whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno
Post on 20-Oct-2014
246 views
DESCRIPTION
TRANSCRIPT
Coleção PHILOSOPHICA coordenada por RACHEl GAZOLLA
. A ciência e o mundo moderno, Alfred North Whitehead
• Introdução à f1losofia antiga: Premissas fifo/6gjcas e outras "ferramentas de trabalho", Livi o Rossetti
• A busca do conhecimento: Ensaios de filosofia medieval no Islã, Rosalie Helena S. Pereira (erg.)
ALfRED NORTH WHITEHEAD
A CIÊNCIA
EO
MUNDO MODERNO
~ PAULUS
05-9274
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (O) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Whitehead, Alfred North, 1861-1947 A ciência e o mundo moderno I Alfred North
Whitehead ; [tradução Hermann Herbert Watzlawick}. São Paulo: Paulus, 2006. - (Coleção philosophica)
Titulo original: Science and the Modem World. Bibliografia.
ISBN 85-349-2451·1
1. Ciência - Filosofia - História 2. Ciência e civilização 3. Cosmologia 4. Estética 5. Ética
6. Religião I. título. 11. Série.
fndices para catálogo sistemático: 1. Ciência: Filosofia: História 501
Título original Science and the Modern World
CDD-501
© The Syndicate ofthe Press ofthe University ofCambridge, 1953
Direção editorial Paulo Bazaglia
Tradução Hermann Herbert Watzlawick
Editoração PAULU5
Impressão e acabamento PAULUS
o PAULUS - 2006 Rua Francisco Cruz, 229·04117-091 • São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627· Te1. (11) 5084-3066 [email protected]
ISBN 85-349-2451-1
A meus colegas,
de outrora e de hoje, cuja amizade é inspiração
1
) SUMÁRIO
•
-9 Prefacio
Capitulo I
J3 As origens da ciência moderna
Capitulo II
35 A matemática como um elemento na história
do pensamento
Capitulo 1II 57 O século do gênio
Capitulo N 77 O século XVlII
Capitulo V
99 A reação romântica
Capitulo VI
123 O século XIX
Capitulo VII
145 A relatividade
Capitulo VlII
163 A teoria do quantum
Capitulo IX
173 Ciência e filosofia
171
195
215
223
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Capítulo X A abstração
Capítulo XI
Deus
Capítulo XII Religião e ciência
Capítulo XIII
237 Requisitos para o progresso social
257 Índice remissivo
18 1
PREFÁCIO
,'.
O presente livro contém um estudo acerca de alguns as
pectos da cultura ocidental ao longo dos últimos três séculos, à
medida que foi influenciada pelo desenvolvimento da ciência. Este estudo guiou-se pela convicção de que a mentalidade de uma época nasce da visão de mundo que, de fato, predomina nos setores instruídos das comunidades em questão. Há, pro
vavelmente, mais que um esquema, de acordo com as divisões
culturais. Os diversos campos do interesse humano que suge
rem cosmologias, e que também são influenciados por elas, são
a ciência, a estética, a ética e a religião. Em todas as épocas, cada
um desses assuntos evoca uma visão de mundo. Uma vez que
o mesmo grupo de pessoas é influenciado por todos esses inte
resses, ou por mais do que um deles, seu ponto de vista efetivo
será o produto total dessas fontes. Cada época, porém, tem sua preocupação principal; durante os três séculos em questão, a cosmologia derivada da ciência tem-se auto-afirmado à custa
de antigos pontos de vista cuja origem encontra-se alhures. O
ser humano pode ser provinciano tanto no tempo corno no espaço. Podemos perguntar-nos se a mentalidade científica do
mundo moderno no passado recente não é um exemplo bem
sucedido dessa limitação provinciana. A filosofia, em uma de suas funções, é a critica das cos
mologias. É sua função harmonizar, remodelar e justificar intuições divergentes em relação à natureza das coisas. Deve insistir tanto na análise minuciosa das últimas idéias como
191
1 1
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
na retenção de todas as evidências que modelam nosso esquema cosmológico. Seu trabalho é tornar explicito e - Tia medida do possível - eficiente um processo que, de outn. maneira, seria realizado inconscientemente, sem testes r2-
cionais. Tendo isso em mente, evitei a introdução de uma série de
detalhes obscuros sobre avanços científicos. O que se espera, e
nisso me empenhei em seguida, é um simpático estudo de idéias
importantes vistas a partir de dentro. Se minha visão da função da filosofia está correta, ela é a mais eficaz de todos os esforços intelectuais. Constrói catedrais antes que o operário mova uma
pedra, e as destrói antes que os elementos (terra, ar, água e fogo) desgastem os arcos delas. É o arquiteto das construções do espírito, e é também o destruidor delas: o espiritual precede ao material. A @osofia trabalha devagar. Os pensamentos ficam
dormentes por períodos; e, então, quase repentinamente, a humanidade percebe que eles, os pensamentos, incorporaram-se em instituições.
Este livro consiste primordialmente em um conjunto de oito conferências em Lowell proferidas em fevereiro de 1925. Essas conferências - com alguns poucos acréscimos e a subdivisão de uma conferência entre os capítulos VII e VIII - estão aquí publicadas conforme proferidas. Alguns conteúdos
adicionais, porém, foram acrescentados, a fim de completar o pensamento do livro em uma seqüência que não pode ser incluída no andamento daquelas conferências. Desse novo as
sunto, o capítulo II - "A matemática como um elemento na
história do pensamento" - foi proferido como conferência diantê ·dá Sociedade Matemática da Universidade de Brown,
Providence (Rhode Island, USA); e o capitulo XII - "Religião e ciência" - foi um comunicado proferido na Phillips Brooks House em Harvard, e será publicado no número de agosto da Atlantic Monthly deste ano (1925). Os capítulos X e XI - "Abstração" e "Deus" - são adições que agora aparecem pela primeira vez. Contudo, o livro descreve uma seqüência de
I 10 I
I A CIt;NClA E O MUNDO MODERNO I
pensamento, e a utilização anterior de parte de seu conteúdo é algo secundário.
Não houve ocasião no texto de fazer uma referência particular às obras Emergent Evolution, de Lloyd Morgan, eSpace,
Time and Deity, de Alexander . Ficará claro para os leitores que as considerei muito sugestivas. Estou em débito especialmente com o formidável trabalho de Alexander. O grande objetive
do presente livro torna impossivel agradecer com detalhe às •
diversas fontes tanto de informação como de idéia. O livro é produto de antigas meditações e leituras que foram empreendi
das sem nenhuma previsão de utilização para o atual propósito. Desse modo, agora talvez seja impossível para mim fornecer as referências detalhadas de minhas fontes, mesmo quando seria desejável fazê-lo. Contudo, não há necessidade: os fatos sobre os quais me baseio são simples e bem conhecidos. Quanto à filosofia, qualquer consideração de epistemologia foi inteiramente excluída. Seria impossível discutir esse assunto sem arruinar toda a estabilidade do trabalho. A chave do livro é a percepção da importância avassaladora de uma filosofia prevalente.
Meu mais sincero agradecimento a meu colega Sr. Raphael Demos, pela leitura das provas e pelas sugestões que melhoraram muito a expressividade do texto.
UNIVERSIDADE DE HARVARD 29 de junho de 1925
I 11 I
1
'-';,:'"',:~'
!
--._~
I CAPrTU LO I I
As ORIGENS DA CIÊNCIA MODERNA '0
O progresso da civilização não é de todo uma tendência uniforme rumo a coisas melhores. Pode talvez ser essa a impressão se o mapeamos com uma escala que seja suficien
temente grande. Contudo, certas visões gerais obscurecem os
detalhes sobre os quais se assenta todo o nosso processo de entendimento. Épocas novas emergem com relativa rapidez se
considerarmos os milhares de anos ao longo dos quais a história toda se estende. Povos separados tomam de repente seus lugares na torrente principal dos eventos; descobertas tecnológicas
transformam o mecanismo da vida humana; uma arte primitiva
rapidamente desabrocha em completa satisfação de algum desejo estético; grandes religiões, em sua jovem cruzada, expan
dem pelas nações a paz do céu e a espada do Senhor. O século XVI de nossa era assistiu à ruptura do cristianis
mo ocidental e à ascensão da ciência moderna. Foi um período
agitado. Nada se achava estabelecido, entretanto muito se descortinava - novos mundos e novas idéias. Na ciência, Copérni
co e Vesálio podem ser escolhidos como figuras representativas: tipificam a nova cosmologia e a ênfase científica na observação
direta. Giordano Bruno foi o mártir; embora tenha padecido por causa não da ciência e sim da livre especulação imaginati
va. Sua morte no ano 1600 inaugura o primeiro século da ci
ência moderna no sentido estrito do termo. Em sua execução
havia um simbolismo inconsciente, pois o tom subseqüente do
pensamento cientifico desconfiou do tipo de especulação geral
I 13 I
1 1
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
dele. A Reforma, em razão de toda a sua importância, pode ser considerada uma tarefa interna dos povos europeus. Também o cristianismo oriental viu-a com profunda indiferença. Contudo, tais rompimentos não são fenômenos novos na história do cristianismo ou de outras religiões. Quando projetamos essa grande revolução na história completa da Igreja cristã, não podemos considerá-la como uma introdução de um novo princípio na
vida humana. Para bem ou para mal, foi uma grande transfor
mação religiosa; mas não foi o advento da religião. A Reforma
não reivindicou isso para si. Os reformadores afirmavam que estavam apenas restaurando o que havia sido esquecido.
Ocorre algo completamente diferente com relação à ascensão da ciência moderna. De todas as formas ela contrasta com o movimento religioso da época. A Reforma foi uma insurreição popular e por um século e meio encheu a Europa de sangue. O início do movimento cientifico ficou reservado a uma minoria entre a elite intelectual. Em uma geração que viu a Guerra dos Trinta Anos e lembrou o Duque de Alba, * na Holanda, o que aconteceu de pior para os homens da ciência foi Galileu ter sofrido uma prisão decente e uma censura branda, antes de morrer serenamente em sua cama. A forma como
a perseguição de Galileu tem sido lembrada é um tributo ao começo tranqüilo da mais profunda mudança de perspectiva que o gênero humano já experimentou. Desde que uma criança nasceu em uma manjedoura, pode-se duvidar se algo tão
grande aconteceu com tão pouca agitação. A tese que estes capítulos ilustrarão é a de que esse cres
cimento tranqüilo da ciência praticamente deu nova cor à nos
sa mentalidade, de modo que formas de pensamento que até então eram excepcionais são agora amplamente difundidas por
* Fernando Álvarez de Toledo, fidalgo espanhol (Piedrahita, 1508 - Lisboa, 1582). General espanhol conhecido por sua tirania e crueldade. Em 1567, o rei Filipe II tornou·o governante dos Países Baixos, que se haviam revoltado contra a Espanha. O tribunal do Duque de Alba condenou à morte milhares de pessoas e ficou conhecido como Conselho de Sangue. (N. T.)
1 141
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
todo o mundo instruído. Esse novo colorido da forma de pensar tinha ocorrido lentamente ao longo de muitas épocas entre os povos europeus. Por fim, terminou em um rápido desenvolvimento da ciência; e se tem, desse modo, fortalecido graças às suas mais óbvias aplicações. A nova mentalidade é mais importante também que a nova ciência e a nova tecnologia. Ela mudou os pressupostos metafísicos e os conteúdos imaginativos de
nossa mente; como resultado, agora o antigo estímulo provoca'
uma nova resposta. Talvez minha metáfora de uma nova cor seja demasiado forte. O que pretendo é apenas aquela pequena
mudança de tom que, porém, faz toda a diferença. Isso é muito bem ilustrado por uma frase de uma carta publicada de autoria do gênio adorável que foi William James. Quando estava concluindo seu grande trabalho sobre os Princípios de psicologia, escreveu a seu irmão Henry James: "Tenho de forjar cada frase no molde dos fatos irredutiveis e inflexíveis".
Esse novo matiz das mentes modernas é um interesse veemente e apaixonado pela relação entre os princípios gerais e os fatos irredutíveis e inflexíveis. Por todo o mundo, em todos os tempos e lugares, tem havido homens práticos, absorvidos por "fatos irredutíveis e inflexíveis"; por todo o mundo, em todos os tempos e lugares, tem havido homens de temperamento filosófico que foram absorvidos na teia dos principios gerais. É
essa união entre interesse apaixonado pelos fatos particulares e igual dedicação à generalização abstrata que forma a novidade
de nossa atual sociedade. Primeiramente, apareceu de forma esporádica e como por acaso. Esse equilíbrio do espírito tornou
se agora parte da tradição que permeia o pensamento erudito. É o sal que dá gosto à vida. O principal trabalho das universi
dades é transmitir, de geração para geração, essa tradição como
uma herança comum. Outro contraste que diferencia a ciência dos demais movi
mentos europeus dos séculos XVI e XVII é sua universalidade. A ciência moderna nasceu na Europa, mas sua casa é o mundo inteiro. Nos últimos dois séculos houve um longo e confuso
115 1
.~ 1
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
impacto dos hábitos ocidentais sobre a civilização da Ásia. Os sábios do Oriente ficaram, e estão, intrigados quanto ao que pode ser o segredo norteador da vida capaz de ser transmitido do Ocidente para o Oriente sem a destruição dissoluta de sua própria herança, a qual eles tão acertadamente apreciam. Cada vez mais se toma evidente que o que o Ocidente pode mais prontamente dar ao Oriente é sua ciência e sua perspectiva cientifica. Isso é transferível de nação para nação, e de povo para povo, onde quer que haja uma sociedade racional.
Ao longo destes capítulos, não discutirei os detalhes das descobertas cientificas. Meu tema é a ativação de um estado de espirito no mundo moderno, sua ampla generalização e seu impacto sobre outras forças espirituais. Há dois modos de ler a história: para a frente e para trás. Na história do pensamento, precisamos de ambos os métodos. Um ambiente de juízo -para uSar a feliz frase de um escritor do século XVII - requer para sua compreensão a consideração de seus antecedentes e das questões deles. Por isso, neste capítulo considerarei alguns dos antecedentes de como abordamos modernamente a investigação da natureza.
Em primeiro lugar, não pode haver ciência sem que não haja uma ampla convicção instintiva da existência de uma "~ dem das coisas" e, particularmente, de uma "ordem da natureza". Usei a palavra "instintiva" deliberadamente. Não importa o que os homens expressem em palavras, suas atividades são controladas por determinados instintos. Até isso ter ocorrido, palavras não são importantes. Essa observação é importante a respeito da história do pensamento cientifico. Pois perceberemos que, desde o tempo de Hume, a filosofia da ciência em voga tem sido usada para negar a racionalidade da ciência. Essa conclusão é patente na filosofia de Hume. Tome-se, por exemplo, a seguinte passagem da parte IV de sua obra Investigação sobre o entendimento humano:
I Em uma palavra: todo efeito é um evento diferente de sua
I causa. Portanto, não poderia ser descoberto na causa; e a ,
I 16 I
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
) primeira invenção ou concepção dele, a priori, é necessaria·
~I mente arbitrária.
Se a causa em si não revela informação quanto ao efeito, de modo que a primeira descoberta dela deva ser "necessariamente" arbitrária, infere-se imediatamente que a ciência é impossível, exceto se entendida como conexões estabelecidas "inteiramente arbitrárias", que não são asseguradas por nada in-'
trínseco à natureza das causas ou dos efeitos. Algumas variantes da filosofia de Hume têm prevalecido entre homens da ciência. Contudo, a crença cientifica deparou com uma emergência e precisou t~itamente remover a montanha filosófica.
Em virtude dessa grande contradição no pensamento
cientifico, é de primeira ordem considerar os antecedentes de uma crença que é inacessível à busca de uma racionalidade consistente. Temos, portanto, de descobrir a origem da crença instintiva existente quanto à "ordem da natureza" e que pode ser descoberta em cada evento particular.-
Naturalmente, todos nós partilhamos dessa crença e, por conseguinte, acreditamos que a razão para ela é nossa apreensão de sua verdade. Contudo, a formação de uma idéia - tal como a idéia de "ordem da natureza" -, a percepção de sua importância e a observação de sua concretização em diversos exemplos não são, de forma alguma, conseqüências da verdade da idéia em questão. Coisas triviais acontecem e a humanidade não se preocupa com elas. Dedicar-se à análise do óbvio requer um es
pírito bastante inusitado. Por isso, quero estudar os estágios em que essa análise toma-se explícita e, por fim, irreversivelmente gravada nas mentes eruditas da Europa ocidental.
Obviamente, as principais recorrências da vida são muito insistentes para permitir a constatação de uma racionalidade humana mínima; e mesmo antes do começo da racionalidade elas fixaram-se nos instintos dos animais. É desnecessário à abordagem do assunto o fato de que, em grandes linhas, certos estados gerais da natureza ocorrem pe-
117 I
1 1
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
riodicamente e de que nOSSa verdadeira natureza adaptou-se a essas repetições.
Há, contudo, um fato complementar que é igualmente verdadeiro e óbvio: nada jamais toma a acontecer em seus mínimos detalhes. Nenhum dia é igual a outro, nem invernos o são. O que passou, passou para sempre. Portanto, a filosofia prática da humanidade tem consistido em esperar as abundantes
recorrências e em aceitar os detalhes como emanação do âma
go inescrutável das coisas além do campo visual da racionalidade. O ser humano presume que o sol nascerá, mas o vento sopra onde quer.
/ Com certeza, a partir da civilização grega clássica houve homens, e naturalmente grupos de homens, que se colocaram além da aceitação de uma irracionalidade última. Esses homens esforçaram-se em explicar todos os fenômenos como o resultado de uma ordem das coisas que se estende a cada detalhe. Gênios como Aristóteles, Arquimedes ou Roger Bacon tiveram, com toda a certeza, uma mentalidade científica no mais alto grau; essa mentalidade sustentava instintivamente que todas as coisas, grandes ou pequenas, são concebíveis como exemplifica
ções de princípios gerais que reinam em toda a ordem natural. Contudo, até o fim da Idade Média o público erudito em
geral não percebeu essa convicção profunda e esse interesse particular em tal idéia, de modo a conduzir uma incessante oferta de homens com habilidade e oportunidade adequadas
para sustentar uma busca coordenada da descoberta desses
princípios hipotéticos. As pessoas ou duvidavam da existência de tais princípios e da possibilidade de serem encontrados - ou
então não se preocupavam em refletir sobre eles -, ou estavam desatentas à sua importância prática quando os encontravam. Seja qual for a razão, a busca era lenta, se atentarmos às oportunidades de uma grande civilização e a duração do tempo em questão. Por que as coisas de repente se aceleraram durante os séculos XVI e XVIP No final da Idade Média uma nova mentalidade manifestou-se. A invenção estimulou o pensamento, o
I 18 I
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
pensamento provocou a especulação física; manuscritos gregos revelaram aquilo que os antigos haviam descoberto. Por último, embora no ano de 1500 a Europa não conhecesse nada de Arquimedes, que morrera em 212 a.C, logo em seguida, em 1700, Newton escreveria os Principia, e o mundo começaria a
Era moderna. Existem grandes civilizações nas quais o equilíbrio p~
culíar do espírito necessitou que a ciência aparecesse apenas de tempos em tempos, o que produziu resultados débeis. Por
exemplo, quanto mais conhecemos a arte, a literatura e a filosofia de vida chinesas, mais admiramos O nível que essa civilização alcançou. Por milhares de anos, houve na China homens argutos e instruídos que pacientemente dedicaram sua vida ao estudo. Tendo em conta o arco de tempo e a população em questão,
a China constitui a maior civilização que o mundo já viu. Não há razões para duvidar da capacidade intrínseca de cada chinês
na busca por ciência, mesmo que a ciência chinesa seja praticamente negligenciada. Não há razão para acreditar que a China,
se abandonada a si mesma, não poderia jamais produzir progresso científico algum. O mesmo pode ser afirmado a respeito da índia. Ademais, se os persas tivessem dominado os gregos, não haveria base segura para acreditar que a ciência nasceria na Europa. Os romanos não demonstram originalidade nesse sentido. De acordo com o que aconteceu, os gregos, não obstante
terem fundado o movimento, não o mantiveram com o interesse concentrado que os europeus modernos demonstraram. Não
estou aludindo às últimas gerações de europeus nos dois lados
do oceano; refiro-me à Europa menor, do período da Reforma, perturbada como ela foi por guerras e disputas religiosas.
Consideremos o mundo do Mediterrâneo oríental, da Sicília até a Ásia ocidental, durante o período de cerca de IAOO anos, desde a morte de Arquimedes (em 212 a.C) até a invasão dos tártaros. Houve guerras em revoluções e grandes mudanças religiosas; mas nada pior que as guerras dos séculos XVI e XVII em toda a Europa. Houve uma grande e opulenta civilização
I 19 I
1 I :
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
pagã, cristã e islâmica. Nesse período muito foi acrescentado à ciência. Todavia, em seu conjunto, o progresso foi lento e inconstante; e, exceto no campo da matemática) os homens do Renascimento praticamente começaram do lugar a que Arquimedes havia chegado. Houvera alguns progressos na medicina e na astronomia. O avanço total, porém, foi muito pequeno se comparado aos fascinantes sucessos do século XVII. Por exem
plo, se compararmos o progresso do conhecimento cientifico
entre 1560 (pouco antes do nascimento de Galileu e Kepler) e 1700 (quando Newton estava no auge de sua fama) com o
progresso na Antigüidade, já mencionado, constataremos que aquele foi dez vezes maior que este último.
Todavia, a Grécia foi a mãe da Europa, e é para a Grécia que devemos olhar a fim de encontrar a origem de nossas idéias modernas. Todos sabemos que na costa oriental do Mediterrâneo houve uma próspera escola de filósofos jônicos profundamente interessados em teorias concernentes à natureza. Suas idéias chegaram até nós depois de terem sido enriquecidas pelo talento de Platão e Aristóteles. Todavia, com exceção de Aristóteles - por sinal, uma grande exceção -, essa escola de pensamento não atingiu a completa mentalidade cientifica. De certo modo, isso foi melhor. O gênio grego era filosófico, claro e lógico. Os homens desse grupo estavam primordialmente respondendo
a questões filosóficas. Qual é o substrato da natureza? O fogo, a terra, a água ou a combinação de dois deles, ou dos três? Ou é
um mero fluxo, irredutivel a qualquer material estável? A matemática despertou grande interesse entre eles. Inventaram sua
regra geral, analisaram suas premissas e fiz.eram notáveis desco
~ dL~or~as lll_e_c!!ªI).t~ _1JII).ª-Ligj4ª.fl_deli4,,-d.e.a.oJaciodnio dedutivo. A mente deles estava contamjnada de uma ávida
generalidade. Exigiam idéias claras, evidentes, e raciocínio exato com base nelas. Tudo isso foi muito bom, foi genial, foi um trabalho preparatório ideal. Não foi, porém, ciência conforme a entendemos. A paciência da observação minuciosa não teve
nem de longe destaque. O gênio deles !1~ estava suficientemen-
I 20 I ~ I ~,~/j ':~J- /' ,~L~ / - /) "..-'
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO 1
te apto para o estado de desordenada incerteza imaginativa que
.Jl:recede, com sucesso, generalizações indutivas. Eram pensado
res lúcidos e raciocinadores claros. Naturalmente, havia exceções, e de primeira ordem: por
exemplo, Aristóteles e Arquimedes. Como modelo de obser
vação paciente, também temos os astrônomos. Houve uma lucidez matemática sobre as estrelas e uma fascinação COIl}' o
pequeno grupo de planetas com órbita irregular. •
Toda filosofia está pintada com as cores de algum fundo secreto de imaginação, que nunca emerge explicitamente em sua seqüência de raciocínio. A visão grega da natureza, pelo
menos a cosmologia passada por eles às demais gerações, foi essencialmente dramática. Nem por isso está necessariamente errada, mas é predominantemente dramática. Sendo assim, a visão grega concebeu a natureza articulada à maneira de um trabalho de arte dramática, no intuito de que a exemplificação de idéias gerais convergisse para um fim. A natureza foi diferenciada de modo a proporcionar seus próprios fins para cada coisa. Havia o centro do universo como o fim do movimento das coisas pesadas, e a esfera celeste como o fim do movimento das coisas cuja natureza levava-as para cima. A esfera celeste era para coisas impassíveis e ingeráveis, as regiões abaixo para
coisas passíveis e geráveis. A natureza era um drama em que
cada coisa representava seu papel. Não afirmo que essa é uma visão com a qual Aristóteles
poderia ter concordado sem severas reservas, de fato sem o tipo de reservas que nós próprios poderíamos fazer. Mas foi a visão
que o pensamento grego subseqüente extraiu de Aristóteles e
transmitiu para a Idade Média. O efeito desse cenário imaginativo para a natureza foi impedir o espírito histórico. Uma v~z que é o fim quem parece iluminar, então por que preocupar-se com o começo? A Reforma e o movimento científico foram dois aspectos da reviravolta histórica que constituiu O movimento intelectual dominante da Renascença tardia. O apelo às origens do cristianismo e o apelo de Francis Bacon à causa
I 21 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
eficiente, em detrimento da causa final, foram dois lados de um mesmo movimento de pensamento. Também por essa razão Galileu e seus adversários foram incapazes de se entender, conforme se pode perceber em sua obra Diálogos sobre os dois maiores sistemas do mundo.'
Galileu continuou insistindo em "como" as coisas acontecem, enquanto seus adversários tinham uma teoria completa
sobre upor que" as coisas acontecem. Infelizmente, as duas teorias não apresentavam os mesmos resultados. Galileu insistia em "fatos irredutíveis e inflexíveis", e Simplício, seu oponente, apresentava razões completamente satisfatórias, pelo menos para si mesmo. É um grande erro conceber essa reviravolta histórica como um apelo à razão. Ao contrário, foi um movimento completamente antiintelectualista. Foi um retomo à contemplação do fato bruto; e foi baseado em um recuo à racionalidade inflexível do pensamento medieval. Ao afirmar isso, estou simplesmente resumindo o que os próprios partidários do regime antigo afirmavam. Por exemplo, no quarto livro do padre Paul Sarpi, História do Concílio de Trento, pode-se ler que em 1551 os legados do papa que presidiam o concilio ordenaram:
que os teólogos deveriam confirmar suas opiniões com a Sa
grada Escritura, a Tradição dos Apóstolos, os Concílios sa
grados e aprovados, e pelas Constituições e Autoridades dos
Santos Padres; que eles deveriam ser breves, e evitar questões
supérfluas e inúteis, e disputas perversas [ ... ]. Essa ordem não
agradou os teólogos italianos, os quais disseram que era uma
novidade e uma condenação da teologia escolástica, que,
com todas as dificuldades, "usava da razão", e porque não
seria lícito [isto é, por esse decreto] proceder como santo To
más [de Aquino], são Boaventura e outros homens famosos.
* A obra, cujo título original em italiano é Dialogo sopra i dl/e massimi sistemi deI mondo, consiste numa conversa entre três indivíduos: Salviati (defensor das idéias heliocêntricas de Copérnico), Simplício (defensor do sistema geocêntrico de Ptolomeu) e Sagredo (homem de bom senso que procura tudo compreender). (N. T.)
I 22 I
I A CII~NClA E O MUNDO MODERNO I
É impossível não simpatizar com esses teólogos italianos, que sustentavam a causa perdida do racionalismo desenfreado. Tinham sido abandonados por todos. Os protestantes estavam completamente revoltados contra eles; o papado não os apoiava; e os bispos do concílio não eram capazes de compreendêlos. Nesse sentido, algumas poucas linhas depois da citação an-
terior, lemos: '0
Embora muitos se queixaram [do Decreto], ele ainda prevale
ce, mas pouco, pois os Padres [os bispos] geralmente deseja
vam ouvir os homens expressarem-se com termos inteligíveis,
não confusos, como na matéria da justificação e de outras
já tratadas.
Pobres medievalistas retardatários' Quando usaram a razão, também não foram compreendidos pelos poderes dominantes da época. Passaram-se séculos até que os fatos irredutíveis se tomassem redutíveis pela razão, e entrementes o pêndulo oscilou vagarosa e pesadamente para o extremo do
método histórico. Quarenta e três anos depois que os teólogos italianos ha
viam escrito o seu memorial, Richard Hooker, em seu famoso Leis do governo eclesiástico, fez exatamente a mesma queixa com relação a seus adversários puritanos.' O ponderado pensamento de Hooker - que deu origem à designação "o judicioso
Hooker" - e seu estilo difuso, que é o veículo desse pensamen
to, tomaram seus escritos inadequados para serem resumidos por uma citação curta e pontual. Todavia, na referida seção,
Hooker reprova seus oponentes pelo "menosprezo da razão" que eles cultivam; e a favor de sua postura cita, por fim, "o maior dentre os teólogos escolásticos", designando, presumo,
santo Tomás de Aquino.
1 Cf. livro 111, seção viii.
I 23 I
1
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
A obra Leis do governo eclesiástico, de Hooker, foi publicada pouco antes de História do Concílio de Trento, de Sarpi. Portanto, há completa independência entre as duas obras. Todavia, tanto os teólogos italianos de 1551 quanto Hooker no final do século XVI testemunham a tendência anti-racionalista do pensamento da época, e a esse respeito diferenciam seu próprio
periodo do período escolástico.
Essa reação foi indubitavelmente um corretivo muito ne
cessárío para o incauto racionalismo da Idade Média. Contudo, as reações tendem para os extremos. Com isso, embora uma conseqüência dessa reação tenha sido o nascimento da ciência
moderna, devemos lembrar também que a ciência herdou a tendência de pensamento de sua própria origem.
O efeito da literatura dramática grega foi múltiplo, tendo
em vista que concerniu a vários modos nos quais ela indiretamente influenciou o pensamento medieval. Os pioneiros da
imaginação cientifica, conforme ela existe hoje, são os grandes autores trágicos da Grécia antiga, Ésquilo, Sófocles e Euripides. Sua visão do destino - desapiedado e indiferente, incitando um incidente trágico para seu desfecho inevitável - é a visão que a ciência possui. O destino da tragédia grega toma-se a ordem da natureza no pensamento moderno. O interesse cativante pelos incidentes heróicos particulares, como exemplo
e verificação da atuação do destino, reaparece em nossa época como concentração de interesse pelos experimentos cruciais.
Tive a sorte de participar da reunião da Sociedade Real, em Londres, quando o astrônomo real da Inglaterra anunciou que
chapas fotográficas do famoso eclipse, conforme previsão de seus colegas do Observatório de Greenwich, haviam compro
vado o prognóstico de Einstein de que raios de luz tomam-se curvOS quando passam perto do Sol. Todo o ansioso ambiente de interesse era exatamente aquele do drama grego: éramos o coro comentando o decreto do destino conforme descoberto no desenrolar de um acontecimento supremo. Havia qualidade dramática naquela cena: o cerimonial tradicional, e no fundo o
1 24 1
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
retrato de Ne\\lton para lembrar-nos de que a maior das generalizações cientificas estava agora, após mais de dois séculos, prestes a receber sua primeira modificação. Não faltava, tampouco,
o interesse pessoal: uma grande aventura de pensamento havia
chegado sã e salva ao porto seguro. Permitam-me aqui lembrá-los de que a essência da tragé
dia dramática não é a desventura. Ela reside na solenidade do
funcionamento impiedoso das coisas. Essa inevitabilidade do
destino apenas pode ser ilustrada em termos de vida humana por incidentes que de fato envolvam desventura. Pois é apenas por meio deles que a futilidade da libertação pode ser eviden
ciada no drama. Essa impiedosa inevitabilidade é que penetra o pensamento cientifico. As leis da física são os decretos do
destino. A concepção de uma ordem moral na tragédia grega não
foi certamente uma descoberta dos dramaturgos. Teve de passar do importante pensamento geral da época para a tradição literária. Ao alcançar, porém, sua expressão máxima, intensificou a corrente de pensamento da qual surgiu. O espetáculo de uma ordem moral foi gravado na imaginação da civilização clássica.
Essa grande sociedade acabou ruindo e a Europa entrou na Idade Média. A influência direta da literatura grega deixou de
existir. Mas o conceito de ordem moral e de ordem da natureza já se havia inscrito na filosofia estóica. Por exemplo, Lecky, em sua História das morais européias, relata-nos que "Sêneca afirma
que Deus determinou todas as coisas por meio de uma inexorávellei de destino, lei esta que Ele decretou e a que Ele próprio
obedece". Mas o modo mais efetivo como os estóicos influen
ciaram a mentalidade da Idade Média foi por intermédio do sensO difuso de ordem, nascido do direito romano. Novamente uma citação de Lecky: "O direito romano foi duplamente filho da filosofia. Em primeiro lugar, ele formou-se com base no modelo filosófico, pois, em vez de ser um sistema meramente ajustado às necessidades existenciais da sociedade, estabeleceu princípios abstratos de direito, aos quais se esforçou em con-
1 2S 1
1
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
formar-se; e, em segundo lugar, esses princípios foram tomados diretamente do estoicismo". Não obstante a verdadeira anarquia em todas as partes da Europa após o colapso do Império, o senso de ordem legal sempre esteve presente na memória racial das populações imperiais. Também a Igreja Ocidental sempre
esteve presente como personificação viva das tradições legislativas imperiais.
