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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA CAMILA DELLAGNESE PRATES DESESTABILIZANDO CAIXAS-PRETAS: O LICENCIAMENTO DA USINA HIDRELÉTRICA BELO MONTE EM DISPUTA Porto Alegre 2016

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

    CAMILA DELLAGNESE PRATES

    DESESTABILIZANDO CAIXAS-PRETAS: O LICENCIAMENTO DA USINA

    HIDRELÉTRICA BELO MONTE EM DISPUTA

    Porto Alegre

    2016

  • 2

    CAMILA DELLAGNESE PRATES

    DESESTABILIZANDO CAIXAS-PRETAS: O LICENCIAMENTO DA USINA

    HIDRELÉTRICA BELO MONTE EM DISPUTA

    Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

    Sociologia, do Instituto de Filosofia e Ciências

    Humanas, da Universidade Federal do Rio Grande

    do Sul, como requisito parcial para obtenção do

    título de Doutora em Sociologia.

    Orientador: Prof. Dr. Jalcione Almeida

    Porto Alegre

    2016

  • 3

    AGRADECIMENTOS

    Ao longo deste trabalho recebi inúmeras contribuições, sem as quais, o ponto final seria,

    certamente, impossível.

    O primeiro agradecimento é destinado ao meu orientador, Prof. Jalcione Almeida. Seu

    apoio e contribuição tornaram possível a transformação de um projeto em um trabalho

    de tese. Sua influência na construção deste trabalho é certamente a mais marcante

    porque desde o início incentivou leituras que instigaram outros questionamentos. Por

    tudo, obrigada!

    Agradeço a todos que me ajudaram e me guiaram durante o trabalho de campo. Nesta

    etapa encontrei pessoas solícitas, pacientes, acolhedoras que me receberam em seus

    cotidianos e dividiram comigo seu conhecimento, suas angústias e algumas vitórias.

    Meus mais sinceros agradecimentos aos indígenas da aldeia Muratu por me receberem

    muito bem em sua terra, por dividirem suas histórias, por mostrar que com força e

    perseverança as mudanças são possíveis. Vocês são fonte inesgotável de inspiração.

    Esse trabalho é dedicado a vocês.

    Agradeço ao Instituto Socioambiental e a todos que possibilitaram meu transporte e

    permanência na aldeia Muratu. Frequentando essa instituição conheci pessoas engajadas

    com a região, preocupadas com o modo de vida dos ribeirinhos, pescadores e indígenas.

    Em especial, agradeço a Cris. Sem seu apoio jamais teria vivido essa experiência

    incrível. Agradeço também aos pescadores de Altamira que responderam pacientemente

    aos meus questionamentos, dividiram comigo um pouco de seu conhecimento e também

    seus anseios sobre o futuro. Agradeço por me darem o privilégio de ter escutado suas

    histórias. Agradeço Ádrea Canto e sua família por me receberem em Belém e por me

    apresentarem a melhor tapioca! Agradeço também ao Atinho, Camila, Adriano e Dulci

    por me receberem em Manaus, minha cidade natal, e me apresentarem um pedaço dela.

    Sou muito grata a todos vocês.

    Agradeço a minha banca de projeto, Profª. Marilis Almeida e Prof. Adriano Premebida,

    pelas contribuições e por ajudar a delimitar o direcionamento deste trabalho. Em

    especial, agradeço ao Prof. Adriano por me apresentar aos pesquisadores do Instituto

    Nacional de Pesquisas Amazônicas, dentre eles, Philip Fearnside, pesquisador

    referência nas barragens no Norte do Brasil, o qual não imaginava que conheceria

    pessoalmente. Agradeço também aos pesquisadores do INPA pela paciência e ao tempo

    doado para a pesquisa. Sou grata por ter interagido com os pesquisadores da UFPA de

    Belém e de Altamira e ter podido compreender um pouco de seus universos de pesquisa.

    Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia por possibilitar oportunidades

    de estudar com professores inspiradores e por prover os bens materiais e imateriais para

    realização deste trabalho. Agradeço a todos os professores que, pelas aulas ministradas,

    geravam inquietações essenciais na escrita do trabalho final. Meu agradecimento

    também a Regiane, pela dedicação, paciência e por tornar as tarefas burocráticas mais

    fáceis de serem realizadas. Agradeço à CAPES pela bolsa de pesquisa recebida. Ela

  • 4

    possibilitou minha permanência em Porto Alegre durante o doutorado e a consequente

    realização deste trabalho.

    Agradeço aos meus colegas e amigos de TEMAS: Lorena, Márcio, Patrícia, Felipe,

    Rodrigo, Yara, Gitana, Adriana, Ana, Cleyton, Amanda, Natan, Anselmo. Vocês

    construíram comigo este trabalho nas reuniões periódicas do grupo e também nos

    momentos de descontração, em almoços e cafés. Seus questionamentos foram

    fundamentais no direcionamento do trabalho final. Agradeço ainda meus colegas e

    amigos, ingressantes na turma de 2011, por dividirem comigo a experiência de “estar

    doutorando”.

    Este trabalho não teria sido possível sem o apoio incondicional dos meus pais Claudia e

    Giovani que aceitaram minhas ausências com paciência e me ajudaram a passar pelos

    momentos de instabilidade, sempre com atitudes e palavras de otimismo. Agradeço a

    minha irmã, Natália, por ser uma companheira preocupada e zelosa em todos os

    momentos. Agradeço ao Henrique, meu afilhado, por trazer felicidade à nossa família e

    por mostrar que todos os problemas se tornam menores frente à grandeza da vida.

    Agradeço também minha dinda Cleusa por fazer uma revisão atenta deste trabalho.

    Sou grata pelo apoio incansável recebido da minha família afetiva, meus amigos:

    Alessandra, Camila, Manuela, Juliana S., Juliana R, Kalinca, Gisele, Kacerine, Natália,

    Leonardo, Israel, Ricardo, André, Carla, Rodrigo, Raphael, Thiago, Rafaela. Vocês me

    ajudaram a “dar um jeito” quando as dificuldades pareciam não ter solução. Agradeço

    especialmente à Juliana Aires por ser a amiga espontânea e sarcástica que, mesmo

    fisicamente ausente, está constantemente no meu coração. Sou grata ainda a Ricardo

    Plotzki cujos gestos de companheirismo e amor foram essenciais neste percurso.

    A todos, por construírem comigo este trabalho, muito obrigada!

  • 5

    RESUMO

    Esta pesquisa analisa as controvérsias científicas que emergem no processo de

    licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHEBM). Neste trabalho,

    considera-se teórica e metodologicamente o licenciamento como um Ator-Rede

    (LATOUR, 1994; 2000), que conecta diferentes agentes, sendo eles humanos (técnicos,

    pesquisadores, ribeirinhos, pescadores, indígenas, procuradores) e não humanos (rio,

    peixes, relatórios, entre outros). O licenciamento ambiental adquire uma posição de

    destaque neste trabalho porque é considerado o Ponto Obrigatório de Passagem

    (CALLON, 1986) para a viabilidade ambiental, análise e mitigação dos impactos

    ambientais da referida Usina. Aqui, o licenciamento é considerado uma rede

    heterogênea cujas relações que o constituem são fluidas, ou seja, poderiam ser

    (re)arranjadas para direcionar seus procedimentos de outra maneira. Os arranjos sobre o

    licenciamento de Belo Monte são questionados ao analisar-se o espaço destinado às

    controvérsias tecnocientíficas, que emergem ao longo da construção da Usina. A

    pesquisa revelou a existência de três controvérsias acionadas durante o trabalho de

    campo; elas traduzem para a gramática moderna, distintas cosmopolíticas (STENGERS,

    2007) presentes nos conflitos da região. As controvérsias foram polarizadas entre o

    programa de construção da usina, formado por pesquisadores-consultores, pelo

    empreendedor, por órgãos do governo, e pelo antiprograma de construção da obra,

    concebido por pesquisadores “insubordinados” à Norte Energia, como ONG’s,

    pescadores, indígenas, procuradores e defensores. Nesta polarização foi possível

    constatar uma regularidade: a rede do programa diferencia a questão técnica da questão

    científica presente em seus estudos quando estes são expostos a controvérsias. Assim,

    para neutralizá-las e limitar suas agências no licenciamento ambiental da UHEBM, a

    rede do programa utiliza artifícios exaltando a experiência técnica dos profissionais

    selecionados para realizar os estudos oficiais e estudos destituídos de intervenções

    políticas para possibilitar a viabilidade ambiental da Usina. Contudo, ao realizar essa

    manobra, a rede do programa aumenta as assimetrias no acesso à democratização dos

    híbridos no licenciamento ambiental, dificultando a emergência de “outros mundos

    possíveis” na tradução do ambiente que está sendo alterado para receber o

    empreendimento.

    Palavras-Chave: Licenciamento ambiental, Hidrelétrica Belo Monte, Controvérsias

    tecnocientíficas.

  • 6

    ABSTRACT

    The present research analyses scientific controversies based on the construction of Belo

    Monte’s hydropower plant considering its environmental licensing. This research

    considers the licensing as an Actor-Network in a theoretical and methodological sense

    (LATOUR, 1994; 2001), which connects several agents, that is, human agents (

    technicians, researchers, local people, fishers, Indians, prosecutors) and also non-

    humans (the river, fishes, reports and others).

    The environmental licensing is acquires an important part of this work because it is

    considered a mandatory way point (CALLON, 1986) to the environmental viability

    analysis and mitigation of the environmental impacts of Belo Monte`s hydropower

    plant. Here, the licensing is considered as a heterogeneous network, that is, the relation

    that constitutes the licensing in this hydro-electric power is fluid, it means that it

    indicates that these relations could be rearranged in order to direct its procedures in

    different method. These arrangements about Belo Monte`s licensing are put into

    question when the space dedicated to techno scientific controversies is analyzed. This

    research revealed three controversies based on different agents during fieldwork. It

    shows different cosmopolitics (STENGERS, 2007) that appears in conflicts in that

    region. Controversies were polarized between the construction program from

    hydropower plant that were constituted by researchers, entrepreneurs, government and,

    on the other hand, by the anti program, accepted by researchers that are not subordinate

    to Norte Energia. In this polarization, it was possible to find regularity: the network

    from the program differentiates technical issues from scientific issues in its studies

    when it is exposed to controversies. In this sense, in order to neutralize and in order to

    limit its agencies on the licensing, the network from the program uses artifices that exalt

    a technical expertise that works by making the construction of the hydro-power possible.

