônia de Psicopatas do Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, o qual

voltava-se, em geral, para a realização de testes psicométricos e psicoterapia. Difundiram-se

laboratórios de psicologia em vários hospícios (ANTUNES, 2007). A relação com a Medicina

geralmente era de subordinação do psicólogo frente ao médico, que buscava se apropriar o

espaço de saber e fazer psicológico:

Se, por um lado, a medicina, através da psiquiatria, criou condições para o

desenvolvimento da psicologia brasileira, por outro, ela buscou apropriar-se do

universo psi. Com isso, sua estratégia passou a ser a de transformar a psicologia em

especialidade médica (PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003, p.22).

O processo de profissionalização da psicologia no Brasil, nas décadas de 30 e 40,

refletiu-se na formação de cátedras de psicologia nas Universidades ligadas à medicina,

educação e filosofia. Em 1942, a portaria 272 (Decreto de lei 9092) institucionaliza a

formação do profissional psicólogo: “O psicólogo habilitado legalmente deveria freqüentar os

três anos primeiros de filosofia, biologia, fisiologia, antropologia ou estatística e fazer então

os cursos especializados de psicologia” (PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003, p.23). Nas

décadas de 40 e 50, temos a expansão da atuação nas áreas do trabalho

industrial/organizacional, servindo à administração racional do trabalho, ajustamento dos

funcionários para o desempenho otimizado de tarefas, através das classificações, seleção e

recrutamento de pessoal. Nos anos 50, 60 e 70, temos a criação de vários cursos de psicologia

no Brasil, inicialmente no Rio de Janeiro (PUC-RJ) e São Paulo (USP). Com a consolidação

de cursos de psicologia na graduação e também pós-graduação (décadas de 60 e 70), como

destacam Pereira e Pereira Neto (2003, p.23), o exercício profissional “passou a estar

amparado cada vez mais em um conhecimento esotérico, inatingível e incompreensível por

leigos. Assim, a profissão legitimou-se academicamente para lutar pelo domínio de segmentos

importantes do mercado de trabalho”.

Até os anos da ditadura militar e no decorrer desses travam-se disputas no processo

de produção de subjetividades, em que os ideais de esquerda e as lutas populares transitam na

49

construção social das realidades cotidianas brasileiras. Esse processo é marcante nas relações

entre Estado e Sociedade, em que o governo ditatorial militar impõe um brutal aparato

repressivo demarcando um modelo de desenvolvimento socioeconômico e cultural

extremamente excludente e antidemocrático. O terrorismo de Estado passa a caracterizar as

ações governamentais nos campos políticos e culturais e instituir-se na produção de

subjetividades silenciadas (COIMBRA, 1996). A família e a intimidade aparecem como os

territórios de fuga, espaços de resistência à repressão e também de controle, onde se produz

subjetividades entre a ortodoxia e heterodoxia sociocultural. Como destaca Coimbra:

O privado, o familiar, torna-se o refúgio contra os terrores da sociedade, nega-se o

que acontece fora e volta-se para o que acontece dentro de si, de sua família. [...]Esta

visão intimista da sociedade, na qual as pessoas se preocupam apenas com as

histórias de suas próprias vidas e com suas emoções particulares, em que o mundo

exterior parece nos decepcionar, parece vazio e sem atrativos, fortalece, deste modo,

a privacidade familiar e a interiorização das pessoas. No capitalismo, o intimismo

penetra obsessivamente nas relações humanas e torna-se natural sempre se estar

perguntando o que uma pessoa ou um acontecimento significam. A intimização

passa a ser uma preocupação constante, particularmente nos anos 70, nas classes

médias urbanas brasileiras, criando a ilusão de que uma vez que se tenha um

sentimento ele precisa ser manifestado (COIMBRA, 1996, p.32-33).

O intimismo como elemento sociocultural está diretamente associado às relações dos

sujeitos com seus corpos, com os outros, com os processos sociais e com a esfera do público.

Diretamente relacionado à construção de um espaço de intervenções para a psicologia, como

ciência e profissão, bem como à transformação de problemas socioculturais, econômicos e

políticos em questões psicológicas, reduzidas a variáveis individuais e a problemas de ordem

“interior” e de “conhecimento de si”. A psicologização de problemas sociais é uma das

decorrências práticas da atuação da psicologia, que se constitui hegemonicamente na América

Latina (MARTÍN-BARÓ, 1998) e no Brasil (COIMBRA, 1996).

Coimbra (1996) destaca que, no período da ditadura, os profissionais "psi",

colaborando com as estratégias de repressão política do Estado, forneceram, com suas práticas

nas diferentes abordagens, aval teórico/técnico para fortalecer uma cultura intimista e

individualista e, dentre outras questões, justificar intervenções estatais sobre indivíduos

classificados como desequilibrados, desestruturados e doentes. Para a autora, algumas práticas

"psis" nos anos 70 colaboraram “para a manutenção e o recrudescimento das subjetividades

hegemônicas que sustentaram em muitos aspectos o estado de terror que se abateu sobre o

país” (COIMBRA, 1996, p. 206).

A regulamentação da profissão veio em 27 de agosto de 1962, através da lei nº 4119.

Em 1971, são criados os Conselhos de Psicologia e, em 1975, é criado o código de ética da

50

profissão. Todos marcos apresentados aqui são importantes para a análise do processo de

institucionalização da profissão de psicólogo no Brasil. No contexto da presente pesquisa, o

processo de profissionalização da psicologia remete a um complexo contexto em que agentes

e instituições lutam pela autonomia e reconhecimento social da profissão. No que diz respeito

ao presente estudo, é importante destacar que o processo de inserção da psicologia na

sociedade brasileira tem sido ampliado a partir da ESF. Especialmente no que tange ao campo

das políticas públicas de saúde, entendemos que vivemos um processo histórico de

atualização dos campos de saber e fazer profissionais da psicologia, que vem ampliando os

diálogos com a sociedade brasileira.

Para Coimbra e Leitão (2003), as práticas psicológicas em muito tem contribuído

para a reificação da cultura individualista, em sintonia com o modo de produção de

subjetividades capitalístico, perpassado pela constituição histórica de uma psicologia

privatista, intimista e familiarista, integrada ao desenvolvimento sociocultural do capitalismo,

e incumbida de naturalizar e normatizar o que as autoras chamam de “modo-de-ser

indivíduo”. Assim a psicologia constitui-se historicamente como um equipamento social

voltado para a psicologização da vida social.

Diante das mudanças que vem ocorrendo no campo da saúde, tanto em nível

internacional como nacional, os fatores psicológicos passam a ser cada vez considerados

como relevantes na produção de saberes e práticas. Nesse contexto, vemos a subjetividade ser

colocada como um categoria analítica central para compreender o processo saúde-doença. A

Psicologia, nesse contexto, passa a ser requisitada em diversos cenários de atuação e produção

científica em saúde, possibilitando uma ampliação de suas práticas no contexto das políticas

públicas de saúde. Partindo do reconhecimento de um contexto de histórico de compromisso

social da psicologia com as elistes brasileiras (BOCK, 2009), bem como das possibilidades de

mudança decorrentes da expansão e interiorizaçao das práticas psicológicas nas políticas

sociais (MACEDO; DIMENSTEIN, 2011; 2012; YAMAMOTO, 2009), entendemos ser

importante a busca por ampliar análises e compreensões sobre o processo complexo de

inserção da psicologia na ESF.

Nossa perspectiva, aqui, é contribuir com o debate sobre a ampliação da inserção da

psicologia nas políticas públicas de saúde, especialmente a partir da análise das práticas

psicológicas na APS do SUS. Nosso intuito é possibilitar, a partir de diálogos com atores

envolvidos com os cenários de práticas, uma melhor compreensão sobre o papel desenvolvido

pela profissão na construção de alternativas práticas na atenção às necessidades de saúde da

população assistida nos cenários da ESF. Esperamos, com o presente trabalho, subsidiar a

51

produção de saberes e práticas profissionais contextualizados aos desafios éticos e políticos

colocados no cotidiano das práticas de atenção à saúde no SUS.

52

3 REFERÊNCIAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Em toda a elaboração desse trabalho nos orientamos pela ideia de que há uma

inseparabilidade entre elementos teóricos e metodológicos. Nessa imbricação teoria-método, o

uso de um conceito, na pesquisa, já implica num conjunto de escolhas metodológicas e, vice-

versa, cada escolha metodológica tem repercussões no tipo de reflexão teórica que se propõe.

Assim, algumas referências nos foram importantes na construção do objeto, nos

direcionamentos de investigação, na relação com o objeto, enfim, num conjunto articulado de

questões de fundamentação epistemológica da pesquisa.

Na presente pesquisa temos como referenciais teóricos algumas das ideias de Pierre

Bourdieu, de suas proposições para uma sociologia reflexiva, e de Paul Ricoeur e sua

proposta hermenêutica. Em Bourdieu, trabalhamos com os conceitos de campo social, habitus

e poder simbólico como instrumentos teóricos para delimitar o objeto da pesquisa e

aprofundar análises. Em Paul Ricoeur, trabalhamos com a ideia de uma hermenêutica que

integra as atitudes explicativa e compreensiva, tanto diante do texto quanto diante da ação

humana e da história. Fez parte também de nossa pesquisa teórica, uma breve incursão no

campo da sociologia das profissões, especificamente no que diz respeito à discussão sobre o

processo de profissionalização a partir das categorias de autonomia e identidade profissionais.

Como abordado na introdução, a pesquisa foi construída no contexto de um

movimento de análises e autoanálises, em que a aproximação com a sociologia de Bourdieu

foi importante, especialmente, para encontrar um caminho intermediário entre o

distanciamento e a aproximação frente à realidade estudada. Um elemento decisivo na escolha

do referencial bourdieusiano foi a necessidade de, na construção do objeto, delimitar um

posicionamento crítico frente a uma realidade com a qual o pesquisador tem imbricada uma

trajetória de formação e atuação profissional. A obra de Bourdieu nos forneceu grandes

impulsos e inspirações teóricas. No que diz respeito a referenciais mais explicitamente

epistemológicos, a noção de reflexividade, de vigilância epistemológica e a proposição de

uma abordagem estruturalista-construtivista (BOURDIEU, 2004b), foram notáveis

contribuições de Bourdieu para a delimitação teórico-metodológica realizada. Entendemos,

em consonância com o pensamento do próprio autor, que as ideias e conceitos científicos

precisam ser colocados em prática, fazendo parte de um movimento permanente de

contextualizações e redirecionamentos. Assim, a utilização do referencial bourdieusiano se

deu de forma relativa ao contexto de estudo proposto aqui, num movimento singular de

apropriações. Nesse contexto, as ideias do referido autor são bastante inspiradoras:

53

Diferente da teoria teórica – discurso profético ou programático que tem em si

mesmo o seu próprio fim e que nasce e vive da defrontação com outras teorias –, a

teoria científica apresenta-se como um programa de percepção e de ação só revelado

no trabalho empírico em que se realiza. [...] tomar verdadeiramente o partido da

ciência é optar, asceticamente, por dedicar mais tempo e mais esforços a pôr em

ação os conhecimentos teóricos adquiridos investindo-os em pesquisas novas, em

vez de os acondicionar, de certo modo, para a venda, metendo-os num embrulho de

metadiscurso, destinado menos a controlar o pensamento do que a mostrar e a

valorizar a sua própria importância ou a dele retirar diretamente benefícios fazendo-

o circular nas inúmeras ocasiões que a idade do jacto e do colóquio oferece ao

narcisismo do pesquisador. (BOURDIEU, 2012, p.59).

Colocar em prática os conceitos de Bourdieu e Ricoeur, foi uma experiência de

enriquecimento intelectual significativa, especialmente pela imbricação entre a análise

científica da realidade social e a autoanálise da relação de pertença com a mesma realidade.

Aqui a teoria é entendida como “um modus operandi que orienta e organiza praticamente a

prática científica” (BOURDIEU, 2012, p. 60). Nessa prática da pesquisa os construtos

teóricos dos autores nos forneceram importantes princípios de composição. Assim, no diálogo

com a dimensão empírica da pesquisa, os conceitos progressivamente foram sendo

reelaborados e ganharam relevância heurística para o contexto específico investigado.

3.1 A sociologia reflexiva de Bourdieu

Para Bourdieu (2012), o ensino da pesquisa deve fazer referência à experiência em

primeira pessoa, aproximando os conceitos e métodos da realidade prática e circunscrita do

pesquisar. É nesse contexto que o conceito de vigilância epistemológica é proposto, visando

a delimitação de uma espécie de postura de pesquisar, que deve colocar a análise dos objetos

ligada a análise do percurso metodológico, das tentativas de aproximação e apreensão. Assim,

vigilância epistemológica constitui-se como processo permanente de reflexão capaz de

colocar em análise o uso das técnicas, teorias e métodos frente à construção do objeto. Dessa

forma, toda operação metodológica (em vias de se fazer) deve ser analisada por si mesma e

pela aplicação a casos particulares. Podemos dizer que a palavra vigilância, representa uma

postura ativa de criticidade atenta ao devir da pesquisa. Vigilância epistemológica, por sua

vez, refere-se à necessidade de uma ação e uma disposição para “apreender a lógica do erro”

no esforço para submeter os produtos da ciência e seus métodos à retificação metódica

permanente (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2010). Na proposição de que “a

sociologia da sociologia deve acompanhar a prática da sociologia” (BOURDIEU, 2008,

p.155), a ciência social, tomando-se a si mesma como objeto, se serve das suas próprias armas

54

para se compreender e se controlar. Esse processo operacionaliza-se na prática da vigilância

epistemológica, bem como na construção coletiva de estratégias de censuras mútuas, num

trabalho de criação de mecanismos voltados para uma crítica técnica, que permite controlar de

forma mais atenta os fatores sociais e políticos susceptíveis de alterar o sentido da

investigação. Nessa perspectiva, a proposta é a de buscar exercer uma forma específica de

vigilância partindo do entendimento de que obstáculos epistemológicos são também sociais e

políticos.

A reflexividade na pesquisa, então, diz respeito ao fato de que “um trabalho de

objetivação só é cientificamente controlado em proporção da objetivação que se fez

previamente sobre o sujeito da objetivação” (BOURDIEU, 2008, p.128). Para Bourdieu, é

preciso objetivar a objetivação, constituindo na pesquisa uma relação dialética entre análise

do objeto e auto-análise da relação com o objeto. Colocam-se em questionamento as

condições de possibilidade da experiência do sujeito cognoscente. Esse questionamento

direciona-se para: 1) objetivar a posição no espaço social global do pesquisador, sua posição

de origem e trajetória, elucidando sua pertença e adesões sociais e religiosas; 2) objetivar a

posição ocupada no campo dos especialistas, da disciplina e suas especificidades; e 3) prestar

particular atenção à ilusão da ausência de ilusão, do ponto de vista puro, absoluto,

‘desinteressado’ (Bourdieu, 2008, p.130). O objetivo da reflexividade, na prática, é buscar

libertar o cientista das distorções ligadas à sua posição e disposições. Como consequência,

podemos ter a destruição de falsos problemas, o esclarecimento do ponto de vista e trajetória

do pesquisador, tornar mais claro o interesse na “verdade” e no “desinteresse científico”. A

ausência de reflexividade na pesquisa pode significar: “deixar em estado impensado o seu

próprio pensamento [...] ficar condenado a ser apenas instrumento daquilo que ele quer

pensar” (BOURDIEU, 2012, p.36).

Como já apontado, durante todo o processo de realização da pesquisa, fomos

colocando em exercício o princípio da reflexividade, no sentido de reconhecer a necessidade

de autoanálise de nossa relação com o objeto de estudo, o que implicou na necessidade de

distanciamento frente a um conjunto de pertencimentos já referidos na introdução.

3.2 Entre objetivismo e subjetivismo

Construtivismo estruturalista é a autodenominação que Bourdieu utiliza para falar de

sua perspectiva sociológica, construída na busca por superar a dicotomia entre objetivismo e

subjetivismo. O autor esclarece os termos:

55

Por estruturalismo ou estruturalista, quero dizer que existem, no próprio mundo

social e não apenas nos sistemas simbólicos – linguagem, mito, etc. -, estruturas

objetivas, independentes da consciência e da vontade dos agentes, as quais são

capazes de orientar ou coagir suas práticas e representações. Por construtivismo,

quero dizer que há, de um lado, uma gênese social dos esquemas de percepção,

pensamento e ação que são constitutivos do que chamo de habitus e, de outro, das

estruturas sociais, em particular do que chamo de campos e grupos, e

particularmente do que se costuma chamar de classes sociais. (BOURDIEU, 2004b,

p.149).

Integra-se, em Bourdieu, a consideração de aspectos objetivos - que influenciam a

prática e a representação produzida pelos agentes - e o reconhecimento da gênese social do

habitus e dos campos sociais e grupos, que reserva uma especial atenção ao caráter ativo dos

agentes. A contribuição do estruturalismo é pensar a realidade, não como substância, mas

como conjunto de relações. Uma análise sociológica, em seu momento objetivista, constitui

uma visão topológica que identifica posições relativas e relações objetivas entre posições.

Constrói-se um modo de pensar relacional (BOURDIEU, 2004b).

Sob o intuito de discutir o valor heurístico da categoria estrutura, o autor

problematiza a relevância do conceito na apreensão do mundo social – dos grupos,

instituições e indivíduos – e das práticas sociais. Bourdieu propõe-se a uma apropriação

crítica do conceito de classe social como modo de analisar a constituição social dos grupos.

Cada classe social, em sua concepção, ocupa uma posição numa estrutura social

historicamente construída e é afetada pelas relações que estabelece com as outras partes e que

as unem ao todo da mesma estrutura. E é dessas relações historicamente constituídas entre as

partes, posições (dentro da estrutura) e destas com o todo, que advém o que o autor chama de

propriedades de posição. Segundo Bourdieu:

Levar a sério a noção de estrutura social supõe que cada classe social, pelo fato de

ocupar uma posição numa estrutura social historicamente definida e por ser afetada

pelas relações que as unem às outras partes constitutivas da estrutura, possui

propriedades de posição relativamente independentes de propriedades intrínsecas

como por exemplo um certo tipo de prática profissional ou de condições materiais

de existência. (BOURDIEU, 2011b, p.3).

É preciso, no entanto, analisar a estrutura social a partir da relação indissociável no

cotidiano entre propriedades de posição e propriedades de situação. Coloca-se aqui o debate

sobre as possibilidades de generalização na análise sociológica de casos particulares. Nesse

contexto temático, Bourdieu aponta para a necessidade de analisar com profundidade as

relações que se estabelecem entre o todo da estrutura social e os seus elementos relacionados.

A proposição de Bourdieu é que “as estruturas sociais de duas sociedades diferentes podem

apresentar propriedades estruturalmente equivalentes, a despeito das diferenças profundas ao

56

nível das características objetivas das classes que as constituem” (BOURDIEU, 2011b, p.6).

O autor argumenta que a análise estrutural deve levar em conta algumas questões ligadas ao

contexto específico do objeto de estudo sociológico. Há uma variação no modo de explicação

de acordo com a relação de independência entre propriedades de posição e propriedades de

situação. Segundo Bourdieu, a abordagem estrutural não deve somente centrar-se na reflexão

sobre a posição dos grupos, classes e indivíduos, mas também considerar o peso funcional

destes dentro da estrutura, ou seja, deve-se considerar o “peso proporcional à contribuição

dessas classes para a constituição desta estrutura” (BOURDIEU, 2011b, p.12).

Nessa discussão, a posição de um indivíduo ou de um grupo na estrutura social não

pode ser definida e analisada de modo estático, vale-se aqui de uma abordagem da trajetória

social e do destaque ao sentido dessa trajetória dentro de determinados contextos sociais. Em

determinadas situações, em que o sentido da trajetória aponta para direções diversas, grupos

situados em posições semelhantes no presente podem situar-se em lugares opostos e mesmo

conflitantes no futuro. O mesmo pode acontecer com o inverso, posições opostas no presente

podem levar a convergências no futuro, sempre a depender do sentido da trajetória social dos

indivíduos e grupos. A discussão dos sentidos das trajetórias sociais, dentro das estruturas, já

ressalta a contribuição de Bourdieu para a compreensão da dimensão simbólica das relações

sociais, permeadas por uma economia das trocas simbólicas. Para Bourdieu:

Uma classe não pode ser definida apenas por sua situação e por sua posição dentro

da estrutura social, isto é, pelas relações que mantém objetivamente com as outras

classes sociais. Inúmeras propriedades de uma classe social provém do fato de que

seus membros se envolvem deliberada ou objetivamente em relações simbólicas

com os indivíduos das outras classes, e com isso exprimem diferenças de situação e

de posição segundo uma lógica sistemática, tendendo a transmutá-la em distinções

significantes. (BOURDIEU, 2011b, p.14).

Bourdieu considera importante a análise das práticas de socialização dos agentes, as

quais se ligam diretamente às condições e posições de classe ocupadas dentro da estrutura

social. Adotando uma postura crítica para com a busca da compreensão do caráter consciente

dos atos dos agentes, Bourdieu destaca que a ação individual decorre, em muito, da posição

do agente dentro da estrutura social. Mesmo que ainda se preserve uma autonomia relativa

dos agentes, essa dimensão individual da ação é perpassada pela constituição de disposições

incorporadas pelos agentes através de processos de socialização vividos em espaços sociais

organizados historicamente.

Na descrição de todo o processo de construção de sua abordagem sociológica,

situada entre o objetivismo e o subjetivismo, Bourdieu reconstrói-se teoricamente na

passagem da física social para a fenomenologia social:

57

A ‘realidade social’ de que falam os objetivistas também é um objeto de percepção.

E a ciência social deve tomar como objeto não apenas essa realidade, mas também a

percepção dessa realidade, as perspectivas, os pontos de vista que, em função da

posição que ocupam no espaço social objetivo, os agentes têm sobre a

realidade.[...].A ruptura objetivista com as pré-noções, com as ideologias, com a

sociologia espontânea, com as folk theories, é um momento inevitável, necessário,

do trabalho científico [...] Mas é preciso operar uma segunda ruptura, mais difícil,

com o objetivismo, reintroduzindo, num segundo momento, o que se precisou

descartar para construir a realidade objetiva. A sociologia deve incluir uma

sociologia da percepção do mundo social, isto é, uma sociologia da construção das

visões de mundo, que também contribuem para a construção desse mundo.

(BOURDIEU, 2004b, p.156-157).

As representações dos agentes variam de acordo com sua posição no espaço social e

segundo um conjunto de disposições incorporadas através de condicionamentos sociais e

históricos. Nesse contexto, o espaço social, para o autor:

[...] apresenta-se sob a forma de agentes dotados de propriedades diferentes e

sistematicamente ligadas entre si[...] Tais propriedades, ao serem percebidas por

agentes dotados das categorias de percepção pertinentes – capazes de perceber que

jogar golfe ‘é coisa’ de grande burguês tradicional -, funcionam na própria realidade

da vida social como signos: as diferenças funcionam como signos distintivos – e

como signos de distinção, positiva ou negativa -, e isso inclusive à margem de

qualquer intenção de distinção[...] Em outros termos, através da distribuição das

propriedades, o mundo social apresenta-se, objetivamente, como um sistema

simbólico que é organizado segundo a lógica da diferença, do desvio diferencial. O

espaço social tende a funcionar como um espaço simbólico, um espaço de estilos de

vida e de grupos de estatuto, caracterizados por diferentes estilos de vida.

(BOURDIEU, 2004b, p.160).

É pela reprodução de relações objetivas entre agentes e instituições nos espaços

sociais e pela constituição de disposições através das trajetórias de socialização dos agentes

que a percepção do mundo é duplamente estruturada. No entanto, os objetos do mundo social

guardam um elemento de incerteza e indeterminação. A pluralidade de visões de mundo e a

elasticidade semântica dos conceitos/categorias precisam ser reconhecidas na busca de

produzir conhecimento sobre o espaço social. A indeterminação dos objetos e a riqueza

semântica das categorias utilizadas para descrever e classificar o mundo também são

pertinentes para pensar as lutas simbólicas para a definição legítima do mundo social, lutas a

propósito da percepção do mundo. As lutas simbólicas pela percepção legítima do mundo se

expressam nas ações de representação individuais ou coletivas, que visam mostrar e fazer

valer elementos específicos como realidades. Tais lutas também se refletem nas ações, que

visam modificar as categorias de percepção e apreciação do mundo, ou seja, as palavras e

categorias que constroem a realidade social. Nesse ínterim, as lutas simbólicas se expressam

nas constantes negociações em que as categorias utilizadas remetem à construção social de

identidades e de sistemas de classificação (BOURDIEU, 2004).

58

No presente estudo, voltado para a interpretação de práticas de psicólogos nos CSF,

buscamos reconhecer a existência de estruturas, que tendem a se reproduzir influenciando e

sendo reconstruídas nas relações sociais cotidianas. Tais estruturas expressam-se nas posições

relativas das profissões e agentes dentro do espaço social e das relações entre as posições.

Dito de outro modo, as estruturas podem ser pensadas como reproduções de posições no

espaço das posições de poder, de posições no espaço do campo do poder (BOURDIEU,

2011b).

O enfoque adotado aqui se volta, especialmente, para a análise das percepções dos

agentes sobre o espaço social da APS, reconhecendo a influência de vetores estruturais

(relações objetivas entre posições relativas no espaço social) existentes, que influem na

reprodução de posições e posicionamentos dos agentes. Estamos assim, nos posicionando no

plano da abordagem dos processos intersubjetivos construídos historicamente nos espaços

estudados, reconhecendo a relação entre aspectos subjetivos e objetivos no contexto das

práticas em saúde. A presente tese volta-se para a análise das percepções, perspectivas e

pontos de vista dos agentes, psicólogos inseridos na realidade cotidiana dos CSF. Reconhece-

se aqui, a possibilidade de discutir de modo significativo parte da heterogeneidade/pluralidade

das posições e posicionamentos da psicologia na ESF, bem como a possibilidade de abertura

de canais de discussão e pesquisa sobre questões pertinentes à realidade social investigada,

que refletem o encontro de vetores diversos que incidem nas práticas profissionais.

3.3 Campo social

Para iniciar nossa discussão sobre o que é um campo social e quais as implicações da

utilização desse conceito em nossa pesquisa, vamos utilizar o exemplo da ciência como

espaço social particular, o campo científico. O conceito de campo social retrata a intenção de

Bourdieu em desenvolver um posicionamento de recusa do internalismo e externalismo no

estudo histórico dos processos sociais. Uma abordagem internalista é aquela que se coloca no

interior mesmo das obras científicas para analisar as operações e “normas específicas que

permitem defini-la como ciência e não como técnica ou ideologia” (PENNA, 1991, p.26). O

internalismo ou história interna foca-se na história intelectual, incorpora biografias, pretende

ser autônoma e toma como referência uma perspectiva indutivista de produção de

conhecimento histórico (PENNA, 1991). Do internalismo, Bourdieu critica a concepção que

entende o processo de perpetuação histórica das ciências como “partenogênese”, onde a

ciência é compreendida como engendrada a si própria, “fora de qualquer intervenção do

59

mundo social” (BOURDIEU, 2004, p.20). O externalismo ou história externa é aquela que,

considerando o conceito hegeliano Zeitgeist5, destaca que “a compreensão da história

significava a compreensão das forças históricas que influenciaram homens e mulheres que

viveram numa determinada época” (GOODWIN, 2005, p.31). Assim, o externalismo utiliza-

se de métodos dedutivos, foca-se na história social e nas influências sociais e culturais à

ciência, condicionando “um ou mais acontecimentos às suas relações com interesses

econômicos e sociais, com exigências e práticas técnicas, com ideologias políticas e

religiosas” (PENNA, 1991, p.26). Das perspectivas externalistas, Bourdieu combate a ideia de

limitar-se a fazer correlações entre textos e contextos sócio-econômicos de modo inapropriado

e sem a consideração das especificidades micro-sociais pertinentes ao meio científico. Assim,

a abordagem teórico-metodológica dos campos sociais, deve levar o pesquisador a ir para

além da obra dos agentes, entendendo-a como sintoma, “sinal intencional dominado e

regulado por qualquer coisa de diferente, de que ela é também sintoma” (BOURDIEU, 2012,

p.73).

Caminhar entre as polaridades do internalismo e externalismo, remete à nossa busca

por um posicionamento frente ao processo histórico analisado aqui, da inserção da Psicologia

na APS do SUS. A ideia é demarcar um universo intermediário (o campo social) onde

estariam inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem e divulgam um

conjunto de práticas sociais específicas. Existem vários campos sociais, são eles: o campo

artístico, o campo econômico, o campo científico, o campo político, o campo esportivo, etc.

Em todos encontramos “um mundo social como outros, mas que obedece a leis sociais mais

ou menos específicas” (BOURDIEU, 2004, p.20). Fala-se aqui de um espaço relativamente

autônomo frente ao macrocosmo social, um microcosmo dotado particularidades. Essa relação

entre macro e micro é, portanto, refletida numa permeabilidade variante entre campos, em que

as fronteiras dos campos hora se apresentam mais bem estabelecidas e fechadas, hora se re-

configuram. O grau de autonomia que um campo ou sub-campo social usufrui, a natureza das

pressões externas e sua influência no meio interno, revelam questões fundamentais para

compreender o dinamismo de funcionamento do campo em sua relação com o contexto

macrossocial. Bourdieu destaca a pertinência de analisar os “mecanismos que o microcosmo

aciona para se libertar dessas imposições externas e ter condições de reconhecer apenas suas

próprias determinações” (BOURDIEU, 2004, p.21).

5 Zeitgeist pode ser traduzido, grosso modo, como espírito do tempo.

60

Para ele, no caso exemplar do campo científico, é necessário um caminho

intermediário, que nos leve a escapar da radicalidade arbitrária das ideias de “ciência pura” e

de “ciência escrava”:

O campo científico é um mundo social e, como tal, faz imposições, solicitações, etc.,

que são, no entanto, relativamente independentes das pressões do mundo social

global que envolve. De fato, as pressões externas, sejam de que natureza forem, só

se exercem por intermédio do campo, são mediatizadas pela lógica do campo.

(BOURDIEU, 2004, p.21-22).

Em suma, a ideia de campo científico remete à busca de delimitar teórica e

metodologicamente um espaço específico e relativamente autônomo de ciência frente ao

mundo social mais amplo que, contra as tradições internalistas e externalistas de analisar a

história das ciências, considera questões internas e externas na análise da dinâmica das

relações sociais que movem a ciência. Nessa concepção, a ciência é um espaço de relações de

forças e luta concorrencial que se organiza como estrutura estruturante de relações objetivas

entre agentes situados em posições, que são reproduzidas socialmente. Assim, as práticas

científicas e toda uma pluralidade epistemológica representativa da ciência expressam as lutas

internas e também as demandas construídas na relação entre ciência e sociedade. Nessa

perspectiva, as ações dos cientistas decorrem da posição ocupada por estes na estrutura de

divisão do poder, bem como do capital de crédito (reconhecimento científico) já acumulado

em lutas anteriores (BOURDIEU, 2012; 2010). Como destaca o autor: “um cientista é a

materialização de um campo científico e as suas estruturas cognitivas são homólogas à

estrutura do campo e, por isso, constantemente ajustadas às expectativas inscritas no campo”

(BOURDIEU, 2008, p.62).

Podemos ver na reflexão bourdieusiana sobre o campo científico o que chama de

uma tripla ruptura: 1) ruptura com a ideia de ciência pura, própria da visão internalista que

valoriza a dimensão microssocial e que relaciona a produção de ideias ao mundo específico da

ciência e ou da história particular dos autores; 2) ruptura com a ideia de comunidade

científica, numa visão homogeneizadora das práticas e da dinâmica científica; e 3) ruptura

com a visão externalista, que sobrevaloriza o contexto socioeconômico como determinante

das ideias e questões elegidas pela ciência.

Para o autor, quanto maior a autonomia de um campo específico, maior a capacidade

de refratar as pressões e demandas externas. Estas serão transfiguradas e, por vezes,

irreconhecíveis. Numa situação contrária, quando há uma grande heteronomia do campo, a

permeabilidade às demandas e pressões externas é bastante significativa. Todo campo é

61

[...] um campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar esse

campo de forças. [...] É a estrutura das relações objetivas entre os agentes que

determina o que eles podem e não podem fazer. Ou, mais precisamente, é a posição

que eles ocupam nessa estrutura que determina ou orienta [...] suas tomadas de

posição. (BOURDIEU, 2004, p.23).

Essa estrutura de relações objetivas entre os agentes comanda os pontos de vista mais

reconhecidos, as intervenções, os lugares ocupados, as trajetórias possíveis, os limites da ação

dos agentes. E tal estrutura é determinada pela distribuição do capital simbólico acumulado

pelos agentes num dado momento. Aqui, novamente remetemo-nos à noção de campo

científico em que “os agentes fazem os fatos científicos e até mesmo fazem, mas a partir de

uma posição nesse campo” (BOURDIEU, 2004, p.25). O capital de crédito e a posição

ocupada na estrutura de distribuição do capital influenciam as possibilidades e

impossibilidades dos agentes submeterem o campo aos seus próprios desejos. O capital, aqui,

é apresentado pelo autor como um tipo de capital simbólico, que é dado pelo reconhecimento

ou crédito atribuído pelos pares-concorrentes no interior do campo. O capital simbólico,

embora se relacione com a ordem econômica e política da sociedade, não é o mesmo que o

capital econômico. Cada campo tem sua especificidade e suas regras de funcionamento.

No presente estudo, utilizamos a noção de campo como forma de aprofundar nosso

olhar para o processo de construção social das práticas profissionais no espaço social da APS

do SUS, trabalhando a ideia de campo (de práticas) da ESF e Psicologia. Concebemos que

esse campo é permeado por questões pertinentes aos campos científicos da Saúde Coletiva e

os que participam nos processos de formação e de atuação das profissões inseridas na ESF.

Assim, ao olhar para a APS, entendemos que esta se estrutura de modo relativamente

específico, constituindo um espaço social particular e relativamente autônomo, mas sofrendo

influência de diversos outros campos sociais, do campo de estruturação das políticas sociais e

econômicas e das práticas vigentes em diversas disciplinas científicas e profissões de saúde.

A utilização do conceito de campo social remete a conceber que a ação dos agentes é

sempre permeada por atravessamentos sociais histórica e objetivamente estruturados a partir

de relações de poder. Assim, busca-se a compreensão da ação, considerando aspectos

situacionais, estruturais e simbólicos do espaço social. Há, portanto, o reconhecimento de que

determinadas posições no espaço social constituem relações objetivas que, sob determinadas

condições, tendem a se reproduzir de modo semelhante. Estudar o campo da APS é voltar-se

para compreender as relações de poder existentes no espaço de construção social das práticas

de saúde nos CSF, analisando divisões de poder estruturantes do espaço, posições,

relacionamentos, posicionamentos e estratégias adotadas pelos agentes e instituições.

62

A ESF como um espaço social marcado por relações de poder, pela luta

concorrencial, e pela distribuição desigual do capital simbólico. Este espaço, que se produz e

é produzido em posições hierarquizadas ligadas a interesses conflitantes, expressa uma

distribuição desigual das possibilidades de ganho nas relações de troca. A ESF, como

veremos, é atravessada pela luta entre ortodoxia, encarnada nos agentes posicionados em

torno dos interesses em conservar a estrutura desigual do campo, e heterodoxia, representada

pelos interesses em transformar a estrutura do campo e fundar uma nova ortodoxia. Há entre

ortodoxia e heterodoxia, no entanto, um acordo tácito que remete às regras de funcionamento

do campo e ao reconhecimento de um espaço legítimo de disputa.

3.4 Habitus

O habitus é outro conceito bourdieusiano utilizado na presente pesquisa. Dentro da

perspectiva de superar a polarização entre objetivismo e subjetivismo, que discutimos acima,

o conceito de habitus, remete à proposta de ruptura parcial com o estruturalismo onde o

agente é, muitas vezes, reduzido ao papel de suporte da estrutura. Outra ruptura importante,

que remete à proposição antidicotômica do estruturalismo construtivista, é com a filosofia do

sujeito ou da consciência. Como já vimos acima, Bourdieu preocupa-se em dar uma intenção

ativa e inventiva à prática, mas reconhecendo a influência relativa dos campos sociais. O que

perpassa a noção de habitus, nessa perspectiva, é a necessidade de indagar o lugar da cultura

de pertença e das trajetórias de socialização na construção das práticas sociais dos sujeitos.

Assim, essa categoria é expressiva da vontade de integração metodológica da abordagem de

tipo estrutural com a de cunho fenomenológico (BOLTANSKI, 2005).

O habitus é uma disposição cultivada, um conjunto de esquemas interiorizados,

incorporados – inscritos no próprio corpo. Retrata a dimensão corporal de um aprendizado

passado, fruto de socialização. Segundo Bourdieu:

Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência

produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas

estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como

princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser

objetivamente adaptadas ao seu objeto sem supor a intenção consciente de fins e o

domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente

‘reguladas’ e ‘regulares’ sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras

e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação

organizadora de um maestro. (BOURDIEU, 2011, p.87).

63

O conceito de habitus constitui-se como elemento teórico-metodológico de destaque

para a presente pesquisa. Este se relaciona à ideia de uma subjetividade socializada, em que o

social é incorporado na trajetória do sujeito constituindo esquemas ou disposições para agir,

pensar e sentir. Aqui, visando compreender e analisar a prática profissional da psicologia, a

utilização da noção de habitus pauta-se na ideia de que a cultura profissional é inscrita nos

corpos através de processos de formação, influenciando na concepção de uma teoria da ação

profissional que considera a determinação sociocultural e o caráter ativo do agente. A prática

profissional, com seu leque de ações e representações, traduz de modo exemplar o habitus (a

presença ativa de experiências passadas, sistema incorporado de esquemas de percepção,

pensamento e ação, que garantem a conformidade e constância das práticas). O habitus

profissional nos possibilita pensar os determinantes socioculturais dos estilos e modalidades

técnicas, permitindo uma sociologia das práticas.

o conceito de habitus tende a incorporar a questão da situação. O analista considera

então que foi até o fim de sua tarefa, quando consegue mostrar que, mergulhado em

situações diferentes, o autor agiu atualizando os esquemas inscritos em seu habitus,

ou seja, de certo modo, de maneira previsível, o que tende a fazer desaparecer a

própria questão da ação. (BOLTANSKI, 2005, p.162).

O habitus é um sistema de disposições transponíveis, um princípio gerador de

práticas bem como um sistema de classificação destas, onde entra em cena o trabalho de

categorização realizado pelos agentes. Nessa perspectiva, o estudo do habitus visa dar vazão

às questões de uma sociologia da experiência vivida do social. As raízes do habitus podem ser

identificadas na noção de hexis em Aristóteles que, segundo Wacquant, significa “um estado

adquirido e firmemente estabelecido do carácter moral, que orienta os nossos sentimentos e

desejos numa situação e, como tal, a nossa conduta” (WACQUANT, 2007, p.65). Reflete-se

em um saber dado pela experiência social, incorporado a partir da trajetória biográfica dos

agentes em diversos campos sociais. Pode ser entendido, grosso modo, como hábito psíquico

e corporal, que reflete uma tradição prática e, ao mesmo tempo, um princípio ativo e criativo

matriciador de práticas, que opera na intermediação da ação individual e social diante de um

espaço de possibilidades dadas por uma situação específica em um campo. Em Bourdieu, a

noção busca colocar em prática uma construção teórica de referência para superar as

dicotomias já apontadas. O habitus é matriz de percepções, apreciações e ações que, colocado

em relação dialética com as situações vividas em diversos campos sociais, é propulsora e

mediadora ativa de práticas diferenciadas a partir da transferência e atualização de esquemas,

aprendidos em experiências anteriores (WACQUANT, 2007).

64

O habitus designa uma competência prática adquirida na ação e voltada para esta. É

uma aptidão social e historicamente construída. É transferível de um domínio de prática para

outro, é durável, mas finita. É incorporada a partir de esquemas estruturados, que são

estruturantes de práticas socialmente moldadas em determinado contexto social, aprendidos

em processos de socialização pertinentes às trajetórias dos agentes. O habitus opera como o

“‘princípio não escolhido de todas as escolhas’ guiando ações que assumem o carácter

sistemático de estratégias mesmo que não sejam o resultado de intenção estratégica e sejam

objetivamente” (WACQUANT, 2007, p. 68). A partir do habitus, o agente é compreendido

como aquele sujeito singular submetido a uma pluralidade de processos de socialização

responsáveis pela incorporação de estilos de vida, o que inclui uma aprendizagem corporal

(que transcende a noção de consciência ou cognição) interligada a necessidades históricas

socialmente construídas, em que o processo de internalização da exterioridade se constrói

sustentado pela partilha de categorias de percepção e de apreciação.

O uso corrente da categoria habitus, segundo Wacquant, tem expressado, em geral,

quatro incompreensões que precisam ser esclarecidas: 1) O habitus nunca é uma réplica única

da estrutura social – já que é um conjunto dinâmico de disposições soprepostas no processo

de inserção em grupos nas trajetórias individuais e coletivas; 2) O habitus não é

necessariamente coerente e unificado, mas revela graus variados de integração e tensão – em

determinadas situações ou condições irregulares criam-se habitus irregulares, híbridos e

divididos; 3) O conceito não está menos preparado para analisar a crise e a mudança do que

está para analisar a coesão e a perpetuação – o habitus pode falhar ou expressar momentos de

discrepância e perplexidade, implicando na análise da instituição de mudanças e de razões

práticas maleáveis; e 4) O habitus não é auto-suficiente e não pode ser interpretado fora da

consideração dos seus campos relacionados (WACQUANT, 2007).

Como destaca Wacquant, “uma análise completa da prática requer uma tripla

elucidação da gênese e estrutura sociais do habitus e do campo e das dinâmicas da sua

‘confrontação dialética’” (WACQUANT, 2007, p.69). O uso do conceito de habitus, em

Bourdieu, expressa uma abordagem voltada “para escavar as categorias implícitas através das

quais as pessoas montam continuadamente o seu mundo vivido, que tem informado pesquisas

empíricas em torno da constituição social de agentes competentes numa gama variada de

quadros institucionais” (WACQUANT, 2007, p.69).

A presente pesquisa, destacamos a relevância da formação em serviço na RMSF

como proposta de educação permanente para os profissionais em saúde. Especialmente, aqui,

é preciso antecipar que os programas de Residência Multiprofissional em Saúde tem

65

contribuído para instituir relevantes mudanças nos modos de agir de profissionais de diversas

categorias que, dentre outras questões - como veremos nos resultados, tem enfrentado a

hegemonia do modelo biomédico no incentivo de práticas mais diversificadas no serviço de

saúde. Do ponto de vista teórico, a categoria habitus, nos ajuda a pensar a especificidade das

práticas psicológicas, o habitus profissional da psicologia, e a confrontação dialética dessas

disposições incorporadas com as circunstâncias vividas no campo social da APS do SUS.

3.5 Poder simbólico

Os símbolos, concebidos como instrumentos de comunicação e conhecimento,

organizados como sistemas apresentam uma dimensão social e política. Como mediadores da

comunicação e da produção do conhecimento, tornam possíveis consensos sobre o sentido do

mundo social, influindo na reprodução de ordenamentos sociais, na integração lógica e moral

dos grupos e instituições. Assim, os símbolos são instrumentos da integração social

(BOURDIEU, 2012). O poder simbólico pode ser resumido, grosso modo, como poder de

construir o mundo social, impondo uma visão e uma divisão a esse. É “um poder de

construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica” (BOURDIEU,

2012, p.9), que se estabelece certa cumplicidade ontológica com o mundo social.

Num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, [...] é necessário saber

descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é ignorado, portanto, reconhecido:

o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido

com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo

que o exercem (BOURDIEU, p.7-8, 2012).

Diz-se, assim, de uma luta concorrencial na busca de participar ativamente e de

modo efetivo da definição do que é a realidade social. Obter poder simbólico, nesse contexto,

é ser reconhecido como juiz, escritor da história, regulador dos mecanismos de regulação das

ações sociais. Os sistemas simbólicos cumprem função política de imposição e legitimação de

processos de dominação de uma classe sobre outras, garantindo a violência simbólica e a

domesticação dos inferiorizados nessas relações de força (BOURDIEU, 2012).

As diferentes classes e frações de classes estão envolvidas numa luta propriamente

simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus

interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo

em forma transfigurada o campo das posições sociais. Elas podem conduzir esta luta

quer diretamente, nos conflitos simbólicos da vida cotidiana, quer por meio da luta

travada pelos especialistas da produção simbólica (produtores a tempo inteiro) e na

qual está em jogo o monopólio da violência simbólica legítima, quer dizer, do poder

de impor – e mesmo inculcar – instrumentos de conhecimento e de expressão

66

(taxionomias) arbitrários – embora ignorados como tais – da realidade social.

(BOURDIEU, 2012, p.11-12).

Este tipo de poder se define nas relações entre os que exercem o poder e os que lhe

estão sujeitos, no contexto do campo específico em que a relação se constrói, onde se

produzem e reproduzem as crenças.

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e

fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação

sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o

equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito

específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado

como arbitrário. (BOURDIEU, 2012, p.14).

O reconhecimento dos agentes e instituições, no plano do poder simbólico, significa

ser legitimado no processo de constituição, conservação ou transformação, dos princípios de

divisão e classificação da construção social da realidade. Ou seja, remete à questão da

ampliação do espaço dos possíveis no agir político e social. Como destaca Bourdieu, “para

mudar o mundo, é preciso mudar as maneiras de fazer o mundo, isto é, a visão de mundo e as

operações práticas pelas quais os grupos são produzidos e reproduzidos.” (BOURDIEU,

2004b, p.166). O poder simbólico, assim, está baseado em duas condições: 1) a posse de um

capital simbólico (um crédito adquirido em lutas anteriores - um reconhecimento suficiente

para impô-lo), que decorre de um longo processo de institucionalização; 2) e a constituição de

uma visão alicerçada na realidade. O que faz o poder simbólico é distinguir, segundo

princípios convenientes, um grupo dos outros grupos já existentes, através do conhecimento e

reconhecimento. Segundo Bourdieu: “[...] o poder simbólico é um poder de consagração ou de

revelação, um poder de consagrar ou de revelar coisas que já existem.” (BOURDIEU, 2004b,

p.167).

O poder simbólico é um referencial importante na presente pesquisa para a reflexão

sobre as lutas simbólicas travadas no cotidiano de trabalho profissional de psicólogos do

espaço social da ESF do SUS. Esse conceito é elucidativo das lógicas de poder que permeiam

as ações profissionais dos psicólogos na luta política pela definição da especificidade de suas

práticas, o que remete à busca pela autonomia, pelo reconhecimento e valorização

profissionais. Na presente pesquisa, discutiremos algumas das lutas enfrentadas pelos

psicólogos na busca pela autonomia profissional, o que implica na luta simbólica para definir

as demandas, as técnicas e a própria identidade como profissional da APS. Podemos observar

a relevância do modelo biomédico na estruturação das práticas profissionais e produção

simbólica em torno do processo saúde-doença-cuidado na ESF.

67

3.6 Autonomia e identidade profissionais

O campo científico da sociologia das profissões é marcado por uma diversidade de

proposições conceituais repercutindo em certa pluralidade de opções teóricas para o debate de

questões do mundo social das profissões. Muitas das questões do campo giram em torno das

definições sobre o que é uma profissão e como se constitui o processo de profissionalização

das diferentes ocupações. Tais questões foram importantes para a delimitação conceitual da

pesquisa. Mesmo que não tomados como referencias teóricas centrais do estudo, nossa

aproximação com a sociologia das profissões reflete-se em importantes discussões aqui

desenvolvidas sobre a prática profissional da psicologia na APS do SUS. Essas discussões

sobre o campo social da ESF e das práticas psicológicas nesse espaço são tangenciadas por

algumas contribuições conceituais tiradas da sociologia das profissões (BOSI, 1996; DUBAR,

2005; MACHADO, 1995; PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003).

Ademais das controvérsias e diversidade existente na sociologia das profissões, a

definição de profissão é relativamente consensual em torno de dois aspectos: o corpo

esotérico de conhecimento ou base cognitiva e a orientação para um ideal de serviços (BOSI,

1996; DUBAR, 2005; MACHADO, 1995). A diferenciação entre profissão e semiprofissão,

por exemplo, funda-se na constituição de um corpo específico de conhecimento e de um

mercado de trabalho inviolável. Médicos e advogados são exemplos de profissão, assim como

farmacêuticos e enfermeiros são de semiprofissão, especialmente pelo poder dos primeiros

refletido na autonomia profissional e no domínio de um saber específico, bem como no modo

como negociam frente a uma clientela. Machado (1995) conceitua profissão:

Profissão é uma ocupação cujas obrigações criam e utilizam de forma sistemática o

conhecimento geral acumulado na solução de problemas postulados por um cliente

(tanto individual como coletivo). E atividade profissional é um conjunto de

conhecimentos novos mais fortemente relacionados à esfera ocupacional. Portanto, a

autoridade profissional é centrada no profissional que detém o conhecimento

especializado para o problema específico do cliente. (MACHADO, 1995, p.18).

O termo profissão tem longa história no ocidente, ligada às corporações de ofício na

idade média, que remete à ideia de “profissão de fé” ligada aos rituais de admissão e

iniciação. O termo distinguiu-se historicamente ligado ao desenvolvimento das

Universidades, artes liberais e artes mecânicas, colocando em oposição profissões e ofícios.

As profissões, ligadas às artes liberais ensinadas nas Universidades, tem sua produção mais

voltadas para “o espírito” do que para “as mãos”. Os ofícios, oriundos das artes mecânicas,

68

voltam-se mais para o uso da força braçal. Ademais das divergências entre profissões e ofícios

é possível aproximar ambas pela constituição de uma organização socioinstitucional na qual

seus membros são unidos em prol de alguns preceitos éticos e processos de pertencimento

(DUBAR, 2005).

O processo de profissionalização, também abordado de modo diverso pelos autores

do campo da sociologia das profissões, se dá de modo variável conforme as características das

ocupações e dos campos sociais de prática profissional (BOSI, 1996; DUBAR, 2005;

MACHADO, 1995). Bosi (1996) conceitua a profissionalização destacando a busca do

prestígio e do poder no mercado de trabalho. Para a autora, esse processo consiste num:

[...] conjunto de ações através das quais uma ocupação ou semiprofissão busca

elevar seu prestígio, bem como seu poder e seus ganhos – constitui um processo

vivenciado por um conjunto cada vez maior e mais diversificado de trabalhadores. A

luta pela conquista do status profissional e pelo monopólio de determinadas

competências – e, consequentemente, pela garantia de um espaço no mercado de

trabalho, parece envolver quase todas as atividades hoje (BOSI, 1996, p.35).

A análise das profissões e relações profissionais deve ser criteriosa na consideração

de nuances metodológicas, especialmente, nos processos de generalização e contextualização

dos resultados. Diante de discussões conceituais sobre o que é uma profissão e o que compõe

o processo de profissionalização, constituindo um contexto de divergências e convergências

no campo da sociologia das profissões, Bosi destaca questões importantes para a reflexão

sobre a prática profissional empreendida aqui:

Torna-se assim essencial, para compreensão do fenômeno da profissionalização,

analisar os atributos profissionais como um conjunto de relações, e não como partes

equivalentes que vão se adicionando umas às outras num processo de evolução

natural. Destaca-se, portanto, a impropriedade de definir profissão a partir de

traços/atributos, ou destacando o enfoque da estrutura para o processo. [...] o

problema que se coloca não é tanto o que é uma profissão ‘em termos absolutos’

mas como, numa sociedade, se determina que é e quem não é profissional, num dado

momento histórico [...] Assim, não se trata de abandonar a tarefa de definir o

conceito mas, antes, de redimensioná-lo, considerando a existência de diferentes

perspectivas (BOSI, 1996, p. 54).

Na presente pesquisa, buscamos abordar a profissionalização pela análise da luta

pelo poder sobre o conhecimento técnico-científico e pelo reconhecimento social dentro de

um campo de saber e atuação socialmente relevante, no caso, a ESF. Entendemos, no entanto,

que a análise do processo de profissionalização precisa considerar cada critério teórico

elegido como atributos variáveis e diversos, que implicam em dificuldades para fazer

generalizações. É relevante, assim, não estabelecer modelos ideais e lineares nas análises.

69

Ao analisar as ideias vigentes no campo da sociologia das profissões, Bosi (1996)

destaca que a questão do saber (ou base cognitiva) é aspecto transversal imprescindível em

todo o processo de profissionalização. O saber, aqui, não pode ser analisado como algo

abstrato e dissociado de outros fatores. É importante, nessa perspectiva analítica, considerar a

relação entre o saber e a organização interna das profissões e suas instituições. A construção

de uma base de conhecimento e de doutrina são pontos importantes para a obtenção de status

profissional. O corpo esotérico de conhecimentos

[...] deve funcionar como uma caixa preta, ou seja, contendo segredos e técnicas

profissionais invioláveis e indecifráveis por leigos, mas ao mesmo tempo com uma

visibilidade social acessível a este mesmo público.[...] Assim, podemos definir o

especialista como um indivíduo que conhece tanto que só pode comunicar uma

pequena fração do seu conhecimento. Os clientes veem um mistério nas tarefas a

serem desempenhadas, mistério este que não é dado ao leigo conhecer, visto que o

conhecimento tácito é relativamente inacessível. Reter o conhecimento, torná-lo

específico e suficientemente misterioso é o eixo central que move o

profissionalismo. (MACHADO, 1995, p.21).

Como exemplo dos processos complexos e dinâmicos de profissionalização, é

interessante pensar no modo como as corporações profissionais se organizam na seleção e

treinamento dos profissionais, já que influem diretamente no poder e prestígio das profissões -

atribuídos ao caráter simbólico do saber profissional. Nesse contexto, o papel das

Universidades é fundamental para a legitimação dos saberes profissionais (BOSI, 1996):

[...] uma profissão assume estratégias para garantir sua exclusividade no exercício de

uma tarefa, não tendo condições de definir o seu domínio sobre o conhecimento se

não for capaz de determinar a base cognitiva das ocupações concorrentes. E isso é o

que definirá em grande parte a hierarquização das diferentes categorias numa dada

área. Para tal será necessário ter força suficiente não só para garantir os saberes

necessários às suas atividades, mas para delimitar as esferas de conhecimento e

prática de outras atividades afins. (BOSI, 1996, p.46).