É importante notar que essa marca moral sobre a civilização medieval não ocorreu sob a forma de alguns poucos preceitos sapienciais que permeariam a conduta. Tratava-se da concepção
de um sistema articulado definitivo que estabelece a legalidade da minuciosa estrutura do organismo social e do modo detalhado em que ela funcionaria. Não havia nada de vago. Tratava-se não de máximas admiráveis, mas sim de procedimento definitivo para estabelecer coisas certas e para mantê-las no lugar. A Idade Média converteu-se em um longo treinamento do intelecto da Europa Ocidental no que diz respeito ao senso de ordem. Pode ter havido alguma deficiência quanto à prática. Mas por um momento sequer a idéia deixou de ter poder. Foi sobretudo um período de pensamento ordenado, inteiramente racionalista. A própria anarquia acelerou a apreensão de um sistema coerente; exatamente como a anarquia moderna da Europa estimulou a visão intelectual de uma Liga das Nações.
Mas com relação à ciência esperava-se algo mais do que um senso geral de ordem das coisas. É necessária tão-somente
uma frase para mostrar COmo o costume do pensamento exato
e definitivo foi implantado na mente européia pelo longo domínio da lógica e da teologia escolásticas. O costume persistiu
após a filosofia ter sido repudiada, o inestimável costume de procurar um ponto exato e de agarrar-se a ele quando encontrado. Galileu deve mais a Aristóteles do que à primeira vista aparece em seu Diálogo: o primeiro deve ao segundo sua inteligência clara e sua mente analítica.
Não penso, entretanto, que eu já tenha trazido à tona a maior contribuição do medievalismo para a formação do movi-
I 26 I
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
mento cientifico. Proponho a crença inexpugnável de que todo evento circunstanciado pode ser relacionado com seus antecedentes de um modo perfeitamente preciso, demonstrando princípios gerais. Sem essa crença, o incrível trabalho dos cientistas seria sem esperança. É essa convicção instintiva, nitidamente suspensa diante da imaginação, que é a força motivadora da pesquisa: há um segredo, um segredo que pode ser revelado.
Como essa convicção foi tão vividamente implantada no espí:
rito europeu? Quando comparamos esse tipo europeu de pensamento
com a atitude de outras civilizações sem influência européia, parece haver apenas uma fonte para sua origem. Esta última provém necessariamente da insistência medieval na racionalidade de Deus, concebida tanto com a energia pessoal de lahweh como com a racionalidade de uma filosofia grega. Cada detalhe foi supervisionado e ordenado: a pesquisa a respeito da natureza poderia resultar somente na justificativa da fé na racionalidade. Lembrem-se de que não estou falando das cren
ças explicitas de alguns poucos indivíduos. O que proponho é a marca no espírito europeu resultante da fé inquestionável ao
longo de séculos. Por isso, sugiro o tipo instintivo de pensamen-to e não um mero_ credo 4.~ palavras. ,1- ('~ /3' -: 'P S j) ':~ /c j/'''-
Na Asia, as concepções de Deus eram de um ser ou muito arbitrário ou muito impessoal para que tais idéias tivessem
grande efeito sobre os hábitos instintivos da mente. Todo evento circunstanciado poderia ser devido à sanção de um déspo
ta irracional ou poderia emanar de alguma origem das coisas
impessoal e inescrutável. Não havia a mesma confiança como na racionalidade inteligível de um ser pessoal. Não estou de
fendendo que a confiança européia na investigação da natureza fosse logicamente justificada até mesmo pela nossa teologia. Meu único objetivo é entender como isso começou. Minha explicação é que a fé na possibilidade da ciência, produzida anteriormente para o desenvolvimento da teoria científica moderna, é um derivado inconsciente da teologia medieval.
1271
~ )~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Mas a ciência não é meramente o desfecho da fé instintiva. Ela também requer um interesse ativo pelos fenômenos cotidianos por eles mesmos.
A expressão "por eles mesmos" é importante. A primeira fase da Idade Média foi um período de simbolismo. Foi um período de idéias amplas e de técnicas primitivas. Havia pouco para ser feito com a natureza, exceto desenvolver um modo de
vida COm base nela. Mas havia áreas do conhecimento a serem
exploradas, áreas da filosofia e áreas da teologia. A arte primitiva poderia simbolizar essas idéias que preenchiam todas as mentes meditativas. A primeira fase da arte medieval teve um
fascínio inesquecível e incomparável: sua própria qualidade intrínseca é acentuada pelo fato de que sua mensagem, que foi além da própria autojustificação da arte da realização estética, era o simbolismo de coisas que estão por trás da natureza em si. Nessa fase simbólica, a arte medieval abasteceu-se da natureza como seu ambiente, mas apontou para outro mundo.
Para entender o contraste entre essa antiga Idade Média e a atmosfera requerida pela mentalidade cientifica, compararemos o século VI com o século XVI na Itália. Em ambos os séculos o gênio italiano estava estabelecendo os fundamentos de uma nova época. A história dos três séculos anteriores ao período mais antigo, a despeito da promessa futura apresenta
da pela ascensão do cristianismo, está completamente tomada pelo senso de declínio da civilização. Em cada geração algo ha
via sido perdido. Conforme lemos os testemunhos, somos tomados pela sombra da chegada do barbarismo. Há grandes ho
mens, com excelentes realizações no campo prático e teórico.
Mas seu efeito total dura apenas um curto período de tempo no impedimento do declínio geral. No século VI, estamos, com relação à Itália, no ponto mais baixo da curva. Mas nesse século cada ação está colocando os alicerces para a tremenda ascensão da nova civilização européia. Na obscuridade, o Império Bizantino, sob Justiniano, determinou de três modos o. caráter da antiga Idade Média na Europa Ocidental. Em primeiro lugar, seus
I 28 I
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
exércitos, sob Belisário e Narses, livraram a Itália da dominação gótica. Desse modo, o palco ficou livre para o exercício do antigo gênio italiano para criar organizações que protegeriam ideais de atividade cultural. É impossível não simpatizar com os godos: mesmo nesse ponto não resta dúvida, entretanto, de que um milênio de papado foi infinitamente mais precioso para a Europa do que alguns efeitos derivados de um bem estabele-.·
cido reinado gótico da Itália. Em segundo lugar, a codificação do direito romano es
tabeleceu o ideal de legalidade que dominaria o pensamento
sociológico da Europa ao longo dos séculos posteriores. O direito é para o governo tanto um instrumento como uma condição restritiva. O direíto canônico da Igreja e o direito civil do Estado devem aos juristas justinianos sua influência sobre o desenvolvimento da Europa. Eles estabeleceram no espíríto ocidental o ideal de que uma autoridade seria ao mesmo tempo legítima e obrigatória, e apresentaria em si mesma um sistema racional de organização. O século VI na Itália apresentou a prova inicial do modo como a marca dessas idéias foi impulsionada pelo contato com o Império Bizantino.
Em terceiro lugar, nas esferas apolíticas da arte e do ensino, Constantinopla exibiu um padrão de realizações que) em parte pelo impulso da imitação direta, em parte pela inspira
ção indireta nascida do mero conhecimento de que tais coisas existiam, atuou como um estimulo constante para a cultura
ocidental. A sabedoria dos bizantinos, visto que permaneceu na imaginação da primeira fase da mentalidade medieval, e a sa
bedoria dos egipcios, visto que permaneceu na imaginação dos gregos antigos, desempenharam um papel análogo. Provavel
mente, o conhecimento real dessas respectivas sabedorias era, em todo caso, quase tão bom quanto O era para seus recebedores. Sabiam suficientemente para conhecer o tipo de padrão atingível e não o suficiente para ser presos por modos estáticos e tradicionais de pensamento. Conformemente, em ambos os casos os homens estavam à frente dos seus contemporâneos
I 29 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
e faziam melhor. Nenhum relato da ascensão da mentalidade cientifica européia pode deixar de citar alguma informação dessa influência da civilização bizantina na base do acontecimento. No século VI há uma crise na história das relações entre os bizantinos e o Ocidente; e essa crise precisa ser comparada com a influência da literatura grega sobre o pensamento europeu nos séculos XV e XVI. Os dois homens de destaque que na Itália
do século VI colocaram os alicerces do futuro foram são Bento
e Gregório Magno. Por referência a eles, podemos desde já ver como estava absolutamente em ruínas o caminho para a men
talidade científica que havia sido trilhado pelos gregos. Estamos no ponto zero da temperatura científica. Mas a vida e a obra de Gregório e de Bento forneceram elementos para a reconsbução da Europa e asseguraram que essa reconsbução, quando ocorresse, incluiria uma mentalidade científica mais efetiva do que aquela do mundo antigo. Os gregos foram hiperteóricos. Para eles, a ciência era um ramo da filosofia. Gregório e Bento foram homens práticos, com um olhar para a importância das coisas comuns; e eles combinavam esse temperamento prático com suas atividades religiosas e culturais. Em particular, devemos a
são Bento o fato de os mosteiros terem sido casas de agrônomos práticos, bem como de santos, de artistas e de sábios. A aliança da ciência com a tecnologia, por meio da qual o saber entrou em contato COm os fatos irredutíveis e inflexíveis, deve muito à
inclinação prática dos primeiros beneditinos. A ciência moderna deriva de Roma, bem como da Grécia, e esse estilo romano
explica seu ganho em uma atividade de pensamento mantida em estreito contato com o mundo dos fatos.
Mas a influência desse contato entre os mosteiros e os fatos da natureza apareceu primeiro na arte. A ascensão do na
turalismo na Idade Média tardia marcou a entrada no espírito europeu do ingrediente final necessário para a ascensão da ciência. Foi o surgimento do interesse tanto por objetos naturais como por acontecimentos naturais, por eles mesmos. A folhagem natural de uma região era modelada em um lugar
I 30 I
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO \
afastado das construções posteriores, meramente como deleite expositivo daqueles objetos familiares. Toda a atmosfera de cada arte exibia uma alegria direta na apreensão das coisas que se encontravam ao redor. Os artesãos que executavam a escultura decorativa da Idade Média tardia, Giotto, Chaucer, Wordsworth, Walt Whitman, e! atualmente, o poeta americano
(Nova Inglaterra) Robert Frost, são a esse respeito todos pa"
recidos entre si. Os fatos imediatos simples são os tópicos de • interesse, e eles reaparecem no pensamento da ciência como os "fatos irredutíveis e inflexíveis".
O espírito europeu estava agora preparado para sua nova aventura de pensamento. É desnecessário narrar em detalhes os diversos incidentes que marcaram a ascensão da ciência: o crescimento da riqueza e do tempo livre; a expansão das universidades; a invenção da imprensa; a tomada de Constantinopla; Copérnico; Vasco da Gama; Colombo; o telescópio. O solo, o clima e as sementes estavam lá! e as plantas cresceram. A ciência nunca se livrou da marca de sua origem na reviravolta histórica da Renascença tardia. Continuou predominantemente um movimento anti-racionalista, baseado sobre uma fé ingênua. O tipo de raciocínio que faltava foi tomado de empréstimo da
matemática, que é uma relíquia remanescente do raciOnaliSm] grego, o qual segue o método dedutivo. A ciência repudia a filo I
sofia. Em outras palavras, nunca se preocupou em justificar su -fé ou em explicar seu sentido; e permaneceu tranqüilamente indiferente às refutações que Hume lhe fizera.
Naturalmente, a reviravolta histórica foi plenamente justificada. Era desejada. Foi mais do que se queria: foi uma neces
sidade absoluta para o progresso saudável. O mundo precisou de séculos de contemplação dos fatos irredutíveis e inflexíveis. É difícil para os homens fazer mais do que uma coisa a um só tempo, e esse foi o tipo de coisa que eles tinham para fazer após a orgia racionalista da Idade Média. Era uma reação verdadeiramente sensata; mas não era um protesto em nome da razão.
I 31 I .~
li
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Há, no entanto, a Nêmesis que cuida daqueles que deliberadamente evitam as veredas do conhecimento. O brado de Oliver Cromwell ecoa ao longo dos tempos, "Meus irmãos, pelos sentimentos de Cristo imploro a vocês: lembrem que vocês podem estar enganados".
O progresso da ciência havia alcançado, assim, o ponto crítico. Os alicerces estáveis da física haviam sido rompidos:
alem disso, pela primeira vez a fisiologia estava afirmando-se
como um corpo efetivo de conhecimento, como algo distinto de um amontoado de partes. Os antigos alicerces do pensamento científico estavam tornando-se incompreensíveis. Tempo, espaço, substância, matéria, éter, eletricidade, mecanismo, organismo, forma, estrutura, padrão, função, tudo isso exigia interpretação. Qual o sentido de falar sobre uma explicação mecânica quando não se sabe o que significa mecânica?
A verdade é que a ciência começou sua carreira moderna assumindo ideias derivadas do lado vulnerável da filosofia dos sucessores de Aristóteles. Em alguns aspectos foi uma escolha feliz. Capacitou ao conhecimento do século XVII ser formu
lado à medida que a física e a química eram levadas em conta, com a perfeição que dura até os nossos dias. Mas o progresso da biologia e da psicologia tem sido reprimido provavelmente por causa da pretensão acrítica de meias verdades. Se a ciência não deve degenerar em uma confusão de hipóteses ad hoc, precisa
tornar-se filosófica e precisa assumir o criticismo radical com relação a seus próprios alicerces.
Nos capitulos seguintes deste livro, traçarei os êxitos e ma
logros das concepções particulares de cosmologia com as quais a inteligência européia fechou-se em si mesma durante os últimos
três séculos. Climas gerais de opinião persistem por periodos de aproximadamente duas ou três gerações, ou seja, por períodos entre sessenta e cem anos. Há também ondas mais breves de pensamento, as quais roçam a superfície do movimento da maré. Encontraremos, entretanto, transformações no ponto de vista europeu, modificando-se lentamente ao longo dos séculos.
1321
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
Essa posição persiste, no entanto, ao longo de todo o período da cosmologia cientifica estabelecida, a qual pressupõe que a realidade última de uma matéria bruta irredutível, ou material, estende-se por todo o espaço em um fluxo de configurações. Em si, uma tal matéria é absurda, sem valor, sem sentido. Apenas faz o que faz fazer, seguindo uma rotina fixa imposta pelas relações externas que não emergem da natureza de seu ser. É essa ,~ pretensão que chamo de "materialismo científico". Também é uma pretensão que objetarei como sendo inteiramente impró
pria para a situação cientifica a que agora chegamos. Não está errada, se corretamente explicada. Se nos restringimos a certos tipos de fatos, abstraídos totalmente das circunstâncias em que eles ocorrem, a pretensão racionalista expressa esses fatos de modo perfeito. Mas quando vamos além da abstração - seja pelo mais sutil emprego de nOSSOS sentidos, seja pela solicitação de significado e de coerência de pensamento -, o esquema sucumbe imediatamente. A eficiência limitada do esquema foi a verdadeira causa do seu supremo sucesso metodológico. Pois ele dirigia a atenção apenas aos grupos de fatos que, na circunstância do conhecimento então existente, requeriam investigação.
Os sucessos do esquema afetaram desfavoravelmente as
várias correntes do pensamento europeu. A reviravolta histórica foi anti-racionalista, pois o racionalismo dos escolásticos precisava de uma severa correção por meio do contato com
o fato bruto. Mas o renascimento da filosofia sob a liderança de Descartes e de seus sucessores foi por completo marcado
em seu desenvolvimento pela aceitação da cosmologia científica em seu valor aparente. O sucesso das últimas idéias deles
confirmou 0$ cientistas em sua recusa em modificá-las como
o resultado de uma pesquisa a respeito de sua racionalidade. Toda filosofia foi obrigada de um modo ou de outro a absorver a todas elas. O exemplo da ciência influenciou também outros campos do pensamento. A reviravolta histórica havia sido assim ampliada com relação à exclusão da filosofia do seu papel próprio de harmonizar aS várias abstrações do pensamento
1331
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
metodológico. O pensamento é abstrato; e o uso intolerante
?e abstrações é o maior vício do intelecto. Esse vício não pode
ser totalmente corrigido pelo recurso à experiência concreta.
Pois, afinal de contas, basta apenas observar aqueles aspectos
da experiência concreta que se encontram em algum esquema
limitado. Há dois métodos para a purificação das idéias. Um
deles é a observação imparcial por meio dosM'ntidos corpór~~
Mas observação é selecão. Portanto, é difícil transcender um
esquema de abstração cujo sucesso é suficientemente vasto . ...Q.. outro método dá-se mediante a comparação dos vários esqu.l'.~as-de ~b~traÇão'gue estão bem nllldados em nossos vários
__ !~de experiência Es~a ~o~~aração t~;~ ;-f~~a de s-;ti;fu~-ção das demandas dos teólogos escolásticos italianos que Paul Sarpi mencionou. Eles perguntam que razão poderia ser usada.
Fé na razão é a confiança de que as naturezas últimas das coisas encontram-se juntas em uma harmonia que exclui a mera arbi
trariedade. É a fé de que na base das coisas não encontraremos um mero mistério arbitrário. A fé na ordem da natureza que
tornou possível o crescimento da ciência é um exemplo parti
cular de uma fé mais profunda. Essa fé não pode ser justificada por nenhuma generalização indutiva. Nasce da inspeção direta da natureza das coisas como descobertas em sua própria expe
riência presente e imediata. Não há como separar-se da própria
sombra. Experimentar essa fé é reconhecer que, ao sermos nós
mesmos, somos mais do que nós mesmos; reconhecer que nossa
experiência, mesmo opaca e incompleta COmo é, ainda ecoa
o mais profundo da realidade; reconhecer que detalhes sepa
rados meramente a fim de serem eles próprios deveriam ser decifrados dentro de um sistema de coisas; reconhecer que esse
sistema inclui a harmonia da racionalidade lógica e a harmonia da realização estética; reconhecer que, enquanto a harmonia da
lógica baseia-se no universo como uma necessidade irredutívet
a harmonia estética está diante dele como um ideal de vida que forma o fluxo geral em seu progresso interrompido rumo às questões mais delicadas e eminentes.
1 34 1
I CAPrTULO II I
A MATEMÁTICA COMO UM ELEMENTO NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO
A ciência da matemática pura, em seus desenvolvimentos
modernos, pode reivindicar ser a criação mais original do espí
rito humano. Outro reivindicante para essa posição é a música.
Mas colocaremos de lado todos os rivais e consideraremos a base sobre a qual tal reivindicação pode ser feita para a matemática. A originalidade da matemática consiste no fato de que na ciência matemática são apresentadas conexões entre as
coisas que, separadas da intervenção da razão humana, são ex
tremamente sem evidência. Assim, as idéias, agora na mente
dos matemáticos contemporâneos, encontram-se muito distan
tes de qualquer noção que possa derivar imediatamente pela percepção mediante os sentidos; a menos, de fato, que seja uma
percepção estimulada e guiada por conhecimento matemático antecedente. Essa é a tese que continuarei a exemplificar.
Suponhamos uma projeção de nossa imaginação em direção ao passado de muitos milhares de anos e empenhemo
nos em perceber a simplicidade até mesmo dos maiores inte
lectos em meio àquelas antigas sociedades. As idéias abstratas que para nós são imediatamente evidentes devem ter sido, para
eles, tema somente da mais obscura apreensão. Por exemplo,
tomemos a questão do número. Pensamos no número "cinco"
como ligado a determinados grupos de qualquer entidade - a cinco peixes, cinco crianças, cinco maçãs, cinco dias. Sendo as
sim, ao considerar as relações do número "cinco" com o nú
mero "três", estamos pensando em dois grupos de coisas, um
135 1
I ALFRED NORTH WHITEHEAD 1
com cinco membros e o outro com três membros. Mas estamos
unicamente abstraindo com base em cada ponderação de cada
entidade particul~r ou ainda de cada tipo particular de entidade, que determinará a pertença a esse ou àquele grupo. Estamos
pensando meramente nas relações entre os dois grupos que são
inteiramente independentes das essências individuais de qual
quer um dos membros de cada grupo. Isso é uma capacidade
de abstração muito notável; e deve ter levado gerações para que
a raça humana promovesse isso. Durante um longo período,
grupos de peixes seriam comparados a todos os demais quanto
à sua multipliCidade, e grupos de dias a todos os demais. Mas o primeiro homem que percebeu a analogia entre um grupo de sete peixes e um grupo de sete dias realizou um avanço notável na história do pensamento. Foi o primeiro homem que cogitou um conceito pertencente à ciência da matemática pura. Nesse
momento deve ter sido impossível para ele adivinhar a complexidade e a sutileza dessas idéias matemáticas abstratas que esta
vam esperando para ser descobertas. Tampouco poderia ele ter
adivinhado que essas noções poderiam exercer uma fascinação difusa em cada uma das gerações futuras. Há uma tradição lite
rária errada que representa o amor pela matemática como uma
monomania restrita a uns poucos excêntricos em toda geração.
Mas seja como for, poderia ter sido impossível antecipar a Sa
tisfação proveniente de um tipo de abstração de pensamento que não teve comparação na sociedade de então. Em terceiro
lugar, o enorme efeito futuro do conhecimento matemático so
bre a vida dos homens, sobre suas ocupações diárias, sobre seus
pensamentos habituais, sobre a organização da sociedade, deve
ter ficado ainda mais completamente encoberto pela previsão daqueles antigos pensadores. Ainda hoje há uma compreensão incerta sobre a verdadeira posição da matemática como um
elemento na história do pensamento. Não irei tão longe para
dizer que construir a história do pensamento sem um profundo
estudo das idéias matemáticas das sucessivas épocas é como
omitir Hamlet da peça teatral que leva seu nome. Isso poderia
1361
1 A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
ser pretensioso demais. Mas é certamente análogo a cortar o pa
pel de Ofélia. Essa comparação está profundamente certa, pois Ofélia é de todo essencial para a peça, ela é muito encantadora - e um tanto louca. Permitam-nos admitir que a atividade da matemática é uma divina loucura do espírito humano, um re
fúgio da urgência pungente dos acontecimentos contingentes. Quando pensamos em matemática, temos em mente uma
ciência dedicada à exploração do número, da quantidade, da
geometria, e nos tempos modernos também incluímos a in
vestigação sobre os conceitos ainda mais abstratos de ordem e sobre tipos análogos de relações puramente lógicas. O essen
cial da matemática e que nela temos sempre de nos desfazer do caso particular e igualmente de todos os tipos específicos de identidade. Sendo assim, por exemplo, nenhuma verdade matemática aplica-se meramente a peixes, a pedras ou a cores.
Quando se lida com matemática pura, está-se no domínio da completa e absoluta abstração. Tudo o que se afirma é que a razão insiste na aceitação de que, se uma entidade qualquer tiver
alguma relação que satisfaça quaisquer condições puramente abstratas, então elas devem ter outras relações que satisfaçam
outras condições puramente abstratas.
Matemática é pensamento movendo-se no âmbito da completa abstração a partir de qualquer caso particular de que se está falando. Por enquanto é porque essa visão de matemáti
ca é lógica que nós podemos facilmente afirmar a nós mesmos que ela não é, até agora, amplamente entendida. Por exemplo,
é comum pensar que a certeza matemática é a razão para a cer
teza de nosso conhecimento geométrico do espaço do universo físico. Eis uma ilusão que freqüentou muitas filosofias no passa
do e encontra-se em algumas no presente. Essa questão de geometria é um caso-teste de relativa urgência. Há certos grupos
alternativos de condições puramente abstratas possíveis para
a relação de grupos de entidades inespecíficas, que chamarei de condições geométricas. Dei-lhes esse nome por causa de suas analogias gerais com aquelas condições que acreditamos mante-
1371
1 ALFRED NORTH WHITEHEAD 1
rem no que diz respeito às relações geométricas particulares de coisas observadas por nós em nossa percepção direta da natureza. Conforme nossas observações são concernidas, não somos
corretos o suficiente para estarmos certos da exata condição que regula as coisas com as quais deparamos na natureza. Mas podemos, por uma sutil distensão da hipótese, identificar essas condições observadas com mais algum conjunto de condições
geométricas puramente abstratas. Ao fazer isso, estabelecemos
uma determinação particular do grupo de entidades inespeci
ficas, as quais são os relata na ciência abstrata. Na matemática pura das relações geométricas, dizemos que, se algum grupo de entidades possui alguma relação entre seus membros satisfazendo esse grupo de condições geométricas abstratas, então quaisquer condições abstratas adicionais devem também ser tomadas para tais relações. Mas quando vamos para o espaço físico, dizemos que algum grupo de entidades fisicas observado de modo exato possui algumas relações observadas de modo exato entre seus membros que satisfazem o já mencionado
conjunto de condições geométricas abstratas. Por isso, concluimos que as relações adicionais que julgamos tomar em algum caso devem, no entanto, ser tomadas nesse caso particular.
A certeza matemática repousa sobre sua completa generalidade abstrata. Mas não podemos ter certeza a priori de que
estamos certos em acreditar que as entidades observadas no universo concreto formam um caso particular do que está in
cluido em nosso raciocinio geral. Tomemos outro exemplo da aritmética. Constitui uma verdade abstrata geral da matemáti
ca pura que qualquer conjunto de quarenta elementos pode ser
subdividido em dois grupos de vinte elementos. Temos, portanto, razões suficientes para concluir que um conjunto particular de maçãs que acreditamos conter quarenta elementos possa ser subdividido em dois conjuntos de maçãs dos quais cada um contenha vinte elementos. Mas a esse respeito sempre permanece a possibilidade de que tenhamos contado maio conjunto grande; de modo que, quando na prática o subdividirmos, des-
[38 [
I A C!~NClA E O MUNDO MODERNO 1
cobriremos que um dos dois montantes tem algumas maçãs a
menos ou algumas maçãs a mais. De acordo com isso, para julgar um argumento baseado
sobre a aplicação da matemática a fatos concretos particulares, há sempre três processos que devem ser perfeitamente separados em nossa mente. Devemos em primeiro lugar examinar o raciocínio puramente matemático para certificar-se de que não;~
haja erros simples nele - nenhuma ilogicidade casual em razão
de falhas mentais. Todo matemático sabe, de amarga experiência, que, no início da elaboração de uma série de raciocínios, é muito fácil cometer um pequeno erro, que, contudo, faz toda a
diferença. Mas quando uma parte da matemática foi revisada e exposta, durante algum tempo, aos especialistas, a probabilidade de um erro casual é quase desprezível. O próximo processo é tornar-se completamente seguro de todas as condições abstratas que se pressupôs considerar. Isso é a determinação das premissas abstratas das quais o raciocínio matemático procede. Trata-se de um assunto de considerável dificuldade. No passado, descuidos deveras extraordinários foram feitos e aceitos por gerações dos maiores matemáticos. O perigo principal é o do descuido, a saber, introduzir tacitamente algumas condições que é natural pressupormos, mas que de fato não precisamos considerar. Há outro descuido oposto nessas conexões que não
leva ao erro, mas somente necessita de simplificação. É muito fácil pensar que são necessárias mais condições postuladas do
que de fato ocorre. Em outras palavras, podemos pensar que é necessário algum postulado abstrato que seja de fato capaz
de ser provado com base em outros postulados que já temos
em mãos. O único efeito desse excesso de postulados abstratos é diminuir nosso prazer estético no raciocínio matemático e dar-nos mais trabalho quando chegarmos ao terceiro processo de crítica.
Esse terceiro processo de crítica é o da verificação de que nossos postulados abstratos cabem no caso particular em questão. É com respeito a esse processo de verificação para o
[39 [
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
caso particular que toda a dificuldade aparece. Em exemplos simples, como na contagem das quarenta maçãs, podemos COm algum cuidado chegar à certeza prática. Mas em geral, com exemplos mais complexos, a certeza completa é inatingivel. Livros e livros foram escritos sobre esse assunto. É o campo de batalha de filósofos rivais. Há duas diferentes questões envolvidas. Há determinadas coisas definidas que observamos e temos
de estar certos de que as relações entre essas coisas obedecem realmente a certas condições abstratas definidas e exatas. Há
aqui grande oportunidade para erro. Os métodos exatos de observação da ciência são todos artifícios para limitar essas conclusões erradas quanto à matéria de fato. Surge, porém, outra questão. As coisas diretamente observadas são, quase sempre, simples exemplos. Precisamos concluir que as condições abs
tratas, cabíveis nos exemplos, também cabem em outras entidades que, por alguma razão, parecem para nós ser do mesmo
tipo. Esse processo de raciocinar partindo do exemplo e indo para -; totalidade das espécies é a indução. A t"oria da indução é o _de~spero da filosofia; no entanto, todas as nossas atividades estão nela baseadas. De qualquer forma, ao julgar uma conclusão matemática como um assunto particular de fato, as dificuldades reais consistem em descobrir as afirmações abstratas ocorrentes e em estimar a evidência de sua aplicabilidade para
o caso particular em questão. Acontece com freqüência que, ao criticarmos uma obra
erudita de matemática aplicada, ou alguma autobiografia, todo o embaraço está no primeiro capítulo, ou mesmo na primeira
página. Porque é lá, bem no começo, onde o autor provavelmente será apanhado em deslize. Ademais, o embaraço está não
naquilo que o autor diz, mas naquilo que ele não diz. Também está não no que sabe que afirma, mas naquilo que afirmou inconscientemente. Não duvidamos da honestidade do autor. É a sua perspicácia que criticamos. Toda geração critica as afirmações inconscientes feitas pelos seus antecessores. Pode concordar com elas, mas apresenta-as como claras e manifestas.
1 40 I
I A Cl~NCIA E O MUNDO MODERNO I
A história do desenvolvimento da linguagem ilustra esse ponto. É uma história da progressiva análise das idéias. O latim e o grego eram línguas flexionais. Isso significa que expressam um conjunto de idéias não analisado pela mera modificação de uma palavra; ao passo que em inglês, por exemplo, USamos preposições e verbos auxiliares para envolver a obviedade de todo um conjunto de idéias envolvidas. Para algumas formas da "
arte literària - embora nem sempre -, a absorção resumida
das idéias auxiliares na palavra principal pode ser uma vantagem. Mas em uma língua COmo o inglês há enorme vantagem no detalhamento. Esse aumento do detalhamento é uma apre
sentação mais completa das várias abstrações incluídas na idéia complexa que é o significado da frase.
Por comparação com a linguagem, podemos agora ver qual é a função desempenhada pela matemática pura no pensamento. É uma tentativa resoluta para empreender o caminho todo rumo à análise completa, de modo que os elementos do fato puro e simples sejam separados das condições puramente abstratas que eles exemplificam.
O hábito dessa análise ilumina todos os atos do funcionamento da mente humana. Primeiramente (isolando-os), des
taca a apreciação estética direta do conteúdo da experiência. Essa apreciação direta significa uma apreensão daqUilo que essa experiência é em si mesma na sua própria essência particular, incluindo os seus valores concretos imediatos. É uma questão
de experiência direta, dependente da acuidade sensorial. Há
então a abstração das determinadas entidades em questão vistas em si meSmas e à parte dessa especial ocasião de experi
ência em que as apreendemos. Finalmente há a subseqüente apreensão das condições absolutamente gerais, satisfeita pelas relações determinadas daquelas entidades como nessa experiência. Essas condições adquirem a sua generalidade pelo fato de serem expressáveis sem referência àquelas relações determinadas ou àqueles relatos determinados que ocorrem nessa determinada ocasião da experiência. São condições que podem ser
141 I
.,~
I ALfRED NORTH WHITEHEAD I
tomadas como variedade indefinida de outras ocasiões, envol
vendo outras entidades e outras relações entre elas. Assim essas
condições são perfeitamente gerais porque não se referem 1
nenhuma circunstância determinada, nem a nenhuma entidade
determinada (tais como verdes, azuis ou árvores) que entram
em uma variedade de ocasiões, e não em determinadas relações
entre tais entidades. Há, contudo, uma limitação a ser feita na generalidade
da matemática; é uma qualificação que se aplica igualmente a todas as afirmações. Com uma só exceção, nenhuma afirmação
pode ser feita a respeito de qualquer circunstância remota que não entre em nenhuma relação com a circunstância imediata,
de modo a formar um elemento constitutivo da essência dessa
condição imediata. Por "circunstância imediata" entendo aque
la circunstância que inclui, como ingrediente, o ato individual
do julgamento em questão. A afirmação excetuada é a seguinte: se há alguma coisa fora da relação, existe completa ignorância a seu respeito. Por "ignorância" entendo aqui ignorância. Com
isso, nenhum conselho pode ser dado quanto ao modo de esperar tal coisa ou de tratá-la, na "prática" ou de qualquer outro modo. Ou sabemos algo da circunstância remota pela cognição de que ela mesma é um elemento da circunstância imediata ou não sabemos nada. Assim, todo O universo, aberto a todas
as variedades de experiências, é um universo em que todos os
detalhes entram em suas próprias relações com a circunstância
imediata. A generalidade da matemática é a mais completa ge
neralidade consistente na comunidade de ocasiões a qual cons
titui nossa situação metafísica. Deve-se notar, ademais, que as entidades determinadas
requerem essas condições gerais para ingressarem em qualquer
circunstância, mas as mesmas condições gerais podem ser re
queridas por muitos tipos de entidades determinadas. Esse fato de que as condições gerais transcendem qualquer conjunto de entidades determinadas é o fundamento para a inclusão na matemática e na lógica matemática da noção de "variável". É pelo
1 42 1
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
emprego dessa noção que as condições gerais são investigadas
sem nenhuma especificação de entidades determinadas. Essa irrelevância das entidades determinadas não tem sido ampla
mente compreendida: por exemplo, a propriedade de ter forma das formas, como a circularidade, a esfericidade, a cubicidade,
como na experiência real, não entra no raciocínio geométrico.