    Nevertheless, when it is put in practice, the program network rises the asymmetry in the

    access to the democratization from the hybrid in environmental licensing, enhancing the

    difficulty the emergency of “another possible world” from the environment that is being

    changed to receive the enterprise.

    Key words: Environmental License; Techno scientific Controversies; Hydropower plant

    Belo Monte.

  • 7

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Etapas de planejamento para construção de Usinas Hidrelétricas. ................. 31

    Figura 2: Planejamento para a construção de Kararaô entre os anos 1987- 2001. ......... 45

    Figura 3: Barramento para o complexo Babaquara-Kararaô .......................................... 46

    Figura 4: Índia Tuira e o presidente da Eletronorte, José Antonio Muniz Lopes.

    Altamira, 1989. ............................................................................................................... 48

    Figura 5: Agentes presentes na primeira alteração da UHEBM. .................................... 51

    Figura 6: Trajeto do rio Xingu ........................................................................................ 53

    Figura 7: Atual configuração da UHEBM. ..................................................................... 54

    Figura 8: Agentes presentes na segunda alteração da UHEBM ..................................... 58

    Figura 9: Sítio Belo Monte. ............................................................................................ 61

    Figura 10: Sítio Pimental- Turbinas tipo Bulbo. ............................................................ 61

    Figura 11: Empresas que formam a Norte Energia S. A. ............................................... 64

    Figura 12: Vila residencial dos empregados do CCBM e da NESA. ............................. 68

    Figura 13: Vila dos "barrageiros" do sítio Belo Monte, ................................................. 68

    Figura 14: Agentes que negociam interesses com o empreendimento atual. ................. 71

    Figura 15: Sítio Pimental, barramento principal. ......................................................... 101

    Figura 16: Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (INPA). ................................ 114

    Figura 17: Vertedouros da UHE Santo Antônio. .......................................................... 116

    Figura 18: Rede resumo de questões controvérsias que envolvem a construção de

    hidrelétricas na Amazônia. ........................................................................................... 122

    Figura 19: Rede-resumo de actantes controversos, na visão dos entrevistados. .......... 128

    Figura 20: Autorização da liderança para ingresso na aldeia Muratu. ......................... 130

    Figura 21: Vista do Sítio Pimental. .............................................................................. 131

    Figura 22: Sistema de Transposição Embarcações....................................................... 132

    Figura 23: Aldeia Muratu. ............................................................................................ 133

    Figura 24: Antiga moradia dos Jurunas da aldeia Muratu. ........................................... 135

  • 8

    Figura 25: Rede-resumo de actantes controversos que envolvem a UHEBM na visão dos

    entrevistados. ................................................................................................................ 138

    Figura 26: Volta Grande do Xingu trechos proibidos para a pesca e o tráfego. ........... 140

    Figura 27: Mapa com os principais pontos pesqueiros prejudicados com a construção do

    sítio Pimental. ............................................................................................................... 141

    Figura 28: Rede-resumo, situação pesca entorno do Pimental. .................................... 145

    Figura 29: Sistema de Transposição de Peixes (ainda não finalizado) de Belo Monte. 148

    Figura 30: Rede-resumo entrevistados NESA. ............................................................. 150

    Figura 31: Cartilha explicativa dos impactos sobre o meio físico e socioeconômico

    envolvendo a cota 100 delimitada pelo EIA (2009). .................................................... 151

    Figura 32: Comparativo dos resultados dos estudos do EIA para a NESA e da UFPA

    para o MPF. .................................................................................................................. 152

    Figura 33: RN 935-C, encontrado por um funcionário do MPF, em 2012................... 154

    Figura 34: Rede-resumo controvérsia cota 100 ............................................................ 157

    Figura 35: Rede-resumo controvérsia cota 100. ........................................................... 160

    Figura 36: Rede-resumo licenciamento na visão dos técnicos do IBAMA. ................. 164

    Figura 37: Rede-resumo licenciamento na visão do técnico da ANEEL. .................... 166

    Figura 38: Controvérsias tecnocientíficas na UHEBM. ............................................... 189

    Figura 39: Banner presente no Centro de Apoio ao Visitante (CAV), situado no sítio de

    obras Belo Monte. ........................................................................................................ 190

    Figura 40: A UHEBM vai gerar energia limpa? .......................................................... 192

    Figura 41: Pontos de análise do programa “Pesca Sustentável”. ................................. 195

    Figura 42: Acordo de Cooperação Técnica. ................................................................. 196

    Figura 43: A UHEBM vai gerar energia limpa? Controvérsia dos pontos de pesca. ... 197

    Figura 44: A UHEBM vai gerar energia limpa? .......................................................... 203

    Figura 45: Canal de derivação, 18 km de extensão. ..................................................... 206

    Figura 46: Canal de derivação ...................................................................................... 207

    Figura 47: Terra Indígena Paquiçamba, Aldeia Muratu, na época de cheia do Xingu. 209

    Figura 48: Rede da Controvérsia sobre o Trecho de Vazão Reduzida. ........................ 214

  • 9

    Figura 49: Rede da controvérsia da Cota 100............................................................... 218

    Figura 50: Reassentamentos Urbanos Coletivos. ......................................................... 229

  • 10

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1: Breve histórico do Complexo Babaquara- Kararaô (Primeira fase). ............. 50

    Quadro 2: Breve histórico da CHEBM (Segunda fase). ................................................. 57

    Quadro 3: Breve histórico do AHEBM (Terceira fase). ................................................. 65

    Quadro 4: Quadro-resumo das regras metodológicas segundo Latour......................... 110

    Quadro 5: Entrevistados na pesquisa de campo ........................................................... 167

    Quadro 6: Hidrogramas que indicam as vazões mensais do rio Xingu. ....................... 205

  • 11

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AAI - Avaliação Ambiental Integrada

    AIA - Avaliação de Impactos Ambientais

    ACP - Ação Civil Pública

    ANA - Agência Nacional das Águas

    AHEBM - Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte

    ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica

    BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento

    BIRD - Banco Internacional para a Reconstrução do Desenvolvimento

    BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

    CCBM - Consórcio Construtor Belo Monte

    CHEBM - Complexo Hidrelétrico Belo Monte

    CIMI - Conselho Indigenista Missionário

    CNPE - Conselho Nacional de Política Energética

    CNEC - Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores

    CONAMA - Conselho Nacional de Meio Ambiente

    COPPE - Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia

    DRDH - Declaração Reserva de Disponibilidade Hídrica

    EIA - Estudo de Impacto Ambiental

    EPE - Empresa de Pesquisa Energética

    ELTROBRÁS - Centrais Elétricas Brasileiras

    ESCT - Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia

    FADESP - Fundação de Amparo e Desenvolvimento de Pesquisas

    FUNAI - Fundação Nacional do Índio

    FVPP - Fundação Viver, Produzir e Preservar

    GEE - Gases de Efeito Estufa

    IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

    ISA - Instituto Socioambiental

    LI - Licença de Instalação

    LO - Licença de Operação

    LP - Licença Prévia

    LPI - Licença Parcial de Instalação

    MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens

  • 12

    MCT - Ministério de Ciência e Tecnologia

    MDTX - Movimento Pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu

    MME - Ministério de Minas e Energia

    MMA - Ministério de Meio Ambiente

    MPF - Ministério Público Federal

    NEPA - National Environment Policy Act

    NESA - Norte Energia Sociedade Anônima

    MW - Megawatts

    ONG - Organização Não Governamental

    ONU - Organização das Nações Unidas

    PAC - Programa de Aceleração de Crescimento

    PDE - Plano Decenal de Energia

    PNMA - Política Nacional do Meio Ambiente

    POP - Ponto Obrigatório de Passagem

    RN - Referência de Nível

    RRNN - Referências de Níveis

    RIMA - Relatório de Impacto Ambiental

    SEMA - Secretaria Estadual do Meio Ambiente

    SIN - Sistema Interligado Nacional

    STP - Sistema de Transposição de Peixes

    STE - Sistema de Transposição de Embarcações

    STJ - Superior Tribunal de Justiça

    STF - Superior Tribunal de Justiça

    TAR - Teoria do Ator-Rede

    TI - Terra Indígena

    TR - Termo de Referência

    TRF1 - Tribunal Regional Federal da 1ª Região

    TVR- Trecho de Vazão Reduzida

    UFPA - Universidade Federal do Pará

    UHE - Usina Hidrelétrica

    UHEBM - Usina Hidrelétrica Belo Monte

    XVPS - Xingu Vivo Para Sempre

  • 13

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 15

    1 HISTÓRIAS ENTRELAÇADAS: DO COMPLEXO HIDRELÉTRICO AO

    APROVEITAMENTO HIDRELÉTRICO BELO MONTE .................................... 25

    1.1 LICENCIAMENTO AMBIENTAL E PRÁTICAS INSTITUCIONALIZADAS 27

    1.2 “HERANÇA” DOS EMPREENDIMENTOS DESENVOLVIMENTISTAS À

    ÉPOCA DA DITADURA MILITAR NO SETOR HIDROENERGÉTICO

    (BALBINA E TUCURUÍ I) E SEUS “RESPINGOS” EM BELO MONTE ............. 31

    1.3 A PRIMEIRA FASE: O COMPLEXO HIDRELÉTRICO NO RIO XINGU,

    EMERGÊNCIA DA POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (1981) E A

    NOVA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988) ............................................................ 41

    1.4 SEGUNDA FASE: O LICENCIAMENTO AMBIENTAL “ÀS AVESSAS” ..... 52

    1.5 TERCEIRA FASE: BELO MONTE E A INSERÇÃO NOS PROCEDIMENTOS

    DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL E AS CONTROVÉRSIAS SE TORNAM

