universidade federal do rio de janeiro | instituto de...

13
Universidade Federal do Rio de Janeiro | Instituto de Física Física III | 2014/2 Cap. 2 - Lei de Gauss Prof. Elvis Soares Nesse capítulo, descreveremos a Lei de Gauss e um procedimento alternativo para cálculo de campos elétricos a partir dessa lei. 1 Fluxo Elétrico O fluxo do campo elétrico é proporcional ao número de linhas de campo que passam por uma dada superfície. Consideremos uma superfície qualquer divida em um número muito grande de elementos de área que são suficientemente pequenos, de área dA, onde o campo elétrico é uniforme uma vez que o elemento de superfície é suficientemente pequeno. Desta forma, o fluxo elétrico dΦ E através desse elemento de área é dΦ E = EdA Se a superfície em consideração não é perpendicular ao campo, o fluxo através dela pode mudar. É fácil entender pela figura a seguir, onde a normal à superfície dA 2 faz um ângulo θ com o campo elétrico, enquanto a normal à superfície dA 1 é paralela a ele. Porém, o número de linhas de campo que atravessam a superfície dA 1 é o mesmo que atravessam a superfície dA 2 , uma vez que dA 1 = dA 2 cos θ é a projeção da superfície dA 2 , nesse caso. Então, o fluxo elétrico sobre as duas superfícies é igual nesse caso a

Upload: dothuy

Post on 25-Sep-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Universidade Federal do Rio de Janeiro | Instituto de Física

Física III | 2014/2

Cap. 2 - Lei de GaussProf. Elvis Soares

Nesse capítulo, descreveremos a Lei de Gauss e um procedimento alternativo para cálculo decampos elétricos a partir dessa lei.

1 Fluxo Elétrico

O fluxo do campo elétrico é proporcional ao número de linhas de campo que passam por umadada superfície.

Consideremos uma superfície qualquer divida em um número muito grande de elementos deárea que são suficientemente pequenos, de área dA, onde o campo elétrico é uniforme umavez que o elemento de superfície é suficientemente pequeno. Desta forma, o fluxo elétrico dΦE

através desse elemento de área é

dΦE = EdA

Se a superfície em consideração não é perpendicular ao campo, o fluxo através dela pode mudar.É fácil entender pela figura a seguir, onde a normal à superfície dA2 faz um ângulo θ com ocampo elétrico, enquanto a normal à superfície dA1 é paralela a ele.

Porém, o número de linhas de campo que atravessam a superfície dA1 é o mesmo que atravessama superfície dA2, uma vez que dA1 = dA2 cos θ é a projeção da superfície dA2, nesse caso. Então,o fluxo elétrico sobre as duas superfícies é igual nesse caso a

Prof. Elvis Soares 1 Fluxo Elétrico

dΦE = ~E · n1dA1 = ~E · n2dA2 ≡ ~E · d ~A

Se quisermos calcular o fluxo elétrico sobre uma superfície, devemos calcular a soma do fluxode cada elemento de superfície infinitesimal, conforme a figura. Sendo assim, o fluxo elétrico sereduz a integral

ΦE =

∫~E · d ~A (1)

que é uma integral feita sobre a superfície desejada, ou seja, ela depende do campo elétrico eda forma da superfície em questão.

2

1 Fluxo Elétrico Prof. Elvis Soares

Exemplo: Fluxo através do Cubo

Consideremos um campo elétrico uniforme ~E orientado ao longo da direção x positivo. Vamoscalcular o fluxo elétrico total através da superfície de um cubo de arestas l, como mostra afigura.

O fluxo total é a soma dos fluxos através detodas superfícies do cubo. Primeiramente, no-tamos que o fluxo através das faces 3©, 4© edaquelas não numeradas é zero pois ~E é per-pendicular a d ~A nessas faces.O fluxo através das faces 1© e 2© é

ΦE =

∫1

~E · d ~A +

∫2

~E · d ~A

Na face 1©, ~E é constante e tem a direção oposta ao vetor d ~A1, de modo que o fluxo sobre essaface é ∫

1

~E · d ~A =

∫1

(Ex) · (−xdA1) = −E∫1

dA1 = −El2

Na face 2©, ~E é constante e tem a mesma direção do vetor d ~A2, de modo que o fluxo sobreessa face é ∫

2

~E · d ~A =

∫2

(Ex) · (xdA2) = E

∫2

dA2 = El2

Portanto, o fluxo total sobre a superfície do cubo é

ΦE = −El2 + El2 + 0 + 0 + 0 + 0

ΦE = 0

3

Prof. Elvis Soares 2 Lei de Gauss

Exemplo: Fluxo através da Esfera devido a uma Carga

Consideremos uma carga puntiforme positiva q localizada no centro de uma esfera de raio R,como mostra a figura.