O exercício do raciocínio lógico sempre diz respeito a es- ,~
sas condições absolutamente gerais. No mais amplo sentido, ° descobrimento da matemática é o descobrimento de que todas
essas condições abstratas, que são concorrentemente aplicáveis
às relações entre as entidades em qualquer circunstância con
creta, são por seu turno correlacionadas entre si à maneira de
um modelo para o qual há uma chave. Esse modelo de relações entre condições abstratas é igualmente imposto sobre a reali
dade exterior e sobre a representação abstrata que temos dela, pela necessidade geral de que todas as coisas devam ser exata
mente a sua própria individualidade, com a sua própria manei-
ra de diferir de tudo mais. Isso é nada mais que a necessidade da lógica abstrata, que é o pressuposto implícito no próprio fato da existência inter-relacionada, como se desdobra em cada
circunstância imediata de experiência.
A chave para O modelo significa este fato: que de um conjunto seleto daquelas condições gerais, exemplificadas em
qualquer e na mesma circunstância, um modelo compreen
dendo uma variedade infinita de outras condições semelhan
tes, também exemplificadas na mesma circunstância, pode ser
desenvolvido pelo simples exercicio da lógica abstrata. Cada
tal conjunto selecionado chama-se conjunto de postulados, ou
premissas, dos quais o raciocínio procede. O raciocínio não é
nada mais do que a apresentação de todo o modelo de condições gerais implícitas no modelo derivado dos postulados selecionados.
A harmonia do raciocínio lógico, que faz conjecturar o
modelo completo como incluído nos postulados, é a propriedade estética mais geral resultante do simples fato da existência
1 43 1
I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I
concorrente na unidade de uma circunstância. Em qualquer parte em que há unidade de circunstância há, pois, uma relação estética estabelecida entre as condições gerais implícitas nessa circunstância. Essa relação estética é que é conjecturada no exercício da racionalidade. Tudo quanto acontece nessa relação é, portanto, exemplificado nessa circunstância; tudo quanto acontece sem essa relação é, portanto, excluído da exemplifica
ção nessa circunstância. O completo modelo das condições ge
rais, assim exemplificadas, é determinado por qualquer desses muitos conjuntos selecionados dessas condições. Esses conjuntos de caminhos são conjuntos de postulados equivalentes. Essa
harmonia razoável do ser, exigida para a unidade da ci~;" tância completa, juntamente com o acabamento da realização ( nessa circunstância) de tudo quanto está incluído nessa harmonia lógica, é o artigo primeiro da doutrina metafísica. Isso significa que o fato de as coisas estarem juntas implica que elas estão razoavelmente juntas. Isso significa que o pensamento pode penetrar em todas as circunstâncias do fato, de sorte que, pela compreensão das chaves de sua condição, todo o complexo do seu modelo de condições acha-se manifesto perante ele. Daí, dado que conheçamos algo que seja perfeitamente geral
com respeito aos elementos em qualquer circunstância, podemos então conhecer um número infinito de outros idênticos gerais que também devem ser exemplificados nessa mesma cir
cunstância. A harmonia lógica incluída na unidade de cada circunstância é ao mesmo tempo exclusiva e inclusiva. A circuns
tância deve excluir a desarmonia e deve incluir a harmonia. Pitágoras foi o primeiro homem que captou todo o al
cance desse princípio geral. Viveu no século VI a.c. O nosso
conhecimento dele é fragmentário. Mas conhecemos alguns pontos que lhe marcam a grandeza na história do pensamento. Insistia na importância da predominante generalidade no raciocínio e intuiu a importância do número como auxílio na construção de qualquer representaÇão das condições incluídas na ordem da natureza. Também sabemos que estudou geome-
144 1
1 A Cl~NC1A E O MUNDO MODERNO 1
tria e descobriu a prova geral do notável teorema dos triângulos retângulos. A formação da Fraternidade Pitagórica e os misteriosos rumores sobre os seus ritos e influência constituem prova de que Pitágoras entreviu, ainda que obscuramente, a possível importância da matemática na formação da ciência. Quanto à
filosofia, descobriu uma discussão que desde então agitou os pensadores. Questionou: "Qual é o status das entidades mate- "
máticas, COmo o número, por exemplo, no domínio das coísas?".
O número "dois", por exemplo, é, em muitos sentidos, livre do fluxo de tempo e da necessidade de posição no espaço. Mesmo assím, está contido no mundo real. As mesmas consíderações
aplicam-se às noções geométricas, à forma circular, por exemplo. Dízem que Pítágoras ensinou que as entidades matemáticas, como número e volume, eram a matéria última Com que
são construídas as entidades reais da nossa experiência perceptiva. Apresentada assim simploriamente, a idéia parece elementar e verdadeiramente tola. Mas, inegavelmente, Pitágoras encontrou uma noção filosófica de considerável importância; uma noção que tem uma longa história e que moveu o espírito do homem, e ainda entrou na teologia cristã. Cerca de mil anos separam Pitágoras do Credo de Atanásio, e cerca de dois mil e quatrocentos anos separam Pitágoras de Hegel. Mesmo assim, para todas essas distâncias no tempo, a importância do número
na constituição da Natureza Divina e o conceito do mundo real como apresentando a evolução de uma idéia podem ambos ir
buscar a sua origem na marcha de raciocínio estabelecido por Pitágoras.
A importância de um pensador individual deve alguma
coisa ao acaso, pois dele depende o destino das suas idéias no espírito dos sucessores. A esse respeito Pitágoras foi feliz. As suas especulações filosóficas chegaram até nós por meio do espírito de Platão. O mundo das idéias de Platâo é a requintada e revista doutrina pitagórica de que o número está na base do mundo real. Em razão de o sistema grego representar os números por meio de caracteres fixos, as noções de número
1451
. ~''"''''7!'
L~_
I ALFRED NDRTH WH1TEHEAD 1
e de configuração geométrica são menos separadas que entre nós. Também Pitágoras, sem dúvida, incluiu a propriedade de
ter forma da forma, que é uma entidade matemática impura. Assim, hoje, Einstein e seus adeptos, proclamando que fatos físicos, como a gravitação, devem ser construídos como representações de peculiaridades locais de propriedades espaciais e temporais, estão seguindo a tradição pitagórica pura. Em cer
to sentido, Pitágoras e Platão aproximam-se da física moder
na mais do que Aristóteles. Os primeiros são matemáticos, ao
passo que Aristóteles era filho de um médico, sem que por isso fosse um ignorante em matemática. O conselho prático que se deve tirar de Pitágoras é medir e assim expressar qualidades em termos de quantidade numericamente determinada. Mas as ciências, desde então até hoje, têm sido preponderantemente classificadoras. Em vista disso, Aristóteles, com a sua lógica, insistiu na classificação. A popularidade da lógica aristotélica retardou o adiantamento das ciências físicas durante a Idade Média. Se os eruditos apenas tivessem medido, em vez de classificarem, quanto poderiam ter aprendido'
A classificação é um meio caminho entre a concreção imediata da coisa e a completa abstração das noções matemáticas. As espécies levam em conta o caráter específico; enquanto os gêneros, o caráter genérico. Mas no processo de relacionar
noções matemáticas com os fatos da natureza - por contagem, medição, relações geométricas ou tipos de ordem -, a contemplação racíonal eleva-se das abstrações incompletas, íncluídas
em espécies e gêneros definidos, para a completa abstração da
matemática. A classificação é necessária. Mas, a menos que se queira progredir da classificação para a matemática, não se irá muito longe com o raciocinio.
Entre as épocas que se estendem de Pitágoras a Platão e a compreendida no século XVII do mundo moderno, quase dois mil anos se escoam. E nesse longo período a matemática deu largos passos. A geometria alcançou o estudo das seções cônicas e a trigonometria; o método da exaustão, que prova a igualdade
146 1
I A ,CIl~NCIA E O MUNDO MODERNO I
. entre duas grandezas, quase tinha antecipado o cálculo integral; e sobretudo a noção aritmética árabe e a álgebra foram a contribuição do pensamento asiático. Mas o progresso estava no domínio técnico. A matemática, como elemento formativo no desenvolvimento da filosofia, durante esse longo periodo nunca se refez do influxo de Aristóteles. Algumas das antigas idéias derivadas da época pitagórico-platônica permaneceram e podem,"
ser apontadas entre as influências platônicas que formaram O
primeiro período da evolução da teologia cristã. Mas a filosofia
não recebeu nenhuma inspiração nova do seguro adiantamento da ciência matemática. No século XVII a influência de Aristóteles era mínima, e a matemática recuperou a importância do seu período prímitivo. Foi uma época de grandes fisicos e de grandes filósofos; e os físicos e os filósofos eram igualmente matemáticos. Deve-se fazer exceção a John Locke. No entanto ele era muito influenciado pelo grupo newtoniano da Socieda
de Real. No tempo de Galileu, Descartes, Spinoza, Newton e Leibniz, a matemática tinha uma influência da mais alta magnitude na formação das idéias filosóficas. Mas a matemática, que
então atingiu a preeminência, era uma ciência muito diferente da matemática da época primitiva. Ganhara em generalidade e começara a sua quase incrível carreira moderna de amontoar sutilezas sobre sutilezas e de encontrar, com cada aumento
de complexidade, alguma aplicação nova, ora à ciência física, ora ao pensamento filosófico. Os algarismos arábicos muniram
a ciência de uma eficiência técnica quase perfeita no manejo dos números. O alívio da luta com detalhes aritméticos (haja
vista, por exemplo, a aritmética de 1600 a. C) deu lugar a um desenvolvimento que já se antecipava timidamente na primi
tiva matemática dos gregos. A álgebra veio agora para a cena, e ela é uma generalização da aritmética. Do mesmo modo que a noção de número é abstraída da referência a qualquer conjunto de entidades, em álgebra faz-se a abstração da noção de quaisquer números determinados. Exatamente como o número "5" refere-se imparcialmente a qualquer grupo de cinco entidades,
1471
..... ~. ,:~, ~ .. ,-
L~·~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
assim em álgebra as letras são usadas em referência a qualquer número, com a condição de que cada letra refira-se ao mesmo número através do mesmo contexto em que seja empregada.
Esse uso foi primeiro empregado em equações, que são métodos de propor questões aritméticas complicadas. Nessa conexão, as letras que representam números são chamadas "incógnitas". Mas logo as equações sugeriram uma nova idéia,
isto é, a de função de um ou mais símbolos gerais, sendo esses símbolos qualquer letra representando qualquer número. Nes
se emprego as letras algébricas são chamadas "argumentos" da função, ou algumas vezes "variáveis". Assim, se um ângulo é representado por uma letra algébrica como sendo a sua medida numérica, em termos de uma unidade dada, a trigonometria é absorvida nessa nova álgebra. Desse modo, a álgebra desenvolve-se dentro da ciência geral da análise em que consíderamos as propriedades das várias funções de argumentos indeterminados. Finalmente, as funções determinadas - tais como as funções trigonométricas, as funções logarítmicas e as funções algébricas - são generalizadas na idéia de "qualquer função". Generalizações assim tão amplas levam a mera esterilidade. É
a ampla generalização, limitada por uma apropriada particularidade, que constitui a concepção fecunda. Por exemplo, a idéia de qualquer função "contínua", por onde a limitação de continuidade é introduzida, é a idéia fecunda que leva à mais
importante das aplicações. Esse aparecimento da análise algébrica colaborou com o descobrimento da geometria analitica
por Descartes e depois com a invenção do Cálculo infinitesimal
por Newton e Leibniz. Verdadeiramente, Pitágoras, se pudesse prever o resultado da marcha do pensamento que estabeleceu,
se sentiria completamente justificado na sua fraternidade com a exaltação, operada por ela, dos ritos misteriosos.
O ponto que agora pretendo destacar é que esse predomínio da idéia de funcionalidade na esfera abstrata da matemática reflete-se na ordem da natureza à guisa de leis da natureza expressas matematicamente. Sem esse progresso da matemâtica,
14 81
,
I A CII:.NCtA E o MUNDO MODERNO I
o desenvolvimento da ciência no século XVII teria sido impossível. A matemática fornece a base do pensamento criador com o qual os homens da ciência aproximam-se da observação da natureza. Galileu produziu fórmulas; Descartes produziu fórmulas; Huyghens produziu fórmulas; Newton produziu fórmulas.
Como um exemplo especial do efeito do desenvolvimen"
to da matemática na ciência daquele período, consideremos a
noção de periodicidade. As repetições gerais das coisas são óbvias em nossa experiência diâria. Os dias se repetem, as fases lunares se repetem, as ·estações do ano se repetem, os corpos
que giram voltam à sua posição antiga, as pulsações do coração se repetem, a respiração se repete. Em todo lugar encontramos a repetição. Se puséssemos à parte a repetição, o conhecimento
seria impossível; porque nada poderia relacionar-se com a sua experiência passada. Também, pondo à parte certa regularidade
da repetição, a medição seria impossível. Em nossa experiência, quando conquistamos a idéia de exatidão, a repetição toma-se fundamental.
Nos séculos XVI e XVII, a teoria da periodicidade ocupou lugar fundamental na ciência. Kepler descobriu uma lei que estabelece conexão entre os eixos maiores das órbitas planetârias com os períodos em que os respectivos planetas des
crevem a sua órbita; Galüeu observou a vibração periódica do pêndulo; Newton explicou o som como devido à agitação do
ar pela passagem por ele de ondas perdidas de condensação e rarefação; Huyghens explicou a luz como O resultado de ondas
inclinadas de vibração de um éter sutil; Mersenne relacionou o período da vibração da corda do violino com a sua densidade,
tensão e comprimento. O nascimento da física moderna dependeu da aplicação da idéia abstrata de periodicidade a uma variedade de exemplos complexos. Mas isso teria sido impossível, caso os matemáticos não tivessem lidado de modo abstrato com as idéias abstratas que encerram a noção de periodicidade. A ciência da trigonometria partiu da relação dos ângulos de um
1 49 1
··..e .. 'WIi "" '- ". :(
L .. -~~~
I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I
triângulo retângulo e chegou à razão entre os lados do triângulo e a sua hipotenusa. Então, sob a influência da recém-descoberta ciência matemática da análise das funções, estendeu-se ao estudo das simples e abstratas funções periódicas, que essa razão exemplifica. Assim, a trigonometria tomou-se completamente abstrata; e, tomando-se abstrata, tornou-se útil. Iluminou a analogia estabelecida entre conjuntos de fenômenos fisicos total
mente diferentes; e ao mesmo tempo forneceu os meios pelos quais qualquer um de tais conjuntos pudesse ter as suas várias partes analisadas e relacionadas entre si.'
Nada é mais impressionante do que o fato de que, à medida que a matemática se retirou para as mais altas regiões do pensamento abstrato, voltou à terra com um correspondente aumento de importância para a análise dos fatos concretos. A história da ciência do século XVII ensina como, entretanto, ela foi um certo sonho brilhante de Platão ou de Pitágoras. Quanto a essa característica, o século XVII foí apenas o precursor de seus sucessores.
Está agora inteiramente estabelecido o paradoxo de que as maiores abstrações são os verdadeiros elementos com os quais controlamos o pensamento dos fatos concretos. Como resultado da preeminência dos matemáticos no século XVII, o século XVIII teve a mentalidade matemática, mais especialmente onde predominou a influência francesa. Constitui exceção o empirismo inglês derivado de Locke. Fora da França, a influência direta de Newton sobre a filosofia é mais bem percebida em
Kant, e não em Hume. No século XIX, a influência geral da matemática decaiu.
O movimento romântico em literatura e o movimento idealista em filosofia não foram produto de mentalidades matemáticas.
Mesmo na ciência, o desenvolvimento da geologia e da zoo-
I Para uma mais detalhada consideração da natureza e da função da matemática pura, confira minha obra Introduction to Mathematics, Home University Library, Williams and Norgate, London,
150 I
..
I A C1~NCIA E O MUNDO MODERNO I
logia e das ciências biológicas em geral não tinha em nenhum caso conexão alguma com a matemática. A principal fascinação cientifica do século foi a teoria da evolução de Darwin. Por isso os matemáticos estavam em segundo plano no que se refere ao pensamento dessa época. Mas não quer isso dizer que a matemática tenha sido negligenciada e que não tenha exercido influência. Durante o século XIX, a matemática teve um progresso quase tão grande como nOS séculos precedentes
a partir de Pitágoras. Naturalmente o progresso era mais fácil, pois a técnica fora aperfeiçoada. Mesmo assim, a transformação da matemática entre os anos 1800 e 1900 é muito considerá
vel. Se acrescentarmos os precedentes cem anos e tomarmos os dois séculos que precedem o tempo atual, seremos tentados a datar a fundação da matemática de um dos anos do último quartel do século XVII. O período do descobrimento dos elementos estende-se de Pitágoras a Descartes, Newton e Leibniz, e a ciência desenvolvida foi criada durante esses últimos duzentos e cinqüenta anos. Isso não é um louvor do gênio superior do mundo moderno, pois é mais dificultoso descobrir os elemen
tos do que desenvolver a ciência. Através do século XIX, a influência da ciência agiu sobre
a mecânica e a física, e por isso derivadamente sobre a engenharia e a quimica. É difícil avaliar-lhe a influência direta na
vida humana por intermédio dessas ciências. Mas não há nenhuma influência direta da matemática sobre o pensamento
geral da época. Revendo esse breve esboço da influência da matemáti
ca no pensamento europeu, vemos que houve dois períodos de influência direta sobre o pensamento geral e que ambos duraram cerca de duzentos anos. O primeiro período é o que se estende de Pitágoras a Platão, quando a pOSSibilidade da ciência e o seu caráter geral alvoreceu entre os pensadores gregos. O segundo período compreende os séculos XVII e XVIII da nossa era. Ambos os períodos têm algumas características comuns. Tanto no primeiro como no segundo, as categorias
I 51 I
';',' );
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
gerais do pensamento em muitas esferas do interesse humano achavam-se em estado de desintegração. Na época de Pitágoras, o paganismo inconsciente, com a sua tradicional roupagem de ritual maravilhoso e ritos mágicos, passava para uma nova fase sob duas influências. Havia ondas de entusiasmo religioso,
procurando iluminação direta nas profundezas secretas do ser; e, no pólo oposto, notava-se o despertar do pensamento crítico
e analítico, provando com desapaixonada frieza os últimos sig
nificados. Em ambas as influências, tão diversas nos seus resultados, há um elemento comum - uma incitante curiosidade e um movimento pela reconstrução dos moldes tradicionais. O
misticismo pagão pode ser comparado com a reação puritana e a reação católica; o crítico interesse científico era semelhante em ambas as épocas, embora com mínimas diferenças de importância substancial.
Em cada época, os primeiros estágios eram situados em periodos de crescente prosperidade e de novas oportunidades. A esse respeito diferem do periodo de gradual decadência no segundo e no terceiro século, quando o cristianismo estava progredindo na conquista do mundo romano. Foi tão-só em um periodo, afortunado tanto nas oportunidades para se esquivar à pressão das circunstâncias como na aguda curiosidade, que o
Espírito da Época pôde empreender alguma revisão direta daquelas abstrações finais que jazem ocultas nos mais concretos conceitos nos quais se inicia o sério pensamento de uma época.
Nos raros períodos em que essa tarefa pode ser empreendida, a matemática torna-se importante para a filosofia, pois a mate
mática é a ciência da mais completa abstração que o espirito humano pode atingir.
O paralelo entre as duas épocas não deve ser exagerado. O mundo moderno é mais amplo e mais complexo do que a civilização antiga em torno da costa do Mediterrâneo, ou mesmo do que a da Europa que enviou Colombo e os Pilgrim Fathers [colonos puritanos que fundaram comunidades na Nova Inglaterra] através dos mares. Não podemos agora explicar a nossa
I 52 I
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
época por uma fórmula simples que se torna predominante e que depois será posta de lado por milhares de anos. Assim, a submersão temporária da mentalidade matemática de Rousseau em diante parece que já chegou ao seu fim. Estamos entrando em uma idade de reconstrução do pensamento religioso,
cientifico e político. Quanto a essas épocas, se se deve evitar mera oscilação ignorante entre os extremos, deve-se também
procurar a verdade na sua profundeza. Não pode haver nenhu
ma visão dessa profundeza da verdade se pusermos à parte a filosofia que toma em conta aquelas últimas abstrações, cujas
correlações compete à matemática explorar. Para explicar a importância que a matemática adquiriu no
tempo atual, vamos começar de uma perplexidade cientifica especial e considerar as noções às quais somos naturalmente levados por algumas tentativas para elucidar essas dificuldades. Na atualidade, a física está preocupada com a teoria do quan
tum. Não preciso agora explicar2 o que é essa teoria, aos ainda não familiarizados com ela. Mas o ponto é que uma das mais
esperançosas linhas da explicação é afirmar que um elétron não percorre de modo continuo sua órbita no espaço. A noção alter
nativa, quanto ao seu modo de existência, é que ele aparece em uma série de distintas posições no espaço que ocupa por sucessivas durações de tempo. É como se um automóvel, correndo na média de trinta quilômetros por hora ao longo de uma es
trada, não percorresse a estrada continuamente, mas aparecesse sucessivamente nos marcos de cada quilômetro, permanecendo
em cada um durante dois minutos. Em primeiro lugar, exige-se puro uso técnico da mate
mática para determinar se essa concepção de fato explica as
muitas caracteristicas da perplexidade na teoria do quantum.
Se a noção sobreviver ao teste, sem dúvida a física a adotará. Por enquanto a questão é puramente uma para a matemática e
2 Cf. capftulo VIII.
I 53 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
a física, de modo a estabelecer-se entre ambas as ciências sobre
a base dos cálculos matemáticos e das observações físicas.
Mas agora um problema é entregue aos filósofos. Essa existência descontínua no espaço, atribuída aos elétrons, é
muito diferente da existência contínua das entidades mate
riais que habitualmente temos como óbvias. O elétron pare
ce estar tomando de empréstimo o caráter que alguns povos
atribuiram aos Mahatmas do Tibete. Esses elétrons, com os correlativos prótons, são agora concebidos Como as entidades
fundamentais das quais são compostos os corpos materiais da
experiência comum. Com isso, se é lícita essa explicação, te
mos de rever todas as nossas noções do caráter último da exis
tência material. É que, quando penetramos nessas entidades últimas, manifesta-se essa inicial descontinuidade da existência espacial.
Não há nenhuma dificuldade em explicar o paradoxo se consentimos em aplicar à imutável e indiferenciada duração
da matéria os mesmos princípios que aqueles agora aceitos por
som e luz. Uma nota que soa imutável é explicada como o resultado da vibração do ar; uma cor imutável é explicada como uma vibração no éter. Se explicarmos a imutável duração da
matéria com o mesmo princípio, conceberemos cada elemento
primordial como uma ondulação vibratória de uma energia ou atividade fundamental. Suponhamos que nos atemos à idéia física da energia. Então cada elemento primordial será um sis
tema organizado de corrente vibratória de energia. Com isso
haverá um período definido associado a cada elemento. E dentro desse período o sistema de corrente vibrará de um máximo
estacionário a outro máximo estacionário - ou, tomando uma
metáfora do movimento da maré, o sistema vibrará de uma
maré alta a outra maré alta. O sistema, formando um elemento primordial, não é nada em cada um dos instantes. Demanda o
seu período integral para se manifestar. De modo análogo, uma nota de música não é nada em um instante, pois também de
manda o seu período integral para se manifestar.
I S4 I
I A CltNClA E O MUNDO MODERNO I
Assim, ao perguntarmos onde está o elemento primordial,
devemos deter-nos na sua posição média ao centro de cada pe
ríodo. Se dividirmos o tempo nos mais pequenos elementos, o
sistema vibratório como uma entiçlade eletrônica não terá exis
tência. O caminho no espaço de tal entidade vibratória - onde
a entidade é constituída por vibração - deve ser representado por uma série de destacadas posições no espaço, analogamente .~
ao automóvel que é encontrado nos sucessivos marcos e em nenhum lugar entre dois deles.
Devemos primeiro perguntar se há alguma evidência para
associar a teoria do quantum com a vibração. Essa pergunta é
imediatamente respondida de modo afirmativo. Toda a teoria concentra-se em torno da energia irradiante partindo de um
átomo e está intimamente associada com os periodos do sis
tema de ondas irradiantes. Parece, portanto, que a hipótese da existência vibratória essencial é o mais esperançoso meio de
explicar o paradoxo da órbita descontinua. Em segundo lugar, um novo problema é agora proposto
aos filósofos e aos físicos, se mantivermos a hipótese de que os últimos elementos da matéria são em essência vibratórios.
Quero com isso dizer que, se um sistema não fosse periódico,
tal elemento não teria existência. Com essa hipótese ternos de
indagar quais são os ingredientes que formam o organismo vi
bratório. Já nos libertamos da matéria com sua aparência de
duração indiferenciada. Se pusermos à parte alguma exigência
metafísica, não há razão para procurar um tecido mais sutil
para substituir a matéria que acaba de ser explicada. Abre-se
agora o campo à introdução de uma nova teoria do organismo
que possa substituir o materialismo com o qual desde o século XVII a ciência sobrecarregou a filosofia. Deve ser lembrado que a energia dos físicos é manifestamente uma abstração. O fato concreto, que é o organismo, deve ser uma expressão com
pleta do caráter de uma ocorrência real. Tal deslocamento do materialismo científico, se ocorrer, não pode deixar de ter im
portantes conseqüências em todas as esferas do pensamento.
I SS I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Finalmente, nossa última reflexão deve ser que no fim te
mos de voltar a uma versão da doutrina do velho Pitágoras, de quem a matemática e a física matemática tomaram a sua ori
gem. Ele descobriu a importância de lidar com as abstrações; e particularmente dirigiu a atenção para o número enquanto este
caracteriza as periodicidades das notas musicais. A importância
da idéia abstrata da periodicidade estava assim presente no pró
prio início tanto da matemática como da filosofia européia.
No século XVII, o nascimento da ciência moderna demandava uma nova matemática, mais plenamente equipada
para o propósito de analisar as características da existência vi
bratória. E agora no século XX encontramos os físicos empenhados a fundo em analisar as periodicidades dos átomos. Na verdade, Pitágoras, criando a filosofia e a matemática européias, dotou-as das mais venturosas hipóteses dentre as venturosas
- ou seria um clarão do gênio divino a penetrar no mais íntimo
da natureza das coisas?
I 56 I
I CAP[TULO 111 I
O SÉCULO DO GÊNIO
Os capítulos precedentes foram dedicados às condições antecedentes que preparam o terreno para a irrupção cientifica do século XVII. Apontaram os vários elementos do pensamento e da crença instintiva, desde o seu primeiro desabrochar na civilização clássica do mundo antigo, através das transformações por que passaram na Idade Média, até a revolta cientifica do século XVI. Três fatores principais chamaram a atenção: o aparecimento da matemática, a crença instintiva em uma or
dem detalhada da natureza e o desenfreado racionalismo do pensamento da alta Idade Média. Por esse racionalismo entendo que o caminho para a verdade estendia-se predominantemente através da análise metafísica da natureza das coisas, que
determinaria, portanto, corno as coisas atuavam e funcionavam.
A reviravolta histórica foi o abandono definitivo desse método em favor do estudo dos fatos empiricos de antecedentes e
conseqüentes. Em religião, isso significava apelo às origens do cristianismo, e em ciência apelo à experimentação e ao método
indutivo do raciocínio.
Uma breve e cuidadosa descrição da vida intelectual dos povos europeus durante duzentos e cinqüenta anos desde en
tão até o nosso tempo mostra que vinham vivendo do conjunto de idéias acumulado que lhes proporcionou o gênio do século XVII. Os homens dessa época herdaram uma agitação de idéias implícitas na reviravolta científica do século XVI, e legaram sistemas de pensamento constituídos relativos a todos os aspectos
1571
~"'ry-
.1
I ALfRED NORTH WHITEHEAD I
da vida humana. Esse foi o século que, consistentemente e em
todas as esferas da atividade humana, proporcionou o gênio intelectual adequado à grandeza de suas circunstâncias. A densidade desses cem anos é indicada pelas coincidências que apare
cem em seus anais literários. No seu alvorecer, o Advancement
of Learning [Progresso do saber), de Bacon, e o Dom Quixote,
de Cervantes, foram publicados no mesmo ano (1605), como
se a época se tivesse inaugurado com um olhar para trás e outro para a frente. A primeira edição em livro de Hamlet apareceu
no ano anterior, e uma edição ligeiramente diferente no mesmo ano. Finalmente, Shakespeare e Cervantes morreram no mesmo dia, 23 de abril de 1616. Na primavera desse ano, acreditase que Harvey expôs pela primeira vez sua teoria da circulação do sangue, em uma seqüência de conferências na Faculdade de
Medicina de Londres. Newton nasceu no ano em que morreu Galileu (1642), exatamente cem anos após a publicação de De
Revolutionibus, de Copérnico. Um ano antes Descartes publicara Meditationes e dois anos mais tarde Principia Philosophiae.
Simplesmente não havia tempo para o século delongar mais brilhantemente os seus notáveis acontecimentos concernentes aos homens de gênio.
Não posso agora relatar todos os diversos estágios do pro
gresso intelectual dessa época. Seria algo demasiado extenso para um capítulo e obscureceria as idéias que tenho o objetivo de desenvolver. Um mero catálogo em linhas gerais de alguns
nomes será suficiente, nomes de homens que divulgaram para
o mundo nessa época os seus trabalhos: Francis Bacon, Harvey, Kepler, Galileu, Descartes, Pascal, Huyghens, Boyle, Newton,
Locke, Spinoza e Leibniz. Limitei a lista ao sagrado número de doze, um número pequeno deles para ser repr~sentativo. Por exemplo, há um só italiano no elenco, e no entanto a Itália poderia encher a lista a partir de suas próprias fileiras. Há um só biólogo, e também há muitos ingleses. Este último defeito é parte devido ao fato de o autor ser inglês e de estar dirigindo-se a um público ao qual, da mesma forma que a ele, reconhece esse
I S8 I
,
I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I
século inglês. Se ele fosse holandês, haveria muitos holandeses; se italiano, haveria muitos italianos; se francês, muitos franceses. A infeliz Guerra dos Trinta Anos devastou a Alemanha; mas
todos os demais países voltam-se para esse século como uma época que testemunhou certo auge do seu gênio. Certamente foi esse um grande período do pensamento inglês, tanto quanto mais tarde Voltaire influenciou a França. .'
A omissão de outros fisiologistas que não Harvey também requer explicação. Houve, evidentemente, grandes progressos na biologia nesse século, principalmente associados à Itália e à
Universidade de Pádua. Mas o meu propósito é traçar a visão filosófica derivada da ciência e pressuposta pela ciência, e avaliar alguns dos seus efeitos no clima geral de cada época; ora, a filosofia cientifica desse período esteve dominada pela física, de modo a tomar-se a mais clara manifestação, em termos de idéias gerais, do estado de conhecimentos físicos dessa época e
dos dois séculos posteriores. Realmente, esses conceitos eram impróprios para a bíologia, e a ela apresentam um problema
insolúvel de matéria, vida e organismo, com o qual os biólogos agora lutam. Mas a ciência dos organismos vivos só agora se encaminha para um desenvolvimento adequado para imprimir as suas concepções na filosofia. Os últimos cinqüenta anos de nossa época testemunharam tentativas fracassadas de infundir
noções biológicas no materialismo do século XVII. Por mais que esse sucesso seja considerado, é certo que as idéias básicas
do século XVII derivaram da escola de pensamento que pro
duziu Galileu, Huyghens e Newton, e não dos fisiologistas de Pádua. Um problema pendente do pensamento, na medida em
que deriva desse período, deve ser formulado assim: dadas as configurações da matéria com movimento no espaço, conforme determinadas pelas leis físicas, explicar os organismos vivos.
Minha discussão da época seria mais adequadamente apresentada com uma citação de Francis Bacon que constitui o início da Seção (ou "Século") IX de sua História natural, isto é, a Silva Silvarum. Somos informados da memória contemporâ-
I S9 I
-;.t~~··
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
nea por seu capelão, Dr. Rawley, pois esse trabalho foi composto nos últimos cinco anos de sua vida, e assim deve ser datado do período entre 1620 e 1626. A citação é a seguinte:
t certo que todos os corpos, sejam quais forem, embora não
tenham sentido, têm percepção, pois, quando um corpo é
aplicado a outro, há uma espécie de eleição para aceitar o
que é agradável e excluir ou expelir o que é desagradável; e,
se o corpo for alterador ou alterado, sempre uma percepção
precede uma operação; é que, de outra forma, todos os cor
pos poderiam ser semelhantes entre si. E às vezes essa per
cepção, em alguns tipos de corpos, é muito mais aguda que
os sentidos; sendo assim, o sentido não é senão uma coisa
grosseira em comparação com ela; vemos que o barômetro
marca a menor diferença do calor ou do frio, ao passo que
nós não. E essa percepção se dá algumas vezes a distância
tão bem como se fosse pelo tato: como quando o ímã atrai
o ferro, ou a chama atrai o petróleo, de uma grande distân
cia. Assunto da mais nobre indagação é, portanto, esse de
pesquisar as mais agudas percepções, pois é outra chave da
natureza tão boa como os sentidos. E algumas vezes melhor.
Além disso, é um meio principal de compreender a natureza,
pois ° que nessas percepções primeiro aparece nos grandes
efeitos vem muito depois.