    PÚBLICAS ................................................................................................................. 59

    2 AS CONTROVÉRSIAS TECNOCIENTÍFICAS DA USINA HIDRELÉTRICA

    BELO MONTE SOB A LENTE DA SOCIOLOGIA DA TRADUÇÃO ................. 72

    2.1 ESTUDOS SOCIAIS EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA: AS CONTROVÉRSIAS

    TECNOCIENTÍFICAS COMO “ENTRADA” ANALÍTICA PARA A

    SOCIOLOGIA ............................................................................................................ 72

    2.2 PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES TEÓRICAS AO OBJETO EMPÍRICO DA

    PESQUISA ................................................................................................................. 86

    2.3 MAPEANDO A ESTABILIZAÇÃO DA ESCOLHA TECNOCIENTÍFICA FIO

    D’ÁGUA ..................................................................................................................... 96

    3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: SEGUINDO A REDE QUE

    TRANSLADA A DECISÃO SOCIOTÉCNICA EM CONTROVÉRSIAS

    TECNOCIENTÍFICAS .............................................................................................. 103

    3.1 DOS PRESSUPOSTOS DA TAR À CARTOGRAFIA DAS CONTROVÉRSIAS

    .................................................................................................................................. 105

    3.2 A PESQUISA DE CAMPO: APROXIMANDO FRONTEIRAS GEOGRÁFICAS

    E ASSOCIANDO CONTROVÉRSIAS ................................................................... 112

    3.2.1 O início da pesquisa: Manaus e a “emergência” de algumas controvérsias 113

  • 14

    3.2.2 Tecendo as primeiras relações: seguindo as controvérsias em Altamira e na

    Volta Grande do Xingu .............................................................................................. 129

    3.2.3 O retorno a Altamira e a “emergência” os pesquisadores insubordinados à

    NESA ........................................................................................................................... 139

    3.2.4 Belém e Brasília: seguindo o rastro da judicialização e da institucionalização

    das controvérsias ........................................................................................................ 157

    4 CONTROVÉRSIAS TECNOCIENTÍFICAS No licenciamento ambiental DA

    USINA HIDRELÉTRICA BELO MONTE: DA REDE A COSMOPOLÍTICA . 172

    4.1 A REDE DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL BELO MONTE:

    NORMATIZAÇÕES E ASSIMETRIAS DE AGENCIAMENTOS ........................ 174

    4.2 AS CONTROVÉRSIAS COMO TRADUDORAS DOS COSMOS EM DISPUTA

    .................................................................................................................................. 188

    4.2.1 A Usina Hidrelétrica Belo Monte vai gerar energia limpa? .......................... 189

    4.2.2 A Volta Grande do Xingu manterá sua biodiversidade com o funcionamento

    do Hidrograma de Consenso? ..................................................................................... 204

    4.2.3 A cota do reservatório vai operar dentro do esperado?................................. 216

    4.3 QUAIS AGÊNCIAS EMERGEM DOS COSMOS EM DISPUTA? ................. 220

    5 LICENCIAMENTO AMBIENTAL E AS AGÊNCIAS QUE DISPUTAM

    ESPAÇO NA BUSCA POR RECONHECIMENTO NA USINA HIDRELÉTRICA

    BELO MONTE ........................................................................................................... 226

    5.1 O LICENCIAMENTO AMBIENTAL DA USINA HIDRELÉTRICA BELO

    MONTE COMO LOCUS DE ENUNCIAÇÃO E DISPUTA DOS IMPACTOS

    AMBIENTAIS E DE VIABILIDADE DA OBRA .................................................. 234

    5.2 IMBRICAMENTOS ENTRE CIÊNCIA, TECNOLOGIA, EXPERTISE E

    POLÍTICA NAS DISPUTAS POR AGENCIAMENTOS NO LICENCIAMENTO

    AMBIENTAL ........................................................................................................... 244

    5.3 A AGÊNCIA DO SISTEMA JURÍDICO NAS REDES DO LICENCIAMENTO

    AMBIENTAL DE BELO MONTE .......................................................................... 253

    5.4 CIÊNCIA E DEMOCRACIA: AS CONTROVÉRSIAS COMO TRADUTORAS

    DOS CONFLITOS EM BELO MONTE .................................................................. 258

    6 CONCLUSÕES ........................................................................................................ 262

    REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 271

  • 15

    INTRODUÇÃO

    O valor significante é essa certeza de que aqui eu era feliz. Porque eu

    ajudei a construir isso aqui (...). As mãos, a cabeça... O pensamento

    está todo aqui. (...) Por isso que é difícil e é doloroso as pessoas serem

    arrancadas da sua casa na beira do Xingu. Estão me arrancando daqui,

    tentando apagar a memória, a vida. Belo Monte é isso, é arrancar

    todas as formas de vida, até que mesmo a memória seja apagada para

    sempre, até que não exista nenhuma raiz. (Antônia Melo, Líder Xingu

    Vivo Para Sempre, em entrevista publicada no jornal El País em 14 de

    setembro de 20151).

    A passagem escolhida para introduzir este trabalho elucida um pouco das

    situações profundas e complexas vivenciadas pelas pessoas que moram na área de

    influência de construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHEBM). A fala de

    Antônia Melo reflete a angústia da imposição gerada pelos deslocamentos compulsórios

    e traduz experiências2 semelhantes que se estendem Brasil afora.

    Em 2010 enquanto pesquisava sobre a qualidade de vida das pessoas que

    residiam em reassentamentos coletivos formados em decorrência da construção da

    Usina Hidrelétrica Dona Francisca, usina de médio porte, situada no interior do Rio

    Grande do Sul, entrevistei um casal de idosos que residia naquele lugar havia 10 anos.

    O reassentamento coletivo, à primeira vista, era bem estruturado, separado em lotes de

    17 hectares, cada um contendo uma casa de madeira com três quartos, água, luz, sistema

    de esgoto e um galpão.

    Sentados à mesa da cozinha, as histórias das dificuldades de adaptação foram

    divididas e o sentimento saudoso da vida precedente ao reassentamento estava

    constantemente na pauta. A entrevista durou apenas uma hora, porém, consigo lembrar

    até hoje do depoimento emocionado daquele senhor que, na frente de uma pessoa

    completamente estranha, não conseguiu conter sua dor. Depois de passar por essa

    experiência, o reassentamento havia tomado outra forma. A casa de madeira do casal,

    mesmo bem cuidada (recentemente pintada com jardins ao seu redor) estava

    apodrecendo. Naquele lote plantava-se soja, que por estar condicionada à quantidade de

    terra disponível, gerava uma renda anual que não contemplava as necessidades do casal

    1 Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/14/opinion/1442235958_647873.html. Acesso

    em: 15 nov. 2015. 2 No Brasil, ainda é difícil conseguir números oficiais sobre a população remanejada por hidrelétricas, o

    Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), movimento social que acompanha e luta pelas

    demandas dos “atingidos” estima que cerca de “1 milhão de pessoas foram expulsas de suas terras devido

    a construção de barragens. Isto corresponde a 300 mil famílias; (...) sendo que a cada 100 famílias

    deslocadas, 70 não receberam nenhum tipo de indenização.” (MAB, s/d, p.2).

    http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/14/opinion/1442235958_647873.html

  • 16

    (PRATES, 2014). Os lotes do reassentamento estavam na condição de cedidos pelo

    governo do Estado, isso significa que aquelas pessoas não possuíam autonomia sobre a

    terra, por isso, não havia a possibilidade de vendê-las caso não se adaptassem naquele

    local.

    Nesses breves relatos é possível perceber que de norte a sul do Brasil os efeitos

    sociais e econômicos gerados por empreendimentos hidrelétricos são devastadores para

    a população que os recebem. Os atingidos são ouvidos e percebidos -oficialmente - no

    processo de diagnóstico dos impactos ambientais (EIA), feitos por empresas de

    consultorias e nas audiências públicas, ambos realizados no âmbito dos procedimentos

    presentes no licenciamento ambiental. Todavia, esses espaços de participação ainda

    possuem inúmeras lacunas as quais serão problematizadas ao longo deste trabalho.

    Diferentemente da Usina Dona Francisca (elaborada no início das

    normatizações dos estudos de impacto e do licenciamento ambiental), a UHEBM está

    sendo construída sob os procedimentos do licenciamento ambiental (25 anos após a

    implementação do estudo de impacto enquanto ferramenta de consolidação da Política

    Nacional do Meio Ambiente (PNMA)) acompanhados de perto por diversos agentes

    (mídia, organizações da sociedade civil, pesquisadores, ministério público e pelos

    moradores) que relatam “just in time” os acontecimentos na região.

    Mesmo com avanços nos procedimentos do licenciamento, estes, ainda sofrem

    inúmeras acusações de superficialidade no diagnóstico da viabilidade ambiental dos

    empreendimentos hidrelétricos. Revela-se, portanto, que antigas lacunas ainda estão

    presentes tanto na apuração das análises dos impactos como nos espaços de participação

    da população.

    Com base nessas questões, este trabalho empenha-se em delinear a dinâmica do

    licenciamento ambiental de Belo Monte, que culminou na obtenção da LO pelo

    empreendedor, mesmo com inúmeras evidências tecnocientíficas opostas sobre a

    viabilidade ambiental da obra. O objetivo central deste trabalho consiste em resgatar

    como algumas controvérsias tecnocientíficas emergem, “disputam” e conquistam

    agenciamentos no licenciamento ambiental da UHEBM para compreender os arranjos

    que geraram a viabilidade ambiental da Usina.