+

O fluxo total através da superfície da esfera deveser calculado como

ΦE =

∮~E · d ~A

onde o elemento de área da esfera é d ~A = rdA,de modo que o fluxo através da esfera é

ΦE =

∮ (kq

R2r)· (rdA) = k

q

R2(4πR2)

Lembrando que k = 1/4πε0, podemos escrever o fluxo através da esfera como

ΦE =q

ε0

Notamos que o fluxo total através da superfície da esfera é proporcional a carga interna. Ofluxo é independente do raio R porque a área da superfície da esfera é proporcional a R2 e, ocampo elétrico é proporcional a 1/R2. Então, o produto da área pelo campo elétrico independedo raio R.

2 Lei de Gauss

Vamos considerar algumas superfícies fechadas em volta de uma carga q, conforme a figura. Asuperfície A1 é esférica, mas as superfícies A2 e A3 não são.

Pelo exemplo anterior, o fluxo que passa através da superfície A1 é q/ε0. Como discutidoanteriormente, o fluxo é proporcional ao número de linhas de campo elétrico que passam atravésda superfície. E da figura vemos que o número de linhas que passam através de A1 é igual ao

4

2 Lei de Gauss Prof. Elvis Soares

número de linhas que passam pelas superfícies não-esféricas A2 e A3. Portanto, concluímos queo fluxo total através de qualquer superfície fechada envolta de uma carga q é dado por q/ε0 e éindependente da forma dessa superfície.

Agora, vamos considerar uma carga localizada fora de uma superfície de forma arbitrária,conforme a figura.

Como podemos ver, qualquer linha de campo que entra na superfície sai da mesma por outroponto. O número de linhas de campo entrando na superfície é igual ao número deixando asuperfície. Portanto, concluímos que o fluxo total através de uma superfície fechada que nãoengloba nenhuma carga é zero.

Consideremos agora o sistema de cargas e superfícies conforme a figura a seguir.

A superfície S engloba somente uma carga, q1; assim, o fluxo total através de S é q1/ε0. Ofluxo através de S devido às cargas q2, q3, e q4 fora dela é zero pois cadas linha de campo queentra em S num ponto sai da superfície por outro ponto. A superfície S ′ engloba as cargas q2e q3; assim, o fluxo total através dela é (q2 + q3)/ε0. E finalmente, o fluxo total através de S ′′

é zero pois não há nenhuma carga no interior da superfície. Isso é, todas as linhas de campoque entram em S ′′ por um ponto saem dela em outros pontos. Notemos que a carga q4 nãocontribui para o fluxo em nenhuma superfície porque ela está fora de todas as superfícies.

Assim, a Lei de Gauss, que é a generalização do que descrevemos aqui, estabelece que o fluxototal sobre qualquer superfície fechada é

5

Prof. Elvis Soares 3 Aplicações da Lei de Gauss

ΦE =

∮~E · d ~A =

Qint

ε0(2)

onde Qint representa a carga total no interior da superfície e ~E representa o campo elétrico emqualquer ponto na superfície.

3 Aplicações da Lei de Gauss

A lei de Gauss é útil para determinar campos elétricos de distribuições de cargas com alto graude simetria.

A idéia é escolher uma superfície gaussiana que satisfaz uma ou mais condições a seguir:

1. O valor do campo elétrico pode ser constante sobre a superfície devido à simetria.

2. O produto escalar ~E · d ~A é zero porque ~E e d ~A são perpencilares, enquanto ~E · d ~A é±EdA pois ~E e d ~A são paralelos.

3. O campo pode ser zero sobre a superfície.

Essas condições serão usadas nos exemplos a seguir.

6

3 Aplicações da Lei de Gauss Prof. Elvis Soares

Exemplo: Campo Elétrico de uma Carga Puntiforme

Vamos determinar o campo elétrico de uma carga puntiforme q a partir da Lei de Gauss.

+

Como o espaço em volta da carga tem sime-tria esférica, essa simetria nos diz que o campoelétrico deve ser radial apenas, de forma queescrevemos

~E = E(r)r

Escolheremos uma superfície gaussiana que satisfaça algumas das propriedades listadas acima,e a melhor opção parece ser uma superfície gaussiana esférica de raio r centrada na cargapuntiforme, conforme figura. Com isso, podemos escrever o fluxo do campo elétrico como

ΦE =

∮~E · d ~A =

∮E(r)dA =

q

ε0

onde usamos o fato que o campo elétrico é normal à superfície gaussiana. Além disso, o campoelétrico possui a mesma intensidade em todos os pontos da superfície esférica, devido à distânciaser a mesma em todos os pontos, de modo que∮

E(r)dA = E(r)

∮dA = E(r)(4πr2) =

q

ε0

e assim

E(r) =q

4πε0r2= k

q

r2

Obs: Se a carga não estivesse no centro da esfera, a lei de Gauss permaneceria válida, masnão haveria simetria suficiente para determinar o campo elétrico, pois a intensidade do campoelétrico iria variar ao longo da superfície gaussiana.