Há muitos pontos interessantes nessa citação, alguns dos quais serão destacados nos próximos capítulos. Em primeiro
lugar, notem o cuidado com que Bacon discrimina entre "percepção" ou "tomar conhecimento de", de um lado, e os "senti
dos" ou "experiência cognitiva" de outro. A esse respeito Bacon
está fora da linha física do pensamento que por fim dominou o século. Mais tarde, pensou-se na matéria passiva que era ma
nipulada externamente pelas forças. Creio que a linha do pensamento de Bacon expressou uma verdade mais fundamental do que os conceitos materialistas que então se formavam como adequados à física. Estamos agora tão acostumados com o modo materialista de considerar as coisas radicado em nossa literatura
160 I
1 A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO 1
graças ao gênio do século XVIl, que não é sem dificuldade que compreendemos a possibilidade de outro modo de abordar os
problemas da natureza. No caso especial da citação que acabo de fazer, por todo
o trecho e por seu contexto perpassam sinais do método experimentai, a saber, pela atenção prestada aos "fatos irredutiveis e inflexíveis", e pelo método indutivo de extrair leis gerais. to
Outro problema insolúvel que nOS legou o século XVII é a
justificação racional desse método de indução. O reconhecimento explícito da antitese entre o racionalismo indutivo dos escolásticos e do método indutivo de observação dos modernos
deve ser atribuído principalmente a Bacon, embora, naturalmente, estivesse implícito em Galileu e em todos os homens da ciência desse tempo. Mas Bacon era um dos mais antigos
de todo o grupo e também apreendia mais diretamente todo o alcance da reviravolta intelectual que estava acontecendo. O homem que mais completamente antecipou tanto Bacon como todo ponto de vista moderno foi talvez o artista Leonardo Da Vinci, que viveu quase exatamente um século antes de Bacon. Leonardo também ilustrou a teoria, que adiantei em meu último capítulo, de que o aparecimento da arte naturalista foi um importante ingrediente na formação da nossa mentalidade
cientifica. Realmente, Leonardo era um homem de ciência mais completo que Bacon. A prática da arte naturalista é mais próxima da prática da fisica, da química e da biologia que a prática
do direito. Todos nos lembramos do dito do contemporâneo
de Bacon, Harvey, o descobridor da circulação do sangue, de que Bacon "escreveu sobre ciência como um Lorde Chanceler".
Mas, no principio dos tempos modernos, Da Vinci e Bacon se unem para ilustrar as várias correntes que se combinaram para
formar o mundo moderno: a mentalidade legal e os hábitos de paciente observação dos artistas naturalistas.
Na passagem que citei dos escritos de Bacon não há menção explícita do método indutivo de raciocínio. É desnecessário para mim provar a vocês com citação que o reforço da
I 61 I
L.
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
importância desse método e do que significam os segredos da natureza a ser descobertos para o bem da humanidade é uma das coisas a que Bacon se consagrou em seus escritos. Ficou provado ser a indução um processo algo mais complexo do que o anunciou Bacon. Este tinha em mente que, com o suficiente cuidado na coleta dos exemplos, a lei geral por si mesma se imporia. Sabemos hoje, e provavelmente Harvey já sabia, que
se trata de uma apresentação muito inadequada dos processos
que aparecem nas generalizações cientificas. Mas, quando fazemos todas as deduções exigidas, Bacon permanece como um dos grandes construtores da mentalidade do mundo moderno.
As principais dificuldades levantadas pela indução emergem no século XVIII como o resultado da crítica de Hume. Mas Bacon foi um dos profetas da reviravolta histórica que abandonou o método do racionalismo fechado e lançou-se ao outro extremo de basear todos os conhecimentos aproveitados sobre inferências tiradas de circunstâncias determinadas no passado para circunstãncias determinadas no futuro. Não quero lançar nenhuma dúvida sobre a validade da indução, quando devidamente observada. O ponto para mim é que a tarefa re
almente frustrada de aplicar um raciocínio para extrair as características gerais da circunstância imediata, posta perante nós em direta cognição, é uma preliminar necessária, se queremos justificar a indução; a não ser que, na verdade, nos contentemos com o vago instinto de que tudo está bem. Ou há alguma coisa
sobre a circunstância imediata que abrange o conhecimento do passado e do futuro, ou estamos reduzidos ao ceticismo em relação à memória e à indução. Nunca é demais frisar que a
chave para o processo da indução, conforme se usa tanto na ciência como na vida comum, será encontrada na compreensão exata da circunstância imediata dos conhecimentos em sua concreção cabal. É a respeito da nossa apreensão do caráter das circunstâncias na sua concreção que o desenvolvimento moderno da fisiologia e da psicologia tem importãncia crítica. Ilustrarei esses pontos em meus próximos capítulos. Achamo-
I 62 I
..
I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO 1
nos no meio de insolúveis dificuldades quando substituímos essa circunstância concreta por outra meramente abstrata na qual só consideramos objetos materiais em um movimento de configurações no tempo e no espaço. É bastante óbvío que tais objetos só nos podem dizer o que eles são onde estão.
Sendo assim, devemos recorrer ao método da teologia escolástica como a explicaram os medievalistas italianos que ,,~
citei no primeiro capítulo. Devemos observar a circunstância imediata e usar a razão para extrair uma descrição geral da sua natureza. A indução pressupõe a metafísica. Vocês não podem ter uma justificação racional para os seus apelos à história enquanto a metafísica de vocês não lhes certificar que há uma história para a qual apelar. De modo análogo, as conjecturas de vocês para o futuro pressupõem alguma base do conhecimento de que há um futuro já submetido a algumas determinações. A dificuldade é encontrar o sentido de algumas dessas idéias. Mas se vocês não o fizerem, terão transformado a indução em tolice.
Vocês perceberão que não considerei a indução como
sendo em essência derivada de leis geraís. É o descobrimento de algumas características de um futuro determinado, partindo de algumas características conhecidas de um passado determinado. A mais ampla aceitação das leis gerais tidas por todas as circunstâncias cognosciveis faz aparecer um adendo realmente inseguro a esse conhecimento limitado. O máximo que se pode esperar da circunstância presente é que ela estabelecerá uma comunidade de circunstâncias determinadas que são a alguns
respeitos mutuamente qualificadas pela razão de serem incluídas nessa mesma comunidade. Essa comunidade de circunstâncias considerada na ciência física é o conjunto de conhecimentos feitos um para o outro - como se diz - em um espaçotempo comum, de sorte que podemos indicar a transição de um para o outro. Assim, referimo-nos ao espaço-tempo comum indicado em nossa circunstância imediata de conhecimento. O raciocínio indutivo procede da circunstância determinada para
I 63 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
a comunidade de circunstâncias determinadas e da comunida
de determinada para as relações entre as circunstâncias deter
minadas incluídas nessa comunidade. Enquanto levarmos em
conta outros conceitos cientificos, é impossível levar a discussão
da indução além dessa conclusão preliminar.
O terceiro ponto a notar acerca dessa citação de Bacon é o caráter puramente qualitativo daquilo que afirmou. A esse
respeito Bacon omitiu inteiramente a tonalidade subjacente ao
sucesso da ciência do século XVII. A ciência estava tornando-se primordialmente quantitativa e assim permaneceu. Procurem
elementos mensuráveis entre os fenômenos e depois busquem
as relações entre essas medidas de quantidades físicas. Bacon despreza essa norma da ciência. Por exemplo, na citação fala de ação a distância; mas pensa qualitativamente e não quantitati
vamente. Não cabe indagar se anteciparia seu contemporâneo
mais jovem, Galileu, ou seu distante sucessor, Newton. Mas
não deu indício de que se tratava de uma procura por quantidade. Talvez fosse desviado pelas doutrinas lógicas correntes que
tinham vindo de Aristóteles, pois efetivamente essas doutrinas diziam ao físico "classifique", quando deveriam dizer "meça".
Mais para o final do século a física acabou sendo fundada sobre satisfatória base de medição. A última e adequada exposição foi dada por Newton. O elemento comum mensurável da "massa" foi discriminado como característica de todos os corpos
em diferentes grupos. Corpos que eram evidentemente idênti
cos em substância, forma e tamanho têm aproximadamente a
mesma masSa: quanto mais estreita a identidade, mais próxima
a igualdade. A força atuante em um corpo, tanto pelo conta
to como pela ação a distância, era [com efeito 1 definida como igual à massa do corpo multiplicada pela média da diferença de velocidade do corpo, até onde essa média de diferença é produzida por aquela força. Desse modo a força é encontrada por seu efeito no movimento do corpo. Surge agora a questão sobre se
essa concepção da importância da força leva ao descobrimento das simples leis quantitativas que envolvem a determinação
1641
I A Cl~NClA E O MUNDO MODERNO I
alternativa das forças pelas circunstâncias da configuração das
substâncias e de suas características físicas. A concepção newto
niana alcançou êxito magnífico em sobreviver a essa experiên
cia através de todo o período moderno. O seu primeiro triunfo
cumulativo foi o desenvolvimento da astronomia dinâmica, da
mecânica e da física.
Esse assunto da formação das três leis do movimento e
da lei da gravitação pede atenção crítica. O desenvolvimen
to total do pensamento ocupa exatamente duas gerações. Começa com Galileu e termina com os Principia de Newton; e Newton nasceu no ano em que Galileu morreu. Também a vida
de Descartes e a de Huyghens aconteceram dentro do período ocupado por essas duas figuras-limite. O resultado dos combinados esforços desses quatro homens tem algum direito de
ser considerado como a maior vitória singular da inteligência
que a humanidade realizou. Na estimativa de seu alcance, devemos considerar quanto é completa a sua combinação, que
construiu para nós uma visão completa do universo material e
habilitou-nos a calcular os mínimos detalhes de determinadas ocorrências. Galileu deu o primeiro passo, vislumbrando a linha
certa do pensamento. Notou que o ponto crítico em que se
devia atentar era, não o movimento dos corpos, mas a diferença
desses movimentos. O descobrimento de Galileu é formulado
por Newton na sua primeira lei do movimento: "Todo corpo
continua em estado de repouso ou de movimento uniforme
em linha reta, exceto quando possa ser impelido por forças a sair desse estado".
Essa fórmula contém o repúdio de uma crença que impediu por dois séculos o progresso da física. Também atinge um
conceito fundamental, essencial à teoria científica; refiro-me
ao conceito de um sistema idealmente ísolado. Essa concepção abrange um caráter fundamental das coisas, sem o qual seria
impossível a ciência ou de fato qualquer conhecimento por parte do intelecto finito. O sistema "isolado" não é um sistema solipsístico, fora do qual só haveria negação. É isolado dentro
1 65 1
.'
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
do universo. Quer isso dizer que há verdades a respeito desse sistema que demandam referência apenas ao remanescente das coisas por meio de um uniforme e sistemático esquema de relações. Assim, a concepção de sistema isolado é a concepção não de independência substancial do remanescente das coisas, mas
de liberdade da casual dependência contingente de pontos separados dentro do restante do universo. Além russo, essa liber
dade de dependência casual só é exigida com respeito a algumas características abstratas que se prendem ao sistema isolado, e não com respeito ao sistema em toda a sua concreção.
A primeira lei indaga o que vem a ser um sistema isolado dinamicamente, no que se refere ao seu movimento como um todo, abstraindo-se de sua orientação e do arranjo interior das partes. Aristóteles disse que devemos conceber que tal sistema
estã em repouso. Galileu acrescentou que o estado de repouso é apenas um caso especial e que a verificação geral se dã "ou em estado de repouso ou em movimento uniforme em linha reta". De acordo com isso, um aristotélico conceberia as forças surgidas das reações desse corpo estranho como quantitativamente mensuráveis em termos da velocidade que mantém, e como diretivamente determinada pela direção dessa velocidade, enquanto Galileu dirigiria a atenção para a importância da aceleração e sua direção. Essa diferença é exemplificada pelo con
traste entre Kepler e Newton. Ambos especularam sobre como as forças mantinham os planetas em suas respectivas órbitas. Kepler buscava forças tangenciais que impelem os planetas, ao passo que Newton procurava a força das radiais que desviam a
direção do movimento dos planetas. Em vez de permanecermos no engano de Aristóteles, é
mais proveitoso acentuarmos a justificativa que ele tinha, se considerarmos os fatos óbvios da nossa experiência. Todos os movimentos que entram em nossa experiência diária cessam, salvo quando evidentemente sustentados de fora. Portanto, é
evidente que os empiristas totais deveriam dedicar a atenção a esse ponto de sustentação do movimento. Estamos diante
166 I I
l
I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I
aqui de um dos perigos do empirismo não imaginativo. O século XVII apresenta outro exemplo desse mesmo perigo; e entre tantos no mundo, Newton caiu nele. Huyghens tinha produzido a teoria ondulatória da luz. Mas essa teoria deixou de considerar os fatos mais óbvios em relação à luz como na experiência comum, isto é, as sombras produzidas por objetos que interceptam são definidas pelos raios retilineos. Assim,
Newton rejeitou essa teoria e adotou a teoria corpuscular, que explica completamente as sombras. Desde então ambas as teo
rias têm tido o seu período de triunfo. No presente momento, o mundo cientifico anda à procura de uma combinação das duas. Esses exemplos ilustram o perigo de manter uma idéia porque deixa de explicar um dos fatos mais óbvios da matéria em questão. Se quiserem ter a mente voltada para a novidade do pensamento, durante a vida de vocês, terão de observar que quase todas as idéias novas têm ar de insensatez na sua primei
ra apresentação. Voltando às leis do movimento, chama a atenção o fato de
que nenhuma explicação ocorreu no século XVII para distin
guir a posição de Galileu da de Aristóteles. Foi um fato posterior. Quando no curso destes capítulos chegarmos ao período moderno, veremos que a teoria da relatividade lançou plena luz sobre essa questão; mas o fez só por um novo arranjo de todas as nossas idéias sobre tempo e espaço.
Coube a Newton dirigir a atenção para a massa como
quantidade inerente à natureza de um corpo material. A massa continua permanente durante todas as mudanças do movimento. Mas a prova da permanência da massa em meio às transformações quimicas teve de esperar por Lavoisier até um século depois. A subseqüente tarefa de Newton foi achar alguma estimativa para a importância da força estranha em termos da massa do corpo e da sua aceleração. Teve aqui um golpe de sorte, pois, do ponto de vista de um matemático, a mais simples lei possível, isto é, o produto das duas, revelou-se bem-sucedida. Novamente a moderna teoria da relatividade modifica
I 67 I
,.~~~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
essa simplicidade extrema. Felizmente, porém, para a ciência, as delicadas experiências dos físicos de hoje não eram então
conhecidas, ou mesmo possíveis. Com isso, o mundo levou dois séculos para digerir as leis newtonianas sobre o movimento.
Olhando esse triunfo, será de admirar que os cientistas
depositem os seus últimos princípios sobre base materialista, e portanto cessem de cuidar da filosofia? Compreenderemos o
curso do pensamento se entendermos exatamente o que vem a
ser essa base e que dificuldades afinal implicam_ Quando criticarmos a filosofia de uma época, não dirijamos principalmente
a nossa atenção para aquelas posições intelectuais que os seus expoentes acham necessário defender explicitamente. Haverá algumas afirmações fundamentais que os adeptos dos vários sistemas de cada época pressupõem inconscientemente. Tais
afirmações afiguram-se tão óbvias que a gente não sabe o que está afirmando, porque nenhum outro modo de apresentar as
coisas ocorreu. Com essas afinnações, é possível certo número de tipos de sistemas filosóficos, e esses grupos de sistemas constituem a filosofia dessa época_
Tal afirmação delineia toda a filosofia da natureza nos
tempos modernos_ Está incorporada na concepção que acredita expor os mais concretos aspectos da natureza_ Os filósofos jônicos indagavam: De que é feita a natureza? A resposta é calcada
em termos de substância, matéria ou material - o nome escolhido não importa -, que tem a propriedade de localização
simples no tempo e no espaço, ou, se adotarmos as mais modernas idéias, em espaço-tempo_ O que entendo por matéria ou
material é o que tem a propriedade dessa "localização simples"_
Por localização simples entendo uma característica maior que se refere igualmente tanto ao espaço quanto ao tempo, e outras
características menores, diferentes quanto à diferença entre o tempo e o espaço_
A característica comum entre espaço e tempo é que se pode afirmar que a matéria está aqui no espaço e aqui no tempo, ou, ainda, aqui no espaço-tempo em um perfeito sentido
1 68 I
1 A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
definido que não exige para a sua explicação referência a outra região do espaço-tempo. É bastante curioso que esse caráter de localização simples destaca-se quando consideramos uma região do espaço-tempo determinada quer absolutamente, quer relativamente, pois, se uma região é meramente um meio de indicar certo conjunto de relações com outras entidades, então
essa característica, a que chamo localização simples, é que se ""
pode afirmar que o material pode ter só essa relação de posi
ções com outras entidades, sem demandar para a sua explicação nenhuma referência a outras regiões constituídas por relações análogas de posições com as próprias entidades_ De fato, logo
que estabelecemos, e de qualquer maneira que o façamos, o que entendemos por uma colocação definida no espaço-tempo, podemos estabelecer adequadamente a relação de um grupo material determinado com o espaço-tempo, dizendo que só pode ser neste lugar; e, além do concernente à localização simples, nada há mais que dizer a respeito do assunto_
Há, porém, algumas explicações subordinadas a serem feitas, as quais levam às características menores que mencionei. Primeiro, no que concerne ao tempo, se a matéria existiu durante algum periodo, teve existência durante alguma parte desse periodo_ Noutras palavras, dividir o tempo não divide a matéria_
Em segundo lugar, com respeito ao espaço, dividir o volume não é dividir o material. Assim, se a matéria existe através de um volume, haverá menos desse material distribuído a qual
quer metade definida desse volume_ É dessa propriedade que
decorre a nossa noção de denSidade em um ponto do espaço_ Qualquer pessoa que fala sobre densidade não o faz assimilan
do tempo e espaço até o ponto que desejam alguns relativistas extremados com muita precipitação_ Para a divisão das funções
do tempo, com respeito ao material, a coisa é completamente diferente do que se dá com a divisão do espaço_
Além disso, esse fato de que a matéria é indiferente para a divisão do tempo leva à conclusão de que o lapso de tempo é um acidente, mais que da essência, do material. O material
169 I
c '.' ~;;
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
está completamente em qualquer subperíodo, por curto que seja. Assim, a transição do tempo nada tem a ver com o caráter
do material. O material é também igual em um instante do tempo. Aqui, um instante do tempo é concebido em si mesmo, sem transição, desde que a transição temporal seja a sucessão de instantes.
Por conseguinte, a resposta que o século XVII deu à per
gunta dos ·pensadores jônicos sobre "De que era feita a nature
za?" foi que o mundo é uma sucessão de configurações instan
tâneas de matéria, ou de material, se quisermos incluir estofo mais sutil que a matéria comum, o éter, por exemplo.
Não nos podemos surpreender que a ciência ficasse satisfeita com essa afirmação quanto aos elementos fundamentais da natureza. As grandes forças da natureza como a gravitação foram inteiramente determinadas pelas configurações da massa. Assim, as configurações determinaram as suas próprias mu
danças, de modo que o círculo do pensamento cientifico foi completamente fechado. Essa é a famosa teoria mecanicista da
natureza, que reinou soberana durante todo o século XVII. É
o credo ortodoxo da ciência fisica. Além disso, o credo justifica-se mediante a experiência pragmática. Ele funcionou. Os fisicos deixaram de se interessar pela filosofia. Enfatizaram O
anti-racionalismo na reviravolta histórica. Mas as dificuldades
dessa teoria do mecanicismo materialista muito cedo se tornaram evidentes. A história do pensamento nos séculos XVIII
e XIX é governada pelo fato de que o mundo havia tomado posse de uma idéia geral que não podia viver nem com ela nem sem ela.
Bergson protestou contra essa localização simples das configurações da matéria, na medida em que ela conceme ao tem
po e é tomada como o fato fundamental da natureza concreta. Bergson chama isso de um desvio da natureza, devido à "especialização" intelectual das coisas. Concordo com Bergson em seu protesto, mas não concordo em que tal desvio seja um vício necessário à apreensão intelectual da natureza. Em capítulos a
170 I I
l
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
seguir empenhar-me-ei por mostrar que essa especialização é a expressão de fatos mais concretos sob o aspecto de construções lógicas deveras abstratas. Há um erro, mas é simplesmente o erro de tomar o abstrato pelo concreto. É um exemplo daquilo a que chamarei a "falácia da concreção deslocada". Essa falácia
é ocasião de grande confusão em filosofia. Não é necessário ao intelecto cair na armadilha, apesar de nesse exemplo ter havido "
manifesta tendência a fazê-lo. É evidente que o conceito de localização simples irá cons
tituir grande dificuldade para a indução, pois, se na localização
de configurações da matéria ao longo de um lapso de tempo não há nenhuma referência inerente a qualquer outro tempo, passado ou futuro, segue-se imediatamente que a natureza dentro de um periodo não se refere à natureza em outro período. De acordo com isso, a indução não se baseia sobre algo que possa ser observado como inerente à natureza. Assim não podemos encarar a natureza como justificação de nossa crença em qualquer lei como a da gravitação. Em outras palavras, a ordem da natureza não pode ser justificada pela mera observação da natureza. É que nada há no fato presente que se refira inerentemente ao passado ou ao futuro. Portanto, é como se tanto a memória quanto a indução devessem deixar de encon
trar justificação na própria natureza. Estou antecipando a marcha do futuro pensamento e re
petindo o argumento de Hume. Esse desenvolvimento do pen
samento segue-se tão imediatamente da localização simples que não podemos esperar pelo século XVIII para o considerarmos.
A única surpresa é que o mundo esperasse de fato por Hume para notar a dificuldade. Também isso ilustra o anti-racionalis
mo do público cientifico, cuja atenção só foi atraida pelo conteúdo religioso da filosofia de Hume. Isso sucedeu porque o clero era, em princípio, racionalista, ao passo que os homens da ciência contentavam-se com uma fé simples na ordem da natureza. Nota o próprio Hume, sem dúvida com certo escárnio, que "nossa religião sagrada se funda na fé". Essa atitude satisfez
I 71 I
1
ill
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
à Royal Society, mas não à Igreja. Satisfez também a Hume e
aos empiristas posteriores.
Há outro pressuposto de pensamento que coloco ao lado da teoria da localização simples. Refiro-me às duas categorias correlativas de substància e qualidade. Acontece, contudo, esta diferença. Há distintas teorias quanto à adequada descrição de condição de espaço. Mas, qualquer que fosse sua condição, nInguém tinha
dúvida senão de que a conexão com o espaço verificada nas enti
dades, que se diz estarem no espaço, fosse da localização simples.
Posso resumir tudo isso dizendo que era tacitamente aceito que o espaço é o lugar da localização simples. O que quer que esteja no espaço está simpliciter em alguma determinada porção do espaço. Mas, no que diz respeito à substáncia e à qualidade, os pensadores do século XVII andavam positivamente perplexos, embora, com o seu gênio usual, logo construíssem uma teoria adequada aos seus
propósitos imediatos.
Naturalmente, a substância e a qualidade, bem como a localização simples, são as idéias mais naturais da mente humana.
É a maneira como pensamos e sem essa maneira de pensar não
podemos atingir nossas idéias adequadas ao uso diário. Não resta dúvida quanto a isso. A única questáo consiste em saber como
pensamos concretamente quando consideramos a natureza sob
essas concepções. Minha opinião é que nos apresentamos com
edições simplificadas dos fatos imediatos. Quando examinamos
os elementos primários dessas edições simplificadas, verificamos que na verdade eles só se justificam como elaboradas construções
lógicas de um alto grau de abstração. Evidentemente, como pon
to de psicologia indiVidual, alcançamos essas idéias pelo método fácil e elementar de suprimir o que aparece a nós sem detalhes
irrelevantes. Mas, quando tentamos justificar essa supressão do irrelevante, verificamos que, embora haja entidades deixadas em correspondência com as de que falamos, também essas entidades têm um alto grau de abstração.
Assim, sustento que a substância e a qualidade propiciam outro tipo de falácia da concreção. Permitam-nos que conside-
172 I
,
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
remos como surge a noção de substancialidade. Observamos um objeto como uma entidade com determinadas caracterís
ticas. Além disso, cada entidade individual é apreendida por meio de suas características. Por exemplo, observamos um corpo: notamos alguma coisa a seu respeito. Talvez seja duro,
azul, redondo e ruidoso. Observamos alguma coisa que possua essas qualidades; fora delas não observamos nada. Sendo assim,
a entidade é o substrato, ou a substáncia, do que qualificamos
de qualidades. Algumas das qualidades são essenciais, de modo que, se as puséssemos de parte, a entidade não existiria; enquan
to outras qualidades são acidentais e mutáveis. Com respeito aos corpos materiais, a qualidade de ter uma massa quantitativa
e de localização simples em alguma parte foi considerada por John Locke, no fim do século XVII, como qualidades essenciais. Naturalmente, a localização era mutável, e a imutabilidade da massa era simplesmente um fato acidental, menos para certos
extremistas. Até aqui tudo bem. Mas quando passamos para o azul e
o ruidoso, temos de enfrentar uma nova situação. Em primeiro
lugar, o corpo pode não ser sempre azulou ruidoso. Já o admitimos em nossa teoria das qualidades acidentais, que no momen
to aceitamos como adequada. Mas, em segundo lugar, o século XVII apresentou uma dificuldade real. Os grandes físicos elaboraram teorias sobre a transmissão da luz e do som, basea
das na sua visão materialista da natureza. Havia duas hipóteses
quanto à luz: ou era transmitida pelas ondas vibratórias de um
éter materialístico, ou - segundo Newton - era transmitida
pelo movimento de corpúsculos incrivelmente diminutos de alguma matéria leve. Todos sabemos que a teoria ondulatória
de Huyghens ocupou o campo durante o século XIX, e presentemente os físicos se esforçam por explicar algumas circuns
tâncias obscuras atinentes à radiação, por uma combinação das
duas teorias. Mas, não importa qual seja a teoria escolhida, não
há luz nem cor como um fato na natureza externa. Há simples
mente movimento de matéria. Igualmente, quando a luz entra
173 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
em nossos olhos e incide em nossa retina, há simplesmente movimento de matéria. Então, os nervos e o cérebro são afetados, o que também é simplesmente movimento de matéria. A mesma linha de argumento aplica-se ao som, substituindo ondas do éter por ondas do ar, e olhos por ouvidos.
Então questionamos em que sentido o azul e o ruidoso são qualidades do corpo. Raciocinando de modo análogo, in
dagamos em que sentido o perfume da rosa é uma qualidade dela.
Galileu considerou essa questão e logo indicou que, se puséssemos à parte olhos, ouvidos e nariz, não haveria nem cor, nem som, nem cheiro. Descartes e Locke elaboraram uma teoria de qualidades primárias e secundárias. Por exemplo, Descar
tes, em sua Sexta Meditação diz: "E, na verdade, como percebo diferentes espécies de cores, sons, odores, gostos, calor, dureza etc., de modo seguro concluo que, nos corpos dos quais as di
versas percepções dos sentidos procedem, há certas variedades correspondentes a eles, embora, talvez, na realidade não sejam iguais a eles [ ... l".
Também em seus Princípios de filosofia disse: "Pelos sentidos nada conhecemos dos objetos externos além de sua figura [ou situação], tamanho e movimento".
Locke, escrevendo com o conhecimento da dinâmica
newtoniana, colocou a massa entre as qualidades primárias dos corpos. Em resumo, elaborou uma teoria das qualidades pri
márias e secundárias de acordo com o estado da ciência física
no fim do século XVii. As qualidades primárias são as qualidades essenciais das substâncias cujas relações espaciotemporais
constituem a natureza. A ordenação dessas relações constitui a ordem da natureza. Os acontecimentos da natureza são de muitos modos apreendidos pelas mentes, associados com os corpos animados. Inicialmente, a apreensão mental é provocada pelo reflexo em certas partes do corpo correlacionado (os reflexos no cérebro, por exemplo), Com a condição, porém, de que o cérebro também apreenda sensações da experiência que,
1741
I A O!';NC1A E o MUNDO MODERNO I
adequadamente falando, são apenas qualidades da mente. Essas sensações são projetadas pela mente, a :fim de revestir com a natureza externa corpos apropriados. Assim, os corpos são percebidos juntamente com as qualidades que na realidade não lhes pertencem, qualidades que de fato são apenas produtos da mente. Assim, a natureza ganha mérito que na verdade deveria ser reservado a nós: a rosa por seu perfume; o rouxinol por seu
canto; e o Sol por seus raios. Os poetas estão inteiramente enganados. Deveriam dirigir as suas líricas a si meSmos e deveriam
transforroá-las em congratulações a si próprios pela excelência da mente humana. A natureza é uma coisa enfadonha, sem
som, sem odor e sem cor; mero passar da matéria, sem fim nem significação.
Não importa como você camufle isso, é o resultado prá
tico da característica filosofia científica que encerra o século XVii.
Em primeiro lugar, devemos notar a sua espantosa eficiência como sistema de conceitos para a organização da investigação cientifica. A esse respeito, é completamente digna do gênio do século que a produziu. Defendeu o seu princípio como guia dos estudos cientificas desde então. Ainda está reinando. Todas as universidades do mundo se organizam de acordo com ela. Nenhuma outra alternativa como sistema de organização da
pesquisa da verdade científica foi sugerida. Não apenas reina, mas também está sem rival.
E ainda assim é verdadeiramente incrivel. Essa concep
ção do universo está seguramente esboçada em termos de altas
abstrações, e o paradoxo só transparece porque consideramos
nOSSa abstração como realidades concretas. Nenhum quadro das realizações do pensamento científi
co nesse século, por generalizado que seja, pode negligenciar o progresso em matemática. Aqui como em toda parte o gênio da época fez-se evidente. Três grandes franceses - Descartes, Desargues e Pascal- iniciaram o período da geometria. Outro francês, Fermat, lançou os alicerces da análise moderna e aper-
175 1
<
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
feiçoou tudo, exceto os métodos do cálculo diferencial. Newton e Leibniz, junto com eles, criaram realmente o cálculo diferen
cial como método prático do raciocínio matemático. Quando o século findou, a matemática, como instrumento de aplicação aos problemas físicos, estava bem estabelecida em algo de sua competência moderna. A matemática pura moderna, se excetuarmos a geometria, estava na infância, e não tinha dado sinais
do grande desenvolvimento que ia realizar no século XIX. Mas o físico matemático tinha aparecido, trazendo consigo a menta
lidade que ia governar o mundo científico no próximo século. Era para ser a era da "Análise Vitoriosa".
O século XVII tinha afinal produzido um esquema de pensamento científico, estruturado pelos matemáticos para o uso dos matemáticos. A grande característica da mentalidade
matemática é a sua capacidade para lidar com as abstrações e tirar esclarecedoras e demonstrativas seqüências de raciocínio,
inteiramente satisfatórias, na medida em que são as abstrações sobre as quais se deseja refletir. O enorme sucesso das abstrações cientificas, pondo-se em um lado a matéria com a sua Incalização simples no tempo e no espaço, e no outro a mente, que percebe, sofre e raciocina, mas não interfere, inseriu na filosofia a tarefa de aceitá-las como a mais concreta apresentação dos fatos.
Com isso, a filosofia moderna arruinou-se. Tem oscilado de maneira complexa entre três extremos. Há os dualistas, que
aceitam a matéria e o espirito em base igual, e as duas variedades de monistas, os que incluem o espírito na matéria e os que
incluem a matéria no espírito. Mas esse jogo com abstrações nunca pode superar a inerente confusão introduzida por se ter
adscrito a concreção deslncada ao esquema científico do século XVII.
176 I I .
,
I CAPiTULO IV I
O SÉCULO XVIII
Até o ponto em que o clima intelectual de duas épocas
pode ser contrastado, o século XVIII na Europa foi a completa antitese da Idade Média. O contraste é simbolizado pela diferença entre a catedral de Chartres e o salão de Paris, onde D'Alembert conversava com Voltaire. A Idade Média se deixava empolgar pelo desejo de racionalizar o infinito. Os homens do século XVIII racionalizaram a vida social da comunidade e basearam suas teorias sociológicas sobre um apelo aos fatos da natureza. O primeiro período foi a era da fé baseada na razão. No período seguinte não mexeram em casa de marimbondo: foi a era da razão baseada na fé. Exemplifico meu pensamento: Santo Anselmo ficaria aflito se não conseguisse um convincen
te argumento da existência de Deus, e sobre esse argumento assentou seu edifício da fé, ao passo que Hume baseou a sua
Dissertação sobre a história natural da religião sobre sua fé na ordem da natureza. Ao compararmos essas épocas, é bom lem
brar que a razão pode enganar-se e a fé pode colocar-se em
lugar que não é o seu. Em meu capítulo anterior, tracei a evolução, durante o
século XVII, do esquema das idéias científicas que dominaram
o pensamento de lá para cá. Ele envolve uma dualidade fundamental, tendo a "matéria" de um lado e o espírito do outro. Entre ambos encontram-se os conceitos de vida, organismo, função, realidade instantânea, interação, ordem da natureza, que
juntos formam o calcanhar-de-aquiles de todo o sistema.