    Os objetivos específicos são: identificar os agentes mobilizados para o

    “fechamento” da UHEBM em uma “caixa-preta3”; ressaltar a importância da reflexão

    3 O termo caixa-preta é utilizado, neste trabalho, nos mesmos termos de Latour (1994, 2001). Trata-se de

    considerar que após conhecimentos técnicos e científicos serem estabilizados em um artefato ele torna-se

  • 17

    sociológica a respeito da construção de artefatos tecnocientíficos e seus efeitos no

    ambiente; determinar, por meio do mapeamento das controvérsias, os actantes que

    geram efeitos nos processos que circundam o licenciamento ambiental, as formas de

    interessamento e engajamento que elas promovem; identificar os argumentos políticos,

    tecnocientíficos e as cosmopolíticas que disputam a legitimidade para justificar a

    UHEBM.

    Ao longo de 40 anos, o projeto inicial de construir o complexo Babaquara-

    Kararaô sofre inúmeras alterações e transforma-se, em 2005, no que se convencionou

    chamar oficialmente de Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte (AHEBM). As

    mudanças ocorridas entre os projetos foram (também) estimuladas pela PNMA,

    concebida em meados da década de 1980. Por meio dela, importantes limitações

    ambientais (licenciamento ambiental, diagnóstico de impactos, planos mitigadores)

    foram destinadas aos empreendimentos públicos e privados.

    Aplicadas ao projeto inicial de Belo Monte, as normatizações ambientais

    geraram mudanças significativas e ousadas. Diminuiu-se a área de alagamento e retirou-

    se da lista dos “afogados” as Terras Indígenas e os moradores do trecho de 97 km,

    conhecido como Volta Grande do Xingu. Como alternativa, um arranjo complexo de

    engenharia composto por estruturas colossais foi projetado, o que incluiu um canal de

    derivação (maior que o canal do Panamá) e duas barragens. Com essa alteração, a

    captação de energia projetada inicialmente foi significativamente reduzida e tornou-se

    estreitamente vinculada ao fluxo natural do rio Xingu. Entretanto, longe de parecer o

    fim dos conflitos gerados na região pela construção do complexo, o arranjo atual, gera

    outros efeitos, ainda incertos, para a manutenção da vida e da biodiversidade da Volta

    Grande do Xingu.

    Acompanhando o processo de licenciamento da UHEBM por fontes secundárias,

    desde 2011, e com mais proximidade durante a pesquisa de campo, em 2014, foi

    possível rastrear conflitos de toda sorte advindos das decisões e dos arranjos

    tecnocientíficos realizados por seu empreendedor, a Norte Energia Sociedade Anônima

    (NESA).

    Dentre os conflitos destacam-se aqueles gerados pelos reassentamentos

    compulsórios, engatilhados pelo pagamento de indenizações aquém do esperado pelos

    uma caixa-preta, cujos engendramentos são difíceis de resgatar. Assim, Latour (2001) entende que seria

    mais interessante observar os agenciamentos, os acordos, as controvérsias enquanto estes ainda estão

    sendo negociados. Nesse sentido, quando a LO tornar-se uma caixa-preta seus pormenores, ou seja, as

    controvérsias e os acordos que possibilitaram sua existência serão difíceis de perceber.

  • 18

    proprietários que encontraram dificuldades de comprar terras nas proximidades dos

    antigos locais de moradia (devido ao aumento do afluxo populacional e o consequente

    sobrepreço da terra); conflitos gerados pela a determinação do local do reassentamento

    coletivo destinado aos pescadores e aos indígenas citadinos sem seu consentimento

    prévio; embates produzidos pelo atraso de infraestruturas e seu consequente

    aparelhamento como escolas, hospitais, creches, estruturas viárias (para atender o afluxo

    populacional na região); conflitos relacionados aos impactos da construção sobre o rio

    porque atinge a pesca e a manutenção da biodiversidade na Volta Grande do Xingu;

    tensões geradas pelo atraso nos planos de compensação firmados com os indígenas da

    região, entre muitos outros.

    Cada uma dessas situações conflitivas envolvem arranjos e grupos distintos que

    possuem dinâmicas próprias. Conflitos e controvérsias possuem a mesma essência

    (VENTURINI, 2010). Contudo, no caso das controvérsias tecnocientíficas discutem-se

    conhecimentos e práticas não estabilizados pelos grupos em oposição. Para os conflitos

    os embates ocorrem em diferentes questões (econômicas, sociais, políticas), porém para

    participar das controvérsias, os conflitos (e seus agentes) precisam ser traduzidos para a

    gramática tecnocientífica moderna, por meio do agenciamento e interessamento dos

    pesquisadores.

    As controvérsias, tratadas neste trabalho, estão centralizadas em discussões

    tecnocientíficas que serão polarizadas (em cada uma das controvérsias) em programa de

    ação (de grupos que trabalham para possibilitar a construção da Usina) e antiprograma

    de ação (formado por grupos que se opõe ao programa) (LATOUR, 2011). Na

    interpretação de Nunes e Matias (2003) a distinção ontológica entre o programa e

    antiprograma revela agendas e demandas opostas, sendo o “antiprograma uma espécie

    de revelador das ausências e das exclusões sobre as quais assenta a autoridade

    epistêmica e política do programa.” (NUNES; MATIAS, 2003, p. 143).

    Destaca-se que essa polarização não reflete distinções engessadas, ao contrário,

    os grupos e as associações em oposição variam para cada artefato híbrido (UHEBM,

    Hidrograma de Consenso, Cota 100, emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) nos

    reservatórios, impactos na pesca) porque resultam de arranjos tecnocientíficos, políticos

    e sociais singulares. Logo, as redes ilustram os agenciamentos e interessamentos que

    representam mundos distintos. Reforça-se ainda que o foco deste trabalho centra-se nas

    controvérsias trabalhadas pelos agentes que se situam nas redes do antiprograma, dado

  • 19

    que não foi possível observar como a rede do programa articula -internamente- os

    agentes e as estratégias para encerrar as controvérsias.

    O trabalho ampara-se no tema das controvérsias tecnocientíficas e busca

    investigar suas articulações e agenciamentos no decorrer do licenciamento ambiental da

    UHEBM. As controvérsias tecnocientíficas trabalhadas são: i) a Emissão de Gás de

    Efeito Estufa (GEE) nos reservatórios de usinas hidrelétricas; ii) a altura que o rio

    atingirá na cidade de Altamira (Cota 100) e iii) o chamado Hidrograma de Consenso

    (acordo realizado entre vários interessados para controlar o fluxo hidrológico do Xingu,

    na Volta Grande do Xingu).

    A lente latouriana selecionada para analisar o licenciamento ambiental o

    considera como um Ator-Rede. Nessa interpretação o licenciamento é considerado uma

    extensa rede sociotécnica no qual seus agentes se conectam e podem estabilizar,

    direcionar, alterar o curso dos eventos. Destarte, os procedimentos administrativos, a

    emissão das licenças ambientais, os impactos e as ações mitigadoras decorrentes da obra

    são delimitados pelos agentes que interessam ações no licenciamento. Em suma, o

    licenciamento ambiental é considerado um Ponto Obrigatório de Passagem (POP)

    (CALLON, 1986) na delimitação da viabilidade ambiental de Belo Monte. Nesse

    sentido, durante seu andamento acontecem disputas, controvérsias e agenciamentos de

    diversos atores visando o abrandamento dos efeitos nocivos da obra.

    Destaca-se que, ao considerar o licenciamento ambiental uma rede mais ampla

    de agentes heterogêneos (técnicos, relatórios, planos, licenças e estudos), é possível

    mapear aqueles que delimitam os impactos, os que sofrem os impactos e as relações

    entre eles (desconexas ou as que possuem “nexo causal”). Em grande medida, as

    relações estabelecidas entre os agentes que constituem a rede do licenciamento

    dependem pragmaticamente de como o empreendimento é desenhado, como os

    impactos são analisados, defendidos e, acima de tudo, aplicados.

    Em novembro de 2015, o licenciamento ambiental da UHEBM se direcionou

    para a emissão da última e derradeira etapa, a Licença de Operação (LO). Por meio da

    emissão desta licença, o rio Xingu terá a permissão para ser barrado. Pressupõe-se,

    idealmente, que pelo adiantado da obra (fevereiro, 2016), todas as medidas mitigadoras

    estariam igualmente sendo encaminhadas para a conclusão. Entretanto, longe do ideal,

    as medidas mitigadoras e os planos ambientais estão em diferentes etapas, alguns em

    andamento, outros sequer foram iniciados. Frente a essa situação, as mais variadas

    disputas foram geradas entre a população local e a NESA. De um lado, os “atingidos”

  • 20

    pela Usina lutam por indenizações justas, mitigação dos impactos que vivenciam, sendo

    que muitos ainda lutam para se tornarem oficialmente “atingidos” por Belo Monte,

    porque mesmo que estejam objetivamente nessa condição, o empreendedor não os

    percebe desta forma. De outro, está o empreendedor que busca concretizar a viabilidade

    da obra dentro do prazo estipulado pela Agência Nacional de Energia Elétrica

    (ANEEL).

    Teoriza-se que os problemas sociais na região estão imbricados pelas mais

    variadas causas, presentes no licenciamento, que abrangem desde os Estudos de

    Impacto Ambiental (EIA), delimitados fragilmente por Termo de Referência (TR),

    construídos pelos técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos

    Naturais Renováveis (IBAMA), até estudos tecnocientíficos realizados superficialmente

    por empresas de consultoria contratadas pelo empreendedor. Logo, falhas ocorridas

    nesses processos iniciais geraria como efeito uma “sucessão de equívocos”, resultando,

    por exemplo, em estudos com diagnósticos subdimensionados sobre a população

    socioeconomicamente atingida. Este tipo de problema geralmente é denunciado por

    movimentos sociais como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e

    organizações não governamentais como o Xingu Vivo Para Sempre (XVPS) e o

    Instituto Socioambiental (ISA).