Em nosso caso, reconhecemos um campo rico de discussões sobre as relações entre

os profissionais de saúde em equipes multiprofissionais, numa mescla de competição e

cooperação em busca de se afirmar como agentes importantes nos cenários dos serviços de

saúde. Aqui, perceber as necessidades dos clientes e agir competentemente frente a estas,

obedecendo a certas regras de conduta é outro aspecto relevante pra pensar a

profissionalização. Essa orientação para o serviço é orquestrada por padrões éticos, processos

de formação permanente e padronização de exames de admissão. Essa orientação normativa

dos profissionais pressupõe o reconhecimento dos interesses do público/comunidade na

construção da prática profissional (BOSI, 1996). A educação formal é um dos principais

mecanismos de base para a constituição da especificidade profissional. A praticidade social é

70

outro elemento caracterizador de uma profissão, que se orienta para a prestação de um serviço

e estabelece a atualização e reprodução permanente de normas de atuação em respeito à

clientela e aos pares. A obtenção e manutenção da autonomia prática do profissional está

intimamente ligada à especialização técnica e a determinação de critérios de excelência

(MACHADO, 1995).

Outros autores no campo da sociologia das profissões dão especial ênfase ao

mercado de trabalho na análise das profissões e da profissionalização. Nessa perspectiva,

dentre os elementos analíticos utilizados, compreendemos que é fundamental a consideração

das relações de poder onde “quanto mais independente, de outros mercados, for o mercado da

profissão, e quanto maior a colaboração do Estado na disputa com outros grupos, melhor será

a situação profissional” (BOSI, 1996, p. 49). Outros críticos propõem a adoção de estudos

focados nas mudanças no mercado de trabalho e suas implicações na perda de autonomia

profissional, especialmente, na propriedade ou controle dos meios de produção

(DONNANGELO, 1975; DURAND, 1975). Machado (1995) sintetiza suas ponderações

sobre o conceito de profissionalização:

[...]o problema central com o conceito dominante de profissionalização é seu foco na

estrutura e não no trabalho. Analisar o desenvolvimento profissional é ver como esse

vínculo (elo) é criado no trabalho, como ele está ancorado na estrutura social formal

e informal e como a ação recíproca das ligações jurisdicionais entre as profissões

determinam a história das próprias profissões individuais. (MACHADO, 1995,

p.31).

Larson (MACHADO, 1995; BOSI, 1996) é autora de destaque na discussão das

influências estruturais e ambientais, que constrangem em maior ou menor medida uma

profissão, especialmente, no que tange ao monopólio da competência. Nesse enfoque, dois

aspectos básicos estruturam o processo de profissionalização: a base cognitiva, que consiste

no conhecimento abstrato passível de aplicabilidade; e o mercado, composto pelas condições

socioeconômicas e ideologia dominante. Ressaltam-se, aqui, a relação entre controle do

mercado e monopólio da competência:

A estrutura de um mercado profissional particular é determinada pela estrutura

social que molda a necessidade social para um dado serviço e, além disso, define o

público atual ou potencial da profissão. Quanto a base cognitiva, a autora sugere que

a melhor forma é aquela que revela, ou atua ou maximiza as características do

mercado profissional. Ela deve ser específica o bastante para partilhar com clareza a

utilidade profissional, a ser formalizada ou codificada o bastante para permitir a

estandartização do produto; o que significa essencialmente a estandartização dos

produtores. E ainda, não deve ser tão claramente codificada que não permita efetuar

um princípio de exclusão: onde todos podem reivindicar serem experts, não há

expertise. (MACHADO, 1995, p.23-24).

71

Outro aspecto importante na perspectiva da análise do processo de profissionalização

é a incorporação de tecnologias, inovações, que se constituem como elementos de renovação

gradual e progressiva da base cognitiva e consolidação do monopólio da competência, que

ocorrem em paralelo à legitimação social das mudanças (MACHADO, 1995).

Na presente pesquisa, a discussão da autonomia profissional é fundamental, já que

nos permite pensar o processo de construção social das práticas da psicologia na ESF, sobre o

pano de fundo do processo de profissionalização. Nosso recorte teórico-metodológico visa

delimitar uma proposta de abordagem hermenêutica para compreender e analisar as práticas

psicológicas dentro do processo de socialização profissional vivido na APS do SUS.

Propomos-nos a relacionar autonomia e identidade profissionais como processos sociais que

perpassam as práticas psicológicas aqui analisadas.

A autonomia profissional é entendida como “a capacidade de o profissional ter sua

prática submetida ao seu próprio julgamento e autoridade, com sua responsabilidade como

árbitro” (BOSI, 1996, p.47). Na discussão das profissões médicas e paramédicas, destaca-se a

contribuição de Eliot Friedson, especialmente na discussão da autonomia profissional,

entendida como “capacidade de avaliar e controlar o desenvolvimento do trabalho” (BOSI,

1996, p.51). Essa autonomia, como elemento que melhor possibilita a distinção da profissão

frente à semiprofissão, remete ao controle sobre um saber específico e um processo de

trabalho legitimado socialmente. Friedson distingue duas esferas ou modalidades de

autonomia: a técnica e a socioeconômica. “A primeira seria caracterizada pela possibilidade

de controle sobre a essência do que é próprio à profissão (ou seja, seu conteúdo técnico), ao

passo que a autonomia socioeconômica estaria referida à capacidade de dispor sobre a

organização social e econômica do trabalho” (BOSI, 1996, p. 51-52).

No processo de construção da autonomia profissional, o Estado cumpre um papel

relevante, participando diretamente no fortalecimento ou não da autonomia, das estratégias de

organização das corporações profissionais e da dinâmica do mercado de trabalho e formação.

Bosi (1996) dá importante destaque para a questão da autonomia profissional, especialmente a

autonomia técnica, e sua relação com o poder, como elemento central aglutinador de vários

aspectos do processo histórico de profissionalização. Para Bosi (1996, p.54), a autonomia

técnica é um conceito de forte relevância heurística:

[...] é uma categoria (teórica) que possibilita uma articulação entre a esfera do

conhecimento e a do poder, o que nos auxilia a evidenciar a importância da

dimensão do saber na constituição das profissões.[...] uma vez que se considera a

72

profissionalização como processo, o saber não é visto como uma esfera autônoma,

mas um elemento em relação, daí a escolha do conceito de autonomia.

Entendemos que esse enfoque favorece o reconhecimento de relações indissociáveis,

dinâmicas e complexas entre conhecimento e organização profissional. Nessa perspectiva,

podemos analisar a autonomia de uma determinada categoria profissional como processo

histórico marcado por lutas por reconhecimento em mercados de trabalho dinâmicos. Nesse

contexto, a autonomia e identidade profissional articulam-se diretamente às questões do poder

e do conhecimento estruturados e estruturantes dos campos sociais, onde se constroem os

espaços de prática profissional. Na perspectiva de delimitarmos nossa posição de investigação

diante da questão da autonomia e da identidade profissional, recorremos a algumas

contribuições de Claude Dubar (2005). Adotando um referencial que articula contribuições da

fenomenologia, o autor entende a identidade como: “o resultado a um só tempo estável e

provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos

processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as

instituições” (DUBAR, 2005, p.136). Em sua proposta teórico-metodológica, foca suas

análises na dimensão subjetiva e vivida da identidade, abordando-a a partir de pesquisa sobre

os mundos vividos e exprimidos. Segundo Dubar, o estudo da noção de identidade se

justifica, em sua perspectiva:

[...] pela tentativa de compreender as identidades e suas eventuais cisões como

produtos de uma tensão ou de uma contradição interna ao próprio mundo social, [...]

e não essencialmente como resultados do funcionamento psíquico e de seus

recalques inconscientes. (DUBAR, 2005, p. 137).

Destaca-se, aqui, a ideia da construção social da identidade, que se expressa em

lutas em torno de um saber legítimo, estratégias práticas e afirmação de uma identidade

reconhecida. As relações de poder entre agentes e instituições implicam no engajamento do

sujeito e em lutas por reconhecimento. As estratégicas práticas expressam, dentre outras

questões, a avaliação das oportunidades em um determinado campo, bem como a

interiorização da trajetória histórica do agente e do campo. Do ponto de vista metodológico, a

abordagem do fenômeno da construção social da identidade profissional deve levar em conta

o processo de socialização dos agentes e a percepção que estes tem da experiência.

Nesse contexto de debate, reconhece-se como contribuições da Etnografia (nascente

em meados da década de 1930) a ideia de que “não há nenhuma lei geral que reja a educação

das crianças nas sociedades tradicionais” (DUBAR, 2005, p.XV). Desse modo, não podemos

pensar em mecanismos gerais ou universais que rejam o processo de socialização. Assim,

73

Dubar argumenta na perspectiva de impor uma crítica à ideia de uma teoria geral da

socialização:

A socialização como aprendizagem da cultura de um grupo é tão diversa quanto as

próprias culturas. Às vezes dominam as práticas mais autoritárias, às vezes as mais

permissivas. Às vezes recorre-se a instituições especializadas, às vezes a educação é

completamente difusa. Às vezes as crianças são educadas pela mãe, às vezes por

outras pessoas. (DUBAR, 2005, p. XV).

O autor toma como base um conjunto de autores da sociologia (como Max Weber,

Alfred Schultz, Georg Simmel e, especialmente, Peter Berger e Thomas Lückmann) para

aplicar a noção de socialização ao campo da atividade profissional e das mudanças sociais.

Para Dubar (2005), a socialização reflete-se na “construção de um mundo vivido” que se

efetiva, permanentemente, durante a trajetória dos indivíduos em diversas esferas de atividade

ao longo da vida. Na discussão sobre socialização e identidade, apropria-se das ideias de

Bourdieu para analisar o conceito de habitus (DUBAR, 2005). Em sua apropriação da

definição de habitus de Bourdieu, Dubar nos leva a revisar dois aspectos importantes da

proposição bourdieusiana: o habitus pode ser pensado como incorporação de posições

diferenciais no espaço social, estando ligado, em sua gênese, a uma posição; e o habitus pode

ser visto como forma de percepção e visão do espaço social, de classificação. No primeiro

aspecto, temos a objetividade das posições diferenciais e suas conformações estruturais que se

vinculam na geração do habitus. No segundo, o habitus é vinculado a uma subjetividade que é

produtora de práticas e tomadas de posição num campo social qualquer. Para Dubar, a noção

de identidade social precisa ser entendida a partir da articulação entre uma “orientação

‘estratégica’ e uma posição ‘relacional’ resultante da interação entre uma trajetória social e

um sistema de ação” (2005, p. 92).

Na proposta de articulação entre o estudo da trajetória dos indivíduos, instituições e

sua concretização em sistemas de ação específicos, a trajetória é concebida como um ‘recurso

subjetivo’ do indivíduo que consiste em:

[...] balanço subjetivo das capacidades para enfrentar os desafios específicos de um

dado sistema.[...] Por isso, a hipótese da ‘consolidação da identidade/reprodução do

sistema’ é apenas uma das hipóteses possíveis: a priori, todas as outras também

são.” (DUBAR, 2005, p.92-93).

No que diz respeito à proposição de Dubar para a análise da articulação entre

‘trajetória’ e ‘orientação estratégica’, se intercala o estudo de relações internas ao campo em

que o indivíduo define sua identidade específica. O autor destaca, nesse contexto, que as

visões de futuro dos indivíduos nem sempre são reflexo de reproduções de percepções do

74

passado, não há uma reprodução social total - em que o tempo presente estaria pouco sob o

controle dos indivíduos. Assim, no encontro entre ‘trajetória passada’ e ‘estratégias’ de ação

há uma pluralidade de configurações possíveis que dependem de categorias de representação

herdadas em trajetórias anteriores e de possibilidades estratégicas e categorizações

possibilitadas num espaço social específico. O autor sintetiza o processo de construção social

das identidades:

As identidades resultam, pois, do encontro entre trajetórias socialmente

condicionadas a campos socialmente estruturados. Mas esses dois elementos não são

necessariamente homogêneos, e as categorias significativas das trajetórias não são

necessariamente as mesmas que estruturam os campos da prática social. Essa

defasagem abre espaços de liberdade irredutíveis que tornam possíveis e, às vezes,

necessárias conversões identitárias que engendram rupturas nas trajetórias e

modificações possíveis das regras do jogo nos campos sociais. (DUBAR, 2005,

p.94).

Dubar propõe uma abordagem compreensiva da socialização, na qual o fenômeno

identitário é concebido como fruto de processos de socialização. Em sua elaboração teórica,

uma entrada principal da identidade é apreendida pela perspectiva fenomenológica e

compreensiva exposta pelo autor:

É pela análise dos ‘mundos’ construídos mentalmente pelos indivíduos a partir de

sua experiência social que o sociólogo pode reconstruir melhor as identidades típicas

pertinentes em um campo social específico. Essas ‘representações ativas’ estruturam

os discursos dos indivíduos sobre suas práticas sociais ‘especializadas’ graças ao

domínio de um vocabulário, à interiorização de ‘receitas’, à incorporação de um

programa, em suma, à aquisição de um saber legítimo que permita a um só tempo a

elaboração de ‘estratégias práticas’ e a afirmação de uma ‘identidade reconhecida’.

(DUBAR, 2005, p. 129).

As dimensões mais relevantes dessas representações são: 1)a relação com os

sistemas, instituições e com atores acionam a implicação e o reconhecimento do indivíduo,

seu maior ou menor engajamento ou contestação, aciona tanto a identidade reivindicada,

quanto a realmente reconhecida; 2) a relação com o futuro tanto do indivíduo quanto do

sistema reflete-se nas orientações estratégicas, que resultam da análise das capacidades e

oportunidades e que, remete à interiorização da trajetória e da história do sistema ou campos

sociais específicos; e 3) a relação com a linguagem, que remete às categorias utilizadas para

descrever e analisar uma situação e um mundo vivido. O autor complementa sua proposta de

abordagem compreensiva:

É exatamente na compreensão interna das representações cognitivas e afetivas,

perceptivas e operacionais, estratégicas e identitárias que reside a chave da

construção operacional das identidades. Essa construção só pode ser feita a partir

das representações individuais e subjetivas dos próprios atores. Visto que implica o

75

reconhecimento (ou não reconhecimento) de outrem, ela constitui necessariamente

uma construção conjunta. De fato, a representação como dimensão da identidade não

preexiste totalmente ao discurso que a exprime.[...] Essa passagem do ‘representado’

ao operacional, do passivo ao ativo, do ‘já produzido’ ao ‘em construção’ permite

definir as identidades como dinâmicas práticas e não como ‘dados objetivos’ ou

‘sentimentos subjetivos’. Como consequência de seu arraigamento nos dois tipos de

ação social – a ação instrumental ‘estratégica’, que supõe uma atuação sobre o

mundo, uma caracterização ativa, e a ação comunicativa ‘expressiva’, que supõe o

compartilhamento de uma linguagem, de um código e de sua utilização em relações

diretas -, essas representações ativas que mobilizam diversos tipos de saberes

constituem os melhores indicadores possíveis das identidades sociais, resultados

tanto estáveis como provisórios de um processo de socialização concebido em

termos estratégicos e comunicativos. (DUBAR, 2005, p.129-130).

Adentrando o campo da sociologia das profissões, Dubar articula as noções de

socialização e identidade, destacando um olhar para o processo de construção identitária dos

indivíduos permeados pelo trabalho. O autor utiliza-se dos conceitos de “forma identitária” e

“identidades de ator”, buscando superar as dicotomias entre as abordagens estruturais e

construtivistas à construção da identidade profissional.

A partir do momento em que se recusa a reduzir os atores sociais – inclusive e

primeiramente as pessoas concretas que constituem o objeto das pesquisas empíricas

– a uma ‘categoria’ preestabelecida, seja ela socioeconômica, seja sociocultural – ou

às vezes, a uma combinação das duas-, a questão central, para o sociólogo que

aborda um ‘campo’ qualquer, torna-se a da maneira pela qual esses atores se

identificam uns com os outros. Essa questão é indissociável da definição do contexto

de ação que é também contexto de definição de si e dos outros. [...] O primeiro

procedimento do sociólogo de campo, parece-me, é coletar, nas melhores condições

possíveis, essas diversas ‘definições de situação’, que são condições de sua

compreensão das regras da ação situada, tais como são objetivamente definidas

pelos atores. [...] As identidades de ator estão assim vinculadas a formas de

identificação pessoal, socialmente identificáveis. Elas podem assumir formas

diversas, assim como são diversas as maneiras de exprimir o sentido de uma

trajetória, ao mesmo tempo sua direção e sua significação. (DUBAR, 2005, p. XIX).

A elucidação das “formas identitárias”, como “formas de identificação socialmente

pertinentes a uma esfera de ação determinada” (DUBAR, 2005, p.XX), se dá pelo

reconhecimento de que essas são marcadas permanentemente pelas maneiras como o

indivíduo se define como ator em determinado sistema e como produto de uma trajetória

específica. Nessa abordagem, dito de outro modo, a socialização profissional é entendida a

partir dos modos como os agentes se identificam no entrecruzamento da estrutura de sua ação

com a história pessoal de sua formação. Dubar valoriza a dimensão subjetiva na abordagem às

identificações, que marcam as trajetórias profissionais em determinados espaços

ocupacionais. Em defesa da centralidade do trabalho na vida pessoal e das identificações

profissionais na vida social, o autor destaca: “As formas identitárias [...] não são ‘identidades

pessoais’ no sentido de designações singulares de si, mas construções sociais partilhadas com

76

todos os que têm trajetórias subjetivas e definições de atores homólogas, principalmente no

campo profissional.” (DUBAR, 2005, p.XXI-XXII).

3.7 Hermenêutica de Ricoeur

Já apresentamos as influências teórico-metodológicas de Bourdieu e da sociologia

das profissões, passamos à apresentação das contribuições decisivas de Paul Ricoeur para o

desenho da pesquisa e para o próprio exercício reflexivo constituinte da dinâmica da pesquisa

- que já fora abordado na discussão bourdieusiana sobre a sociologia reflexiva e na análise da

trajetória pessoal que influencia a pesquisa. Assim, é importante destacar a importância da

hermenêutica de Ricoeur para a definição de uma postura epistemológica em relação com o

objeto de estudo permeada pela imbricação entre análise e autoanálise, entre entendimento e

autoentendimento. Nessa busca de posicionamentos mais adequados aos interesses da

pesquisa e com a pesquisa, assumimos a tipologia de um estudo hermenêutico. Para Ricoeur,

a hermenêutica situa-se na busca da interpretação de “expressões de vida fixadas

linguisticamente” (BLEICHER, 1980, p.318).

Para efeitos de fundamentação metodológica da pesquisa, adotaremos a discussão

elaborada por Ricoeur sobre a natureza da interpretação, voltada especialmente para a noção

de texto e de ação humana. Trabalhando com textos produzidos através de diálogos sobre a

prática profissional, interessou-nos especialmente a definição de hermenêutica como “a teoria

das operações da compreensão em sua relação com a interpretação de textos” (RICOEUR,

2008, p.23). A interpretação, assim, será tomada como a “atividade de pensamento que

consiste na decifração do sentido que se encontra oculto no sentido aparente e na revelação

dos níveis de sentido implícitos no sentido literal” (RICOEUR, 1980, p.339).

Situando-se num esforço de estabelecer uma filosofia compreensiva da linguagem,

Paul Ricoeur busca demarcar uma posição crítica que, baseada em um compromisso com a

reflexão, coloca à hermenêutica a necessidade de “desistir de qualquer pretensão imediata à

universalidade em prol da busca de uma fusão entre contingência e universalidade no

exercício da interpretação” (PELLAUER, 2009, p.69). É assim que, entendendo o texto como

“todo discurso fixado pela escrita” (RICOEUR, 1989, p.141), destaca que este pode alcançar

um âmbito universal, que se desvencilha da situação de fala. O autor afasta-se da pretensão de

reconstruir o sentido intencional do autor do texto, pois “dentro do discurso escrito, a intenção

do autor e o sentido do texto deixam de coincidir [...] a carreira do texto escapa ao horizonte

finito vivido pelo autor” (RICOEUR, 1971 apud BLEICHER, 1980, p.318). Ricoeur liberta o

77

sentido do texto em relação à situação dialógica, de modo que se opera uma transformação

nas relações entre linguagem e mundo e as subjetividades de autor e leitores envolvidos.

A referência entre linguagem e o mundo é, portanto, modificada no nascimento do

texto que, ocupando o lugar da fala, modifica a função referencial da linguagem. Com o texto,

o diálogo é interrompido, o autor não pode mais responder, só o leitor atua. Se, por um lado, o

nascimento do texto representa a morte do autor, que será póstumo, por outro, “o texto é

exatamente o lugar onde o autor sobrevive” (RICOEUR, 1989, p.145). Assim, o texto não é

tomado sem referência. A função da leitura, “enquanto interpretação, será precisamente a de

efetuar a referência. [...] o texto está, de certa forma, ‘no ar’, fora do mundo ou sem mundo

[...] as palavras deixam de se esbater face às coisas; as palavras escritas tornam-se palavras

para si mesmas” (RICOEUR, 1989, p.145). Afirma-se, assim, a proposição de uma

hermenêutica do texto como obra aberta a apropriações atualizantes.

O autor propõe uma teoria da interpretação que integra dialeticamente as dimensões

da explicação e da compreensão. Assim, “[...] na explicação explicamos ou desdobramos o

âmbito das proposições e significados, ao passo que na compreensão compreendemos ou

apreendemos como um todo a cadeia de sentidos parciais num único acto de síntese”

(RICOEUR, 2009, p. 102). Explicação, que com Dilthey, fora concebida como própria das

ciências naturais com seus fatos, leis, teorias, hipóteses, verificações e deduções. E

compreensão, que acha seu campo de aplicação nas ciências humanas, trabalha com a

experiência significativa de outros sujeitos e mentes semelhantes aos pesquisadores. Ambas,

explicação e compreensão, em Ricoeur, são tomadas de modos diferentes e não

dicotomizados. Estas, ao contrário da tradição filosófica chamada pelo autor de “hermenêutica

romântica”, são colocadas como pólos indissociáveis, pólos dialéticos, de um mesmo

processo do arco hermenêutico.

Na interpretação de textos, essa relação dialética entre explicação e compreensão se

dá, primeiramente, partindo de um movimento de compreensão naive, ou ingênua, onde se

capta de modo superficial o texto enquanto todo, numa compreensão conjectural. Da

“conjectura” parte-se para um movimento mais sofisticado de compreensão apoiado em

processos analíticos, onde se dá uma espécie de “distanciação” visando à objetivação do texto

e resulta no que o autor chama de “apropriação”. Em suma, “a explicação surgirá, pois, como

a mediação entre dois estádios da compreensão. Se se isolar deste processo concreto, é apenas

uma simples abstracção, um artefacto da metodologia” (RICOEUR, 2009, p.106).

O termo conjectura liga-se à ideia de que não é possível acessar a intenção do autor,

que elaborou o texto. E que

78

[...] com a escrita, o sentido verbal do texto já não coincide com o sentido mental ou

a intenção do texto. Semelhante intenção é realizada e abolida pelo texto, que já não

é voz de alguém presente. O texto é mudo. Entre o texto e o leitor estabelece-se uma

relação assimétrica na qual apenas um dos parceiros fala pelos dois. O texto é uma

partitura musical e o leitor como o maestro que segue as instruções da notação. Por

conseguinte, compreender não é apenas repetir o evento do discurso num evento

semelhante, é gerar um novo acontecimento, que começa com o texto em que o

evento inicial se objetivou. (RICOEUR, 2009, p.106).

O autor destaca que, assim, a busca de uma interpretação “correta” não se resolve na

busca de um retorno à situação do autor. O conceito de conjectura vem, então, como um modo

de explicitar um primeiro passo de interpretação, que logo recorrerá aos procedimentos de

explicação. Uma conjectura visa o texto como obra de discurso, um processo holístico que

supera a soma de partes e sequências de frases, e que apresenta-se como singular.

O texto enquanto todo e enquanto totalidade singular pode comparar-se a um objecto

que é possível de ver a partir de vários lados, mas nunca de todos os lados ao mesmo

tempo. Por conseguinte, a reconstrução do todo tem um aspecto perspectivístico

semelhante ao de um objeto percebido. É sempre possível relacionar a mesma frase

de modos diferentes a esta ou àquela outra frase considerada como a pedra angular

do texto. No acto de ler está implícito um tipo específico de unilateralidade. Esta

unilateralidade fundamenta o caráter conjectural da interpretação. (RICOEUR, 2009,

p.109).

A fase ou procedimento de explicação surge como forma de aprofundar o movimento

conjectural de interpretação, que inicialmente se mostra superficial. A fase explicativa, assim,

deve ser entendida como análise estrutural do texto, que procede à sua segmentação (aspecto

horizontal) e estabelece diversos níveis de integração das partes no todo (aspecto hierárquico).

Através desse movimento, que vai da conjectura (compreensão naive) à explicação (análise

estrutural) e retorna à compreensão, a apropriação acontece, então, na fixação desse arco

hermenêutico “no solo do vivido” (RICOEUR, 1989). Aqui, articulam-se o objeto-texto, o

signo-análise estrutural e o interpretante. E a apropriação se aprimora quando dessa “gestação

de sentido no texto” em que as dimensões estruturais, passíveis de explicação e análise

estrutural, integram-se complementariamente às dimensões subjetivas. Essa apropriação

reflete-se no fato de que “a interpretação de um texto completa-se na interpretação de si dum

sujeito que doravante se compreende melhor, se compreende de outro modo, ou que começa

mesmo a compreender-se” (RICOEUR, 1989, p.155).

Esse movimento de apropriação constitui-se de dois elementos: 1) a busca de se

aproximar daquilo que é estranho, que remete a acercar-se do sentido do texto e seus sistemas

de valores; e 2) a superação da distância com a “fusão da interpretação do texto com a

interpretação de si mesmo” (RICOEUR, 1989, p.156). O processo interpretativo do texto é

79

concluído nas palavras do autor, pela integração dialética entre explicação e compreensão:

“por dialética, entendo a consideração segundo a qual explicar e compreender não

constituíram os polos de uma relação de exclusão, mas os momentos relativos de um processo

complexo a que se pode chamar interpretação” (RICOEUR, 1989, p.164).

Para Ricoeur, há uma homologia entre as teorias do texto, da ação e da história, que

subsidia sua discussão sobre a hermenêutica e a inseparabilidade entre explicação e

compreensão. No que diz respeito à comparação entre teoria da ação e teoria do texto, o autor

destaca a analogia entre texto e ação, quando entendidos como obras abertas à apropriação

hermenêutica.

Direi apenas que, por um lado, a noção de texto é um bom paradigma para a ação

humana, por outro, a ação é um bom referente para toda uma categoria de textos. No

que diz respeito ao primeiro ponto, a ação humana é, em muitos aspectos, um quase-

texto. Ela é exteriorizada de uma forma comparável ao registro característico da

escrita. Ao destacar-se do seu agente, a ação adquire uma autonomia semelhante à

autonomia semântica de um texto; ela deixa um rastro, uma marca; inscreve-se no

curso das coisas e torna-se arquivo e documento. À maneira de um texto, cuja

significação se liberta das condições iniciais da sua produção, a ação humana tem

um peso que não se reduz à sua importância na situação inicial da sua aparição, mas

permite a reinscrição do seu sentido em novos contextos. (RICOEUR, 1989, p. 176-

177).

Assim, na hermenêutica crítica de Paul Ricoeur “a reflexão não é nada sem a

mediação dos signos e das obras, e [...] a explicação não é nada se não se incorporar como

intermediária no processo da compreensão de si; [...] a constituição do si e a do sentido são

contemporâneas” (RICOEUR, 1989, p.155-156). Em suma, se adota a noção de que a tarefa

interpretativa, tarefa que será empreendida junto a todo material textual produzido na pesquisa

– transcrições e gravações e, especialmente sobre a ação humana encarnada nas práticas

profissionais de psicólogos.

3.8 Apropriações

A apropriação, como destacada por Ricoeur (1989; 2009), remete à tarefa

hermenêutica de interpretação de si mediada pelos signos, pelas obras. Nesse contexto, é

importante destacar que nossa relação de diálogo com as teorias adotadas aqui, sempre fora

reflexo de um movimento de aproximação inacabada com os autores e suas obras aqui

analisadas e utilizadas como fundamento de nossas reflexões atuais. Nesse ínterim, a

apropriação de parte da produção teórica de Pierre Bourdieu (2004; 2004b; 2011; 2012;

2008), Paul Ricoeur (1989; 2002; 2008; 2009) e mais especificamente Claude Dubar (2005)

80

fora um desafio de superação ainda inconcluso, que requereu um esforço de reflexão crítica e

autocrítica permanente. Nesse exercício da crítica, algumas ponderações precisaram ser feitas,

para delimitar os entendimentos que temos e as aproximações entre teoria e empiria.

As contribuições de Bourdieu, na presente pesquisa, como referencial metodológico

e teórico, possibilitaram a execução de importantes recortes sobre o objeto de pesquisa,

elucidando os percursos de investigação adotados. Ademais das questões mais diretamente

ligadas ao uso de suas proposições conceituais, podemos destacar como relevante a

contribuição do autor também no plano das reflexões ético-políticas. Nesse contexto,

Wacquant (2005) destaca duas implicações práticas das análises sociológicas bourdieusianas

sobre a política e as possibilidades de uma política democrática, que são pertinentes ao

presente estudo. Segundo o autor, as contribuições de Bourdieu no plano da política

democrática são: a reformulação do papel dos intelectuais nas lutas; e o redirecionamento das

ações políticas. No que diz respeito ao papel dos intelectuais, a proposição de Bourdieu é a

criação de um intelectual coletivo, constituído por competências complementares de ser

cientista e de ser comunicador, capaz de colocar em debates públicos o resultados de

pesquisas rigorosamente construídas cientificamente. No que diz respeito ao redirecionamento

das ações políticas, a contribuição das pesquisas de Bourdieu para a construção da democracia

é notável na ênfase dada ao conceito de habitus para a análise das práticas sociais específicas

aos campos sociais. Pensar uma teoria da ação a partir do conceito de habitus nos leva a

reflexões sobre a relevância dos processos de socialização para a constituição dos modos de

agir e pensar a realidade (WACQUANT, 2005). Isso, no contexto da presente pesquisa, traz

implicações importantes para pensar o direcionamento ético-político das práticas profissionais

e da relevância política de formação. Claude Dubar e suas proposições sobre a articulação

entre socialização e identidade profissionais são bastante pertinentes nesse tópico, o que

contribui também para delimitarmos uma aproximação com a abordagem hermenêutica

fenomenológica que buscamos.

As análises bourdieusianas sobre o poder simbólico constituído nas relações entre

habitus e campos sociais, contribuem para a reformulação dos focos estratégicos das lutas

políticas na sociedade. Nesse contexto, refletindo sobre a construção da democracia,

Wacquant destaca o redirecionamento da ação política que as proposições de Bourdieu

possibilitam:

[...]a ação política deve visar não só as intituições (ou seja, sistemas históricos de

posições objetificados na esfera pública). Para que ocorra a mudança progressista

genuína e duradoura, uma política de campos dirigida às relações estruturadas de

81

poder deve necessariamente ser suplementada por uma política de habitus que dê

atenção cuidadosa à produção social e às modalidades de expressão de proclividades

políticas. (WACQUANT, 2005, p.35).

Bourdieu aborda essa temática a partir da ideia de que a ação política não pode se dar

sem a ausência de transformações das condições de produção e reforço das disposições

incorporadas (BOURDIEU, 2011). A adesão à ordem existente, princípio de constituição dos

campos e de habitus, deve ser reconhecida e analisada para que se imprima uma prática

política e coletiva de realização de futuros históricos alternativos. Em Bourdieu, encontramos

uma visão do mundo social marcada pela disputa em que toda relação de significado é

também uma relação de força e as políticas de reconhecimento são inerentes à condição

humana (WACQUANT, 2005; BOURDIEU, 2012; 2011).

No entanto, na utilização do referencial bourdieusiano, gostaríamos de frisar algumas

ponderações que fazemos à compreensão da ação individual e social. Levamos em

consideração, aqui, as análises realizadas por Lahire (2003) e Dubar (2005). Entendemos que

a teoria do habitus precisa ser criticamente utilizada, para não incorrer em riscos de

inadequações e análises restritas. Um dos elementos que devemos nos apropriar com reservas

é a certa centralização e sobrevalorização do passado com fator preponderante na

determinação das ações presentes (DUBAR, 2005; LAHIRE, 2003). Segundo Lahire (2003),

há uma polaridade nas teorias da ação que, de um lado, colocam as experiências passadas na

origem de todas as ações futuras, de outro, descrevem e analisam a ação sem nenhuma

preocupação sobre o passado dos agentes. Nessa polaridade formam-se duas ordens

epistemológicas radicais e antagônicas, que impõem limites para uma compreensão ampliada

das ações. Segundo o autor:

Na primeira ordem, negligencia-se muitas vezes o estudo da ‘ordem da interação’,

das características singulares e complexas do contexto pragmático, imediato da ação

e, na segunda ordem, negligencia-se voluntariamente ou involuntariamente tudo o

que, na ação presente, depende do passado incorporado dos atores[...] De fato, a

questão do peso relativo das experiências passadas e da situação presente para

explicar ações está fundamentalmente ligada à pluralidade interna do ator, ela

mesma corretativa da pluralidade das lógicas de ação nas quais o ator foi e é levado

a inscrever-se (LAHIRE, 2003, p.60).

O autor critica, em Bourdieu, a força heurística que seu modelo teórico dá ao

processo de antecipação realizada pelo habitus, pautada em certa cumplicidade ontológica

entre estruturas mentais e estruturas objetivas da situação social fomentada pelo poder de

adaptação e seleção do porvir. O conceito de habitus, concebido desse modo, não seria capaz

de explicar as diversas situações de crise vividas no seio de sociedades complexas, em que o

agente se defronta com a inadequação entre disposições incorporadas e novas situações

82

(LAHIRE, 2003; SETTON, 2009). A partir das ideias de Lahire (2003), é preciso reconhecer

os limites da teoria do habitus de Bourdieu, no modo como aborda a relação entre passado e

presente, na concepção de ajustamento entre disposições e posições sociais.

Se a fórmula do ajustamento e da correspondência disposição-posição (ou numa

outra obra, disposições/condições de existência) é interessante teoricamente, ela não

é, contudo, nunca totalmente verificável empírica ou historicamente, e isso, pela

simples razão de que as disposições de um ator não se constituíram numa única

situação social, num único universo social, numa única ‘posição’ social. Um ator (e

as suas disposições) nunca pode, portanto, se definido por uma única ‘situação’, nem

mesmo por uma série de coordenadas sociais.[...] O ‘presente’ tem, portanto, tanto

mais peso na explicação dos comportamentos, das práticas ou das condutas, quanto

os atores são plurais. Quando estes foram socializados em condições particularmente

homogêneas e coerentes, a sua reação às novas situações pode ser previsível. Em

compensação, quanto mais os fatores forem o produto de formas de vida sociais

heterogêneas, e até contraditórias, mais a lógica da situação presente desempenha

um papel central nas reação de uma parte das experiências passadas incorporadas. O

passado está, por isso, ‘aberto’, diferentemente, conforme a natureza e a

configuração da situação presente (LAHIRE, 2003, p. 66-67).

Na perspectiva apresentada por Lahire, vemos o questionamento do modelo de

análise centrado na influência do passado de socialização, para abrir um campo de

investigação que reconhece o presente ou as configurações de situações atuais como

elementos que mobilizam, convocam ou despertam uma parte das experiências passadas

incorporadas. O agente é produto de múltiplas experiências passadas, de múltiplas aquisições

feitas em situações sociais vividas. O contexto presente precisa ser considerado, pois

constitui-se no que possibilita a atualização de disposições adquiridas, impondo-lhes

condições. Assim, esse encontro entre passado e presente é ambíguo, podendo resultar em

situações de inadequações, quando o contexto exige mais do que pode dar um ator.

Na presente pesquisa o CSF é concebido como um espaço de socialização

profissional, que coloca em destaque a relação entre disposições incorporadas no habitus

profissional e as circunstâncias e exigências próprias do espaço social da ESF e suas

prerrogativas. Nesse contexto é preciso reconhecer no conceito de habitus limitações no que

diz respeito a pensar no poder do passado na determinação do presente. Nesse contexto,

Freitas (2006) destaca que a socialização implica que a causalidade do passado sobre o

presente existe, mas que é apenas probabilística, já que o agente é atravessado pelos diversos

espaços de socialização e pertenças:

Isso porque dependendo da multiplicidade e heterogeneidade das pertenças

sucessivas ou simultâneas dos indivíduos, haverá ampliação cada vez maior do

campo de possibilidades e menos se perceberá a causalidade de um provável

determinado (FREITAS, 2006, p.20).

83

De modo semelhante às ideias de Freitas (2006), Setton (2009) aponta para a

necessidade de reconhecermos as múltiplas e heterogêneas influencias socializadoras no

mundo contemporâneo. Assim, os produtos da socialização (os agentes e suas práticas) podem

ser entendidos a partir da análise da maior ou menor ruptura e/ou continuidade entre as

instâncias de socialização influentes nas trajetórias dos sujeitos (SETTON, 2009)

contribuindo com certo hibridismo as práticas dos atores. Entendemos que esse hibridismo é

um dos elementos pertinentes na constituição das práticas profissionais dos psicólogos na

ESF, já que o campo vem colocar um conjunto de exigências novas aos modelos de prática,

aos habitus profissionais tradicionalmente estruturados na formação em psicologia.

No que diz respeito às reflexões sobre a profissão e o processo de profissionalização

por que passa a psicologia na APS do SUS, nos apropriamos do referencial bourdieusiano no

intuito de fazer os recortes metodológicos necessários à pesquisa sobre a prática profissional

da psicologia. Assim, buscamos entender as profissões como resultantes de processos sociais

de nomeação oficial (BOURDIEU, 2012). As práticas profissionais, nessa perspectiva, são

atravessadas por estratégias de luta simbólica em que se situam aqueles graduados em

determinada profissão, constituindo-se como agente autorizado e legitimado socialmente.

Bourdieu (2012) fala da gestão dos nomes, nas taxionomias das profissões realizadas

pelo Estado, como um dos instrumentos da gestão da raridade material e simbólica. O maior e

ou menor prestígio atrelado ao nome das profissões remetem a um conjunto de vantagens

simbólicas e materiais associadas ao pertencimento a determinada classe social, refletindo-se

no capital simbólico de agentes e instituições corporativas.

O nome da profissão de que os agentes estão dotados, o título que se lhes dá, é uma

das retribuições positivas ou negativas (do mesmo título que o salário) enquanto

marca distintiva (emblema ou estigma) que recebe o seu valor da posição que ocupa

num sistema de títulos organizado hierarquicamente e que contribui por este modo

para a determinação das posições relativas entre os agentes e os grupos.

(BOURDIEU, 2012, p.148).

Assim, ser um profissional é ter recebido um título que lhe garante quase que

automaticamente alguns direitos. Como num título de nome familiar de prestígio, o nome da

profissão confere toda uma gama de ganhos simbólicos relativos, que não é possível se

conseguir através somente do dinheiro. Quanto às classificações e poderes de nomeação na

construção da realidade, Bourdieu (2012), no texto “Introdução a uma sociologia reflexiva”,

problematiza a noção de profissão, especialmente o conceito radicado no termo profession em

inglês. Para o autor essa categoria constitui-se como potencialmente perigosa, especialmente

por se constituir como uma palavra corriqueira e tacitamente aceita no senso comum, que

84

remete a uma realidade recorrentemente entendida como tal, ou seja, o termo remeteria a uma

realidade em certo sentido demasiadamente real, pelo fato de apreender uma categoria social e

mental ao mesmo tempo. Nas palavras do autor:

[...] profession é uma palavra da linguagem comum que entrou de contrabando na

linguagem científica; mas é, sobretudo, uma construção social, produto de todo um

trabalho social de construção de um grupo e de uma representação dos grupos, que

se insinuou docemente no mundo social. É isso que faz com que o ‘conceito’

caminhe tão bem.[...] Ele refere-se a realidades em certo sentido demasiado reais,

pois apreende ao mesmo tempo uma categoria social – socialmente edificada

passando, por exemplo, para além das diferenças econômicas, sociais, étnicas, que

fazem da profession dos lawyers um espaço de concorrência – e uma categoria

mental. Mas se, tomando conhecimento do espaço das diferenças que o trabalho de

agregação necessário para construir a profession teve de superar, eu perguntar se não

se trata de um campo, então tudo se torna difícil. (BOURDIEU, 2012, p.40).

Denota-se, da crítica epistemológica de Bourdieu, a necessidade de problematizar as

diferenças que são ofuscadas pela categoria profissão, que nos levam à sua problematização

sobre a ideia de classe social e representação, bem como as lutas concorrenciais internas aos

campos profissionais. Dessa forma, foi nosso intuito discutir o processo social de construção

das práticas profissionais da psicologia na APS do SUS visando, através dos referenciais

adotados, analisar algumas particularidades do processo de inserção de psicólogos nos CSF.

Entendemos que o estudo da experiência vivida pelos psicólogos na ESF, nos permite

repensar a formação em psicologia e em saúde coletiva, tendo como parâmetros de análise as

práticas profissionais no cotidiano de serviços públicos de saúde.

85

4 METODOLOGIA

A metodologia esboça as estratégias elaboradas para lograr os objetivos da pesquisa,

associadas por reflexão epistemológica, em especial, sobre nuances do processo de construção

de conhecimentos, sobre o compromisso ético da pesquisa e estratégias adotadas para a

construção de informações e interpretação do material produzido. Como esclarecido

anteriormente, buscamos dar continuidade a uma caminhada de atuação no campo saúde, com

o doutorado, que atravessou o processo de investigação colocando desafios ligados à

vinculação do pesquisador com o campo estudado. A presente pesquisa visa contribuir com o

campo das práticas profissionais da psicologia da APS, tanto na interlocução e diálogo com os

participantes, mas, sobretudo, com a sistematização da experiência investigativa,

proporcionando a produção de conhecimentos em, pelo menos, três níveis: 1) da análise do

cotidiano e ações da Psicologia desenvolvidas na atenção primária à saúde do SUS; 2) da

interpretação advinda da prática cotidiana; e 3) da aprendizagem metodológica resultante da

reflexão sobre os caminhos percorridos na investigação.

4.1 Sobre a epistemologia da pesquisa

Nessa pesquisa, nos posicionamos a favor da defesa crítica e propositiva do

inacabado projeto SUS. Uma defesa que considera de extrema importância a consolidação de

suas diretrizes e princípios e que compreende que ainda temos muito a fazer para construí-lo.

A defesa crítica do SUS se dá pelo entendimento de que este representa um avanço para

proteção à saúde da população brasileira, mas que é preciso mudar o enorme hiato existente

entre teoria e prática nas políticas públicas brasileiras. Compreendemos, nesse contexto, que a

psicologia pode e deve trazer importantes contribuições ao campo amplo da Saúde Coletiva,

participando da formulação de reflexões importantes para o desenvolvimento do SUS. A

interface com a Saúde Coletiva (e SUS), em contrapartida, pode trazer contribuições

relevantes para o desenvolvimento da psicologia, ciência e profissão ainda distante de muitos

dos problemas de saúde vivenciados pela população brasileira.

Nossa condição epistemológica é bastante influenciada e motivada pela experiência

de trabalho realizada na ESF, tanto no nível da atenção à saúde, quanto na formação de

profissionais. Essa condição epistemológica fora um dos desafios interessantes dessa proposta

metodológica. As ideias de Emerson Merhy (2006) sobre “sujeito implicado e militante”

ajudam a esclarecer um pouco o desafio da construção do conhecimento que se coloca diante

86

de mim. Para entender melhor, vejamos o que o autor escreve a um de seus colaboradores de

pesquisa:

O seu problema é que além de sujeito interessado você é um sujeito implicado. Você

é o pesquisador e o pesquisado. E, assim, o analisador e o analisado. Você é um

sujeito militante que pretende ser epistêmico e os desenhos de investigação que

temos como consagrados no campo das ciências não dão conta deste tipo de

processo (MERHY, 2006, p. 02).

A identificação com essa condição foi um processo parcialmente pertinente ao

desenvolvimento da presente pesquisa a medida em que muitas experiências profissionais

investigadas também foram vividas de modo semelhante na APS do SUS. Assim, buscamos,

nessa empreitada, produzir conhecimento e sistematizá-lo, de forma rigorosa, explicitando os

dilemas vivenciados, para ampliar as interlocuções sobre o tema da pesquisa. Propomo-nos,

aqui, a alargar e ampliar a capacidade de refletir e gerar reflexões, com rigorosidade

científica, sobre fenômenos em que estamos implicados. Considerando a experiência

profissional e acadêmica vivida na APS do SUS, o desenvolvimento da investigação, pôde

gerar ricos processos de autoanálise de nossa condição de agente no contexto estudado.

Percebemos quão fora delicado o desafio enfrentado.

Nesse estudo, nos propomos a tecer uma interpretação pertinente sobre a construção

social da prática profissional da Psicologia, a partir de um “mergulho empírico” no cotidiano

dos territórios em que a APS do SUS é realizada. Demonstramos, assim, nossa vontade de

contribuir na construção de conhecimentos sobre a interface Psicologia e Saúde Coletiva,

colocando-nos na condição necessária de disponibilidade para discutir horizontalmente a

relevância das contribuições, que trazemos.

Horizontalmente, porque não há nenhuma grande verdade mantendo quentes as

nossas costas; nenhum instrumento de inquisição que podemos mostrar para garantir

obediência às nossas ideias. Só podemos arguir e discutir, tal como os demais.

Temos algo a contribuir porque temos um mínimo de disciplinariedade que inclui a

vontade de discutir entre nós a validade daquilo que fazemos [...]Somos somente

uma parte de uma ecologia de saberes, cada uma das quais partindo de um ponto

distinto e pensando que tem algo a contribuir (KEVIN SPINK, 2008, p.76).

Movido pela humildade e curiosidade epistemológica, procuramos, no cotidiano,

conhecer a realidade em diálogo com os outros agentes nela inseridos. Para realizar essa

investigação, partimos da compreensão de que as teorizações são explicações parciais da

realidade (MINAYO, 2002), mas que podem ter grande valor para compreender, explicar e

transformar os fenômenos do cotidiano.

A pesquisa social adquire peculiaridades próprias a partir da natureza de seu objeto,

que é historicamente determinado. Um dos aspectos relevantes é que essa trata de uma

87

realidade da qual o pesquisador, em diferentes níveis, é agente ativo. Nesse contexto, a

cientificidade ganha contornos de relatividade em que as teorias, conceitos, métodos e

técnicas utilizadas adquirem sua legitimidade e validação, numa relação de coerência com os

contextos em que se constrói o conhecimento. A não-neutralidade da ciência evidencia-se

como um pressuposto importante, para destacar a necessária clareza sobre os interesses e

valores, que perpassam a produção do conhecimento. A relação que se constrói entre o

pesquisador e seu campo de estudo, uma realidade social marcada pelo “dinamismo da vida

individual e coletiva com toda a riqueza de significados dela transbordante” (MINAYO, 2000,

p. 15), é marcada pelas visões de mundo de ambos em todo o processo investigativo.

Assim, é necessário o desenvolvimento de estratégias dinâmicas de rigor e vigilância

epistemológica (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2010) capazes de, pelo

permanente exercício da reflexividade, subordinar a utilização das técnicas e métodos à

interrogação sobre condições e limites de validade. A metodologia da pesquisa social,

portanto, apresenta-se como “o caminho do pensamento e a prática exercida na abordagem da

realidade” (MINAYO, 2000, p.16), composto por teorias e técnicas articuladas, de modo

criativo e original, num conjunto coerente e claro de procedimentos capazes de dar conta dos

impasses da produção do conhecimento.

Tomando em consideração o referido contexto, nos orientamos em um modelo

epistemológico situado nas ciências sociais, que assume todas as consequências do caráter

histórico-cultural de seu objeto e do conhecimento como construção humana (GONZÁLEZ

REY, 2002). Compreendendo que o conhecimento é “um produto histórico ancorado em

contextos sociais e culturais específicos” (SPINK, 2000, p.19), a pesquisa é considerada uma

prática social, que manifesta a expressão de sujeitos em atos de significar o mundo, de

interferir diretamente na construção contínua da realidade. Realizamos aqui uma pesquisa de

abordagem qualitativa da realidade. A epistemologia qualitativa se apresenta como “esforço

na busca de formas diferentes de produção de conhecimento [...] que permitam a criação

teórica acerca da realidade plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa e histórica, que

representa a subjetividade humana” (GONZÁLEZ REY, 2002, p. 29). Uma epistemologia

qualitativa se apoia em três princípios, de consequências metodológicas importantes, que são:

conceber o conhecimento como uma produção construtivo-interpretativa; ter clareza que o

processo de produção do conhecimento é de caráter interativo; e por ter como nível legítimo,

da produção do conhecimento, a significação da singularidade, destacando a qualidade da

expressão dos sujeitos estudados e não a quantidade destes (Idem).

88

Para a produção de conhecimentos, portanto, a adoção do método qualitativo visa

trabalhar com “o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o

que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que

não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (MINAYO, 2001, p. 21).

Compreendemos ser possível, através do método qualitativo, uma análise detalhada do

fenômeno a ser estudado, na busca de entendê-lo em sua complexidade, a partir de suas

múltiplas dimensões: social, cultural, histórica, individual e singular. As metodologias

qualitativas são entendidas aqui como: “aquelas capazes de incorporar a questão do

significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais,

sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como

construções humanas significativas” (MINAYO, 2006, p. 22-23). O processo de pesquisa

qualitativa remete a levar em conta a historicidade do processo investigativo e investigar

níveis profundos das relações sociais. A pesquisa então se debruçará sobre a complexidade

dos fenômenos subjetivos

[...] cujos elementos estão implicados simultaneamente em diferentes processos

constitutivos do todo, os quais mudam em face do contexto em que se expressa o

sujeito concreto. A história e o contexto que caracterizam o desenvolvimento do

sujeito marcam sua singularidade, que é expressão da riqueza e plasticidade do

fenômeno subjetivo (GONZÁLEZ REY, 2002, p. 51).

Aqui, torna-se fundamental esclarecer o conceito de subjetividade adotado, aqui: a

subjetividade constitui-se como substrato ontológico complexo dos processos psíquicos

definidos na cultura, através de processos de significação e sentido subjetivo que se

constituem historicamente nos diversos sistemas de atividade e comunicação humana. Não é

algo dado, não se situa exclusivamente na esfera intrapsíquica e nem é algo que

aprioristicamente determina o curso da ação humana. A subjetividade

[...] implica de forma simultánea lo interno y lo externo, lo intrapsíquico y lo

interactivo, pues en ambos momentos se están produciendo significaciones y

sentidos dentro de un mismo espacio subjetivo, en el que se integran el sujeto y la

subjetividad social en múltiples formas (GONZALEZ REY, 2002b, p.22).

O que define o caráter subjetivo de um processo ou ação não é seu caráter interno ou

externo, mas o espaço de sentido e significação em que se geram as expressões, espaço que

está indissoluvelmente constituído por processos intersubjetivos. Ou seja, os fenômenos

subjetivos se constituem ou se definem em sujeitos históricos concretos, que atuam de forma

permanente em espaços sociais subjetivados, sendo assim, constituintes destes e constituídos

nestes (GONZALEZ REY, 2002b).

89

Na perspectiva adotada aqui, o conhecimento sobre a realidade é um dos resultados

do processo de apropriação inerentes à atividade humana. A apropriação remete à

interiorização da realidade como um processo ativo e de significação. Remete ao ato de dar

significado às coisas, onde o indivíduo se apropria da realidade transformada e a reconstrói

internamente de modo singular (GÓIS, 2005).

Considerando os objetivos propostos, buscamos estruturar estratégias que possam dar

conta de apreender os sentidos e significados atribuídos às práticas desenvolvidas no

cotidiano da atenção primária à saúde no SUS. Tomando em consideração as reflexões de

Uchimura e Bosi (2002) sobre qualidade e subjetividade, na avaliação de serviços e

programas de saúde, direcionamos o presente estudo numa perspectiva de “busca do sentido

dos fenômenos no espaço da intersubjetividade, ou melhor, no espaço do encontro entre a

subjetividade que se inscreve na vivência dos informantes e na vivência do próprio

pesquisador, através das compreensões e interpretações compartilhadas” (UCHIMURA;

BOSI, 2002, p.1567). Mesmo que nossa intencionalidade de pesquisa não seja a de avaliar,

esse movimento de imersão na experiência intersubjetiva irá demarcar todos os atos de

pesquisar.

Em outro estudo, as mesmas autoras empreendem importante crítica a modelos

tradicionais de avaliação da qualidade de serviços de saúde, que sobrevalorizam dimensões

objetiváveis passíveis de quantificação e desconsideram dimensões intersubjetivas próprias da

atividade humana (BOSI; UCHIMURA, 2007). O interesse da presente pesquisa, em

consonância com as críticas colocadas, é compreender dimensões intersubjetivas da realidade

social da atenção à saúde no SUS, a partir de uma inserção comprometida em cenários onde

esse processo se produz.

Nesse sentido, entendemos que a pesquisa qualitativa “convoca” o pesquisador a um

certo “jeito de ser”. E esse jeito de ser, me parece, deve guardar uma “sintonia fina” com o

modus vivendi do mesmo, o modo como descobre e vive os mistérios da vida social. Essa

“convocação” lhe aparecerá durante todo o processo investigativo colocando-se como

exigência de coerência entre epistemologia, teoria, métodos e técnicas. Exigirá criatividade,

presença, inteireza, abertura ao outro e a si mesmo – reconhecendo limitações e

potencialidades próprias do humano. Aparecerá diretamente ligada ao caráter não-neutro da

construção do conhecimento, permeada por valores, interesses, intencionalidades e

tensionamentos políticos. Essa “convocação” emergirá do olhar do outro, da alteridade

radical, que se coloca pela e na presença dos sujeitos-objetos-participantes do estudo. O

imperativo ético é o elemento regulador e impulsionador dessa necessária congruência e

90

autenticidade. Entendo, portanto, que esse modelo de pesquisa impõe, ao pesquisador, ocupar

um lugar de necessária exposição e interatividade.

A pesquisa qualitativa, para aqueles que pretendem construí-la de modo qualificado e

autoral, implica numa compreensão da ontologia desse modus operanti de abordar a realidade

social-humana, num modo autêntico de aproximar-se ao objeto de pesquisa e escolher-

construir modelos epistemológicos adequados ao que se pretende conhecer. A delimitação

desses aspectos fundamentais já deve se refletir na emergência de princípios praxiológicos a

ser incorporados e encarnados, no desenvolvimento da pesquisa. Isso implica num modo

específico de relacionar-se socialmente, movimentar-se no não-conhecido, transitar pelos

espaços, estar presente, interrogar a si e ao mundo. Nesse modelo investigativo, o corpo

lança-se no movimento de inter-ação com o outro, dialeticamente, deixando marcas e sendo

marcado.