L ___ _
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Também expresso a minha convicção de que, se desejamos obter uma expressão mais fundamental do caráter concreto do fato natural, o elemento desse esquema que por primeiro devemos criticar é o conceito de posição simples. Em vista, portanto, da importância que essa idéia ganhará nestes capitulos, repe
tirei o sentido que atribuí a essa expressão. Dizer que determinada matéria tem posição simples significa que, ao exprimir
as suas relações espaciotemporais, é adequado declarar que ela
está onde está, em uma definida e finita região do espaço, e por completo em uma definida e finita duração do tempo, à parte
de toda e qualquer referência essencial às relações dessa porção de matéria com outras regiões do espaço e durações do tempo. Por outro lado, esse conceito de posição simples é independente da controvérsia entre absolutistas e relativistas acerca do espaço ou do tempo. Desde que alguma teoria de espaço ou de tempo ofereça um significado quer absoluto, quer relativo, para a idéia de uma região definida de espaço e de uma duração definida de tempo, a idéia de posição simples terá um significado perfeitamente definido. Essa idéia é o verdadeiro fundamento do esquema da natureza do século XVII. Fora dela, o esquema é incapaz de expressão. Devo sustentar que, entre os elementos primários da natureza, como os apreendemos em nossa expe
riência imediata, não há nenhum elemento, seja qual for, que possua o caráter da posição simples. Daí não se segue, porém, que a ciência do século XVII esteja inteiramente errada. Sus
tento que, por um processo de abstração construtiva, podemos chegar a abstrações que são as partes da matéria posicionadas
de modo simples, e a outras abstrações que são o espirito im
plícito no esquema científico. De acordo com isso, O verdadeiro erro é um exemplo daquilo a que chamei de a "falácia da concreção deslocada".
A vantagem de restringir a atenção a um grupo definido de abstrações é restringir o pensamento a coisas claras e definidas, com relações claras e definidas. Assim, se você tiver aptidão lógica, poderá deduzir uma variedade de conclusões a respeito
I 78 I
l
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
das relações entre essas entidades abstratas. Além disso, se as abstrações forem bem fundadas, quer dizer, se não se afastarem de algo importante da experiência, o pensamento cientifico que se restringir a essas abstrações chegará a uma variedade de importantes verdades relativas à nossa experiência da natureza. Conhecemos todos aqueles destacados e agudos intelectos inamovivelmente fechados em uma dura concha de abstrações.
Eles sujeitam vocês às abstrações deles pelo puro controle da
personalidade. A desvantagem de dar atenção a um exclusivo grupo de
abstrações, por bem fundadas que sejam, reside no fato de que, conforme a natureza do caso, prescindimos das coisas restantes. À medida que as coisas excluidas tornam-se importantes em nossa experiência, nossos modos de pensamento passarão a ser inapropriados para ocupar-nos delas. Não podemos pensar sem abstrações; sendo assim, é da máxima importância manter-se vigilante em rever criticamente os "modos" de abstração. Aqui é que a filosofia encontra o lugar próprio como essencial ao sadio progresso da sociedade. É a crítica das abstrações. Uma civilização que não consegue romper com as abstrações correntes está condenada à esterilidade, depois de breve periodo de progresso.
Uma escola ativa de filosofia é exatamente tão importante para a locomoção das idéias como uma escola ativa de maquinistas
para a locomoção a combustivel. Algumas vezes acontece que o serviço prestado pela filo
sofia é inteiramente obscurecido pelo espantoso sucesso de um
esquema de abstrações em expressar os interesses dominantes de uma época. Foi exatamente o que aconteceu durante o sé
culo XVIII. Les philosophes não eram filósofos. Eram homens de gênio, de inteligência clara e aguda, que aplicaram o grupo
de abstrações científicas do século XVII à análise do universo ilimitado. O seu triunfo, no que concerne ao círculo de idéias que principalmente interessavam aos contemporâneos, foi extraordinário; tudo quanto não coubesse em seu esquema era omitido, ridicularizado e descrido. A sua aversão à arquitetura
179 I
,,~
1 ALFRED NORTH WHITEHEAD I
gótica simboliza a falta de simpatia pelas perspectivas obscuras. Era a época da razão, a razão sadia, varonil, firme; mas de um só olho, deficiente na sua visão da profundeza. Não podemos menosprezar o nosso débito de gratidão para com esses homens. Por mil anos a Europa foi vítima de intolerantes e intoleráveis visionários. O senso comum do século XVIII e a sua compreensão dos fatos óbvios do sofrimento humano e das exigências
óbvias da natureza humana atuaram sabre o mundo como uma
purificação moral. Deve-se creditar a Voltaire o ódio à injustiça, o ódio à crueldade, o ódio à repressão indébita, o ódio à trapaça. Além do mais, reconhecia esses males tão logo os via. Nessa virtude suprema, ele pertence tipicamente a seu século, no que este último tinha de melhor. Mas se nem só de pão vive o homem, muito menos só de desinfetantes. A época teve as Suas
limitações; não obstante, não podemos compreender como algumas de suas posições principais são ainda defendidas, espe
cialmente em escolas de ciência, a menos que façamos justiça a suas realizações positivas. O esquema de conceitos do século
XVII provou ser um perfeito instrumento de investigação. O triunfo do materialismo deu-se principalmente nas dên
cias da dinâmica, física e química racionais. No que diz respeito à dinâmica e à física, o progresso se dava em forma de desenvolvimentos diretos das principais idéias da época anterior. Nada de novo foi introduzido, mas houve um imenso desenvolvi
mento quanto aos detalhes. Casos especiais foram deslindados. Era como se o próprio céu estivesse sendo aberto, em um plano
predeterminado. Na segunda metade desse século, Lavoisier de
modo prático fundou a química em sua base atual. Introduziu nela o princípio de que nada se perde nem se cria em qual
quer transformação química. Foi esse o último sucesso do pensamento materialista, que acabou por não se mostrar de dois gumes. A ciência química agora só esperava pela teoria atômica, no século seguinte.
Nesse século, a noção de explicação mecânica de todos os processos da natureza finalmente se solidificou em dogma
1 80 I
l
I A CIt:NClA E o MUNDO MODERNO I
de ciência. A noção alcançou completamente o seu mérito em razão de uma quase miraculosa série de triunfos levados a cabo por físicos matemáticos, os quais culminaram na Mecânica ana~ lírica de Lagrange, que foi publicada em 1787. Os Principia de Newton foram publicados em 1687, de modo que exatamente cem anos separam os dois grandes livros. Esse século contém o primeiro período da física matemática de tipo moderno. A
publicação de Eletricidade e magnetismo, de Clerk Maxwell, em 1873, marca o encerramento do segundo periodo. Cada um desses três livros introduziu novos horizontes de pensamento
que afetaram tudo quanto veio deppis deles. Considerando os vários pontos para os quais a humanida
de inclinou o seu pensamento sistemático, é impossível não se impressionar com a distribuição desigual de habilidade entre os diferentes domínios. Em quase todos os assuntos, há alguns nomes que se impõem, pois é preciso genialidade para criar uma matéria que constitua um novo assunto para o pensamento. Mas, no caso de muitos pontos, após um bom início, muito importante para a sua circunstância imediata, o desenvolvi~ mento posterior aparece como lamentável série de apalpadelas, de modo que o conjunto do assunto perde gradualmente seu poder na evolução do pensamento. Aconteceu exatamente o oposto com a física matemática. Quanto mais se estuda esse
assunto, tanto mais se sente maravilhado com os quase incríveis triunfos que ela apresenta. Os grandes físicos matemáticos do
século XVIII e dos primeiros anos do século XIX, a maioria deles franceses, são um bom exemplo: Maupertuis, Clairaut,
D' Alembert, Lagrange, Laplace, Fourier, Carnot formam uma
série de nomes tais que cada um nos lembra alguma realização de primeira ordem. Quando Carlyle, como arauto da subseqüente era romântica, escamecedoramente chama esse período de "época da análise vitoriosa" e zomba de Maupertuis, chamando-o de "magnifico cavalheiro de peruca branca", apenas mostra o ponto de vista estreito dos românticos, de quem ele é
porta-voz.
I 81 I
··'·"''';.:i
I ALFRED NORTH WHlTEHEAD I
É impossível descrever de maneira inteligível e sem termos técnicos os detalhes do progresso feito por essa escola. Esforçar-me-ei, contudo, por explicar o ponto principal de uma realização conjunta de Maupertuis e Lagrange. Seus resultados, em conexão com alguns métodos matemáticos subseqüentes devidos a dois grandes matemáticos alemães da primeira metade do século XIX, Gauss e Riemann, mostraram ser o trabalho
preparatório necessário às novas idéias que Hertz e Einstein introduziram na física matemática. Também inspiraram algumas
das melhores idéias do trabalho de Clerk Maxwell já mencionado neste capítulo.
Eles intencionaram descobrir algo mais fundamental e mais geral do que as leis de Newton sobre o movimento discutidas no capítulo anterior. Queriam encontrar algumas idéias mais amplas, e no caso de Lagrange alguns meios mais gerais da exposição matemática. Era uma empresa ambiciosa, e alcançaram completo êxito. Maupertuis viveu na primeira metade do século XVIII, e a vida ativa de Lagrange está na segunda metade. Encontra-se em Maupertuis uma colaboração da idade teológica que precedeu o seu nascimento. Começou com a
idéia de que o caminho inteiro de uma partícula material entre quaisquer limites de tempo deve realizar alguma perfeição digna da providência divina. Há dois pontos de interesse nesse princípio motor. Em primeiro lugar, ilustra a tese na qual insisti
em meu primeiro capítulo segundo a qual o modo como a Igreja medieval imprimira na Europa a noção da partícular providên
cia de um Deus racional e pessoal é um dos fatores pelo qual se gerou a fé na ordem da natureza. Em segundo lugar, embora
hoje todos estejamos convencidos de que semelhante modo de pensar não tem nenhuma aplicação direta na detalhada investi
gação cientifica, o sucesso de Maupertuis nesse caso partícular mostra que qualquer idéia que nos desvia da abstração corrente pode ser melhor do que nada. No caso presente, o que a idéia em questão fez para Maupertuis foi levá-lo a inquirir qual a propriedade do caminho COmo um todo que pode ser deduzida
I 82 I l'
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
das leis de Newton sobre o movimento. Sem dúvida, esse é um processo sensato, não obstante as noções teológicas. Também sua idéia geral levou-o a conceber que a propriedade achada seria uma soma quantitativa, de tal sorte que qualquer desvio do caminho o aumentaria. Nesse pressuposto, generalizou
a primeira lei do movimento de Newton. É que uma partícula isolada toma o caminho mais curto com a mesma velocidade. ,',
Assim, Maupertuis conjecturou que uma partícula que atraves-
sa um campo de forças realizaria o menor conjunto possível de quantidades. Descobriu essa quantidade e denominou-a ação
integral entre os limites de tempo considerados. Em linguagem moderna, é a soma de breves lapsos de tempo sucessivos da diferença entre as energias cinéticas e potenciais da partícula em cada instante sucessivo. Essa ação, por conseguinte, relaciona-se com o intercâmbio entre a energia deflagrada pelo movimento e a energia desencadeada pela posição. Maupertuis tinha descoberto o famoso teorema da menor ação. Maupertuis não era propriamente de primeiro plano em comparação com um homem como Lagrange. Nas suas mãos e nas dos seus imediatos sucessores, o seu princípio não assumiu nenhuma importância
dominante. Lagrange apresentou a mesma questão em base mais ampla, de modo a tomar a sua resposta relevante para o processo real no desenvolvimento da dinâmica. O seu "princípio do trabalho virtual" aplicado aos sistemas em movimento é efetivamente o princípio de Maupertuis concebido como apli
cado em cada instante do caminho do sistema. Mas Lagrange
viu mais longe que Maupertuis. Percebeu que tinha alcançado um método para afirmações dinâmicas de uma maneira per
feitamente indiferente aos métodos particulares de medição empregados em fixar a posição das várias partes do sistema. De acordo com isso, continuou a deduzir equações de movimento igualmente aplicáveis, quaisquer que fossem as medidas quantitativas que se fizessem, contanto que fossem adequadas a posições fixas. A beleza e a quase divina simplicidade dessas equações é tal que essas fórmulas são dignas de se equipararem
183 I
I ALFRED NORTH WHlTEHEAD I
àqueles símbolos misteriosos que em tempos antigos eram empregados diretamente para indicar a Suprema Razão na base de todas as coisas. Mais tarde Hertz - descobridor das ondas eletromagnéticas - baseou a mecânica na idéia de todas as partículas atravessarem o caminho mais curto que se lhes abre sob as circunstâncias que constrangem o seu movimento; e finalmente Einstein, mediante o uso das teorias geométricas de
Gauss e Riemann, mostrou que essas circunstâncias poderiam ser construidas Como inerentes ao caráter do próprio espaçotempo. Eis, em linhas muito gerais, a história da dinâmica de Galileu a Einstein.
Entrementes, Galvani e Volta faziam os seus descobrimentos elétricos; e as ciências biológicas lentamente colhiam os seus materiais, mas ainda esperavam por idéias dominantes. Também a psicologia começava a desvencilhar-se da sua dependência da filosofia geral. Esse crescimento independente da psicologia foi o último resultado da sua reivindicação por John Locke como uma crítica aos abusos metafísicos. Todas as
ciências que lidam COm a vida estavam ainda em estado elementar de observação, no qual predominavam a classificação e a descrição diretas. Até esse ponto o esquema das abstrações era adequado à circunstância.
No domínio da prática, não se pode dizer que a época que produziu governantes ilustrados - como o imperador
José, da Casa de Habsburgo, Frederico, o Grande, Walpole, o grande conde De Chatham, George Washington - fracassou.
Principalmente quando a esses governantes acrescentamos a criação do governo parlamentar na Inglaterra, do governo federal e presidencial dos Estados Unidos, e dos princípios humanitários da Revolução Francesa. Também na técnica o século produziu a máquina a vapor, e com isso abriu uma nova era à civilização. Sem dúvida, como época prática, o século XVIII foi um sucesso. Se perguntássemos a um dos mais sábios e típicos dos seus antepassados que apenas viu o seu começo, John Locke, o que esperava deles, dificilmente teria
184 1
I A Clt:NCIA E o MUNDO MODERNO I
depositado esperanças em nível mais alto que suas efetivas realizações alcançaram.
Ao desenvolver uma crítica do esquema cientifico do século XVIII, devo primeiro dar a minha principal razão de não considerar o idealismo do século XIX - falo do idealismo filo
sófico que encontra a razão última da realidade na capacidade intelectiva, a qual é totalmente cognitiva. A corrente idealista,
até aqui desenvolvida, tem-se divorciado da observação cientí
fica. Absorveu em sua integridade o esquema cientifico como sendo ele a única versão dos fatos da natureza e então o expli
cou como uma idéia dentro da mentalidade fundamental. No caso do idealismo absoluto, o mundo da natureza é exatamente o das idéias, diferenciando de algum modo a unidade do Absoluto. No caso do idealismo pluralistico que envolve mentalidades monadárias, esse mundo é a maior medida comum das várias idéias que diferenciam as várias unidades mentais das várias mônadas. Mas, como quer que seja, é patente que essas escolas idealistas não conseguiram correlacionar, de modo orgânico, o fato da natureza com a sua filosofia idealista. No referente ao que afirmo nestes capítulos, a nossa visão fundamentai pode ser realista ou idealista. Destaco a necessidade de
um estágio mais avançado de um realismo provisório no qual o esquema científico seja remodelado e fundado com base no conceito fundamental de organismo.
Em linhas gerais, meu procedimento começaria da análise do status do espaço e do tempo, ou, em linguagem moderna, do
status do espaço-tempo. Há duas propriedades de cada um de
les. As coisas são separadas tanto pelo espaço como pelo tempo, mas também são reunidas tanto no espaço como no tempo, mesmo que não sejam contemporâneas. Chamarei a essas propriedades de propriedades "separativa" e "preensiva" do espaçotempo. Há ainda uma terceira propriedade do espaço-tempo. Todas as coisas que estão no espaço recebem uma limitação definida de alguma espécie, de modo que em certo sentido têm tão-só a forma que têm, e não outra, e também em certo sen-
1851
''-V'".'" .
I AURED NORTH WHITEHEAD I
tido estão tão-só naquele lugar, e não em outro. Analogamente
quanto ao tempo, uma coisa permanece durante um período e não durante outro. Chamarei a isso a propriedade "modal" do
espaço-tempo. É evidente que a propriedade modal tomada em si dá origem à idéia de posição simples. Mas pode ser correlacionada com a propriedade separativa e com apreensiva.
Por simplicidade de pensamento, falarei primeiro apenas
do espaço, e depois estenderei o mesmo tratamento ao tempo. O volume é o mais concreto elemento do espaço. Mas a
propriedade separativa do espaço reparte o volume em subvolumes, e assim por diante indefinidamente. Assim, tomando a propriedade separativa isoladamente, concluiremos que o volume é uma mera multiplicidade de elementos não volumosos, de pontos, para ser mais preciso. Mas é a unidade do volume
que é o produto final da experiência, por exemplo, o espaço volumoso de um recinto. Tal recinto, como simples multiplicidade de pontos, é uma construção da imaginação lógica.
Assim, o primeiro fato é a unidade preensiva do volume, e essa unidade é mitigada ou limitada pelas unidades separadas das inumeráveis partes contidas. Temos uma unidade preensiva, que é contudo tomada à parte como um agregado de partes controladas. Mas a unidade preensiva do volume não é um mero agregado lógico de partes. As partes formam um agregado
ordenado no sentido de que cada parte é alguma coisa do ponto de vista de todas as outras partes, e também do mesmo ponto
de vista todas as demais partes são alguma coisa em relação a ela. Assim, se A, B e C são volumes de espaço, B tem um as
pecto do ponto de vista de A, e assim também C, e da mesma
forma acontece com a relação entre B e C. Esse aspecto de B partindo de A é a essência de A. Os volumes de espaço não
têm existência independente. São apenas entidades dentro da totalidade; não podemos extraí-las daquilo que as cerca sem a destruição de sua verdadeira essência. De acordo com isso, digo que o aspecto de B partindo de A é o modo como B entra na composição de A. Essa é a propriedade modal do espaço, na
1 86 I
I A CI~NC1A E o MUNDO MODERNO I
medida em que a unidade preensiva de A é a preensão dentro da unidade de aspectos de todos os demais volumes do ponto de vista de A. A forma de um volume é a fórmula da qual pode ser derivada a totalidade desses aspectos. Assim, a forma de um volume é mais abstrata do que os seus aspectos. É evidente que posso usar a linguagem de Leibniz e dizer que todo volume
reflete em si todos os demais volumes no espaço.
Exatamente as mesmas considerações cabem nos aspectos das durações no tempo. Um instante de tempo sem duração
é uma construção lógica imaginativa. Assim, cada duração de
tempo reflete em si todas as durações do tempo. Mas de dois modos introduzi uma falsa simplicidade. Em
primeiro lugar, deveria ter conjugado espaço e tempo, e conduzido a minha exposição a respeito de regiões quadridimensio
nais do espaço-tempo. Não tenho nada a acrescentar ao modo de explanação. Substituam na mente de vocês os volumes espaciais das explicações anteriores pelas regiões quadridimen
sionais. Em segundo lugar, a minha explanação entrou em um cir
culo vicioso, pois fiz a unidade preensiva da região A consistir na unificação preensiva das presenças modais em A de outras regiões. Surge essa dificuldade porque o espaço-tempo não
pode na realidade ser considerado como entidade subsistente por si. Ela é uma abstração, e sua explicação exige referência àquela da qual foi extraida. Espaço-tempo é a especificação de
certas propriedades gerais de acontecimentos e de sua mútua ordenação. Esse recurso ao fato concreto faz-me voltar ao sécu
lo XVIII, e na verdade a Francis Bacon no século XVII. Temos
de considerar o desenvolvimento durante essas épocas da criti
ca ao esquema cientifico dominante. Nenhuma época é homogênea; qualquer que seja a nota
dominante apontada em um período considerado, será sempre possível produzir homens, e grandes homens, pertencentes ao mesmo tempo, que se apresentam em antagonismo com o tom da sua época. Tal é certamente o caso do século XVIII. Por
1 87 1
"":~-;:;.
~-~-'-"'~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
exemplo, os nomes de John Wesley e de Rousseau devem ter ocorrido a vocês quando eu estava esboçando o caráter desse tempo. Mas não quero falar deles ou de outros. O homem
cujas idéias devo considerar até certo ponto é o bispo Berkeley. Exatamente no começo dessa época, ele fez as críticas certeiras, pelo menos em princípio. Seria inverdade dizer que não produziu nenhum efeito. Era um homem famoso. A esposa de
Jorge 11 foi uma das poucas rainhas que, entre todos os países, foi suficientemente inteligente e sábia para judiciosamente patrocinar o saber; por isso, Berkeley foi feito bispo, em tempos
em que os bispos na Grã-Bretanha eram relativamente muito mais grandes homens do que agora. Também, algo que é mais importante do que esse bispado, Hume o estudou e desenvolveu um aspecto de sua filosofia de um modo que talvez tivesse preocupado o espírito do grande eclesiástico. Depois Kant analisou Hume. Assim, dizer que Berkeley não teve influência nesse século seria certamente absurdo. Mas, mesmo assim, deixou de afetar a principal corrente do pensamento científico. Tudo se passou como se ele nunca tivesse escrito. Seu sucesso geral tornou-o impenetrável à crítica, então e posteriormente. O
mundo da ciência sempre permaneceu perfeitamente satisfeito com as suas abstrações peculiares. Elas funcionam e isso basta para o ambiente cientifico.
O ponto que temos presente é que essa esfera científica do pensamento é agora, no século XX, demasiado estreita para os fatos concretos que tem diante de si para análise. Isso é verda
de certamente em física, e é mais especialmente relevante nas
ciências biológicas. Assim, para compreender as dificuldades do pensamento científico moderno, e também as suas reações so
bre o mundo atual, devíamos ter em mente alguma concepção de uma esfera de abstração mais ampla, uma análise mais concreta, que ficará mais próxima da completa concreção da nossa experiência intuitiva. Tal análise acharia em si mesma uma colocação para os conceitos de matéria e espírito, como abstrações em cujos termos algumas das nossas experiências físicas podem
188 I
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
ser interpretadas. É na busca dessa base mais ampla para o pensamento científico que Berkeley é tão importante. Lançou a sua crítica pouco depois que as escolas de Newton e Locke
tinham completado o seu trabalho, e indicou com exatidão os pontos fracos que ambos haviam deixado. Não me proponho a
considerar nem o idealismo subjetivo que dele derivou nem as escolas de desenvolvimento que mostram descender de Hume
e Kant respectivamente. Meu foco será o de que - seja qual
for a metafísica final que adotarmos - há outra linha de desenvolvimento baseada em Berkeley, apontando para a análise por
que procuramos. Berkeley não tomou conhecimento disso, em parte por causa do demasiado intelectualismo dos filósofos, em parte por causa de sua pressa em recorrer a um idealismo cuja objetividade estivesse baseada no espírito de Deus. Vocês devem lembrar que já afirmei que a chave do problema reside na noção de posição simples. Berkeley, efetivamente, criticou essa noção. Também levantou a seguinte questão: Que entendemos por coisas que se realizam no mundo da natureza?
Nas seções 23 e 24 dos seus Princípios do entendimento humano, deu resposta a essa última pergunta. Citarei algumas
frases tiradas dessas seções:
23. Mas, dirão, nada mais fácil para mim do que imaginar
árvores em um parque ou livros em uma estante, sem alguém
por perto para os perceber. Respondo, de fato podem, não
há nisso nenhuma dificuldade; mas o que é isso, pergunto
eu, senão a concepção em sua mente de certas idéias a que
chamam livros e árvores, e ao mesmo tempo a omissão em
conceber a idéia de alguém que possa percebê-los?
Quando fazemos o possível para conceber a existência de
corpos exteriores, estamos durante esse tempo contemplan
do tão-somente as nossas pr6prias idéias. Mas a mente,
"sem tomar conhecimento" de si mesma, é iludida a pensar
que pode e de fato concebe os corpos existentes sem serem
pensados ou fora da mente, embora sejam simultaneamen
te apreensíveis ou existentes por ela mesma [ ... J.
I 89 I
.;'~.r;:;,;
I ALFRED NORTH WHlTEHEAD I
24. É evidente, ao mais rápido exame do nosso pensamento,
saber se é possível a nós entender o que significa a "existência
absoluta dos objetos sensíveis por si mesmos, ou sem a men
te". Para mim é evidente que essas palavras ou indicam uma
contradição direta, ou nada mais [ ... ].
Ademais, há uma nova passagem notável da seção 10, do quarto diálogo de A/cifriio de Berkeley. Já a citei largamente em
meus Principies of Natural Knowledge:
Eufrânor: Diga-me, Alcifrão, você pode distinguir as portas, as
janelas e as ameias desse mesmo castelo?
A/cifrão: Não posso. A essa distância, ele parece apenas uma
pequena torre redonda.
Eufrânor: Mas eu, que estive nele, sei que é não uma pequena
torre redonda, mas um grande edificio quadrado com ameias
e torreões que, ao que parece, você não vê.
A/cifrão: Que você conclui disso?
Eufrânor: Concluo que o verdadeiro objeto que própria e es
tritamente você percebe pela vista não é aquilo que está a
alguns quilômetros de distância.
A/cifrão: E por quê?
Eufrânor: Porque um pequeno objeto redondo é uma coisa, e
um grande objeto quadrado é outra. Não é verdade? ..
Alguns exemplos semelhantes referentes a um planeta e
a uma nuvem são depois citados no diálogo, e essa passagem fina1mente termina assim:
Eufrânor: Não é evidente, portanto, nem que o castelo ou o
planeta, nem que a nuvem "que você vê aqui" sejam realmen
te aqueles que você supõe existir a distância?
Torna-se explícito, na primeira passagem já citada, que o próprio Berkeley adota interpretação idealista extremada. Para ele, o espírito é a única realidade absoluta, e a unidade da natureza é a unidade das idéias na mente de Deus. Pessoalmente penso que a solução que Berkeley deu ao problema metafisi-
I 90 I
I A CI~NC!A E o MUNDO MODERNO I
co levanta dificuldades não menores que as apontadas por ele como resultantes da interpretação realística do esquema científico. Há, contudo, outra possível linha de pensamento que nos habilita a adotar de qualquer modo atitude de realismo provisório e a alargar o esquema cientifico de modo que seja útil
para a própria ciência. Retorno à passagem da História natural de Francis Bacon
já citada no capitulo anterior:
É certo que todos os corpos, sejam quais forem, embora não
tenham sentido, têm percepção [ ... ]; e tanto se o corpo é al
terador como se é alterado, sempre uma percepção precede
a operação; pois, senão, todos os corpos poderiam ser iguais
entre si [ ... ].
Também no capitulo anterior expliquei a "percepção" (conforme Bacon a entende), com a significação de "tomar conhecimento do" caráter essencial da coisa percebida, e expliquei os "sentidos" como "cognição". Certamente temos de tomar conhecimento das coisas das quais no momento não temos
nenhuma cognição determinada. Podemos até ter uma memória cognitiva da tomada de conhecimento, sem ter tido uma cognição contemporânea. Também, conforme indica Bacon em sua afirmação - "[ ... ] pois, senão, todos os corpos poderiam ser iguais entre si" -, é evidentemente algum elemento do caráter
essencial do qual tomamos conhecimento, isto é, alguma coisa sobre a qual se funda a diversidade, e não apenas a simples
diversidade lógica. A palavra "perceber" é, no uso comum, perpassada por
completo pela noção de apreensão cognitiva. O mesmo acon
tece com a palavra "apreensão", mesmo com a omissão do adjetivo cognitiva. Usarei a palavra "preensão" para a apreensão não
cognitiva: com isso entendo "apreensão" que pode ou não ser cognitiva. Tomemos agora a última observação de Eufrânor:
"Não é evidente, portanto, nem que o castelo ou o planeta, nem que a nuvem, que você vê aqui, sejam realmente aqueles
I 91 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
que você supõe existir a distância?". Assim, há uma preensão, aqui neste lugar; de coisas que têm referência a outros lugares.
Voltemos agora às afirmações de Berkeley extraídas de seus Princípios do entendimento humano. Ele sustenta que o que constitui a compreensão das entidades naturais é o ser percebido na unidade da mente.
Podemos substituir o conceito, de modo que o reconhecimento seja o ato de recolher as coisas na unidade da preensão; e de modo que o que está sendo, portanto, reconhecido seja a preensão, e não as coisas. Essa unidade de preensão define-se Como um aqui e um agora, e as coisas assim reunidas na unidade considerada têm referências essenciais a outros lugares e a outros tempos. Substituo a mente de Berkeley por um processo de unificação preensiva. Com o fim de tomar inteligivel esse conceito do reconhecimento progressivo das ocorrências naturais, exige-se considerável desenvolvimento e confrontação com as suas implicações reais em termos de experiência concreta. Será essa a tarefa dos capítulos seguintes. Em primeiro lugar, notem que a noção de posição simples desapareceu. As coisas que apanhamos em uma unidade reconhecida, aqui e agora, não são o castelo, a nuvem, nem o planeta do ponto de vista, em espaço e tempo, da unificação preensiva. Em outras palavras, é a perspectiva do castelo ali do ponto de vista da unificação aqui. São, portanto, aspectos do castelo, da nuvem, do
planeta, que apanhamos em unidade aqui. Vocês devem estar
lembrados de que a idéia de perspectiva é deveras habitual em filosofia. Foi introduzida por Leibniz, na noção de suas môna
das que espelham perspectivas do universo. Faço uso da mesma noção, só que estou pondo suas mônadas em consonância com os acontecimentos unificados no espaço e no tempo. Em alguns aspectos, há uma grande analogia Com os modos de Spinoza; esse é o motivo pelo qual usei os termos "modo" e "modal". Na analogia com Spinoza, sua substância una é para mim sua atividade básica una da compreensão, individualizandCl-se em uma interdependente pluralidade de modos. Assim, o fato concreto
I 92 I
1 A CI~NClA E o MUNDO MODERNO 1
é processo. Sua análise primária está na atividade fundamental da preensão e nos acontecimentos reconhecidos e preensivos. Cada acontecimento é um fato individual resultante de uma individualização da atividade subjacente. Mas individualização não significa independência substancial.
Uma entidade da qual tomamos consciência na percepção dos sentidos é o ponto final do nosso ato de percepção.
Denominaremos essa entidade de um "objeto dos sentidos".
Por exemplo, o verde de tonalidade definida é um objeto dos sentidos; assim é um som de qualidade e altura definidas, e as
sim um cheiro definido e uma qualidade definida de impressão tátil. O modo como tal entidade é relacionada ao espaço durante um lapso definido de tempo é complexo. Direi que um objeto dos sentidos tem "ingresso" no espaço-tempo. A percepção cognitiva de um objeto dos sentidos é a advertência da unidade preensiva (em um ponto de vista A) de vários modos de vários objetos dos sentidos, até mesmo o objeto dos sentidos em questão. O ponto de vista A é naturalmente uma região de espaço-tempo, ou seja, um volume de espaço ao longo de uma
duração de tempo. Mas, como entidade, esse ponto de vista é uma unidade de experiência realizada. Um modo de objeto dos sentidos em A (abstraído do objeto dos sentidos cuja relação para com A o modo está condicionado) é o aspecto que se tem
de A de alguma outra região B. Assim, o objeto dos sentidos está presente em A com o modo de localização em B. Por isso,
se o verde é o objeto dos sentidos em questão, o verde não está simplesmente em A, onde está sendo percebido, nem está'
simplesmente em B, onde se percebe como localizado, mas está
presente em A com o modo de localização em B. Não há nisso nenhum mistério especial. Só temos de olhar em um espelho e ver nele a imagem de algumas folhas verdes que estão atrás de nós. Para vocês, A será verde: mas o verde não está somente em A, onde vocês se encontram. O verde de A será verde com o modo de ser localizado na imagem da folha no espelho. Agora voltem e olhem para a folha. Vocês estarão agora percebendo
193 I
": 'f ':<'
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
o verde do mesmo modo como o viram antes, com a diferença de que agora o verde tem o modo de ser localizado na folha real. Descrevo simplesmente o que de fato percebemos: somos
advertidos pelo verde como sendo um elemento na unificação preensiva dos objetos dos sentidos, tendo cada objeto dos sentidos, e entre eles o verde, seu modo determinado expressável como localização em qualquer parte. Há vários tipos de loca
lização moda!. Por exemplo, o som é volumoso: enche todo
um recinto, e o mesmo acontece algumas vezes com uma cor
difusa. Mas a localização modal de uma cor pode ser a de estar no limite extremo do volume, como, por exemplo, as cores das paredes de uma sala. Assim primariamente o espaço-tempo é
O locus da introdução modal dos objetos dos sentidos. Essa é a razão por que espaço e tempo (se para simplificar os separarmos) são dados em sua integridade, porque cada volume de espaço e cada lapso de tempo inclui na sua essência aspectos
de todos os volumes de espaço ou de todos os lapsos de tempo. As dificuldades da filosofia a respeito do espaço e do tempo fundam-se no equívoco de os considerar como primariamente os loei das localizações simples. A percepção é simplesmente a cognição da unificação preensiva, ou, em resumo, a percepção é a cognição da preensão. O mundo real é um desdobramento de várias preensões: e a "preensão" é uma "circunstância preen
siva"; e a circunstância preensiva é a mais concreta entidade finita, concebida como o que é em si por si, e não do ponto de
vista do seu aspecto na essência de outra circunstância semelhante. Pode-se afirmar que a unificação preensiva tem posição
simples em seu volume A. Mas isso seria mera tautologia, pois
o espaço e o tempo são simples abstrações da totalidade das unificações preensivas mutuamente uniformizadas. Assim uma preensão tem posição simples no volume A do mesmo modo que a face humana condiz COm o sorriso que a ilumina. Há, até onde podemos chegar, mais sentido em dizer que um ato de percepção tem posição simples, pois podemos concebê-lo como estando simplesmente na preensão em cognição.