7

Prof. Elvis Soares 3 Aplicações da Lei de Gauss

Exemplo: Campo Elétrico de uma Esfera Carregada Uniformemente

Vamos determinar o campo elétrico de uma esfera isolante de raio a e carregada uniformemntecom uma carga Q.Como a distribuição de cargas é esfericamente simétrica, sabemos que o campo deve ser radialpara fora

~E = E(r)r

e que a superfície gaussiana deve ser uma superfície esférica, conforme as figuras abaixo.

No caso em que r > a, conforme figura (a) e do exemplo anterior, sabemos que

ΦE =

∮E(r)dA = E(r)

∮dA = E(r)(4πr2) =

Q

ε0

cujo resultado é

E(r > a) = kQ

r2

No caso em que r < a, conforme figura (b), o fluxo do campo elétrico deve ser

ΦE =

∮E(r)dA = E(r)

∮dA = E(r)(4πr2) =

Qint

ε0

porém, nesse caso, a carga interna à superfície gaussiana é dada a partir da densidade de cargada esfera ρ = Q/4

3πa3 na forma

Qint = ρ

(4

3πr3)

= Qr3

a3

que juntos resultam em

E(r < a) = kQ

a3r

8

3 Aplicações da Lei de Gauss Prof. Elvis Soares

Sendo assim, o campo elétrico dentro e fora daesfera tem formas diferentes e podemos analisá-los na forma de um gráfico.

E(r) =

{k Qa3r se r < a

k Qr2

se r > a

Exemplo: Campo Elétrico de um Fio Infinito Carregado Uniformemente

Vamos determinar o campo elétrico de um fio delgado infinito e isolante carregado uniforme-mente com uma densidade de carga linear λ.

+++

+++

Como a distribuição de cargas é cilindricamente si-métrica, sabemos que o campo deve ser radial cilín-drico para fora, conforme a figura (b)

~E = E(s)s

e que a superfície gaussiana deve ser uma superfíciecilíndrica, conforme a figura (a).

Usando a Lei de Gauss, sabemos que o fluxo docampo elétrico através da superfície gaussiana é pro-porcional à carga interna à gaussiana

ΦE =

∮~E · d ~A = E(s)

∫dA = E(s)(2πsl) =

λl

ε0

onde usamos o fato que o campo elétrico ~E é per-pendicular aos vetores d ~A nas superfícies da tampae do fundo do cilindro, de modo que o resultado é

E(s) =λ

2πε0s

Assim, o campo elétrico de uma distribuição de car-gas com simetria cilíndrica cai com 1/r enquanto queo de uma distribuição com simetria esférica cai com1/r2. Tal campo foi encontrado no exemplo do fiocarregado, no capítulo anterior, no limite em que ofio é infinito.

Obs: Se o fio fosse finito, não poderíamos afirmar que na borda desse fio o campo teria a forma~E = E(s)s. Na verdade, apareceriam componentes do campo que são parelelas ao fio.

9

Prof. Elvis Soares 4 Cargas em Condutores

Exemplo: Campo Elétrico de um Plano Infinito Carregado Uniformemente

Vamos determinar o campo elétrico de um plano delgado infinito e isolante carregado unifor-memente com uma densidade de carga superficial σ.

+ + + + + + +

+ + + + + +

+ + +

+ +

+ +

+

+ + +

+ + + + +

+ + + + + + +

Como a distribuição de cargas tem simetria planar,ou seja, simetria na forma de um plano, sabemos queo campo deve ser perpendicular à superfície

~E = E(n)n

e que a superfície gaussiana pode ser uma superfíciecilíndrica, conforme a figura.

Usando a Lei de Gauss, sabemos que o fluxo do campo elétrico através da superfície gaussianaé proporcional à carga interna à gaussiana

ΦE =

∮~E · d ~A = E(n)

∫dA = 2E(n)A =

σA

ε0

onde usamos o fato que o campo elétrico ~E é perpendicular aos vetores d ~A na lateral do cilindroe somente há fluxo nas tampas do cilindro, de modo que o resultado é

E(n) =σ

2ε0

Assim, o campo elétrico de uma distribuição de cargas plana infinita independe da distânciaao plano. Tal campo foi encontrado no exemplo do disco carregado, no capítulo anterior, nolimite em que o disco é infinito.

4 Cargas em Condutores

Como vimos no capítulo anterior, um bom condutor elétrico contem cargas (elétrons) que nãoestão ligados aos átomos e portanto estão livres para se moverem dentro do material.