Nesse modo qualitativo de ser pesquisador, a tradicional “coleta de dados”, que

preconiza a exequibilidade de um processo pseudo-asséptico de pesquisar sem interferir no

curso de uma realidade intersubjetiva já dada supostamente como “natural”, é substituída pela

“construção das informações”, que já torna claro o papel influente e responsável daquele que

mergulha na busca por conhecer a realidade e é obrigado a conhecer a si mesmo. Os supostos

“dados” são, portanto, construções históricas e de cada trajetória de pesquisa: informações

contextualizadas a um contexto intersubjetivo específico. Os chamados “fatos”, do mesmo

modo, como colocam Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2010), são conquistados e

construídos no exercício crítico da pesquisa. Ou seja, são construídos na prática de pesquisa e

conquistados pelo mérito das incursões investigativas na teoria e na prática.

A análise das informações construídas, por sua vez, deve induzir a um novo

movimento recursivo: a reformulação das perguntas. Paradoxalmente, uma pergunta feita

induz a muitas outras, abre questões e, somente as fecha para abrir em momentos mais

adequados. Como expressa Mercado-Martinez (2007, p.159), ao defender um modelo de

retroalimentação permanente entre análise e definição do problema de pesquisa, “uma vez

obtida certa informação, nenhum processo precede obrigatoriamente os outros”. Então, a

necessária coerência epistêmico-metodológica da pesquisa qualitativa “convoca” para fluir

com maleabilidade e rigor sistemático, exige inteireza e abertura no agir. Exige controle,

perícia, ginga, coragem e entrega: uma presença comprometida. Esse modo peculiar de agir,

em nosso entendimento, é o diferencial da pesquisa qualitativa. Um modo necessariamente

promíscuo e promissor, uma ontologia demasiado humano-mundana, um jeito de ser crítico,

afetivo, criativo, racional e sensível.

91

4.2 Delimitação do campo de estudo, participantes e construção das informações

O presente estudo volta-se para analisar a construção social da prática de

profissionais psicólogos inseridos na APS do SUS no Ceará. Tais psicólogos, atualmente,

inserem-se na APS do SUS através de duas grandes portas de entrada: os Núcleos de Apoio à

Saúde da Família (NASF) e os programas de Residência Multiprofissional em Saúde da

Família (RMSF). A ESF é um espaço que tem se aberto para várias profissões em saúde,

configurando-se como importante porta de entrada para a psicologia no SUS. Para termos

uma noção dessa ampliação basta observamos a expansão dos NASF e a abertura de

programas de RMSF. Em 2010, tínhamos 994 profissionais psicólogos inseridos em NASF no

Brasil. No Ceará, tínhamos 83 psicólogos. Em janeiro de 2014, tínhamos 2993 psicólogos

inseridos nos NASF no Brasil, e 641 no Ceará6. Importante notar que os psicólogos compõem

a segunda maior categoria profissional inserida nos NASF no Brasil, ficando atrás somente

dos fisioterapeutas. Vejamos a Tabela 1 abaixo:

Tabela 1: Total profissionais vinculados ao NASF, por modalidade, em ordem

de prevalência. (CNES, jan/2014).

NASF 1 NASF 2 NASF 3

Fisioterapeuta 3.045 Fisioterapeuta 711 Fisioterapeuta 452

Psicólogo Clínico 2.067 Psicólogo Clínico 558 Psicólogo Clínico 368

Nutricionista 1.846 Nutricionista 444 Nutricionista 322

Assistente Social 1.587 Assistente Social 328 Assistente Social 176

Fonoaudiólogo 1.071 Fonoaudiólogo 203 Fonoaudiólogo 119

Farmacêutico 946 Farmacêutico 132 Farmacêutico 108

Terapeuta

Ocupacional 558 Outros 76 Outros 38

Médico Pediatra 440

Terapeuta

Ocupacional 47 Médico Pediatra 22

Médico Gineco

Obstetra 395

Médico Gineco

Obstetra 24

Médico Gineco

Obstetra 17

Outros 371 Médico Pediatra 24 Terapeuta 15

6 CNES, 2010 e 2014.

92

Ocupacional

Médico Psiquiatra 182 Médico Psiquiatra 20 Médico Clínico 6

Médico Clínico 85

Médico

veterinário 16 Médico Psiquiatra 5

Médico

veterinário 54 Médico Clínico 9

Médico

veterinário 5

Médico

Homeopata 13 Educador Social 1 Educador Social 4

Educador Social 9

Médico

Homeopata 1

Médico

Homeopata 1

Médico

Acupunturista 9

Médico

Acupunturista 0

Médico

Acupunturista 0

Médico Geriatra 9

Médico do

Trabalho 0

Médico do

Trabalho 0

Médico do

Trabalho 2 Médico Geriatra 0 Médico Geriatra 0

Fonte: CNES (2014).

O NASF, assim, configura-se como uma importante porta de entrada para os

psicólogos na APS do SUS, a ESF. Os programas de RMSF também se ampliam. No Ceará, a

psicologia participa desses programas desde 2001. Atualmente, com a criação do programa de

RMSF em Fortaleza, em 2009, e sua posterior ampliação para outros municípios do Estado,

em 2013, através das Residências Integradas em Saúde, coordenadas pela Escola de Saúde

Pública do Ceará, temos um aumento na participação dos psicólogos na ESF do SUS.

No intuito de estudar esse fenômeno de ampliação da inserção da psicologia na ESF,

optamos por priorizar o estudo das práticas de psicólogos inseridos na atenção à saúde, que

foi o foco principal de nossas análises, mas também nos detemos no estudo do trabalho de

formação de psicólogos para o espaço da ESF, através da entrevista junto a profissionais

engajados na graduação em psicologia e na RMSF. Priorizamos a participação de

profissionais inseridos na RMSF por acreditar que esse espaço é promotor de importantes

experiências de formação e atuação, relevantes para nosso objeto de investigação. No entanto,

contamos também com a participação de profissionais com experiência nos NASF. Ao final

tivemos participantes egressos da RMSF, NASF e universidades públicas.

93

Os municípios de Fortaleza e Sobral foram escolhidos como os locais de pesquisa.

Dentre as razões da escolha, destaca-se o fato de que de que ambos municípios implantaram

programas RMSF, que tinham psicólogos inseridos em processos de formação em serviço, nas

equipes de APS do SUS, no período da realização da fase de campo da pesquisa. É importante

destacar que a escolha dos participantes, desde o início da pesquisa, veio se tornando um tema

crítico, que expressa a própria dinâmica complexa das pesquisas qualitativas, interessadas

mais na compreensão dos significados da experiência do que na mensuração dos fenômenos.

Na busca de dar resposta a essa questão, foi empreendida uma reflexão de modo a eleger

critérios, que possibilitassem a boa escolha dos caminhos a seguir, no decorrer da pesquisa.

Os critérios utilizados para realizar os recortes necessários foram perpassados pelo princípio

da exequibilidade da pesquisa, que pondera sobre prazos e períodos em observância dos

objetivos estabelecidos, atividades planejadas e realizadas e da qualidade do material

construído. Os critérios eleitos para delimitação dos participantes foram: 1) abertura dos

sistemas municipais para a realização de pesquisas nos serviços de saúde, bem como diálogos

com Universidade. Tal abertura foi encontrada em Fortaleza e Sobral, especialmente pela

política de educação permanente em saúde construída, que possibilitou a legitimação de nossa

aproximação com os participantes; 2) os participantes deveriam ter o máximo de experiência

acumulada com os cenários de prática da Estratégia de Saúde da Família, no que diz respeito

ao exercício da prática de atenção ou formação em saúde. Estabelecemos que os participantes

deveriam ter no mínimo de 1 (um) ano de experiência na ESF; 3) disponibilidade de tempo,

dos sujeitos, para participar da pesquisa; 4) interesse, dos sujeitos, em participar da pesquisa.

Para clarificar um pouco mais o sentido dos recortes realizados, tornou-se necessário,

aqui, esclarecer outros fatores específicos considerados para a escolha de desenvolver a

pesquisa prioritariamente junto aos profissionais inseridos em RMSF. Foram eles: 1) o arranjo

institucional dos programas de RMSF, propício ao diálogo com as Universidades –

viabilizando minha aproximação junto aos participantes; 2) a organização do processo de

Residência, que prioriza a criação de espaços de diálogo e reflexão sobre as práticas,

realizadas pelas diversas profissões inseridas e que propicia a construção de conhecimentos

relevantes ao objeto da pesquisa; 3) reconhecimento de que as experiências de RMSF

proporcionam a produção de ricos materiais, advindos da reflexão sistemática do cotidiano de

inserção da psicologia no SUS, que são potentes para pensar a formação em saúde e a

inclusão e criação de novos saberes e práticas no campo da Saúde Coletiva. Os fatores citados

fizeram com que priorizássemos a RMSF, em detrimento inicial do NASF. No decorrer da

pesquisa de campo, no entanto, sentimos a necessidade de contar com a participação de

94

profissionais inseridos em NASF, para ter acesso a informações diferenciadas quanto à

inserção da psicologia na ESF.

Seguindo a intencionalidade epistemológica da pesquisa qualitativa, a construção das

informações necessária aos objetivos da pesquisa se deu pela realização de 16 entrevistas

junto a 18 psicólogos com experiência na formação e atenção à saúde na ESF. As entrevistas

seguiram roteiros que, no decorrer das primeiras entrevistas sofreram pequenas alterações.

Foram elaborados 2 roteiros, um voltado para entrevistar psicólogos inseridos na formação e

outro para entrevistar os inseridos na atenção. O roteiro voltado para entrevistar os

profissionais inseridos na atenção sofreu modificações no decorrer das primeiras 4 entrevistas,

de modo que tivemos três roteiros utilizados (ver Apêndices B, C e D). Os roteiros nos

possibilitaram assegurar a discussão de questões importantes para nosso objeto de pesquisa e

referenciais teóricos adotados. Estes foram utilizados seguindo o modelo das entrevistas semi-

estruturadas, concebidos como facilitadores e orientadores das discussões, todas dinâmicas e

relativamente abertas à conversação, que resultou em um material diversificado a partir de

cada encontro singular de entrevista.

Inicialmente, foram identificados como potenciais participantes, psicólogos egressos

de RMSF em Sobral e Fortaleza, bem como aqueles que trabalhavam como membros do

corpo docente dos referidos programas. Alguns potenciais participantes eram egressos de

RMSF e trabalhavam como docentes dos mesmos programas. Foram também identificadas

professoras de psicologia da Universidade Federal do Ceará e Universidade Estadual do

Ceará, que trabalhavam a formação voltada para a ESF do SUS. Iniciamos com entrevistas

com egressos e docentes da RMSF em Sobral e Fortaleza. Entrevistamos 2 professoras

universitárias, sendo uma da UFC e uma da UECE. Percebemos, no decorrer das primeiras

entrevistas, a necessidade de entrevistar profissionais psicólogos inseridos em NASF, para

que tivéssemos referências de outro espaço de atuação.

Foram realizadas 16 entrevistas individuais e 2 entrevistas com duplas, totalizando

18 participantes, sendo 11 mulheres e 7 homens, todos com graduação em psicologia. A

maioria dos participantes tinha mais de 2 anos de experiência na ESF, tendo somente 2,

apenas 1 ano de experiência. Quanto à formação dos participantes, uma já tinha concluído

doutorado em Psicologia, 5 concluíram mestrado em Saúde Pública, 3 em Saúde da Família e

1 em Psicologia, 2 outras eram mestrandas em Saúde Pública. Dentre os participantes, 3

tiveram experiências em NASF em Fortaleza, tendo 1 deles também cursado RMSF em

Sobral. Quanto às experiências profissionais, somente uma entrevistada não teve experiência

como profissional da atenção à saúde (portanto, 17 já tinham trabalhado como psicólogos da

95

APS do SUS), 7 dos entrevistados tiveram experiências como profissionais voltados para a

formação para a ESF, sendo 2 na graduação e 5 nos programas de RMSF, sendo 3 em Sobral

e 2 em fortaleza. Quanto aos participantes egressos de RMSF tivemos 6 do programa de

Sobral e 7 de Fortaleza. Pudemos observar que os participantes tinham vasta experiência no

campo das práticas psicológicas na ESF, o que ficou evidente no decorrer das entrevistas.

Buscamos os contatos com os participantes e muitos deles eram-nos conhecidos, o que

facilitou a aproximação e a realização das entrevistas. Ademais do desafio ético de

preservação do sigilo dos participantes, entendemos que nossa experiência de trabalho na

RMSF, como egresso e docente, facilitou bastante a aproximação e realização das entrevistas.

A escolha por encerrar as entrevistas, delimitando o corte amostral de nosso estudo,

se deu pela quantidade e riqueza semântica do material e sua relevância, para a análise que

nos propomos a realizar tendo em vista nosso referencial teórico. Nesse ponto, nos orientamos

pelo princípio da saturação teórica (BAUER; AARTS, 2004; FONTANELLA; RICAS;

TURATO, 2008), onde percebemos que a inclusão de novos participantes já estava se

tornando pouco significativa para as reflexões teóricas que nos propusemos fazer, pela

redundância ou repetição dos significados e representações percebida nas últimas entrevistas.

Saturação é o critério de finalização: investigam-se diferentes representações, apenas

até que a inclusão de novos estratos não acrescente mais nada de novo. Assime-se

que a variedade representacional é limitada no tempo e no espaço social. A

identificação de mais variedade iria acrescer desproporcionalmente os custos do

projeto; então o pesquisador decide parar de investigar novos estratos. (BAUER;

AARTS, 2004, p.59).

As entrevistas tiveram os diálogos realizados transcritos em textos. A transcrição foi

feita por uma profissional contratada e a revisão minuciosa das transcrições foi feita por nós.

As gravações tiveram duração média de 60 minutos, de modo que as entrevistas totalizaram

aproximadamente 16 horas de gravação. As transcrições dos diálogos gravados produziram o

material empírico da pesquisa. Tivemos problemas parciais com uma das entrevistas

gravadas, de modo que restaram 15 entrevistas gravadas.

Em respeito ao princípio ético de preservação do sigilo dos participantes (FLICK,

2009), na exposição de falas oriundas das entrevistas, usadas no decorrer da tese, não

identificamos os participantes. Mantivemos a identidade dos participantes e suas entrevistas

somente para controle interno, necessário ao processo de interpretação do material. Esse

procedimento sigiloso fora necessário já que muitos dos participantes se conhecem e a reunião

das falas já possibilitaria a identificação do entrevistado pelos seus pares. Assim, também no

sentido de dificultar qualquer identificação, agimos transformando todos os participantes em

96

gênero masculino. A contextualização das falas, assim, obedece ao procedimento de dificultar

a identificação. Nosso desafio ético de preservação da identidade dos participantes é, também,

decorrente da relevância do presente estudo para os próprios participantes, muitos inseridos

nos debates atuais sobre a prática da psicologia na ESF, onde muitos se conhecem

intimamente. A pesquisa foi aprovada no comitê de ética em pesquisa da Secretaria de Saúde

do Estado do Ceará (Anexo).

4.3 A análise do material empírico produzido

A pesquisa qualitativa origina uma vasta e densa quantidade de informações e

materiais, que devem ser organizados e analisados de modo sistemático, possibilitando o

desenvolvimento de categorias potentes para descrever e explicar os fenômenos sociais

(POPE; ZIEBLAND; MAYS, 2009). Segundo Minayo, a fase de análise dos dados, de modo

sintético, visa alcançar três objetivos: ultrapassagem da incerteza, voltando-se às questões e

perguntas colocadas no estudo; enriquecimento da leitura, aprofundando um olhar que supera

o imediatismo e espontaneísmo; e integração das descobertas, onde se apreende uma lógica

interna ao material produzido no campo (MINAYO, 2010). É o momento onde são

apresentados os resultados da pesquisa, construídas as discussões sobre as questões de

pesquisa e as considerações finais, a partir de cruzamentos entre o corpus empírico, os

objetivos da pesquisa e o marco teórico utilizado.

Em Paul Ricoeur (1989, 2009), como vimos em nossas referências teórico-

metodológicas, buscamos colocar em prática a proposição de uma hermenêutica do texto

como obra aberta a apropriações. Essa foi nossa postura interpretativa diante dos textos

transcritos das entrevistas. Procedemos de modo a executar, várias vezes e de diversas formas,

movimentos de análise e compreensão das entrevistas para a elaboração de uma interpretação

pertinente sobre a prática psicológica na ESF. Nosso embasamento teórico em Ricoeur nos

permitiu colocar em prática de modo fundamentado o estudo hermenêutico dos 15 textos

produzidos nas entrevistas e que compuseram o material empírico da pesquisa.

Primeiramente, partindo de um movimento de compreensão naive, ou ingênua, onde

se conhece de modo superficial o todo dos textos das entrevistas, numa compreensão

conjectural. Dessa “conjectura” inicial partimos num movimento mais aprofundado de

compreensão apoiado em processos analíticos das partes e relações entre as partes do texto,

problematizando nossa perspectiva de interpretação. Nesse processo, onde se busca uma

97

espécie de “distanciação” visando à objetivação do texto, pode-se chegar ao que Ricoeur

chama de “apropriação” (RICOEUR, 2009).

O termo conjectura liga-se à ideia de que não é possível acessar a intenção do autor,

que elaborou o texto. Assim, Ricoeur propõe o conceito de conjectura como modo de

explicitar um primeiro passo de interpretação, que logo recorrerá aos procedimentos de

explicação e análise dos textos. A passagem da conjectura à apropriação deve contemplar um

processo de encadeamento de “um discurso novo no discurso do texto” (RICOEUR, 1989,

p.155), a partir de um exercício hermenêutico que entrelaça explicação e compreensão.

Assim, visando à apropriação dos textos das entrevistas, na composição de uma interpretação

apropriada para a prática da psicologia na APS, recorremos a vários movimentos de leitura e

releitura dos textos, bem como de composição e recomposição de nossas interpretações.

Nesse movimento de interpretação das entrevistas, primeiramente, identificamos,

como resultado da escuta das gravações e de leituras e revisões das entrevistas já uma

estrutura inicial do material, que podemos identificar como parte dessa interpretação

conjectural inicial, composta por alguns temas: âmbitos e prerrogativas de atuação, a

construção da demanda, especificidade de psicólogo, o espaço da APS, a busca do

reconhecimento, perspectivas e a experiência na APS. Com o intuito de aprimorar e agilizar a

codificação dos textos das entrevistas e subsidiar a análise aprofundada das unidades de

significação do material, utilizamos como ferramenta o software Atlas TI, especificamente

para auxiliar no processo de codificação dos textos das entrevistas.

O programa Atlas Ti consiste em uma ferramenta para a análise de dados qualitativos

que pode facilitar a codificação, categorização e interpretação de textos. Tal programa permite

ao pesquisador realizar a codificação e categorização do material, a criação de notas de

pesquisa e de comentários, assim como o estabelecimento de relações entre as categorias

analisadas e o agrupamento e gerenciamento de tais categorias, bem como a visualização

gráfica de todos esses procedimentos (WALTER; BACH, 2009). Utilizamos o software de

modo bem delimitado, somente para a criação e identificação de unidades de significação

pertinentes aos textos das 15 entrevistas, que compõem o material empírico da pesquisa.

Interessou-nos, assim, a utilização do programa para a organização dos dados pelas

facilidades que este permite na codificação e categorização das partes dos textos. Nesse

processo, criamos 22 unidades de significação associadas a citações de partes das entrevistas,

compostas por falas dos participantes ou pequenos diálogos entre pesquisador e participantes.

As unidades de significação foram as seguintes (TABELA 2):

98

Tabela 2: Unidades de Significação

Unidades de Significação

1. Âmbitos da Prática Psicológica na APS

2. Demandas pra Psicologia

3. Especificidade da Psicologia na APS

4. O reconhecimento da Psicologia

5. Desafios do trabalho na APS

6. O problema da Psicoterapia

7. Prerrogativas para atuar na APS

8. Experiências na APS

9. Obstáculos para o reconhecimento

10. Hierarquia no CSF

11. O desafio da formação

12. Objeto da Psicologia na APS

13. O Lugar do Psicólogo na Hierarquia da APS

14. O trabalho com outras profissões

15. O que se espera do psicólogo

16. Exemplos de casos

17. Tradução da Demanda

18. A relação com a rede de Saúde Mental

19. A necessidade de ter psicólogo na equipe mínima

20. A transformação da demanda

21. Características do trabalho da APS

22. Serviço Social e Psicologia Fonte: Elaborado pelo autor

As 22 unidades de significação foram organizadas de acordo com nossos objetivos

específicos de pesquisa e referenciais teóricos, que subsidiaram a organização dos resultados

em 4 capítulos de discussão. A organização das unidades de significação a partir dos objetivos

específicos é ilustrada na Tabela 3, apresentada a seguir:

A tabela reflete o processo de organização dos capítulos de apresentação e discussão

dos resultados. Esse processo fora bastante complexo e marcado por um movimento espiral de

análise e compreensão das entrevistas permeado por análises de partes e do todo do material

empírico. O programa de estudos realizado no decorrer da pesquisa cumpriu também função

importante na delimitação dos recortes e na composição do texto final da tese. De modo

resumido, o processo de análise do material empírico da pesquisa pode ser expresso nas

etapas abaixo:

1) Escutas livres das entrevistas (2 vezes para cada entrevista)

99

2) Escutas para a correção das transcrições (cada escuta aqui era mais demorada e

detalhada).

3) Leituras naive de material impresso e definição de um conjunto inicial de temas

organizadores das discussões.

4) Utilização do software Atlas Ti para a organização e definição de unidades de

significação (implica em novas leituras do material das entrevistas).

5) Organização de 22 unidades de significação em 4 capítulos.

6) Adaptações e recomposições dos capítulos e da ordem da discussão.

7) Revisões dos capítulos e articulação entre estes e o objetivo geral.

Tabela 3: Unidades de significação em função dos objetivos específicos

OBJETIVOS

Descrever o

campo de

práticas

profissionais

da APS e o

lugar ocupado

pelos

psicólogos nele

Analisar a

construção

social das

demandas pra

prática

psicológicas na

APS

Compreender o

modo distinto

como a Psicologia

intervém

profissionalmente

Analisar o

significado

histórico da

inserção da

Psicologia na

APS

UNIDADES DE

SIGNIFICAÇÃO

Características

da APS

Demandas pra

Psicologia

Especificidade da

Psicologia na

APS/

Objeto da

Psicologia na

APS (mesclados

na análise)

Desafios da

Formação

O trabalho com

outras

profissões

Exemplos de

Caso

Experiências

na APS

Psicologia e

Serviço Social

Tradução da

demanda

O lugar do

Psicólogo na

hierarquia

Prerrogativas

pra atuar

Transformação

da Demanda

O reconhecimento

da Psicologia

Desafios da

APS

A relação com

a rede de SM

Obstáculo para o

reconhecimento

Hierarquia no

CSF

O que se espera

do psicólogo

Âmbitos da

prática

O lugar da

psicoterapia

A necessidade

de psicólogos

na equipe

mínima

100

Fonte: Elaborado pelo autor

A interpretação do material empírico, dentro de nossa proposta hermenêutica de

inspiração ricoeuriana, foi marcada pelo esforço de apropriar-se do enorme material

produzido nas entrevistas, e composição de um texto de discussão pertinente à experiência

vivida pelos psicólogos na ESF. Assim compomos um escopo de temas e reflexões

pertinentes ao mundo dos textos e ao necessário encadeamento de novos discursos aos

discursos já existentes, próprio do processo de interpretação que, ao buscar compreender os

textos como obras abertas, permite-nos alcançar uma maior compreensão de nós mesmos.

101

5 A ESF DOS PSICÓLOGOS

As informações construídas, a partir dos diálogos realizados nas entrevistas, nos

levam a um conjunto de visões da APS, representativas dos processos cotidianos de

construção das práticas psicológicas. Essas visões nos ajudam a identificar o lugar das

práticas psicológicas nos CSF e os âmbitos percorridos por estas no espaço social em questão.

Nesse capítulo, o primeiro onde trabalhamos os resultados, discorremos sobre questões

retiradas das perspectivas de visão dos psicólogos sobre a ESF, reconstruindo o cenário onde

se desenvolvem as práticas psicológicas.

5.1 Visões do campo: características, prerrogativas e divisão do poder

Os participantes apresentam visões que subsidiam uma interessante análise da ESF, a

partir de diversos aspectos e perspectivas de interpretação. Tendo como foco o conceito de

campo social de Bourdieu (2012, 2008, 2004), buscamos desenvolver uma interpretação desse

espaço de práticas, apontando atravessamentos pertinentes a lutas e estratégias de ação

desenvolvidas pelos profissionais. A APS, assim, é compreendida e analisada como campo

social, onde a estruturação das práticas é atravessada por prerrogativas de atuação, que se

colocam como normatizações vigentes no cotidiano profissional. Tais prerrogativas de

atuação instituem novos processos de socialização profissional dos agentes, constituindo

novas disposições práticas e identidades profissionais caracterizadas pelo espaço das práticas

no campo. A análise das entrevistas, nesse sentido, nos possibilitou um repensar sobre as

características do espaço social da ESF, a partir das visões apresentadas pelos psicólogos,

reconstruindo a ESF dos psicólogos, como um produto histórico de intensos processos

socioprofissionais.

Para iniciarmos, destacamos algumas características do campo que são percebidas

como importantes para analisar a construção social das práticas psicológicas. Dentre os

aspectos ou características relevantes da APS, os participantes apontaram que o campo é

marcado por um tipo específico de demandas, em que se destaca a dimensão coletiva do

sofrimento ou dimensão comunitária dos casos individuais como um elemento de distinção,

que influencia a construção das práticas profissionais desenvolvidas. Desse modo, as práticas

em saúde desenvolvidas na ESF devem orientar-se por uma leitura social dos problemas de

saúde, onde o indivíduo precisa ser percebido em sua inserção no território/comunidade.

102

Assim, o objeto das práticas, nesse campo, é diretamente ligado ao entrelaçamento entre

contextos individuais e sociocomunitários.

Nesse ponto, a APS impõe a necessidade de territorialização das práticas, que

implica no reconhecimento das condições de vida dos usuários, bem como na possibilidade de

intervir coletiva e individualmente nelas. O CSF, situado perto do local de moradia das

pessoas, pode representar uma base de apoio para garantir o acesso aos serviços e a busca por

uma atenção integral às necessidades de saúde. Assim, o usuário da ESF é percebido em sua

especificidade, o que remete a um imperativo de reformulação de práticas para adequar-se ao

contexto de uma linha de produção atravessada pela necessidade de ações voltadas para uma

atuação na perspectiva social-comunitária.

O que fica mais pra mim, da atuação na atenção primária, é que a gente tem que

construir essa atuação a partir das demandas e das necessidades do território, porque

elas vão dizendo o que a gente vai desenvolver [...] Tem que ser flexível mesmo a

essa realidade, flexível, sensível.

Essa abertura para o território é uma das mais notáveis características do campo da

APS, percebidas pelos participantes, que se impõe na delimitação da prática profissional nos

diversos âmbitos onde ela se desenvolve. A territorialização é, assim, uma característica que

marca o tipo de prática profissional pela necessidade de abertura a diversas áreas e

abordagens técnico-científicas. Inserida nas diretrizes estabelecidas desde a criação do PSF, o

termo “territorialização” é compreendido como “ferramenta metodológica que possibilita o

reconhecimento das condições de vida e da situação de saúde da população de uma área de

abrangência” (MONKEN et al., 2008, p.246). Também pode ser considerada uma ferramenta

para o planejamento das ações, enfatizando seu caráter de coleta de dados para elaboração de

diagnósticos de condições de vida e situação de saúde. Assim, o processo de territorialização

visa à demarcação de limites das áreas de atuação dos serviços, o reconhecimento da dinâmica

social existente e o estabelecimento de relações com outros serviços da rede de atenção à

saúde. Acrescentamos que esse processo também permite o estabelecimento de vínculo entre

os profissionais e usuários-moradores do território comunidade, favorecendo a co-

responsabilização pela saúde, um dos princípios da ESF (CAMARGO-BORGES;

CARDOSO, 2005; OLIVEIRA; FURLAN, 2008).

Outro aspecto marcante da APS e que foi percebido como caracterizador desse

espaço social pelos participantes, é a necessidade de um trabalho de generalista. Como

relatada na frase de um participante: “Quando a gente está na ESF, existe uma perspectiva de

trabalho generalista, porque a gente tem que saber de tudo um pouco”. Esse trabalho de

103

generalista é uma matriz de identidade profissional, que demarca a definição e a representação

legítima das práticas em saúde nos CSF. Aqui, em certa medida, há pouco espaço para

especialismos ou abordagens profissionais limitadas a áreas específicas. Assim, a APS é

percebida pela certa promiscuidade teórica e metodológica que perpassa a construção das

representações das práticas, classificadas como articuladoras de áreas de atuação e abordagens

entre profissões e dentro das profissões. Essa articulação entre áreas inter e intraprofissionais,

além de uma marca do espaço de práticas da ESF, revela uma necessidade imposta como

prerrogativa de atuação colocada no cotidiano dos CSF. Assim, por exemplo, como relatam

alguns participantes, para atender à demanda, é necessário transitar entre diversas áreas do

conhecimento e saber reconstruir permanentemente as práticas nesse trânsito. Destaca-se,

novamente, a importância dos processos históricos situados nos territórios. Nesse processo de

trânsito entre áreas de atuação e saber é que, como apontado nas entrevistas, constrói-se um

caminho de atuação profissional adequado ao campo da APS do SUS.

E no meio de interfaces teóricas e técnicas, os agentes buscam estruturar pontos mais

estáveis para tecer uma delimitação de espaço através da negociação permanente de limites e

alcances da atuação. Criam-se, assim, pontos de encontro entre as áreas, que demarcariam

âmbitos específicos de prática interdisciplinares pertinentes à ESF. Esse ponto de encontro

deverá estar situado no trânsito entre diversas áreas de atuação.

Eu acho que a gente tem que tentar pensar um ponto de encontro em tudo, porque

não dá pra gente ser especialista em tudo, não dá pra eu ser especialista em

psicologia escolar, especialista em psicologia social.

Pesquisador: Isso aí já seria um desafio enorme.

É. Então, assim, nessa interseção de tudo, o que eu posso? É aquela história que a

gente vê nas categorias interdisciplinares e agora eu fiquei pensando como um

paralelo do campo e núcleo. Então assim, vai ter o núcleo ali que é a Estratégia,

aliás, o campo, e alguns núcleos vão se tocando. Então o núcleo escola, o núcleo

social, o núcleo saúde, o núcleo saúde mental. Mas, nessa interseção, aqui o que eu

posso fazer?

Um fazer de interseção entre áreas de atuação demarca o modo de desenvolvimento

das práticas, necessariamente interdisciplinares e promíscuas quando de suas interinfluências

com diversas áreas de atuação das profissões inseridas na APS. Como na entrevista abaixo

citada, várias áreas se comunicam para estruturar e fundamentar epistemológica e

tecnicamente as práticas psicológicas.

Psicologia da saúde, psicologia organizacional, psicologia clínica, como se cada

uma delas você fosse pra instituições diferentes. E, pra mim, na atenção primária

você precisa de conhecimento de todas elas pra atuar nessa perspectiva de ver o

indivíduo nessa sua trajetória e propor, mesmo pra ele, propor pras pessoas, não sei

se caminhos, mas alguns horizontes que talvez em alguns momentos o adoecimento

faz com que você não veja. [...].Então, hoje eu vejo que é necessário transcender as

104

áreas, as caixinhas, porque na atenção primária são diversas as demandas, porque no

fundo, no fundo ali é vida pulsante. Eu estou indo na escola, eu vou no posto de

saúde, eu adoeço, eu brinco. Sabe, é uma coisa que é tão dinâmica que exige que o

profissional também utilize de vários recursos tanto de conhecimento, quanto de

práticas.

Essa interseção permanente das áreas de atuação e abordagens teóricas aponta para a

complexidade da dimensão epistemológica da produção das práticas, sempre impondo certa

tensão atualizadora, um revisitar dos conceitos, teorias e técnicas mobilizados, nos encontros

cotidianos da ESF. Nesse aspecto, destacamos o limite das teorias existentes pra ligar com os

processos de trabalho na APS, percebidos como “angustiante novidade” pelos participantes:

Tudo é motivador, mas ao mesmo tempo angustiante. Saber que naquela semana

alguma hora, oito da manhã da sexta-feira, vai ter uma pessoa, que você ainda não

conhece ou se conhece vai apresentá-lo a uma questão, a uma problemática que você

não sabe pra onde ir, que você não sabe pra onde vai. Tem os nortes, que é a teoria,

o papel da teoria é fundamental. Mais ou menos, sabe-se que a gente não vai fazer

isso ou aquilo outro, a gente vai tentar trabalhar segundo tais horizontes, etc e tal.

Mas que efetivamente é tudo muito inédito.

O ineditismo percebido da APS se coloca como mais um imperativo histórico de

criação de práticas, que precisam ser sistematizadas e problematizadas nos níveis micro e

macropolíticos. Essas práticas precisam lidar com uma diversidade de sérios problemas de

saúde individuais e comunitários, casos graves e numerosos, que foram desafios para os

participantes da pesquisa. Nesse contexto, o desafio de compartilhar os saberes nas equipes e

entre CSF e comunidade fora também apontado. Nessa mesma perspectiva, outra

característica da ESF apontada nas entrevistas, é o caráter de rede que entrelaça os serviços de

saúde. Assim, esse fazer de interface, marcado pela interlocução, é também situado em rede

de serviços, que atende à prerrogativa de pensar-se na articulação não somente de profissões

intra e interequipes, mas entre serviços, entre políticas de saúde.

Você está aqui, mas você tem outros serviços, você tem outras coisas que estão

atuando conjuntamente ou eram pra estar, mesmo que não esteja, mas a organização

é essa. Então pensando nisso você não pode ter uma mentalidade de que “ah eu faço

a minha prática do jeito que eu quiser”, “ah eu faço minha prática sem pensar o que

existe pra além do centro de saúde que eu estou lotado”, digamos assim. Então eu

acho que isso dá uma marcação, isso dá uma marcação de que? De você precisar

entender como é que funciona o SUS, de você precisar conhecer um pouco os outros

serviços, de você precisar fazer uma prática que faça sentido dentro disso, dentro

dessa lógica.

A delimitação do espaço de atuação, dos âmbitos onde se deve atuar ou não, muitas

vezes, parece não estar nas mãos dos profissionais. Nesse aspecto, percebemos que o

generalismo do campo impõe certa pressão aos agentes, para que estes mantenham-se sempre

abertos a receber uma variedade enorme de demandas. Essa pressão pode implicar na perda de

105

autonomia das profissões na delimitação dos alcances e possibilidades de suas práticas.

Assim, percebemos que a APS impõe-se a partir de um processo estruturante das práticas, que

tendem a desenvolver um fazer com limites disciplinares flexíveis e permeáveis a outros

campos de saber e fazer.

Por exemplo, quando se chega na ESF, eu não vou dizer assim “eu quero só atender

criança”, “eu só sei atender adulto”, “olha, eu foquei e particularizo tal e tal ciclo de

vida”, não tem isso. “Visita domiciliar eu acredito que não seja interessante fazer

nesse aspecto”. Não tem isso.

Pensar o campo de práticas da ESF, nesse caso, é pensar no desafio de um fazer

interdisciplinar, intersetorial e em permanente tensão por mudança e permeabilidade, mas que

precisa se colocar como específico, sistematizar e consolidar alguns referenciais técnico-

científicos, para constituir posições e posicionamentos necessários às relações e trocas

existentes dentro do campo. Ademais das questões estruturais colocadas, que podem ser

pensadas como representativas do campo, algumas prerrogativas de trabalho parecem ser

denotativas do modo como os psicólogos vem se organizando em posições específicas e

definindo posicionamentos na definição de caminhos mais adequados ao fazer específico da

psicologia na APS. Tais prerrogativas, portanto, parecem específicas para a Psicologia,

mesmo que extremamente influenciadas pelas questões do campo de atuação e de produção de

saberes interdisciplinares da Saúde Coletiva. Aqui, muitos dos participantes apontam para

uma necessidade de modificação das práticas psicológicas, que seriam tradicionalmente

clínico-individuais e que precisavam mudar para uma abordagem mais contextualizada

socialmente. Entendemos que o espaço da ESF, pela imposição do caráter territorializado e

interdisciplinar, reatualiza o desafio histórico da psicologia de rever seus fundamentos

teóricos e práticos e compromissos sociais no contexto das políticas públicas brasileiras,

como apontado por outros estudos (BOCK, 2009; DIMENSTEIN, 1998; 2001; 2003;

MACEDO; DIMENSTEIN, 2011; 2012; YAMAMOTO, 2009).

As tensões por mudança nas práticas envolvem grandes discussões sobre as

prioridades de ênfases, que representam uma verdadeira disputa simbólica para definir o fazer

legítimo da Psicologia na APS. Percebemos aqui que agentes situados em diferentes

abordagens e interesses colocam-se em posicionamentos, muitas vezes conflituosos,

influenciados certamente pelas trajetórias anteriores de vinculação a grupos filiados a

abordagens teórico-metodológicas das psicologias. A polaridade entre a clínica e o social é

uma das dicotomias, ou falsa dicotomia – como aponta Benevides (2005), que o psicólogo

inserido na APS deve superar. Essa polaridade é alimentada por rivalidades, ora pequenas, ora

106

bastante intensas, que se evidenciam na maior ou menor adesão às abordagens clínicas e

psicoterápicas, por um lado e, por outro, às abordagens da psicologia social e comunitária. As

questões referentes à polêmica criada em torno das práticas psicoterápicas na APS serão

discutidas nos próximos capítulos.

Voltando nossa atenção para as características e prerrogativas da APS, percebemos

que os psicólogos identificam diversos desafios para o desenvolvimento das práticas

profissionais específicas. Além da dimensão social e comunitária, que chama para um

reconhecimento de questões do território na determinação do processo saúde-doença-

cuidado, outro exemplo significativo desses desafios é o trabalho com as famílias, que impõe

um conjunto de questões éticas e técnicas no delineamento das práticas.

Assim, porque esse entrar nas famílias, eu acho que tinha muitos desafios e que eu

considero éticos é com os outros profissionais não cuidarem mesmo das pessoas ta

entendendo, cuidar que eu acho nesse sentido ético, do respeito. [...] Enfim, por

exemplo, porque eu acho que muitas ações são, por exemplo, profissionais entraram

na casa das pessoas de um modo assim invasivo, isso pra mim era uma coisa ética

muito forte “meu Deus você ta entrando na casa do outro”, “você ta invadindo, e

você ta invadindo o modo de ser”, tipo assim, criticava tudo isso aqui não pode, tudo

gritando e tipo assim “você tem que fazer desse jeito e pronto”.

Nesse contexto a intervenção familiar apresenta-se como um desafio ético para a

prática psicológica. Aqui, temos uma prática marcada pelas questões intimas e confidenciais,

que ganham certa peculiaridade pelo fato de lidar com pessoas que moram num mesmo

bairro. As questões éticas que envolvem o sigilo com as informações obtidas na atenção à

saúde constituem-se como desafios, que remetem ao estabelecimento de acordos nas equipes,

de modo a estabelecer certos padrões aceitáveis de respeito às pessoas envolvidas nas práticas

de atenção à família. Muitos foram os questionamentos, nas entrevistas, sobre o trabalho na

perspectiva de um cuidado compartilhado que, muitas vezes, reflete-se em problemas de

desrespeito a intimidade das pessoas tão primada pela formação em psicologia.

Nesse contexto de discussão, percebemos que o fato de ser um agente do Estado

incomodou alguns dos participantes, que relataram sentir o peso desse lugar normativo, de

quem participa de um fazer disciplinar e tutelar. Assim, pelo que foi colocado pelos

participantes, as posturas “policialescas” precisam ser combatidas, visando o fortalecimento

da autonomia dos usuários, num contexto de um agir profissional ético e emancipatório.

Acho que tem um dilema que é da autonomia das pessoas. Assim que, às vezes, na

atenção primária, a postura é muito policialesca, dentro de uma visão até mesmo de

uma verticalização das ações, você tem que fazer isso, “a gestante tem que ser

acompanhada!”. Então assim, acaba que um dos dilemas éticos e políticos também,

nessa perspectiva, é de garantir autonomia, “eu não quero ser acompanhada”, “eu

não quero essa coisa”. Vamos entender porque, mas eu não posso ir na casa das

107

pessoas, entrar na casa das pessoas ou fazer aquilo porque o Ministério quer que eu

faça. [...] o papel nosso não é de obrigar ele a se cuidar, é de entender e pensar junto

com ele aquela realidade e ajudar na decisão do caminho que ele vai seguir. Então,

acho que esse seria assim o principal dilema.

A verticalidade dos programas da ESF é percebida como um obstáculo para o

desenvolvimento de ações mais contextualizadas com as necessidades de saúde dos usuários,

já que engessa os processos de trabalho voltados para uma atenção mais ampliada. Há certo

consenso de que a APS, no caso brasileiro, reduz-se a um programa restritivo e limitado, no

que tange à resolução prioritária de problemas de saúde restritos. As informações construídas

nas entrevistas, também colocam em evidência a precarização do trabalho na ESF.

Corroborando com as ideias de Gil (2006), que analisa concepções e experiências de Atenção

Primária e Atenção Básica no Brasil, torna-se importante questionar o processo de

precarização por qual vem passando as políticas de atenção primária ensejadas pela ESF.

Segundo Gil (2006), articulam-se conflituosas propostas de ampliação da cobertura com a

racionalização e redução dos gastos, no seio da constituição de um SUS híbrido, resultado de

lutas pela melhor definição das políticas públicas num contexto de afirmação do

neoliberalismo. Destacam-se, nesse processo contraditório, grandes fragilidades no que tange

ao atendimento das necessidades de saúde, onde as práticas profissionais enfrentam

problemas ligados à gestão rígida, na linha das ações programáticas de saúde, que estruturam

as práticas de uma ESF restrita e subfinanciada (GIL, 2006).

Voltando-nos ao conjunto de características e desafios próprios da APS, relatados

nas entrevistas, um problema a ser superado, no sentido de aprofundamento e qualificação da

inserção da prática da psicologia na ESF, é a falta referencias orientadores da ação. Ainda na

perspectiva de saber lidar com um fazer generalista e suas exigências cotidianas, a falta de

referências inquieta, desconforta e, de certo modo, vulnerabiliza o profissional frente a uma

ampla gama de problemas de saúde.

Quando eu cheguei na ESF eu disse “legal, parece um campo aberto a muitas

possibilidades”. Mas aí é uma liberdade tão grande [...] e aí por essa liberdade às

vezes o psicólogo, ele acaba estando tão solto que ele acaba dizendo amém pra

algumas concepções, que se tem da psicologia e outras que vão se formando dentro

da ESF.

O espaço da APS é aquele marcado por uma diversidade e uma intensidade de

demandas oriundas de graves e, muitas vezes, incontornáveis problemas de saúde da

população, frente aos quais os profissionais têm de se posicionar de modo adequado na

delimitação de práticas consequentes e efetivas. Em meio às pressões das demandas, as

representações do que é ou deve ser a prática profissional nos espaços do CSF, abrem espaços

108

para intensas lutas entre os agentes inseridos no cotidiano dos serviços. Dentro de uma

perspectiva bourdieusiana (BOURDIEU, 2012; 2008; 2004), campo constitui-se como um

espaço social marcado por estruturas estruturantes específicas, que impõem limites para o

desenvolvimento das práticas. Todo o espaço social da ESF, assim, é marcado por lutas pela

legitimação das práticas profissionais desenvolvidas, onde os agentes investem na busca de

consolidar uma visão favorável a ampliação da autonomia profissional. O capital acumulado

por agentes e instituições, que é fruto de um trabalho passado, definem probabilidades de

ganho a partir da posição ocupada no espaço. No que diz respeito ao capital simbólico,

expresso no prestígio e reputação, podemos pensar as relações de lutas pelo poder de fazer,

ver, crer e mesmo impor uma classificação legítima. Desse modo, são travadas disputas

profissionais para definir o que é e o que não é legítimo de se fazer na ESF. No caso da

psicologia, o que é e o que não é papel do psicólogo, o que é e o que não é demanda para a

psicologia, qual a melhor forma de agir, quais as ações mais efetivas, etc. Essa discussão será

melhor desenvolvida no próximo capítulo.

A inserção da psicologia no cotidiano dos CSF tem colocado aos psicólogos desafios

ligados ao revisitar de suas abordagens, visando o fortalecimento de determinadas

perspectivas de atuação. Tais perspectivas, que também constituem os campos da psicologia e

Saúde Coletiva e são por eles constituídos, são diversas e conflituosas e revelam geralmente

uma disputa entre a hegemonia/ortodoxia e contra-hegemonia/heterodoxia. Assim, o campo

de práticas da ESF, constitui uma arena onde lutas históricas das profissões se apresentam e

também cria novos embates que reverberam nos campos intra e interprofissionais. Assim,

vivemos um momento fértil de possibilidades e entraves políticos e epistemológicos a

superar. No que tange a preparação dos novos profissionais para inserir-se nesse contexto,

vivemos um momento de consolidação de algumas práticas e perspectivas teórico-

metodológicas. Adiante teremos oportunidade de conhecer os âmbitos de prática em que os

participantes se envolveram, com vistas a identificar posições ou lugares ocupados pela

psicologia no campo.

A partir das visões apresentadas pelos participantes da pesquisa, a ESF é um espaço

também marcado pelo trabalho em equipe multiprofissional e pela divisão e classificação

hierárquica das ações profissionais. No trabalho com outras profissões destacam-se

colaborações, articulações e disputas. Numa trama relacional característica da ESF, os

profissionais apontam alguns pontos em comum, entre as disciplinas e entre as trajetórias de

formação dos agentes, para estabelecer bases de comunicação e trocas voltadas para

estabelecimento de consensos satisfatórios em torno das práticas a realizar. No caso da prática

109

dos psicólogos nas equipes multiprofissionais, alguns temas e questões foram identificados

como facilitadores de diálogos e articulações profissionais. O trabalho com o corpo e a

corporeidade, um exemplo de prática discutida em uma das entrevistas, constitui-se como um

objeto de intervenção onde profissionais da nutrição, educação física e psicologia se

mobilizam em ações complementares. Tais ações em equipe apontaram para algumas

aprendizagens:

Eu aprendi de repente a tentar objetivar mais algumas coisas, a fuçar mais algumas

coisas também, inclusive a partir de outros olhares. Como eu tava te falando, eu fui

aprender coisas sobre nutrição, sobre fisiologia, sobre os processos fisiológicos. Fui

aprender sobre questões musculares, sobre tensões musculares, sobre as limitações

do próprio corpo e aí eu fui começando a observar essa pessoa de uma maneira

integral mesmo. Fui começando a ver a pessoa de uma maneira inteira. Então assim,

você começa a aprender a função ou potencial ou pra quê é que serve aquela outra

categoria. Você se apropria desse discurso a nível de campo, de algo mais amplo ao

o que você consegue compreender e isso te permite dialogar com essas outras

categorias. Eu acho que isso foi a maior assim sacada, acho que foi o que foi mais

legal sabe, de eu sentir que eu podia dar uma escuta melhor.

O diálogo com outras profissões remete a uma abertura pra conhecer, entender e

negociar possibilidades de práticas colaborativas articulando múltiplos pontos de vista. A

interpenetração de saberes e práticas no desenvolvimento do trabalho em equipe na ESF foi

uma característica apontada por alguns dos entrevistados. As relações interprofissionais são

complexas e abrem brechas para amplas possibilidades de investigação na ESF. Em nosso

caso, interessa-nos problematizar as relações interprofissionais que atravessam o

desenvolvimento das práticas psicológicas.

Na APS a proposição é isso, você trabalhar com outros profissionais, com outras

categorias. E é difícil em alguns momentos. Mas assim, é muito bom [...] eu me

deixei me atravessar muito pelas profissões [...] eu gosto assim de me deixar

atravessar e saber o que isso vai trazer pra mim, e também com as equipes assim de

entender esse lugar do outro.

O desenvolvimento das práticas psicológicas na ESF é permeado pelo conjunto de

relações do CSF, como um todo, com as comunidades e suas instituições, bem como pelas

relações micropolíticas estabelecidas entre as equipes existentes e seus profissionais. Isso

implica, do ponto de vista da investigação sobre as práticas, reconhecer o caráter específico e

local dos processos de definição das ações. Em nosso caso, identificamos um conjunto de

relações que se estabeleceram no processo de produção das práticas profissionais em equipes

da ESF. Dentre esse conjunto de relações, os diálogos da psicologia com outras profissões e

ocupações citadas pelos participantes foram: enfermagem, nutrição, educação física,

medicina, agentes comunitários de saúde e serviço social.

110

Nesse contexto de articulações profissionais, as relações de aproximação e

distanciamento com os profissionais do serviço social nos são exemplares, pois apontam para

o caráter complexo e contraditório das relações interprofissionais, marcadas pela cooperação,

negociação e pela disputa de poder. Assim, percebemos que as relações entre psicologia e

serviço social, foram marcadas pela tensão da disputa por âmbitos de práticas decorrentes de

uma aproximação entre os objetos de intervenção profissionais. Nesse processo de

aproximação tensa entre objetos de intervenção, pudemos identificar um terreno de lutas

profissionais, entre aqueles focados na leitura do social e dos direitos de cidadania e aqueles

focados no olhar para o sujeito diante dos problemas sociais. Essa luta é uma luta para

definição da melhor perspectiva, um luta pelo direcionamento das práticas, pela legitimação

de um foco específico – que implica diretamente no reconhecimento e valorização das

especificidades profissionais.

Por exemplo, eu queria colocar o exemplo das assistentes sociais porque muitas

coisas são parecidas das assistentes sociais, são convergentes assim da psicologia.

Debruçar-se sobre esses processos sociais do território, das famílias. Só que quando

a gente, psicólogo, entra, eu acho que a gente olha mais pra esse processo das

pessoas, das famílias, esses processos singulares, nesse sentido de como eles estão

acontecendo e a partir disso a gente vai trabalhando. Eu acho que a gente escuta

mais... não é que a escuta seja do psicólogo, mas que a escuta do deixar a pessoa, o

que aquela pessoa está dizendo, o que aquela família está dizendo, o que aquela

realidade ta dizendo e aí a gente atuar, eu vi muito isso. Por exemplo, as assistentes

sociais tende a tratorar os processos [...]

(outro participante)

O serviço social já é mais próximo, enfim, por cuidar de muitos processos comuns,

mas existiam dificuldades do serviço social com psicólogo. Pelo menos aqui de

Fortaleza quase ampliada sente isso, porque existe, o serviço social ele pede uma

leitura crítica da realidade, mas falta como olhar pra esse sujeito. Às vezes, a questão

do sujeito de direito... sujeito de direito até é um conceito que eu acredito, mas a

cidadania está pra além daquele sujeito de verdade. Então, muitas vezes, era mais

importante resolver aquela situação de violação de direito e não sei o quê, do que

enxergar o sujeito naquilo. E aí foi sempre um exercício assim, foi sempre um

exercício de troca, de estar “não, mas espera aí vamos olhar assim”, não é que foi

mais difícil, mas deu mais trabalho.

(outro participante)

Assim, é uma relação muito simbiótica assim. Ao mesmo tempo, porque a gente

vive uma problemática social, a problemática social perpassa tudo, assim como a

problemática psicológica dos afetos.

A disputa e a colaboração profissional na APS revelaram um terreno ambivalente e

contraditório em que o trabalho em equipe é reconhecido como um fator de potencialização

das práticas profissionais (pelo contributo interprofissional), mas também de tensão pela

demarcação do melhor ponto de vista e objeto de intervenção. As dificuldades de articulação

de ações entre equipes, especialmente das equipes de apoio (os NASF e RMSF) com as

111

equipes mínimas, fora um desafio explicitado na análise do campo da APS, pelos

participantes. Como exemplo desse desafio citado, o exercício de práticas dentro da

proposição de uma clínica compartilhada, expressa o modo como uma prerrogativa da APS, a

do trabalho em equipe, entre equipes e serviços, remete a uma negociação permanente dos

processos coletivos, que perpassam o trabalho de definição, execução e avaliação das práticas.

Essa história da gente fazer uma clínica com outras pessoas [...] tentando encaixar na

rotina de trabalho de um médico, numa atuação conjunta. Um atendimento conjunto

com a gente, tentando puxar o médico com a enfermeira da equipe mínima, pra fazer

uma atividade com a gente. A gente começava a mexer em questões do cotidiano de

trabalho dessa galera e da própria forma do trabalho do posto ser organizado. [...]

Porque assim, ao mesmo tempo, a gente tentava organizar a minha rotina de trabalho

enquanto psicólogo, a rotina de trabalho da equipe multiprofissional da Residência e

também da equipe mínima. Porque, se tinha um atendimento que tinha que ser feito

com ele - com o médico, por exemplo, porque tinha que organizar, pra, em algum

momento, ele ter um espaço pra o atendimento em saúde mental ou, em algum

momento, ele fazer uma visita institucional pra gente na escola ou participar de um

grupo de promoção, que a gente tava fazendo. Então assim, se você trabalha

conjuntamente você mexe com o seu trabalho, mas mexe com o do outro também. E

aí, isso é um desafio grande também.

A organização de uma agenda de encontros entre categorias profissionais é uma

necessidade política para organização das práticas na APS, pelas interfaces estabelecidas nos

processos de trabalho em equipe multiprofissional. As articulações eram necessárias para

compartilhar os desafios cotidianos do trabalho e criar um espaço de participação coletiva

para a problematização e definição das responsabilidades, alcances e limites das práticas

profissionais. Na APS, o profissional conta com a equipe, seja para receber casos ou

problemas encaminhados, seja para contar com o apoio de outros na resolução de problemas a

enfrentar.

A gente estruturou um cronograma, que toda, pelo menos uma vez no mês, a gente

tem uma reunião com a equipe. Toda equipe, a gente tem uma reunião. [...] Porque

eles pegavam a gente no corredor, passavam as coisas assim como se fosse bem

soltas. [...] Surgiu essa necessidade de sentar e conversar. Sentar sobre as visitas,

sentar sobre os grupos, que a gente pretende fazer.

A visão dos participantes da pesquisa sobre a ESF é determinada pelo lugar que eles

ocupam no campo. Esse lugar é caracterizado pelos significados e sentidos construídos sob o

prisma de quem faz parte de uma equipe de apoio, matriciadora de ações junto a outras

equipes situadas em vários CSF. Essa condição de equipe de apoio marca o tipo de fazer

profissional desenvolvido e suas representações, bem como demarca a perspectiva de análise

que desenvolvemos aqui. Falamos, assim, da perspectiva de um agente promotor de práticas

voltadas, além de questões específicas da profissão, para responder demandas construídas

pelo encaminhamento realizado pelas diversas equipes mínimas, já estruturadas na ESF,

112

situadas nos territórios amplos em que os profissionais estiveram inseridos. Nesse contexto, é

importante destacar a prerrogativa estabelecida pelas diretrizes da APS, nos planos macro e

micropolíticos, de que os psicólogos, como membros de equipes multiprofissionais de NASF

e RMSF, não deveriam ser porta de entrada para a APS – o que implica numa relação de

condicionalidade das práticas das equipes de apoio. O fazer psicológico, assim é amarrado às

demandas de outras categorias, especialmente as já consolidadas da equipe mínima da ESF7.