194 1
I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I
Na natureza há mais entidades que os meros objetos dos
sentidos, nessas mesmas condições. Mas, levando em conta a necessidade de revisão conseqüente de um ponto de vista mais concreto, podemos esboçar a nossa resposta à pergunta de Berkeley sobre o caráter da realidade que se deve apontar à
natureza. Segundo ele, é a realidade das idéias na mente. Uma metafísica completa que atingisse alguma noção de mente ou
alguma noção de idéia poderia talvez adotar finalmente essa
concepção. É desnecessário ao propósito deste capitulo propor essa questão fundamental. Podemos contentar-nos com um
realismo provisório no qual a natureza é concebida como um complexo de unificações preensivas. O espaço e O tempo apresentam o esquema geral de relações interdependentes dessas preensões. Não podemos arrancar nenhuma delas de seu contexto. Ainda assim, cada uma delas, em seu contexto, tem toda a realidade que se prende à totalidade do complexo. Contraria
mente, a totalidade tem a mesma realidade de cada preensão, pois cada preensão unifica as modalidades a serem atribuídas, do seu ponto de vista, a todas as partes da totalidade. A preen
são é um processo de unificação. Por conseguinte, a natureza é um processo de desenvolvimento expansivo, necessariamente transicional de preensão a preensão. O que é realizado é, portanto, ultrapassado, mas é também retido graças a aspectos seus
presentes nas preensões que permanecem além dele. Assim, a natureza é uma estrutura de processos evoluti
vos. A realidade é o processo. É tolice perguntar se a cor vermelha é real. A cor vermelha é um ingrediente no processo da
realização. As realidades da natureza são preensões na natureza,
ou seja, os acontecimentos da natureza. Agora que removemos do espaço e do tempo a tintura
da posição simples, podemos abandonar parcialmente o inadequado termo preensão. Introduziu-se esse termo para significar a unidade essencial de um acontecimento, isto é, o acontecimento como uma só entidade, e não corno mero conjunto de partes ou de ingredientes. Faz-se necessário compreender que
1 95 1
'7:":,\:;.1"
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
espaço-tempo não é senão um sistema de reunir conjuntos em unidades. Mas a palavra "acontecimento" significa uma dessas unidades espaciotemporais. Por conseqüência, pode ser usada em lugar do termo "preensão" significando a coisa preendida.
Um acontecimento tem contemporâneos. Isso significa
que reflete em si os modos dos seus contemporâneos como um arranjo de realização imediata. O acontecimento tem um
passado. Isso significa que reflete em si os modos dos seus predecessores, como lembranças que se fundiram no próprio con
teúdo dele. O acontecimento tem um futuro. Isso significa que reflete em si aspectos como os que o futuro lança de volta ao presente ou, em outros termos, como o presente determinou o que concerne ao futuro. Assim o acontecimento tem antecipação:
A alma profética
Do vasto mundo sonhando com coisas por vir. [cviiJ
Essas conclusões são essenciais a qualquer forma de rea
lismo. É que há no mundo, para nossa cognição, lembrança do passado, imediatismo da realização e indicação do porvir.
Nesse esboço de análise mais concreta que a do esquema científico do pensamento, parti do nosso próprio campo psicológico, já que significa a nossa cognição. Eu o tomo como aquilo que ele reclama ser: o autoconhecimento do nosso acon
tecimento corpóreo. Refiro-me ao acontecimento, e não à inspeção dos detalhes do corpo. Esse autoconhecimento revela,
para além de si mesmo, uma unificação preensiva de presenças
modais de entidades. Generalizo pelo uso do principio de que esse acontecimento total e corpóreo está no mesmo nível de
todos os demais acontecimentos, salvo uma inusitada complexidade e estabilidade de padrão inerente. A força da teoria do mecanismo materialístico foi a exigência de que nenhuma interrupção arbitrária fosse introduzida na natureza, a qual viesse agravar uma quebra da explicação. Aceito esse princípio. Mas, se partirmos do fato imediato de nossa experiência psicológi-
1 96 I
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO \
ca, tão seguramente como os empiristas deviam fazer, seremos logo levados à concepção orgânica da natureza cuja descrição
foi começada neste capítulo. O defeito cientifico do século XVIII foi não cuidar de
nenhum dos elementos que compõem as experiências psicoló
gicas imediatas da humanidade. Nem cuidar de nenhum traço elementar da unidade orgânica de um todo, dos quais podem
surgir as unidades orgânicas de elétrons, prótons, moléculas e
corpos animados. De acordo com esse esquema, na natureza das coisas não há razão para porções da matéria terem relações
físicas umas com as outras. Concedamos que não se pode ter esperança de que seja necessário discernir as leis da natureza. Mas podemos esperar ver que é necessário haver uma ordem da natureza. O conceito de ordem da natureza está em ligação estreita com o conceíto da natureza como o locus do organismo
em processo de desenvolvimento.
Nota: Em relação à última parte deste capítulo, é interessante
um trecho de Descartes de Resposta a objeções ["·l contra "Medi
tações"; "Portanto, a idéia de sol poderá ser o próprio sol exis
tente na mente, não propriamente de maneira formal como
existe no céu, mas objetivamente, isto é, do modo como ob
jetos costumam existir na mente; e esse modo de ser é ver
dadeiramente muito menoS perfeito do 'lue a'luele em que
as coisas existem fora da mente, mas não é por esse motivo
mero nada, como já disse" (Resposta a objeções I, trad. Haldane
and Ross, v. 11, p. 10). Acho dificuldade em reconciliar essa
teoria das idéias (com a 'lual concordo) com outras partes
da filosofia cartesiana.
197 I
I CAPITULO V I
A REAÇÃO ROMÂNTICA
Meu último capítulo descreveu a influência sobre o século XVIII do estrito e eficiente esquema dos conceitos cientificos que lhe foram legados pelo século anterior. Esse esquema era o produto da mentalidade que achava a filosofia agostiniana extremamente simpática. O calvinismo protestante e
o jansenismo católico apresentavam o homem como incapaz de cooperar com a Graça Irresistível; o esquema da ciência de então apresentava o homem como incapaz de cooperar com o
irresistível mecanismo da natureza. O mecanismo de Deus e o
mecanismo da matéria eram os imponentes resultados da limitada metafísica e da clara inteligência lógica. Também o século XVII foi genial e purificou o mundo do pensamento confuso. O século XVIII continuou o trabalho de limpeza, com impla
cável eficiência. O esquema cientifico durou mais tempo que o esquema teológico. Depressa a humanidade perdeu o inte
resse pela Graça Irresistivel, mas logo apreciou o competente mecanismo devido à ciência. Também no primeiro quartel do
século XVIII George Berkeley lançou a sua critica filosófica contra toda a base do sistema. Não conseguiu interromper a
corrente dominante do pensamento. No último capítulo desenvolvi uma linha paralela de argumento que conduziria a um sistema de pensamento que baseia a natureza sobre o conceito de organismo, e não sobre o conceito de matéria. No presente capítulo proponho, em primeiro lugar, considerar como o pensamento erudito concreto dos homens concebeu essa oposição
I 99 I
"""lf
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
do mecanismo e do organismo. É na literatura que a observação concreta da humanidade recebe a sua expressão. Sendo assim, é para a literatura que devemos olhar, especialmente em suas formas mais concretas - a poesia e o teatro - se esperamos descobrir os pensamentos íntimos de uma geração.
Rapidamente verificamos que os povos ocidentais apresentam, em colossal escala, uma peculiaridade que comumente
se supõe característica especial dos chineses. Todo mundo se
surpreende de que o chinês possa ser de duas religiões: confucionista em algumas ocasiões e budistas em outras. Se isso é
verdade quanto à China, não sei; também ignoro se, na verdade, essas duas atitudes são realmente incompatíveis. Mas não pode haver dúvida de que fato análogo é verdadeiro em relação ao Ocidente, e que as duas atitudes em questão são incompativeis. Um realismo científico baseado no mecanismo conjuga-se com uma crença estável no mundo dos homens e dos animais superiores como constituídos de organismos auto determinados. Essa incompatibilidade radical na base do pensamento moderno responde em grande parte pelo que há de dúbio e instável em nossa civilização. Seria ir muito longe afirmar que isso desvia o
pensamento. Enfraquece-o, em razão da inconsistência que se espreita ao fundo. Depois, o homem da Idade Média andava no encalço de uma excelência cuja existência quase esquecemos. Estabelecia para si o ideal de atingir uma harmonia de inteli
gência. Contentamo-nos com ordenações superficiais de vários e arbitrários pontos de partida. Por exemplo, as empresas leva
das a cabo pela energia individualista dos povos europeus pres
supõem ações físicas dirigidas para causas finais. Mas a ciência empregada no seu desenvolvimento é baseada em uma filosofia
que assevera que a casualidade física é suprema e que separa a causa física da causa final. Não é vulgar insistir na conseqüente contradição absoluta. Tal é o fato, por mais que tentemos dissimulá-lo com frases. Naturalmente encontramos no século XVIII o famoso argumento de Paley segundo o qual o organismo supõe um Deus, autor da natureza. Mas, mesmo antes de
1100 1 I , . I 1
I A CIÊNCIA E o MUNDO MODERNO I
Paley apresentar o seu argumento na forma definitiva, Hume tinha escrito em contraposição que o Deus que acharmos será a espécie de Deus que fez esse mecanismo. Em outras palavras, esse mecanismo pode, no máximo, pressupor um mecânico, não um mecânico qualquer, mas o seu mecânico. O único meio de atenuar o mecanismo é descobrir que ele não é mecanismo.
Quando deixamos a teologia apologética e encaramos a
literatura comum, achamos, como era de esperar, que a observação científica é simplesmente ignorada. No que diz respeito
ao conjunto da literatura, nunca se ouviu falar na ciência. Até os nossos dias quase todos os escritores andam encharcados da literatura clássica e da renascentista. Para a maioria, nem a filosofia nem a ciência os interessam, e os seus espíritos são treina
dos para ignorá-las. Há exceções a essa verificação ostensiva; e, mesmo se nos
ativermos à literatura inglesa, veremos que-isso se dá com alguns dos maiores nomes e que também a influência indireta da
ciência é considerável. O exame de alguns desses poemas sérios da literatura in
glesa, de evidente caráter didático, ilumina essa desviada inconsistência do pensamento moderno. Os poemas importantes são: Paraíso perdido, de Milton; Ensaio sobre o homem, de Pope; A excursão, de Wordsworth; In Memoriam, de Tennyson. Embora
escrevesse depois da Restauração, Milton exprime o aspecto teológico dos primórdios do seu século, imune à influência do
materialismo científico. O poema de Pope representa a ação no pensamento popular dos sessenta anos de permeio que in
cluem o primeiro período do assegurado triunfo do movimento científico. Wordsworth, em seu todo, exprime uma reação Cons
ciente contra a mentalidade do século XVIII. Essa mentalidade significa nada menos que a aceitação das idéias científicas em todo o seu valor. Wordsworth não se importava com nenhum antagonismo intelectual. O que o movia era uma repulsa moral. Sentiu que alguma coisa fora abandonada e que aquilo que fora abandonado compreendia tudo de mais importante. Tennyson
1 101 1
;:,:'fl;)~"
I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I
foi o porta-voz das tentativas do movimento romântico em declínio no segundo quartel do século XIX para chegar a acordo com a ciência. Nesse período, os dois elementos do pensamento moderno tinham revelado a sua fundamental divergência, pelas suas interpretações contrárias do curso da natureza e da vida humana. Tennyson surge nesse poema como perfeito exemplo do já mencionado desvio. Há opostas visões de mundo, e ambas
exigem aprovação através de apelos a intuições finais das quais parecem não escapar. Tennyson vai ao âmago da dificuldade. É
o problema do mecanismo que lhe desperta atenção:
"As estrelas", murmura ela, "correm cegamente".
Esse verso apresenta perfeitamente toda a filosofia im
plicita no poema. Cada molécula corre cegamente. O corpo humano é um conjunto de moléculas. Logo, o corpo humano corre cegamente, e portanto não pode haver nenhuma responsabilidade do indivíduo nas ações do corpo. Se vocês uma vez aceitarem que a molécula é definidamente determinada para ser o que é, independentemente de qualquer determinação em razão do organismo total do corpo, e se além disso admitirem que o curso cego é confirmado por leis mecânicas gerais, não haverá como escapar dessa conclusão. Mas as experiências
mentais são derivadas da ação do corpo, até mesmo, é claro, o seu comportamento interior. Assim, a única função da mente
é ter pelo menos algumas dessas experiências estabelecidas e acrescentar outras semelhantes conforme possam ser apresen
tadas independentemente dos movimentos do corpo, tanto internos como externos.
Há, então, duas teorias quanto à mente. Podemos ou ne
gar ou admitir que ela possa suprir por si mesma quaisquer experiências diferentes das que lhe foram proporcionadas pelo corpo.
Se recusarmos admitir as experiências adicionais, toda responsabilidade moral do indivíduo é afastada para longe. Se
1102 1 I I j
I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I
as admitirmos, então o ser humano pode ser responsável pela afirmação da sua inteligência, embora não tenha nenhuma responsabilidade pela ação do seu corpo. Esse enfraquecimen-to do pensamento no mundo moderno é ilustrado pelo modo como esse evidente resultado é evitado no poema de Tennysono Há alguma coisa guardada bem no fundo, um esqueleto no armário. Toca em quase todos os problemas religiosos e .::
cientificos, mas cautelosamente evita algo mais que uma alu
são passageira a isso. Esse verdadeiro problema estava em pleno debate na
época do poema. John Stuart Mil! sustentava a sua teoria do determinismo. Nessa teoria as volições eram determinadas por motivos, e os motivos são expressáveis em termos de condições antecedentes, incluindo tanto situações da mente como situa
ções do corpo. É óbvio que essa teoria não logra escapar do dilema apre
sentado por um mecanismo em movimento, pois, se a volição atinge a situação do corpo, as moléculas do corpo não correm cegamente. Se a volição não atinge a situação do corpo, a mente
é ainda deixada em sua posição desconfortável. A teoria de Mil! é geralmente aceita, principalmente en
tre cientistas, como se de algum modo ela permitisse aceitar a
teoria extremada do mecanismo materialístico, e também mitigava as suas incríveis conseqüências. Não fez nada disso. As moléculas do corpo correm cegamente ou não. Se correm cega
mente, as situações mentais não têm importância em confronto
com as ações corporais. Expus os argumentos concisamente porque na verdade o
resultado é muito simples. Discussões prolongadas só dão origem a confusão. Não vem ao caso a questão sobre o estado
metafísico das moléculas. A afirmação de que elas são meras formas não tem nenhuma força de argumento, pois presumivelmente as fórmulas significam alguma coisa. Se nada significam, toda a teoria mecânica carece de significação e a questão acaba. Mas, se as fórmulas significam alguma coisa, o argumen-
1103 1
.~\':'f' :p,
J ALFRED NORTH WHITEHEAD J
to se aplica exatamente ao que significam. O meio tradicional de evitar a dificuldade - diverso do simples modo de não lhe dar atenção - é recorrer a alguma forma daquilo a que agora se chama de "vitalismo". Essa teoria é realmente um compromis
so. Permite livre curso ao mecanismo por toda a natureza inanimada e sustenta que o mecanismo é parcialmente atenuado nos corpos animados. Sinto que essa teoria é um compromisso
que não satisfaz. O hiato entre a matéria animada e a inanima
da é demasiado vago e problemático para suportar o peso de tal afirmação arbitrária, que envolve um dualismo essencial em
algum lugar. A teoria que sustento é que todo o conceito do materialis
mo só se aplica a entidades verdadeiramente abstratas, produtos do discernimento lógico. As entidades concretas que se mantêm são organismos, de modo que o plano do "todo" influencia as verdadeiras propriedades dos organismos subordinados que nele entram. No caso de um animal, as situações mentais entram no plano do organismo total, e assim modificam os planos dos sucessivos organismos subordinados, até que se alcancem os menores organismos, comO os elétrons. Assim um elétron em um corpo animado é diferente de um elétron fora dele, em razão do plano do corpo. O elétron corre cegamente dentro do corpo ou fora dele, mas ocorre dentro do corpo, de acordo com
o seu caráter dentro do corpo, isto é, de acordo com o plano geral do corpo, e esse plano inclui a situação mental. Mas o
princípio da modificação é perfeitamente geral em toda a natureza, e representa a propriedade peculiar aos corpos vivos. Em
capítulos posteriores será esclarecido que essa teoria envolve o abandono do materialismo científico e a substituição de uma
teoria alternativa do organismo. Não discutirei o determinismo de Mill, visto que ultrapas
sa o esquema desses capítulos. A discussão precedente preocupou-se em assegurar que ou o determinismo ou a vontade livre têm importância desvencilhada das dificuldades introduzidas pelo mecanismo materialístico, ou pelo compromisso do vita-
1 1041 I 1
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO \
lismo. Chamaria a teoria desses capítulos de teoría do "mecanismo orgânico". Nessa teoria, as moléculas podem correr cegamente de acordo com as leis gerais, mas as moléculas diferem no seu caráter intrínseco de acordo com os planos orgânicos
gerais das situações em que elas se encontram. A discrepância entre o mecanismo materialístico da ciên
cia e as intuições morais, que são pressupostos nas coisas con
cretas da vida, apenas assumiram sua importância real com o
passar dos séculos. As diferentes tonalidades das épocas sucessivas a que pertencem os mencionados poemas refletem-se curiosamente nas suas passagens iniciais. Milton termina a sua
introdução com a oração:
Que à altura deste grande argumento
Possa eu afirmar a eterna Providência
E justificar os caminhos de Deus aos homens.
A julgar do que dizem muitos escritores modernos sobre
Milton, poder-se-ia imaginar que o Paraíso perdido e o Paraíso reconquistado foram escritos como uma série de experiências em verso branco. Certamente não era essa a visão que tinha Milton de seu trabalho. "Justificar os caminhos de Deus aos homens" era de fato o seu principal objetivo. Recorreu à mesma
idéia em Sansão combatente:
Justos são os caminhos de Deus
E justificáveis aos homens.
Notamos a grande quantidade de confiança segura, des
preocupada pela avalanche científica que se aproximava. A
verdadeira data da publicação de Paraíso perdido ultrapassa a época a que pertence. É o canto de cisne de um mundo passado
de certeza inabalável. Uma comparação entre o Ensaio sobre o homem, de Pope,
e o Paraíso perdido mostra a mudança de tom do pensamento inglês nos cinqüenta ou sessenta anos que separam a época de
1 105 1
~"
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Milton da época de Pope. Milton dedica o seu poema a Deus, e o poema de Pope é dedicado a Lord Bolingbroke:
Acorda, meu são João! deixa todas as misérias
Para barrar a ambição e o orgulho dos reis.
Deixa-nos Uá que a vida é pouco mais
Que olhar ao redor de nós e morrer)
Espairecer livremente por essas cenas humanas;
Formidável labirinto! mas não sem plano.
Comparem a garbosa certeza de Pope:
Formidável labirinto! mas não sem plano.
com a de Milton:
JUStos são os caminhos de Deus
E justificáveis aos homens.
Mas o verdadeiro ponto para notar é que Pope, bem como Milton, não se incomodava com a grande perplexidade freqüente no mundo moderno. A sugestão que Milton seguiu era manter-se nos caminhos de Deus nas relações com o homem. Duas
gerações depois achamos Pope igualmente confiante em que os esclarecidos métodos da ciência moderna proporcionavam um
plano adequado como um mapa do "formidável labirinto" .
A excursão, de Wordswortb, é o próximo poema inglês sobre o meSmo assunto. Um prefácio em prosa diz-nos que ele
é um fragmento de um trabalho mais amplamente projetado, descrito como "um poema filosófico contendo visões do homem, da natureza e da sociedade".
De modo bem característico, o poema começa com o verso:
Era verão, e o sol se havia elevado às alturas.
Assim, a reação romântica não começou nem com Deus
nem com o Lord Bolingbroke, mas COm a natureza. Testemunhamos aqui uma reação consciente contra todo o tom do sécu
lo XVIII. Esse século aproximou a natureza da análise abstrata
1106 1
I A clENClA E o MUNDO MODERNO I
da ciência, ao passo que Wordsworth opõe toda a sua própria
experiência concreta às abstrações científicas.
Uma geração de ressurgimento religioso e de progresso científico medeia entre A excursão, de Wordsworth, e a In memoriam, de Tennyson. Os primeiros poetas resolveram a per
plexidade ignorando-a. Esse caminho não foi aberto a Tennysono Por isso, o seu poema inicia assim:
Forte Filho de Deus, Amor imortal,
A guem nós, gue não Lhe vimos a face,
Pela fé, tão-somente pela fé, abraçamos,
Acreditamos onde não podemos provar.
A nota da perplexidade é tocada imediatamente. O século XIX foi um século de perplexidade, não sendo nisso igualado por nenhum seu predecessor do período moderno. Nos primeiros tempos houve campos opostos que amargamente se diversificaram
em questões julgadas fundamentais. Mas, exceto alguns poucos casos isolados} nenhum campo estava seguro de suas convicções. A
importância do poema de Tennyson está no fato de exprimir exatamente o caráter de seu periodo. Cada individuo estava dividido contra si próprio. No início} os pensadores mais profundos eram os
mais claros pensadores - Descartes, Spinoza, Locke, Leibniz. Sa
biam exatamente o que queriam e o declaravam. No século XIX, alguns dos mais profundos pensadores entre filósofos e teólogos
eram pensadores confusos. Suas afirmações eram sustentadas por teorias incompatíveis; e os esforços pela conciliação produziam
uma confusão inevitável.
Mattbew Arnold, talvez mais do que Tennyson, foi o poeta
que exprimiu o estado de ânimo de perturbação individual que foi tão característico desse século. Comparem com In memoriam os
versos finais de Dover Beach [Praia de Dover], de Arnold:
E aqui estamos como sobre uma planície escura
Sacudidos por confusos alarmes de lutas e ascensões
Onde ignotos exércitos confrontam-se à noite.
1 1071
"l';';;:;.9'
J ALFRED NORTH WHITEHEAD I
o cardeal Newman, em sua Apologia pro vita sua, menciona tudo isso como peculiaridade de Pusey, o grande teólogo anglicano: ''Atormentavam-no perplexidades não intelectuais". A esse respeito Pusey lembra Milton, Pope e Wordsworth, em contT'aste com Tennyson, Clough, Matthew Arnold e o próprio Newman.
No concernente à literatura inglesa, verificamos, como era
de prever, a crítica mais interessante dos pensamentos da ciência entre os mentores da reação romântica que acompanham e
sucedem à época da Revolução Francesa. Na literatura inglesa, os mais agudos pensadores dessa escola foram Coleridge, Wordsworth e Shelley. Keats é um exemplo de literatura insensível à ciência. Podemos negligenciar as tentativas de Coleridge em uma formulação filosófica; não teve influência em sua própria geração, mas neste capítulo meu objetivo é só mencionar aqueles elementos do pensamento do passado que se manifestam
em todos os tempos. Mesmo com eSSa limitação, só uma seleção é possível. Para o nosso propósito, a única importância de Coleridge é a sua influência sobre Wordsworth. Assim restam Wordsworth e Shelley.
Wordsworth estava apaixonadamente absorvido pela natureza. De Spinoza se disse que andava embriagado de Deus. É igualmente verdade que Wordsworth andava embriagado da natureza. Mas era um homem reflexivo, versado, com interesses
filosóficos e sensato até chegar a extremos de prosaísmo. Além do mais, era um gênio. Enfraquecia Sua evidência com o desa
mor da ciência. Todos nos lembramos de seu escárnio para com
um pobre homem a quem ele um tanto quanto irritavelmente acusa de observar e estudar plantas no túmulo da própria mãe.
Passagens e passagens podem ser transcritas dele, que expressam essa repugnância. A esse respeito, o seu pensamento característico pode ser resumido nesta frase: "Assassinamos para dissecar" .
Nessa última passagem, ele revela a base intelectual de sua crítica à ciência. Alega contra a ciência sua absorção em
1 108 1
I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I
abstrações. O seu tema constante é que os fatos importantes da natureza iludem o método científico. É, pois, importante indagar o que Wordsworth achou na natureza que deixou de receber expressão na ciência. Faço essa pergunta no interesse da própria ciência, pois uma das principais afirmações deste capítulo é a contestação da idéia de que as abstrações da ciência são incorrigíveis e inalteráveis. Evidentemente não sucede que
Wordsworth deixe a matéria inorgânica à mercê da ciência e se concentre na fé de que no organismo animado há um elemento
que a ciência não pode analisar. Claro que reconhece, o que ninguém duvida, que, em certo sentido, as coisas inanimadas são diferentes das coisas sem vida. Mas o seu ponto principal não é esse, e sim a contemplativa presença das colinas que repetidamente aparecem nele. O seu tema é a natureza in solido, isto é, insiste nessa misteriosa presença das coisas circundantes, que se impõe em qualquer elemento de per si que consideramos como indivíduo em si. Sempre compreende o conjunto da natureza implícito na tonalidade de determinada circunstância. Por isso é que ri com os narcisos silvestres e acha nas prímulas
"pensamentos muito profundos para lágrimas". O maior poema de Wordsworth é, sem dúvida alguma,
o primeiro livro de O prelúdio. É invadido por esse sentimento da perturbadora presença da natureza. Diversas magníficas
passagens, demasiado longas para serem citadas, expressam essa idéia. Evidentemente, Wordsworth é um poeta escrevendo um poema, e nada tem com as ásperas afirmações filosóficas. Mas
dificilmente seria possível exprimir de modo mais claro o sen
timento da natureza do que apresentando unidades preensivas entrelaçadas, cada qual repleta da presença modal das demais:
Vós, Presenças da Natureza no céu
E sobre a terra! Vós, Visões das colinas!
E Almas dos lugares ermos! poderei pensar
Que uma esperança trivial seja vossa guando empregais
Tais ministérios, guando vós, ao longo de muitos anos
Perseguindo-me assim entre os meus bringuedos de menino,
1 109 1
"~g
I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I
Em cavernas e árvores, nos bosques e nas colinas,
Gravados em todas as formas os sinais
De perigos e desejos; e assim fizestes
A superfície de toda a terra,
Com triunfo e deleite, com esperança e temor,
Trabalhar como um mar?.
Citando assim Wordsworth, o ponto a que desejo chegar
é que nos esquecemos quanto é forçada e paradoxal a visão da natureza que a ciência moderna nos impõe ao pensamento.
Wordsworth, do alto do gênio, expressa os fatos concretos de nossa apreensão, fatos que são distorcidos na análise cientifica. Não seria possível que os conceitos padronizados da ciência fossem válidos tão-somente com estreitas limitações, até mes
mo para a própria ciência? A atitude de Shelley para com a ciência estava no pólo
oposto da posição de Wordsworth. Amava-a, e nunca se cansou de expressar em poesia os pensamentos que ela sugeria. Simboliza para ele alegria, paz e luz. O que foram as colinas de in
fância de Wordsworth foi um laboratório químico para Shelley. Infelizmente os críticos de Shelley têm, a esse respeíto, muito pouco de Shelley em sua mentalidade. Tendem a tratar como casual excentricidade da índole de Shelley o que de fato fazía parte do mais íntimo do seu espírito e está presente em toda
a sua poesia. Se Shelley tivesse nascido cem anos mais tarde, o século XX teria visto um Nevvton entre os quimicos.
Para poder avaliar o valor da prova de Shelley, é importan
te reconhecer essa absorção do seu espírito nas idéias científi
cas. Isso pode ser exemplificado por diversos poemas líricos. Escolherei só um poema, o quarto ato do seu Prometeu libertado. A Terra e a Lua conversam entre si em linguagem de apurada ciência. Experimentos físicos conduzem as imaginações do poeta. Por exemplo, a aclamação da Terra
A vaporosa exultação que não deve ser limitada!
I 110 I
I A C!~NC1A E o MUNDO MODERNO I
é a transcrição da "força expansiva dos gases", conforme é designada nos livros de ciência. Novamente tomemos a estrofe
da Terra: Giro sob minha pirâmide de noite,
Que aponta para o céu - deleite sonhador,
Murmurando alegria triunfante no meu sono encantado;
Como um jovem suspirando levemente embalado por sonhos
de amor,
Estendendo-se à sombra de sua beleza,
Que mantém em torno do seu repouso um cuidado de luz e
calor.
Essa estrofe só poderia ser escrita por uma pessoa munida de um diagrama geométrico perante seu olhar interior - um
diagrama que sempre procurei demonstrar em aulas de matemática. Como é evidente, percebam especialmente o último verso, que dá imagem poética à luz que circunda a pirâmide da noite. Essa idéia não podia ocorrer a uma pessoa sem o diagrama. Mas todo o poema e ainda outros são permeados de
referências desse tipo. Agora o poeta, que tanto simpatiza com a ciência, tão
absorto em suas idéias, não pode fazer simplesmente nada
da teoria das qualidades secundarias, fundamental para seus conceitos, porque a natureza de Shelley mantém sua beleza e sua cor. A natureza de Shelley é em essência uma natu
reza de organismos, funcionando com todos os conteúdos de nossa experiência perceptual. Estamos tão acostumados a negligenciar a implicação da doutrina científica ortodoxa,
que é difícil evidenciar a critica implicada sobre ela neste
caso. Se alguém pudesse ter tratado disso seriamente, Shel
ley o teria feito. Além disso, Shelley concorda com Wordsworth quanto à
interfusão da presença na natureza. Aqui está a primeira estrofe
do seu poema intitulado Monte branco:
I 111 I
'''''lf --
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
o eterno universo das coisas
Flui através da mente e agita as suas rápidas ondas
Ora escuras, ora cintilantes, ora refletindo as trevas
Ora trazendo esplendor, onde, de origens secretas,
A fonte do pensamento humano traz o seu tributo
De águas - com um som que é a metade de si mesmo,
Tal um fino regato assumirá muita vez
Na selva selvagem, na solidão da montanha,
Onde as cachoeiras em torno sempre despenham,
Onde matas e ventos combatem, e um imenso rio
Por sobre suas rochas incessantemente irrompe e ruge.
Shelley escreveu esses versos com clara referência a uma forma de idealismo, kantiano, berkeliano ou platônico. Mas,
Como quer que o interpretem, aqui está um enfático testemunho de uma unificação preensiva como constituinte do verdadeiro ser da natureza.
Berkeley, Wordsworth e Shelley são representativos da recusa intuitiva em aceitar seriamente o materialismo abstrato da ciência.
Há uma diferença interessante no tratamento da natureza feito por Wordswortb e por Shelley, diferença essa que evidencia as questões exatas sobre as quais temos de pensar. Shelley
considera a natureza em mudança, em dissolução, em transformação como ao toque de uma varinha mágica. As folhas voam diante do vento oeste
Como fantasmas em uma fuga encantada.
Em seu poema A nuvem, são as transformações da água que lhe excitam a imaginação. O assunto do poema é a infinita, eterna e furtiva mudança das coisas:
Mudo, mas não posso morrer.
A furtiva mudança é um aspecto da natureza: uma mudança não para ser expressa na locomoção, mas uma mudança
I 112 I
I A Ci~NClA E o MUNDO MODERNO I
de caráter interior. Shelley insiste nisto: na mudança do que não pode morrer.
Wordsworth nasceu entre montanhas: montanhas principalmente nuas de árvores, mostrando assim o mínimo de mudança nas estações. Era atormentado pelas enormes permanên
cias da natureza. Para ele a mudança é um incidente que passa por um fundo de duração:
Quebrando o silêncio dos mares
Entre as remotas Hébridas.
Todo esquema para a análise da natureza tem de encarar esses dois fatos: "mudança" e "duração". Há ainda que considerar um terceiro fato a que chamarei "eternalidade". Montanhas duram. Mas, quando com a sucessão das épocas se desgastam, acabam. Se outras surgirem, serão contudo novas montanhas. Uma cor é eterna. Aparece freqüentemente como um espírito. Vem e vai. Mas, onde quer que esteja, é a mesma cor. Não sobrevive nem vive. Aparece quando solicitada. As montanhas têm com o tempo e o espaço uma relação diferente da que tem a cor. No capitulo anterior, considerei principalmente a relação com o espaço-tempo de coisas que, no sentido de meu termo, são eternas. Era necessário fazê-lo antes de podermos passar à
consideração das coisas que duram. Também devemos recordar a base do nosso processo. Pen
so que a filosofia é a crítica das abstrações. Sua função é dupla, primeiro a de harmonizá-las, apontando-lhes a sua conveniente situação relativa como abstrações, segundo a de completá-las pela comparação direta com intuições do universo mais con
cretas, e portanto promover a formação do mais completo esquema de pensamento. É a respeito dessa comparação que o testemunho dos grandes poetas tem tanta importância. Sua sobrevivência é prova de que eles expressam profundas intuições da humanidade penetrando naquilo que é universal no fato concreto. A filosofia não é uma das ciências com o seu próprio pequeno esquema de abstrações, que aperfeiçoa e melhora. É
I 113 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
a visão geral das ciências com o objetivo de as harmonizar e completar. Leva a essa tarefa não só a evidência das ciências de per si, mas também o seu próprio apelo à experiênda concreta. Confronta as ciências com os fatos concretos.
A literatura do século XIX, principalmente a poesia inglesa, é um testemunho da discordância entre as intuições estéticas da humanidade e o mecanismo da ciência. Shelley põe
vividamente perante nós a eterna ilusão dos objetos dos sentidos como freqüentemente aparecem na mudança que afeta os organismos básicos. Wordsworth é o poeta da natureza como sendo o campo das permanências duradouras levando consigo uma mensagem de tremenda significação. A esse respeito, os objetos eternos também são para ele
A luz que nunca esteve na terra ou no mar.