Quando não há nenhum movimento

Um condutor em equilíbrio eletrostático tem as seguintes propriedades:

1. O campo elétrico é zero em qualquer lugar no interior do condutor.

2. Se um condutor isolado está carregado, sua carga reside na superfície.

3. O campo elétrico no exterior muito próximo do condutor é perpendicular à superfície ede módulo σ/ε0.

4. Num condutor de forma irregular, a densidade de carga σ é maior onde menor for o raiode curvatura da superfície.

10

4 Cargas em Condutores Prof. Elvis Soares

Vamos verificar as primeiras três propriedades a seguir, e a quarta propriedade é apresentadaaqui apenas para completar a lista de propriedades de um condutor em equilíbrio eletrostático,mas será verificada apenas no capítulo seguinte.

Primeira propriedade: Vamos considerar uma chapa condutora imersa num campo elétricoexterno ~E.

++++++++

––––––––

O campo elétrico dentro do condutor deve serzero sobre a hipótese que estamos em equilíbrioeletrostático. Se o campo não fosse zero, os elétronslivres experimentariam uma força elétrica e iriamacelerar devido a essa força. Esse movimento doselétrons, contudo, significaria que o condutor nãoestá em equilíbrio eletrostática.

Assim, a existência do equilíbrio eletrostático é con-sistente apenas com o campo zero no condutor.

Segunda propriedade: Vamos considerar um condutor de forma arbitrária. Uma superfíciegaussiana é desenhada dentro do condutor e pode estar próxima da superfície do condutor oquanto quisermos.

Como já mostramos, o campo elétrico no interior docondutor deve ser nulo quando está em equilíbrioeletrostático. Portanto, o campo elétrico deve sernulo em todos os pontos da gaussiana, de modo queo fluxo total sobre essa superfície deve ser nulo. Epela Lei de Gauss, concluímos que a carga total nointerior da gaussiana é zero.

Assim, como a carga total dentro do condutor deveser nula, a carga total no condutor reside na sua su-perfície.

Terceira propriedade: Vamos usar a lei de Gauss para mostrar essa propriedade. Notamosque se o campo elétrico ~E tiver componente paralela à superfície do condutor, elétrons livressofrerão força e estarão postos a se mover ao longo da superfície, o que no caso de equilíbrioeletrostático é proibido. Então, o vetor ~E deve ter apenas componente normal à superfície.

++ + +

+

+++

++++++++

++

++

Vamos usar uma gaussiana na forma de um cilin-dro tão pequeno quanto quisermos, cujas faces pla-nas são paralelas à superfície do condutor, enstandoparte do cilindro fora do condutor e parte dentro. Ofluxo sobre a superfície lateral do cilindro é zero, poiso campo é paralelo à superfície, e na superfície den-tro do condutor é zero pois o campo é zero naquelaregião.

11

Prof. Elvis Soares 4 Cargas em Condutores

Então, o fluxo na gaussiana é apenas

ΦE =

∮EdA = EA =

Qint

ε0=σA

ε0

de modo que o campo na superfície do condutor deve ter módulo igual a

E =σ

ε0

tendo a direção perpendicular à superfície do condutor.

Exemplo: Esfera dentro de uma Casca Esférica Condutores

Vamos determinar o campo elétrico de um plano delgado infinito e isolante carregado unifor-memente com uma densidade de carga superficial σ.

Como a distribuição de cargas tem simetria esférica,a direção do campo elétrico deve ser radial de talforma que

~E = E(r)r

Região 1: Para encontrar o campo dentro da esfera sólida, consideremos uma superfíciegaussiana de raio r < a. Como a carga total dentro de um condutor em equilíbrio eletrostáticoé zero, Qint = 0 , então, usando a Lei de Gauss e simetria, E(r < a) = 0.

Região 2: Nessa região, consideremos uma gaussiana esférica de raio r onde a < r < b enotemos que a carga no interior dessa superfície é +2Q (a carga da esfera sólida). Devido àsimetria esférica, o campo elétrico deve ser radial, de modo que pela Lei de Gauss

E(4πr2) =2Q

ε0

e assim

E(a < r < b) = k2Q

r2

Região 3: Nessa região, o campo elétrico deve ser zero pois a casca esférica é também umcondutor em equilíbrio, então E(b < r < c) = 0.

12

4 Cargas em Condutores Prof. Elvis Soares

Região 4: Usando uma gaussiana esférica de raio r onde r > c e notando que a carga internaa essa superfície é Qint = +2Q+ (−Q) = Q, temos

E(r > c) = kQ

r2

Desta forma, o campo elétrico dessa distribuição de cargas pode ser escrito e representado numgráfico como a seguir.

E(r) =

0 se r < a

k 2Qr2

se a < r < b

0 se b < r < c

k Qr2

se r > c

13