Essa condição de equipe de apoio será uma demarcação fundamental para a classificação

hierárquica das ações profissionais nos CSF.

Os participantes, em sua grande maioria, constroem uma percepção das relações

profissionais marcada pela hegemonia da medicina e do modelo biomédico na organização e

classificação das práticas em saúde nos CSF. As relações, assim, são percebidas como

hierarquizadas e o lugar do psicólogo, de onde analisamos essa hierarquia, é subalternizado

frente ao poder ensejado pelas práticas médicas. Essa hierarquia, claro, é relativa aos lugares

ocupados singularmente pelos participantes, no campo da APS. Desse modo, algumas

vivências de trocas, negociações e conflitos profissionais vão determinar a visão que se tem

sobre o campo. No entanto, encontramos aqui a exposição e discussão de posicionamentos

que, embora diversos, no que diz respeito a contextos específicos de práticas vivenciados, nos

permitem fazer uma interpretação sobre o modo complexo como as práticas profissionais se

relacionam no campo de práticas da ESF.

Barros (2002) desenvolve uma análise do modelo biomédico e sua limitação e

pertinência no processo saúde-doença, que é bastante útil a nossas pretensões de analisar o

espaço social da APS do SUS. Segundo o autor, a constituição desse modelo explicativo e de

intervenção em saúde decorre de um longo processo histórico de raízes na renascença e

perpassa a construção do método científico moderno de produção de conhecimento sobre o

corpo humano, as doenças, suas manifestações e cura-tratamento. Todo esse processo

histórico e social remete à própria construção social da medicina como ciência e profissão

socialmente reconhecida. A legitimação social da medicina implica direta e indiretamente na

crescente medicalização da sociedade que, por sua vez, é também fruto do desenvolvimento

do capitalismo, da mercantilização da saúde. Segundo o autor:

Na medida em que o acesso ao consumo foi convertido no objetivo principal para o

desfrute de níveis satisfatórios de bem-estar, bons níveis de saúde passaram a ser

7 Os relatos dos participantes da pesquisa corroboram com essa prerrogativa apenas parcialmente. Muitas

demandas tinham como porta de entrada os próprios psicólogos. No entanto, a prerrogativa era respeitada em

muitas situações, por sua legitimidade legal, aceitando-se apenas as demandas que chegavam pelas equipes

mínimas dos CSF. Assim era preciso saber manejar a seu favor a condição de apoiador.

113

vistos como possíveis na estreita dependência do acesso a tecnologias diagnóstico-

terapêuticas. A eficácia e efetividade das mesmas passam a confundir-se com seu

grau de sofisticação.[...] Os fenômenos referidos foram sendo instaurados ao longo

da evolução técnico-científica por que vão passando as ciências biomédicas, antes

comentada, e se intensificam no último século, consolidando o modelo biomédico e,

como parte dele, a medicalização. Esta pode ser entendida como a crescente e

elevada dependência dos indivíduos e da sociedade para com a oferta de serviços e

bens de ordem médico-assistencial e seu consumo cada vez mais intensivo. [...] Está

aberto o campo para a gestação do 'complexo-médico-industrial' e para a mais ampla

possível mercantilização da medicina, com todos os malefícios daí decorrentes,

especialmente no acesso não equânime e universal aos serviços médico-

assistenciais, inclusive aos essenciais e o que é mais grave, ainda, nas sociedades,

como a nossa, marcada por cruel concentração da renda e, daí, de todos os bens e

serviços. (BARROS, 2002, p.76-78).

Barros (2002) destaca que muitas limitações do modelo biomédico se tornaram

evidentes em paralelo ao seu próprio desenvolvimento. A percepção de tais limitações abre

espaço para um conjunto de práticas em saúde, entendidas como complementares ou

alternativas. Na presente pesquisa, pudemos evidenciar a hegemonia da categoria médica na

constituição do espaço de práticas na ESF, o que reverbera no prestígio e reputação adquiridos

pelas práticas pautadas no modelo biomédico. No intuito de testar o pressuposto, derivado de

experiências profissionais e de pesquisa, de que o espaço da APS é marcado por uma estrutura

hierarquizada de relações de poder entre as profissões, buscamos incluir nas entrevistas

perguntas referentes a percepção de hierarquias nas relações dentro dos CSF, do

reconhecimento e valorização da psicologia na ESF (ver em anexos os roteiros de entrevista).

No que diz respeito à percepção de hierarquias nas relações, em apenas um dos 18

entrevistados, pudemos analisar uma experiência exitosa no que diz respeito ao

desenvolvimento de práticas interprofissionais percebidas como horizontais, com pouca

ênfase em desigualdades de poder. Nessa experiência, deve-se ressaltar, destacou-se a

vivência de relações de cooperação e diálogo com outras profissões, especialmente a médica.

Para o participante, a cooperação interprofissional com a medicina é destacável como um

diferencial positivo de sua experiência vivida na APS. Em seu caso, foram ressaltados os

dispositivos de troca criados entre RMSF e Residência de Medicina de Família e

Comunidade. Os diálogos e cooperações também foram destacados na experiência de muitos

outros entrevistados, e foram descritos como facilitadores de processos de negociação e

parcerias interprofissionais. No entanto, a análise do todo do material construído nas

entrevistas, nos permite afirmar que os diálogos e cooperações existentes não foram

suficientes para a negação ou transformação de relações hierarquicamente estruturadas na

ESF. A experiência dos participantes da presente pesquisa, nos dá subsídios para uma reflexão

sobre desigualdades de poder e estratégias de dominação nas práticas do campo.

114

Assim, a hierarquia de poder nas relações profissionais é uma marca relevante da

APS. Dentro dessa hierarquia percebida, o modelo biomédico aparece como estruturador das

trocas simbólicas e elemento de regulação das classificações e valorações das práticas.

Eu tenho a impressão que ainda tem uma hierarquia regulada por essa hegemonia da

medicina, enquanto a profissão de ponta ainda desses espaços, muito embora o

campo, ele tenha se constituído, enfim, a partir de uma crítica a essa hegemonia. E

eu acho que ele não conseguiu ainda se livrar dela.

A percepção da hierarquia médica na ESF corrobora com a hegemonia da medicina

no plano sociocultural, o que já fora problematizada por estudos clássicos e mais gerais

(ILLICH, 1975; NOGUEIRA, 2003) e também focados na perspectiva da desmedicalização

nos serviços de saúde (ROMAGNOLI, 2009; TESSER; NETO; CAMPOS, 2010). Na

experiência dos participantes, essa hierarquização marca o processo de trabalho da APS com

um conjunto de privilégios e regalias da categoria médica na organização de uma agenda de

trabalho e de favorecimentos quando da definição das condições de trabalho e contratação.

Dentre as questões apontadas, essa hierarquia de poder produz sofrimento aos demais

trabalhadores, pela não autorização de algumas práticas, que ficam subalternizadas frente ao

controle imposto pelo modelo biomédico. Um exemplo dessa hierarquia, no plano

macropolítico, é a regra de avaliação da composição das equipes mínimas da ESF nos

municípios, em que somente é considerada completa a equipe se esta tiver médico. Outros

exemplos, trazidos nas entrevistas, apontam para o poder do encaminhamento médico, como

evidência do domínio desse especialista no desenvolvimento e legitimação das práticas. A

centralização do poder de encaminhar casos para outros profissionais, especialmente para os

de outras especialidades médicas, implica na desautorização de outros agentes envolvidos na

construção das práticas da APS.

Por exemplo, uma criança só pode chegar por encaminhamento via o parecer do

médico. O paciente que vai encaminhado pro CAPS ele também precisa do parecer

do clínico, do médico, pra poder esse encaminhamento se efetivar. E eu acho que aí

nessa ponta mesmo, assim estão os agentes comunitários da saúde, eu acho que a

produção de um sofrimento também se dá por uma desautorização em que eles se

acham, que eles experimentam de que a sua atuação possa ser uma atuação

consequente. Por exemplo, eles falam muito “poxa a gente identifica, a gente

encaminha, a gente consegue inclusive estabelecer uma referência pra receber esse

sujeito e no meio do caminho esse trabalho se perde, porque ele tem que passar pelo

médico ou aqui ou lá e esse encaminhamento não consegue ser efetivado”.

A estrutural desautorização das práticas não-médicas é uma característica da ESF

percebida pelos psicólogos. O poder médico impõe-se na definição de uma dinâmica de

relações profissionais e entre serviços, cujo ritmo e perspectivas das práticas estão sob

115

controle de médicos. Nesse contexto, a prática psicológica é inferiorizada frente a prática

médica, e sua dinâmica é afetada pelo domínio imposto pela hegemonia do modelo

biomédico. Dentre as características da APS apontadas pelos participantes, a sua estrutura

hierarquizada e dominada pela medicina, corrobora para a desvalorização da ESF como

espaço profissional de atuação para os psicólogos. Assim, para a maioria dos entrevistados, a

ESF representa um período de passagem em suas trajetórias profissionais. Isso não é só

psicólogos, mas também para muitos outros profissionais. Defende-se a ideia de que, pela

precariedade das condições de trabalho da APS, os profissionais sempre estão à espera de ter

oportunidades para abandonar. As condições precárias de trabalho da APS são percebidas

como desfavoráveis ao bom desenvolvimento das práticas profissionais. E isso não se

restringe à condição da psicologia, estende-se para todas as profissões. Assim a APS, como

dito em uma das entrevistas, é percebida como “uma chuva que passa na vida da pessoa:

deve-se sair dela”. Vários são os profissionais incluídos nesse grupo de insatisfeitos com a

ESF.

Você pode ver que pro enfermeiro a atenção primária também é uma chuva, tudo

que o enfermeiro quer é se livrar dali porque a demanda é enorme, porque são

quarenta horas, porque é a população batendo na porta. Pro médico é uma fila

interminável. Pro profissional da psicologia uma agenda lotada [...] Você não ganha

bem, você não tem segurança no trabalho, você trabalha quarenta horas [...] Então,

eu vejo isso hoje, tanto é que muito dos psicólogos que estão na atenção primária

são recém formados.

Concebido dessa forma, o campo de práticas é apreendido como um espaço de

passagem na carreira profissional, um espaço constituído por condições precárias ou

indesejáveis de atuar. Um espaço que se deve buscar sair, já que não reserva atrativos e

perspectivas de práticas a se investir a médio e longo prazo. Coloca-se aqui, a necessidade de

fortalecimento das condições de trabalho, que precisa ser objeto de reflexões renovadoras das

políticas de contratação e que possam, no plano da gestão do trabalho para o SUS, possibilitar

a constituição de planos de cargos e carreiras atrativas para os profissionais. Estamos assim,

diante de problemas macropolíticos, referentes à constituição precária de um campo de

práticas em saúde que, contraditoriamente, como vimos, é entendido como estratégico para a

estruturação do SUS. No NASF, por exemplo, as condições de trabalho são vistas como

precárias. Dentre os aspectos apontados pelos participantes estão: as condições de

contratação, os salários, a carga horária inflexível e a grande demanda existente decorrente de

um território de atuação também grande.

Lancman, Gonçalves, Cordone e Barros (2013) destacam importantes aspectos para

pensar o trabalho profissional desenvolvido nos NASF e que corroboram com os resultados

116

que obtivemos na presente pesquisa. No que diz respeito às características da organização e

das condições de trabalho no NASF, as autoras apontam para uma grande variabilidade de

tarefas centradas, prioritariamente, para ações compartilhadas entre NASF e equipes mínimas

da ESF. Assim como vimos em nossa pesquisa, muitas ações encontram empecilhos, pois

dependem diretamente da relação entre NASF e equipes mínimas, as quais tem processos de

trabalho diversos e exigências também diversas, implicando em permanentes conflitos de

interesses. Destacam-se carências de recursos para o desenvolvimento do trabalho específico

das equipes multiprofissionais do NASF, bem como a precariedade das redes de serviços para

viabilizar a atenção integral às necessidades de saúde em articulação com a APS. Outro

aspecto relevante da organização do trabalho do NASF é a inadaptação dos critérios de

produtividade existentes para contemplar a complexidade do processo de trabalho

desenvolvido.

No que diz respeito à psicodinâmica do trabalho no NASF, Lancman et al. (2013)

apontam para dúvidas e incompreensões, que perpassam a implantação das ações no espaço

da ESF. Segundo as autoras:

Dúvidas, ambiguidades e dificuldades perpassavam a implantação dessa proposta

pioneira. O cenário de trabalho era algo a ser inventado cotidianamente, para

viabilizar a criação de espaços em que fosse possível trabalhar e construir uma nova

prática na atenção primária. Como o trabalho do NASF dependia diretamente do da

EqSF, cada iniciativa tornava-se um processo de reafirmação constante de parceria.

(LANCMAN et al., 2013, p. 972).

Uma espécie de invenção cotidiana do trabalho do NASF é permeada pela luta

permanente pela constituição de um lugar, ainda impreciso e desconhecido, na produção das

práticas na ESF. A necessidade de articulação e dependência quanto às equipes mínimas

aponta para uma limitação de poder na implantação das ações no espaço dos CSF, que

também fora observado em nossa análise das práticas psicológicas. Assim, nesse contexto,

Lancman et al. (2013) apontam para a ambiguidade e invisibilidade que perpassam a

experiência subjetiva dos trabalhadores nos NASF:

Dessa ambiguidade de relações, da invisibilidade do seu trabalho, da sensação de

não lugar e de não pertencimento, decorria a dificuldade de serem reconhecidos

pelas suas ações e contribuições. Tais condições dificultavam a construção da sua

própria identidade. De forma geral, todos se esforçavam para definir uma prática que

os diferenciasse dos demais profissionais que compunham o mesmo cenário nas

UBS. (LANCMAN et al., 2013, p.973).

APS do SUS tem se estruturado a partir da prática médica que, como pudemos ver, é

o profissional que domina o campo. Além da reinterada desigualdade a favor da categoria

médica, foi também apontado pelos participantes, certa inadequação de perfil dos médicos

117

envolvidos nas experiências que tiveram na ESF. Essa inadequação fora percebida como

baixo engajamento nas ações, elitismo, falta de compromisso com o trabalho e falta de

conhecimentos técnicos para atuar dentro das prerrogativas da APS, já apontadas acima como

territorialização, trabalho interdisciplinar e intersetorial. Podemos, desse modo, pensar o

campo da APS como um espaço de práticas de saúde onde a categoria médica direciona o

processo de desenvolvimento das práticas, com significativa independência frente às diretrizes

e princípios preconizado pela política da ESF e pela gestão local dos serviços estudados. Esse

domínio dos médicos é constituído de diversos modos e demarcações de poder, que se

estruturam no cotidiano percebido das relações de trabalho.

Eu acho que tem algumas demarcações de poder. Por exemplo, a gente ta lidando

com quem da equipe mínima? É com médico, enfermeira e o agente comunitário de

saúde. A gente percebe que o médico tem uma flexibilidade pra produzir o horário

dele do jeito que ele quiser. Então, assim, tem médico que diz “olhe, quinta-feira

tenho plantão no hospital tal e eu não trabalho”, e o cara não trabalha. É contratado

pra quarenta horas de segunda a sexta, mas quinta-feira ele não trabalha, ele definiu

isso. Ou então o cara diz assim: “não, eu atendo tantos pacientes por dia e

terminando esses pacientes eu vou embora”, o cara atende rápido e pode tipo, dez

horas, ele ter terminado. Ou até assim, isso não acontecia no meu posto, mas eu

sabia de posto que era assim: o cara chegava seis e meia, sete horas e dava nove, ele

já tinha atendido uma galera e ia embora. E aí assim todo o resto das coisas do posto

acontecendo ali naquele turno. Mas ele tinha terminado a prática dele, né! Então

assim, quem é que consegue fazer isso? Quem é que tem essa autoridade pra dizer

“eu trabalho assim e ponto final”?

O poder simbólico dos médicos para definir o melhor modo de organização das

práticas de forma arbitrária é uma das marcas do processo de trabalho em equipe da ESF.

Ficou claro, na análise das entrevistas realizadas, o poder da categoria impor uma definição de

suas práticas profissionais à revelia dos interesses dos outros agentes inseridos no campo.

Dentre os problemas decorrentes de usos e abusos do poder médico, que marca o cotidiano na

ESF, os participantes percebem que o sistema de saúde é, geralmente, colocado como refém

dos interesses médicos, que conseguem legitimar um lugar privilegiado nas relações

construídas no campo. Percebe-se que a própria APS, tem sofrido influencia das lutas em

torno do desenvolvimento da prática médica incorrendo em contradições especialmente no

que diz respeito ao impulso desmedicalizador da ESF.

Romagnoli (2009), em estudo sobre as práticas da ESF em Betim (Minas Gerais),

destaca a hegemonia da medicina na constituição do modelo assistencial desenvolvido, o qual

apresenta fragilidades no conhecimento do território e das necessidades de saúde da

população. A autora identifica como problemas da ESF, a ênfase preponderante nas práticas

centradas na terapêutica medicamentosa, a pouca articulação das redes de atenção em saúde

mental e a dificuldade de se trabalhar com grupos. Para Romagnoli, o processo de

118

institucionalização das práticas, é marcado pela prevalência de relações hierarquizadas de

saberes e poderes, em que se percebe a hegemonia do modelo biomédico e da frequente

medicalização do sofrimento.

Os outros profissionais agentes no campo da APS absorvem diretamente o caráter de

complementaridade e subalternidade frente às práticas médicas. A enfermagem, como

exemplo de profissão que já conquistou seu lugar na equipe mínima da ESF, vem ocupando

um lugar de relativo destaque na organização dos processos de trabalho, o que representa a

ocupação de uma posição de certo privilégio na hierarquia das práticas profissionais. Embora

em desvantagem frente à medicina, a enfermagem ocupa um lugar privilegiado na

estruturação das práticas na ESF, pois desenvolve um papel importante na coordenação das

ações das equipes mínimas, tendo como função, dentre outras, a coordenação do trabalho dos

Agentes Comunitários de Saúde, agentes que tem grande permeabilidade nos

territórios/comunidades em que as práticas desenvolvem-se.

A odontologia, também componente da equipe mínima, fora percebida como uma

profissão reconhecida e procurada pela população, mas que desenvolve um trabalho bastante

isolado ou em paralelo frente às outras profissões. Reconhecida por um dos participantes

como uma espécie de “apêndice da ESF”, a odontologia se coloca num nível semelhante ao da

enfermagem – pois é uma profissão estruturada nas equipes mínimas, mas um pouco abaixo,

na hierarquia, pelo baixo poder de influenciar a organização dos processos de trabalho em

equipe. Dito de outro modo, podemos pensar a odontologia como uma profissão bem situada

na estrutura do campo, mas pouco poder estruturante das ações multiprofissionais da ESF,

desenvolvendo um conjunto de práticas voltadas mais para o interior do contexto do

consultório odontológico. Quando fora do consultório, o dentista é visto nas escolas públicas

do território, mas com baixa articulação com as equipes multiprofissionais da ESF. Os

problemas de saúde odontológicos parecem definir um espaço de atuação autônomo dentro da

ESF e que, no mínimo, em nosso caso, não apresentou interelação com a prática psicológica.

Ademais das relevantes oportunidades práticas, muitas vezes contra-hegemônicas e

heterodoxas, criadas com a implementação dos NASF, as desigualdades de poder demarcam o

cotidiano de trabalho nos CSF. A região ocupada por esses profissionais no campo da ESF

compõe um espaço plural de onde se origina uma diversidade de perspectivas de práticas em

saúde. No entanto, o espaço ocupado pelo NASF fora percebida como inferior frente ao das

equipes mínimas. Nessa visão do campo, as novas profissões, que integram a ESF, ocupam

uma posição complementar e inferior, especialmente, no que diz respeito à hegemonia dos

saberes e práticas construídos na perspectiva do modelo biomédico. A partir das experiências

119

analisadas, percebemos que há certa polarização de poder entre equipes mínimas e NASF na

definição e no desenvolvimento das práticas no cotidiano dos CSF. A ESF, assim, constrói-se

a partir de relações profissionais desiguais, tecendo um espaço hierarquizado e marcado por

segregações.

Digamos que o Saúde da Família é a casa da medicina de titulo, de propriedade, mas

quem governa é a enfermagem.[...] os agentes de saúde são os empregados fixos da

casa de Saúde da Família e bastante explorados em todas as formas. As outras

profissões, inclusive a psicologia são os convidados pra consertar TV a cabo, os

técnicos que vem e são chamados pra algum tipo de serviço, nós somos esse outro

rol de profissões, são as profissões que ainda atuam sobre a lógica a prestação de

serviço pelo entendimento de quem solicita.

Percebeu-se, pela análise das entrevistas, que a posição ocupada pela psicologia na

hierarquia das práticas profissionais na ESF é bastante marcada pelos signos de pertencimento

à equipe de apoio. Esse pertencimento, ademais do ressentimento que pode despertar pela

subalternidade frente às posições mais nobres, especialmente a ocupada pelos médicos, não

indica uma correspondência de valoração igualitária nas práticas profissionais, dentro do nível

das equipes de apoio. Na estrutura hierárquica das práticas profissionais da APS do SUS, as

práticas dos psicólogos são relativamente bem valorizadas, se olharmos para todos

profissionais inseridos no NASF. Assim, o psicólogo é um agente especializado que ocupa

um lugar privilegiado dentro do grupo de profissionais de apoio. Esse lugar subalterno e

privilegiado, longe de ser percebido como regalia, é um espaço de construções práticas

diversas, que apontam para várias direções nos serviços prestados.

5.2 Lugar da Psicologia e âmbitos das práticas psicológicas

Para conhecer aspectos constituintes do lugar ocupado pelo profissional psicólogo

na APS, foi preciso reconhecer algumas características do espaço social, um pouco de suas

prerrogativas, relações interprofissionais e marcas distintivas, já que influenciam o modo

como se desenvolvem as práticas e lhe impõem limites de abrangência. Como vimos, o NASF

é este espaço delimitador de fronteiras e possibilidades, espaço em que se situa o fazer

psicológico. No entanto, para chegar a construir uma visão mais ampliada e complexa da

posição ocupada pelos psicólogos, no campo estruturado da APS, é preciso fazer uma reflexão

capaz de reconhecer o processo histórico da profissão. Assim, ressaltamos que nossa análise

passa pelo reconhecimento da influencia de representações sociais da profissão construídas

historicamente no Brasil.

120

Os resultados da pesquisa nos permitem problematizar a influência de uma visão da

prática psicológica permeada pelo imaginário social construído em torno da hegemonia da

prática da clínica, que popularmente tem uma referência na imagem do médico, que atende

em seu consultório. A visão que identifica o profissional psicólogo como um clínico, está

impregnada no cotidiano da ESF. Essa visão, por um lado, aproxima a psicologia de outras

categorias, como a médica, e a diferencia de outras como a dos profissionais de Educação

Física, pouco reconhecidos no espaço das práticas clínicas. O consultório psicológico, nesse

imaginário social, é um elemento marcante na representação social típica da Psicologia.

Eu acho que a psicologia tem um peso grande ainda, peso grande. Eu acho que a

psicologia está muito aproximada da representação social que as pessoas tem da

medicina, muita gente me chama de médico: “ah, que a enfermeira, a ACS tal me

mandou aqui pra você, que ela disse que você é um médico, e vai conversar comigo

e não sei o que né”. Elas tem essa visão, essa aproximação da coisa do doutor e do

consultório coisa que, por exemplo, o educador físico não tem, a gente nota muito o

educador físico é o único que não é chamado de doutor, todos os outros são. É uma

coisa social, cultural e eu acho que a psicologia tem muito status, por si só, aí

independente do profissional, eu acho que ela se eleva acima das outras no sentido

dessa representação que as pessoas tem, até pela própria forma como ela é

divulgada, os filmes, essa coisa toda, é o doutor que está esperando no consultório.

[...] Então, por conta disso, dessa história da psicologia já está bem estabelecida

como um campo assim, do doutor, eu acho que isso faz com que, de alguma forma,

ela se eleve com relação as outras.

A psicologia, dentro de um CSF, pode obter significativo respeito e ser muito

demandada por usuários e outros profissionais. Percebemos, em nosso estudo, que muitos

agentes inseridos no cotidiano prático da atenção à saúde vêm no psicólogo um profissional

que tem uma contribuição prática significativa para a resolução dos problemas de saúde

trabalhados na ESF. Esse reconhecimento indica, ambiguamente, que há certa relevância

social adquirida pelo profissional psicólogo na produção de práticas de APS, mas também que

as práticas psicológicas sofrem pressão de mecanismos de reprodução social de prática, dentro

de um imaginário da profissão questionável.

A gente sempre foi muito respeitado, digamos assim, entre os médicos mesmo, eles

escutavam muito o que a gente falava. Eles solicitavam muito atendimento. Às

vezes, a gente tava lá no auditório do CSF fazendo alguma coisa, aí de repente vinha

um “tu pode vir atender esse paciente comigo?” Num é, já pra pedir o suporte

mesmo. Ou, então, o outro psicólogo que tava, chamava também sabe, assim “tu

pode atender esse caso comigo?”, “eu acabei de pegar um caso e a gente tem que

atender junto sabe, eu marquei com ele dia tal”. Eles sempre foram muito, sempre

solicitaram muito a gente. [...]Eu acho que a psicologia era uma das mais solicitadas

assim, e eu acho que ela é importante, tanto no NASF, como ela é importante na

equipe mínima também, se houvesse essa abertura.

Assim, a percepção das muitas demandas para a psicologia pode ser um indicativo da

necessidade de acesso aos serviços prestados por esse profissional no campo. Pudemos, aqui,

121

constatar que o psicólogo, em comparação com os outros profissionais do NASF, é um

profissional bastante solicitado e, assim, valorizado. No entanto, tornou-se manifesta uma

percepção divergente e ambivalente dessa necessidade social de psicólogos na APS.

Especificamente no que se refere aos permanentes chamados ou solicitações para

engajamento nas práticas da ESF, os participantes da pesquisa manifestaram posicionamentos

divergentes. Alguns perceberam que as solicitações expressavam uma valorização da

profissão e outros já as concebiam como um indicador negativo de reconhecimento. Assim,

alguns participantes viram nas recorrentes solicitações o desenrolar de estratégias de

dominação, que buscavam tutelar o profissional em modos de agir incongruentes com uma

visão da psicologia mais adequada, na concepção dos participantes. Desse modo, as demandas

para a psicologia têm significados ambivalentes no contexto das lutas entre as profissões nos

CSF. O chamado pode expressar o reconhecimento do valor significativo da prática

psicológica para a APS, mas, contraditoriamente, pode significar sua desvalorização, a partir

da aceitação de pedidos inadequados frente ao compete à psicologia. As frequentes

solicitações para a prática da psicologia, quando inadequadas - no que diz respeito a ideia que

se tem da profissão, pode representar o comprometimento do psicólogo com determinadas

perspectivas de práticas vulneráveis a interesses de dominação simbólica, que restringem a

psicologia a uma posição auxiliar e subalterna frente às práticas desenvolvidas. Além do mais,

as solicitações frequentes também representam, em muitos casos, uma forma de

encaminhamento irresponsável de demandas. Abordaremos melhor essa questão no próximo

capítulo.

Na construção de um conjunto de amplo de práticas, os psicólogos produzem

posicionamentos diversos frente à hegemonia do modelo biomédico, por vezes aderindo, por

vezes se contrapondo. Na perspectiva de uma análise crítica das influências do modelo

biomédico, alguns psicólogos destacam que há uma problemática produção de demandas

equivocadas para a psicologia, a partir de uma visão, muitas vezes, restritiva da profissão.

Como consequência da influência do modelo biomédico no campo, teremos posicionamentos

diversos a partir de cada contexto específico e suas configurações. Vejamos no exemplo

abaixo:

Os agentes de saúde adoram o psicólogo. Assim, é a minha experiência com os

agentes de saúde. E os médicos, eu vejo, os médicos e enfermeiros, às vezes, nessa

psicologização de que tudo precisa ir pro psicólogo. Mas, ao mesmo tempo, acho

que não entende o psicólogo. Assim, não sei como dizer esse não entende, mas do

achar que o psicólogo não é objetivo, que o psicólogo ele não faz o que dele se

espera, essas problematizações. E aí eu vejo que tem profissionais que amam e tem

profissionais que odeiam essas questões. E aí também estou baseando em mim, que

122

também a gente tem, na nossa profissão, diversos psicólogos, que são biomédicos,

que tão dentro dessa concepção bem biomédica.

Pesquisador:Como assim?

Por exemplo, um paciente com TOC. “Tem TOC, então ela precisa de psicoterapia

comportamental, que vai trabalhar tal e tal e tal” tem médico que é assim...

Pesquisador: Ah... trabalhando em cima da patologia, é isso? O que caracteriza o

biomédico seria o trabalho com a patologia?

Em cima da patologia, da especialização, do procedimento, de coisas que são bem

lineares. Por exemplo, na minha prática não sou assim, mas tem pessoas que são.

A produção das práticas psicológicas, em muitas de suas abordagens teórico-

metodológicas, obedece a lógicas diversas da lógica do modelo biomédico. Como veremos

melhor em capítulo posterior, tais práticas voltam-se para objetos específicos a uma dimensão

subjetiva e afetiva do processo saúde-doença-cuidado, o que difere da lógica das práticas

centradas nos fatores biológicos. Esse caráter distinto das práticas psicológicas possibilita a

demarcação de espaços de produção em que há mais autonomia profissional, estabelecida pelo

domínio de códigos próprios que garantem a legitimação classificatória das ações (DUBAR,

2005). É no vazio deixado pelo modelo biomédico, que a psicologia ressalta-se como

profissão de referência para as práticas na ESF. Como podemos pensar, corroborando com as

ideias de Barros (2002), as limitações da biomedicina abrem um espaço de atuação no

processo saúde-doença, onde poucos profissionais parecem estar preparados.

Paralelamente ao avanço e sofisticação da biomedicina foi sendo detectada sua

impossibilidade de oferecer respostas conclusivas ou satisfatórias para muitos

problemas ou, sobretudo, para os componentes psicológicos ou subjetivos que

acompanham, em grau maior ou menor, qualquer doença. As críticas à prática

médica habitual e o incremento na busca de estratégias terapêuticas estimulada pelos

anseios de encontrar outras formas de lidar com a saúde e a doença (no seu conjunto

designadas como medicinas alternativas ou complementares) constituem uma

evidência dos reais limites da tecnologia médica. Mesmo que muitos profissionais

cheguem a admitir a existência de componentes de ordem subjetiva ou afetiva que

exercem influência mesmo em casos de doenças em que as evidências orgânicas

sejam mais explícitas, não se sentem, com frequência, à vontade para lidar com os

mesmos, pois para isto, via de regra, não foram preparados. (BARROS, 2002, p.79).

Ocupando esse espaço pouco habitado e, em determinadas situações, inabitado, a

psicologia goza de certa autonomia relativa para gerir seus processos de trabalho que, ademais

de algumas restrições impostas pela precariedade e escassez do campo, lhe garante um espaço

diferencial na hierarquia, que representa um poder simbólico conquistado pela profissão e

exercido no campo da APS.

Eu fico com a impressão de que a psicologia, ela ainda consegue ter certa autonomia

técnica no sentido de assim “pô a enfermeira ela acaba ficando meio como

paraprofissional do médico”, o médico muito assim “o que é a necessidade de

saúde?”, ele domina conhecimentos que acabam sendo talvez maiores do que os da

enfermeira. E a enfermeira fica designada a fazer atividades de cuidados, mas que

tão dentro da prática médica também, isso acaba se repetindo também, às vezes, um

123

pouco assim com a fisioterapia, com a fonoaudiologia, acaba ficando as coisas meio

de paraprofissional. A psicologia acho que tem uma espécie assim de caixa preta,

tem um certo funcionamento que é só a gente que entende. Então assim, o médico

com o psiquiatra acaba sendo uma relação diferente, mas com o médico do saúde da

família, o clínico geral, acaba sendo assim “olha eu tenho um conjunto de coisas que

acontecem aqui que eu não faço a menor ideia de como é”. Então acaba tendo uma

relação pouco menos hierárquica nesse sentido sabe. E isso é diferente

principalmente na atenção primária, na estratégia saúde da família, por que? Porque

eu comparo com a vivência de colegas meus, que fizeram residência em hospitais e

lá tinha muita demarcação do “paraprofissional” mesmo, de assim o psicólogo chega

no paciente quando o médico chama, quando o médico autoriza, quando o médico

quer, enquanto que lá no posto de saúde da atenção primária tinha uma relação um

pouco mais horizontal. Eu acho que com a enfermagem é a mesma coisa, eu acho

que você comparar uma enfermeira de hospital com a enfermeira de atenção

primária eu acho que a hierarquia é muito mais demarcada no hospital, isso fica

ainda mais forte.

Esse poder de gerir seu processo de trabalho na APS, especialmente no que diz

respeito a certa ruptura com o paradigma biomédico, é um signo de distinção, que representa

uma posição de maior autonomia relativa, por exemplo, quando comparamos com a posição

da enfermagem que, como vimos, contraditoriamente ocupa já um espaço reconhecido e

valorizado de profissional da equipe mínima. Como apontado acima, no que diz respeito a

essa dimensão de domínio de certo saber específico do profissional, quando comparamos a

psicologia com as outras profissões do NASF, pudemos identificar uma posição de destaque,

como apontada pelos participantes.

Eu acho que dentro desse grupão aí a gente ta bem, vou dizer porque a gente ta bem.

Por conta de lidar com muitas questões de saúde mental, as quais boa parte dos

profissionais das profissões do NASF não estão acostumados a lidar. A gente ta até

bem porque a gente sabe fazer algo diferente, tem algo que, às vezes, é da ordem do

imponderável e do não saber fazer, como lidar em algumas coisas. Então, nesse

sentido, a gente ta até bem, eu não vou dizer que a gente ta no topo, mas a gente ta

bem e quase no topo.

A comparação interna aponta para uma posição diferenciada da psicologia dentro do

NASF, garantida pelo modo particular como a ação é desenvolvida, especialmente o modo

como lida com os problemas de saúde e pela instituição de um espaço reconhecido de atuação

psicológica relativo a saúde mental. Nesse contexto, a psicologia se destaca pelos modos

específicos como atua, revelando a posse de um conjunto de disposições diferenciadas e

particulares no enfrentamento de problemas de saúde mental. Os participantes destacam a

posse de procedimentos distintos como demarcador de um espaço de domínio da psicologia.

(diálogo na entrevista com uma das duplas)

Participante A - Eu acho que, assim, a profissão enquanto, pelo menos é essa a ideia

que eu sinto assim, que quando você tem um procedimento que parece ser só seu

você cada vez mais é valorizado. E aí um psicólogo ele faz atendimento individual e

aí ele é praticamente o único profissional capaz de lidar com o sofrimento humano e

o sofrimento humano é o que você vê o tempo inteiro, todo dia. Então, imagina, nós

124

temos realmente, somos vistos com grande apreço.

Participante B - Eu afirmo sim, que as outras profissões do NASF são ainda presas a

muito procedimento, os nossos procedimentos são meios diferentes assim, a gente

lida com algumas coisas bem diferentes que chegam na unidade ou pelo menos nós

somos demandados pelos outros profissionais que a gente lida. Fisioterapia tem os

seus procedimentos, assistente social tem os seus procedimentos, a TO e tal, todo

tem os protocolos e a gente é muitas vezes chamado a lidar com o imponderado que

os protocolos não dão conta. É isso que eu quero lhe dizer que a gente ta bem nesse

sentido das profissões NASF, eu afirmo isso assim.

Pesquisador: Isso tem a ver com doença?

Participante B:Sim.

Pesquisador:De como a psicologia lida com a doença?

Participante B: Sim, com a doença.

Pesquisador:Ou com aquilo que não ta dentro do rol das doenças?

Participante A: Com a porção não explicada da doença eu acho que é, porque todas

as demandas que chegam aqui. Porção não explicada da doença, a loucura, o

doidinho entendeu? Como é que lida com o doidinho? E vai ser o psicólogo que tem

que ver, não tenho a menor dúvida. Essa mulher com gastrite que já passou pela

nutricionista, fez dieta e não resolveu, já tomou omeprazol e não resolveu.

Participante B:As dores, o fisioterapeuta já ta fazendo exercícios respiratórios e não

rola, você chama todo mundo e faz todos os negocinhos e cada um faz a sua parte do

cuidado e ela não melhora, a criatura, aí vai ter que chamar o psicólogo e vai ter que

descobrir que diabo é isso aí.

Configura-se assim, um lugar de destaque dentro do NASF. Esse destaque, pelo que

percebemos, é dado pela posse de um jeito particular de lidar com determinadas demandas

para as quais outros modos de agir, próprio das outras profissões do NASF e equipes

mínimas, são menos efetivos ou reconhecidos como tal. A busca da autonomia nas práticas

profissionais está intimamente ligada à especialização técnica e a determinação de critérios de

excelência (MACHADO, 1995), bem como a propriedade ou controle dos meios de produção

(DONNANGELO, 1975; DURAND, 1975). Percebemos que a psicologia tem relativa

autonomia profissional na ESF pela demarcação de um conjunto de saberes específicos

legitimados como próprios da psicologia.

Ademais do lugar de destaque ocupado pela psicologia nessa zona intermediária do

NASF, esse lugar de equipe de apoio é percebido como um posição subalterna, como

discutido acima. Esse lugar de menos valia na economia das trocas simbólicas do CSF e da

estruturação dos cargos efetivos dentro da ESF, fora questionado pelos participantes da

pesquisa. Um elemento destacável nesse questionamento é a reflexão sobre o papel

secundário, que esses profissionais sentiam desempenhar, como exemplificado na experiência

abaixo:

É como se a gente tivesse ali na zona média, entre a equipe de saúde da família e não

colocando ela toda, mas médico e enfermeiro. Aí vem ali os profissionais da

multidisciplinaridade, que não fazem parte da equipe mínima chamada. E, abaixo

deles, viria os agentes de saúde, abaixo assim entre aspas, porque às vezes até os

agentes de saúde querem chegar junto, porque eles são da equipe, são efetivos e o

vínculo nosso não favorece porque o vínculo empregatício da gente é frágil. Então,

125

nós não somos concursados e isso aí, às vezes, eu percebia assim: Será que o pessoal

do NASF é uma espécie de pelego, que é aquele troço lá que se bota debaixo da sela

pro cavalo não sentir que ta sendo montado né? E que é daí que você tira, é alguém

que fica entre o opressor e o oprimido pra que o oprimido não se sinta oprimido. E

assim que eu pensava quando eu chegava e via aquele negócio da sala de espera.

Você pode ver a sala de espera de duas formas, uma prática legal ali que você ta

aproveitando o espaço, no corredor que você ta esperando pra ser atendido pelo

médico. Mas eu sempre tinha um olhar assim meio obscuro e pensava assim, “será

que o pessoal do NASF são palhaços, que ficam distraindo o povo pra que eles não

fiquem com raiva porque o médico está atendendo outro, entendeu?” Pode ser visto

assim também dessa outra forma.

Pesquisador: Isso tudo acontece né?

Acontece. “Faça isso, atende esse cara pra mim”. Por um lado você pode ter a

seguinte visão, o cara tava elogiando o meu trabalho, ele acha que eu vou poder

fazer alguma coisa. E por outro, “rapaz, é o seguinte, testa esse serviço aqui pra

mim”, “faz isso aí pra mim”. Eu não mando ele fazer nada, entendeu? Não tem

muito essa contra-referência, tem mais é referência, pouco tem a contra-referência.

Eu não sei se o fato de ter mais referência do que contra-referência seria o indicio de

que teria uma hierarquia velada aí né, eles é que mandam e a gente tem que fazer o

serviço que eles mandam a gente fazer. “Ó psicólogo, caiu o reboco aqui vem

colocar o reboco aqui de volta da minha casa”. Então já tem uma cultura, um

negócio assim meio até arquetípico deles, o pessoal que ta lá de branco né tão lá pra

poder comandar e tal.

O lugar do NASF é, então, desprestigiado como dispositivo promotor de práticas na

APS, classificadas como potencialmente tuteladas e auxiliares dentro da hierarquia constituída

no campo da APS. Ser profissional do NASF é ser um pelego, aquilo que se coloca abaixo da

sela do cavalo para amortecer-lhe o sofrimento de ser montado, é ser um profissional auxiliar

dos serviços médicos, compreendidos como os mais nobres e importantes, aos quais deve-se

servir de suporte. Podemos, aqui, também pensar o NASF como grupo de profissionais

responsável pelo alívio da tensão presente nas relações de opressão estabelecidas nas práticas

médicas na ESF.

De um modo geral, a experiência aqui analisada nos permite identificar alguns

fatores responsáveis pelo desprestígio do trabalho no NASF e RMSF: a tensão imposta pelas

relações de encaminhamento entre equipes mínimas e equipes de apoio; a hierarquia médica

legitimada na classificação das prioridades; e as precárias condições de trabalho. A

precarização das condições de trabalho no campo foi algo bastante presente dos diálogos

realizados nas entrevistas. Sempre que esse tema surgiu nas entrevistas, os participantes

expressavam certo pesar, já que muitos já viam, no período das entrevistas, a experiência da

APS como passado de suas trajetórias profissionais. A ESF, assim, para a maioria dos

participantes da pesquisa, não lhes apresentou perspectivas interessantes de construir de uma

carreira na APS do SUS.

Ademais das restrições estruturais decorrentes da estrutura hierarquizada da APS, há

uma notável amplitude de possibilidades de atuação percebida pelos os psicólogos

126

entrevistados, a partir da posição situada no campo em questão. É assim que se desenha uma

posição geradora de práticas multidirecionais, que corrobora com uma visão do campo como

espaço de múltiplas áreas de intervenção. Essa amplitude vem convidar os profissionais

psicólogos a um revisitar permanente de sua formação e possibilidades de atuação no campo,

que demarca o fazer psicológico com características híbridas, formadas a partir da integração

de expertises de várias áreas de atuação. As práticas dos psicólogos, assim, percorrem

diversas direções e espaços da ESF, envolvendo amplas possibilidades de intervenção e de

construção de posicionamentos na hierarquia das práticas profissionais dos CSF, bem como

de uma especificidade no modo como aborda os seus objetos de prática.

Assim, a articulação de saberes e práticas, construídos historicamente em áreas

distintas dos campos das Psicologias, é um processo percebido na experiência dos

participantes do presente estudo:

Uma coisa importante é que na atenção primária esses âmbitos tradicionais que a

gente conhecia da psicologia, eles se engendram, eles são todos articulados e você

não consegue separar.

(outro participante)

Você está atuando na escola, você está atuando na unidade básica de saúde com

esses conhecimentos da psicologia organizacional, quando você ta na Roda[de

gestão no CSF], facilita uma Roda[...] Então você está fazendo isso, você ta usando

os recursos da psicologia comunitária pra articular a rede no território, pra você

fazer um encontro que junte diversas instituições daquele lugar em prol de alguma

coisa. E você é um catalizador daquela vontade das pessoas ali e você não pode

deixar também de fazer a avaliação e o acompanhamento dentro da saúde mental.

Vários exemplos de articulações entre as áreas da psicologia foram citadas e

compuseram exemplos de articulações teóricas e técnicas percebidas como necessárias à APS,

para dar resposta aos problemas de saúde dos usuários. Foram citadas as seguintes

articulações entre áreas da psicologia: 1) entre psicologia comunitária e clínica; 2) entre

psicologia clínica e organizacional; 3) psicologia social e psicologia escolar; e 4) psicologia

da saúde e psicologia social. Essas e outras articulações não citadas possibilitam também

pensar num fértil espaço de articulações e conflitos entre as diversas psicologias na produção

das práticas na APS.

Em contato com as prerrogativas colocadas pela APS, já discutidas acima, outra

dimensão do processo de construção das práticas é a necessidade de estabelecer diálogos com

usuários e instituições do território/comunidade. Nesse ínterim, desenvolveram-se práticas

permeadas pelas concepções de saúde, doença e cuidado vigentes no espaço social da APS,

implicando em diferentes perspectivas ou linhas de ação muito influenciadas pelas questões

sociais e comunitárias. O campo da APS apresenta-se assim, como um espaço de práticas

127

relativamente aberto a diversos paradigmas de atuação, possibilitando o desenvolvimento de

ações em diversos âmbitos. O repensar das práticas e sua contextualização à ESF é notória na

experiência dos participantes.

A noção de apoio matricial, elemento teórico que tem tido destaque no debate sobre a

ESF, especialmente impondo um tensionamento bastante significativo na definição das

práticas dos NASF (CAMPOS; DOMITTI, 2007; DIMENSTEIN et al. 2009), teve destaque

nas entrevistas realizadas. Especialmente junto aos participantes de Fortaleza, esse conceito

tem orientado as práticas psicológicas desenvolvidas na RMSF e mesmo no NASF, sob o

signo da colaboração profissional.

Eu acho que uma coisa, do jeito que está hoje, fundamental é o apoio matricial, do

jeito que a política está colocada hoje, desse trabalhar conjunto, de formas

compartilhadas desse trabalho, que não é só o psicólogo sozinho que vai atuar com a

população nessa coisa de ferramentas de colaboração entre os profissionais.

Campos e Domitti (2007) apresentam o apoio matricial como uma alternativa

metodológica e arranjo organizacional voltado para a gestão do trabalho em equipes

interdisciplinares de saúde. Visando promover a retaguarda especializada, no suporte

assistencial e técnico-pedagógico, para o trabalho de equipes de atenção à saúde, o apoio

matricial consiste em metodologia de trabalho complementar à vigente em sistemas

hierarquizados e expresso em mecanismos de referência e contra-referência, protocolos e

centros de regulação. Os autores sintetizam a proposta:

O apoio matricial pretende oferecer tanto retaguarda assistencial quanto suporte

técnicopedagógico às equipes de referência. Depende da construção compartilhada

de diretrizes clínicas e sanitárias entre os componentes de uma equipe de referência

e os especialistas que oferecem apoio matricial. Essas diretrizes devem prever

critérios para acionar o apoio e definir o espectro de responsabilidade tanto dos

diferentes integrantes da equipe de referência quanto dos apoiadores matriciais.

(CAMPOS; DOMITTI, 2007, p.400).

Essa proposta, bastante disseminada no contexto de políticas e serviços como a ESF,

visa ampliar possibilidades de fortalecimento de vínculos entre profissionais e usuários, de

operacionalização da clínica ampliada, de facilitar o diálogo entre profissões e disciplinas

técnico-científicas, de ampliação do escopo de ações clínicas e sanitárias na perspectiva de

uma abordagem integral aos problemas de saúde. Apontando os desafios para a

implementação do apoio matricial, Campos e Domitti (2007) destacam o elemento político da

organização dos processos de trabalho entre equipes de referência e apoiadores matriciais. Os

autores destacam a distinção do apoiador matricial em relação à equipe de referência:

O apoiador matricial é um especialista que tem um núcleo de conhecimento e um

128

perfil distinto daquele dos profissionais de referência, mas que pode agregar

recursos de saber e mesmo contribuir com intervenções que aumentem a capacidade

de resolver problemas de saúde da equipe primariamente responsável pelo caso. O

apoio matricial procura construir e ativar espaço para comunicação ativa e para o

compartilhamento de conhecimento entre profissionais de referência e apoiadores.

(CAMPOS; DOMITTI, 2007, p.401).

Os autores argumentam que a proposta é que se substituam as relações verticais,

própria dos sistemas hierarquizados, por relações mais horizontalizadas e instituindo

processos de co-gestão democrática dos processos de trabalho. Assim, propõe-se o termo

matriz, para a explicitação de uma proposta de reorganização dos serviços. A proposta de

apoio matricial volta-se para o enfrentamento da divisão do trabalho em saúde permeada

fortemente pela concentração de poder pelas especialidades médicas, o que vem constituindo

serviços de atenção à saúde fragmentados no cuidado e gestão do trabalho. Dentre os

problemas a serem atenuados pela proposta estão: a baixa eficácia e a iatrogenia nos serviços

de saúde. Obstáculos decorrentes do excesso de demanda e carência de recursos são

reconhecidos, mas a proposta propõe-se também a ser um atenuante, potencialmente na

melhoria da eficiência dos modelos de atenção vigentes.

Entre outros arranjos, também o apoio matricial poder ser relevante para racionalizar

o acesso e o uso de recursos especializados, alterando-se ainda a ordenação

predominantemente multidisciplinar do sistema para uma outra mais consentânea

com a interdisciplinaridade. Esse arranjo permite um uso racional de recursos,

quando cria oportunidade para que um único especialista integre organicamente seu

trabalho com o de várias equipes de referência. (CAMPOS; DOMITTI, 2007,

p.404).

Em nosso estudo, o apoio matricial foi uma ferramenta organizacional presente na

construção social das práticas psicológicas, que facilitou o desenvolvimento de práticas

interessantes de diálogo da Psicologia com as outras profissões, mas também foi

representativo dos limites impostos atualmente pela ESF ao fazer profissional dos psicólogos.

Ademais das potencialidades ensejadas pela prática psicológica nas equipes de apoio

matricial, observamos obstáculos políticos para o avanço das práticas psicológicas nas

equipes de APS.

Os tipos de apoio desenvolvidos apontam para diversas possibilidades de articulação

e pactuação entre as profissões, instituições e agentes no território da ESF. Quatro vetores de

prática de apoio, que influenciaram o desenvolvimento das práticas psicológicas na APS em

Fortaleza, foram: 1) Apoio Institucional, que trata das questões institucionais e

organizacionais do CSF e de suas interfaces com outros programas e políticas de saúde do

Sistema Municipal de Saúde; 2) Apoio Assistencial, atuando diretamente no atendimento de

demandas para a atenção psicológica, especialmente a atenção em saúde mental, junto às

129

diversas demandas colocadas pela ESF; 3) Apoio Comunitário, que visava um trabalho de

articulação com grupos e associações comunitárias na perspectiva de uma psicologia

comunitária ou mesmo no estímulo à participação comunitária na saúde; e 4) Apoio Matricial,

com suporte técnico-assistencial nas questões de saúde mental atuando em colaboração com

as equipes mínimas.

Como vimos, pela delimitação de uma posição geradora de práticas no e do NASF, a

ideia de apoio já demarca significativamente os âmbitos de prática em que a psicologia atuou,

representando uma divisão classificatória das práticas elucidativa para pensar o espaço

ocupado pela psicologia na ESF, na experiência dos participantes. Nesse contexto, cabe

reinterar que o espaço ocupado pelas práticas psicológicas na APS, é caracterizado em grande

medida pelo seu caráter complementar frente às práticas desenvolvidas pelas equipes

mínimas, as quais deixam lacunas, que abrem espaço para construção de novas práticas e

demandas em saúde.

Ainda nesse contexto, como já enfatizado, a prática psicológica está situada em um

campo dominado pela biomedicina, em que diversos agentes atuam tendo como referência os

saberes e práticas fundamentados por uma compreensão biofisiológica do corpo e da saúde. O

modelo biomédico será, então, uma referencia para a construção das práticas psicológicas, na

perspectiva de que a ele deve-se posicionar corroborando ou contrapondo-se a sua proposta

estruturante do campo. A dinâmica das práticas psicológicas na APS é também atravessada

pela administração biomédica do campo, o que implica a necessidade de permanentes

negociações e lutas simbólicas para impor novas visões da saúde.

Pesquisando as estratégias de apoio matricial junto às redes de saúde mental,

Dimenstein et al. (2009) constatam que há uma enorme demanda não acolhida pelos serviços

de atenção primária, precariedade dos serviços substitutivos em saúde mental e das redes de

serviços do SUS em geral, onde dentre outras questões apontadas, encontramos isolamento do

CAPS, como serviço especializado com baixa comunicação com a ESF. A APS é vista como

um dispositivo necessário para a efetivação da reforma psiquiátrica e sua proposta de

desinstitucionalização da loucura. O matriciamento em saúde mental é identificado como

importante para promover a articulação da APS com a rede de serviços. As autoras destacam,

dentre outros problemas apontados, o desafio de enfrentar no cotidiano dos serviços a lógica

medicalizante de organização das práticas, em que o uso de medicamentos e a atenção

especializada constituem-se como as principais terapêuticas desenvolvidas nas práticas. Nesse

contexto, o papel da APS reduz-se à renovação acrítica de receitas psiquiátricas, esse

fenômeno é agravado pela grande demanda e pelo baixo poder de resolutividade dos

130

profissionais frente ao campo especializado da saúde mental. Em nossos resultados de

pesquisa, em consonância com o que fora destacado pelas autoras (Dimenstein et al., 2009),

entendemos ser relevante o papel das equipes de apoio matricial no enfrentamento da

hegemonia biomédica na organização da ESF. No entanto, destacamos que, em nosso caso, as

práticas psicológicas não podem se restringir às equipes de apoio matricial. Como veremos

adiante, existem muitas demandas ainda descobertas e que exigem uma participação mais

ampla do profissional psicólogo.

De modo geral, como aponta Paim (1999, 2001), modelos de atenção à saúde ou

modelos assistenciais têm sido definidos como combinações de tecnologias utilizadas nas

intervenções sobre problemas e necessidades sociais de saúde. Assim, como destaca o autor,

um modelo assistencial não é um padrão ou exemplo a ser seguido, mas uma racionalidade,

uma razão de ser, que no caso da atenção à saúde, deve se constituir na busca por atender a

necessidades individuais e sociais de saúde. O autor trata de problematizar os modos de

combinar estratégias e modelos de intervenção, técnicos e científicos, o que inclui as práticas

dos profissionais de saúde, capazes de resolver os problemas de saúde individuais e coletivos.

O modelo médico hegemônico pode ser entendido como aquele organizado em torno do

atendimento de doentes a partir de demanda espontânea ou induzida pela oferta, e que

segundo Paim, revela-se limitado no que tange ao desenvolvimento de uma “atenção

comprometida com a efetividade, eqüidade e necessidades prioritárias em saúde, ainda que

possa proporcionar uma assistência de qualidade em determinadas situações” (PAIM, 2001,

p.5).

Nesse contexto de estruturação biomédica do trabalho interprofissional na APS,

outro tema que se tornou significativo para pensar a atuação da psicologia, foi a

medicalização do sofrimento. A posição da psicologia, como uma categoria que

historicamente acumulou capital cultural e científico frente às questões do campo da saúde

mental, que envolve as práticas de atenção à saúde voltadas para o sofrimento humano, parece

impulsionar alguns participantes a se posicionarem criticamente ao modelo biomédico, numa

perspectiva de desmedicalização das práticas de saúde mental na APS. Um posicionamento

que, no campo da APS, significa uma luta contra a hegemonia arbitrária do saber biomédico

na estruturação das práticas em saúde mental.