Tanto Shelley como Wordsworth claramente testemunham que a natureza não pode divorciar-se de seus valores estéticos; e que esses valores derivam, em certo sentido, da evidente presença do todo por sobre as suas várias partes. Assim, extraímos dos poetas a doutrina de que uma filosofia da natureza deve levar em conta pelo menos essas seis noções: mudança, valor, objetos eternos, duração, organismo, interfusão.
Vemos que o movimento romântico na literatura no início do século XIX, bem como o movimento filosófico idealista de Berkeley um século antes} recusou confinar-se nos conceitos materialistas da teoria científica ortodoxa. Sabemos também que, quando nestes capítulos chegarmos ao século XX, achare
mos um movimento na própria ciência para reorganizar a sua conceituação, também dirigido pelo seu próprio movimento intrínseco.
É, contudo, impossível continuar enquanto não estabelecermos se essa remodelação de idéias deve ser levada a cabo em base objetiva ou subjetiva. Por base subjetiva entendo a crença de que a natureza da nossa experiência imediata é o resultado das peculiaridades perceptivas do sujeito da expe-
1 114 1
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
riência. Em outros termos, quero dizer que para essa teoria o percebido não é uma visão parcial de um complexo de coisas geralmente independentes do respectivo ato de cognição, mas que é simplesmente a expressão das peculiaridades individuais do ato cognitivo. Assim, o que é comum à multiplicidade dos
atos cognitivos é o raciocínio a eles relacionado. Por isso, embora haja um mundo comum de pensamento associado à nossa
percepção sensorial, não há um mundo comum para pensar. O que pensamos é em um mundo conceitual comum que se
aplica indiferentemente às nossas experiências individuais que são estritamente pessoais para nós. Tal mundo conceitual nós
acharemos, enfim, nas equações da matemática aplicada. Essa é a extrema posição subjetivista. Há naturalmente a posição intermediária daqueles que acreditam que a nossa experiência perceptiva nos fala de um mundo objetivo comum, mas que as coisas percebidas são simplesmente para nós o resultado desse mundo, e não são em si elementos do próprio mundo comum.
Há também a posição objetiva. Essa crença consiste em que os verdadeiros elementos percebidos pelos sentidos são em si mesmos elementos do mundo comum, e que esse mundo é um complexo de coisas que inclui até os nossos atos de cognição, mas transcendendo-os. De acordo com esse ponto de vista, as coisas experimentadas devem ser distintas da noção que temos delas. Até o ponto em que há dependência, as coisas abrem o caminho para a cognição, e não vice-versa. Mas o ponto é que as verdadeiras coisas experimentadas entram em um mundo comum que transcende o conhecimento, embora o inclua. Os subjetivistas intermediários sustentariam que as coisas experimentadas só indiretamente entram no mundo comum, em razão da sua dependência do sujeito que está conhecendo. Os objetivistas afirmam que as coisas experimentadas e o sujeito
que exerce a cognição entram no mundo comum em termos iguais. Nesses capítulos apresentarei o esboço do que julgo a essência de uma filosofia objetivista adaptada às exigências da ciência e à experiência concreta da humanidade. Pondo de lado
1 115 1
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
a crítica detalhada das dificuldades levantadas por qualquer subjetivismo, minhas amplas razões para desconfiar dele são três. Uma razão surge da indagação direta da nossa experiência perceptiva. Resulta dessa indagação que não estamos dentro de um mundo de cores, sons e outros objetos dos sentidos relacionados quanto ao espaço e ao tempo a outros objetos duradouros tais como pedras, árvores e corpos humanos. Nós próprios
parecemos elementos desse mundo no mesmo sentido em que o são as demais coisas que percebemos. Mas os subjetivistas, mesmo os moderados, fazem esse mundo, como descrito, depender de nós de uma maneira que impede diretamente nossa experiência simples. Sustento que o apelo final é para a experiência simples e é por isso que dei tanta importância à prova da poesia. Meu objetivo consiste em que em nossa experiência sensorial conhecemos para aquém e para além de nossa personalidade, enquanto os subjetivistas sustentam que em tais experiências conhecemos simplesmente a nossa personalidade. Mesmo os subjetivistas intermediários colocam a nossa personalidade entre o mundo que conhecemos e o mundo comum
que admitem. O mundo que conhecemos é para eles a força interna da nossa personalidade sob a força do mundo comum que está escondido.
Minha segunda razão para desconfiar do subjetivismo baseia-se no conteúdo especial da experiência. Nosso conhecimento histórico fala-nos de uma idade no passado que, por onde quer que se andasse, não existia ser vivo sobre a Terra. Também nos fala de incontáveis sistemas planetários cuja história pormenorizada continua fora de nosso alcance. Conside
rem a própria Terra e a Lua. O que se passa no interior da
Terra e na mais remota parte da Lua? Nossas percepções nos conduzem a inferir que algo está acontecendo nas estrelas, algo está acontecendo dentro da Terra, e algo está acontecendo na parte mais remota da Lua. Também nos dizem que em idades remotas muitas coisas aconteciam. Mas todas essas coisas que parecem ter acontecido certamente ou são desconhecidas em
I 116 I
I A CltNCIA E o MUNDO MODERNO 1
detalhe ou ainda reconstruídas por evidência inferencial. Em face desse conteúdo da nossa experiência pessoal, é difícil acreditar que o mundo experimentado seja um atributo da nossa
própria personalidade. Minha terceira razão se baseia no instinto da ação. Exata
mente como a percepção sensorial parece dar a noção do que está além da individualidade, assim a ação parece surgir de um
instinto de auto transcendência. A atividade passa além de si no mundo transcendente conhecido. Aqui é que os últimos fins
têm importância, pois não é a atividade impelida do oculto que passa para o mundo velado dos subjetivistas intermediários. É a atividade dirigida a fins determinados para o mundo conhecido; e ainda é a atividade que transcende a si mesma e é a atividade dentro do mundo conhecido. Por conseguinte, o mundo como o conhecemos transcende o objeto que exerce a sua cognição.
A posição subjetivista foi popular entre os que se empenharam em dar uma interpretação filosófica a recentes teorias
sobre a relatividade na física. O fato de o mundo dos sentidos depender da percepção do individuo parece um modo fácil de exprimir as significações em causa. Naturalmente, com exceção dos que estavam contentes consigo por acreditarem que formavam todo o universo, solitários em meio do nada, todos querem voltar a alguma posição objetiva. Não compreendo como um
mundo comum de pensamento possa ser estabelecido com ausência de um mundo comum dos sentidos. Não discuto esse ponto em detalhe, mas na ausência de uma transcendência de pensamento ou de uma transcendência do mundo dos senti
dos, é difícil entender como os subjetivistas escapariam de sua solidão. Nem os subjetivistas intermediários parecem alcançar
alguma ajuda para o seu mundo desconhecido na base. A distinção entre realismo e idealismo não coincide com
a distinção entre objetivismo e subjetivismo. Tanto os realistas como os idealistas podem partir de um ponto de vista objetivo. Podem ambos convir em que o mundo que se manifesta na percepção sensorial é um mundo comum, transcendendo o
I 117 I
,',
I ALfRED NORTH WHITEHEAD I
recipiente do indivíduo. Mas, quando o idealista objetivo chega a analisar o que a realidade desse mundo envolve, verifica que a mentalidade cognitiva é de certo modo inextricavelmente relacionada em todos os detalhes. Essa posição é negada pelos realistas. De acordo com isso, essas duas classes de objetivistas
não se separam enquanto não chegam aos últimos problemas da metafísica. Eles têm muita coisa em comum. Eis por que,
em meu último capítulo, disse que adotava uma posição de
realismo provisório. No passado, a posição objetivista foi desviada pela suposta
necessidade de aceitar um materialismo científico clássico com a sua doutrina de posição simples. Isso suscitou a doutrina das qualidades primárias e secundárias. Assim, as qualidades secundárias, como os objetos dos sentidos, são tratadas sob principios subjetivistas. Essa é uma posição intermediária que se toma presa fácil da crítica subjetivista.
Se devemos incluir as qualidades secundárias no mundo comum, será necessária uma reorganização verdadeiramente drástica da nossa concepção fundamental. É um fato evidente da experiência que nossas apreensões do mundo exterior dependem absolutamente dos acontecimentos no corpo humano.
Executando as habilidades apropriadas sobre um corpo, um homem pode conseguir perceber, ou não, quase tudo. Algumas pessoas se exprimem como se corpos, cérebros e nervos fossem as únicas coisas reais em um mundo inteiramente imaginário.
Em outras palavras, tratam os corpos com base em princípios
objetivos, e o restante do mundo com base em principios subjetivos. Isso é inadequado, especialmente quando nos lembramos
de que é a percepção do experimentador do corpo de outra
pessoa que está em questão como prova. Temos, porém, de admitir que o corpo é o organismo
cujas situações regulam a nossa cognição do mundo. A unidade do campo perceptual deve ser, portanto, a unidade de uma percepção corpórea. Prestando atenção à experiência corpórea, devemos, portanto, estar atentos a aspectos de todo o mundo
1 118 1
I A C1~NCIA E o MUNDO MODERNO I
espaciotemporal, refletindo-se nele a vida corpórea. Essa é a
solução do problema proposto em meu último capítulo. Não me repetirei agora, a não ser para lembrar a vocês que a minha teoria envolve o completo abandono da noção de que a posição simples constitui a maneira primária pela qual as coisas estão implícitas no espaço-tempo. Em certo sentido, todas as
coisas estão em todas as partes em todos os tempos, pois cada
localização envolve um aspecto de si mesma em todas as de
mais localizações. Assim, todo ponto de vista espaciotemporal reflete o mundo.
Se vocês tentarem imaginar essa doutrina em termos de nossa visão convencional de espaço e tempo que pressupõe posição simples, haverá um grande paradoxo. Mas, se vocês considerarem em termos de nossa experiência simples, teremos uma
mera transcrição dos fatos óbvios. Vocês estão em certo lugar percebendo as coisas. A percepção de vocês acontece onde vo
cês estão, e é inteiramente dependente do lugar onde o corpo de vocês está em atividade. Mas essa atividade do corpo em um único lugar apresenta à cognição de vocês um aspecto do ambiente distante, absorvendo-se no conhecimento geral de que há coisas para além. Se essa cognição traz a idéia de um mundo transcendente, deve ser porque o acontecimento que é a vida
corporal unifica em si mesmo aspectos do universo. Essa é uma doutrina extremamente consonante com a ví
vida expressão da experiência pessoal que achamos na poesia da
natureza dos escritores de ficção como Wordsworth e Shelley.
As patentes e imediatas presenças das coisas são uma obsessão de Wordsworth. O que a teoria faz é evitar que a mentalidade
cognitiva seja substrato necessário da unidade de experiência. Tal unidade é agora colocada na unidade de um acontecimento. Acompanhando essa unidade, pode ou não haver cognição.
Nesse ponto voltamos à grande questão que nos foi proposta pelo nosso exame da prova apresentada pela visão poética de Wordsworth e Shelley. Essa questão única se expande em um grupo de questões. O que são coisas duradouras, como
1 119 1
"'''J!'
I ALFRED NORTH WHITEHEAD !
distintas dos objetos eternos tais como cor e forma? Como são possíveis? Qual é seu status e significação no universo? Chegamos a isso: Qual é a situação da estabilidade duradoura da ordem da natureza? Eis a resposta sumária, que refere a natureza a alguma realidade maior que a acompanha. Essa realidade ocorre na história do pensamento sob muitos nomes: O Absoluto, Brahma, A Ordem Celeste, Deus. O delineamento da
verdade metafísica final não pertence a esse capitulo. Meu ponto é que qualquer conclusão sumária que pule da nossa convicção
da existência de tal ordem da natureza para a simples a:6.nnação de que há uma verdade última que, de algum modo inexplicado,
deve ser levado em conta para remover a perplexidade constitui por parte da racionalidade a grande recusa de reivindicar os seus direitos. Temos de verificar se a natureza, em sua verdadeira essência, mostra-se explicada por si mesma. Com isso quero dizer que a pura afirmação de que as coisas são pode conter elementos explicativos de por que as coisas são. É de esperar que tais elementos se refiram às profundezas para além de qualquer coisa que possamos apanhar com uma apreensão clara. Em certo sentido, todas as explicações devem concluir em arbitrariedade final. Minha preten
são é que a última arbitrariedade do fato do qual começa o nosso enunciado deve revelar os mesmos principios gerais da realidade que obscuramente discriminamos como se estendendo em regiões para além do nosso explicito poder de discernimento. A natureza
se apresenta como exemplificação de uma filosofia da evolução de organismos sujeitos a condições especificas. Exemplos des
sas condições são as dimensões do espaço, as leis da natureza, as entidades de duração determinada, tais como átomos e elé
trons, que exemplificam essas leis. Mas a verdadeira natureza dessas entidades, a verdadeira natureza da sua espacialidade
e temporalidade deve apresentar a arbitrariedade dessas condições COmo o resultado de uma ampla evolução para além da própria natureza e na qual ela não é senão um modo limitado.
A transição das coisas, a passagem de uma para outra, constitui a evidência do perpassar, inerente ao verdadeiro ca-
1 120 1
I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I
ráter do real. Essa passagem não é uma simples série linear de entidades distintas. Como quer que fixemos uma entidade determinada, há sempre mais estrita determinação de alguma
coisa pressuposta em nossa primeira escolha. Há também uma determinação mais ampla na qual desaparece a nossa primeira escolha mediante transição para além de si mesma. O aspecto geral da natureza é de expansividade evolutiva. Essas unidades
que chamo de acontecimentos emergem na realidade de algu
ma coisa. Como caracterizar essa coisa que emerge? O nome de "acontecimento" dado a tal unidade chama a atenção para a inerente transitoriedade combinada com a unidade real. Mas
essa palavra abstrata não pode ser suficiente para caracterizar o que o fato da realidade de um acontecimento é em si. Um pensamento momentâneo mostra-nos que nenhuma idéia em si pode ser suficiente, pois toda idéia que encontra significação em cada acontecimento deve representar alguma coisa que contribua para o que a realidade vem a ser em si mesma. Assim, nenhuma palavra pode ser adequada. Em compensação, porém, nada deve ser desprezado. Recordando o papel dos poetas em nossa experiência concreta, vemos logo que o elemento de valor, de ser valioso, de ter valor, de ser um fim em si, de ser uma coisa por si mesma, não deve ser omitido em
nenhuma consideração de acontecimento como aquilo que é mais concreto e real. "Valor" é a palavra que uso para designar a realidade intrínseca do acontecimento. Valor é um elemento
que penetra a visão poética da natureza. Só temos de transferir para a verdadeira tessitura da realidade em si esse valor que tão
prontamente reconhecemos: em termos de vida humana, esse
é o segredo da adoração wordsworthiana da natureza. Realização em si é, portanto, a consecução do valor. Nada há, porém, que seja meramente valor. O valor é o resultado da limitação. A entidade definida e finita é o modo escolhido como forma da consecução; fora de tal forma na matéria individual, não há nenhuma consecução. A mera fusão de tudo o que existe seria a não-entidade do indefinido. A salvação da realidade são
1 121 1
'"l;1'I\~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
as suas entidades imutáveis, irredutíveis, de fato, que se limitam a não ser outra coisa senão elas mesmas. Nem a ciência, nem a arte, nem a ação criadora podem ser arrancadas de fatos imutáveis, irredutíveis e limitados. A duração das coisas tem a sua significação na auto-retenção daquilo que se impõe como uma definida consecução por si mesma. O que dura é limitado, obstrutivo, intolerante, afetan40 as suas proximidades com os seus próprios aspectos. Mas não basta a si mesmo. Os aspectos de todas as coisas entram em sua verdadeira natureza. O que dura só se representa reunindo em sua própria limitação o mais amplo conjunto em que se encontra. Em compensação, só se representa emprestando os seus aspectos ao meio em que se encontra. O problema da evolução é o desenvolvimento das harmonias duradouras de formas duradouras do valor implícito em mais altas consecuções das coisas para além de si mesmas. A consecução estética é entrelaçada com a tessitura da realização. A duração de uma entidade representa a consecução de um êxito estético limitado, embora, se olharmos além dela para os
seus efeitos externos, possa representar um malogro estético. Ainda que dentro de si mesma possa representar o conflito en
tre um êxito mais baixo e um malogro mais alto. O conflito é o presságio da irrupção.
A discussão posterior, da natureza dos objetos duradouros e das condições que requerem, será importante para a consideração da teoria da evolução que dominou a segunda metade do século XIX. O ponto que tentei tornar claro neste capitulo é
que a poesia da natureza do ressurgimento romântico foi uma defesa da concepção orgânica da natureza e também um protesto contra a exclusão do valor da essência do fato. Nesse as
pecto, o movimento romântico pode ser concebido como uma revivescência do protesto de Berkeley lançado cem anos antes. A reação romântica é uma defesa do valor.
1122 1
I CAP[TU LO VI I
O SÉCULO XIX
No último capítulo ocupei-me com a comparação da poesia da natureza no movimento romântico da Inglaterra COm a filosofia da ciência materialista legada pelo século XVIII. Notou-se o completo desacordo entre os dois movimentos do pensamento. O capitulo também prosseguiu no esforço por esboçar uma filosofia objetivista capaz de preencher a lacuna existente entre a ciência e essa intuição fundamental da humanidade que encontra expressão na poesia e exemplificação prática em pressupostos da vida cotidiana. Quando o século XIX passou, o movimento romântico terminou. Não terminou inteiramente, mas perdeu a clara unidade de rio desbordante e dispersou-se por muitos estuários quando se misturou com outros interesses humanos. A fé do século derivava de três fontes. Uma era o movimento romântico, manifestando-se em ressurgimento religioso, em aspirações de arte e de política; a outra foi o amplo progresso da ciência, que alargou os caminhos do pensamento; a terceira foi o progresso da técnica, que mudou completamente as condições
da vida humana. Cada uma dessas fontes teve a sua origem no período
precedente. A própria Revolução Francesa foi primogênita do romantismo na forma em que a matizou Rousseau. James Watt obteve patente da sua máquina a vapor de 1769. O progresso científico foi a glória da França e da influência francesa no decurso daquele século.
1 123 1
"~'T>"y
c'
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Também, mesmo durante esse período anterior, as correntes influenciaram-se, confundiram-se e opuseram-se umas às outras. Mas só no século XIX esse tríplice movimento atingiu o desenvolvimento completo e o ritmo e as características peculiares aos sessenta anos posteriores à batalha de Waterloo.
O que é peculiar e novo no século, que o diferencia de todos os predecessores, é a sua técnica. Não se trata da introdução
de inventos isolados. É impossivel não sentir que está em jogo
algo mais do que isso. Por exemplo, a escrita é uma invenção maior que a máquina a vapor. Mas, traçando a história contí
nua do desenvolvimento da escrita, encontramos uma enorme diferença com relação à história da máquina a vapor. Devemos, é claro, deixar de lado antecipações menores e esporádicas de ambas, e ater-nos ao período de sua elaboração, pois a escala
de tempo é completamente diversa. Para a máquina a vapor, devemos dar cem anos, mais ou menos; para a escrita, o perío
do de tempo é da ordem de um milênio. Além disso, quando a escrita foi finalmente popularizada, o mundo não estava então à espera do passo seguinte no domínio da técnica. O processo de mudança foi lento, inconsciente e inesperado.
No século XIX, o processo tomou-se rápido, consciente e esperado. A primeira metade do século foi o período em que essa nova atitude de mudança foi pela primeira vez experimen
tada e sentida. Foi um periodo peculiar de esperança, no senti
do de que, sessenta ou setenta anos mais tarde, podemos agora rastrear uma nota de desilusão, ou pelo menos de ansiedade.
A maior invenção do século XIX foi a do método da invenção. Veio ao mundo um novo método. Para entendermos
a nossa época, podemos negligenciar todos os detalhes da transformação, tais como ferrovias, telégrafo, rádio, máquinas
rotativas, tintas sintéticas. Podemos concentrar-nos no próprio método, a real novidade, que abalou os alicerces da antiga civilização. A profecia de Francis Bacon cumpriu-se agorá; e o homem, que às vezes se imaginou um pouco abaixo dos anjos, submeteu-se a ser o ministro e o servo da nat';lreza. Continua
I 124 I
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
a ser visto como tal, se é que o mesmo ator pode desempenhãr os dois papéis.
A transformação completa nasceu da nova informação científica. A ciência, concebida não tanto em seus principios, mas mais em seus resultados, é um óbvio celeiro de idéias a serem utilizadas. Mas, se devemos entender o que aconteceu durante o século, a analogia de uma mina é melhor que a de
um celeiro. Além disso, constitui grande engano pensar que a simples idéia cientifica seja a invenção exigida, de tal modo
que seja suficiente tomar e usar. Um intenso período de projeto imaginativo se estende de um a outro ato. Um elemento do novo método é precisamente a descoberta de como estabelecer uma ponte para unir as idéias cientificas e os seus últimos produtos. É um processo de abordagem disciplinada a uma dificul
dade em seguida da outra. As possibilidades da técnica moderna foram pela primeira
vez realizadas, na prática, na Inglaterra, pela energia de uma próspera classe média. Assim, a Revolução Industrial começou
nesse lugar. Mas os alemães compreenderam explicitamente os métodos pelos quais os mais profundos veios na mina da ciência podiam ser alcançados. Aboliram o puro acaso dos métodos de conhecimento. Nas suas escolas técnicas e universidades, o progresso não ficara à espera de eventuais gênios, nem de
eventual pensamento feliz. Suas realizações de conhecimento durante o século XIX foram a admiração do mundo. Essa disci
plina de conhecimento foi aplicada tanto à ciência pura como à técnica, e daí ao ensino geral. Representa a troca de amadores
por profissionais. Sempre houve pessoas que consagraram a vida a regiões
especificas do pensamento. De modo particular, os juristas e o clero da Igreja Católica formam exemplos claros de tal especialização. Mas a compreensão total e consciente do poder do profissionalismo no conhecimento em todos os seus departamentos, do meio de produzir os profissionais, da importância do conhecimento para o progresso da técnica, dos métodos pelos
I 125 I
c"
!11.1""""-..... ,'~ ..... ~,_.".
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
quais as noções abstratas podem correlacionar-se com a técnica
e das ilimitadas possibilidades do progresso técnico, enfim, a realização de todas essas coisas foi pela primeira vez efetivada no século XIX, e, entre os vários países, principalmente na Alemanha.
No passado, a vida humana transcorria em um carro de bois; no futuro, transcorrerá em um aeroplano; e a mudança de
velocidade corresponderá a uma diferença qualitativa.
A transformação do campo do conhecimento, que assim se efetuou, não constitui de todo uma vantagem. Pelo menos há perigos implícitos, muito embora o crescimento da eficiência seja inegável. A discussão dos vários efeitos sobre a vida social resultante da nova situação está reservada para o último capitulo. Agora basta notar que essa nova situação de progresso disciplinado é o plano em que se desenvolve o pensamento do século.
No período considerado, quatro idéias nOvas foram introduzidas na ciência teórica. Obviamente é possível apresentar bons motivos para aumentar a lista para muito além de "quatro". Mas ative-me a idéias que, se tomadas em sentido lato, são vitais para as tentativas modernas de reconstituir os fundamentos da ciência física.
Duas dessas idéias são antitéticas e considerá-Ias-ei juntamente. Não abordaremos detalhes, mas suas últimas influências sobre o pensamento. Uma dessas idéias é a de um campo de
atividade física que abrange todo o espaço, mesmo onde haja
um vácuo evidente. Essa idéia ocorreu a muita gente e sob várias formas. Estamos lembrados do axioma medieval "a natu
reza abomina o vácuo". Também os vórtices de Descartes, em
certo tempo, no século XVII, pareceram estabelecer-se entre as verificações cientificas. Newton acreditava que a gravitação era causada por alguma coisa acontecida em um meio. Mas,
em conjunto, no século XVIII nada foi feito dessas idéias. A passagem da luz foi explicada à moda de Newton pelo võo de minúsculos corpúsculos, que naturalmente deixaram espaço
1126 1
I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I
para um vácuo. Os físicos matemáticos andavam ocupadíssimos em deduzir as conseqüências da teoria da gravitação para darem muita importância às causas; nem saberiam para onde olhar se dessem importância a essa questão. Houve especulação, mas sem grande importância. Assim, quando começou o século XIX, a noção de ocorrências físicas estendendo-se por todo o espaço não manteve nenhum lugar efetivo na ciência.
Ressurgiu de duas fontes. A teoria ondulatória da luz triun
fou, graças a Thomas Young e a Fresnel. Isso demanda a existência de alguma coisa no espaço que ondule de acordo com
isso; produziu-se o éter como matéria sutil que penetrava por toda parte. Novamente a teoria do eletromagnetismo afinal, nas mãos de Clerk Maxwell, assumiu uma forma exigindo que existisse ocorrência eletromagnética por todo o espaço. A teoria de Maxwell sô alcançou forma final por volta da década de 1870. Mas tinha sido preparada por muitos grandes homens: Ampêre, Oersted, Faraday. De acordo com a vigente concepção materialista, essa ocorrência eletromagnética também requeria matéria na qual acontecer. Por isso, novamente se apelou para o éter. Então, Maxwell, como os frutos imediatos da sua teo
ria, demonstrou que as ondas da luz eram simplesmente ondas das suas ocorrências eletromagnéticas. Assim, o resultado foi a teoria eletromagnética superar a teoria da luz. Foi uma grande simplificação, e ninguém duvida de sua verdade. Mas teve
efeito infeliz no que se refere ao materialismo, pois, enquanto uma espécie muito simples de éter elástico bastava para a luz
quando tomada em si, o éter eletromagnético tinha de estar dotado precisamente daquelas propriedades necessárias à pro
dução dos fenômenos eletromagnéticos. De fato, toma-se um
simples nome da matéria que se postula na base dessas ocorrências. Uma vez que não se aceite a teoria metafísica que faz postular tal éter, este pode ser descartado, pois não tem nenhuma vitalidade independente.
Assim, durante a década de 70 do séc. XIX, algumas das principais ciências físicas foram estabelecidas em base que pres-
1 127 1
''''7 .
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
supõe a idéia de continuidade. 'De outro lado, a idéia de "ato
micidade" fora introduzida por John Dalton, para completar o trabalho de Lavoisier na fundação da química. Essa é a segunda grande noção. A matéria comum é concebida como atômica.
Os efeitos eletromagnéticos são concebidos como resultantes de um campo continuo.
Não havia contradição. Em primeiro lugar, as noções são
antitéticas; mas, deixando de lado incorporações especiais, não são logicamente contraditórias. Em segundo lugar, eram aplica
das a diferentes regiões do pensamento: uma à química, outra
ao eletromagnetismo. E, até agora, só há fracos sinais de mistura
entre as duas.
A noção de matéria atômica teve uma longa história. Demócrito e Lucrécio imediatamente ocorrerão à memória de vo
cês. Falando dessas idéias como novas, quero dizer simplesmente relativamente novas, tendo em vista o conjunto das idéias que
formavam a base eficiente da ciência durante o século XVIII. Considerando a história do pensamento, é necessário distinguir
a corrente real que determina um período de pensamentos sem
efeito casualmente sustentados. No século XVIII, todos os homens cultos liam Lucrécio e tinham idéias sobre o átomo, mas
John Dalton é que a tornou eficiente na corrente científica; e
nessa função de eficiência, atomicidade era uma idéia nova.
A influência da atomicidade não se limitava à química. A célula viva é para a biologia o que o elétron e o próton são
para a físíca. Sem as células e os conjuntos de células não há fenômeno biológico. A teoria celular foi introduzida na biolo
gia contemporaneamente a Dalton, mas independentemente
da sua teoria atômica. As duas teorias são exemplificações independentes da mesma idéia de "atomismo". A teoria celular
da biologia era um crescimento gradual, e uma simples lista de datas e nomes ilustra o fato de que as ciências biológicas,
como esquemas efetivos de pensamento, não têm mais de cem
anos. Bichât, em 180 I, elaborou uma teoria do tecido; Johannes Müller, em 1835, descreveu "células" e demonstrou fatos
1128 1
I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I
concernentes à sua natureza e relações; Schleiden, em 1838,
e Schwann, em 1839, estabeleceram-lhe finalmente o caráter fundamental. Assim, por volta de 1840 tanto a biologia como a química foram estabelecidas em bases atômicas. O triunfo final do atomismo teve de esperar pela chegada dos elétrons no fim do século. A importância do fundo imaginativo é ilustrada pelo fato de que, perto de um século depois de Dalton realizar a
sua obra, outro químico, Louis Pasteur, levou avante as mesmas
idéias de atomicidade, indo mais longe que Dalton. A teoria celular e a realização de Pasteur eram em muitos aspectos mais
revolucionárias que as idéias de Dalton, pois introduziram a
idéia de organismo no mundo dos infinitamente pequenos. Havia tendências para tratar o átomo como uma entidade última,
só capaz de relações externas. Essa atitude cai por terra sob a
influência da lei periódica de Mendeleiev. Mas Pasteur apontou a decisiva importância da idéia de organismo no estágio
da grandeza infinitesimal. Os astrônomos nos mostraram como o universo é grande. Os químicos e os biólogos nos ensinam
quanto é pequeno. Há na prática científica moderna um famoso padrão de extensão. É um tanto reduzido; para obtê-lo, devemos dividir o centímetro em cem milhões de partes e tomar
uma delas. Os organismos de Pasteur são bem maiores que essa extensão. Em conexão com os átomos, sabemos agora que há
organismos para os quais tais distâncias são inquietantemente
grandes. As duas outras idéias novas a serem atribuídas a essa época
são ambas relacionadas com a idéia de transição ou mudança.
São a teoria da conservação da energia e a teoria da evolução.
A teoria da energia relaciona-se com a noção de permanência quantitativa ímplicita na mudança. A teoria da evolução relaciona-se com o aparecimento de novos organismos como resultado
da mudança. A teoria da energia está na região da física. A teoria da evolução está principalmente na região da biologia, embora fosse tratada por Kant e Laplace em conexão com a formação das estrelas e dos planetas.
1129 1
"~~7.
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
o efeito convergente da nova força para o progresso científico resultante dessas quatro idéias transformou a metade desse século em uma orgia de triunfo científico. Homens esclarecidos, que estavam evidentemente errados, agora proclamavam que os segredos do universo físico estavam afinal desvendados. Se somente nós omitíssemos tudo quanto se recusa a ser levado em conta, o nosso poder de explicação seria ilimitado.
De outra parte, homens de inteligência confusa emaranharamse nas mais indefensáveis posições. O dogmatismo aprendido,
conjugado á ignorância de fatos primordiais, sofreu uma pesada derrota dos que advogavam novos processos científicos. Assim, além do incitamento derivado da revolução técnica, cumpre agora acrescentar o resultante dos aspectos desvendados pela teoria científica. Tanto a base material como a base espiritual da vida social estavam em processo de transformação. Quando o século entrou nos últimos vinte e cinco anos, as três fontes de inspiração - a romântica, a técnica e a científica - tinham realizado a sua tarefa.
Então, quase de repente, ocorreu uma pausa; e em seus últimos vinte anos o século fechou com um dos mais monótonos estágios de pensamento desde o tempo da Primeira Cruzada. Era um eco do século XVIII, exceto Voltaire e a virtude temerária da aristocracia francesa. O período foi eficiente, monótono e desleixado. Celebrou o triunfo do homem profissional.
Mas, reportando-nos a esse tempo de pausa, podemos agora discernir sinais de mudança. Em primeiro lugar, as con
dições modernas da investigação sistemática impedem absolu
ta estagnação. Em todos os ramos da ciência, havia progresso efetivo, progresso verdadeiramente rápido, muito embora fosse
confinado um tanto estritamente às idéias aceitas de cada ramo. Era uma idade de ortodoxia científica bem-sucedida, não perturbada por muito pensamento além das convenções.
Em segundo lugar, podemos agora ver que o inadequado do materialismo científico como esquema de pensamento para o uso da ciência era perigoso. A conservação da energia propor-
I 130 I
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
cionou novo tipo de permanência quantitativa. É verdade que a energia podia ser construída Como algo subsidiário à matéria. Mas, ainda assim, a noção de "massa" estava perdendo a sua única preeminência na qualidade de a única quantidade permanente final. Mais tarde, achamos as relações de massa e ener-gia invertidas, de modo que massa se tornou o nome de uma quantidade de energia considerada em relação a algum dos seus "
efeitos dinâmicos. Essa corrente de pensamento conduziu à no-ção de energia como fundamental, deslocando assim a matéria
dessa posição. Mas energia é apenas um nome de um aspecto quantitativo de uma estrutura de acontecimentos; em suma, tudo depende da noção de funcionamento de um organismo. A
questão é saber se se pode definir o organismo sem recorrer ao conceito de matéria em posição simples. Devemos mais tarde
considerar, com maiores detalhes, esse assunto. A mesma relegação da matéria ao segundo plano ocorre
em conexão com os campos eletromagnéticos. A teoria moderna pressupõe acontecimentos nesse campo divorciados da dependência imediata da matéria. É costume apresentar o éter como um substrato. Mas o éter não entra nessa teoria. Assim, novamente a noção de matéria perde a sua posição fundamental. Também o átomo transforma-se em organismo: finalmente
a teoria da evolução nada mais é que a análise das condições para a formação e sobrevivência de vários tipos de organismos. Na verdade, um fato mais significativo desse último período é
o progresso nas ciências biológicas. Essas são ciências que es
sencialmente dizem respeito ao organismo. Durante a época em questão, e na verdade também no momento presente, o
prestigio da mais perfeita forma científica pertence às ciências físicas. Sendo assim} a biologia imita os procedimentos da física.