    O exposto pode ser exemplificado pelo ocorrido em novembro de 2015, quando

    o MAB noticiou a exclusão de 400 famílias que moram no bairro Independente II, em

    Altamira, da Cota 100 estipulada pela NESA. Essas famílias, além de não estarem

    contempladas nos programas de reassentamentos coletivos também foram consideradas

    não titulares de direito às indenizações. Em última análise, o empreendedor considerou

    que o bairro estava em uma área de risco de inundação, contudo, esse risco poderia ser

    controlado pela instalação de bombas que seriam capazes de gerenciar a quantidade de

    água no bairro, no período de cheia na região

    a única solução apresentada pela empresa para o bairro até o momento

    era um projeto de drenagem, o que a presidenta do IBAMA

    considerou “arriscado”. “Como engenheira civil, sei da dificuldade

    que é para uma prefeitura, especialmente do interior, manter um

    sistema como esse, que liga a bomba quando o reservatório enche e

    desliga quando esvazia. O IBAMA colocou para a [Agência Nacional

    de Águas] (ANA) que não considerava apropriado”, afirmou [a

    presidenta do IBAMA, Marilene Ramos]. (Notícia publicada em

    05/11/2015 no site do MAB nacional4).

    4Disponível em: http://www.mabnacional.org.br/noticia/fam-lias-do-independente2-conquistam-direito-

    ao-cadastramento. Acesso em: 15 nov. 2015.

    http://www.mabnacional.org.br/noticia/fam-lias-do-independente-2-conquistam-direito-ao-cadastramentohttp://www.mabnacional.org.br/noticia/fam-lias-do-independente-2-conquistam-direito-ao-cadastramento

  • 21

    É possível perceber que, às vésperas de conquistar a LO (após a primeira

    solicitação ter sido negada pelo IBAMA), o empreendedor e o IBAMA ainda

    gerenciavam discussões, negociavam os impactos, os respectivos “atingidos” e os

    planos mitigatórios para atender suas demandas. Pelo rápido exposto, foi possível

    identificar a existência de problemas de cunho normativo, procedimental e

    tecnocientífico que proporcionam implicações práticas devastadoras para aqueles que se

    encontram na linha de frente deste empreendimento.

    Nesse sentido, a justificativa sociopolítica deste trabalho ampara-se na

    observância dos arranjos realizados pela rede do antiprograma da Usina, durante o

    licenciamento ambiental para tornar “mais visíveis” os sofrimentos impelidos aos

    “atingidos” para arcar com os custos da geração energética “limpa” e “sustentável”. Ao

    unir o referencial teórico com a empiria, delimitada pelas controvérsias de Belo Monte,

    pretende-se ponderar o que está em jogo na disputa pela legitimidade desses

    empreendimentos, em um momento em que outras usinas hidrelétricas - de grande porte

    - estão em construção, na Amazônia brasileira.

    A problemática da tese centra-se em responder: 1) quais agências as

    controvérsias tecnocientíficas desempenham no processo de licenciamento ambiental da

    UHEBM? 2) quais agenciamentos estão presentes na rede do licenciamento da Usina

    que são capazes de provocar alterações significativas nos procedimentos na análise de

    viabilidade ambiental de usinas hidrelétricas?

    Munida de um recorte bastante específico, me lancei sobre documentos5 e fontes

    secundárias de toda sorte para chegar preparada na pesquisa de campo. O resgate dos

    eventos foi realizado por meio de documentos, tais como o EIA (2009), o Painel dos

    Especialistas (2009), estudos acadêmicos que sustentam as controvérsias e expõem os

    impactos na região; reportagens sobre a obra, observação, aplicação de entrevistas,

    construção das redes e análise dos dados.

    Parte-se de incursões analíticas dos Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia

    (ESCT) para problematizar o licenciamento ambiental pela temática das controvérsias

    tecnocientíficas. Entende-se que, nesse espaço de pesquisa, há uma possibilidade de

    ampliar a participação democrática dos híbridos de natureza e cultura que pode ser

    5 Seguir os documentos é parte fundamental da analise das controvérsias. Entende-se que os

    pesquisadores podem “"ouvir" e, sobretudo, "dialogar" com os documentos que utilizam em suas

    pesquisas, a interlocução é possível se as condições de produção dessas 'vozes' forem tomadas como

    objeto de análise — isto é, o fato de os arquivos terem sido constituídos, alimentados e mantidos por

    pessoas, grupos sociais e instituições.” (CUNHA, 2004, s/p). A análise de documentos será feita em

    conjunto com as entrevistas realizadas durante a pesquisa de campo.

  • 22

    preenchida pelos questionamentos da socioantropologia da ciência. O licenciamento

    ambiental, por sua heterogeneidade de atores, torna-se um campo vasto de pesquisa

    podendo ser explorado por inúmeras perspectivas teóricas e metodológicas; e a

    UHEBM por sua grandeza e complexidade é delineada pelos pesquisadores como “um

    laboratório a céu aberto”, sentença que ouvi algumas vezes durante minha estada em

    Altamira.

    Para circunscrever associações e práticas imbricadas na justificação do governo

    para construir a Usina será preciso seguir o “rastro” dos documentos oficiais e

    demonstrar como o projeto foi considerado politicamente aceito. Teoricamente, isto

    pressupõe que seja possível identificar os agentes que constroem o conhecimento

    objetivado na busca da viabilidade ambiental da Usina, ou seja, como a tecnociência é

    utilizada para justificar a importância da UHEBM para a população brasileira.

    Certamente este trabalho não preenche todas essas lacunas, até porque o

    “campo” empírico não é muito receptivo a “outsiders”, sendo facilitado o fluxo de

    informações àqueles que transitam neste mundo composto por técnicos, engenheiros,

    pesquisadores-consultores, políticos, entre outros. Por fim, tenta-se demonstrar que ao

    fazer emergir contrapontos à construção da obra, sustentados tecnocientificamente, seria

    possível pleitear expressões democráticas mais amplas que consigam dar conta de

    abranger o “mundo comum” das associações “para expandir a multiplicidade de

    mediações” (LATOUR, 2012, p. 369) apropriadas de outras realidades, traduzidas nas

    controvérsias levantadas pela rede do antiprograma, ao invés de ignorá-las.

    Ao responder problemática do trabalho de tese evidencia-se que as

    controvérsias, ao serem ignoradas pelo empreendedor, reforçam as disputas por agência

    na região e pressionam o sistema jurídico na busca por alternativas de assistência e

    mitigação dos impactos. Nesse sentido, problematiza-se que essas controvérsias não são

    capazes de tencionar a relação (já estanque) entre natureza e sociedade arranjadas pela

    escolha tecnocientífica (fio d’água). Ademais, a ideia de desenvolvimento sustentável

    politicamente aceita pela rede do programa da Usina inviabiliza as agências das

    controvérsias frente ao arranjo político de geração energética brasileira, pautada na

    dupla sustentação Hidrelétrica e Termelétrica.

    Para defender a existência de controvérsias tecnocientíficas e perceber suas

    agências no licenciamento ambiental foi preciso estruturar este trabalho de forma que,

    em cada capítulo, um objetivo específico fosse contemplado, para ao fim, mobilizar e

    sugestionar para o leitor que as disputas existentes em Altamira e região fazem parte dos

  • 23

    efeitos “sociais” de controvérsias ignoradas pelo empreendedor, e que elas, em grande

    parte, seriam atenuadas em uma instância tecnocientífica mais democrática. Assim, este

    trabalho está estruturado como segue:

    No primeiro capítulo um panorama geral é tecido sobre a história de Belo Monte

    buscando resgatar agências importantes para a “transformação” do projeto inicial,

    elaborado em plena ditadura militar, de um complexo de usinas para um

    Aproveitamento Hidrelétrico. A UHEBM é dividida em três momentos e neles são

    resgatados agentes considerados centrais para promover mudanças no andamento da

    obra, como a normativa do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), da

    Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), a Constituição de 1988, e os direitos

    indígenas de consulta em empreendimentos em suas terras. Ao final deste capítulo

    denota-se que as controvérsias são acionadas pelos agentes que lutam politicamente, por

    meio de estudos tecnocientíficos, para a emergência das controvérsias.

    No segundo capítulo o esforço é de apresentar a contribuição teórica para

    compreender o que são as controvérsias tecnocientíficas e qual seria o seu lugar na

    construção do empreendimento. As controvérsias serão analisadas por meio de um tipo

    de sociologia específica (latouriana) que busca problematizar o conhecimento científico

    enquanto um saber fluído, construído, situado, dependente de uma rede de sustentação

    com elementos heterogêneos. Aqui, problematiza-se a escolha tecnocientífica fio d’água

    que tornou possível a construção da UHEBM em moldes “sustentáveis”, gerando um

    regime prático de ambiente “fabricado”.

    No terceiro capítulo apresenta-se o método utilizado para tratar os dados, os

    interlocutores e as questões consideradas por eles relevantes sobre a construção de

    barragens amazônicas e, mais especificamente, sobre a UHEBM. Assim sendo, este

    capítulo expõe o andamento da pesquisa de campo e os atores que fazem das

    controvérsias tecnocientíficas. Três delas ganham centralidade neste trabalho: a

    primeira, “a UHEBM vai gerar energia limpa?”; a segunda, “a Volta Grande do Xingu

    manterá a biodiversidade com o funcionamento do Hidrograma de Consenso?” e a

    terceira, “a cota do reservatório vai operar dentro do esperado?”

    No quarto capítulo evidenciam-se as disputas e os arranjos travados entre os

    atores engajados na construção da UHEBM, para rebater as controvérsias levantadas

    pelos pesquisadores “insubordinados” à NESA e manter legítima a tecnociência

    traduzida nos estudos que compõem o licenciamento ambiental da Usina. Aqui, as

    cosmopolíticas em confronto são delineadas para cada controvérsia, evidenciando os

  • 24

    Pontos Obrigatórios de Passagem (POP’s) (CALLON, 1986) para a existência de

    assimetrias nas posições contrárias à construção da obra.

    O capítulo cinco tem o propósito de responder ao objetivo principal deste

    trabalho e demonstrar as agências que as controvérsias mobilizam no licenciamento

    ambiental da UHEBM. O eixo analítico é composto pelos efeitos que as controvérsias

    geram no licenciamento ambiental. Resulta desta construção que as agências das

    controvérsias atuam de forma a proliferar a quantidade de híbridos no licenciamento.