Outra questão que eu vejo assim como sendo extremamente complicada é essa

questão da medicalização do sofrimento psíquico também. Assim, acaba que você

tem uma intervenção muito a nível farmacológico de questões que poderiam ser

diluídas por outras estratégias e que acabam, de algum modo sendo, enfim,

131

absorvidas no campo da medicina ou pelo campo do discurso médico. E eu acho que

ela poderia ser um pouco mais explorada pela própria psicologia.

A medicalização do sofrimento e dos problemas sociais e psicológicos é apontada

como um problema a ser enfrentado na produção das práticas psicológicas na APS. A luta

contra a medicalização do sofrimento aponta para o reconhecimento de um posicionamento

ético e político da ação profissional voltada para a construção de processos de cuidado mais

transgressores e (cri)ativos. Como aponta Romagnoli:

Medicalização pode emergir como dispositivo de controle da vida, de biopoder.

Mediante práticas sistemáticas de adoecimento, geridas por esse tipo de poder, o uso

excessivo de remédios torna-se necessário para suportar a vida adoecida, a vida

despotencializada pelos maus encontros, gerida por paixões tristes, separada de sua

potência. Dessa maneira, a grande maioria dos usuários da rede de saúde pública,

que fazem um elevado uso de medicamentos, tem a vida contida, carente e

empobrecida, que se conserva em modos de impotência. A vida encontra-se presa

em um sistema de julgamento que reproduz a vida obediente, a vida anestesiada

(ROMAGNOLI, 2009, p.532).

Defrontando-se com as questões estruturantes do campo da ESF, as práticas

psicológicas transitam por diversos âmbitos e enfrentam obstáculos referentes à posição que a

profissão ocupa nos espaços cotidianos dos CSF. Tais práticas apontam para diferentes

direções e envolvem agentes e instituições na constituição de um escopo abrangente de ações

voltadas para a resolução de amplos problemas de saúde. No que diz respeito às áreas de

atuação psicológica mobilizadas pelas práticas, os participantes citaram: Psicologia

Organizacional e do Trabalho, Psicologia Institucional, Psicologia Comunitária, Psicologia

Clínica, Psicologia Escolar/Educacional. O campo da saúde mental, no entanto, fora referido

como demarcador especial do fazer do profissional psicólogo na APS. Mesmo diante da

predominância de problemas de saúde mental, o psicólogo envolve-se na busca pela resolução

de uma vasta gama de problemas, a depender dos territórios, que perpassam diversas doenças

citadas, como: hipertensão, diabetes, tuberculose, dependência química, hanseníase, DSTs,

transtornos mentais, etc. Outras demandas foram trabalhadas no processo de trabalho desse

profissional e serão abordadas no próximo capítulo.

Foi notável que as práticas psicológicas se incluíram nas ações intersetoriais, a partir

da interface da APS, com outras políticas e programas em saúde. Destacou-se, nas entrevistas,

a participação dos psicólogos nas políticas educacionais, nas políticas de assistência social,

em algumas ações da sociedade civil organizada como as promovidas por igrejas, associações

e grupos comunitários diversos. Os participantes relataram também participar dos grupos

promovidos na ESF: grupo de idosos, adolescentes, mulheres, gestantes, etc. Algumas ações

de educação permanente e apoio matricial foram destacadas, como as preceptorias das

132

especialidades médicas, com especial ênfase à preceptoria de psiquiatria (saúde mental). Foi

notável a participação dos profissionais da psicologia nas ações municipais de educação

permanente em saúde, onde os entrevistados promoveram trabalhos na facilitação de

encontros de formação voltados para a discussão de temas diversos. Foram também citados

trabalhos voltados para o fomento da participação e controle social nas políticas públicas, com

recorrentes referencias às ações de formação e fortalecimento dos conselhos locais de saúde.

As práticas desenvolvidas pelos psicólogos na APS do SUS vem sendo estudadas por

vários vieses e refletem uma diversidade de tipos de procedimentos técnicos

(NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011). No presente estudo os procedimentos técnicos citados

foram: visita domiciliar, atendimentos clínicos individuais e em grupo, a partir de diversas

abordagens; terapia comunitária; interconsultas com outros profissionais; facilitação de

grupos diversos (atuação junto a processos grupais especialmente voltados para a organização

de processos de trabalho na ESF e grupos comunitários); jogos, dinâmicas e vivências

grupais; rodas de quarteirão; círculos de cultura; e práticas corporais.

133

6 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA DEMANDA PARA A PSICOLOGIA

O mundo social pode ser percebido, dito e construído segundo diferentes princípios

de visão e divisão. O conhecimento de um espaço social e as categorias que o tornam possível

são elementos que estão em jogo na ação política. Esta constrói-se socialmente numa luta pela

imposição de princípios de visão e divisão do mundo social a partir de um ponto de vista

(BOURDIEU, 2010). As profissões passam a ser valorizadas social e historicamente não

somente pelos serviços prestados à sociedade. Esse reconhecimento é resultante, sobretudo,

de lutas travadas em torno de demarcações de poder que buscam ampliar as possibilidades da

ação profissional, dentro de um determinado campo de práticas (DUBAR, 2005). Tomando

como referência o conceito de poder simbólico (BOURDIEU, 2012), o poder profissional -

fruto do reconhecimento e prestígio acumulados historicamente, que define o espaço dos

possíveis da prática, é resultado do poder de fazer ver, fazer crer, de impor um sentido

legítimo ao mundo social.

Em um dos momentos mais marcantes das entrevistas, quando conversava com um

dos participantes sobre as demandas que eram trabalhadas rotineiramente pelos psicólogos no

CSF, ele falava que a visão que temos da realidade influencia na criação de demandas e

práticas para a profissão. Para o mesmo, na ESF, a psicologia é reconhecida por sua

capacidade de transcender as dimensões orgânicas do processo saúde-doença, de lidar com

aquilo que escapa à lógica biologicista.

O primeiro olhar é para o orgânico, isso é básico na atenção primária ainda. Não

gostaria que fosse assim, mas é a realidade. E aí a gente já é percebido pelos outros

profissionais como alguém que pode trazer um algo a mais, nesse outro que é a mais

do orgânico.

Como pudemos ver no capítulo anterior, em que reunimos aspectos das visões dos

participantes sobre o campo da ESF, o processo de construção das práticas é marcado por uma

divisão hierarquizada do poder profissional, em que o modelo técnico-assistencial biomédico

destaca-se como hegemônico na estruturação das ações profissionais. Nesse processo de

dominação médica sobre o conjunto das práticas profissionais de saúde nos CSF, os

participantes destacam limitações do modelo biomédico para a satisfação das necessidades de

saúde da população. O primeiro olhar, que se impõe como prioritário no senso comum, que

identifica, constitui e classifica as práticas em saúde é aquele voltado para a priorização da

face orgânica dos problemas. Esse organicismo naturalizador das práticas se reflete na

organização dos serviços e na produção social das demandas na APS do SUS.

134

No intuito de melhor interpretar os sentidos das práticas psicológicas no contexto da

APS, buscamos entender a construção das demandas como processo social historicamente

situado e marcado pela luta simbólica para definição de limites e alcances das práticas. Assim,

em diálogo com autores da sociologia (BOURDIEU, 2012; DUBAR, 2005), concebemos que

as demandas em saúde são produzidas a partir de um emaranhado de relações sociais, em que

as ações de instituições e agentes profissionais desempenham um papel destacável a partir,

dentre outras práticas, pela oferta de serviços. Tais relações sociais de produção das práticas

são perpassadas pelo entendimento que profissionais e usuários tem das necessidades de

saúde, bem como da tradição de modelos de atenção à saúde oriundos do campo social e

científico das profissões. Assim o profissional inserido na ESF tem que lidar com hierarquias

de poder existentes no CSF e com as tradições de prática que se impõem na construção das

demandas em saúde.

A já anteriormente abordada hegemonia da categoria médica é um elemento

destacado na produção das práticas na ESF, que implica na construção de enormes demandas

para atenção médica. O cotidiano de um CSF é extremamente influenciado pela organização

do trabalho médico. Em determinadas circunstâncias, a ausência desse profissional, pode

representar a quase ausência de usuários. Como reflexo dessa hegemonia, dentre outras

questões, instituiu-se uma proeminente ordem de priorização ao atendimento de necessidades

de saúde identificadas, a partir de sinais e sintomas orgânicos, situados no contexto de um

corpo biofisiologicamente interpretado.

Como vimos no capítulo anterior, as profissões inseridas nos CSF tem que lidar

direta e indiretamente com a hegemonia técnico-assistencial e de poder da biomedicina, onde

as práticas médicas são colocadas no topo da hierarquia de poder e de valor, influenciando o

desenvolvimento das outras práticas, como colaboradoras ou como concorrentes, em menor

ou maior grau, constituindo-se diante da ordem vigente. As demandas de prática para o

psicólogo, assim discutidas pelos participantes, apontam para um âmbito de intervenções no

processo saúde-doença, de certo modo muito influenciado pelo modo de organização

hegemônica dos serviços, onde o psicólogo parece ocupar um lugar vazio deixado pelo

modelo biomédico. Atuando “nesse outro que é a mais do orgânico”, o psicólogo traz sua

contribuição e esta é percebida como legítima. Assim, a profissão direciona-se para olhar e

cuidar de âmbitos de prática voltados para suprir determinadas brechas abertas perspectiva

biomédica, podendo contrapor-se ou corroborar com a lógica vigente de organização dos

serviços.

135

A psicologia, nessa perspectiva de análise, desempenha uma atuação profissional

focada, muitas vezes, naquilo que está para além da dimensão orgânica, inserindo-se num

processo social de construção de uma visão dicotomizada e dicotomizante do ser humano. A

prática profissional é atravessada por certa divisão política e epistemológica, que separa as

demandas a partir de conceitos de mental e corporal, e que se reflete no direcionamento das

questões desse “algo a mais do orgânico” para um plano inferior na hierarquia das

necessidades de saúde. Nesse segundo plano, um leque enorme de demandas se estrutura e vai

se configurando como legítimas, dentro do rol das possibilidades de atuação profissional. É

nesse plano que o lugar do psicólogo passa a ser reconhecido e valorizado.

Nesse leque de demandas, com as quais a psicologia lida cotidianamente, as práticas

desenvolvidas serão direta e indiretamente influenciadas pelo lugar ocupado pelos

profissionais na trama relacional construída no CSF. Essa trama relacional tecida no cotidiano

de trabalho é influenciada pelo maior ou menor poder dos agentes em definir o que é e o que

não é legítimo em termos de atuação profissional de um psicólogo. Abre-se, assim, uma arena

de disputas interprofissionais notável, em que o processo de trabalho é pactuado, planejado e

avaliado nos contextos de prática dentro dos limites instituídos pelas relações de força.

Ademais dos esforços dos agentes específicos, todos se situam dentro das tradições de

práticas existentes. É preciso lidar com estas tradições já instituídas do agir em saúde, do agir

em saúde da família e do agir psicológico. No intuito de analisar o processo de construção das

demandas para as práticas psicológicas na ESF, identificamos algumas de suas nuances

caracterizadoras, as quais trazem questões bastante pertinentes para pensarmos os processos

de luta para definição das práticas legítimas para a psicologia.

Uma das nuances marcantes pra pensarmos as demandas recorrentes para psicologia,

é seu recorte de gênero. As demandas para a atuação profissional da Psicologia constituíram-

se, predominantemente, em torno de necessidades de saúde trazidas por mulheres. A mulher é

apresentada como a principal porta-voz da família. Constituindo-se como a classe

predominante dentre os usuários atendidos pelos psicólogos, elas foram geralmente

identificadas como o primeiro contato do profissional com as necessidades de saúde das

famílias e, consequentemente, das comunidades. Nesse primeiro contato, a condição da

mulher e suas relações familiares revelam contextos de vida difíceis.

Eu percebo uma demanda enorme de mulheres, senhoras, mulheres de todas as

idades, mais na idade adulta, com demanda de sofrimento tremenda devido a

relações familiares construídas com os maridos e com os filhos. A questão da

anulação em relação ao feminino, de cuidar de tudo e não cuidar de si. E assim

136

mesmo elas são as únicas que procuram, assim em relação a família, elas são as que

trazem a demanda da família como um todo, elas que são as portas abertas, porta

voz da família [...]

“Atender a mulher” significa lidar com sua condição social e de gênero atravessada

pela violência imposta por uma sociedade machista e pelas condições sociais precárias de

vida, típicas da maioria dos usuários atendidos pelos participantes, em situação de pobreza e

miséria. O estudo, análise e intervenção psicológica no contexto da condição feminina nas

classes populares destacam-se como pré-requisitos para o desenvolvimento da prática desse

profissional, no contexto estudado.

Demanda de mulheres que usam benzodiazepínicos e com a queixa que diz logo que

é depressão, mas se for ver é ansiedade e depressão, essa queixa dos transtornos

mentais leves. Ansiedade e depressão eram muito grande. “Ah eu tenho problema

com meu marido”, algumas vezes eram relações de violência, coisas que as pessoas

não conseguiam falar.

(outro participante)

[Demandas decorrentes da] Violência intrafamiliar, violência sexual, violência

contra a mulher, suspeita de abuso contra a criança.

Mulheres em depressão e ansiedade, sofrendo com os chamados “transtornos mentais

leves” e inseridas em contextos de vulnerabilidade social e violência, esse é o perfil da

maioria dos usuários atendidos pelo psicólogo. Esse conjunto de demandas recorrentes para os

psicólogos expõe novamente, no contexto das análises realizadas na presente pesquisa, o

problema da medicalização do sofrimento das mulheres como processo comum nas práticas

da ESF, especialmente pela limitação do modelo assistencial vigente, no que diz respeito ao

reconhecimento e atuação junto a dimensões sociais e econômicas dos problemas de saúde.

Corroborando com os resultados de estudo realizado por Carvalho e Dimenstein (2004), fica

claro a limitação do medicamento para satisfazer as necessidades de saúde das mulheres nos

serviços de saúde.

Para momentos de forte tensão, o medicamento assume, na vida dessas mulheres,

uma importância singular, na medida em que é o responsável por controlar a agonia

vivenciada. Elas imaginam que, tomando o medicamento, conseguirão dar conta dos

acontecimentos violentos presentes no seu dia-a-dia, ou ainda manterão um

comportamento normal. O medicamento tem, portanto, o objetivo de agir sobre as

suas angústias, seus fantasmas, para que possam se manter “equilibradas”, mesmo

em se tratando de uma mordaça química, que as impossibilita de descobrir outras

formas de lidar com essas perturbações “nervosas” e seus determinantes individuais

e coletivos. (CARVALHO; DIMENSTEIN, 2004, p.125-126).

Desse modo, um pré-requisito importante para a construção das práticas psicológicas

na presente pesquisa, é a construção de uma abordagem satisfatória às demandas femininas e

de gênero. Entendemos que essa abordagem de gênero somente será satisfatória se constituir

137

um posicionamento crítico frente à medicalização da vida apontada por alguns autores

(ROMAGNOLI, 2009; BARROS, 2002; CARVALHO; DIMENSTEIN, 2004; TESSER;

NETO; CAMPOS, 2010), construindo alternativas mais pontencializadoras da autonomia dos

sujeitos. Como colocamos acima, as mulheres constituem-se como porta-voz das demandas

que chegam para os psicólogos. Dentre as demandas recorrentes, as práticas psicológicas

voltaram-se bastante para resolver problemas de saúde de crianças e jovens, geralmente

atrelados a questões educacionais. Nesse contexto, as necessidades de saúde dos filhos

configuraram grande frente de demandas para a prática profissional dos psicólogos.

Chegou uma pessoa chorando e não se alimentando bem, problemas pra dormir,

sentindo uma agonia e tudo. Ou toma medicação a muito tempo ou então “o meu

filho ta com problema de aprendizagem, ta muito agressivo”, vai chegar pro

psicólogo, pode chegar pra qualquer profissional até da equipe multi, da Residência,

mas eles vão enviar pro psicólogo. As crianças principalmente vão lotar tua agenda e

as mulheres também vão lotar sua agenda.

(outro participante)

Mas a maioria dos que buscavam psicólogo eram as mães pras crianças: “meu filho

precisa de psicólogo, meu filho precisa de psicólogo”.

(outro participante)

Crianças com problema de fala ou algum problema na escola e a gente via que tinha

uma questão psíquica e uma questão que envolvia, sei lá, os processos afetivos ou a

própria subjetivação dessa criança, no contexto familiar e na escola dela.

A demanda de atendimento de crianças também chegava pela escola que requeria da

ESF a ação do psicólogo para lidar com problemas de aprendizagem, cognitivos e de

comportamento infantil e juvenil ou mesmo com situações de autismo e de condições

especiais.

As escolas do território, eu fiz muitos trabalhos com as escolas que era um trabalho

sempre na perspectiva de educação e saúde ou então de um apoio junto aos

professores, pra eles saberem lidar com algumas situações.

(outro participante)

A demanda de criança [...] geralmente era um sofrimento que a família enfrentava

no seu processo. E por isso que eu incluo, dentro dessa demanda infantil, o processo

de sofrimento das famílias de uma forma geral, porque a criança, às vezes, acabava

tendo um sintoma da família que tava sofrendo. E que, muitas vezes, a gente fazia

mais atendimento com os pais do que com a própria criança.

As demandas infantis e escolares impulsionam os psicólogos a requerem a abertura

de um âmbito intersetorial de práticas profissionais que articule as ações de saúde e educação.

As demandas escolares e familiares geralmente chegavam para o profissional da APS, e

consequentemente para o psicólogo, através de mães ou escolas, que se constituíam, muitas

vezes, como as principais interlocutoras na construção das práticas. As questões familiares e

138

escolares são marcantes na produção das demandas trazidas pelas escolas e se encarnam de

diversas formas em casos singulares.

A variabilidade das práticas na ESF decorre de questões estruturais e locais

articuladas. Nesse espectro de questões entrelaçadas, pudemos constatar que a maioria das

demandas psicológicas advém direta e indiretamente de condições de vida precarizadas, onde

se evidenciam dimensões comunitárias, sociais e familiares emaranhadas em trajetórias

pessoais. A seguinte fala, que se refere a um momento de entrevista em que o participante da

pesquisa aborda a questão da violência como propulsora de demandas para a psicologia,

expressa uma síntese de reflexões sobre a demanda psicológica na APS:

Sempre surgem coisas diferentes, coisas novas e, todos os dias até hoje, surge uma

coisa que eu nunca lidei antes. E aí eu tenho que pensar sobre isso. Assim, desde

quadros clínicos diversos, que aparece no território, até outras coisas, que estão

muito escondidos nesses quadros clínicos. Mas, ao mesmo tempo, são talvez as

questões centrais, questões da comunidade, das relações da comunidade e como a

violência chega num serviço assim e de todas as formas, desde as mães adoecidas

até pessoas com quadro de ansiedade com medo com a violência, enfim, a violência

chega de várias formas no serviço.

A condição social de vida, os determinantes sociais decorrentes do modo de vida

comunitário, os vetores de desigualdade social e violência são grandes fatores etiológicos para

os tipos de demanda que chegam à Psicologia. A reflexão sobre determinantes sociais da

saúde torna-se relevante, aqui, como estratégia de formação voltada para o fortalecimento do

agir profissional na APS. Outro conjunto de demandas, que também fizeram parte do

cotidiano das práticas psicológicas no CSF, decorrem de variáveis estruturais de organização

e gestão das políticas de APS no SUS. Aqui, ganham destaque as demandas decorrentes das

prioridades de atenção estabelecidas pela ESF como acompanhamentos de hipertensos,

diabéticos, gestantes e puericultura. As prioridades estabelecidas pela política nacional

impõem certa fixação das demandas que chegam localmente para os psicólogos.

Tem as demandas fixas e tem as demandas variáveis [...] As fixas são aquelas dos

grupos fixos, tem grupo de quinze em quinze dias [...] De dentro desses grupos, às

vezes, surgem algumas demandas variáveis assim, uma pessoa que vai pro

ambulatório e que eu atendo no consultório, escuto, tento dar uma escuta pra aquela

angústia ali daquela pessoa.

Na busca por elucidar o lugar ocupado pelo profissional psicólogo nos CSF e seu

campo de ação, nos deparamos com outro conjunto de demandas para a psicologia. Esse

conjunto é formado a partir de necessidades de intervenção nos processos de trabalho na ESF

e ilustram-se nos convites para que os psicólogos pudessem atuar na resolução de cotidianos

problemas interpessoais na gestão do trabalho nas equipes multiprofissionais, na intervenção

139

junto a situações de sofrimento relacionado ao trabalho. Aqui o psicólogo é convidado a

direcionar sua agenda de trabalho para intervir na ordenação do processo de trabalho em

equipe, intervindo como mediador das relações entre profissionais e destes com os usuários e

suas demandas.

Aí tem esses trabalhos dentro do centro de saúde, com os profissionais também, de

poder cuidar desses profissionais, de poder organizar os espaços de Roda [de gestão

do CSF] e que também é uma demanda que o psicólogo recebe muito.

(outro participante)

Uma das coisas muito claras que eu contribuía e que a psicologia contribuía muito

era [...] no processo da Residência, no sentido da equipe.

(outro participante)

Eu cheguei a atender, muitas vezes, os próprios profissionais que vinham pra

conversar, pra pedir um conselho.

As demandas recorrentes para a prática psicológica nos CSF foram, assim,

caracterizadas: pela sua relação com uma clientela feminina, porta-voz privilegiada da família

e comunidade; pela necessidade de abertura de espaços intersetoriais de ação, especialmente

junto a escolas do território; pela imbricação de fatores pessoais, familiares e

sociocomunitários, geralmente refletidos em condições de vida precários; pelo

reconhecimento de alguns atributos históricos da psicologia como profissão e das práticas

desenvolvidas pelos agentes. Esse reconhecimento, como inicialmente discutido acima, pauta-

se na legitimação da prática para intervir numa dimensão não-orgânica do processo saúde-

doença, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento de ações de atenção ao

sofrimento humano, seja decorrente dos estilos de vida individuais e comunitários, ou dos

processos de organização dos trabalhos em equipe na ESF.

Além da caracterização já exposta, o processo social que envolve a construção da

demanda para a psicologia na APS é marcado pela forte expectativa social em torno das

práticas clínicas, especialmente de atendimento individual. Nesse aspecto, fica evidente a

relevância da compreensão da história da psicologia no campo da saúde mental, já que

hegemonicamente a construção das demandas é atravessada pela tradição profissional. Esse

imperativo de lidar com a tradição clínica da Psicologia aparece em diversos momentos da

pesquisa e, no tocante à demanda, tem como consequência a abertura de um espaço de disputa

em torno da problematização das demandas de saúde que estariam, em maior ou menor grau,

atribuindo ao atendimento clínico individual um método eficiente na resolução de problemas

de saúde na ASP.

140

A demanda para o atendimento clínico, constituída como a maior demanda por

procedimento específico da psicologia, chega por várias frentes, seja referenciada pelos

profissionais das equipes mínimas, como preconiza a política NASF e as prerrogativas

adotadas pelos programas de RMSF, ou diretamente pelo usuário ou pela equipe

multiprofissional de RMSF ou NASF.

A principal demanda que me chega é sempre pelo atendimento clínico individual. E

aí os profissionais solicitam isso muitas vezes e os usuários também, inclusive, a

lógica do apoio, que a gente tenta, às vezes, ela é burlada assim.

A condição de membro de uma equipe de apoio, como colocada pelo NASF e

seguida pelos programadas RMSF é, muitas vezes desconsiderada, ou mesmo colocada de

lado, quando os profissionais e usuários dos CSF se veem diante das demandas identificadas

para a prática do psicólogo. As demandas para o atendimento clínico são recorrentes e, em

muitos desses casos, o NASF e a RMSF são portas de entrada. Discutiremos adiante o tema

do atendimento clínico da Psicologia e suas diversas questões no processo de construção da

demanda.

Na construção das demandas para a psicologia, como pudemos analisar nas

entrevistas, a intensidade e o peso dos problemas de saúde são percebidos como obstáculos às

práticas de psicólogos na APS. Os profissionais se vêm muito pressionados pela condição

precária que, muitas vezes, relatam ter para dar retornos práticos eficientes. As demandas são

percebidas, em alguns casos, como ilimitadas. A prática profissional parece não poder dar

respostas satisfatórias às necessidades de saúde. Nessa pressão percebida, a demanda para a

Psicologia parece generalizada e muito abrangente.

É pessoa com tuberculose, com dificuldade de adesão ao tratamento, hanseníase,

enfim... grávidas que rejeitavam a criança, grupo de grávidas que as enfermeiras

sempre têm. A saúde mental também, claro. Mas, muita coisa, o que você imaginar

aparece na atenção primária, tudo.

(outro participante)

Aí é tudo que você imaginar, depressão, síndrome do pânico, transtorno de

ansiedade, conflitos familiares, luto, todo tipo de perda, fobias, isso não sou eu que

estou na categoria que diagnostica, não, isso vem no encaminhamento, entendeu,

porque eu mesmo não me importo muito com diagnóstico não, isso vem

encaminhado.

(outro participante)

Acabava que assim as demandas vinham de vários lugares, de vários âmbitos e aí eu

me senti também na exigência de mim mesmo de também dar uma filtrada, porque

aquilo ali se eu não cuidasse de mim mesmo quem ia acabar adoecendo era eu.

Uma rica variedade de demandas foi apresentada nas entrevistas e demonstra

algumas facetas importantes da complexidade das necessidades de saúde trabalhadas no CSF,

141

às quais o psicólogo é identificado como agente ativo, muitas vezes, como protagonista. Além

das demandas já relatadas, foi possível identificar outras bastante significativas: atenção aos

casos de estupro, questões relacionadas à perda da ereção, vítimas de violência sexual, brigas

de gangue, uso e abuso de drogas, exploração sexual, prostituição, enfim, casos que mereciam

estudos posteriores e aprofundados no plano local, para analisar as questões que se colocam

para a atuação profissional. Destaca-se, inicialmente, nesse contexto, que recorrentemente os

casos citados configuravam-se num nível de gravidade e complexidade percebida, onde o

acompanhamento singularizado, em nosso entendimento, aparece como uma necessidade.

Um aspecto importante da construção das demandas para a Psicologia é a relação que

a APS estabelece com a rede de saúde mental dos municípios. A histórica contribuição da

Psicologia no campo da saúde mental irá refletir numa participação ativa desse profissional na

rede. Nos municípios em que os participantes desenvolveram suas experiências, o fazer do

profissional fora bastante influenciado pela capacidade de resolução da rede de saúde mental.

O trabalho desenvolvido na atenção aos problemas de saúde mental é, assim, parte do

processo de trabalho do psicólogo, que ao interagir com outros agentes e serviços, vê e analisa

a rede da qual fez parte. Nas entrevistas realizadas percebemos que a ineficiência da rede de

atenção à saúde mental constituiu-se como fonte de insatisfações para os profissionais.

Outras coisas eu me senti muito ruim, principalmente, quando a gente dependia do

CAPS. Porque a gente não conseguia criar, por exemplo, as pessoas que estavam no

CAPS não precisavam estar no CAPS e bastava atenção primária, muito das pessoas.

E num caso grave mesmo, não tinha apoio do CAPS, às vezes, casos muito graves e

que precisava lidar com a crise naquele momento e aí a gente nunca conseguiu

CAPS a gente tinha que chamar SAMU.

(outro participante)

Então, não posso ficar tradicionalmente em sessões abertas ad infinitum. Então eu

vou pensar o quê? Eu vou aqui na atenção primária e marcar três encontros, no

primeiro eu faço uma avaliação, que demanda ela traz? É grave? É moderada? Se for

eu vou ter que encaminhar porque não é pra mim sustentar aqui, mas eu vou

acompanhando e encaminho pro CAPS e vejo a forma, encaminho pro apoio

matricial que é a porta de entrada pra ir pro CAPS.

É preciso, então, situar o trabalho na perspectiva de uma série de prerrogativas de

atuação em equipe e em rede, já discutidas em capítulo anterior. O lugar do psicólogo

perpassa o campo da saúde mental e de suas possibilidades de intervenção profissional.

Percebemos que a configuração das relações no campo da saúde mental impõe um modo de

agir à APS. Um conjunto de dilemas profissionais, que influenciam diretamente no processo

de construção das demandas para o psicólogo, decorre da capacidade de outros níveis de

atenção e equipamentos de atenção à saúde em resolver os problemas de saúde da população.

142

Tal capacidade de resolução irá delimitar a função a ser desenvolvida pelos profissionais

envolvidos com a saúde mental nos territórios da APS.

6.1 Necessidade de tradução e transformação das demandas

Um elemento de destaque, nas discussões que realizamos junto aos psicólogos sobre

o processo de construção das demandas para a prática do psicólogo no CSF, é a necessidade,

apontada por eles, de se fazer sempre a tradução da demanda. Tal tradução é percebida como

uma espécie de imperativo para a organização das práticas psicológicas na APS, um modo

estratégico de agir melhor diante de circunstâncias colocadas pelo contexto de atuação. A

necessidade de tradução da demanda e de sua posterior e progressiva transformação aparecem

como uma estratégia de luta pela autonomia no trabalho no campo da APS. A forma como as

demandas chegam e como o profissional se coloca diante delas tornam-se importantes para a

construção de estratégias de demarcação de espaço e recriação de horizontes definidores dos

âmbitos de atuação profissional. Entram em jogo as concepções sobre a prática psicológica, a

implicação dos profissionais com os problemas de saúde identificados, a vinculação dos

diversos profissionais a determinadas correntes teóricas, o poder de barganha dos agentes em

questão e as possibilidades de colaboração e luta inter e intraprofissional. A concepção que se

tem de Psicologia e o lugar que os diversos agentes pretendem que ela ocupe contribuem para

o direcionamento da demanda.

Um dos caminhos por onde as demandas são direcionadas ou redirecionadas para a

psicologia é através de encaminhamentos de casos. Muitas vezes, como exposto nas

entrevistas, esses encaminhamentos refletem um modo típico de falta de compromisso em que

um profissional não quer se implicar com os problemas de saúde do usuário. Assim, a

necessidade de traduzir uma demanda começa:

Então, tem muita coisa que o pessoal empurra mesmo pra não ter que lidar. Mesmo

o que não é problema vira, isso aí já pode ser um problema, aí já vira demanda pra

psicologia. E a gente tem que ter cuidado pra não simplesmente aceitar a demanda,

ter aquela tradução que eu falei, tentar olhar um pouco mais criticamente pra “que

pedido é esse que tão fazendo?”.

Fazer a leitura crítica dos pedidos que chegam cotidianamente é um dos requisitos

fundamentais para o trabalho dos psicólogos na ESF, é uma das dimensões do processo de

tradução. A conversa, nas entrevistas, sobre as demandas geralmente apontava, em menor ou

maior grau, pra certa incoerência ou inadequação percebida nas demandas destinadas à

profissão na ESF por usuários e especialmente profissionais. Como vimos brevemente no

143

capítulo anterior, a psicologia é bastante solicitada nos CSF. Essa demanda era percebida, às

vezes, como reconhecimento e valorização da profissão naquele contexto de prática. Mas esse

reconhecimento tinha um preço caro a pagar, o preço de arriscar imobilizar-se num fazer

percebido, pelo profissional psicólogo, como inadequado e ineficiente frente às demandas que

chegam. Era preciso permanentemente situar a profissão no novo contexto, situar o fazer

diante dos problemas de saúde que se apresentavam, mas os encaminhamentos realizavam-se

em torno de visões equivocadas da psicologia. Era preciso dizer o que é psicologia e o que ela

faz ali. Os outros, com seus pedidos e expectativas, já impunham visões. As experiências aqui

analisadas mostraram a importância de reconstruir cotidianamente novas visões da prática

psicológica.

Percebemos uma realidade de trabalho marcada por: excesso de demanda de

trabalho, variedade de casos, problemas profundos decorrentes da base social na determinação

dos problemas de saúde identificados, enormes necessidades de saúde para as quais não

existiam serviços destinados. As relações do profissional psicólogo com as equipes

multiprofissionais do CSF e usuários, são permeadas por certa tensão gerada por uma

necessidade de reconhecimento, que se depara com uma representação equivocada da prática

psicológica. A necessidade de tradução da demanda, como colocada nas entrevistas, não

reduz-se somente a uma capacidade de dialogar com o outro, no intuito de melhor escutá-lo.

Mas, sobretudo, de ser capaz de negociar significados, de convencer o outro a enxergar um

novo ponto, uma nova questão. Decorre assim, que a tradução da demanda é, sobremaneira,

uma estratégia de sobrevivência e de luta no campo das práticas, permeado por certa escassez

de oportunidades, que a posição ocupada pelo agente proporciona. É parte de uma luta pelo

poder de atuar de modo mais autônomo, pelo poder de nomear o real.

Uma profissão, dentro de uma leitura bourdieusiana da realidade social, pode ser

interpretada dentro das lutas simbólicas pela produção do conhecimento ou visões de mundo

legítimas. Sendo equivalente a um título outorgado pelo Estado, que oficializa determinados

agentes ou grupos de agentes como legítimos, a profissão, constituída e reconhecida

socialmente envolve-se permanentemente nas lutas pela “produção do senso comum ou, mais

precisamente, pelo monopólio da nomeação legítima como imposição oficial – isto é,

explícita e pública - da visão legítima do mundo social [...]” (BOURDIEU, 2012, p.146). É

preciso, dentro dessa perspectiva, retomar o entendimento sobre a natureza desse tipo

particular de poder:

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e

fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação

144

sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o

equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito

específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado

como arbitrário. (BOURDIEU, 2012, p.14).

Este tipo de poder se define nas relações entre os que exercem o poder e os que lhe

estão sujeitos, no contexto do campo específico em que a relação se constrói, onde se produz

e reproduz as crenças sobre o mundo social. “O que faz o poder das palavras e das palavras de

ordem, poder de manter a ordem ou de subverter, é a crença na legitimidade das palavras e

daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras.”

(BOURDIEU, 2012, p.15). Interessa aqui, a posição do agente e seu capital simbólico

acumulado em lutas anteriores. No nosso entendimento, a tradução da demanda para as

práticas profissionais da Psicologia deve ser interpretada como uma estratégia dentro do

contexto das lutas concorrenciais que perpassam a construção das demandas em saúde na

APS. Desse modo, traduzir uma demanda é parte de um imperativo de se impor, de negociar

uma inovação, de escapar do risco de ser “aprisionado pela demanda” e impor um modo de

ver as coisas. A tradução da demanda reflete diretamente no modo como novos sentidos vão

sendo atrelados às práticas, podendo gerar novas demandas de trabalho.

Dependendo da forma como a gente enxerga alguns processos a gente acaba criando

algum tipo de demanda e não atendendo a outras que talvez sejam até mais pulsantes

no território que a gente trabalha.

(outro participante)

Eu fico pensando assim, isso é uma coisa muito perigosa, quando alguém demanda

um atendimento da gente, demanda uma escuta, uma atenção da gente no caso.

Porque assim, você recebe a demanda, mas você tem sempre meio que traduzir essa

demanda dentro do que faz sentido pra você e pra aquela pessoa.

No texto “A identidade e a representação. Elementos para uma reflexão sobre a ideia

de região”, Bourdieu (2012) aborda a problema das lutas simbólicas pelo poder de definir e

classificar a realidade, especialmente no que diz respeito à construção da identidade social.

Assim, o autor expõe um pouco de suas ideias sobre sua economia das trocas simbólicas, que

envolve as estratégias de dominação simbólicas de construção do mundo social. Nessa

economia, as lutas envolvem, dentre outras questões:

[...] a conservação ou a transformação das leis de formação dos preços materiais ou

simbólicos ligados às manifestações simbólicas (objetivas ou intencionais) da

identidade social. Nesta luta pelos critérios de avaliação legítima, os agentes

empenham interesses poderosos, vitais por vezes, na medida em que é o valor da

pessoa enquanto reduzida socialmente à sua identidade social que está em jogo.

(BOURDIEU, 2012, p.124).

145

A busca pela autonomia, nessa perspectiva bourdieusiana, consiste no esforço de

poder “definir os princípios de definição do mundo social em conformidade com os seus

próprios interesses” (BOURDIEU, 2012, p.125). O que remete a se apropriar de vantagens

simbólicas atreladas à posse de uma identidade publicamente e legalmente afirmada e

reconhecida, bem como de libertar-se do julgo e avaliação sob critérios desfavoráveis. É nesse

processo de luta para impor uma visão de mundo e, mais especificamente do que é a prática

da psicologia, que o profissional é chamado para intervir em problemas de saúde, os quais não

reconhece que deve intervir, especialmente para defender uma visão sobre as demandas mais

pertinente aos seus interesses.

Dentre os princípios doutrinários do SUS e princípios ordenadores da APS, a

integralidade merece aqui especial atenção. Esta é colocada como uma das principais

“bandeiras” do movimento sanitário brasileiro, que busca demarcar politicamente um

horizonte desejável para o sistema de saúde e os serviços desenvolvidos junto à população,

marcando as práticas pelo signo da atenção ampla e de qualidade às diversas demandas e

profundas necessidades de saúde da população. No que diz respeito às práticas de saúde,

Matos (2004) problematiza os diversos significados colocados na interpretação da

integralidade na prática. Destacando ela como uma apreensão ampla das necessidades de

saúde, o autor destaca ser fundamental o desenvolvimento da habilidade de reconhecer a

adequação entre os serviços ofertados aos contextos específicos, onde se dão os encontros

entre profissionais de saúde e usuários. Para ele, a defesa da integralidade no SUS é a defesa

de uma adequação e sintonia dos serviços e ações de saúde com as realidades específicos de

cada encontro entre os sujeitos. Nesse contexto, Matos defende a importância de articular

ações de assistência às demandas espontâneas, que chegam aos serviços, com ações de

prevenção capazes de ampliar a integralidade da atenção e cuidado em saúde no contexto

onde se situam. Isso remete à capacidade dos profissionais de responder adequadamente aos

sofrimentos manifestos de forma a articular ações curativas e preventivas, o que remete à

capacidade de estabelecimento de diálogos permanentes entre profissionais de saúde e

usuários.

Discutindo as demandas em saúde, Franco e Merhy (2005) abordam a dimensão

imaginária da produção das demandas. Partindo do pressuposto de que há uma construção

social das demandas, destacam que a relação entre oferta e demanda é de interdependência e

constitui-se como um fenômeno que pode gerar certos constrangimentos na relação usuário-

profisssionais/ usuário-serviços de saúde aumentando a tensão nos processos de produção do

cuidado. Em tais situações estamos lidando com um processo social de produção

146

intersubjetiva de demandas nos serviços de saúde, que se efetivam na relação entre oferta de

serviços e a percepção desta por parte dos usuários (FRANCO; MERHY). Os autores partem

da ideia de que a demanda se produz a partir da oferta e do processo histórico construído na

relação entre as instituições e a sociedade. Nessa perspectiva, “ninguém demanda aquilo que

sabe que não pode ser obtido no serviço de saúde” (FRANCO; MERHY, 2005, p.2). Outro

aspecto considerado é que a demanda por um serviço se dá, geralmente, pela não satisfação de

necessidades de saúde por outros serviços ou dispositivos de cuidado. Muitas vezes, se produz

certa “fetichização” de alguns procedimentos, como determinados exames ou mesmo um

determinado tipo de atendimento, pelo fato do usuário associar a satisfação de necessidades à

realização de tais procedimentos, muitas vezes, desconsiderando a complexa linha de

cuidados que deve se desenvolver para a efetiva satisfação das necessidades. A associação

entre o procedimento e a satisfação de necessidades de saúde é entendida como uma

construção imaginária. Aqui, ou ocorre o deslocamento de sentido, onde os símbolos

existentes são investidos de outras significações, ou mesmo uma invenção absoluta. Nos dois

casos, o imaginário pretende colocar-se no lugar do real, havendo certa separação entre estes,

havendo o tensionamento para que o imaginado passe do plano virtual ao real. Seguindo esse

raciocínio, os autores estabelecem que a construção imaginária de um procedimento leva à

produção imaginária da demanda:

Ao demandar o procedimento ele (o usuário)8 está acessando em nível imaginário,

aquele universo simbólico que dá significado amplo ao procedimento, atribuindo-lhe

uma potencialidade que ele não tem, que é a de produzir o cuidado por si mesmo.

(FRANCO; MERHY, 2005, p.5).

Tais processos de construção imaginária de procedimentos, abordagens e técnicas

são pertinentes aos modelos técnico-assistenciais de saúde existentes e postos em prática na

oferta de serviços de saúde e permeiam o universo relacional nos processos de trabalho em

saúde. Assim, há uma produção imaginária da oferta e da demanda, onde é preciso reconhecer

o processo histórico-social que impacta no modo como usuários e profissionais percebem o

serviço de saúde, tendendo a reproduzir determinados modos de oferta e demanda por

procedimentos específicos. É diante do processo de produção imaginária das demandas

psicológicas que, alguns participantes, colocam a necessidade de tradução das demandas

como uma recusa em agir em situações em que percebem o risco de que sua ação possa

perpetuar um problema de saúde ou obscurecer a natureza do mesmo. Ou seja, em

8 Grifo nosso.

147

determinados contextos, na percepção dos participantes, a intervenção psicológica pode servir

para obscurecem a reflexão sobre os determinantes sociais das demandas e conduzir a um

fazer limitado no que tange ao atendimento das necessidades de saúde da população. Nesse

contexto, a tradução remete a uma leitura abrangente dos determinantes e das estratégias de

atuação, e uma crítica ao psicologismo na produção das demandas.

A gente começa atender individualmente, todo caso que chega de criança com

problema na escola. Meu irmão, daqui a pouco todas as escolas ali próximo tão

sabendo disso e tão mandando gente. E aí tão mandando os casos mais graves e

depois os menos graves, depois aqueles que podem chegar a ser grave um dia. Então

assim, tudo vira psicologizado, todo mundo mesmo.

(outro participante)

A gente começa a perceber essas demandas “ah fulano tem transtorno”, “ah fulano é

estranho”, “ah fulano tem algum problema”, “atenda”. E aí quando a gente começa a

investigar o que realmente está por trás dessas queixas, desses sintomas ou desses

diagnósticos, a gente começa a perceber que tem situações sociais por trás.

(outro participante)

É uma situação de bolsões da miséria e que você vai pra oferecer algo diferente. Mas

são pessoas que já resistem à morte do dia a dia mesmo, tão ali já resistindo a tudo.

E aí o que você vai dizer pra elas?

O Nordeste do Brasil apresenta-se como uma região marcada historicamente pela

exploração da maioria da população, vivendo em condições socioeconômicas precárias e de

exclusão social, que impõe a necessidade de revisões éticas e epistemológicas nos referenciais

da psicologia para construir uma prática contextualizada e posicionada a favor das classes

populares (NEPOMUCENO, 2010). Nessa perspectiva, entendemos que os contextos de APS

estudados aqui se apresentam como espaços locais em que as desigualdades regionais

brasileiras e seus precários índices sociais e econômicos se expressam de modo intensificado

na determinação dos processos de saúde-doença-cuidado. Tais problemáticas sociais podem

também ser relacionadas, quando da contextualização macroeconômica global, com a

participação subalterna dos países latinoamericanos no capitalismo contemporâneo. As

condições de vida das populações latinoamericanas e um amplo escopo de problemas

políticos, culturais, éticos e identitários ligados a processos de dominação social no

continente, colocam questões permanentes para a construção de uma psicologia mais

autêntica e implicada socialmente com as questões locais e as lutas populares (GÓIS, 2008;

MARTÍN-BARÓ, 1998).

A psicologização de problemas sociais remete ao problema do reducionismo dos

problemas sociais a variáveis psíquicas individuais, incorrendo na transformação ideológica

de questões sociais em questões psicológicas (MARTÍN-BARÓ, 1998). A psicologização de

problemas sociais, acaba por reduzir os problemas de saúde a problemas psíquicos, o que

148

pode refletir-se na culpabilização da vítima e numa atuação psicológica pífia no plano

sociocomunitário, plano esse bastante relevante na ESF. Assim, a leitura da base social dos

casos, da determinação social do sofrimento psicológico e dos interesses e relações sociais,

que estão por trás das demandas, é um imperativo da tradução necessária, que o profissional

precisa realizar para desenvolver um trabalho mais adequado, que faça sentido dentro de uma

concepção de Psicologia pertinente ao que se tem e o que se quer conseguir no contexto da

APS.

Então, infelizmente chega pra gente quase sempre o adoecimento psíquico. Agora,

eu acho que o grande lance é a gente olhar para além do adoecimento psíquico.

Chega pra gente também os pepinos das instituições, chega pra gente aquilo que

ninguém consegue resolver no âmbito institucional [...]

(outro participante)

Às vezes, a demanda dele [falando de um usuário] é ele não conseguir ser acolhido,

ele não ser cuidado por aquele serviço. A questão dele é com o serviço e isso gerou

outras questões, demandas.

(outro participante)

E o próprio serviço, assim, como o serviço ele gera demandas, assim dele não

acolher, dele não cuidar, daquela pessoa não ser olhada integralmente. E isso vai

gerando outras demandas, que já estavam ali, mas que aparecem pelo próprio

serviço.

A densidade social e complexidade das demandas ganham um peso diferenciado, na

percepção dos participantes da pesquisa, dos limites do seu fazer frente ao contingente de

demandas decorrentes da pobreza e miséria vivida nos territórios da APS. A situação parece

agravada pela percepção da ineficiência dos serviços ofertados para lidar com as necessidades

de saúde da população assistida, limitação decorrente de um olhar e um fazer ainda longe de

princípios como integralidade e humanização, que constituem como aglutinadores de

interesses atrelados à melhoria da atenção à saúde no SUS. A tradução da demanda, aqui,

significa reconhecer os limites da prática profissional. Ela pode significar um passo inicial na

luta pelo fortalecimento de ações voltadas para o enfrentamento da pobreza e da desigualdade

social e pela melhoria da capacidade dos serviços de saúde de responder aos desafios sociais.

6.2 Demandas para a clínica nos Centros de Saúde da Família

Como já citado anteriormente, outro elemento significativo, quando da discussão das

demandas e da necessidade de sua tradução, refere-se à grande e, muitas vezes, incômoda

expectativa em torno do atendimento clínico individual do psicólogo. Motivo de potenciais

conflitos e desentendimentos na estruturação da agenda de trabalho do profissional, essa

149

expectativa social em torno dos procedimentos clínicos da psicologia fora marcante para

muitos dos entrevistados. Há uma clara polêmica no que diz respeito à clínica psicológica na

APS. Muitas questões de reconhecimento e valorização da profissão, bem como questões

ligadas a como os participantes concebem a atuação psicológica nos CSF, envolvem o tema

polêmico da clínica ou da psicoterapia, especialmente quando se refere ao atendimento

individual de longa duração. Dentre as questões colocadas, ficou evidente que há uma grande

demanda para o atendimento clínico e individual e que isso se tornou um dos motivos para a

necessidade de tradução e transformação das demandas. Um dos motivos principais dessa

tradução da demanda clínica é a impossibilidade de dar conta das demandas existentes,

partindo somente do modelo de prática clínica. Foi necessário, então, negociar um novo modo

de agir, era preciso evidenciar outras facetas do repertório prático da Psicologia.

Pesquisador- Como é que foi esse contato com esse campo da APS?

Foi meio tumultuado. Assim, porque as pessoas tinham uma expectativa em mim, do

que eu ia fazer, do que eu ia fazer só e de que eu ia cuidar, de que eu ia atender e

pronto, acabou a história.

Pesquisador - Quer dizer, então, que a expectativa pra psicologia é atendimento

clínico?

Sim. E aí eu tinha outros desejos, outros anseios e outras paixões que eu queria

fazer. Psicologia é “saúde, clínica e psicoterapia”, num é? Acho que era a imagem

das pessoas. E eu dizia assim: “não, eu vou pros grupos, eu quero ir pras reuniões de

Conselho [Local de Saúde], de Fórum Comunitário, eu quero conhecer outras

práticas de saúde que o pessoal tem, eu quero atender com outros profissionais”.

O imperativo do fazer clínico individual, com uma formação mais voltada para a

psicoterapia e o conhecimento do trato com as psicopatologias, de preferência que dialogue

com os referenciais da Psiquiatria, fora apresentada como uma necessidade imperiosa,

percebida por alguns participantes, para as quais tinham que se adaptar, ora por força de uma

demanda enorme de sofrimento percebida, ora por uma concepção, muitas vezes, equivocada

de atuação bastante estimulada no CSF e imposta direta e indiretamente no cotidiano das

práticas. Era preciso, por um lado, reconhecer os problemas apresentados como dignos de

uma intervenção, mas por outro lado, era preciso negociar um novo modo de ver o fazer

psicológico, o que remetia a negociar seu valor diante das expectativas anteriores.

Costumeiramente, o psicólogo é identificado como o profissional da saúde mental,

ora como o temível “profissional que visita os doidinhos da rua” – que ninguém quer precisar

um dia em sua família. Ora como o prestigiado profissional que pode ajudar a resolver os

diversos e multifacetados problemas subjetivos vividos no cotidiano. Pode-se até afirmar que

o psicólogo tem ampliado seu leque de atuações e público assistido, pela inserção cada vez

mais ampliada da profissão na sociedade (MACEDO; DIMENSTEIN, 2011; 2012). Nas

150

entrevistas, alguns participantes relataram a existência de certo fetiche em torno do

atendimento psicológico. Esse “fetiche” pelo atendimento clínico individual implicou

diretamente no modo como os psicólogos construíram seu espaço de atuação, ora negando a

clínica, ora afirmando-a. Essa modalidade prática, esse conhecimento técnico-científico, os

saberes tácitos da clínica psicológica tornaram-se, na experiência dos participantes, moeda de

negociação e luta pelo reconhecimento e valorização num CSF. Negar ou afirmar a clínica,

ampliá-la e também reduzi-la fizeram parte das estratégias profissionais visando barganhar

mais espaços de atuação na política de saúde.

Porque assim, a gente já chegou e logo fui muito solicitado. Não sei, eu acho que

tem muito já do que as pessoas pensam do que é um psicólogo. Assim, da imagem

que o psicólogo, de uma forma geral, [...] “de ajudar”, no sofrimento mental, que a

pessoa tem um estresse, na ansiedade, na depressão. E eu acho que de uma forma

bem do senso comum mesmo. [...] Assim, eu acho que as pessoas, a maioria dos

profissionais eles [...] não tem suporte pra trabalhar com o sofrimento, pra ficar ali

junto quando a pessoa que ta chorando. E ta ali junto quando a pessoa, ta muito ruim

mesmo emocionalmente, entendeu? E aí eu acho que as pessoas já veem no

psicólogo isso, tipo assim, esse suporte que o psicólogo pode dar.

É notável na análise das demandas que chegam aos psicólogos, a necessidade do

profissional, do ponto de vista de sua atuação, acolher e trabalhar efetivamente no trato com

as demandas de sofrimento apontadas. Na fala acima podemos refletir sobre um dos objetos

da prática profissional do psicólogo na APS, que remete a desenvolver um olhar mais apurado

para o sofrimento humano nos serviços de saúde. Nesse processo de trabalho, as atividades

clínicas são bastante valorizadas no CSF, entendidas pela maioria de usuários e profissionais.

Os psicólogos sofrem, assim, certa convocação nos processos de disputa interprofissional e

tramas intersubjetivos dentro do CSF, para definir o que é um fazer legítimo de psicólogo,

tendo em vistas esse lugar vazio deixado pelas demais profissões de saúde e pelo modelo

biomédico, essa fragilidade no acompanhamento de algumas dimensões mal acolhidas do

sofrimento humano. Como as experiências dos participantes nos revelam, o agir clínico

demarca modos de atuar bastante potentes de reconhecimento e valorização para a psicologia,

já que remete ao atendimento de necessidades de saúde pertinentes à ESF e, ainda por cima,

negocia com o imaginário social da profissão. A clínica aparece como um elemento central na

definição do agir psicológico na APS, parte do processo de produção imaginária das

demandas, que muitas vezes reflete-se na priorização excessiva em um procedimento

(FRANCO; MERHY, 2005). A discussão da clínica psicológica, entre os participantes da

pesquisa, expressa tomadas de posição contraditórias e antagônicas dentro da APS e do

conjunto das abordagens em Psicologia.

151

Na trajetória de atuação profissional vivida pelos psicólogos na ESF, a identificação,

recorrente em algumas das entrevistas, de uma demanda específica de transtornos mentais

para a Psicologia da APS, reconhecidos como transtornos leves e moderados, revela a

incorporação de uma lógica de trabalho em equipe, que concebe um lugar relevante para a

profissão dentro da rede de atenção à saúde mental dos municípios, onde a organização e

desenvolvimento das práticas psicológicas vão ter de adaptar-se. Nesse contexto das práticas

de saúde mental, entendemos que o modelo de psicoterapia privado não pode ser reproduzido

na ESF, sob pena de incorrer em erros políticos e técnicos. O modelo privatista de

psicoterapia de longa duração deve ser abordado de modo crítico, em vistas de construir novas

propostas de abordagem clínica. Em cima dessa perspectiva de mudança, no cotidiano das

práticas, os agentes disputam poder para definir o que seria ou não mais adequado, no que diz

respeito às práticas clínicas da psicologia na APS. A estrutura do campo também influencia

diretamente na conformação das práticas. No contexto da saúde mental, o fazer psicológico

pode sofrer influência direta e indireta das redes de serviço existentes dentro e fora da ESF.

Uma lacuna deixada pelos CAPS, por exemplo, pode repercutir na definição da agenda de

trabalho do psicólogo inserido na APS. Nesse trabalho interprofissional e interinstitucional, o

sucesso do profissional em conseguir instaurar processos de trabalho compartilhado e que

superem a noção do encaminhamento desresponsabilizado, é um dos desafios do psicólogo.

Assim, a demanda significativa para que o trabalho do psicólogo seja realizado na perspectiva

do atendimento individual precisa der problematizada, de modo a evidenciar os interesses que

estão em jogo na definição do fazer psicológico, tomando, como especial referência, as

necessidades de saúde da população e a busca da integralidade, numa perspectiva micro e

macropolítica.