    Estes são assistidos na medida em que os técnicos do IBAMA conseguem negociá-los

    por meio da inserção de mais condicionantes ambientais à emissão da LO. Reforça-se,

    ainda, que as controvérsias, deixadas em suspenso pelo programa de construção da

    UHEBM, têm seus objetos de estudo e de crítica “transladados” (LATOUR, 2001) para

    os conflitos existentes na região.

    Por fim, o capítulo conclusivo deste trabalho pondera sobre as construções para

    atingir o fechamento da problemática inicial, tece considerações sobre a escolha do

    marco teórico e metodológico e, por fim, aponta possibilidades de novas pesquisas

    sobre o tema.

  • 25

    1 HISTÓRIAS ENTRELAÇADAS: DO COMPLEXO HIDRELÉTRICO AO

    APROVEITAMENTO HIDRELÉTRICO BELO MONTE

    Pretende-se neste capítulo fazer emergir fragmentos de histórias contadas sobre

    o processo de construção da Usina através de fontes secundárias acessadas em

    documentos sobre sua construção, confeccionados pelo setor elétrico e, também, nas

    histórias relatadas por Organizações Não Governamentais (ONG’s) da região, como o

    Xingu Vivo Para Sempre (XVPS) e o Instituto Socioambiental (ISA). Acessou-se

    também obras organizadas por pesquisadores da região como a coletânea de artigos

    reunidos em Switkes e Sevá (2005), Magalhães e Hernandez (2009) para chegar a um

    ponto essencial deste capítulo: realizar um panorama geral dos eventos históricos, dos

    acoplamentos e dos reencaixes que foram arranjados para retirar o Aproveitamento

    Hidrelétrico Belo Monte (AHEBM)6 do planejamento e conceber sua construção.

    A noção de história empregada aqui é não cumulativa e não linear. Ressalta-se

    que é possível analisar o tempo passado por meio das redes por meio dos rastros

    deixados por documentos e artefatos7. Aqui, o direito a historicidade é estendido aos

    objetos naturais. Uma pedra, um monumento, uma mega construção têm histórias

    porque são formados por elementos que foram arranjados em uma trajetória que fizeram

    esses objetos existirem. Assim,“cada um dos actantes possui uma assinatura única no

    espaço desdobrado por esta trajetória” (LATOUR, 1994, p.85). Assim, a história pode

    ser resgatada por elementos estabilizados nas redes dos acontecimentos e como efeito,

    esse resgate revela como foram arranjados agentes humanos e não-humanos, e como

    eles foram essenciais para a estabilização dos eventos. Portanto, pelo resgate histórico é

    possível compreender também como são construídas estratégias para gerar e encerrar as

    controvérsias da Usina.

    6 Importa diferenciar duas nomenclaturas para descrever o empreendimento Belo Monte. A primeira é a

    nomenclatura técnica: Aproveitamento Ambiental Belo Monte (AHEBM) que reforça uma posição

    marcada pelo desenvolvimento sustentável, no sentido apreendido pelos empreendedores da obra (esse

    ponto será mais bem trabalhado no capítulo 2). A segunda nomenclatura é Usina Hidrelétrica Belo Monte

    (UHEBM) e indica o que de fato será o empreendimento (sem os “jargões” da sustentabilidade), ou seja,

    uma usina hidrelétrica geradora de efeitos (positivos e negativos) similares em magnitude e incertezas a

    outras UHE’s já existentes na região amazônica. Neste trabalho a partir deste momento optou-se por

    abandonar a nomenclatura técnica, esta somente será acionada por meio da fala dos agentes durante as

    entrevistas quando foi citada. Nesse sentido, para falar de Belo Monte adota-se apenas a nomenclatura

    UHEBM. 7 Artefato tecnológico é um conceito utilizado por Latour (2001) para delinear um quase-objeto, um

    híbrido de natureza e cultura que é formado por redes sociotécnicas. Quando isento de controvérsias ela

    transforma-se em uma caixa preta (LATOUR, 2001). Artefatos técnicos são considerados aqui como a

    “linha de frente de uma controvérsia entre programas e antiprogramas.” (LATOUR, 2001, p. 354).

  • 26

    O resgate histórico permite identificar os mediadores da tradução politicamente

    aceita de natureza e sociedade que envolve o processo de viabilidade ambiental da

    UHEBM: “não há nenhum outro meio de compor o mundo comum, sabemos bem, do

    que o recompondo, do que retomando desde o início o movimento de composição.”

    (LATOUR, 2011, s/p). Logo, o movimento de composição da rede da UHEBM será

    delineado por documentos advindos de fontes diversas e por meio da fala dos

    pesquisados (na medida em que os fatos históricos aparecem). O ponto inicial do

    resgate será o ano de 1975, ano que foi produzido o inventário do potencial energético

    do rio Xingu. Destarte, será possível acompanhar, ao logo deste capítulo, as

    modificações do projeto e da sociedade brasileira atentando para os processos que

    culminaram no arranjo tecnocientífico que alterou o projeto de um “complexo

    hidrelétrico” para um “aproveitamento hidrelétrico”.

    No período que foi realizada a pesquisa de campo um questionamento, dentre

    outros, era mais inquietante: como se poderia começar a escrever um trabalho que

    mostrasse a complexidade dos acontecimentos que estavam sendo presenciados? Como

    contar uma história cheia de detalhes, difícil de organizar em uma linha tempo/espaço e

    de situar seus agentes em momentos específicos, conectados aos seus contextos?

    Pareceu fundamental situar, então, a Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHEBM) ao

    contexto Amazônico, seus personagens, dilemas e lutas frente aos diferentes projetos

    desenvolvimentistas, dentre os quais os hidrelétricos inseridos na região, ao longo das

    décadas de 1970 a 1990, período em que a UHEBM foi concebida e também alterada.

    Assim, este capítulo está organizado de forma a contemplar primeiramente o que

    é legalmente aceito nos termos de licenciamento ambiental. Essa apresentação serve de

    base para contestar a agência dos artefatos que são considerados “resquícios da ditadura

    militar” nos projetos desenvolvidos na Amazônia, como a suspensão de segurança e a

    forma de relacionar ambiente e “desenvolvimento”, com a supressão do primeiro em

    relação ao segundo, na justificativa de construir usinas hidrelétricas. Após, abrevia-se a

    história da UHEBM em três fases distintas8 e complementares para facilitar a

    apresentação do planejamento do setor elétrico e das mudanças legais, sociais, políticas,

    8 Switkes e Sevá (2005) rememoram a historiografia da Usina e consideram que o projeto foi vencido

    duas vezes. A primeira fez que a obra fosse barrada pela forte oposição dos povos indígenas de

    ambientalistas e movimentos sociais, culminando no “Encontro dos Povos Indígenas em Altamira” em

    fevereiro de 1989. A segunda tentativa “fracassada” do setor elétrico se deu pelo embargo do Estudo de

    Impacto Ambiental da obra, em 2002 (SWITKES; SEVÁ, 2005). A terceira fase figura o momento atual

    da Usina, foco deste trabalho. Nesse sentido, a separou-se didaticamente a apresentação da Usina em três

    fases, sendo essa metodologia amparada nessa primeira distinção espaço/temporal realizada pelos autores

    supracitados.

  • 27

    ambientais, bem como as alterações no planejamento do empreendimento. Esse resgate

    é essencial para avançar na leitura deste trabalho, dado que nos próximos capítulos

    serão apresentadas as controvérsias que estão imbricadas ao processo histórico.

    1.1 LICENCIAMENTO AMBIENTAL E PRÁTICAS INSTITUCIONALIZADAS

    O licenciamento ambiental, juntamente com o EIA/RIMA, são instrumentos9

    que constituem a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). Essa, por sua vez, foi

    instituída pela Lei Federal n° 6.938, de 31 de agosto de 1981, e de acordo com o artigo

    2º tem como objetivo:

    preservação, melhoria e recuperação a qualidade ambiental propícia

    à vida, visando assegurar, no país, condições ao desenvolvimento

    sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e a proteção da

    dignidade da vida humana. (Grifos acrescidos).

    As palavras em destaque evidenciam que o tripé formado: proteção ambiental,

    desenvolvimento econômico e desenvolvimento social materializam a noção de

    desenvolvimento sustentável10

    tal qual proposta pela Comissão Brundtland. Esta, por

    sua vez, apresenta em 1987 um relatório intitulado “Nosso Futuro Comum”, -

    encomendado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Nele é postulado que: “A

    humanidade é capaz de tornar o desenvolvimento sustentável - de garantir que ele

    9 Os instrumentos da PNMA estão delineadas no Art. 9º da lei nº 6.938 de 31 de Agosto de 1981: “I - o

    estabelecimento de padrões de qualidade ambiental; II - o zoneamento ambiental; (regulamento); III - a

    avaliação de impactos ambientais; IV - o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou

    potencialmente poluidoras; V - os incentivos à produção e instalação de equipamentos e a criação ou

    absorção de tecnologia, voltados para a melhoria da qualidade ambiental; VI - a criação de espaços

    territoriais especialmente protegidos pelo Poder Público federal, estadual e municipal, tais como áreas de

    proteção ambiental, de relevante interesse ecológico e RESERVAS extrativistas (redação realizada pela

    Lei nº 7.804, de 1989); VII - o sistema nacional de informações sobre o meio ambiente; VIII - o Cadastro

    Técnico Federal de Atividades e Instrumento de Defesa Ambiental; IX - as penalidades disciplinares ou

    compensatórias ao não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção da degradação

    ambiental; X - a instituição do Relatório de Qualidade do Meio Ambiente, a ser divulgado anualmente

    pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA; (incluído pela Lei

    nº 7.804, de 1989); XI - a garantia da prestação de informações relativas ao Meio Ambiente, obrigando-se

    o Poder Público a produzi-las, quando inexistentes; (Incluído pela Lei nº 7.804, de 1989); XII - o

    Cadastro Técnico Federal de atividades potencialmente poluidoras e/ou utilizadoras dos recursos

    ambientais. (incluído pela Lei nº 7.804, de 1989); XIII - instrumentos econômicos, como concessão

    florestal, servidão ambiental, seguro ambiental e outros. (incluído pela Lei nº 11.284, de 2006)”. 10

    A ideia de desenvolvimento sustentável inicialmente foi trabalhada na conferência de Estocolmo como

    o conceito de "ecodesenvolvimento" por Maurice Strong (MONTIBELLER-FILHO 1993). Esse conceito

    critica de forma macro estrutural, o reducionismo econômico das análises sociais e naturais e essa

    característica é reforçada nas incursões teóricas da sociologia ambiental de Ignacy Sachs (1994; 2007).

  • 28

    atenda às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras

    atenderem também às suas.” (BRUNDLANDT, 1991, p. 9).

    A noção da sustentabilidade apresentada foi enriquecida por meio de acordos

    internacionais iniciados na década de 1970, como Estocolmo (1972), Cúpula da Terra

    (1992), Rio +20 (2012), abrangendo temas amplos que envolvem as mudanças

    climáticas em encontros como a Conferência das Partes (COP), iniciadas em 1995.

    Esses encontros movimentam pesquisadores de toda sorte para promover debates e

    buscar saídas para os efeitos do crescimento econômico no ambiente por meio da

    normatização de indicadores, programas de ações, incentivos financeiros e tecnológicos.

    Importa ressaltar que esses encontros internacionais forneceram a materialização da

    sustentabilidade nas associações e ações práticas, ou seja, em normatizações legais ao

    redor do mundo11

    (SÁNCHEZ, 2013). No Brasil, os preceitos da sustentabilidade estão

    presentes nos pressupostos da PNMA, nas normatizações posteriores e complementares,

    como as resoluções do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) e também

    na Carta Constitucional brasileira de 1988 (FIORILLO, 2013).

    Contudo, antes das normatizações ambientais no Brasil serem firmadas, acordos

    financeiros com bancos internacionais (Banco Interamericano de Desenvolvimento

    (BID) e o Banco Internacional para a Reconstrução do Desenvolvimento (BIRD))

    limitavam timidamente os excessos aos danos ambientais exigindo estudos de impacto

    para realizar empréstimos financeiros (CÂMARA, 2013). Essas limitações são

    consideradas as precursoras das avaliações de impactos ambientais no Brasil (BASSO;

    VERDUM, 2002). Essa prática era comum12

    na época em que a PNMA não estava

    instituída e unificada nacionalmente (SÁNCHEZ, 2013), o que só veio a acontecer em

    1986, por meio do reforço político e econômico presente em suas estruturas13

    .

    11

    Diversos países na década de 1970 começam a normatizar o uso de seus recursos naturais, como:

    Estados Unidos, 1970; Colômbia em 1974; Filipinas, 1978; China, 1979; Brasil, 1981; México, 1982; ver

    lista completa em (SÀNCHEZ, 2013, p. 60) 12

    Para exemplificar essa questão tem-se o caso da Usina Hidrelétrica de Balbina que teve seu projeto

    inicial alterado pela negativa da transposição do rio Umbu pelo financiador externo pela existência de

    uma área de conflito que a hidrelétrica instaurava com os indígenas da região. 13 O artigo 6º da PNMA instituiu o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA). O primeiro órgão na hierarquia é o Conselho de Governo, cuja função é a de assessorar o Presidente da República nas

    diretrizes e políticas de governo no que tange aos recursos ambientais; o segundo é o Conselho Nacional

    do Meio Ambiente (CONAMA), o órgão consultivo e deliberativo responsável por formular as diretrizes

    para aplicação da Lei. Após, seguem os órgãos executivos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente

    e dos Recursos Naturais e Renováveis (IBAMA) e também o Instituto Chico Mendes de Conservação da

    Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, com a finalidade de executar e fazer executar a política e as

    diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente. Compõem esse quadro também os órgãos

    seccionais (estaduais) e os órgãos municipais (Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente).

  • 29

    As resoluções do CONAMA, como a 001/86, normatizam a noção de impacto e

    as etapas necessárias para a construção dos EIA’s/RIMA’s. Em consonância com essa

    resolução, há também a de número 006/87 do mesmo órgão que prevê, em seu artigo 4º,

    obrigatoriedade de licenciamento ambiental na instalação de usinas hidrelétricas, na

    forma de etapas de Licença Prévia (LP), a Licença de Instalação (LI), e a Licença de

    Operação (LO).

    Na hipótese dos empreendimentos de aproveitamento hidroelétrico,

    respeitadas as peculiaridades de cada caso, a Licença Prévia (LP)

    deverá ser requerida no início do estudo de viabilidade da usina; a

    Licença de Instalação (LI) deverá ser obtida antes da realização da

    Licitação para construção do empreendimento e a Licença de

    Operação (LO) deverá ser obtida antes do fechamento da barragem.

    Mais tarde, em 1997, a resolução CONAMA nº 237/97 regulamenta aspectos do

    licenciamento ambiental enquanto um instrumento de gestão ambiental voltado ao

    “desenvolvimento sustentável e melhoria contínua” de consolidação do licenciamento

    nacionalmente integrado, delegando as competências municipais, estaduais e nacionais

    na regulação das licenças ambientais. Nessa regulamentação, o IBAMA é o órgão

    executor da PNMA e o responsável por analisar a viabilidade ambiental de

    empreendimentos em esfera federal14

    , por meio do licenciamento ambiental.

    O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) é uma ferramenta da PNMA (Lei Federal

    n° 6.938 de 31 de agosto de 198115

    ) e está inserido em um processo mais amplo de

    Avaliação de Impactos Ambientais (AIA). Mundialmente, a institucionalização de

    medidas ambientais e a adoção de categorias e indicadores para analisar

    sistematicamente os impactos ambientais ocorreram através da lei federal denominada:

    National Environment Policy Act (NEPA), promulgada no dia 1º de janeiro de 1970,

    nos Estados Unidos. Esse dispositivo, segundo Corrêa (2006), exigiu que os

    empreendimentos geradores de impactos sobre o ambiente fossem estudados,

    previamente identificados, para que medidas compensatórias fossem tomadas para

    atenuar os impactos negativos dos mesmos.

    Sob a influência do NEPA, organismos internacionais como a Organização das

    Nações Unidas (ONU), o BID e o BIRD, passaram a exigir em seus programas de

    cooperação econômica o cumprimento dos estudos de avaliação de impacto ambiental,

    14

    Pela existência desta regulação foi possível barrar a primeira tentativa de licenciar Belo Monte, iniciado

    erroneamente pelo órgão estadual do Pará, a SEMA, fato que foi objeto da primeira ACP mobilizada pelo

    MPF e única julgada em favor do MPF e que gerou a extinção de um EIA/RIMA em vias de construção.

    15 Esta lei foi alterada pela Lei nº 7804 de 18 de julho de 1989.

  • 30

    estes, por sua vez, eram baseados nos emergentes paradigmas da sustentabilidade

    (SACHS, 2007) e do princípio da precaução, amparados na declaração de Wingspread

    (1998)16

    .

    Os processos burocráticos que envolvem o licenciamento ambiental são

    pautados em procedimentos normatizados pela PNMA. Essa política busca

    compatibilizar o desenvolvimento social e econômico com a preservação da qualidade

    do ambiente regulando e mediando as atividades empresariais públicas e privadas que

    geram impactos no lugar que será instalado. O artigo 6º da PNMA (Lei nº 6.938/81)

    formula o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA) brasileiro que é

    constituído pelo Conselho Superior do Meio Ambiente (CSMA), o órgão superior da

    política ambiental; pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), o órgão

    consultivo deliberativo; o Instituto Brasileiro do Meio ambiente e dos Recursos Naturais

    e Renováveis (IBAMA), que é o órgão executivo central; órgãos seccionais (estaduais),

    e municipais (secretarias).

    Contudo, ressalta-se que algumas etapas fundamentais para a construção de

    usinas hidrelétricas são antecedentes às do licenciamento ambiental. Elas são formadas

    pelo setor elétrico, que possui normatizações próprias para figurar os conteúdos dos

    documentos que normatiza17

    . Logo, para cumprir todas as etapas estipuladas pela

    legislação, a usina já deve estar inventariada, ou seja, planejada pelo setor energético.

    Isso não é feito aleatoriamente, como indica o atlas de energia elétrica do Brasil:

    As principais variáveis utilizadas na classificação de uma usina hidrelétrica

    são: altura da queda d’água, vazão, capacidade ou potência instalada, tipo de

    turbina empregada, localização, tipo de barragem e reservatório. Todos são

    fatores interdependentes. Assim, a altura da queda d’água e a vazão

    dependem do local de construção e determinarão qual será a capacidade

    instalada - que, por sua vez, determina o tipo de turbina, barragem e

    reservatório. (ANAEEL, 2008, p.53).

    Os fatores interdependentes, como o tipo de projeto e o local escolhido, estão

    postos desde o período do inventariado que é feito dos rios brasileiros. Nesse sentido, as

    obrigatoriedades de cuidado com o manejo ambiental estão fadadas à negociação

    perante o projeto estabelecido a priori.

    16

    O princípio da Precaução baseia-se na ineficácia das ações governamentais, corporações, comunidades,

    cientistas na prevenção dos danos ambientais causados pela ação humana. Nesse sentido, as medidas de

    precaução devem ser tomadas mesmo se a ciência ainda não consegue estabelecer vinculo de causa e

    efeito sobre o evento e os danos declaração sobre o Princípio da Precaução (1998). A questão central

    desses paradigmas é manter o país crescendo economicamente, mas protegendo os recursos naturais

    (água, solo, ar) para as gerações futuras do planeta. 17

    Para mais detalhes sobre as etapas essenciais para construção de hidrelétricas ver FACURI, M. F. A,

    2004.