Cecílio (2006) nos ajuda a compreender teoricamente o conceito de necessidade de

saúde. Para o autor, o conceito deve ser concebido a partir de uma taxonomia, que é composta

por quatro conjuntos de dimensões: necessidades decorrentes das condições de vida, o que

implica diretamente na reflexão sobre os determinantes sociais em saúde e da necessidade de

criar políticas públicas intersetoriais e saudáveis; necessidades decorrentes do acesso às

tecnologias de saúde capazes de prolongar e melhorar a vida, onde o direito à saúde liga-se

diretamente a ideia do acesso aos serviços de saúde, de diferentes níveis de complexidade;

necessidades de saúde ligadas à criação de vínculos afetivos e efetivos entre usuários e

profissionais dos serviços de saúde, que colocam em questão os canais de diálogo e

cooperação entre profissionais e usuários e entre os serviços e comunidades ou público

assistido; e as necessidades de saúde decorrentes do desenvolvimento da autonomia dos

152

sujeitos, que associam, dentre outras questões, a ideia do cuidado e autocuidado (CECÍLIO,

2006). Na busca pela construção da integralidade em saúde, o autor cita duas dimensões em

que acredita que a integralidade precisa ser trabalhada. Uma primeira diz respeito ao que ele

denomina de integralidade focalizada, que seria a integralidade como resultante da

confluência de diferentes saberes em um espaço real e singular, bem delimitado, dos serviços

de saúde, onde deveria haver a melhor escuta possível das necessidades de saúde. Nesse caso,

ocorre a tradução da demanda. Essa seria o pedido objetivo do usuário que deveria ser

compreendido para se encontrar as necessidades que nem sempre são tão objetivas. Essa

integralidade se daria no contexto da micropolítica dos serviços. Já a outra dimensão desse

princípio colocada pelo autor seria a da integralidade ampliada, vista como fruto da

articulação dos diversos serviços de saúde em uma rede complexa formada por vários agentes

e instituições que, em muitos casos, transcendem o setor saúde. Nessa dimensão, a

integralidade é compreendida no plano da macropolítica.

Assim, diferenciam-se as necessidades de saúde das demandas em saúde, que já

implicam em processos sociais distintos. Em nosso caso, muitos dos relatos dos participantes,

apontam para uma demanda para a clínica psicológica inadequada frente a visão que os

mesmos tem da psicologia na ESF. Essa demanda foi percebida como um obstáculo para

poder experimentar um fazer psicológico mais ampliado, para tornar legítima a oferta de

serviços mais variados, no que diz respeito ao papel profissional a ser desempenhado no CSF

e seus territórios. A demanda clínica colocou-se como um desafio para o reconhecimento de

outras áreas de atuação, de outras abordagens, de outros referenciais teórico-metodológicos e

técnicos da Psicologia.

No geral, os participantes de nosso estudo, tinham que se adaptar criativamente à forte

demanda de atendimentos clínicos. A análise das práticas psicológicas revela, em muitos

casos, o movimento de buscar a transformação da demanda, de sua recriação pelo

desenvolvimento de práticas diferenciadas, pela imposição de novos olhares para a prática

psicológica, pela afirmação da autonomia em ditar prioridades e modalidades de fazer

Psicologia na APS.

A gente tem muita oportunidade [de desenvolver uma prática diferente], mas, às

vezes, a forma como a gente se compromete com outras atividades, que são tidas

como prioritárias, acaba nos sobrecarregando. E a gente não tem tempo de se dedicar

a essas atividades e acaba não sendo prioridade pra nós.

(outro participante)

A gente precisa ter um trabalho que não é transformar uma concepção das outras

pessoas da noite pro dia. E nem tão pouco alimentá-la pro resto da vida. Mas a gente

precisa de um jeito de poder transformar o que já existe, que são os atendimentos

153

individuais, essa forma de poder atender, seja através de uma visita, seja através do

atendimento individual e poder utilizar também o nosso momento pra poder se

organizar dentro da comunidade.

(outro participante)

Então, o cara começa a ver algo acontecendo ali a partir daquela proposta. Aí

começa a valorizar mais e aí isso vale tanto pros atendimentos quanto também pra

outras atividades que a gente faz de, tipo assim, de grupos que às vezes o médico

participava e, às vezes não participava, mas ele começava a ver que “ah aquele cara

que era só remédio agora posso encaminhar direto pra esse grupo”. Então assim,

“essa profissão tem um sentido de ta aqui”.

A participação ativa na construção das demandas, a partir da oferta em novos

serviços questionadores de visões estereotipadas da profissão, é um dos avanços da Psicologia

em sua inserção na APS do SUS. Representa um desafio ao desenvolvimento da autonomia

profissional. Aqui, encontramos uma ambivalência do sentido da clínica psicológica para o

psicólogo na ESF. Por um lado, representa um saber específico, uma competência técnica

dominada pela profissão - que é um dos aspectos fundamentais no processo de

profissionalização (BOSI, 1996; DUBAR, 2005; MACHADO, 1995), representando um signo

de poder e reconhecimento. Por outro lado, a demanda clínica é percebida como parte de um

processo produção imaginária das práticas psicológicas, pautadas numa visão entendida como

restrita. Nesse contexto, as lutas simbólicas da profissão, na busca pela autonomia

profissional implicam na reconstrução de sua identidade, a partir da implementação de novas

práticas em saúde, capazes de também reconstruir o imaginário social da profissão. Essa

conquista de novos espaços de prática, como entendemos, deve ser buscada não na negação

do que surge como demanda, mas pela ampliação do olhar dos diversos agentes envolvidos na

APS, o que inclui necessariamente os próprios psicólogos. Nesse processo, pudemos ver que

novos sentidos das práticas psicológicas começam a ser percebidos como legítimos e

relevantes dentro de escopo de práticas do CSF.

As pessoas começaram a perceber que existem outros processos de cuidados que

podem ser instaurados e que não seja só nesse âmbito fechado da clínica.

(outro participante)

Foram feitas outras coisas que, no começou, causaram estranhamento e as pessoas

não entendiam o porque. Por exemplo, o psicólogo, eu ao invés de estar ali e atender

não sei quantas pessoas, eu ia pra comunidade fazer outra coisa e aí as pessoas não

compreendiam e realmente era uma estranhamento disso. Mas o próprio convite pra

ta fazendo essas outras coisas depois me fez ver que os profissionais estavam

começando a reconhecer o papel do psicólogo pra além desse “fetiche” do psicólogo

clínico.

Na experiência de alguns dos entrevistados, outras demandas passaram a surgir e a

contribuir para ampliar as visões sobre o fazer da Psicologia na ESF (e mesmo sobre a própria

154

ESF), o que fora avaliado positivamente por estes participantes da pesquisa. O modo como as

demandas chegavam também fora transformado, gerando processos de implicação e novas

agendas de trabalho.

E uma demanda interessante que tem surgido agora, que é convocar a gente pra

construção de processos comunitários. O pessoal chamando a gente pra compor as

redes comunitárias e entendendo que a psicologia pode contribuir com isso.

(outro participante)

O agente de saúde tinha a ideia de fazer alguma coisa que mexesse com a operação

de serviço, eu vi que ele me procurava muito. E eu comecei a perceber isso com o

tempo. Assim, ele ta me reconhecendo com uma pessoa que pode ajudar ele a pensar

um grupo, poder ajudar ele a pensar a Roda de Gestão, que pode ajudar ele a pensar

o prontuário. Assim e aí eu comecei a me reconhecer quando os outros começaram a

me reconhecer muito com isso assim e foi uma surpresa pra mim ser reconhecida

por outros profissionais com esse papel também.

(outro participante)

Eu posso dizer assim que, no início (o encaminhamento), era pra se livrar, mas teve

um momento que eu senti algumas equipes com necessidade de compartilhar,

queriam mesmo fazer alguma coisa diferente no seu território e que desse até prazer

de trabalhar porque tinha isso.

A construção das demandas em saúde aponta para a relação direta entre oferta e

demanda de serviços de saúde e para a necessidade de acolhimento e tradução do que chega

para esse profissional. Na experiência de alguns participantes da pesquisa, fora necessário

impor-se na demarcação de uma visão mais ampliada de Psicologia, que supere a visão

atrelada a um fazer ambulatorial e entendido como “psicologizante”. Outros participantes,

mais vinculados às abordagens clínicas, e com trajetórias anteriores e paralelas de trabalhos

com a clínica de consultório particular, adaptaram-se mais facilmente às demandas colocadas

pelos serviços e desenvolveram uma agenda de trabalho bastante marcada pelos atendimentos

individuais. Estes tiveram que lidar, no entanto, com as críticas à clínica colocadas pelo

campo científico e pelos outros agentes, que reinvidicaram um lugar diferenciado para o

psicólogo, bem como com a enorme demanda para atendimento, percebida como

desproporcional aos serviços que podia ofertar.

Aí, mesmo os atendimentos também eu fui experimentando uma nova perspectiva de

atendimento, não é mais aquele atendimento tão criticado tradicional de clínica com

aquelas horas e tudo. Mas eu fui pensando uma nova forma de contribuir com a

bagagem da psicologia clínica na realidade da atenção básica. E aí foi muito de ir

tateando ali, de ir experimentando e de ir construindo mesmo.

Entendemos que, em parte, a expectativa social para o atendimento clínico na APS

do SUS revela uma reconhecia importância da clínica psicológica para intervir

terapeuticamente junto a muitas necessidades de saúde da população. A população e os

profissionais esperam desse profissional o acolhimento de um conjunto de problemas de

155

saúde presentes no cotidiano dos serviços que, supostamente, o psicólogo pode proporcionar

um retorno significativo para “atender” a população, como um modo apropriado de agir

diante das demandas múltiplas já apresentadas. O “atendimento clínico” é, assim, colocado

como questão polêmica, quando os psicólogos inseridos na ESF veem-se diante de uma

multiplicidade de demandas e prerrogativas que pressionam para desenhar um modo de fazer

psicologia complexo e contraditório. Algumas questões se colocaram no decorrer das

entrevistas: Será o atendimento clínico individual possível e necessário na ESF? Como essa

questão é analisada pelos psicólogos inseridos nos Centro de Saúde da Família?

Reconhecemos a psicoterapia como elemento possível de produção de cuidado e

como elemento técnico relevante no acolhimento aos diversos modos de sofrimento existentes

na ESF. A discussão desse elemento expressa posicionamentos de defesa e crítica da clínica

na APS, como parte do processo de lutas para afirmar um fazer legítimo e apropriado para o

contexto dos CSF. Observemos o diálogo abaixo:

[Perguntado se a psicoterapia teria espaço na APS, o participante desenvolve sua

resposta:]

É porque eu acho que ela é muito perigosa, a psicoterapia de longo prazo no sentido

de você ficar na sua sala e não ir para o território. E o que eu acho que é o principal

da atenção primária é essa clínica no território.[...]o acompanhamento ele já

acontece, não ocorre a psicoterapia, o acompanhamento individual de longa duração

já acontece porque, por exemplo, uma pessoa

Pesquisador:Mas, sem o espaço psicoterápico?

R:Sem o espaço psicoterápico, sem a clínica.

Pesquisador:Sem a escuta no setting terapêutico?

R:Sem aquele setting. Por exemplo, acontece nas visitas, acontece quem está no

meio da rua, acontece porque a gente conversa com agente comunitário, conversa

né. Então, principalmente o acompanhamento, ele ocorre nesses espaços do

território. E por isso que eu acho que é um acompanhamento longitudinal, não é a

psicoterapia assim no restrito do termo da psicoterapia. Mas é outro

acompanhamento, eu acho que é um acompanhamento clínico individual e de outra

forma.

[...]

Pesquisador:Agora, a psicoterapia clássica ela não teria espaço nesse sentido?

R:Não, assim, eu acho que ela não tem logística do jeito que a gente está. Não tem

condições [...]

Buscamos conduzir a discussão se há ou não a demanda para a psicoterapia, na

tentativa de evidenciar necessidades de saúde possivelmente negadas no processo de luta para

organizar a agenda de trabalho de psicólogos na APS. Nesse contexto, observamos restrições

à clínica individual e de longa duração devido a falta de condições “logísticas” para o

desenvolvimento dessa prática.

Pesquisador: Mas a demanda existe, tu acha?

Não sei, porque assim, o que eu acho é que, realmente, algumas pessoas tem sim

essa demanda da psicoterapia, de trabalhar questões, sentar lá e falar de questões e

156

de trabalhar essas questões [...] eu acho que algumas pessoas precisariam sim,

muitas pessoas tem demanda, tem vontade.

O desenvolvimento de atendimentos individuais aparece como uma questão delicada

dentro do campo, já que a abertura da agenda do profissional pode representar o

aprisionamento do fazer apenas na perspectiva clínica de agir, prejudicando o

desenvolvimento de outras práticas. As discussões em torno da inserção recente da Psicologia

na APS do SUS conduzem a um conjunto de críticas ao fazer clínico individual de longa

duração, como um fazer a ser superado na ESF (CAMARGO-BORGES; CARDOSO, 2005;

DIMENSTEIN, 1998; 2000; 2001; 2003; NEPOMUCENO; BRANDÃO, 2011; TRAVERSO-

YÉPEZ, 2001). Tais questionamentos à clínica foram pertinentes, ao impor certo conjunto de

prerrogativas, aos processos de organização e negociação da agenda dos psicólogos. Na

presente pesquisa, a demanda, por vezes, surgia com listas explícitas e implícitas de pacientes

que eram construídas pelos profissionais do CSF e do território (especialmente das escolas).

Os psicólogos se viam na necessidade de se impor e delimitar limites para poder ter mais

autonomia pra decidir alguns dos rumos de seu fazer profissional na ESF.

Participante:A gente desenvolveu atividades tanto relacionada assim a clínica, tinha

uma discussão assim no começo se haveria ou não haveria atendimento individual e

aí a gente iniciou inclusive, eu falo a gente porque isso era uma coisa discutida

dentro da Residência.

Pesquisador: Decidida no coletivo.

Participante:Isso, no coletivo dos psicólogos especificamente. Que a gente tem uma

coisa assim, “olha a gente acha que não faz sentido a gente abrir agenda para

atendimento individual, porque senão a gente vai lotar rapidamente a agenda e aí

não vai ter espaço mais pra nada e pelo o que a gente já estudou, já discutiu aqui,

não é por aí, não é esse caminho”. E aí por outro lado, tinha uma demanda de CAPS.

Então, “ta aqui uma galera pra vocês atenderem, vocês psicólogos se organizem aí e

deem conta disso”. Então era meio que assim a gente dizendo “não” e os cara “mas é

isso que vocês fazem, é isso que vocês fazem” e isso gerou assim um estresse

tamanho que teve uma roda de categoria que, a gente se reunia semanalmente, os

seis psicólogos com a preceptora de psicologia e teve uma roda que a coordenadora

da residência foi pra entender melhor e, na verdade, pra argumentar que a gente

deveria atender individualmente e causou um estranhamento nesse ponto assim,

inclusive nela própria.

Uma alternativa criada para o atendimento clínico individual foi sua restrição através

da definição de limites para as sessões individuais. Assim, atendia-se clinicamente os usuários

em intervalos de, no máximo, entre 3 a 8 sessões. Mas se houvesse uma demanda por mais

tempo, dever-se-ia encaminhar para outros dispositivos do território ou da rede de saúde

mental. Diante da precariedade das redes estudadas, no que tocante à capacidade dos serviços

de prover atendimento clínico individual de longa duração, alguns dos participantes atendiam

157

alguns casos clandestinamente9, por longos períodos. A clandestinação da clínica talvez seja

uma prática recorrente nos serviços de psicologia na APS, o que represente, em nossa opinião,

um problema não discutido no enfrentamento dessa questão. Outros profissionais, muitas

vezes com certo pesar, encaminham para os dispositivos de cuidado que existem no território.

Porque não tem como você fazer acompanhamento de uma pessoa na Atenção

Primária, tendo em vista assim, trabalhando em três Unidades de Saúde, em diversas

áreas. Então, a gente delimitou mais ou menos, quatro encontros, cinco encontros.

Então não é aquela psicoterapia, é um encontro mesmo pra avaliação e pra trabalhar

alguns pontos. Se essa pessoa tiver uma demanda mesmo de acompanhamento, aí a

gente tende a encaminhar. Só que, muitas vezes, não tem pra onde encaminhar,

porque não é demanda de CAPS. Então a gente fica tentando colocar ela no grupo

terapêutico, que a gente tem.

Por um lado, a necessidade de tradução e transformação da demanda clínica

configura-se como um imperativo para se fazer um trabalho de ampliadas possibilidades de

agir, o que remete a superar o modelo da psicoterapia e evidenciar um novo leque de

alternativas, de acordo com os interesses dos agentes e grupos de psicólogos. Aqui, como já

explicitado acima, vemos o processo de luta simbólica para impor uma visão sobre a

demanda, para demarcar um limite para a atuação mais próximo de uma perspectiva menos ou

mais clínica de atuar, mais condizente com os interesses dos participantes. Essa luta pela

autonomia profissional, assim, não pode ser desvencilhada dos interesses dos agentes

especialmente no tocante à sua filiação a determinadas abordagens ou áreas de atuação da

Psicologia. Ficou claro, na análise dos posicionamentos dos participantes, que o modo como

defendiam ou criticavam a enorme demanda para a clínica psicológica, era bastante

influenciada pela sua trajetória anterior de adesão a determinadas perspectivas teóricas dentro

da Psicologia, mais abertas ou fechadas às abordagens clínicas10

. Encontramos aqui um

condicionante forte na produção das práticas psicológicas, justificável epistemologicamente e

politicamente. Evidenciou-se a influência da posição ocupada no campo científico

(BOURDIEU, 2012; 2010) da Psicologia, onde os profissionais mais vinculados à Psicologia

Social e Comunitária tinham uma prática mais contraposta aos atendimentos clínico

individuais de longa duração, com uma agenda mais restritiva a essas práticas. Já os

psicólogos mais vinculados anteriormente às abordagens clínicas tiveram uma maior abertura

9 Na percepção da impossibilidade de encaminhar o usuário para outros serviços, o profissional se vê na

obrigação técnica e moral de continuar o atendimento, mas não divulga aos outros pelo receio de ser criticado

pelos pares ou mesmo de aumentar a demanda. 10

Nesse ponto, é necessário esclarecer que essa reflexão somente foi possível, de modo mais enfático, pelo fato

do pesquisador conhecer muitas das trajetórias dos participantes, bem como - quando não conhecia – pela análise

de seus currículos ou mesmo pela explicitação de suas abordagens em seus relatos.

158

da agenda para os atendimentos. É certo, no entanto, que alguns, se constituíam em trajetórias

híbridas onde a clínica já era incorporada no seu quefazer profissional. Mas, nesses casos, a

prática mais aberta ou fechada à abordagem clínica, remete aos interesses futuros dos agentes.

É necessário também ponderar, nesse ínterim, todo um debate sobre clínica ampliada, que

vem sendo desenvolvido no campo da Saúde Coletiva (CAMPOS, 2000; CUNHA, 2005)

especialmente pela incorporação de questões sociais implicadas na prática clínica.

Na presente experiência, no que diz respeito à defesa da clínica psicológica, alguns

dos argumentos dos participantes merecem destaque, especialmente, a partir do deslocamento

da clínica para o plano da dimensão epistemológica do fazer psicológico. Aqui, ela não se

reduz à esfera da técnica, mas é entendida (e defendida) como um dispositivo epistemológico,

que permeia todo o agir profissional do psicólogo quando na APS. Dentro dessa reflexão,

todo o fazer da Psicologia nos territórios da ESF, encontraria na clínica psicológica, uma

relevante e irrevogável matriz de constituição de práticas. Um dos participantes argumenta:

Eu tenho uma dificuldade com essa reflexão, que é uma reflexão muito clássica

dentro do campo, de que esse aluno ele tem dificuldade de se livrar da hegemonia de

um modelo clínico de escuta.

Pesquisador: Estou entendendo, está se tornando clássico né?

R: É, tudo bem, acho que era preciso que alguém dissesse isso em algum momento

[falamos sobre a crítica recorrente ao modelo clínico tradicional], mas eu acho que

justificar tudo por essa via me parece empobrecedor.

Pesquisador: É, eu concordo.

E eu acho que esse é um desafio assim. É poder compreender de que ordem é essa

clínica, nesse sentido mesmo que eu ia falar, qual é a especificidade dessa escuta?

Como é que ela realmente não está relacionada à definição de um espaço físico, pra

que você escute e pra que você faça o seu atendimento.

Pesquisador: Estou entendendo, não é uma questão de setting, de ter ou não ter o

ambulatório no Cento de Saúde da Família.

R:Isso. Então, eu acho que esse é um dos desafios. Assim, eu não acho que é só pra

Psicologia não, eu acho que pra Medicina também isso é um desafio, embora seja

um outro setting, mas há uma cobrança de determinadas condições também pra que

uma intervenção seja feita. Eu acho que esse é um desafio da formação, é poder

compreender essa clínica. Mas poder pensar sobre essa ampliação da clínica, e não

só como uma ampliação do espaço físico, mas uma ampliação da compreensão desse

sujeito também.

Analisando a demanda clínica, a partir desse ponto de vista - dessa tomada de

posição que afirma a clínica como constituinte de uma escuta psicológica e um olhar para o

sujeito, assume-se a ideia de que o dispositivo clínico é um elemento de extrema relevância

para o fazer psicológico e que é constitutivo de uma diversidade de práticas possíveis. Nesse

sentido, defende-se o elemento teórico de fundamentação das práticas clínicas que sustenta o

argumento da indissociabilidade entre a clínica e social (BENEVIDES, 2002; 2005) e

reconhece-se uma ampliação necessária à clínica tradicional. Grosso modo, essa perspectiva

de abordagem da clínica ancora-se, dentre outros argumentos, na ideia de que toda psicologia

159

é social, sendo, portanto, pertinente pensar que todas as práticas clínicas teriam um olhar

socialmente situado. Esses argumentos, no entanto, retomados no contexto das estratégias de

luta por espaço na ESF, lutas dos agentes e instituições situados dentro do campo das

psicologias, pode servir como justificativa para a acomodação do fazer profissional dentro de

uma perspectiva predominantemente de atendimento clínico individual.

Nessa pesquisa, um dos desdobramentos importantes da reflexão sobre a questão da

clínica é analisar até que ponto os psicólogos estão dando respostas efetivas para resolver os

problemas de saúde da população, no que diz respeito às demandas relatadas acima. Nossa

curiosidade, contemplada parcialmente nesse estudo, mas que já nos dá subsídios para

reflexão, é que muitas necessidades de saúde são negligenciadas no debate crítico, que se

refletiu na negação da psicoterapia nos serviços públicos de saúde. Assim, um ponto

importante dessa discussão é a necessidade de ampliarmos nossa percepção para essa

demanda específica de acompanhamento clínico individual de longa duração, visando uma

melhor apreensão das necessidades de saúde. Como vimos, o modo como os psicólogos

percebem e representam a demanda para essa prática específica é permeado pela experiência

do trabalho multiprofissional e com as redes de saúde mental, bem como pelas prerrogativas

que a APS impõe nesse contexto.

Pesquisador: Você acha que a psicoterapia cabe na atenção primária de saúde?

R: Eu acho que sim. Eu acho que ela cabe na atenção primária enquanto atenção

primária e se a gente não tiver um outro local intermediário onde ela aconteça. Se a

gente tivesse esse outro local intermediário nesse sistema, sei lá, que eu estou

inventando, de certa forma.

Pesquisador: Vamos dizer assim que fosse numa espécie de policlínica.

R: Mas a preocupação é sempre assim, que os modelos que existem sempre isolam

quem faz o atendimento ambulatorial, isolam quem faz a psicoterapia, esse que é o

problema.

(outro participante)

Pesquisador: Seria importante para a população ter acesso a esse serviço

[psicoterapia]?

R: Sim, eu acho. Eu acho que a psicoterapia poderia ser organizada, ser instalada

assim. E não agenda igual ao médico não, de jeito nenhum, mas eu não vejo

problema na psicoterapia dependendo de alguns casos lá dentro da atenção primária,

eu acho que o psicólogo pode, ele é importante tanto no NASF como na equipe

mínima, porque assim, a gente era um dos mais solicitados pelo menos lá na nossa,

os outros também eram muito solicitados, mas eu sentia que a gente tinha não sei um

foco maior na psicologia até porque lá as pessoas tem muito sofrimento mesmo e

não só um sofrimento orgânico, um sofrimento mental, psíquico.

(outro participante)

Eu acredito que não faz sentido na estratégia dos programas que a gente tem e com

as demandas que a gente tem na estratégia de saúde da família. Eu acho que o que

precisa ter é sim, uma policlínica, que possa ter uma psicoterapia [...] eu reivindico

sim, essa rede.

160

O psicólogo parece estar diante de um beco sem saída. Deve proceder de modo a

situar seu fazer na rede de saúde mental, articular-se com os outros níveis de atenção e com as

outras profissões inseridas na ESF. Assim, deve acolher as demandas que lhe chegam dando-

lhes os encaminhamentos necessários e assumindo um lugar de acompanhamento de um

grande número de casos. No entanto, se o problema apresenta uma necessidade de

acompanhamento longitudinal com atenção individualizada, ou mesmo com clara demanda

para a psicoterapia de longa duração, o profissional vê-se num contraditório lugar onde não

pode dar prosseguimento ou encaminhamento ao acompanhamento do usuário. Esse conflito

pode ser permeado por questões técnicas, que remetem à identificação diagnóstica de alguns

casos onde a psicoterapia é percebida como eficiente. E também questões éticas, em que o

profissional depara-se com a injustiça social imposta pela negação de diversos direitos sociais,

inclusive o direito aos serviços de saúde. Assim, a necessidade de atendimento individual do

usuário é negligenciada. Se o lugar do acompanhamento individual de longa duração é ou não

na APS, isso irá depender da rede de saúde mental do município e da disponibilidade de

profissionais psicólogos nesse sistema. Percebemos que a questão da negação da psicoterapia

é um reflexo da precariedade da APS para dar conta uma resposta efetiva às necessidades de

saúde da população. Nesse contexto, é preciso questionar esse vazio deixado pelo cuidado a

saúde mental dos usuários da APS e redes interligadas.

Questionamos aqui, portanto, a qualidade do atendimento individual prestado nesses

novos arranjos supostamente mais adequados de atendimento promovidos na ESF, claramente

marcados pela imposição de restrições severas às práticas clínicas de acompanhamento

individual, impostas pelo caráter precário e seletivo da política de APS do SUS. Entendemos

que a restrição à clínica individual, como analisamos aqui, apresenta-se como expressão de

injustiças sociais ensejadas no cotidiano da ESF, decorrente da precarização do processo de

trabalho dos profissionais psicólogos e fragilização dos serviços prestados à população

brasileira.

Ademais das visões restritas de sujeito e de mundo, que podem estar perpassando as

práticas clínicas, e que precisam ser criticadas, é preciso questionar, sobretudo, as questões

referentes à qualidade e a condições adversas de acompanhamento psicológico fragilizadas

pelas precárias condições de trabalho em que estão submetidos os psicólogos no serviço

público. Essas condições precárias, acrescidas a grandes demandas, marcam as práticas pela

ânsia do encaminhamento, pela restrição à psicoterapia. Concordamos que o campo da ESF

está cheio de possibilidades de interface com outros profissionais, que o trabalho em equipe e

em rede proporcionam. No entanto, omite-se perversamente, nesse debate, as necessidades de

161

saúde as quais o acompanhamento clínico individual de longa duração, poderia ser

importante. Necessidades negligenciadas não somente por um equívoco teórico-metodológico

ou uma visão elitista da psicologia e dos psicólogos. Mas, sobretudo, pela precariedade da

inserção da categoria no SUS. Sob a aparência de avanço tecnológico ou de superação de um

modelo elitista e ineficaz para os serviços de saúde, o modelo da clínica tradicional, esconde-

se o processo de precarização do trabalho nas políticas públicas de saúde, que marcam a APS

do SUS com a mais explícita faceta neoliberal de organização dos serviços públicos de saúde:

sua seletividade. Em nosso entendimento, no que diz respeito à prática da psicologia, o acesso

é restrito e a integralidade do cuidado encontra-se ferida e ofuscada por discursos ideológicos

de reformulação dos modelos de prática, que muito podem estar contribuindo para a

reprodução das desigualdades no acesso. Entendemos, aqui, que vivemos o momento de dar

um passo a mais na efetivação e desenvolvimento de serviços psicológicos na APS,

ampliando a qualidade e quantidade do serviço realizado.

6.3 Mais psicólogos?

Coloca-se, aqui, uma reflexão particular sobre a questão da percepção, por parte dos

participantes, de uma escassez de serviços ofertados pelos psicólogos no SUS. Assim, uma

questão rica em termos de subsidiar a avaliação da inserção da psicologia na APS, é a análise

da necessidade de termos mais psicólogos na APS. Seria o lugar do psicólogo na ESF ainda

muito restrito? Caberia, por exemplo, a inclusão da categoria na condição de membro da

equipe mínima?

Em torno dessas questões, conversamos com os participantes e pudemos vislumbrar

a insatisfação dos psicólogos com o lugar que ocupam no CSF e na ESF. Uma das

perspectivas apontadas em nossos diálogos, fora a inclusão do psicólogo nas equipes mínimas

da ESF. A defesa de sua inserção na equipe mínima corrobora com a ideia de que o serviço

existente, hoje, ainda está muito aquém do que deveria ser. O lugar reservado ao psicólogo,

nas equipes de apoio à ESF, no NASF, é bastante insuficiente e limitado. Advoga-se, no

entanto, sua inclusão em novo espaço, o que não remete, necessariamente, à exclusão do

espaço já ocupado.

Se tivesse um psicólogo quarenta horas num Posto de Saúde, assim como tem um

dentista, ele teria demanda pra atender e agenda lotada. Não tenho dúvida disso.

Porque a demanda é muito grande. A Atenção Secundária não consegue dar conta.

Aí o que é que acaba acontecendo? As pessoas vão piorando, piorando, piorando e

tem que ir pra lá. Porque não tem essa primeira parte aqui, da escuta aqui.

162

(outro participante)

Eu fico pensando o seguinte: pensando três lugares diferentes, certo? Uma coisa é

você ser parte da equipe de referência ou sei lá parte da equipe mínima ou você ser o

psicólogo do posto, esse é um local. Outro local é você ser apoio institucional que

você ta dando esse suporte inclusive nível organizacional e como é que funcionam

as coisas. E tem o terceiro lugar que eu acho que é você ta numa função de apoio

matricial, que é como o NASF é proposto, que é como a nossa residência era

proposta também, porque aí é um apoio que você ao mesmo tempo ta olhando pra

prática do outro, mas você ta tendo uma prática lá dentro também, enquanto que no

apoio institucional eu acho que você acaba olhando exclusivamente pra instituição.

[...] Eu acho que são possíveis todos esses espaços sabe.

(outro participante)

Pesquisador:Tu acha que cabe o profissional da psicologia na equipe?

Caber eu acho que cabe, eu acho que é fundamental, é necessário, eu diria até que é

necessário.

Pesquisador: Você está falando da equipe mínima?

Na equipe mínima. Porque assim, você tem o profissional no NASF, o NASF é

importante, é uma conquista, com todas as críticas que a gente tem é uma conquista

dos profissionais, das profissões, da ampliação desse conceito de saúde. Agora

parece que ainda assim o NASF, quer dizer, o NASF trabalha com uma série de

dificuldades, que a gente observa, no sentido assim de ter que estar em vários

lugares ao mesmo tempo.

O questionamento sobre o acesso restrito ao serviço psicológico parece ser

fundamental para pensarmos as necessidades de saúde, que poderiam estar sendo melhor

acompanhadas, de modo mais adequado para a população assistida na APS. Isso parece

patente nos diálogos realizados em entrevista, nos diversos âmbitos de prática da psicologia.

Especificamente, como vimos acima, a psicoterapia ou mesmo qualquer acompanhamento

individual de longa duração, algo que ultrapasse os 6 a 8 atendimentos, parece inviável para a

organização da agenda de trabalho do profissional psicólogo no modelo NASF, ficando

evidente, uma enorme demanda descoberta ou mesmo coberta precariamente. Isso remete a

reenfatizar o contexto de precarização das práticas psicológicas já discutido. Essa reflexão

toma uma conotação mais pública e tensa, pelas lutas simbólicas efervescentes intra e

interprofissionais do trabalho nos serviços de APS, no âmbito das práticas clínicas. Assim, em

nossa pesquisa tornou-se evidente, após a análise do material construído nas entrevistas, que

corrobora com a experiência vivida anteriormente pelo pesquisador, a necessidade de

ampliação do acesso aos serviços psicológicos.

[Entrevista com dois participantes]

Pesquisador: E se o morador de uma Unidade dessa, que vocês trabalham, enfim,

numa Unidade de Saúde, em geral, apesar de ter as especificidades, se ele quiser

fazer psicoterapia, por exemplo, como fica?

Participante A- Ou se ele precisar que eu possa articular essa psicoterapia com outro

setor, que possa dar esse suporte, ele vai ter dificuldade de chegar até a mim.

Participante B - Até você e até o outro serviço.

Participante A- Até se eu puder acompanhar durante um tempo, fazer uma avaliação

e tal, um cuidado primeiro, talvez eu nem possa ficar com ele por longo tempo

163

porque a demanda é grande. Mas nem sequer articular com outro serviço eu consigo,

porque a demanda [com gestos -braços abertos- indica que é grande].

Pesquisador: E essa demanda é uma demanda que existe?

Participante A. Existe, no meu território existe. Existem essas pessoas que ficam

desassistidas, na maioria das vezes, ficam desassistidas, afirmo categoricamente

isso, nesse momento histórico.

A análise do momento histórico de inserção da psicologia na APS aponta que as

contribuições da profissão são ainda incipientes e que muito poderia melhorar não somente

com a inserção de mais psicólogos na ESF e rede articulada, mas, sobretudo, pela melhoria

das condições de trabalho desse profissional, o que inclui uma diminuição do seu território de

atuação e uma ampliação de sua participação na ação direta junto à população, diferente da

prática de apoio matricial. Destacamos aqui mais uma arena de disputas pelo controle sobre as

tarefas nobres, como a clínica, e que são representativas do processo de profissionalização

(DUBAR, 2005) vivido pela psicologia em sua inserção na ESF. Nesse contexto, a discussão

da demanda, implica em repensar um conjunto de questões como: o risco da

hiperprofissionalização do campo saúde, que restringem as práticas de cuidado a processos de

submissão aos saberes técnico dos profissionais (ILLICH,1975; NOGUEIRA, 2003); as lutas

por reconhecimento e autonomia (BOSI, 1996; DUBAR, 2005; MACHADO, 1995); o tema

da formação em saúde e a necessidade de reformulação dos modelos ideais de agir.

164

7 ESPECIFICIDADES DAS PRÁTICAS PSICOLÓGICAS

Neste capítulo, temos como objetivo refletir sobre a especificidade da prática

psicológica na APS. Exporemos os resultados de nosso esforço por entender o lugar

diferenciado que a psicologia ocupa dentro das profissões inseridas na ESF, bem como

tentamos apreender o objeto de suas intervenções dentro do campo em questão. Interessou-

nos a investigação sobre os modos como a psicologia é reconhecida dentro desse espaço

social, bem como os obstáculos enfrentados na sua luta por reconhecimento nesse campo, que

é relativamente novo dentro do rol das políticas públicas de saúde no Brasil.

Tomando o referencial de Bourdieu e sua sociologia da ação, a especificidade de

uma determinada prática é constituída pela inserção histórica dos agentes e instituições em

determinados campos sociais, construindo o que o autor chama de habitus. No nosso caso,

refletiremos aqui sobre a constituição de um habitus profissional da psicologia, que já remete

a própria história da Psicologia como ciência e profissão no contexto brasileiro, especialmente

nos espaços sociais criados pelas políticas públicas de saúde. Como apresentado nos

fundamentos teóricos da presente pesquisa, a partir das ideias de Bourdieu (2012; 2011;

2008), a ação de um agente é analisada pelo entrecruzamento de uma visão construtivista, que

considera que o indivíduo é ativo na produção de saberes e práticas, e estruturalista, em que a

ação é decorrente de um conjunto de questões sociais históricas influentes dentro e fora do

campo da ação, especialmente no tocante às lutas pelo poder. Sob esse referencial, o olhar que

tentamos desenvolver para pensar a especificidade da prática da psicologia na APS é resultado

da consideração de processos históricos, que se refletem e se encarnam na ação dos sujeitos,

como agentes no campo das psicologias e da ESF, bem como questões específicas e

situacionais pertinentes às redes intersubjetivas constituídas na história singular vivida nos

CSF. Assim, interessa-nos pensar a constituição de um habitus psicológico, que distingue os

psicólogos dos outros agentes profissionais situados no campo da ESF, a partir da análise da

experiência vivida pelos participantes da pesquisa.

7.1 Especificidade da Psicologia

A especificidade da psicologia, como profissão distinta na APS, fora abordada nas

entrevistas no decorrer de uma reflexão sobre o diferencial da profissão frente às outras

inseridas na ESF. A psicologia é identificada como aquela profissão responsável pelo

desenvolvimento de um olhar e uma escuta qualificada para a pessoa, para a subjetividade ou

165

para o sujeito nos diversos processos sociais no campo da APS. A profissão, em geral,

destaca-se no cotidiano de trabalho pela reconhecida capacidade de ligar com componentes

afetivos e subjetivos dos processos de saúde-doença, de ter uma visão privilegiada sobre os

fatores interpessoais envolvidos nos processos de trabalho em equipes multiprofissionais na

promoção do cuidado, de entender a constituição histórica e contextualizada de relações

sociais entre agentes, instituições e territórios. Todos esses atributos, reconhecidos e

construídos socialmente, fazem da psicologia uma profissão diferenciada das outras na APS

do SUS. Vejamos como alguns participantes expressam seus entendimentos sobre a questão.

Bom, que ele traz esse olhar, ele chama pra olhar subjetivamente os processos. Não

é só o psicólogo isso, mas ele chama sim pra olhar, fazer outras leituras, a partir de

outros lugares, pra isso. E ele olhar pra todos esses processos, processos de

saúde/doença dos usuários, os processos que acontecem na comunidade, os

processos de relações ali de serviços. Enfim, os processos tanto do profissional

como do usuário que, muitas vezes, o profissional, ele se coloca não como sujeito

ali, ele se coloca como o profissional, está ali o objeto de cuidado dele e não numa

relação entre sujeitos. Eu acho que ele [psicólogo] se diferencia por isso, assim, de

estar fazendo esse olhar subjetivo sobre essas questões todas, que perpassam a

relação do usuário com a comunidade, relações institucionais. [...] de trazer, além

desse olhar, uma proposta transformadora. Eu acho que o psicólogo como um todo

ele traz uma proposta de transformação assim, bem tradicionalmente, pra aquele

sujeito, mas ampliando isso pra uma realidade, pra uma comunidade, pra um

serviço. Uma proposta de mudança, de transformação daquele contexto, seja

contexto especifico do sujeito, seja contexto do serviço, seja contexto da

comunidade.

[outro participante]

Dentro dessa prática multiprofissional eu comecei a perceber que algumas coisas

que são básicas né e que nós enquanto psicólogos somos treinados, digamos assim

né, entre aspas. Treinados ou somos sensibilizados na faculdade pra perceber, passa

despercebido por outros profissionais. Ás vezes, eu pergunto tipo: “bom dia, como é

que você tá se sentindo?” “Como vai à família?” As orientações: “você vai fazer isso

e aquilo outro, mas isso aqui dá pra você?”, “Como é que é pra você assim estar

hipertenso, tá com hipertensão?” Então assim, eu acho que são exemplos, mas que

eu percebo que você falar assim a subjetividade, a subjetividade do usuário, digamos

assim. E esse seria, esse é um recorte muito claro de qual é o objeto da psicologia. E

aí de uma maneira prática é de como esse psiquismo se constrói, de como esse

psiquismo se manifesta. De que forma você pode cuidar dele pra que ele se

desenvolva, pra ele tenha cada vez mais processos saudáveis.

Podemos pensar que os psicólogos são reconhecidos, por eles mesmos e por outros

agentes inseridos na ESF, como pertinentes a uma classe profissional que promove um olhar

especial para os usuários e suas necessidades de saúde e, também, para os profissionais e as

configurações relacionais, intersubjetivas, que perpassam os modos de organização do

trabalho das equipes, e para os arranjos institucionais responsáveis pela estruturação e

regulação normativa das práticas. Essa escuta e olhar colocam o psicólogo como uma

profissão estratégica para a elaboração e condução de alguns processos de cuidado

específicos, voltados para o reconhecimento da dimensão subjetiva e singular dos processos

166

cotidianos dos territórios da ESF. Como vimos nos capítulos anteriores, a psicologia vem,

dentro de determinadas configurações da ESF, ocupar um lugar vazio deixado pelo modelo

biomédico na estruturação das práticas no campo. Sua especificidade situa-se na convocação

dessa dimensão do sujeito, da criação de possibilidades de sua elaboração, pela expressão de

seus afetos.

Assim, nesse sentido, que cabe ao psicólogo compreender o tempo de cada sujeito. E

eu acho que ele está ali de alguma maneira pra convocar a singularidade desse

sujeito frente aos discursos que são hegemônicos nas práticas de saúde. Eu acho que

é essa, da convocação desse sujeito, mas ao mesmo tempo, também, de poder dar

condições pra que de algum modo ele possa se responsabilizar ou se implicar

também na sua forma de sofrimento. Eu acho que essa implicação e essa

responsabilização eu acho que é própria do campo da psicologia e que esse sujeito

ele possa, em algum momento, ser chamado a pensar ou a falar sobre aquilo que lhe

afeta. Então, assim, que ele tem que poder, de algum modo, denunciar algo a partir

do seu sofrimento. Eu acho que isso é a especificidade do campo da psicologia.

Um agir problematizador e mobilizador, capaz de criar condições de reflexão, fala e

vivência sobre o que afeta os sujeitos, é parte desse modo específico de ação profissional,

voltada pros referidos processos subjetivos e intersubjetivos pertinentes à ESF. Esse agir, por

mais que seja identificado como específico do profissional psicólogo, como pertinente ao seu

modo distinto de agir, incorre num processo extremamente paradoxal de questionamento de

qualquer domínio especialista, já que chama o sujeito para movimentar-se. É uma ação

voltada para movimentar o sujeito, pra fomentar a transformação de realidades subjetivas na

perspectiva da autonomia, uma emancipação relativa, inclusive frente a qualquer especialismo

das profissões da saúde.

E qual é a especificidade da psicologia? Eu acho que também está relacionada com

essa condição de fazer esse sujeito se movimentar, se deslocar. Por isso que eu acho

que ela não pode coincidir com nenhum discurso, que se identifique com o discurso

de uma maestria ou um discurso que, de alguma maneira, seja o discurso do

especialista, por exemplo. Eu acho que um psicólogo ele deve sempre estar se

esvaziando da sua... é paradoxal isso. A gente está falando qual a especificidade da

psicologia e a especificidade da psicologia é se esvaziar do discurso do especialista.

[...] Então, eu acho que essa condição de poder, enfim, receber esse outro e assim,

receber essa alteridade num campo que seja um campo mais permeável e menos, não

é que seja ateórico, eu acho que não deixa de ser teórico por isso. Mas é onde não

comparece a especialidade ou o saber, que não aquele que possa vir a ser também

produzido pelo sujeito. Assim, eu acho que essa é uma outra especificidade, essa

aposta que o psicólogo deve fazer de que o sujeito pode produzir um saber sobre o

seu sofrimento, esse sujeito também sabe sobre o seu sofrimento.

Spink (2003) nos auxilia na compreensão de uma perspectiva de desenvolvimento para

as práticas psicológicas na ESF. A autora analisa diversas perspectivas de compreensão dos

processos de construção social de saberes sobre a doença e sobre saúde, propondo um modelo

de compreensão psicossocial, que “possibilita o confronto entre o significado (social) da

167

experiência e o sentido (pessoal) que lhe é dado pelo indivíduo” (SPINK, 2003, p. 47). Nessa

perspectiva, a doença e a saúde são concebidas a partir da relação entre indivíduo e sociedade,

entre história individual e história da sociedade, onde se produzem sentidos e significados que

expressam modos de construção dos sujeitos e da realidade. Spink (2003) ainda destaca as

interfaces existentes entre representação e comportamento, entre o saber popular e o saber

oficial nas concepções de saúde e de doença. As representações e os saberes, portanto, vem a

influir nas relações sociais construídas no processo saúde-doença-cuidado. É necessário,

portanto, conhecer as representações que orientam a ação dos atores sociais, para embasar as

atuações da psicologia no campo saúde.

A psicologia, compreendida em sua relação com os usuários da APS do SUS, deve

constituir-se como uma profissão comprometida com a construção de saberes da saúde,

marcados pela experiência vivida pelos indivíduos nos seus diversos cenários socioculturais.

Coimbra e Leitão (2003) nos auxiliam nessa reflexão sobre as possibilidades de pensar uma

prática psicológica plural e mais distanciada dos especialismos. O especialismo psicológico,

como fruto histórico da divisão social do trabalho é responsável por agenciamentos

implicados, hegemonicamente, com os modos de produção de subjetividades capitalísticas,

que vem sendo forjados pelos diferentes equipamentos sociais. Nesse contexto, a psicologia

tem, historicamente, contribuído para a atribuição de essências à natureza do homem, para

construção de uma cultura individualista e psicologizadora dos problemas sociais (LEITÃO;

COIMBRA, 2003; MACEDO; DIMENSTEIN, 2012). Para Coimbra e Leitão (2003, p.12) “a

crença nas essências produz a reificação do indivíduo”. Essa reificação do indivíduo, dentro

do modo de produção de subjetividades capitalístico, perpassa a constituição histórica de uma

psicologia privatista, intimista e familiarista, integrada ao desenvolvimento sociocultural do

capitalismo, e incumbida de naturalizar e normatizar um “modo-de-ser indivíduo”. Assim é

que a psicologia vem constituindo-se, historicamente, como um equipamento social voltado

para a psicologização da vida social (COIMBRA; LEITÃO, 2003).

A construção das práticas da psicologia na ESF se efetiva diante da contradição de

ter de lutar por um espaço legitimado de atuação, que remete ao domínio de um saber

específico como vimos nas discussões pertinentes ao campo da sociologia das profissões

(BOSI, 1996; DUBAR, 2005; MACHADO, 1995) e, como discutido, agir de modo a facilitar

a construção de saberes sobre a saúde e o sofrimento mais plurais e decorrentes de outros

modos de produção de subjetividade. No sentido da quebra dos especialismos psicológicos e

da busca por construir uma psicologia politicamente situada na APS do SUS, concordamos

com Coimbra e Leitão:

168

Não tendo uma natureza, o homem, a sociedade, a psicologia e a política não são.

Sempre estão sendo, sempre estarão se fazendo. Renunciamos, portanto, aos

modelos, às identidades, às permanências, às homogeneidades. Estamos, com isso,

afirmando as especificidades dos diferentes e diversos saberes que se encontram no

mundo; especialmente alguns que têm sido secularmente desqualificados e, mesmo,

ignorados pela arrogância daqueles hegemônicos, nomeados como oficiais e, por

isso, produzidos como verdadeiros, únicos, universais, totalizantes. Pensar dessa

forma traz efeitos para nossas práticas enquanto psicólogos: de especialistas a

interventores/agenciadores. Essa proposta é, sem dúvida, um compromisso político

que aposta na criação e na mudança, em formas diversas de existência, de

sociabilidade. Trata-se de afirmar as potências, as diferenças, as multiplicidades e

possibilidades finitas e ilimitadas do homem, da sociedade, da psicologia e da

política (COIMBRA; LEITÃO, 2003, p.14).

Além da contradição de uma especificidade não-especializante, o lugar distinto da

psicologia na ESF é difícil de ser percebido pelos participantes, seja por uma insegurança em

definir-se como um profissional com objetos imprecisos, mas também pelo aprisionamento

que a definição de objeto acaba por instituir. Esse paradoxo é expresso na necessidade de se

delimitar um espaço específico de atuação, que já traz o peso do risco do aprisionamento

decorrente da instituição de tradições de práticas profissionais. A ampliação da especificidade,

aqui, precisa ser compreendida como o esforço para criar um agir mais autônomo frente aos

modos tradicionais de agir da profissão.

Eu não saberia dizer, poxa, o que é específico, na verdade eu tenho receio de dizer

isso, eu tenho receio de dizer o que é específico, eu tenho receio de criar esse campo

que, por sinal, já está criado, de poder. E que, às vezes, me maltrata, entendeu?

Porque o que é específico do psicólogo? Na verdade, a gente está ampliando cada

vez mais pra ver se a gente cria possibilidade de respirar e de criar algo novo.

Porque, se eu for dizer “ah ta são os transtornos mentais, são sofrimentos

psicológicos”, eu vou estar me amarrando. [...] Então, é uma coisa que está se

fazendo a cada dia e o que eu vejo assim que tem seu bônus e tem seu ônus. Da

mesma forma que você parece que fica perdida querendo dar conta do mundo e isso

também é sofrível, mas também é um campo de possibilidades que vai pra além

daquilo que a gente foi trabalhando.

Essa especificidade de olhar e agir, como já dito, volta-se para o reconhecimento da

dimensão subjetiva e pessoal dos processos da ESF, para a constituição histórica e

contextualizada de um sujeito num espaço de relações. A ação profissional, assim como

colocada, busca o fomento da autonomia dos sujeitos frente as suas formas de enfrentar os

problemas de saúde. Várias são as possibilidades de se efetivar no cotidiano dos CSF um

trabalho voltado para facilitar a construção de sujeitos mais autônomos. Uma dessas

possibilidades, bastante apontada pelos participantes, é na intervenção junto à organização de

ações em equipe. O trabalho em equipe e seus vários dispositivos de gestão e ação são

identificados como âmbitos de prática em que essa especificidade profissional tem sido

reconhecida, o que possibilita o desenvolvimento de práticas e a ocupação de um espaço

169

distinto no campo da ESF. Um desses espaços distintos para a psicologia é o das práticas

clínicas em saúde mental. Aqui, o psicólogo é reconhecido como um agente importante nas

lutas cotidianas para construir uma atenção mais qualificada no que diz respeito à atenção ao

sofrimento na ESF. Aos psicólogos cabe ocupar um lugar especial na busca pela ampliação da

clínica.

A psicologia vai entrar tanto num cuidado direto a esse sujeito de acolher esse

sofrimento, de tratar ele a partir da escuta mesmo e ajudar um diagnóstico caso

precise incluir outra rede de atenção nisso. Mas muito eu vejo na contribuição do

psicólogo, a minha contribuição, muito mais no sentido de, junto com os

profissionais ampliar a clínica daquele sujeito. E assim, uma clínica que pra alguns

poderia ser só farmacológica, por exemplo. A gente conseguir ampliar a clínica e o

que vai cuidar daquele sujeito vai ser pra além do medicamento, pra além de só

encaminhar ele, ele pode ser cuidado por outras formas.

Uma discussão importante, nesse contexto da identificação de especificidades do

olhar psicológico na atuação na APS, é a discussão da constituição desse olhar, como fruto da

formação acadêmica/profissional na área da psicologia clínica. O olhar do profissional

psicólogo na APS é reconhecido como um olhar clínico que não se restringe ao espaço das

práticas estritamente clínicas. Falamos, assim, de um habitus constituído pela clínica psi na

formação dos psicólogos, especialmente, como fruto das trajetórias de inserção dentro da

formação e atuação nas abordagens clínicas e que parecem subsidiar ações pautadas numa

relação terapêutica diferenciada entre usuário e profissionais, capaz de reconhecer a história e

constituição das individualidades nos territórios de atuação da ESF.

Então, eu acho que específico seria esse olhar diferenciado da relação da

constituição do indivíduo no lugar que ele vive. E nessa parte da avaliação e do

acompanhamento, tem mesmo esse aspecto dos conhecimentos da clínica e da

psicoterapia, que ajudam nessa relação terapêutica diferenciada. [...] eu acho que os

conhecimentos da clínica permitam que a gente tenha uma relação terapêutica, um

outro olhar. Então, no fundo, eu acho que o que é específico do psicólogo é o olhar.

Porque aí, como vai reverberar na prática, isso varia muito de lugar pra lugar, e de

como eu tenho ou não outros profissionais pra equipe.

À psicologia é atribuída a competência de agir de modo qualificado no processo de

trabalho em equipe, especialmente, na mediação de relações entre agentes em pequenos e

grandes grupos multiprofissionais, intra e inter equipes. O lugar de mediador é sobremaneira

atribuído ao psicólogo, que encontra um espaço privilegiado para atuações significativas na

definição de estratégias práticas no cotidiano de trabalho na ESF, seja para superar crises

relacionais entre profissionais, seja para repensar a atuação junto a alguns casos difíceis. Esse

lugar de mediador de conflitos e solucionador de casos difíceis é parte da representação social

170

do psicólogo no campo e, como vimos no capítulo anterior, implica na criação de demandas

para a profissão.

Mediador, esse é o lugar onde eles nos colocam. Eu sei que esse lugar é o lugar que

as outras categorias colocam o profissional de psicologia, mediador. O psicólogo é o

que vai, por exemplo, mediar um conflito dentro da própria equipe. “Ah ta tendo

dificuldade com uma pessoa pra aderir tal e tal tratamento e chama o psicólogo pra

mediar isso aí né”[...] sempre como se houvesse um problema de comunicação entre

aquela pessoa, que está ali e o grupo. E aí o psicólogo é colocado no meio ou esse

cara ou essa pessoa que vai conseguir abrir caminhos. Eu acho que se eu tiver que

resumir em uma palavra seria essa daí: o profissional da mediação.

Entrelaçando alguns temas pertinentes às entrevistas, podemos destacar que o

diferencial da psicologia, como profissão na ESF, é sua capacidade, desenvolvida em

formação específica, para entender de modo ampliado a constituição dos processos pessoais e

grupais, reconhecendo a dimensão subjetiva que é inerente á construção das práticas de saúde,

dos estilos de vida, dos processos de cuidado e de adoecimento. Essa capacidade, parte do

habitus psicológico aprimorado nesse espaço da APS do SUS, é expressa num tipo de escuta e

de olhar específicos, que desvendam dimensões subjetivas dos problemas de saúde. Os

psicólogos são, assim, responsáveis por análises mais apropriadas quanto à formação dos

processos psicológicos, pelos quadros de saúde e doença que se estruturam na história dos

indivíduos. A constituição histórica e intersubjetiva dos problemas de saúde (individuais e

coletivos) é um dos objetos de sua reflexão prática, ponto de partida, para a construção de

saberes e práticas, que podem ter como consequência, uma intervenção mais apropriada da

ESF frente às demandas. Nesse contexto, a intervenção dos psicólogos pode ser ligada à

possibilidade de contribuir para promover o desenvolvimento humano nas práticas de atenção

à saúde.

Então, assim, o que coloca pra mim o diferencial, que é específico da psicologia, é a

questão do acompanhamento, do ouvir. Mas vendo dentro do contexto daquele

sujeito, no sentido de desenvolvimento psicológico. [...] Mas essa questão, assim, de

compreender aquele sujeito naquela formação familiar, que essa formação familiar

ela é mais ampla, que vem também do avô, que vem também não sei do que...