  • 31

    Assim, na Figura 1, percebe-se que há uma gama de procedimentos que

    ultrapassam as competências concernentes apenas ao licenciamento ambiental, expostas

    na terceira linha, como a realização dos estudos de inventário de bacias, estudos de

    viabilidade hídrica, o projeto executivo (expostos na segunda linha) que são de

    competências do setor elétrico (MME), de competência, portanto, Agência Nacional de

    Energia Elétrica (ANEEL), Empresa de Pesquisa Energética (EPE).

    Figura 1: Etapas de planejamento para construção de Usinas Hidrelétricas. Fonte: ELETROBRÁS, 2010, s/p.

    Reforça-se pelo exposto que o licenciamento ambiental possui interdependências

    com documentos provenientes de outras autarquias governamentais presentes no MMA

    e MME. Portanto, o diálogo interministerial é estritamente importante para o andamento

    do licenciamento exatamente porque diversos órgãos governamentais (ANA, ANEEL,

    EPE, FUNAI, IPHAN) afetam diretamente a fluidez dos procedimentos porque

    possuem o papel de traduzir acontecimentos na região. Ao longo deste trabalho as

    conexões entre o IBAMA e as demais autarquias governamentais serão ressaltadas e

    problematizadas juntamente com o andamento dos procedimentos que permitem a

    viabilidade ambiental da Usina.

    1.2 “HERANÇA” DOS EMPREENDIMENTOS DESENVOLVIMENTISTAS À

    ÉPOCA DA DITADURA MILITAR NO SETOR HIDROENERGÉTICO (BALBINA

    E TUCURUÍ I) E SEUS “RESPINGOS” EM BELO MONTE

  • 32

    Antes de mapearmos a história da Usina é preciso expor a relação entre o

    desenvolvimentismo preconizado na década de 1970, bem como seus mecanismos para

    relacionar sociedade, economia e natureza. O objetivo é perceber as formas de pensar e

    materializar empreendimentos e dispositivos legais na época da ditadura militar. Essa

    questão foi percebida durante a pesquisa de campo, dado que algumas ferramentas

    legais preconizadas nesta época, como a suspensão de segurança, estão sendo acionadas

    com frequência para manter a obra em construção. Há ainda resquícios conservadores

    no que tange o imbricamento entre a concepção de ambiente e seu papel na geração de

    energia durante as disputas entorno da construção da UHEBM.

    Quando cheguei a Altamira, comecei a pesquisar sobre as mudanças que a

    UHEBM estava produzindo na cidade. Saltou aos olhos a quantidade de ônibus

    (segundo dados do IBGE em 2010 a frota era de 61 ônibus e em 2014, 57018

    ) do

    Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM) que trafegavam várias vezes por dia e em

    alta velocidade, a quantidade de obras de infraestrutura ainda em construção (hospital,

    postos de saúde, prédios novos no campus da UFPA, e as de saneamento), de

    “barrageiros” - trabalhadores que seguem as oportunidades de trabalho ofertadas para

    atuar na construção de uma barragem -, de carros (4 x 4) com os mais diferentes

    logotipos de empresas de consultoria vindas de todo o canto do Brasil.

    O estudo oficial estimou que, até 2019, cerca de 20 mil trabalhadores serão

    atraídos para Altamira e região (ELETROBRÁS, 2009). A estimativa do IBGE é de que

    atualmente 108.38219

    pessoas residam em Altamira. Contudo, as obras que fazem parte

    das condicionantes ambientais da UHEBM estavam (em março de 2014) ainda em vias

    de construção. Em 2015, ainda havia diversas denúncias, que foram compiladas e

    expostas em um dossiê “Belo Monte não há condições para a Licença de Operação”

    (ISA, 2015). Nesta compilação indica-se que as infraestruturas da região carecem de

    mais reforços para suportar as alterações e que as condicionantes ambientais, quando

    não estão descumpridas, encontram-se atrasadas. De modo geral, com base no discurso

    da empresa empreendedora Norte Energia Sociedade Anônima (NESA), o

    desenvolvimento na região, está relacionado, hoje, com a geração de emprego (durante

    a fase de construção da usina), renda (por meio dos royalties destinados aos municípios

    18

    Houve um aumento na frota geral de veículos: em 2010, início das obras a frota era de 23.985, em 2014

    esse número dobrou 49.022 (IBGE, 2014). Dados disponíveis no site do IBGE:

    http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=150060&idtema=139&search=para|altamira|f

    rota-2014. Acesso em: 26 set. 2015. 19

    Em 2010, o número de residentes era de 99.075.

    http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=150060&idtema=139&search=para|altamira|frota-2014http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=150060&idtema=139&search=para|altamira|frota-2014

  • 33

    afetados pela obra) e pelo fortalecimento das infraestruturas sociais com a finalização da

    construção de hospitais, escolas, estruturas viárias, sistema de esgoto, entre outros.

    Altamira foi, na década de 1970, considerada o maior município em extensão

    territorial do mundo, cuja biodiversidade, exuberâncias Amazônicas, somadas à

    dificuldade do IBAMA mapear e fiscalizar todo o território (devido ao

    acompanhamento tardio de imagens por satélite, pouca disponibilidade de profissionais

    para dar conta de inspecionar as mudanças no desmatamento da região) gerou toda sorte

    de “abusos” ambientais. Logo, a região possui forte presença de madeireiros,

    garimpeiros e sofre também com a especulação de barrageiros que exploram o ambiente

    promovendo o desmatamento - dentre outros impactos - porque atraem pessoas para a

    região, sendo que o afluxo populacional tem sido “fortemente associado ao crescimento

    da área desmatada na Amazônia” (BARRETO et al., 2011, p. 13).

    O primeiro ousado acesso viário da região foi a rodovia Transamazônica,

    planejada para viabilizar o alcance terrestre a áreas antes inacessíveis. Ela foi iniciada

    no governo militar sob o mandato do presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974),

    em 1970 e apenas 40 anos depois, no ano de 2013, ela começa a ser asfaltada no trecho

    que abrange a região entre Marabá e Altamira para facilitar o escoamento das máquinas

    para a construção da usina (OXINGU, 201320

    ).

    20

    Disponível em: http://www.oxingu.com/noticia/1646/especial-transamazonica-asfalto-deixa-de-ser-

    sonho.html. Acesso em: 10 dez. 2015.

    http://www.oxingu.com/noticia/1646/especial-transamazonica-asfalto-deixa-de-ser-sonho.htmlhttp://www.oxingu.com/noticia/1646/especial-transamazonica-asfalto-deixa-de-ser-sonho.html

  • 34

    Figura 2: Altamira e a Transamazônica

    Fonte: Mano (2013). Disponível em: http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=31717 Acesso em: 10 jul. 2014.

    A Figura 2, retratada em 1970, captura a cena da solenidade de “inauguração”

    das obras da Transamazônica em que uma castanheira, de proporções Amazônicas, foi

    derrubada para marcar o início do evento. Uma placa foi fixada no que restou da árvore,

    com os dizeres: "Nesta margem do rio Xingu, em plena selva amazônica, o Sr.

    Presidente da República deu início à construção da Transamazônica, numa arrancada

    histórica pela conquista e colonização deste gigantesco mundo verde” (MANO, 2013).

    Os desafios da época de sua construção se mantêm atuais.

    As tentativas de finalização da Transamazônica são recorrentes, o asfalto,

    quando existe, em partes da rodovia, sofre avarias com as chuvas, buracos gerando

    atoleiros. Os impactos e externalidades deixados pela Transamazônica, arquitetados e

    consolidados na ditadura militar brasileira21

    , são similares aos impactos dos

    empreendimentos hidrelétricos de Tucuruí I (PA), que ainda carrega o titulo de maior

    usina hidrelétrica inteiramente situada no território brasileiro, e de Balbina (AM).

    21

    Ao falar de ditadura militar me refiro aos acontecimentos no período histórico de 1964-1985. No

    entanto, entende-se a ditadura militar como uma sucessão de eventos que culminaram nos fatos que dela

    recorreram, como a limitação da participação democrática e de liberdade de expressão , a geração de

    desenvolvimento econômico sem considerar as limitações sociais e ambientais. Vamos tomar esses fatos

    e esse período histórico como “caixas-pretas” (LATOUR, 2001), pois não há tempo hábil, neste trabalho,

    para reabri-los e explicá-los em suas nuances.

    http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=31717

  • 35

    Como indica a citação acima, nessa época, os projetos desenvolvimentistas

    estavam conectados com o desmatamento na região Amazônica porque esta, na visão da

    política do governo, precisava ceder espaço às atividades econômicas como a

    exploração de minérios, extração de floresta para monoculturas de soja e para a criação

    de gado. Este o processo de exploração econômica, cultura, política, da Amazônia

    brasileira é considerada como a “colonização” dos espaços ociosos na região

    (BARRETO et al., 2011).

    As usinas de Balbina e Tucuruí I são até hoje consideradas “maus exemplos” de

    barragens brasileiras e são citadas como empreendimentos “desastrosos” do ponto de

    vista ambiental e social. Balbina é reconhecidamente promotora do maior desastre

    ambiental gerado e projetado pelo nosso setor energético. Para formar seu reservatório

    foi necessário inundar uma área de 2.360 km². Essa área é um pouco menor que a

    alagada para formar o reservatório da usina Tucuruí I (2.430 km²). O problema é que

    Balbina gera apenas 250 MW, muito menos que os 4.000 MW dessa última

    (FEARNSIDE, 2015). Ambas as usinas foram finalizadas na década de 1980, antes da

    obrigatoriedade de analisar e mitigar os impactos ambientais, e em comum, elas

    compartilham os excessos cometidos sobre o ambiente em que se instalaram.

    Sobre o imbricamento entre projetos hidrelétricos e o “desenvolvimento” pela

    geração de infraestruturas (sistema de esgoto, hospitais, escolas) torna-se elucidativa a

    experiência dividida por um dos engenheiros do Consórcio Construtor Belo Monte

    (CCBM) que havia acompanhado a construção da Usina de Balbina, durante uma

    entrevista que aconteceu no período que estive em campo (e será apresentada no

    capítulo 3). A Usina Balbina e sua relação com o rio Alalaú (AM) ocuparam uma parte

    importante da entrevista e trago esse caso por d