[outro participante]

Eu vejo o ser humano como um poço de potencialidade e de dificuldades. E, às

vezes, ele não consegue se organizar com isso. E não é que nós vamos ajeitar, deixar

tudo ajeitadinho. Mas eu acho que a contribuição é escutar isso de uma forma

qualificada e cuidar disso com carinho, com atenção e permitir esse

desenvolvimento humano. Eu gosto muito assim dessa expressão, desenvolvimento

humano. Então assim, eu acho que a psicologia tem a contribuir com isso. Assim,

observar esses processos, observar os pontos críticos e, principalmente, os pontos de

desenvolvimento. Observar os potenciais de desenvolvimento, que eu acho que isso

é o principal. Eu acho que isso é o principal, é ajudar eu a lidar com as minhas

questões. É auxiliar nisso, é facilitar nesse processo, que é esse o papel da

psicologia.

171

O processo de formação, muito marcado pelas experiências em psicologia clínica e

social, de uma escuta terapêutica e de compreensão do sujeito e sua história de vida e de

inserção social, marca a constituição de um habitus psicológico que é princípio gerador e

organizador de um conjunto de práticas e representações distintas de uma psicologia da APS.

Capacidades de escuta ampliada aos problemas de saúde, habilidade de se posicionar frente ao

sofrimento e a situações de crises no cotidiano e competência para entender a formação

histórica dos sujeitos como marcadas pelos episódios típicos da saúde e da doença são

atributos atrelados à prática psicológica na ESF.

Eu acho que o psicólogo ele tem a capacidade de ter uma compreensão, tem

facilidade e não é bem a capacidade é a facilidade de compreender melhor a

dinâmica de funcionamento das pessoas, o comportamento. Eu acho que ele tem a

facilidade da escuta, pelo menos isso eu percebia que a gente, enquanto psicólogo, a

gente tinha a facilidade da escuta, de saber acolher mesmo as pessoas de supetão

assim como chegava algum caso.

[outro participante]

Acho que se eu olho essa pessoa primeiro, na sua inteireza, na sua caminhada

histórica, sua caminhada de vida, no seu processo de adoecimento, eu tenho como

acompanhar a sua história de adoecimento na saúde mental de outra forma, melhorar

a relação dessa pessoa com os outros membros da equipe. Por exemplo, quem faz a

coordenação do cuidado geral é a enfermagem. Mas, muitas das vezes, ela está

alheia ao que se passa pra vida daquela pessoa, que projeto de vida aquela pessoa

tem, o que ela quer dessa saúde, da sua vida e, às vezes, o profissional da psicologia

com esse olhar pode ajudar nessa articulação.

Essa facilidade de compreender os processos de constituição dos sujeitos como

agentes históricos com trajetórias de vida singulares, pode ser expressa em diversas ações

desenvolvidas pelos profissionais psicólogos. Uma das ações tipicamente relacionadas às

responsabilidades específicas de psicólogos inseridos na ESF, é a facilitação de grupos. Nesse

contexto, a inserção desse profissional nas equipes multiprofissionais possibilita o

aprimoramento de ações desenvolvidas junto aos grupos atendidos, pelas relações de troca

estabelecidas entre os profissionais inseridos no campo.

As diferenças do psicólogo, também, foi essa de ensinar sei lá, como é que se facilita

um grupo, o que é o grupo, como é que se forma um grupo. E eu acho que a gente

ajudou muito nisso. [...] Eu não gosto de falar essa palavra “ensinar” porque parece

que o outro não sabe. Mas é de tentar dar um apoio, dar segurança pra aquele

profissional, pra ele ver que ele também pode facilitar um grupo de uma outra

forma, entende?

Quando pensamos e discutimos as ações específicas da psicologia alguns atributos

são destacáveis na análise das entrevistas. Dentro desse contexto, a escuta individual, a partir

de um viés de atendimento clínico psicológico, destaca-se como um procedimento padrão da

classe, como uma marca da categoria. Como é apontado na seguinte fala: “talvez se fosse

172

caracterizar o que é o trabalho do psicólogo, talvez dissesse isso, que é o atendimento

individual, da escuta individual e só isso assim, basicamente a escuta como procedimento”.

Como já discutido nos capítulos anteriores, a prática de atendimento clínico da psicologia

compõe o imaginário social em torno da profissão e o processo de trabalho do psicólogo é

construído em diálogo ativo com as representações da psicologia ligadas à prática de

consultório.

No campo da APS, essa escuta volta-se para o conjunto de demandas que chegam

com uma intensidade notável para o psicólogo, como já visto no capítulo anterior. Nesse

conjunto de demandas, o sofrimento da população parece colocar os profissionais da ESF

diante de dificuldades tremendas para o enfrentamento cotidiano dos problemas de saúde

apresentados nos CSF. Nesses contextos, que também remete ao já apontado vazio deixado

pelo modelo biomédico hegemônico, o psicólogo é reconhecido como profissional habilitado

para lidar junto ao sofrimento humano. Esse é mais uma característica de seu diferencial,

apontado nas entrevistas, como podemos exemplificar, abaixo:

A gente tem uma coisa entendeu, que a gente é melhor capacitado pra esse

atendimento do sofrimento, pra dar algum suporte pelo menos individual. Isso aí já é

estabelecido, respeitado e demandado por diversos profissionais que atuam junto

com a gente. É claro que a gente tenta fazer mais outra gama de coisas.

Pesquisador: Sofrimento, então?

Sim. Nós somos a expertise do cuidado com o sofrimento, principalmente esse que

não se sabe de onde é que vem, o psíquico. É assim que é entendido o psíquico, não

é orgânico, exclui o orgânico, ele tem impacto no orgânico. Já há esse entendimento,

que o psíquico tem impacto no orgânico. Mas aí “como eu não consegui entender o

orgânico, aí então vem o psíquico”. Os outros profissionais: “eu não me sinto

capacitado, tenho que chamar o psicólogo”.

Além do sofrimento, a psicologia, com seu olhar para o subjetivo, vai construindo

um leque enorme de possibilidades de intervenção de acordo com as situações e brechas na

estrutura da ESF. O sofrimento configura-se, assim, como um mote inicial, um primeiro passo

para a estruturação de diversas práticas que podem envolver as perspectivas da prevenção e

tratamento de doenças e agravos, promoção e educação em saúde, dentre outras perspectivas

de cuidado voltadas para o amplo espectro da atenção integral à saúde.

Eu acho que [a psicologia caracteriza-se pela atuação voltada para], sobretudo os

aspectos relacionais que toda sorte de vetores, contingências, contextos produzem.

Toda a sorte de sofrimento produzido por essas coisas, eu acho que, de algum modo,

é o que a gente tem de mote pra atuar, de mote. Eu acho que o tempo inteiro tem

uma negação, pelo menos em minha parte, na Atenção Primária, dessa coisa do

adoecido. Eu acho que não é só nisso que eu trabalho. Tem uma tentativa de olhar, a

gente pode seguir em outros campos. E eu acho que a gente tem capacidade de dar

respostas, enfim, com métodos que trabalham essas questões relacionais. No nível

da política eu acho que sim, que é uma obrigação nossa, tem toda uma estratégia pra

173

isso, enfim. Têm buracos na montagem da ESF, que hoje é o mote organizador da

Atenção Primária. Têm buracos? Tem. E eu acho que é um dever nosso refletir sobre

isso, pensar em métodos, intervenções práticas de um modo se não resolver

finalmente sanar essas questões.

O trabalho com o fenômeno psíquico pertinente ao adoecimento, que perpassa um

amplo conjunto de problemas de saúde da ESF, demarca um objeto de intervenção específico

para o psicólogo. A partir do sofrimento, muitas questões são transformadas em objeto de

intervenção profissional, inclusive, como apontado na fala acima, o espaço da estruturação

política da ESF. Ademais das inúmeras possibilidades de intervenção, que tem como objeto

de reflexão o sofrimento humano e que envolve pensar o espaço social ampliado da ESF, cabe

destacar um pouco mais esse diferencial da profissão, que a coloca como antagônica e

complementar às profissões constituídas a partir do modelo biomédico. Falamos, aqui, do

reconhecimento da psicologia como aquela profissão mais capacitada para lidar com

dimensões incompreendidas do sofrimento humano, especialmente quando o paradigma

biomédico, com seu olhar restrito ao orgânico, apresenta-se como insuficiente. Nesse

contexto, os participantes apontam que a profissão tem uma característica distintiva,

decorrente dessa capacidade de olhar mais aprofundado para a constituição do sujeito no seu

contexto de vida. À psicologia é atribuída a habilidade de lidar com dimensões até mesmo

misteriosas da vida humana. Em uma das entrevistas, o participante chega a identificar o

psicólogo com a Perséfone, deusa grega que lida com o mundo inferior, um mundo de

mistérios humanos.

É quase uma Perséfone.

Pesquisador: O que é isso?

Perséfone não é a Deusa que, Deusa sombria que entende dos mistérios e tal, da

vida. Então assim, ela tem as chaves do submundo, entendeu? E aí, uma amiga

minha, ela sempre usa essa expressão assim, que a questão dos mistérios, de

dominar os mistérios. E aí nós somos convidados a entrar nisso, porque teoricamente

nós entendemos disso, entendeu?

Pesquisador: Tu acha que entende?

R: Léo eu não diria assim. Eu não sei se entende, mas eu acho que a gente é mais

sensível a isso.

Pesquisador: Pelo menos entra.

Exatamente. Tá entendendo? Pelo menos entra. Ás vezes, eu não sei como é que eu

vou lidar com aquele caso, mas é tipo assim, é como se eu tivesse coragem de entrar

naquele caso, entendeu? Que outro profissional? “Não, isso é coisa de

psicólogo”.[...] a contribuição da psicologia é cuidar dessa dimensão humana, dessa

dimensão subjetiva, desses mistérios, de como é que a gente pode lidar com isso.

Esse reconhecimento social, de que a psicologia é a profissão mais preparada para

entrar nos mistérios da vida humana, agrega certo valor à prática desse profissional, que passa

a agregar certa mística. Nesse aspecto, é preciso remeter-nos à ideia do poder simbólico como

apontado por Bourdieu (2012; 2011). A partir desse referencial, podemos entender as

174

profissões como resultantes de processos sociais de luta e legitimação, que tem como

decorrência a consolidação do processo de profissionalização (BOSI, 1996; DUBAR, 2005;

MACHADO, 1995), que tem como produto o reconhecimento legal do ato de imposição

simbólica capaz de nomear e classificar o mundo social, a partir de princípios de visão e

divisão favoráveis (BOURDIEU, 2012, p.146). Quanto a esse poder simbólico do profissional

de nomeação, na construção da realidade:

O ato de magia social que consiste em tentar trazer à existência a coisa nomeada

pode resultar se aquele que o realiza for capaz de fazer reconhecer à sua palavra o

poder que ela se arroga por uma usurpação provisória ou definitiva, o de impor uma

nova visão a uma nova divisão do mundo social: regere fines, regere sacra11,

consagrar um novo limite. (BOURDIEU, 2012, p.116).

No entanto, a crença na psicologia e em sua capacidade de lidar com dimensões

misteriosas dos fenômenos humanos, além do capital simbólico que representa, também é

representativa para pensar um conjunto de estigmas para a profissão, responsáveis pela

criação de demandas problemáticas na APS, já discutidos em capítulo anterior. Aqui, não

estaríamos falando de um impulso de dominação simbólica, mas de resistência. Como vimos,

a psicologia é caracterizada pelo procedimento do atendimento individual e, dentre outros

processos, é concebida como a profissão mais preparada para escutar as pessoas que choram,

bem como para aplicar dinâmicas de grupo.

Quando se pensa algo especifico do psicólogo, dentro da atenção primária, é isso o

que caracteriza o seu trabalho, vai ser um atendimento individual, vai ser a questão

dos conflitos familiares. Então, como é que o agente comunitário de saúde, como é

que o enfermeiro, às vezes, faz uma triagem a partir ou de um transtorno mental, que

eles tem no prontuário como um diagnóstico, um sofrimento gerado seja por

questões, principalmente, por questões de relações, conflitos. Mas também já

quando se pensa, por exemplo, numa pessoa que faz uso de álcool ou outras drogas

também se pensa no encaminhamento pro psicólogo, até questões que, às vezes, a

gente acha cômico, mas que, às vezes, é um pouco doloroso pra gente e a gente

precisa, no dia a dia, está lidando e trabalhando pra que essas coisas, que parecem

engraçadas, não virem mesmo algo tão corrente, que é: “ah ta chorou, manda pro

psicólogo”, “há um encontro com um grupo, precisa de uma dinâmica, cadê o

psicólogo?”. Mas eu vejo que também, por trás disso, você pode utilizar essas coisas

pra mostrar algo que é importante no trabalho do psicólogo como, por exemplo,

trabalhar nesses espaços de cuidado com coletivo.[...] de cuidado com o grupo, eu

acredito que é interessante tanto a escuta como a mediação, como na facilitação dos

processos dialógicos e aí eu vejo que tanto dentro da comunidade e desses espaços

seja em grupos, seja roda de quarteirão e como também dentro do próprio centro de

saúde. E além de facilitar esses processos de comunicação, esses processos também

de diálogo e também de escuta do sofrimento e do sofrimento também dos

trabalhadores e não é só do usuário que chega. Num é só com uma demanda

relacionado a algum transtorno mental ou um sofrimento psíquico, mas de uma

escuta que a gente faz até dos ruídos dentro da própria instituição e aí eu vejo

também o psicólogo, dentro da atenção primária, podendo trabalhar dentro das

11

Ato de instituir limites e regras.

175

formas de organização dos serviços de uma forma que esses serviços possa ser

acolhedor e aí é preciso ta atento mesmo a esses ruídos e às vezes não achar que são

detalhes.

Percebemos, na discussão sobre a especificidade do fazer dos psicólogos, que os

participantes reconhecem um certo modo específico de agir, que os constitui como

profissionais psicólogos. Apesar de certos constrangimentos causados pela exacerbação da

especialidade do saber psicológico, transformado em estereótipo e repercutindo na construção

de demandas problemáticas, há um conjunto de consensos, que colocam a psicologia, em

contraponto com o modelo biomédico, num lugar de reconhecimento e exaltação da dimensão

subjetiva dos processos de adoecimento, do cuidado e promoção da saúde, bem como do

conjunto de questões intersubjetivas, que perpassam a produção das práticas

multiprofissionais nesse campo. Abrem-se, a partir desse reconhecimento, muitos espaços que

serão ocupados pelos profissionais psicólogos, nesse campo hierarquizado da APS.

7.2 Lutas pelo reconhecimento

No intuito de conhecer os desafios colocados pela APS aos psicólogos, indagamos

diretamente sobre como a psicologia era reconhecida como profissão dentro desse espaço, a

partir da experiência dos participantes. Os diálogos nos ajudaram a esclarecer que o

reconhecimento e valorização da prática psicológica nos leva a refletir sobre várias questões

importantes do processo de produção das práticas e evidencia um conjunto de desafios e

estratégias de luta dos profissionais inseridos na APS.

A psicologia é, como já discutido nos capítulos anteriores, uma profissão

reconhecida por ser bastante demandada na ESF, o que repercute em certa visibilidade e

notoriedade no campo, bem como sobrecarga de trabalho para o profissional psicólogo.

A psicologia é uma das categorias que acabava se sobressaindo dentre as dez [da

RMSF], era muito demandada, muito solicitada pra tudo que se pensasse desde a

dengue, passando por puericultura, por tudo a psicologia sempre tava inserida entre

as categorias escolhidas pra participar daquela atuação ali.[...]

Então eu percebi que lá a psicologia acabou sendo um referencial de visibilidade

também. Então, por exemplo, enquanto que na minha equipe eram dez nas épocas de

avaliações né ah o que você acha de fulano de tal? Da categoria tal? Mas, quem é?

Quem é a fulana? Tinham categorias que as pessoas nem sabiam que estavam no

serviço, que eram da residência, e da psicologia não né.

Pesquisador:A psicologia estava no serviço?

R: “ah! aí a psicologia é assim é assado e tal né” e foi conquistando espaço né e tudo

e reconhecimento. Então em todos os três territórios isso foi reconhecido, foi

revalidado né. Mas, ao mesmo tempo que isso era validado, virava também a

sobrecarga.

[outro participante]

176

Eu fico pensando assim, eu acho que, outra coisa que eu notava que era um

diferencial da psicologia e da fisioterapia, falando da residência, assim é que eram

profissões que, são profissões que, assim, que a gente chegava e as pessoas já

sabiam o que a gente fazia ou pensavam que sabiam o que a gente fazia e já

identificavam uma demanda enorme que seria voltada pra gente. Então assim, isso

gera uma expectativa, gera uma demanda e gera um reconhecimento nesse sentido

de dizer “poxa, que bom que chegou psicólogo, que bom que chegou fisioterapeuta”.

[outro participante]

Ave Maria. Quando fala assim: “Tem psicólogo na equipe”, os olhos das

coordenadoras e todos: “Tem psicólogo?” Mas muito naquela visão de clínica, sabe?

Agora eu acho que já tá mais diferente, devido ver os trabalhos da gente com

grupos, de ver que não é só a atendimento de marcar consultas, de ir pra

escola.[...]Se existe uma profissão que todos querem no NASF é psicologia.

Além de ser bastante solicitada nos CSF, outro aspecto que os participantes apontam

no que diz respeito ao reconhecimento da profissão, é a atribuição de saberes “mágicos”

específicos à profissão, inacessíveis aos que não fazem parte da classe profissional.

Eu acho que ele é reconhecido enquanto uma coisa mágica, “o psicólogo, aquela

coisa mágica”.

Pesquisador: Um saber místico?

É, um saber místico que ninguém tem acesso, tá entendendo? E aí isso encanta

algumas pessoas. Isso chama algumas pessoas que, muitas vezes, tem demandas e

querem conversar suas demandas. E isso cria medo nas pessoas, principalmente,

nesse ambiente institucional. Eu reparei, quando eu ia conversar com algumas

pessoas, as pessoas ficavam assim, tipo assim: “vai me analisar”, “vai dizer isso e

aquilo, vai perceber isso e aquilo de mim”.

[outro participante]

Eu acho que inicialmente o profissional da psicologia, diferente até de outras

categorias, ele é reconhecido e valorizado no sentido de que parece que existe um

saber que ele tem que nós não temos, nessa perspectiva de entender o ser humano,

de cuidar do que é difícil, de cuidar de quem ta chorando, de cuidar de quem tem

transtorno mental né. Então, inicialmente, nos diversos espaços que eu me inseri,

parece que é importante que o psicólogo esteja com a gente e não sei nem muito

bem dizer porque. Mas tem coisas que eu não sei lidar e que ele vai saber lidar.

Então eu acho que diferente de outros profissionais é como se o profissional da

psicologia, de cara ele fosse reconhecido como necessário, porque tem coisas que

nós não sabemos lidar e que é com subjetividade, que é com o choro, que é com o

desabafo.

Um aspecto bastante relevante pra pensar as lutas pela autonomia, o que já aponta

para os riscos do reconhecimento, é que nem todas as práticas desenvolvidas são reconhecidas

com a mesma valorização. Isso implica na existência de certa seletividade e classificação

hierarquizada das práticas através do reconhecimento, onde as práticas clínicas da psicologia

são mais bem valorizadas, constituindo um espaço notável de poder.

Eu acho que algumas contribuições não são reconhecidas. Eu acho que a

contribuição clínica é muito mais reconhecida do que a dimensão comunitária. E que

é tão mais importante pra estratégia saúde da família, pelo menos no meu ponto de

vista.

177

Desse modo é preciso lutar pelo reconhecimento de algumas práticas, como já visto

no capítulo anterior onde discutimos as lutas em torno da construção das demandas. O

reconhecimento das práticas psicológicas não se dá de modo adequado aos interesses de

alguns dos profissionais inseridos nesse contexto. Nesse contexto, é preciso intervir para

modificar o olhar para a psicologia, bem como para a ESF. Foram relatados problemas,

especialmente, no que diz respeito ao uma focalização em programas e atendimentos clínicos

decorrentes da ordenação macropolítica da ESF. Aqui percebemos a importância de pensar a

APS ampliada, a partir da noção de território/comunidade. Nesse contexto, ser menos

focalizada pode significar estar mais aberta à descentralização política e à participação social.

Dentro de um confronto entre modelos na organização das práticas, a psicologia e as

outras profissões do NASF, especialmente em Fortaleza, foram alvo de muitas críticas por não

corresponder com as expectativas sociais de atendimento clínico das demandas. Novamente,

como já discutido nos capítulos anteriores, a condição de membro do NASF é criticada.

E não são só da nossa profissão né, mas que eu acho que a gente é muito mais

reconhecido pela dimensão clínica, é tanto que se você não fizesse clínica, não tem

reconhecimento. Por isso que o NASF teve muito problema de entrar, porque ele

justamente negou, “não ia atender”, “o NASF daqui não atende”.

Pesquisador:É mesmo?

R:Foi, era o “NASF não” e só fazia dizer não.

Pesquisador:”NASF não” é?

R:Hurrum.

P:E no caso dos psicólogos?

R:Não de todos os profissionais e aí virou “Nada Se Faz” né, nada se faz, “Nada

Aqui Se Faz”, nada a se fazer é que o povo frescava. [...] depois que a gente entrou

na residência, o NASF entrou um mês depois, aí tinha um motorista que, era o

mesmo motorista do posto e do outro, o do outro trabalhava em outro posto, que

tinha um NASF, e aí ele que chegou com essa coisa do “Nada Aqui Se Faz”, o

NASF, a sigla. “Nada Aqui Se Faz”, então, assim foi muito difícil dizer não para

aquela demanda que as pessoas estavam esperando do psicólogo, que a demanda

dada assim e que todo mundo conhece o que o psicólogo faz, as outras coisas a

gente tem que dizer que a gente faz né.

A necessidade de dizer “não” às expectativas dos outros agentes e de buscar a

legitimação de práticas desconhecidas ou percebidas como ineficientes faz com que os

psicólogos, que compartilham o lugar de equipe de apoio, enfrentem dificuldades na sua

inserção nos CSF. Percebemos, na análise do material empírico produzido, que a condição de

ser do NASF, já discutida anteriormente, concebida como aquela em que o profissional ocupa

um espaço secundário e precarizado no campo, é uma condição de subalternidade a ser

superada na busca pela consolidação das práticas psicológicas na APS. Assim, coloca-se em

questão, não somente os limites das práticas de apoio na ESF, mas, sobretudo, as condições

desiguais em que esses profissionais estão submetidos, no que diz respeito ao alcance possível

178

de suas práticas, gerando claro desprestígio da APS dos SUS como campo de práticas. O

NASF, em seu momento de inserção inicial na ESF, ocupa espaços no campo em que as

práticas são questionadas e enfrentam resistências, talvez decorrente de uma não aceitação da

recente política. No caso específico da psicologia, é possível agregar a esse desafio do NASF,

todo um conjunto de questões de reconhecimento justapostas à sua posição na hierarquia das

profissões na ESF, em que há um potencial enfrentamento da hegemonia do modelo

biomédico e sua normatividade na classificação e avaliação das práticas.

P:Existem obstáculos para que a psicologia seja reconhecida na atenção primária?

R:Existem, devem existir bastante aí pelo contato que eu tenho com outros

profissionais dentro da regional que eu trabalho e tal que é a questão, eu não sei se

eu taria agora falando de uma maneira geral pra toda categoria né, mas essa questão,

por exemplo, da equipe de saúde da família já formada, já estabelecida, sentir

aqueles profissionais não como um apoio, do núcleo de apoio né do saúde da

família, mas como intrusos ali do terreiro deles, do galinheiro deles e tal. E ao

mesmo tempo como inócuos.

[outro participante]

Quando eu entrei, os que já estavam lá me diziam que, por muito tempo o pessoal

brincava, ironizava assim que “NASF era Nunca Atenderemos Família” ou então

“Nada a Se Fazer”, que tinha a sua verdade. E no começo, os próprios profissionais

que entraram tavam meio assim ainda construindo ali alguma coisa. Mas que,

também, eu acredito que veio de uma visão dos outros profissionais, que são mais

técnicos e que a psicologia, muito essa crise. Inclusive a maneira como eu fiz o

curso. Pô, mas a pessoa vai no médico e ela sai com a receita, ela vai ao

fisioterapeuta e ele toca nela, mexe nela e faz aquela técnica e tal, na nutricionista

sai de lá com uma dieta e o psicólogo a pessoa sai com o que né? A sensação é de

que você não ta fazendo “p.n.” pela pessoa e ela entrou e saiu... E eu ficava

impressionado na clínica que as pessoas voltavam. Por que esse cara ta voltando pra

cá? Fico impressionado com aquilo ali né. E por algum tempo eu tive essa crise e os

profissionais da área médica mesmo né, medicina, enfermagem e tal não tem esse

lance assim.

O enfrentamento de uma hierarquia de poder instituída no cotidiano das práticas, que

valoriza os saberes biomédicos percebidos como mais legitimados científica e socialmente, é

uma realidade a qual o psicólogo parece ter de se adaptar engajando-se nas lutas por espaço e

legitimação. Nesse contexto, a experiência dos participantes nos ajuda a entender as relações

de força instituídas no campo. Discutimos, nos capítulos anteriores, que o profissional

enfrenta o problema de uma demanda crescente, decorrente de vários fatores, como do

reconhecimento da importância da psicologia na resolução dos problemas de saúde

pertinentes ao escopo das ações da ESF. Vimos que sua condição de trabalho, na percepção

dos participantes, não permite a elaboração de uma agenda capaz de lidar satisfatoriamente

com tais demandas. Uma das lutas do profissional é, então, buscar legitimar suas práticas e o

modo como as desenvolve no campo, para ampliar sua autonomia e poder. Nesse contexto,

enfrenta a submissão ao modelo biomédico, a partir de estratégias de dominação diversas.

179

Nesse enfrentamento, podemos perceber que a psicologia é também envolvida em

negociações que envolvem a ocupação de espaços contraditórios de prestígio e submissão.

Participante:Quando eu penso na minha prática, enfim, há vinte anos atrás, Vejo que

a gente tem hoje um certo reconhecimento, desse lugar, ou da importância desse

trabalho, eu acho que a gente, dentro dessa hierarquia acaba ocupando, não estou

dizendo, que eu acho isso legal não. Mas eu acho que tem aí, falando aí dos

prestígios, eu acho que tem aí um prestigio que a psicologia ta ganhando nesses

últimos anos. No sentido do reconhecimento da sua prática, muito cooptada, eu acho

que por valores, que ela precisa se perguntar se vale a pena pra ela estar nesses

espaços. Ela ter que abrir mão de tantos pressupostos éticos e teóricos importantes.

Nesse sentido, que às vezes eu acho que o psicólogo, muito rapidamente se coloca

como parceiro desse especialista. E ele estaria ali como um mero facilitador do

trabalho desse especialista.

Pesquisador: Esse especialista que você fala?

Participante: Do médico, por exemplo, do psiquiatra. E, às vezes, até do enfermeiro

ainda que numa condição de submissão a médicos, mas reproduzindo também esse

discurso. Mas é diferente assim do lugar que há vinte anos eu acho que nós

estivemos, assim de um certo lugar de quase apagamento, dentro da instituição. E

aquele lugar da psicologia era o lugar pior que tinha dentro dos postos, não que a

gente não tenha essa realidade hoje.

[...]

Pesquisador: Tu estavas falando desse processo histórico e, na tua opinião, o

psicólogo tem conseguido um reconhecimento maior em cima de alguns valores, que

precisa questionar. Eu não entendi bem isso, queria que você falasse um pouco mais.

Participante: A impressão que eu tenho, às vezes é que...

Pesquisador: Seria de ser aporte da medicina, de ser submisso ao modelo biomédico,

de ser um, enfim...

Participante:Isso, de esquecer, enfim, esquecer entre aspas, mas nesse sentido

mesmo de poder ser um pouco mais crítico também, uma certa criticidade, que eu

não sei e, aí tem a ver com a minha formação talvez[...]

Pesquisador: Essa postura crítica ela é reconhecida nesse campo ou é mais

reconhecido a submissão ao modelo.

Participante: Eu acho que é mais reconhecida a submissão. O medo que eu tenho é

que ele goze desse prestigio, porque ele tem podido se submeter mais, porque ele

tem sido menos crítico. Porque ele tem... está abrindo mão de apontar dentro desses

discursos hegemônicos aquilo que não funciona, aquilo que é o lugar do sujeito e

que fura um pouco com essa lógica totalitária. Eu tenho medo de que esse prestigio

adquirido ele também advenha de uma certa submissão a essa lógica.

A história da psicologia no Brasil, como vimos a partir de alguns autores citados

(ANTUNES, 2007; PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003), é marcada por uma relação de

cooperação e submissão à medicina e à psiquiatria tradicional, o que reverberou em sua baixa

participação nos movimentos de reforma psiquiátrica (VASCONCELOS, 2004). É notável

nesse processo histórico, a participação da psicologia como ciência implicada com as agencias

sociais de controle de corpos e mentes, na perspectiva da Medicina Social Higienista

(ANTUNES, 2007; FIGUEIREDO; SANTI, 2010). Nessa perspectiva, nossa pesquisa, aponta

para a necessidade de um reposicionamento crítico e questionador da psicologia frente ao

modelo biomédico hegemônico. Assim, ao discutir o reconhecimento e valorização da

psicologia na APS, nos deparamos com o desafio do enfrentamento do modelo biomédico

180

como estruturador de relações de força e dominação no campo. Indagamos sobre como ser

reconhecido fora dessa lógica de organização e classificação das práticas.

Pesquisador: O que a gente precisa fazer pra obter esse reconhecimento legítimo,

vamos dizer assim, o que a profissão, lhe pergunto porque sei que você ta

trabalhando nisso, no sentido de que certa forma o papel da formação ela volta assim

pra pensar esse caminho da psicologia nesse processo histórico.

Participante: Eu acho que é fundamental assim, eu não sei se eu estou sendo

redundante e tautológica. Mas, nesse sentido eu acho que caberá a nós ter cada vez

mais claro de que especificidade é essa que se trata. Acho que a demarcação de um

campo ela depende disso, que você possa sempre tencionar essas diferenças né e ao

mesmo tempo autoengendrar uma especificidade. Não sei, acho que depende

também sem dúvida nenhuma, assim quando eu penso nos estagiários que vão pro

campo, eles, engraçado isso, é uma marca do estudante de psicologia, acaba que ele

ta sempre esperando que um outro diga o que ele deve fazer. Se ele ta no posto de

saúde esse posto de saúde não é o lugar dele, é o lugar do outro ainda né e precisa

que um outro diga o que ele vai fazer pra que ele possa se emancipar e se sentir

autorizado a realizar aí o seu trabalho. Não sei o que é isso, eu não sei te dizer o que

é isso, mas eles ficam muito inibidos.

A busca por um reconhecimento, que favoreça aos interesses de ampliação da

autonomia da profissão, é um motivador de várias lutas em torno da legitimação das práticas

profissionais dos psicólogos. Existem várias estratégias que são apontadas, pelos participantes

da pesquisa, que podem ser adotadas para superar os obstáculos colocados no cotidiano da

APS. Uma estratégia de destaque, já apontada nos capítulos anteriores, diz respeito ao

processo de acolhimento de demandas que já construídas em torno das visões que se tem da

psicologia. Aqui, passa a ser relevante o processo de leitura, tradução e transformação das

demandas, que deve se constituir da delimitação de um espaço distinto de práticas.

Pesquisador: Se tu fosse recomendar um profissional psicólogo que está entrando na

atenção primária, uma forma dele conseguir reconhecimento seria o que?

Participante: Seria...

Pesquisador: Ser reconhecido e valorizado no Centro de Saúde da Família.

Participante: Seria ele acolher o que as pessoas trazem, ele tem que acolher e não

pode dizer simplesmente “não” e ficar lá todo tempo dizendo o que ele não faz. Ele

tem que acolher até porque aquela pessoa não tem obrigação nenhuma de saber o

que ele faz e o que ele não faz. Então ele tem que acolher isso e também ler o que ta

por trás dos pedidos.

Ser reconhecido, para alguns entrevistados, significa ser competente no uso de seus

saberes específicos, voltados para os processos subjetivos já abordados acima, constituindo-se

como um articulador e mediador das ações nas equipes multiprofissionais. A partir desse

ponto de vista, destaca-se o reconhecimento dentro de uma atuação já identificada

socialmente como própria do âmbito de práticas da psicologia. Agindo dentro de seu núcleo

específico de práticas, o profissional pode obter a valorização de suas práticas atuando

181

especialmente no espaço de visibilidade e poder, que o papel de mediador nas práticas da

APS, permite.

Pra que ele tenha uma valorização, no sentido pleno, vamos chamar assim, que não é

só essa valorização social da profissão, mas uma valorização daquele psicólogo,

naquela equipe, eu acho que o que precisa é esse papel de grande articulador[...]

Então, acho que a medida que o profissional da psicologia vai fazendo isso nessas

diversas situações, na gestante que não é cuidada ou que não quer se cuidar, no

estudante na escola, na facilitação da Roda [de gestão do CSF] e tal, o profissional

da psicologia vai sendo importante e, muitas vezes, fundamental como um grande

articulador, como alguém que entende da subjetividade, valoriza, respeita e sabe

trabalhar com alguns recursos, que viu na formação e que vai aprendendo ao longo

da caminhada. Então, isso eu acho que, ao longo do tempo, ele vai mostrando

porque ele é importante na equipe. Às vezes é o confidente, é onde alguém que não

aguenta mais estar naquele lugar, naquele CSF e quer conversar com alguém, é o

confidente dos próprios profissionais, então, essa visão social de que aquela pessoa

está ali pra ouvir e que é algo extremamente colado à profissão facilita a chegada das

pessoas e que aí você tem a possibilidade de ajudar construir outros caminhos assim.

[...] Na minha experiência profissional eu provavelmente tive muitos erros e não dei

conta de muitas coisas. Mas sou lembrado assim “ah tempo bom aquele né”, eu

percebo e tinha uma fala que era recorrente e que isso sempre me incomodou que era

assim: “Você não é daqui não né? - não, sou de Fortaleza. - é por isso que você

escuta a gente assim”. Então, tinha uma coisa

P:Tu acha que isso é da categoria profissional?

R:Eu acho que naquele momento se confunde um pouco, mas eu sei que o

profissional da psicologia tem a possibilidade de ouvir melhor e falar melhor nessa

perspectiva da articulação, dentro da formação a gente trabalha isso.

Além dessa habilidade de intervir junto aos processos interpessoais nas práticas da

ESF, é preciso provar publicamente que suas práticas, diversas muitas vezes do que se espera

delas, são resolutivas no enfrentamento dos problemas de saúde trabalhados no cotidiano. É

preciso ser resolutivo para ter reconhecimento e valorização profissional.

Então acho que eles passam a reconhecer não só como uma experiência prévia “ah a

psicologia é importante e eu tenho a expectativa que ela atenda”. Eu acho que eles

passam a reconhecer quando começam acontecer coisas ali que eles percebem que

são resolutivas, que eles percebem que muda a forma daquele problema de saúde ser

abordado ali e aí ele acha bom né, porque no final das contas todo mundo quer a

melhoria do estado de saúde dessa galera né, quer que as coisas melhorem, mas aí

cada um faz do seu jeito e às vezes faz de uma forma sem pensar muito bem nas

consequências, sem pensar muito bem na relação com os outros né e a nossa

proposta era um pouco essa, vamos pensar positivamente como é que a gente

enfrenta a demanda de saúde mental.

O compromisso com os processos de trabalho é outro qualificador positivo das

práticas psicológicas, apontado pelos participantes, e que agrega valores ao reconhecimento

da profissão no campo da APS e das redes de serviço de saúde articulados. Como é possível

interpretar na fala do participante, quando discutíamos sobre os desafios do reconhecimento e

valorização da psicologia na APS, a qualificação da prática psicológica se dá num exercício

de agir socialmente implicado com a busca de autonomia dos sujeitos, o que remete a uma

182

dimensão social e política da prática profissional: “eu acho que passa muito pelo

compromisso e por essa busca de autonomia do sujeito, do sujeito tentar se cuidar, dar conta.

Não sozinho, nunca sozinho, mas no âmbito da rede”. Nesse agir socialmente, questões

organizacionais do processo de trabalho na ESF, como estabelecer uma agenda de atividades

e torná-la clara para os outros da equipe, são desafios estratégicos a enfrentar cotidianamente

na construção das práticas da psicologia. Assim, segundo esse ponto de vista expresso nas

entrevistas, o reconhecimento decorre mais da conduta profissional na relação com os outros

agentes. Essa conduta dever refletir-se na acessibilidade e na habilidade para delimitar e

legitimar o espaço de sua disponibilidade. Esses foram elementos identificados como

potencializadores do reconhecimento e valorização da psicologia.

À medida que a gente consegue estabelecer fluxos claros, fluxos assistenciais, de

intervenções institucionais, fluxos de intervenção na comunidade. [...] Deixando

claro, a comunidade sabe que eu vou participar do fórum comunitário a cada quinze

dias, vou intervir com as minhas contribuições, vou inclusive estar nas repercussões

do fórum comunitário, enfim. É ter um fluxo, o cara estar ali em determinadas ações

e intervenções para as circunstâncias. [...] Eu acho que o nosso reconhecimento tem

haver com o acesso dos profissionais. E quando eu digo acesso não significa dizer

que é fazer o que os outros querem. Não é fazer. [...]é o lance da disponibilidade e

acesso. Eu acho que é acesso, não é nem disponibilidade. [...] Enfim, eu acho que o

nosso reconhecimento tem haver em relação a nossa conduta.

Alguns obstáculos vão se constituindo com certa regularidade e impondo desafios

para o desenvolvimento das práticas psicológicas. Os entrevistados apontam a necessidade de

saber lidar com o problema, já discutido nos capítulos anteriores, da enorme demanda criada

para o atendimento da psicologia, que remete a trabalhar na criação de limites e mecanismos

de adequação dessas demandas. Aqui, ressalta-se a habilidade do profissional saber lidar com

a expectativa do outro e, quando possível, desenvolver uma prática adequada para lidar com

alguma dimensão dos problemas de saúde apresentados, construindo socialmente uma

resposta satisfatória frente aos anseios do outro profissional ou mesmo usuário.

O distanciamento histórico da formação em psicologia para a atuação nas políticas

públicas de saúde também é um obstáculo a ser superado pelo profissional, o que remete à

necessidade de fomento de estratégias educacionais durante e após à graduação em

Psicologia. No próximo capítulo, abordaremos a questão da formação e sua relevância para a

preparação de profissionais para atuar na APS do SUS. Interessa-nos, nesse contexto, também

investigar as consequências que a experiência prática na APS traz para a constituição de um

saber fazer mais apropriado. Dentro desse contexto da reflexão sobre a formação, os

participantes apontam ainda a necessidade de sistematização das práticas como uma estratégia

183

de consolidação de experiências inovadoras, repercutindo no reconhecimento e valorização

das práticas.

A RMSF é elogiada pelos participantes como uma alternativa importante para suprir

as lacunas deixadas pela graduação, instrumentalizando os profissionais para uma atuação

mais potente na APS. No entanto, um dos obstáculos a superar, na busca pelo reconhecimento

da psicologia na APS é a conquista de espaços nos próprios sistemas municipais onde a

RMSF se desenvolveu.

A residência multiprofissional, por exemplo, a gente fez um super trabalho lá, se

inseriu mesmo, criou um vínculo muito legal com a comunidade e nenhum foi

contratado pela prefeitura, ninguém aproveitou a gente né, formaram a gente ali e

ninguém aproveitou né. Nesse sentido a gente não foi valorizada de jeito nenhum né,

não foi reconhecido de jeito nenhum. Hoje em dia tem gente no interior trabalhando

em outro canto, quer dizer, formou pra dar de bandeja um profissional super

formado pra outro município, entendeu, é uma coisa bem incoerente.

Outros obstáculos identificados pelos participantes foram também pertinentes à

precariedade do campo da APS como espaço de práticas psicológicas, como já discutidos

anteriormente no que diz respeito especialmente à condição de ser profissional das equipes de

apoio, como o NASF. Os vínculos trabalhistas precários colocam os profissionais em situação

de vulnerabilidade frente às gestões municipais e instabilidade no emprego, o que convoca o

profissional a entrar em um estado de permanente tensão e busca de outras possibilidades de

trabalho mais estáveis, como nos cargos abertos em concursos. Essa precariedade, própria da

condição NASF já discutida anteriormente, também se reflete na ampla área de

responsabilidade sanitária, ou território de adstrição de clientela, para atuação destinada aos

profissionais entrevistados.

O grande obstáculo que eu acho é a formação de vínculo. Que a gente não consegue

formar vínculo adequado trabalhando em três Unidades de Saúde, trabalhando em

quatro Unidades de Saúde, trabalhando em cinco Unidades de Saúde. Porque

trabalho de psicologia é pra mim trabalho de muito, muito, de formação de vínculo.

Se você não está lá, se a pessoa não pode contar. A pessoa não sabe no mundo

quando, eu vejo uma pessoa hoje e vou ver com um mês? Porque eu não tenho

agenda? O grupo terapêutico eu vejo de quinze em quinze dias e é porque eu

estipulei, o grupo terapêutico eu vou fazer e vai ser quinzenal.

A reformulação de um conjunto de práticas tradicionais e sua integração a uma

representação social da profissão entendida como equivocada, é apontada pelos participantes.

Parece-nos que, por mais que isso envolva um conjunto de lutas em torno da definição

legítima das práticas da APS e da Psicologia, essa reconstrução da identidade profissional é

um fenômeno transversal a todo um conjunto de estratégias, como as que já foram abordadas

até agora, que visam a ampliação do poder da psicologia para atuar de modo mais amplo e

184

autônomo, no sentido de ocupar espaços de maior legitimidade no campo de práticas, para

além do espaço já conquistado historicamente do consultório.

Bom, desafio político também ético até porque ta ligado mesmo a esse ethos do

fazer, do se fazer psicólogo todo dia dentro da atenção primária. Primeiro eu

acredito que um dos desafios é justamente a herança que a gente traz como

psicólogo. E essa herança que a gente traz é algo penoso, pesado e que acaba nos

colocando dentro de um desafio, que também é político e que também é ético.

Então, até porque você, querendo ou não, só por você ser psicólogo, você já se

comprometeu com essa herança. [...] Porque é essa a bagagem ideacional que as

pessoas tem né. E que eu também, querendo ou não, também trago da minha

formação, de um fazer, não vou dizer clínico, mas de um fazer preso a um

consultório, de uma escuta, às vezes, restrita a um problema, que eu acredito ser e eu

não sei como, às vezes, eu consigo dizer que é do âmbito psicológico. E, por isso, só

dá responsabilidade a uma categoria psi e, no caso aqui, se tratando de psicólogo.

Então um dos desafios é justamente ir trabalhando essa concepção que não é só dos

outros é minha também. [...] E tanto a concepção do que é psicólogo e do que é

sofrimento psíquico, do que é produção de subjetividade, do que o seu fazer tanto no

atendimento individual como coletivo, tanto dentro do centro de saúde, como dentro

do bairro, da comunidade, dos grupos da comunidade ou então conversando numa

caminhada no quarteirão lá do bairro com uma pessoa que te chama. [...] E aí existe

um compromisso ético e político, também, de você poder reconhecer suas limitações

e reconhecer o que demanda de você dentro da atenção primária, porque assim, pra

você não cair no outro ponto que é o da integralidade das ações, da generalização

das ações de que você pode tudo e deve tudo.

A partir do que fora explicitado na fala acima, podemos tomar a reflexividade como

um princípio ético e político qualificador das práticas psicológicas na luta por um

reconhecimento e valorização no campo da APS. O exercício da reflexividade (BOURDIEU,

2012) nos possibilita um olhar crítico e autocrítico frente aos caminhos construídos e

desejados no desenvolvimento das práticas. Assim, os agentes e instituições envolvidos com o

processo de inserção da psicologia na APS, podem direcionar-se criticamente visando a

ampliação do espaço do possível na legitimação da atuação profissional. Diante do conjunto

de obstáculos já apontados, que são constituintes das relações de trabalho no campo da ESF, a

análise da experiência trazida pelos psicólogos entrevistados, nos convida a refletir sobre o

espaço social da APS do SUS como um território de lutas simbólicas, em que as práticas

psicológicas devem constituir-se com certa rebeldia frente ao já está instituído – que tem forte

poder instituinte.

É eu acho que a primeira coisa [...] é saber o que a gente ta fazendo, se

contextualizar do que a gente ta fazendo ali dentro. Eu acho que a gente tem que ser

um pouquinho mais rebelde sabia com algumas coisas, que a gente ainda é uma

profissão muito tutelada, pelo o que se espera que a gente faça. Eu acho que tem que

ser mais rebelde com a equipe mínima entendeu, tem que ser mais rebelde. E o que

eu estou chamando de rebeldia, questionar algumas coisas que já estão estabelecidas

e cristalizadas nas práticas de trabalho, nas práticas de cuidar ou não cuidar das

outras pessoas, que chegam até a atenção primária com sofrimentos mil. Questionar

de forma até mais, e a gente tem alguns elementos já nesse curta caminhada na

atenção primária. E que é possível articular cuidado, que é possível pensar

185

subjetividade e que isso não é um conhecimento privativo nosso, mas que a gente

tem um diferencial por ter se formado com foco um pouco mais nessas questões. E

eu acho que já tem como conversar, não sei se de igual pra igual, no sentido do

exercício de poder das profissões. Mas acho que a gente pode ser um pouquinho

mais ousado pra entrar nesses espaços, porque, às vezes, a gente fica esperando ser

convidado demais pra fazer as coisas sabe. E eu acho que a gente não ta precisando

disso nesse momento histórico não. Está precisando é entrar mais, questionar mais e

colocar também as dificuldades que a gente tem de trabalhar as limitações do nosso

fazer. Então, eu não acredito que fará com que, que será feito o melhor ambiente pra

que a gente possa atuar e darão isso pra gente de graça. O Ministério vai dizer isso

amanhã ou semana que vem apresentar uma portaria que o trabalho do psicólogo é

fundamental e, também, não acho essa luta coorporativa, corporativismo. Nós temos

algum valor no que fazemos e precisamos aprender como dizer isso de forma um

pouco mais clara pros nossos usuários e pras pessoas que trabalham com a gente.

Então eu acho, em resumo da obra, que a gente tem que ser mais rebelde e não estar

muito esperando ser convidado pra festa sabe. E eu não espero isso dos meus

colegas médicos, meus colegas enfermeiros e nem dentistas e talvez de alguns ACS.

Do modo como colocado na fala do participante, o reconhecimento e valorização da

psicologia remete a uma postura ativa e transformadora do campo da APS, rebelde frente à

passividade com que os processos de trabalho, muitas vezes, impõe uma visão equivocada e

restritiva aos âmbitos das práticas psicológicas. Assim, em nosso entendimento, a construção

da especificidade da psicologia deve ser vista como um esforço de luta e resistência simbólica

frente a visões hegemônicas da ESF e da psicologia, visando a instauração de mudanças

radicais.

A revolução simbólica contra a dominação simbólica e os efeitos de intimidação que

ela exerce tem em jogo não, como se diz, a conquista ou reconquista de uma

identidade, mas a reapropriação coletiva deste poder sobre os princípios de

construção e de avaliação da sua própria identidade de que o dominado abdica em

proveito do dominante enquanto aceita ser negado ou negar-se (e negar os que, entre

os seus, não querem ou não podem negar-se) para se fazer reconhecer (BOURDIEU,

2012, p.125).

Na perspectiva dessa luta ou revolução simbólica necessária, as práticas

desenvolvidas devem apontar para a afirmação de novos horizontes éticos, políticos e

epistemológicos mais efetivos diante das necessidades de saúde da população e do processo

de constituição e legitimação de espaços mais qualificados de potencialização da atuação

profissional da psicologia. As práticas psicológicas, assim, precisam ser compreendidas nesse

contexto de disputas entre o tradicional e o novo, entre ortodoxia e heterodoxia.

186

8 IMPLICAÇÕES PARA A IDENTIDADE PROFISSIONAL: INTERFLUÊNCIAS

ENTRE CAMPO E HABITUS

No percurso de desenvolvimento de uma interpretação pertinente à prática da

psicologia na APS, buscamos compreender alguns sentidos da experiência profissional na

trajetória de formação dos participantes. Chegamos à indagação sobre como a experiência

vivida pelos participantes no campo da APS influencia no modo como atuam como

profissionais. Essa reflexão, que será desenvolvida no presente capítulo, visa interrogar o

sentido de possíveis transformações e reproduções, nos modos como as práticas psicológicas

são desenvolvidas, quando da decorrência da inserção da psicologia na APS. Essa

interrogação dos sentidos da experiência nos possibilita refletir sobre algumas dimensões do

processo histórico vivido atualmente pela categoria profissional, no contexto das políticas de

atenção primária à saúde.

Tomando como referência os conceitos de habitus e campo em Bourdieu (2012),

indagamos sobre a força constitutiva que o campo da APS impõe à prática profissional dos

psicólogos, de modo a demarcar significativamente a construção do habitus profissional.

Assim, as experiências profissionais analisadas aqui, foram propulsoras de um conjunto de

mudanças nas formas de atuação decorrente da vivência prática nos CSF. Essas mudanças no

modo de ser do agente como profissional podem ser entendidas como fruto do

desenvolvimento de diversas estratégias políticas e epistemológicas de fundamentação e

legitimação de práticas. Assim, nossa reflexão consistiu em problematizar a relação entre

campo e habitus na experiência na APS do SUS. Partimos do entendimento que a formação

profissional do psicólogo sofre impactos relevantes da experiência de trabalho na ESF e isso

pôde ser analisado, a partir das experiências dos participantes do presente estudo.

8.1 Significados da experiência e algumas reflexões sobre a profissão

Pudemos identificar importantes marcas da experiência dos participantes na APS do

SUS para a construção de suas identidades profissionais. Tais marcas decorrem de

aprendizagens e processos de socialização vivenciados na ESF, que contribuíram para a

formação pessoal e social dos profissionais entrevistados, revelando transformações nos

modos de agir e se posicionar ética e tecnicamente frente aos problemas de saúde da

população. Dentre as inúmeras questões trabalhadas e discutidas nos diálogos de entrevista, os

participantes, especialmente aqueles que tiveram experiências profissionais na RMSF,

187

relataram mudanças positivas no aprimoramento dos modos de agir como profissional. Dentre

as mudanças relatadas destacamos: a ampliação da capacidade de escuta; aprimoramento nos

relacionamentos interprofissionais e intersetoriais; ampliação do olhar para o processo saúde-

doença; desenvolvimento de uma postura ativa frente aos problemas de saúde;

amadurecimento; desenvolvimento técnico; fortalecimento da identidade profissional de

psicólogo; e transformações decorrentes da incorporação da identidade de profissional da

saúde.

Dentre as aprendizagens decorrentes da inserção do profissional no campo da APS,

nos territórios da ESF, destaca-se um conjunto de saberes e práticas desenvolvidos nas

relações com os usuários, suas histórias e contextos de vida. A aprendizagem construída na

relação com o usuário, seus problemas de saúde e as práticas profissionais, influencia

decididamente na formação do psicólogo, consolidando estratégias de atuação que

institucionalizam práticas e modos realização, bem como questionando fazeres tradicionais a

partir dos problemas práticos relativos ao cotidiano das práticas nos CSF.

Eu aprendi a escutar bem mais, eu aprendi a ser mais humano, a aceitar e aí eu acho

que isso é mais fantástico, pra mim foi o que foi mais fantástico, que aí exigiu muito

de mim, pensar alternativas terapêuticas. Porque eu dava uma e aí dava um tempo e

via que não funcionava, aí tá, tudo bem. ‘Mas porque é que não funcionou?” Então

assim, já do meio pro final eu comecei a, sentava aqui com uma pessoa: “olha a

gente tem aqui uma série de possibilidades dentro do que você tá me dizendo. O que

é que é melhor pra você pra gente te ajudar? O que é que é melhor pra você? Vamos

lá escolher? Você escolher. Então assim, isso pra mim, porque uma coisa é vocês

estudar né, você vê que o projeto terapêutico, dentro da clínica ampliada é centrado

no sujeito, mas outra coisa é você vê isso na prática e você vê que o sujeito não tá

topando o teu projeto terapêutico. Ele tem que topar o projeto terapêutico que ele faz

parte. Então assim, eu aprendi muito isso né.

Um conjunto de aprendizagens ligado à experiência de trabalho com equipes

multiprofissionais, também expõe os modelos de prática psicológica tradicionais a revisões

críticas e ampliações no escopo de suas ações. Aqui, como nas aprendizagens das relações

com os usuários, podemos perceber a ampliação do olhar e da intervenção do profissional

psicólogo como resultante da experiência na APS. Esse processo de ampliação do olhar dos

profissionais é fundamental para o desenvolvimento de práticas participativas nos CSF

(NEPOMUCENO et al., 2013). Dentro desse processo de ampliação e revisão crítica, muitos

referenciais teóricos e metodológicos são analisados, discute-se um conjunto de habilidades e

competências necessárias para agir em saúde e no SUS, várias inovações são exigidas no

exercício da prática profissional, subsidiando certa reconstrução de representações e

identificações profissionais, que redireciona alguns processos de subjetivação implicados na

prática. Articula-se assim, na prática profissional, um conjunto de questões afetivas referentes

188

à construção de uma identidade profissional específica ao campo da APS. Nesse processo de

construção da identidade profissional, alguns participantes relataram sentir-se “efetivamente

psicólogos” a partir da experiência de trabalho na RMSF e NASF, pela amplitude do campo e

complexidade de seus problemas, que contribui para que o psicólogo tenha mais “marra

profissional”:

Eu acho que assim, eu me descobri psicólogo quando eu tava na residência. Porque

eu acho que quando eu saí da graduação eu fiz o meu estágio na clínica o último,

mas eu acho que eu só me senti psicóloga mesmo na residência assim realmente

estou sendo psicólogo, eu estou fazendo coisa que o psicólogo faz. Mesmo a gente

tendo essa crise toda, mas eu me senti como psicólogo foi na residência. Então, eu

acho que me fez construir, me construir enquanto profissional. Claro que na minha

formação toda eu me construí como profissional, minha graduação. Mas d’eu me

sentir né, acho que tem a ver com isso d’eu me sentir profissional acho que foi muito

importante assim e me fez eu acho que...

Pesquisador: E como que a atenção primária te fez sentir psicólogo?

Justamente por essa complexidade de demandas. Por exemplo, um psicólogo que

atua só numa coisa ele não tem experiência com outra coisa. Mas a gente, na atenção

primária, tem experiência de tudo, praticamente de tudo.

Pesquisador: E tem uma visão ampla da psicologia é?

É. Por exemplo, tem visão desde o bebê, da criança, do adolescente, dos adultos e

dos idosos. Então, assim, a gente atua com todas as faixas etárias, com diversos

aspectos do conhecimento, da atuação psicológica que envolve. Aqui, por exemplo,

eu aprendi a fazer testes neuropsicológicos pra atuar com os idosos, pra fazer coisas

de acompanhamento terapêutico, coisas de psicologia escolar, de psicopedagogia,

coisas de álcool e drogas, de coisas de saúde mental mais grave, dos diversos tipos

dos transtornos. Porque no território tem de tudo e não é só uma coisa. Então, eu me

construir assim “putz, né?! Tenho experiência em muitas coisas né?!”, não tenho

experiência numa coisa só não [...] mas com a diversidade da vida mesmo, das

pessoas e, o que eu acho muito bom da atenção primária[...] Então eu acho que isso

foi muito bom pra mim, assim, de me construir com... dar marra mesmo ao

profissional.

A experiência da APS levou alguns profissionais participantes a fortalecerem-se na

construção de uma identidade profissional marcada pelos amplos e diversos âmbitos de

possibilidades práticas, aglutinando saberes e práticas oriundos de diversas áreas de atuação

da psicologia e de outras profissões de saúde. Isso nos remete a pensar os desafios da

formação em psicologia para o trabalho nas políticas públicas, que têm crescido atualmente

como na ampliação de espaços de contratação de trabalhadores sociais e que tem se refletido

no deslocamento de um perfil de profissional liberal para um trabalhador social no campo das

políticas públicas (FERREIRA NETO, 2011).

Em nosso caso, vemos a APS como grande desafio pela abertura de diversas

perspectivas práticas. A possibilidade de experimentar diversos espaços de prática, de

submeter à ação e reflexão um conjunto amplo de referenciais, modos de ser e abordagens

teórico-metodológicas da psicologia, qualifica a APS como campo de potencias

transformações na relação entre psicologia e políticas de atenção à saúde. Isso claro, em nossa

189

experiência, sofre influência marcante dos processos instaurados pelos programas de RMSF.

Como destaca o participante, na fala abaixo, a experiência da APS do SUS, tem o potencial de

repercutir na formação dos agentes, especialmente, na preparação para lidar com a relação

entre a prática psicológica e as necessidades de saúde da população, qualificando os agentes

para a produção de ações consistentes e legitimadas no processo saúde-doença-cuidado.

Participante:Eu não sei bem assim dimensionar e tamanha é a importância, porque

eu acho que pra mim foi uma formação, alguma formação aquilo que eu pude ter

assim, me deu. E, assim, quando eu sento e converso sobre, eu percebo que eu acho

que eu não sei tão pouco assim, como eu penso que sei, que acabei absorvendo

alguma coisa por estar lá. Por ter sido dado pra mim essa oportunidade de estar

inserido na atenção primária e de perceber a importância disso. E de me conectar

com gente, de me conectar com pessoas de diversas categorias, de procurar construir

um fazer e um saber que realmente tenha uma eficácia, que traga algum benefício

pra aquelas pessoas que tão ali. E, assim, pra mim, eu considero uma grande parte da

minha formação profissional o fato d’eu ter passado e estar ainda esses dois anos e

cinco meses dentro de um centro de saúde da família, me ajudou demais, me deu

muito mais do que eu dei.

Pesquisador:O que te deu?

Participante:Me deu consistência, mais consistência, não vou dizer que deu a

consistência.

Pesquisador:Consistência em que?

Participante:Consistência profissional. Eu me senti mais psicólogo, lá dentro do

centro de saúde da família.

Pesquisador:O que é esse “me sentir mais psicólogo”?

Participante: Porque isso aí eu já tou falando de uma crise pessoal que eu tive no

curso, de por não ter feito o curso, que eu considerei depois, não sendo... não vou

dizer ideal, porque ideal não tem, mas que eu sabia que eu poderia ter feito, olhando

pra trás pro curso, eu digo que poderia ter feito isso. E eu sempre me achei meio

psicólogo, eu tinha até o constrangimento de dizer pra mim mesmo e pros outros “eu

sou psicólogo”, porque eu via psicólogos perto de mim, eu sabia o que era o

psicólogo, um cara que tem um saber ali. [...] a atenção primária me deu muita coisa

pro meu saber de verdade mesmo pra que eu tivesse condição de ter a tal da práxis e

não só a prática, entendeu. [...] Porque, na atenção primária, eu tive chance de ter

muitas experiências em uma só. Porque eu sempre valorizei, sempre percebi a

riqueza de você, numa segunda-feira, estar indo numa casa de uma pessoa, numa

terça-feira ta numa catequese ouvindo um grupo de idosos, numa quarta-feira você

ta no ambulatório, numa quinta-feira você ta numa escola, numa sexta-feira você ta

numa formação no auditório de uma Regional, numa segunda-feira estar num hotel

fazendo um curso de formação em saúde mental, entendeu? Então onde é que eu vou

ter a chance de ter todas essas experiências numa só?

O fortalecimento de uma identidade profissional, a partir da variação constante de

perspectivas de atuação aparece como resultado parcial das ações desenvolvidas no campo da

APS do SUS. Esses processos de reconstrução identitária não podem ser atribuídos somente à

experiência de realização e reprodução de práticas, mas também ao exercício da

problematização do cotidiano, que é facilitada em atividades formais e não-formais de

educação permanente em saúde, atreladas à RMSF e ao NASF. No campo da sociologia das

profissões, um aspecto bastante discutido na análise do processo de profissionalização é a

incorporação de tecnologias e inovações, que possibilitam a renovação gradual e progressiva

190

da base cognitiva e a consolidação do monopólio da competência (BOSI, 1996; DUBAR,

2005; MACHADO, 1995). Pudemos perceber, nesse contexto, a influência da experiência de

práticas profissionais na ESF, como reconfiguradora da identidade profissional. As

identidades profissionais são, assim, marcadas pelos processos de socialização produzidos no

interior dos espaços sociais da ESF, que reconfiguram as representações que os profissionais

têm de si mesmos como profissionais. A partir de uma abordagem da relação entre

socialização, identidade profissional e autonomia, como proposta por Dubar (2005), pudemos

observar várias “formas identitárias”, que são representativas dos processos sociais de

construção da realidade implicados nas práticas dos psicólogos nesse novo contexto da ESF.

Assim, em nossa abordagem, a socialização profissional vivida no espaço de práticas foi

entendida a partir dos modos característicos como os psicólogos participantes se identificaram

como psicólogos no entrecruzamento da estrutura do campo com suas trajetórias profissionais

e de formação anteriores. Assim, abordamos alguns dos sentidos da experiência profissional

vivida pelos psicólogos, para a identificação de designações compartilhadas pelos

participantes sobre si mesmos como atores profissionais.

A construção da identidade profissional é, como vimos a partir da análise das

entrevistas, impactada pela experiência da prática profissional na ESF. As direções apontadas

nessa construção passam pela reconstrução de uma identidade profissional muito marcado

pelas representações da profissão ligadas à prática da clínica. Um dos entrevistados destaca

sentir-se mais psicólogo clínico a partir da experiência vivida na ESF. Nesse campo,

paradoxalmente como já vimos, a experiência profissional evidencia os limites e necessidades

de revisão do arcabouço teórico-metodológico da clínica diante da complexidade dos

processos de constituição de sujeitos envolvidos nas ações.

É engraçado, hoje eu me considero muito mais um psicólogo clínico. Assim, muito

mais de cuidar dos quadros clínicos, de quadros de adoecimento mesmo, de

transtorno mental, de manejar. Eu me considero muito mais preparado do que antes,

mas ao mesmo tempo também despreparado, porque eu vi como tem questões,

assim, que sempre vão estar pra além do que eu sei, do que eu já vivi. E, ao mesmo

tempo, que eu me considero mais preparado, mas também eu vejo como eu estou

mais distante. Eu não tinha talvez a dimensão do como complexo pode ser o sujeito,

de como ele pode se apresentar de diversas formas assim.

Reconhecer-se como profissional da clínica foi um imperativo de apropriação, das

relações entre um conjunto de saberes e práticas, ligados ao contexto do campo da APS. Na

análise de alguns significados expressos nas entrevistas, o processo de constituição da

identidade de profissional é atrelada ao campo das práticas da saúde, onde a dimensão do

espaço social demarca o tipo e a representação das práticas.

191

Participante:O que eu visualizo assim, foi muito rico e como divisor de águas

mesmo assim a questão da Residência. Então, tudo pós-residência na área da saúde

eu já vejo de uma outra maneira. Não só porque eu vejo teoricamente, mas porque é

uma teoria que foi associada a prática, a vivência, o experimentar no campo né, do

contato. Então, hoje tudo que eu vejo pós eu vejo diferente [...] Na perspectiva de

uma compreensão ampliada. [...]

Pesquisador:E como é que isso reverbera na profissão do psicólogo e na sua prática

psicológica? O que esse campo todo ...

Participante:Eu acho que esse todo, de alguma forma mexeu um pouco na minha

identidade como psicólogo. Porque hoje eu já não me vejo mais tanto como um

psicólogo, hoje eu me vejo mais como profissional da saúde. Eu acho que ela acabou

interferindo muito nisso assim também dessa coisa da identidade. Hoje eu não

consigo, eu sei que tem a história do núcleo e o campo e tudo e eu vejo onde é que

eu estou. Mas hoje eu já não me vejo mais tão rigidamente psicólogo, hoje me vejo

mais o profissional da saúde, o profissional da saúde mental.

O contato com uma rede de serviços interligados com a ESF constitui uma

experiência marcante para os participantes, de aprender a lidar com uma multiplicidade de

vetores influenciadores da prática e influenciados por esta, situados na interface de serviços

de saúde, especialmente no espaço de intersetorialidade com as políticas de ação social e de

intrasetorialidade com outros níveis de atenção à saúde. Observamos aqui, os desafios da

construção cotidiana das políticas e serviços de saúde, onde a participação dos agentes é

fundamental. Na perspectiva da APS, no âmbito municipal, discute-se a importância da

construção de práticas intersetoriais que se processam na ação comunitária, no território, na

articulação de diversas políticas sociais municipais e integração das redes de atenção. Isso

constitui um dos desafios para se efetivar uma APS abrangente e reorientadora dos modelos

de atenção à saúde (GIOVANELLA et al., 2009). Destaca-se, aqui, o papel da RMSF e NASF

na construção das práticas profissionais e processos de formação para atuar no SUS.

Foi uma questão de organização do sistema de saúde, que eu me deparei com isso na

residência. Então assim, me importar com isso surgiu da residência, foi gestado na

residência e foi uma coisa que me modificou. Até pensar assim a minha prática

clínica, mesmo quando eu estou no consultório quando eu estou atendendo

individualmente alguém. Eu não estou mais, mas até o final da residência

praticamente já tava atendendo no consultório na clínica privada. Eu começo a me

perguntar coisas diferentes, eu começo a ter questionamentos diferentes a respeito

daquela pessoa, que extrapolava a relação que eu tinha, anteriormente. E, assim, eu

acho que mudou a minha prática clínica também. Eu acho que mudou a minha forma

de até se pensar, as questões que eu penso hoje tem muito mais a ver com o SUS,

com a saúde mental no SUS, do que uma questão da psicologia. [...]foi a atenção

primária que me fez perceber o SUS enquanto um conjunto, enquanto um sistema e

aí eu posso estar na atenção primária ou secundária ou então na gestão ou no apoio

institucional ou numa articulação, enfim, qualquer ponto e aí eu estou pensando

coisas que eu comecei a pensar por causa da atenção primária.[...] Eu acho que a

atenção primária exige essa abertura pra fora dela mesma sabe, pra fora do posto de

saúde, pra fora só desse serviço. Eu acho que é mais fácil as pessoas se

encapsularem em outros serviços, em outros níveis de atenção do que na atenção

primária. Eu acho que ela exige maior capilaridade, exige maior relação, maiores

articulações com outras coisas tanto com o território quanto com a rede de serviços.

192

Observamos o desenvolvimento das capacidades de pensar o usuário e seu modo de

vida no território, suas relações sociais e institucionais, bem como de reconhecer outros

serviços e instituições potencializadores das práticas de saúde. Isso pode ser concebido como

uma dimensão do habitus profissional sobre o qual a experiência prática na APS incide de

modo transformador no desenvolvimento dos agentes, como profissionais mais plurais na

construção de ações. O habitus profissional, como sistema de disposições incorporados para

pensar e agir formado no decorrer das trajetórias profissionais, da maioria dos participantes

nos permite pensar as possibilidades de transformação identitária proporcionada pela

experiência na ESF. O que, em nosso caso, permite pensar no caráter formativo do campo,

trazendo importantes possibilidades para se pensar e fazer a psicologia, numa perspectiva de

maior e mais qualificado compromisso social. Aqui reconhecemos as potencialidades do

contexto histórico atual, de ampliação da inserção da psicologia na ESF, como propulsor de

contextos práticos ricos de elementos capazes de mobilizar uma parte das experiências

históricas incorporadas pela profissão no Brasil e reconfigurar novos modos de ser psicólogo.

Entendemos, em diálogo com alguns autores (BOURDIEU, 2012; DUBAR, 2005; LAHIRE,

2003), que a formação de um profissional é resultado de múltiplas experiências passadas, de

múltiplas aquisições feitas em situações sociais vividas e da atualização de disposições

adquiridas a partir das novas incursões profissionais. O encontro entre a psicologia e a ESF

tem nos permitido uma reflexão importante sobre a força desse campo de atuação para a

reconstrução das identidades profissionais, para uma formação, bastante explorada nas RMSF,

capaz de marcar as trajetórias e os corpos dos profissionais. Essa relação entre os campos e os

habitus, em nosso estudo, revelou uma ESF rica em possibilidades de transformação e

atualização dos habitus profissionais dos psicólogos.

E se essas forças [do contexto] exigem por vezes de nós outras coisas que não

podemos dar, então não temos geralmente outras opções senão encontrar uma outra

forma de continuar a viver – o menos mal possível – no mesmo contexto (adaptação

mínima), senão mudar de contexto (fuga) ou transformá-lo radicalmente para que

seja mais possível vivê-lo (reforma, revolução). Da natureza dos contextos que

somos levados a atravessar, depende o grau de inibição ou de recalcamento de uma

parte mais ou menos importante da nossa reserva de competências, de habilidades,

de saberes e saber-fazer, de maneiras de dizer e fazer das quais somos portadores.

(LAHIRE, 2003, p. 77).

Na constituição de uma identidade profissional decorrente da experiência da APS do

SUS, encontramos alguns qualificadores importantes para analisar as mudanças

experimentadas pelos psicólogos entrevistados. O relato abaixo é bastante significativo, para

pensar a aprendizagem decorrente da inserção no campo da ESF. O participante relata ser um

193

profissional “mais desenrolado” depois do trabalho desenvolvido, o que na cultura cearense,

em especial, denota uma desenvoltura satisfatória nas práticas do agente, ligadas a uma

reconhecida competência e agilidade na resolução de problemas práticos. Aqui, podemos

dizer, que a APS potencializou a formação dos participantes, no estímulo à criatividade e

apropriação na utilização de métodos e técnicas de intervenção profissional, que refletem-se

em novos modos de ser psicólogo.

Eu acho que eu estou muito mais desenrolado hoje assim sabe no sentido de...

Pesquisador: Maturidade?

De maturidade e desenrolado mesmo. E, assim, de como surgiram muitas questões

que eu não sabia lidar e, de alguma forma, eu tive que criar muitas. Assim, e eu acho

que eu sou mais desenrolado, assim. É engraçado, um dia desse eu tava tendo uma

conversa com a minha equipe, que eu fiz as terapias, assim, que acho que no começo

da residência, e ainda tava fazendo a formação e eu ficava com muita ansiedade

assim “ah... quero, agora aplicar as terapia e tal e não sei o que”, e [...] E, é muito

pra além de um aspecto metodológico da arte de usar, a arte como metodologia, mas

do conceito de sujeito mesmo diante da arte, do processo criativo e tal. E é claro que

algumas ferramentas nas terapias eu usei no processo. Mas essa questão da

criatividade que é exigida ao profissional da atenção primária. [...] E eu acho que,

em alguns momentos, assim, a gente consegue se aproximar da arte mesmo. Assim e

não somente da prática, mas pra além da prática da arte, de criar o novo. Enfim, e eu

acho que isso é muito a cara da minha vivência assim de ter que criar.

A APS, na experiência dos psicólogos participantes, é também relacionada como um

fator influente na formação do profissional, no que diz respeito a sua preparação para lidar

com processos interprofissionais, para desenvolver uma prática em equipes de saúde. A

experiência vivida nas equipes multiprofissionais da ESF levou ao desenvolvimento de um

conjunto de atributos que tornou o participante abaixo citado, “mais seguro” e “preparado”

para atuar em várias frentes de prática psicológica. A fala abaixo é ilustrativa de uma

experiência singular de trabalho em equipe multiprofissional, entendida como satisfatória e

única frente a uma ampla disseminação de problemas relacionais ligados às trocas e

negociações interprofissionais onde as práticas psicológicas são desenvolvidas, como relatado

pelos outros participantes. Na experiência de uma relação classificada como “harmoniosa”

podemos refletir sobre uma potencialidade da APS, especialmente quando articulada por um

processo de formação em serviço como a RMSF, de implicar os profissionais inseridos no

campo, em processo de revisão de práticas nos processos de trabalho em equipe,

desenvolvidos nos territórios da ESF. Para pensar esse processo de revisão, é importante

considerar a relação dialética de imbricação entre o campo, como espaço social específico, e o

habitus, como um conjunto de disposições estruturantes do campo e dele decorrente.

Eu acho que eu sou outro profissional depois que eu saí da residência, mais seguro.

Eu acho que a residência, por a gente atuando, aprendendo na prática, eu acho que

deixa a gente mais seguro mesmo e sabendo o que ta fazendo. Tanto conceitos

194

teóricos como na prática a gente consegue juntar as duas coisas assim. E eu acho que

a pessoa que faz residência sai mais qualificada.

Pesquisador: Essa experiência ela te deixou mais segura em que aspecto?

No sentido de, me deixou mais segura pra trabalhar em equipe, pra trabalhar de uma

forma interdisciplinar, pra dar pra gente conseguir enxergar a integralidade, quando

a gente consegue trabalhar com as várias profissões de uma forma integrada mesmo,

de uma forma harmoniosa.

Outra qualidade percebida como adquirida através da prática na APS, que nos

possibilita pensar o processo de formação profissional, é a habilidade desenvolvida em ser

“mais resoluto” e “prático” no desenvolvimento das práticas de saúde. Esses atributos

distintivos da prática podem ser relacionados à ideia, já trabalhada aqui, de um profissional

“desenrolado” nos serviços de saúde.

Vixe, eu aprendi muito, essa de ser mais resoluto, mais prático. Isso aí eu aprendi

agora. Porque até então, eu meio que tenho uma tendência a acomodação muito

grande. E sou muito paciente. Então, às vezes, essa paciência se confunde com uma

certa passividade minha. E na atenção primária não tem espaço pra você ser passiva.

Pesquisador: Paciente sim?

Paciente sim, claro. Mas passivo não, em hipótese nenhuma. Então, você tem que

encaminhar, você precisa dar uma solução. E não é uma solução que vai resolver os

problemas, mas algum encaminhamento, algum direcionamento, alguma orientação

pra aqueles casos. E isso, de início, foi muito difícil até de entender mesmo. E

interessante como a equipe percebe, percebe como a gente tem na residência esse

processo de avaliação formativa né a gente consegue ter um feedback delas. Então

foi bem interessante, porque elas apontaram exatamente isso.

Pesquisador: E você aprendeu a ser mais resoluto né?

É bem mais. E agora no final, no final. Mas já antes, já consegui alterar essa minha

dificuldade. E já teve um efeito na prática mesmo, esse diálogo, esse feedback com a

equipe

Pudemos evidenciar, a partir de diversas falas e temas pertinentes às entrevistas

realizadas, que a experiência prática na ESF contribui para a formação de um profissional

psicólogo generalista, situado dentro de um contexto que lhe exige um alto grau de

responsabilidade para delimitar seu espaço de atuação, dentro da dinâmica dos processos de

trabalho. Esse generalismo reflete-se, no caso da psicologia, em certo desprendimento e

ousadia com que o profissional busca a fundamentação e a legitimação social de suas práticas

específicas transitando por vários âmbitos e delimita um conjunto diverso de ações integradas

pelo contexto específico dos territórios e características da APS.

Na APS, é lidar com problemas da escola, com problemas das organizações, com os

problemas clínicos, enfim, com problemas de recursos humanos. Eu acho que a

gente fica meio um pouco psicólogo geral, entende? Isso é muito massa. Assim, eu

nunca trabalharia num setor de recursos humanos. E também seria, sei lá, trabalhar

numa escola, também acho que não. Por enquanto, não tenho pretensões não....Eu

acho que, porra, na graduação eu não sei se eu aprendi nada de escola. Mas na APS

eu acho que eu aprendi alguns processos que acontecem na escola, na política de

educação, no dia-a-dia de um professor super, super carregado, da relação que se

estabelece nos processos pedagógicos com estudantes [...] Enfim, é uma viagem

195

assim. Eu acho que a gente acaba resgatando [...] eu acho que a gente resgata a

possibilidade de uma psicologia geral, entendeu?

A experiência de práticas profissionais na ESF pode ser considerada, tomando como

referência a experiência vivida pelos participantes, um exercício de resgate da noção de uma

psicologia geral, da possibilidade, quase utópica, de se construir posicionamento crítico e

pertinente socialmente, diante dos dilemas da formação em psicologia. Assim, a necessidade

de articular saberes e tradições práticas oriundos de campos diversos, das psicologias e suas

áreas de atuação legitimadas, expõe o profissional ao risco do ecletismo e do dogmatismo,

como coloca Figueiredo (2009). No contexto das experiências estudadas aqui, a ESF impôs

aos psicólogos a condição da experimentação do novo, da busca de respostas a problemas e

situações nunca vividos anteriormente. Essa experimentação, do ponto de vista da formação

em psicologia e saúde, precisa ser pesquisada e analisada, para explicitar os desafios éticos e

epistemológicos colocados no cotidiano. A experiência da APS, dentro desse contexto

desafiador de produção de inovações e articulação de saberes e práticas, remete a

enfrentamento de poderes estruturados nas tradições de prática em saúde e em Psicologia.

Assim, para o aprofundamento da inserção da psicologia na APS do SUS e no campo

interdisciplinar mais amplo da Saúde Coletiva, a prática psicológica, do ponto de vista de sua

constituição como vetor de formação profissional, deve apontar para a produção de

inespecificidades, de rupturas com os modos hegemônicos de agir em saúde e em psicologia.

Nesse sentido, a fala abaixo, de um participante envolvido com as práticas de formação em

psicologia, aponta para algumas consequências formativas, que a experiência prática da APS

pode desencadear.

É preciso abrir mão de certa zona de conforto e poder se lançar mais próximo disso,

que é inespecífico. Disso que tem a ver mesmo com o contexto social, cultural,

econômico [...] é quebrar um pouco essas fronteiras né, angustiar um pouco esses

alunos, no sentido mesmo de poder ouvir histórias que jamais escutariam, de poder

conhecer realidades inimagináveis. E eu acho que isso produz cortes extremamente

importantes dentro da formação, no sentido de poder dar condição a esse aluno de

recriar o seu próprio campo e criar a sua especificidade dentro desse campo.

Pesquisador: Esse sair da zona de conforto fez parte da sua trajetória a partir da

atenção primária, vamos dizer assim.

Foi. Dentro da minha formação, como aluno de psicologia, eu fiz estágio [na APS],

em determinado momento. Então assim, essa coisa da psicologia comunitária não

tava muito apartada das outras coisas, naquela época [...] a gente sabia que a

psicologia e a política tinham uma relação inegociável. Então, a gente ia pra esses

campos. E eu acho que isso é tão fundamental quanto uma medida outra, a entrada

de um aluno num hospital psiquiátrico, não é que eu esteja comparando a realidade

da atenção, não é isso. Mas no sentido dessa produção de uma descontinuidade né,

que eu acho que no que diz respeito à formação isso é absolutamente fundamental.

196

A APS, como já discutida aqui, impulsiona os profissionais ao desenvolvimento de

modos de agir que podem ser, em níveis diferentes de gradação, heterodoxos ou ortodoxos

frente ao habitus desenvolvido historicamente pela profissão e pelas tradições de modelos de

práticas em saúde vigentes. Esse habitus, desenvolvido histórica e socialmente por

experiências anteriores e concomitantes de socialização, como conjunto de disposições para

agir, pensar e classificar o mundo (BOURDIEU, 2012; 2011; WACQUANT, 2007;

BOLTANSKI, 2005), repensado aqui como habitus profissional, nos lembra que os

indivíduos influenciam e são influenciados pelos campos profissionais, que constituem-se

como espaços de socialização e atualização de lutas históricas. Isso, no contexto da formação

científica e profissional em saúde, nos remete a prestar uma atenção especial para as

trajetórias sociais e institucionais, bem como nos processos de socialização como

constituintes não somente de ideologias, teorias ou técnicas, mas de estilos de vida e modos

de ser. Os espaços de formação devem ser, por conseguinte, facilitadores de processos de

autoanálises capazes de (re)situar os sujeitos diante de suas trajetórias.

Como vimos até aqui, as entrevistas que realizamos nos ajudam a pensar um

conjunto de questões referentes à experiência prática na APS, que contribuem pra pensar a

formação em psicologia. Fica claro que a ESF produz um tensionamento por mudanças,

possibilita uma renovação da profissão, que pode ser positiva do ponto de vista de sua

inserção no contexto da sociedade brasileira. Essa formação, como aborda Figueiredo, deve se

voltar para pensar éticas e políticas de ser psicólogo.

Formar é proporcionar uma forma, mas não é modelar uma forma. Ao formar

estamos oferecendo um continente e uma matriz a partir dos quais algo possa vir a

ser. [...] Ser-psicólogo é, por exemplo, saber lidar com a multiplicidade sem recorrer

às mais fáceis respostas à angústia que sempre nos acomete quando nos defrontamos

com o indeterminado: o dogmatismo e o ecletismo. Ser-psicólogo é, também, saber

dialogar com áreas afins – disciplinas biológicas e histórico-culturais – já que de

uma forma ou de outra nos compete tratar de uma unidade psico-sócio-biológica.[...]

Mas ser-psicólogo é também ocupar espaços e posições na história e na cultura de

nossa sociedade e estar preparado para lidar com outras posições, para lidar com

alteridades, o que remete à dimensão ética e política de nossa profissão. Em outras

palavras, ser-psicólogo, independente das escolhas teóricas de cada um, implica em

situar-se nos campos da epistemologia e da ética, não sendo jamais apenas um feixe

de habilidades técnicas. (FIGUEIREDO, 2009, p. 152).

Entendemos que experiência prática na APS, por suas características relativamente

específicas de um campo estruturado e estruturante de modos de agir e pensar, pode contribuir

para o desenvolvimento de uma ampliação de olhares para a realidade complexa e

socialmente preocupante, expressa nas demandas de saúde em torno das quais a psicologia

está envolvida. É no sentido de potencialização desse espaço social, como produtor de

197

práticas psicológicas comprometidas ética e politicamente com a resolução dos problemas de

saúde da população brasileira, que podemos pensar numa formação em Psicologia para atuar

no SUS. Essa formação, como aponta Figueiredo (2009), deve evitar as armadilhas do

ecletismo e do dogmatismo, enfrentando o desafio de lidar, com rigorosidade científica, com a

pluralidade interna às Psicologias.

Nesse sentido, um dos desafios de formação que percebemos como relevantes, na

presente pesquisa, é a busca pelo desenvolvimento de uma compreensão transdisciplinar dos

processos saúde-doença-cuidado construída, especialmente, na aproximação junto às ciências

humanas, pra fundamentar ações insurgentes frente a hegemonia do modelo biomédico na

ESF. Aqui, a formação deve capacitar os agentes para o exercício político e epistemológico de

um aprimoramento de olhar e de modos de intervir desmedicalizadores nas práticas na APS,

reconhecendo matizes epistemológicas e éticas, que fundamentam hegemonias e as

heterodoxias no cotidiano das práticas. Nesse contexto, é fundamental reconhecer o campo

como espaço de poder e de lutas simbólicas, onde é preciso saber situar-se.

Dentro desse contexto, como apontamos em outros capítulos, há um imperativo de

sobrevivência no campo de lutas da ESF, em que o agente precisa lidar com o processo de

construção das demandas profissionais de modo a qualificar sua atuação delimitando um

espaço de poder. Aqui, a formação deve ser capaz de instigar os profissionais a realizar uma

ampla leitura das demandas para delimitar política e epistemologicamente objetos legítimos

para as práticas, satisfatórios aos interesses da profissão, em sua relação com a sociedade.

Essa habilidade “tradução da demanda” corrobora com o processo de participação do

profissional na construção social das práticas, que constitui-se como uma estratégia de luta

pela autonomia da profissão na definição dos rumos e limites de seu agir específico. Nesse

contexto, a psicologia se vê diante de alguns limites impostos pelos modelos de formação.

Vejamos no exemplo, expresso na fala abaixo:

Eu acho que, em vários âmbitos de atuação, o profissional, não só o psicólogo, vai

poder negar-se a fazer uma leitura mais profunda daquela realidade, uma leitura

mais ética e política daquela realidade. Mas, na atenção primária, não tem como

negar isso, não tem como negar. Ele nega, muitas vezes. Mas, assim, qualquer

profissional ele vai ter que fazer essa leitura da realidade, pra entender em que

contexto aquelas pessoas estão. E entender os processos de saúde que são instalados

ali e os processos de cuidado também. Então, é um dilema que está na formação da

psicologia, ela não traz isso. [...] Então um profissional, na atenção primária, ele vai

ter que fazer essa leitura, porque daquela leitura, que vai surgir a estratégia de

cuidado dele. Porque ele pode ir pra lá sem fazer essa leitura e continuar fazendo a

mesma prática que ele faz não enxergando essa realidade. E entender essas

realidades e fazer essa leitura mais crítica não só na comunidade, nos processos

saúde/doença da comunidade. Mas no serviço também, que ali como existe relação

de opressão e não é do nada que a relação da atenção primária é dessa forma.

198

As estratégias de interlocução com a realidade das políticas públicas, já na graduação

em psicologia, já demarca um novo universo de possibilidades formativas, que vem se

desenvolvendo nos cursos de graduação recentemente. Como aponta Ferreira Neto (2011),

vivemos um momento importante de ampliação da participação da psicologia nas políticas

públicas de saúde e isso nos convoca para um repensar da psicologia como ciência e

profissão, que já se expressa na reformulação de diretrizes curriculares dos cursos de

graduação e pós-graduação em psicologia. É preciso então, apostar em espaços de formação

capazes de inaugurar novas relações entre as teorias psicológicas e a realidade dos serviços.

Por vezes, rigor teórico é tomado como adequação entre a prática e os conceitos de

autores consagrados, com uma preocupação mais dogmática que inventiva.

Devemos ter em mente que as teorias surgem como resposta a problemas locais e

concretos. Por isso, o que nos leva à permanente leitura dos clássicos não deve ser o

apego à ortodoxia, mas o acompanhamento do movimento intelectual que estes

fizeram no enfrentamento dos problemas de sua época, tomando esse como ponto de

partida para construirmos nossos próprios movimentos, face aos problemas de nosso

próprio tempo.(FERREIRA NETO, 2011, p. 45).

Em nosso estudo, os psicólogos reconhecem o avanço das iniciativas dos estágios e

projetos de formação voltados para a APS do SUS, como um caminho de superação dos

problemas vividos em suas experiências. Muitos fizeram referencias positivas às iniciativas

também de articulação das RMSF com os alunos em estágios na APS. No entanto, a ausência

de um contato com os dilemas cotidianos da APS e o distanciamento quanto às políticas

públicas fora apresentado como um obstáculo ainda a ser superado por alguns participantes.

O principal obstáculo que eu percebo é o aspecto da formação, no sentido mesmo de

você formar pro trabalho nas políticas públicas, que é um outro tipo de público, um

outro tipo de relação institucional, diferente da relação nos diversos espaços

privados. Então, eu acho que talvez o grande empecilho seja esse.

(outro participante)

Então, assim, a gente se aprofundar no SUS, no que é o SUS, no que é esse Sistema

Único de Saúde, que a gente tanto fala e a gente tem observado. [...] Então, assim,

eu acho que esse aprofundamento do que é o SUS, da discussão de processo saúde-

doença, começa aí. Começa aí. E aí, a gente vai e eu acho importante assim ir se

estendendo pra esse conceito do que é uma atenção primária, das especificidades da

atenção primária, qual é a proposta. Então, se aprofundar nessa questão. E que eu

acho que é um dos meus maiores desafios que são, assim, as estratégias mesmo da

atuação na atenção primária.

Podemos, pelo já discutido aqui, entender a APS como um espaço relativamente

novo de inserção da psicologia e outras profissões da saúde no SUS. As políticas de

ampliação da APS, especialmente configuradas no NASF e RMSF, expressam no cotidiano

das práticas um contexto ainda muito aberto em possibilidades de variação no repertório de

199

práticas, em que a experimentação coloca frequentemente o profissional em contato com

experiências profissionais de estranhamento e ineditismo nas ações. A APS é, assim, um

campo também aberto às práticas de formação, em que a psicologia defronta-se com sua

trajetória histórica ainda recente nas políticas públicas de saúde no Brasil.

Um campo muito novo, porque você tem, por exemplo, a psicologia hospitalar, ela

já tem uma estrada. E a saúde mental, ela tem uma estrada. E se a gente for pensar

assim, na atenção primária, embora a gente tenha um tempo já de discussão em cima

disso, mas eu acho que, no campo das práticas isso é muito recente, é muito novo.

Então, eu acho que o maior desafio é, nesse campo, nessa construção das práticas, na

construção das estratégias. Então, assim, da formação dar subsídios na compreensão

do estudante, na interdisciplinaridade, que a gente tem que trabalhar isso, desde a

graduação, porque se ele for só depois fazer isso, é muito complicado.

A formação para atuar na APS dever ser capaz de contribuir para superar modelos

tradicionais de atuação. Na presente pesquisa, em síntese, essa superação de modelos

representa a crítica ao modelo privatista e biomédico buscando, dentre um conjunto amplo de

questões, superar o elitismo da psicologia e em seu distanciamento frente à estruturação de

políticas e lutas sociais em torno das necessidades de saúde da população brasileira. Essa

superação de modelos, aqui, significa a ampliação da capacidade de integrar dimensões

clínicas, sociais e ético-políticas nas práticas psicológicas, como resultado de uma atuação,

contextualizada nos territórios da ESF.

Pra concluir a apresentação e discussão dos resultados, abrindo espaço para as

considerações finais, é preciso esclarecer uma questão importante, que diz respeito ao modo

como a ESF é representada depreciativamente pelos psicólogos participantes do presente

estudo. Ademais da potencialidade e riqueza da experiência vivida pelos participantes na APS

do SUS, de revelar processos instigantes de construção de práticas de saúde relevantes para a

formação e construção da identidade profissional de psicólogos, em nossa análise, somos

levamos a tecer uma interpretação em que a ESF, constitui-se majoritariamente na percepção

de muitos participantes e na nossa, como um campo marcado pela precarização das relações

de trabalho, pelas dificuldades e limitações no processo de trabalho. Assim podemos dizer que

a ESF tem representado um espaço “sem futuro” na trajetória profissional dos participantes.

Revelando um lado mais problemático e preocupante do campo, nossa análise das entrevistas

e das trajetórias dos participantes, revela uma ESF percebida como um espaço de práticas

profissionais pouco prestigiadas e desinteressantes do ponto de vista de se construir uma

trajetória valorizada.

200

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se apresentou aqui é uma análise pertinente a fragmentos de história vividos

por psicólogos nos municípios cearenses de Fortaleza e Sobral. A partir da experiência

analisada aqui, no entanto, julgamos relevantes as questões trazidas para pensar as práticas

profissionais da Psicologia na APS do SUS, o que permite também a outras categorias

profissionais a problematização das práticas de saúde no contexto de expansão da ESF,

especialmente com os NASF e RMSF. Assim, buscamos contribuir para sistematizar uma

interpretação pertinente ao que foi vivido pelos participantes, no que diz respeito à

experiência de inserção da psicologia num contexto de práticas relativamente novo do SUS. A

intenção é contribuir para ampliar entendimentos sobre as práticas psicológicas, sobre a ESF e

sobre os desafios colocados pelas políticas públicas às profissões em saúde.

A ESF compreendida como campo social, expressa uma realidade marcada por

posições objetivamente estruturadas e encarnadas em relações de poder, onde a biomedicina

impõe clara hegemonia na estruturação das práticas. Esse mundo social, que tem se aberto

recentemente para a inserção de novos profissionais, onde o psicólogo está incluso, constitui-

se como arena de lutas políticas e ideológicas, que permeiam o desenvolvimento das práticas

de saúde. Práticas estas que, pretensamente, voltam-se para a resolução da maioria dos

problemas de saúde da população, dentro de um SUS precariamente estruturado em torno de

princípios e diretrizes ainda distantes da realidade cotidiana dos serviços públicos de saúde.

Nossa abordagem sociológica da prática psicológica revelou um conjunto de fatores

sociais influentes na produção das ações profissionais e que configuram possibilidades e

limites para a inserção dos psicólogos nos serviços públicos de saúde. Entendemos que,

embora sejam necessárias apostas cotidianas na ação relacional de profissionais e usuários, no

nível local, é preciso reconhecer também condicionantes estruturais como limitantes e como

formadores de um agir na escassez, que vem se constituindo na APS. Assim, a constituição

social da prática profissional do psicólogo é marcada pelo contexto relacional do campo da

ESF. Esse contexto relacional, ensejado principalmente pela política do NASF, estrutura-se

cotidianamente nas trocas interprofissionais e comunitárias, o que coloca aos psicólogos

desafios socioculturais importantes e que tem implicações para a formação profissional. Tais

desafios socioculturais são representativos da relação entre psicologia e sociedade, mais

especificamente, no modo como a profissão busca dar respostas bem fundamentadas frente às

necessidades de saúde do usuário do SUS. Entra em jogo aí, a habilidade do profissional em

trabalhar o vínculo com os outros agentes, trabalhadores e usuários, tendo em vista uma ação

201

efetiva na resolução dos problemas de saúde. Nesse espaço de trocas, um dos aspectos mais

importantes do trabalho em equipe, uma de suas consequências mais nobres, no nosso

entendimento, é a construção do conhecimento compartilhado entre os agentes. Em nossos

resultados, foram bastante significativos os diálogos e reflexões desenvolvidos nas

cooperações intra e interequipes multiprofissionais e das relações com os usuários, grupos,

instituições e comunidades. Para além do fato de que a ESF constitui-se atualmente como um

espaço social marcado pela hegemonia do modelo biomédico e pela concorrência e

distribuição desigual de poder, pudemos discutir também, além de desafios, alguns aspectos

atrativos desse campo social. Destacamos como relevantes algumas características da ESF,

que evidenciam as potencialidades na construção de práticas desse campo de atuação

profissional. Nesse aspecto, os diálogos e cooperações foram vetores importantes na

construção e aprimoramento ético-político e técnico das práticas psicológicas.

As práticas profissionais da psicologia na ESF são bastante influenciadas pela forma

como o território-comunidade é vivido pelos agentes inseridos na relação entre o CSF e as

comunidades, famílias e indivíduos. Destaca-se, aqui, o desafio de uma aproximação

necessária do psicólogo com as diferentes classes e grupos sociais do território, como modo

de exercitar a compreensão e construir uma ação efetiva frente às necessidades de saúde. Tal

aproximação é reveladora de uma teia complexa de vetores participantes dos problemas de

saúde que se apresentam como demanda para a prática psicológica. Dentre as questões e

debates sobre a prática psicológica na ESF, reativa-se a discussão sobre o distanciamento

histórico da psicologia, frente às classes subalternas (BOCK, 2008; GÓIS, 2003; MARTÍN-

BARÓ, 1998; YAMAMOTO, 2008).

A rede intersetorial de serviços implica diretamente nos limites e alcances da prática

psicológica na APS do SUS, evidenciando elementos estruturais importantes na configuração

das práticas. Em nosso caso, para os psicólogos, torna-se preocupante a ineficiência dos

serviços da ESF e redes correlacionadas frente às enormes dificuldades sociais vividas seus

usuários. É especialmente tocante o contexto de miséria e pobreza, que impõe grandes tensões

no cotidiano, implicando em enormes demandas de sofrimento e adoecimento. Os desafios

para a promoção da saúde são enormes. Mesmo diante desses desafios, despertamos nossa

atenção para as possibilidades de atuação intersetoriais e interdisciplinares, nascidas a partir

de diálogos entre profissionais, serviços de saúde, instituições e grupos dos territórios. Essas

práticas foram importantes para a experiência investigada aqui, ampliando os olhares dos

profissionais para o processo saúde-doença-cuidado. Esse lidar cotidiano com os complexos

202

problemas sociais da população é parte importante do desafio ético-político de inserção da

psicologia na APS do SUS.

Dentro de um campo marcado pela forte pressão social, imposta pelo sofrimento de

usuários e profissionais de saúde insatisfeitos e pela enorme demanda de trabalho, a prática do

psicólogo configura-se dentro da perspectiva de um fazer generalista. Esse generalismo

concorre com a necessidade de lutar por espaços e poder dentro da ESF, que remete a

delimitação de espaços específicos para a prática psicológica nos CSF – necessários à

profissionalização (BOSI, 1996; MACHADO, 1995; PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003). É

nesse contexto, de uma necessária variação e delimitação das práticas frente aos problemas de

saúde dos usuários e comunidades, que muitas lutas simbólicas desenvolvem-se em torno da

definição legítima da psicologia e das práticas profissionais na ESF.

Destacamos, assim, a importância de reconhecer a dimensão simbólica das lutas

socioprofissionais, em que ficou evidente uma complexa teia relacional marcada por relações

ambivalentes e antagônicas, resultantes da mescla entre cooperação e disputa profissionais.

Desse modo, as lutas simbólicas da Psicologia pela autonomia profissional, no presente

estudo, revelaram a necessidade de uma postura ativa dos psicólogos na reconstrução de sua

identidade profissional. Numa trama relacional e política ligada à construção social das

demandas psicológicas, os participantes precisaram de habilidade de negociação e barganha

frente a todo um processo de produção imaginária de demandas (FRANCO; MERHY, 2005),

que vem historicamente reproduzindo uma identidade de psicólogo, a partir do modelo de

referencia da clínica individual privatista. Assim, é parte da agenda política da profissão,

visando aprimorar sua inserção na ESF, a tradução e transformação das demandas voltadas

para a Psicologia, o que inclui o acolhimento e a legitimação de novas práticas psicológicas,

capazes de reconstruir o imaginário social da profissão.

A conquista de novos espaços de prática para a Psicologia na ESF, como

entendemos, deve ser buscada não na negação da enorme demanda clínica existente.

Entendemos que essa alternativa é perversa e fere os direitos sociais à saúde. A busca pela

autonomia profissional dos psicólogos, em nosso entendimento, decorrerá da ampliação do

olhar dos diversos agentes envolvidos na busca por reconhecer as necessidades de saúde

imbricadas nesse clamor pela prática da clínica psicológica na ESF. Nesse processo, pudemos

ver que novos sentidos das práticas psicológicas começam a ser percebidos como legítimos e

relevantes dentro de escopo de práticas do CSF. Essa ampliação do escopo de práticas

psicológicas legitimadas no contexto da ESF já revela um importante passo na reconstrução

203

da Psicologia no SUS. Tal passo pode não significar, pra nós, a exclusão da psicoterapia como

um recurso pertinente à rede de serviços ligada à ESF.

Nossa reflexão sobre a construção social da prática psicológica revelou uma ESF que

se encontra diante de um contraditório movimento de expansão e precarização. Por um lado,

cresce e amplia a participação de outros profissionais de saúde nos serviços. Por outro, as

condições precarizadas de trabalho restringem a produção das práticas de saúde, constituindo

serviços marcados pela seletividade. Em nosso estudo, esses processos foram analisados e

discutidos dentro da perspectiva da busca de alternativas fortalecedoras das práticas

psicológicas. Em nosso caso, ficou patente a necessidade de reformulações micro e

macropolíticas, que ampliem o acesso aos serviços psicológicos e melhorem as condições de

trabalho dos profissionais do NASF.

A reflexão sobre a especificidade das práticas psicológicas mostrou um amplo de

leque de alternativas de ação da profissão no contexto estudado, revelando um diferencial

frente às outras profissões, especialmente contribuindo para a constituição de um contraponto

à hegemonia do modelo biomédico centrado nas dimensões orgânicas do processo saúde-

doença. O olhar voltado para a subjetividade, a capacidade de mediar processos relacionais, a

habilidade de escuta e de intervir terapeuticamente ou visando o desenvolvimento humano e

sociocomunitário, a facilidade de intervir em processos grupais são algumas das marcas de

um habitus historicamente construído pela profissão e que, em contato com o campo da ESF,

encontra condições de atualização em várias circunstâncias criadas na produção do cuidado. A

psicologia é bastante valorizada no espaço social dos CSF, especialmente pelo

reconhecimento que historicamente conquistou no âmbito das práticas clínicas. Lidar com

essa herança clínica, portanto, é parte sua caminhada de reconstrução identitária, de luta por

um reconhecimento mais amplo.

A inserção das práticas psicológicas na ESF, portanto, revela alguns dos desafios da

profissão no Brasil que, ampliando seu contato com os problemas de saúde da população, vê-

se em processo de transformação. Nesse aspecto, em nosso caso, a experiência de trabalho na

ESF foi bastante importante na trajetória dos psicólogos, fortalecendo-lhes a identidade

profissional e instaurando modificações em seus habitus profissionais. O processo de

socialização profissional vivido na ESF agregou novas habilidades e competências aos

psicólogos, que passaram a incorporar novos modos de escuta e princípios de visão,

importantes para um profissional que historicamente lida com as dimensões subjetivas do

processo saúde-doença-cuidado. Ademais das enormes dificuldades e repulsivas condições de

trabalho, que fazem da APS do SUS um espaço pouco atrativo, os participantes da pesquisa

204

relataram mudanças importantes em suas trajetórias de construção de identidade profissionais,

aprendendo a ser mais resolutivos, mais seguros, “desenrolados” e maduros frente aos

problemas de saúde e aos objetos específicos das práticas psicológicas. A relação entre campo

social da ESF e o habitus psicológico, revelou grandes potencialidades de construção da

identidade profissional, ensejados pelos programas de RMSF, a partir da reflexão sobre as

práticas na busca de uma adequada postura ética frente aos desafios colocados no cotidiano

dos serviços. Percebemos que o trabalho na APS do SUS, em toda sua complexidade social, é

bastante rico para o desenvolvimento das práticas psicológicas, permitindo aprimoramentos

técnicos e éticos políticos. No entanto, as condições atuais de trabalho na ESF, apresentaram-

se bastante restritivas ao desenvolvimento profissional dos psicólogos.

Na presente pesquisa, o CSF é concebido como um espaço de socialização que

coloca em destaque a relação entre disposições incorporadas no habitus dos agentes e as

novas exigências da APS, como política prioritária do SUS e que convida a psicologia a se

reelaborar para fortalecer sua identidade e autonomia profissional. Nesse contexto, a

socialização profissional ensejada pela ESF não se reduz à causalidade do passado sobre o

presente, onde o agente apenas seria reprodutor das regras vigentes nos campos dos quais é

oriundo, essa causalidade é apenas probabilística (FREITAS, 2006; LAHIRE, 2003) já que o

agente é atravessado por diversos outros espaços de socialização e pertenças. Cabe, nesse

momento, portanto, um repensar da psicologia e dos psicólogos brasileiros, não somente no

nível de seus referenciais teóricos e metodológicos, mas, sobretudo, de seus posicionamentos

éticos e políticos frente aos desafios micro e macrossociais colocados no cotidiano das

políticas e serviços públicos de saúde.

Desse modo, à guisa de conclusão, consideramos ser importante o reconhecimento

dos processos sociais implicados na construção da prática psicológica, subsidiando novos

reposicionamentos estratégicos da profissão, visando a reconstrução de uma identidade

profissional pertinente ao contexto de lutas do campo da ESF. Essa luta, em nosso

entendimento, deve ser estrategicamente orientada para a transformação das instituições

representativas da profissão, na perspectiva de uma maior apropriação das questões e desafios

da construção do SUS e, principalmente, para o fortalecimento de políticas de formação de

novos habitus profissionais, pautadas na reflexividade e compromisso com a emancipação

social.

205

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213

APÊNDICES

214

APÊNDICE A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)

Sou aluno do curso de Doutorado em Saúde Coletiva, realizado pela Universidade

Federal do Ceará em parceria com a Universidade Estadual do Ceará e Universidade de

Fortaleza e estou desenvolvendo a pesquisa intitulada “A Inserção do Psicólogo na Atenção

Primária à Saúde do SUS: práxis cotidiana e a interface entre Psicologia e Saúde

Coletiva”, sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo José Soares Pontes. O objetivo geral da

presente pesquisa é interpretar interfaces Psicologia-Saúde Coletiva (Saúde Coletiva-

Psicologia), partindo da compreensão do cotidiano de práticas psicológicas na atenção

primária à saúde do SUS.

Para o alcance do objetivo acima descrito serão utilizadas entrevistas individuais e

grupais. Dessa forma convido você a participar dessa pesquisa. Gostaria de acrescentar que

você não terá nenhum prejuízo profissional nem pessoal, visto que as informações coletadas

serão utilizadas apenas para a realização da pesquisa. Seu nome será preservado caso haja

publicação ou apresentação do estudo. Você tem a liberdade de retirar sua autorização ou

consentimento a qualquer momento, sem que isto lhe traga prejuízo algum. Caso precise

entrar em contato com o pesquisador responsável, utilize o telefone: (85) 92387728.

Sobral, ____ de _________________ de _________

__________________________________________

LÉO BARBOSA NEPOMUCENO

PESQUISADOR RESPONSÁVEL

ATENÇÃO! Para informar ocorrências irregulares ou danosas durante sua participação no estudo,

dirija-se ao:

Instituição Proponente: Universidade Federal do Ceará - Departamento de Saúde Comunitária - Pós-

Graduação em Saúde Coletiva. Rua Professor Costa Mendes, 1608. Bloco Didático. 5º andar. Rodolfo

Teófilo. Fortaleza, Ceará. Telefone: (85) 3366-8045

Comitê de Ética em Pesquisa que avalia o projeto: Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (SES/CE) –

Avenida Almirante Barroso, 600. Praia de Iracema. CEP: 60060-440. Telefone: (85) 3488-2137

215

Consentimento Pós-Esclarecimento

Tendo sido informado (a) sobre a pesquisa “A Inserção do Psicólogo na Atenção

Primária à Saúde do SUS: práxis cotidiana e a interface entre Psicologia e Saúde

Coletiva”, e depois de compreendido suas etapas, bem como objetivos, esclarecidas minhas

dúvidas, e estando ciente de meus direitos, DOU O MEU CONSENTIMENTO PARA

PARTICIPAR, SEM QUE PARA ISSO EU TENHA SIDO FORÇADO OU OBRIGADO.

Sobral,____de______________de______

Assinatura do voluntário(a) da pesquisa

Léo Barbosa Nepomuceno

(Responsável pela pesquisa)

(1ª via pesquisador; 2ª via participante)

216

APÊNDICE B – ROTEIRO DE ENTREVISTA I

Nome: Idade: Sexo: Ano de

Formatura:

Tempo de trabalho na APS: A partir de quais Programas ou serviços de

saúde:

Cargo(s) ocupado(s):

Local da Entrevista:

1- Sobre sua(s) experiência(s) de trabalho na APS do SUS, quais os âmbitos de prática

em que você atuou?

2- Pensando a ESF como campo de saberes e práticas, quais os âmbitos de atuação do

psicólogo?

3- No(s) seu(s) entendimento(s), o que caracteriza o trabalho dos psicólogos (as) na

APS?

4- Na APS, quais demandas ou necessidades sociais chegam ao psicólogo(a)? Quais

destas são melhor resolvidas pela prática psicológica?

(Ou: quais são destinadas à prática dos psicólogos?).

5- Quanto à forma ou tipos de atuação profissional e levando em consideração os outros

sujeitos envolvidos nas práticas, o que um(a) psicólogo(a) precisa fazer conseguir

reconhecimento e valorização no contexto da APS?

6- Existem obstáculos nesse caminho para o reconhecimento e valorização?

7- Na sua experiência, quais os dilemas ético-políticos vivenciados como psicólogo(a) na

APS do SUS?

8- No que diz respeito ao profissional que és e ao modo de atuar, o que o contato com a

APS significou na sua trajetória profissional?

217

APÊNDICE C – ROTEIRO DE ENTREVISTA II (MODIFICADO)

Nome: Idade: Sexo: Ano de

Formatura:

Tempo de trabalho na APS: A partir de quais Programas ou serviços de

saúde:

Cargo(s) ocupado(s):

Local da Entrevista:

1- Sobre sua(s) experiência(s) de trabalho na APS do SUS, quais os âmbitos de prática

em que você atuou?

2- A partir da sua experiência, pensando a ESF como campo de saberes e práticas, quais

os âmbitos de atuação do psicólogo?

3- No seu entendimento, o que caracteriza o trabalho dos psicólogos (as) na APS?

4- Na APS, quais demandas ou necessidades sociais chegam ao psicólogo(a)? Quais

destas são resolvidas pela prática psicológica?

5- O que um(a) psicólogo(a) precisa fazer para conseguir reconhecimento e valorização

no contexto da APS? (Existe uma forma ou tipos de atuação profissional mais

apropriada?).

6- Existem obstáculos nesse caminho para o reconhecimento e valorização?(Se sim,

quais?).

7- Na sua experiência, quais os dilemas ético-políticos vivenciados como psicólogo(a) na

APS do SUS?

8- No que diz respeito ao profissional que és e ao modo de atuar, o que o contato com a

APS significou na sua trajetória profissional?

218

APÊNDICE D – ROTEIRO DE ENTREVISTA COM DOCENTES

Nome: Idade: Sexo: Ano de

Formatura:

Tempo de trabalho na APS: A partir de quais Programas ou serviços de

saúde:

Cargo(s) ocupado(s):

Local da Entrevista:

1- Como é o trabalho que você realiza na APS do SUS?

2- No seu entendimento, quais os âmbitos ou espaços de atuação do psicólogo na APS?

3- Como deve ser a formação em Psicologia para a APS do SUS?

4- Quais os desafios ou obstáculos enfrentados na formação em Psicologia para a APS do

SUS?

5- Pensando as relações entre as profissões envolvidas na APS do SUS (um CSF por

exemplo), você percebe a existência de hierarquias no trabalho desenvolvido? Como a

Psicologia se posiciona nessas relações? (Qual o diferencial dessa profissão?).

6- O que um(a) psicólogo(a) precisa fazer para conseguir reconhecimento e valorização

no contexto da APS?

7- Dentro de sua trajetória profissional, o que significa o trabalho voltado para a APS do

SUS?

219

ANEXOS

220

221