É ortodoxo sustentar que nada há em biologia senão o mecanismo físico sob algumas das circunstâncias complexas.
Uma dificuldade dessa posição é a atual confusão sobre a concepção fundamental da ciência física. A mesma dificuldade também se relaciona com a teoria oposta do vitalismo,
1131 I
-,w;.l~' '
·"~"·:"-'m·,""-·
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
pois nessa última teoria o fato do mecanismo é aceito - quero dizer, mecanismo baseado no materialismo - e um controle adicional e vital é introduzido para explicar as ações dos corpos vivos. Não pode ser claramente compreendido que as várias leis físicàs que parecem aplicar-se ao comportamento dos átomos não são mutuamente constantes como na presente formulação. O apelo ao mecanismo em favor da biologia foi em sua origem
um apelo aos conceitos físicos bem atestados e constantes por
si mesmos que expressam a base de todos os fenômenos naturais. Mas na atualidade não há tal sistema de conceitos.
A ciência está tomando um novo aspecto que não é nem puramente físico nem puramente biológico. Está transformando-se no estudo dos organismos. A biologia é o estudo dos organismos maiores, ao passo que a física é o estudo dos organismos menores. Há outra diferença entre as duas divisões da ciência. Os organismos da biologia incluem como ingredientes os organismos menores da física, mas não há atualmente nenhuma prova de que os organismos menores da física possam ser analisados em organismos componentes. Que seja assim. Mas, de qualquer modo, somos confrontados com a questão de haver ou não organismos primários incapazes de análises posteriores. Parece muito improvável que pudesse haver alguma infinita regressão na natureza. Assim, uma teoria da ciência que exclua o materialismo deve responder à questão sobre o caráter dessas entidades primárias. Só pode haver uma resposta com base nisso. Devemos começar com o acontecimento como a última unidade da ocorrência natural. Um acontecimento relacionase com tudo quanto há, e em particular com todos os demais acontecimentos. Essa interfusão de acontecimentos é influenciada pelos aspectos dos objetos eternos tais como cores, sons, cheiros, caracteres geométricos exigidos pela natureza e não decorrentes dela. Esse objeto eterno será um ingrediente de um acontecimento sob a aparência ou aspecto da qualificação de outro acontecimento. Há uma reciprocidade de aspectos, e há modelos de aspectos. Cada acontecimento corresponde a dois
1132 1
I A CIÊNCIA E o MUNDO MODERNO I
desses modelos; isto é, o modelo de aspectos de outros acontecimentos que apanha em sua própria unidade, e o modelo dos seus aspectos que outros acontecimentos respectivamente apanham nas suas unidades. Assim, uma filosofia da natureza não materialista identificará um organismo primário como a decorrência de algum modelo particular apanhado na unidade do acontecimento real. Tal modelo também incluirá os aspec
tos do acontecimento em questão, como apanhado em outros acontecimentos, por meio do qual esses outros acontecimentos recebem modificação ou determinação parcial. Há, assim, uma realidade intrínseca e outra extrínseca de um acontecimento, isto é, o acontecimento em sua própria preensão, e o acontecimento na preensão de outros acontecimentos. O conceito de organismo inclui, portanto, o conceito de ação mútua dos organismos. As idéias científicas comuns de transmissão e continuidade são, falando de modo relativo, detalhes que concernem aos caracteres empíricos observados desses modelos através do tempo e do espaço. A postura aqui sustentada é a de que as relações de um acontecimento são internas no que diz respeito ao próprio acontecimento, o que significa que são constitutivas daquilo que o acontecimento é em si mesmo.
Também como no capítulo anterior, chegamos á noção de que um acontecimento real é uma realização cabal por si mesma, um apossar-se de diversas entidades em um valor decorrente da razão da real condição de estarem juntas nesse modelo, com exclusão de outras entidades. Não é a mera conjugação
lógica de meras coisas diversas, pois, nesse caso, modificando as palavras de Bacon, "todos os objetos eternos seriam semelhantes entre si". Essa realidade significa que cada essência in
trínseca, isto é, o que o objeto eterno é em si mesmo, torna-se importante para um valor limitado que se destaca da aparência de acontecimento. Mas os valores diferem em importância. Assim, embora o acontecimento seja necessário à comunidade dos acontecimentos, o alcance da sua contribuição é determinado por algo intrínseco em si. Temos agora de discutir o que
1 133 1
''l'q
,:
/r
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
vem a ser essa propriedade. A observação empírica mostra que é a propriedade que todos chamamos indiferentemente "retenção", "duração" ou "reiteração". Essa propriedade importa no restabelecimento em favor do valor em meio à transitoriedade da realidade, da entidade em si que é também experimentada
pelos objetos eternos primários. A reiteração de determinada forma (ou formação) de um valor em um acontecimento OCorre
quando o acontecimento como um todo repete alguma forma
também apresentada por cada sucessão de suas partes. Assim, como quer que analisemos o acontecimento de acordo com o
fluxo de suas partes através do tempo, há a mesma coisa em si apresentando-se diante de nós. Sendo assim, o acontecimento em sua própria realidade reflete-se como derivado de suas próprias partes, aspectos do mesmo valor modelar como se realiza em sua completa essência. Assim se realiza sob a aparência de uma entidade individual duradoura como uma história de vida contida em si mesma. Além disso, a realidade extrínseca de tal acontecimento refletida em outro acontecimento toma a mes
ma forma de uma individualidade duradoura; só nesse caso a individualidade é implantada como uma reiteração de aspectos de si mesma nos outros acontecimentos que constituem o ambiente.
A duração temporal total de tal acontecimento que contém e conserva o modelo constitui o seu presente ilusório. Nesse
presente ilusório, o acontecimento atualiza-se como totalidade
e, ao fazer isso, agrupa em conjunto certo número de aspectos de suas próprias partes temporais. Um e o mesmo modelo é
atualizado no acontecimento total e é apresentado por cada
uma das suas várias partes através de um aspecto de cada parte apanhada no conjunto do acontecimento total. Igualmente, a história anterior de vida do mesmo modelo é apresentada em seus aspectos nesse acontecimento total. Há, portanto, nesse acontecimento, uma lembrança da história anterior de vida de seu próprio modelo dominante como constituindo um elemento de valor em seu próprio ambiente antecedente. Essa pre-
1 134 1
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
ensão concreta de dentro de uma história de vida de um fato
duradouro é divisível em duas abstrações, uma das quais é a entidade duradoura que ressalta como um fato para ser tomado em conta por outras coisas, e o outro é a incorporação individualizada da energia fundamental de atualização.
A consideração da marcha geral dos acontecimentos conduz a essa análise de uma energia fundamental eterna em cuja
natureza ressalta uma configuração do domínio de todos os
objetos eternos. Tal configuração é o terreno dos pensamentos individualizados que ressaltam como aspectos de pensamentos
apanhados na história de vida dos mais sutis e mais complexos modelos duradouros. Também na natureza da atividade eterna deve estender-se uma configuração de todos os valores a serem obtidos pelo conjunto real dos objetos eternos configurados em situações ideais. Tais situações ideais, separadas de qualquer realidade, são privadas de valor intrínseco, mas valem como elementos propostos. A preensão individualizada em acontecimentos individuais de aspectos dessas situações ideais toma a forma de pensamentos individualizados, e como tais tem valor intrínseco. Assim surge o valor porque não há uma conjugação real dos aspectos ideais, como em pensamento, com os aspectos reais, como no processo de ocorrência. Desse modo, nenhum
valor deve restringir-se á atividade básica divorciado dos acontecimentos de fato do mundo real.
Finalmente, para resumir o meu pensamento, a atividade
básica concebida á parte da realização tem três tipos de confi
gurações, que são: primeiro, a configuração dos objetos eternos; segundo, a configuração das possibilidades de valor a respeito
da síntese dos objetos eternos, e por último a configuração do fato real que deve entrar na situação total que se completa COm o acréscimo do futuro. Mas, abstraindo-se da realidade, a atividade eterna é divorciada do valor, porque a realidade é o valor. A percepção indiVidual decorrente de objetos duradouros varia em sua profundidade e largura, de acordo com a maneira como o modelo domina o seu próprio caminho. Pode representar a
11351
-~..". ,l~
,.
/
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
mais leve ondulação diferenciadora da energia substrata geral;
ou, no Outro extremo, pode surgir para o pensamento consciente, que inclui a ponderação antes do juízo consciente, as possibilidades abstratas de valor inerente a várias situações de
conjunto ideal. Os casos intermediários agrupam-se em torno da percepção individual, configurando (não conscientemente) aquela possibilidade de realização que representa a mais pró
xima analogia com o seu próprio passado imediato que tem relação com os aspectos atuais apresentados à preensão. As leis da física representam o harmonizado ajustamento de desen
volvimento resultante desse único princípio de determinação. Assim, a dinâmica é dominada por um princípio de menor ação cujo caráter detalhado deve ser aprendido na observação.
As entidades atômicas consideradas na ciência física são simplesmente essas entidades duradouras, concebidas com abstração de tudo, exceto o concernente à sua recíproca influência que determina os caminhos da história de vida de cada uma das outras. Essas entidades são parcialmente formadas pela inerência de aspectos de outros acontecimentos que constituem o seu ambiente. As leis da física são as que declaram como os aconte
cimentos reagem mutuamente. Para a física, essas leis são arbitrárias, pois essa ciência prescindiu do que as entidades são em si. Vímos que esse fato do que as entídades sejam em si é passível de modificações pelo ambiente. Por conseguinte, a afirmação
de que nenhuma modificação dessas leis deva ser procurada em ambientes que tenham qualquer diferença marcante com res
peito a ambientes para os quais as leis tenham sido observadas
não tem fundamento. As entidades físicas podem ser modificadas de maneiras muito essenciais, no que concerne a essas leis.
Pode até ocorrer que elas se desenvolvam em individualidades de tipos mais fundamentais, com mais larga incorporação de configuração. Tal configuração pode alcançar a consecução da ponderação de valores alternativos com o exercício de escolha para além das leis físicas e que só se pode exprimir em termos de desígnio. Pondo à parte tais possibilidades remotas, perma-
1 136 1
1 A CltNCIA E o MUNDO MODERNO 1
nece uma dedução imediata de que uma entidade individual cuja própria história de vida é uma parte dentro da história de vida de algum modelo maior, mais profundo e mais completo, é suscetível de ter aspectos desse modelo maior que domina o seu próprio ser, e de experimentar modificações desse modelo maior refletido como modificações do seu próprio ser. Essa é a teoria do mecanismo orgânico.
De acordo com essa teoria, a evolução das leis da natureza concorre com a evolução do modelo duradouro, porque
o estado geral do universo, tal como é atualmente, em parte determina a verdadeira essência das entidades cujos modos de função são expressos por essas leis. O principio geral é que em um novo ambiente há uma evolução de todas as entidades em novas formas.
Esse rápido esboço de uma teoria sistemática da natureza habilita-nos a compreender os principais requisitos da teoria da evolução. O principal trabalho, dando prosseguimento durante essa pausa no século XIX, foi a absorção dessa teoria como guia
metodológico de todos os ramos da ciência. Por uma cegueira quase judicial como uma penalidade imposta ao pensamento superficial e apressado, muitos pensadores religiosos opuseramse à nova teoria, muito embora, na verdade, uma filosofia radicalmente evolucionista seja incompatível com o materialismo. O estofo ou material originário de que parte uma filosofia ma
terialista é incapaz de evolução. Esse material é em si a subs
tância última. A evolução, na filosofia materialista, reduz-se ao papel de ser outro termo para a descrição das mudanças das
relações externas entre porção e matéria. Nada há para evoluir, porque um conjunto de relações externas é tão bom quanto
outro conjunto de relações externas. Pode haver simplesmente mudança, sem propósito nem progresso. Mas toda a tese da teoria moderna consiste na evolução dos organismos complexos com base nos estados antecedentes de organismos menos complexos. A teoria, pois, clama por uma concepção do organismo como fundamental para a natureza. Também exige uma ativi-
11371
-~~
/
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
dade básica - uma atividade substancial- que se expresse em
incorporações individuais, e que evolua em plenas realizaçõ('s de organismo. O organismo é uma unidade de valor salient~, uma fusão real dos caracteres dos objetos eternos, que surgeln por si mesmos.
Assim, no processo de analisar o caráter da natureza em si, verificamos que o aparecimento de organismos depende de
uma atividade seletiva que se assemelha ao propósito. O ponto é que os organismos duradouros são agora o resultado da evo
lução; e que, para além desses organismos, não há nada mais que dure. No que diz respeito à teoria materialista, há material - como matéria de eletricidade - que dura. Quanto à teoria orgânica, as únicas durações são estruturas da atividade, e as estruturas são expandidas.
As coisas duradouras são, assim, o resultado de um processo temporal; ao passo que as coisas eternas são os elementos exigidos para a verdadeira essência do processo. Podemos dar uma definição precisa da duração deste modo: admitamos
um acontecimento A ser penetrado por um modelo estrutural duradouro. Então, A pode ser exaustivamente subdividido em uma sucessão temporal de acontecimentos. Admitamos que B seja uma parte de A, que é obtido tirando cada um dos acontecimentos pertencentes a uma série que assim subdivide A. Então, o modelo duradouro é um modelo de aspectos dentro do modelo completo preendido na unidade de A e é também
um modelo completo preendido na unidade de qualquer fragmento temporal de A, como B. Por exemplo, uma molécula é
um modelo apresentando num acontecimento de um minuto e de qualquer segundo desse minuto. É óbvio que esse modelo
duradouro pode ser de maior ou de menor importância. Pode exprimir algum fato insignificante em conexão com as atividades básicas assim individualizadas; ou pode expressar alguma conexão muito próxima. Se o modelo que dura é simplesmente derivado dos aspectos imediatos do meio exterior, refletido nos pontos de vista das várias partes, então a duração é um fato ex-
I 138 I
I A CI~NC1A E O MUNDO MODERNO I
trínseco de somenos importância. Mas, se o modelo duradouro é inteiramente derivado dos aspectos imediatos, das várias seções temporais do acontecimento em questão, a duração é um fato intrínseco importante. Exprime certa unidade de caráter unindo as atividades básicas individualizadas. Há, então, um
objeto duradouro com certa unidade em si e no resto da natureza. Usemos o termo duração física para exprimir a duração
desse tipo. Assim, duração físíca é o processo da herança con
tínua de certa identidade de caráter transmitido mediante um caminho histórico de acontecimentos. Esse caráter pertence ao
caminho todo e a todos os acontecimentos do caminho. Essa é a exata propriedade. Se existiu por dez minutos, existiu em todos os minutos dos dez minutos e durante todos os segundos de todos os minutos. Só se tomarmos a matéria como fundamental, essa propriedade de duração será um fato arbitrário na base da ordem da natureza; mas, se tomarmos o organismo como fundamental, essa propriedade é o resultado da evolução.
À primeira vista dir-se-á que um objeto físico, com o seu processo de herança de si mesmo, é independente do meio ambiente. Mas tal conclusão carece de justificação, pois admitamos que B e C sejam dois fragmentos sucessivos na vida de
um objeto, de tal modo que C suceda a B. Então, o modelo duradouro em C é herdado de B e de outras partes análogas antecedentes da sua vida. É transmitido de B para C. Mas o que
é transmitido a C é o modelo completo de aspectos derivados de acontecimento como B. Esses modelos completos incluem
a influência do meio sobre B e sobre as demais partes antecedentes da vida do objeto. Assim, os aspectos completos da vida
antecedente são herdados como o modelo parcial que dura por
todos os períodos da vida. Com isso, um ambiente favorável é
essencial à manutenção de um objeto físico. A natureza como a conhecemos compreende enormes
permanências. Há a permanência da matéria comum. As moléculas nas mais antigas rochas conhecidas pelos geólogos podem ter existido imutáveis por mais de um bilhão de anos, não só
I 139 I
'~~'~-.
\ /1.
7,,<:.,"
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
em si mesmas, mas na disposição relativa entre si. Nesse espaço de tempo, o número das pulsações de uma molécula a vibrar
com a freqüência da luz do sódio amarelo seria de cerca de 16,3 x 10"= 163.000 X (10')3 Até há pouco tempo, o átomo era aparentemente indestrutível. Conhecemo-lo melhor hoje em dia. Mas o átomo indestrutível foi sucedido pelo elétron aparentemente indestrutível e pelo próton indestrutível.
Outro fato a explicar é a grande similitude desses objetos
praticamente indestrutíveis. Todos os elétrons são semelhantes
entre si. Não precisamos exagerar essa evidência e dizer que eles são idênticos; mas o nosso poder de observação não pode vislumbrar diferença alguma. Analogamente, todos os núcleos de hidrogênio são semelhantes. Também notamos o grande número desses objetos análogos. Há milhões deles. Poder-se-ia
dizer que certa similitude seria uma condição favorável para a duração. O senso comum também sugere essa conclusão. Para
que os organismos possam sobreviver, devem atuar juntos. Assim, a chave do mecanismo da evolução é a necessidade
de um ambiente favorável a evolução, conjugado com a evolução de qualquer tipo especifico de organismos capazes de grande permanência. Qualquer objeto fisico que, por sua influência,
modifica o seu ambiente, se suicida. Um dos modos mais simples de envolver um ambiente
favorável em concorrência com o desenvolvimento do organismo individual é o de que a influência de cada organismo no
ambiente deve ser favorável a duração de outros organismos do mesmo tipo. Além disso, se o organismo também favorece o
"desenvolvimento" de outros organismos do mesmo tipo, então
obteremos um mecanismo de evolução adaptado a produzir o estado observado de grandes multidões de entidades análogas, com altos poderes de duração, pois O ambiente desenvolve-se automaticamente com a espécie, e a espécie com o ambiente.
A primeira indagação a fazer é se há alguma prova direta para tal mecanismo na evolução de organismos duradouros. Observando a natureza, devemos lembrar que não existem tão-
1 140 1
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
somente organismos básicos cujos ingredientes são meros aspectos de objetos eternos. Há também organismos de organismos. Suponhamos, no momento e por questão de simplicidade, que afirmamos, sem nenhuma prova, que os núcleos de elétron e de hidrogênio são tais organismos básicos. Então, os átomos
e as moléculas são organismos do mais alto tipo, que também representam uma unidade compacta, definida e orgânica. Mas,
quando chegamos a maiores agregados de matéria, a unidade
orgânica é relegada ao segundo plano. Parece ser apenas fraca e elementar. Está presente, mas o modelo é vago e hesitante.
É um mero agregado de efeitos. Quando chegamos aos seres vivos, o caráter definido do modelo é recuperado, e o caráter orgânico adquire de novo preeminência. Assim, as leis características da matéria inorgânica são principalmente as médias estatisticas resultantes de agregados conjugados. Tão longe estão de lançar luz sobre a natureza última das coisas, que mancham e obliteram o caráter individual dos organismos individuais. Se desejamos lançar luz sobre os fatos relativos aos organismos, devemos estudar ou as moléculas e elétrons individuais, ou os seres vivos individuais. Entrementes encontramos conjugação comparativa. Atualmente, a dificuldade de estudar a molécula individual é que conhecemos pouco sobre a sua história. Não
podemos manter nenhum indivíduo sob observação continua. Em geral, lidamos com eles em grandes agregados. No que diz respeito aos indivíduos, algumas vezes com dificuldades, um
grande experimentador projeta, por assim dizer, um feixe de luz em um deles, e só observa um fato de efeito instantâneo.
Assim, a história do funcionamento das moléculas ou elétrons
individuais é grandemente oculta para nós. Mas no caso dos seres vivos, podemos traçar a história dos
indivíduos. Então achamos exatamente o mecanismo aqui exigido. Em primeiro lugar, há a propagação das espécies a partir de membros da mesma espécie. Há também a cuidadosa provisão do ambiente favorável para a duração da família, da raça ou da semente no fruto.
1 141 1
I ,
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
É evidente, contudo, que expliquei o mecanismo da evo
lução em termos demasiado simples. Achamos espécies associadas de seres vivos proporcionando para cada um deles um ambiente favorável. Portanto, exatamente como cada elemento da mesma espécie favorece o outro, assim também fazem os membros das espécies associadas. Achamos o fato rudimentar da associação na existência de duas espécies de núcleos de elé
tron e de hidrogênio. A simplicidade da associação dual e a evidente ausência de competição de outras espécies antagôni
cas são levadas em conta na duração maciça que encontramos
entre elas. Há, portanto, dois lados do mecanismo peculiar ao desen
volvimento da natureza. De um lado, há um ambiente dado com organismos que se lhe adaptam. O materialismo científico
da época em análise acentuou esse aspecto. Desse ponto de vista, há um dado conjunto de materiais, e só um número limitado
de organismos pode tirar proveito dele. O arranjo do ambiente domina tudo. Assim, a última palavra da ciência parece ser Luta
pela Vida e Seleção Natural. Os próprios escritos de Darwin são para todos os tempos um modelo de recusa a ir além da prova direta e da cuidadosa retenção de todas as hipóteses possíveis. Mas essas virtudes não são tão patentes em seus seguidores e menos ainda em seus companheiros de luta. A imaginação
dos sociólogos e jornalistas europeus foi marcada pela exclusiva atenção para esse aspecto dos interesses em conflito. Prevaleceu
a idéia de que havia um peculiar realismo de espírito forte no afastamento das considerações éticas na determinação da con
duta dos interesses comerciais e nacionais. O outro lado do mecanismo da evolução, o lado negli
genciado, é expresso pela palavra criatividade. Os organismos podem criar o seu próprio ambiente. Para esse fim, o organismo de per si é quase sem serventia. As forças adequadas exigem sociedades de organismos em cooperação. Mas, em tal cooperação e em proporção com o esforço empregado, o ambiente tem uma plasticidade que altera todo o aspecto ético da evolução.
1 142 1
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
No passado imediato e no presente, um confuso estado de espírito é permanente. A crescente plasticidade do ambiente para a humanidade, resultante do progresso na tecnologia científica, está sendo construída em termos de hábitos de pensamento que acham a sua justificação na teoria de um ambiente fixo.
o enigma do universo não é tão simples. Há o aspecto da
permanência nO qual um dado tipo de consecução é infinitamente repetido por si mesmo; e há o aspecto da transição para
outras coisas - pode ser de mais alto valor ou de mais baixo valor. Também há os seus aspectos de luta e de amigável auxílio. A crueldade romântica não está mais próxima da política realista do que está a abnegação romântica.
1 143 1
'~"~W
:'
I,.;;.,.,.,,:+_fr'.o·,
I CAPiTULO VII I
A RELATIVIDADE
No capítulo anterior deste curso consideramos as condições antecedentes que levaram ao movimento cientifico e traçamos o progresso do pensamento do século XVII ao século XIX. No século XIX, essa história acontece em três partes, conforme seu agrupamento em tomo da ciência. Essas divisões são o contato entre o movimento romântico e a ciência,
o desenvolvimento da técnica e da física na primeira parte do século e, finalmente, a teoria da evolução combinada com o progresso geral das ciências biológicas.
A nota dominante de todo o periodo de três séculos é que
a doutrina do materialismo proporcionou uma base adequada ao conceito da ciência. Era algo praticamente inquestionável.
Quando se pediam ondulações, dava-se o éter, de modo a realizar os deveres da matéria ondulatória. Para mostrar toda a
concepção que isso envolve, esbocei uma doutrina alternativa de uma teoria orgânica da natureza. No último capítulo afirmei
que os desenvolvimentos biológicos, a teoria da evolução, a teoria da energia e as teorias moleculares estavam rapidamente
abalando os alicerces da adequação do materialismo ortodoxo. Mas até o fim do século ninguém chegou a eSSa conclusão. O
materialismo reinou supremo. A marca da época atual é que tantas complexidades foram
desenvolvidas no que se refere à matéria, ao espaço, ao tempo
e à energia, que a simples segurança de antigas afirmações orto
doxas acabou por definhar. Claro que não ficarão como Newton
I 145 I
!
mlf ,J rOM .... """ _
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
as deixou, nem mesmo como as deixou Clerk Maxwell. Deve
haver uma reorganização. A situação nova do pensamento h2:. diemo resulta do fato de que a teoria científica está ultrapassando o senso comum. O enunciado tal como nos legou o século
XVIII, foi um triunfo do senso comum organizado. Livrara-se
das fantasias medievais e dos vórtices cartesianos. Como resulta
do, deu pleno desenvolvimento às suas tendências anti-raciona
listas derivadas da reviravolta histórica do período da Reforma. Assentou-se sobre o que todo homem comum pode ver com os
seus próprios olhos, ou com um microscópio de poder razoável.
Media as coisas claramente mensuráveis, e generalizava as coi
sas claramente generalizáveis. Por exemplo, generalizava as no
ções ordínárias de peso e de massa. O século XVIII iniciou com a confiança completa de que a tolice tinha sido evitada. Hoje estamos no pólo oposto do pensamento. Sabe-se que aquilo que parece sem sentido hoje pode tornar-se amanhã uma verdade
demonstrada. Retomamos algo do tom do principio do século XIX, só que em nível imaginativo mais alto.
A razão por que estamos em nível imaginativo mais alto
é não que temos imaginação mais refinada, mas sim que temos
melhores instrumentos. Em ciência, a coisa mais importante
que aconteceu durante os últimos quarenta anos foi o progresso
na forma dos instrumentos. Esse progresso é em parte devido a
alguns homens de gênio como Michelson e os ópticos alemães.
Também se deve ao progresso dos processos técnicos de manufatura, particularmente no domínio da metalurgia. O projetista
tem agora à sua disposição uma variedade de materiais de diferentes propriedades físicas. Pode assim contar com o material
que deseja; e isso pode ser a base das formas que deseja dentro de estritos limites de tolerância. Esses instrumentos puseram
o pensamento em novo nível. Um instrumento faz o mesmo
que uma viagem ao estrangeiro: mostra as coisas em combina
ções inusitadas. O lucrn é mais do que simples adição: ~ transformação. Ó progresso na engenhosidade experimental é talvez devido à maior proporção do talento público que agora é
11461
I A CI~NCIA E O MUNDO MODE:RNO I
aplicado nas pesquisas cientificas. De qualquer modo, seja qual for O propósito, experiências sutis e engenhosas abundam na
última geração. O resultado é que uma grande quantidade de informação foi acumulada em regiões da natureza removidas
para muito longe da experiência comum da humanidade.
Duas famosas experiências, uma projetada por Galileu no princípio do movimento científico, e a outra por Michelson ,.
com o uso do seu famoso interferômetro, empreendida pela
primeira vez em 1881, e repetida em 1887 e em 1905, ilustram as afirmações que acabo de fazer. Galileu deixou cair corpos pesados do alto da torre inclinada de Pisa e demonstrou que
corpos de diferentes pesos, soltados simultaneamente, alcançariam o solo juntos. No que se refere à habilidade experimental e à delicadeza do aparelho, essa experiência podia ser feita em qualquer tempo dos cinco milênios anteriores. As idéias em questão concernem meramente ao peso e à rapidez no trajeto,
idéias que são familiares na vida ordinária. Todo conjunto de idéias podia ter sido familiar ao rei Minas de Creta, quando atirava pedras ao mar do alto das muralhas que se elevavam na praia. Não conseguimos compreender completamente que a
ciência começou com a organização das experiências ordiná
rias. Foi desse modo que ela se uniu tão estreitamente ao ponto
de vista anti-racionalista da reviravolta histórica. Não andava
à procura de significações últimas. Limitava-se a investigar as
conexões que regulam a sucessão dos acontecimentos óbvios.
Já a experiência de Michelson não poderia ter sido feita antes. Ela requeria o progresso geral da técnica e o gênio expe
rimentaI de Michelson. Diz respeito à determinação do movi
mento da Terra através do éter e afirma que a luz consiste em ondas de vibração avançando em uma razão fixa através do éter em qualquer direção. Também, naturalmente, a Terra move-se através do éter, e o aparelho de Michelson se move com a Terra. No centro do aparelho, um raio de luz é dividido de modo que meio raio vai em uma direção ao longo do aparelho por uma distância dada, e é refletido no centro por um espelho no
1147 1
; \~ ir
d .
''1"1>",.", , • .,., ... -
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
aparelho. O outro meio raio cobre a mesma distância em dire
ção transversal ao aparelho em uma direção em ângulos retos com o raio-padrão, e também é refletido no centro. Esses raios reunidos são então refletidos em um anteparo no aparelho. Se são tomadas as precauções, vemos faixas interferentes, isto é,
faixas de escuridão onde as cristas das ondas completaram os intervalos dos outros raios, devidas a uma diferença diminu
ta nos comprimentos dos caminhos dos dois meios-raios até certas partes dos anteparos. Essas diferenças de comprimento
serão afetadas pelo movimento da Terra, porque são os comprimentos dos caminhos no éter que contam. Assim, desde que o aparelho esteja se movendo com a Terra, o caminho de um meio-raio será desviado pelo movimento de maneira diferente do caminho do outro meio-raio. Imaginem-se movendo em um vagão de trem, primeiro ao longo do trem, e depois em direção transversal ao trem; e marquem O caminho no itinerário do trem que, nessa analogia, corresponde ao éter. Agora, o movimento da Terra é muito lento comparado ao da luz. Assim, na
analogia podem imaginar o trem quase em completo repouso, e vocês mesmos movendo-se muito rapidamente.
Na experiência, esse efeito do movimento da Terra afetaria as posições das faixas de interferência sobre o anteparo. Também, se vocês rodarem o aparelho através de um ângulo reto, o resultado do movimento da Terra sobre os dois meiosraios será trocado, e as posições das faixas interferentes seriam deslocadas. Podemos calcular a pequena deslocação que resulta do movimento da Terra em redor do Sol. Também a esse efeito
devemos acrescentar o devido ao movimento do Sol através do éter. A delicadeza do instrumento pode ser experimenta
da, e pode ser provado que esse efeito dos deslocamentos são suficientemente grandes para serem observados por ele. Ora, o ponto é que nada foi observado. Não há nenhum deslocamento quando o instrumento é girado.
A conclusão é que ou a Terra está sempre estacionária no éter, ou existe algo errado nos princípios fundamentais dos
1 148 1
I A CltNClA E o MUNDO MODERNO I
quais depende a interpretação da experiência. É óbvio que nessa experiência estamos muito longe dos pensamentos e dos brinquedos dos filhos do rei Minos. As idéias de um éter com ondas de interferência, do movimento da Terra através do éter e do interferômetro de Michelson encontram-se distantes. Mas, por mais remotas que estejam, são Simples e óbvias comparadas com a explicação aceita do resultado fútil da experiência.
A base da experiência é que as idéias de tempo e de es
paço empregadas na ciência são simples demais e devem ser modificadas. Essa conclusão é um golpe direto no senso co
mum, porque a ciência antiga sempre fez questão das noções ordinárias do homem comum. Semelhante reorganização radical das idéias não deve ser adotada, a menos que tenha sido confirmada por muitas outras observações que não necessitamos considerar. Certa forma da teoria da relatividade parece ser o meio mais simples para explicar um grande número de fatos que de outra forma exigiriam alguma explicação ad hoc. A teoria, portanto, não depende meramente da experiência que lhe deu origem.
O ponto central da explicação é que todos os instrumentos, como o aparelho de Michelson usado na experiência, registram necessariamente a velocidade da luz como tendo uma e a mesma rapidez definida, a ela relativa. Quero dizer que o interferômetro em um cometa e o interferômetro na Terra revelariam necessariamente a velocidade da luz relativamente a ambos com o mesmo valor. Isso é obviamente um paradoxo, uma vez que a luz move-se com velocidade definida através do
éter. Assim, é de esperar que tenham velocidades diferentes dois corpos, como O cometa e a Terra, movendo-se em velocidade desigual através do éter. Por exemplo, consideremos dois carros em uma estrada, correndo a dez e a vinte milhas por hora respectivamente e que foram ultrapassados por outro carro correndo a cinqüenta milhas por hora. O carro rápido passará um dos dois carros com a velocidade relativa de quarenta milhas por hora e o outro com a média de trinta milhas por hora. Da
1149 1
"~\l,f;ir
"
,~"<,,,.,.. ~' ... --
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
aplicação à luz resulta que, se substituímos o carro rápido por um raio de luz, a velocidade da luz ao longo do caminho seria a mesma que a velocidade de qualquer dos dois carrOS considerados. A velocidade da luz é imensamente grande, sendo de uns trezentos mil quilômetros por segundo. Devemos ter sobre o espaço e sobre o tempo noções tais que só essa velocidade tenha esse caráter peculiar. Segue-se que todas as nossas noções
de velocidade relativa devem ser reformuladas. Mas essas no
ções são o resultado imediato de nossas noções habituais sobre espaço e tempo. Assim, voltamos à posição de que houve algu
ma coisa de que não se cuidou na presente exposição do que entendemos por espaço e por tempo.
Sendo assim, nossa suposição habitual e fundamental é que há um único significado para ser dado ao espaço e um único significado para ser dado ao tempo, de sorte que, seja qual for o significado dado às relações espaciais com respeito ao instrumento na Terra, o mesmo significado deve ser dado a elas com respeito ao instrumento no cometa} e o mesmo significado ao instrumento em repouso no éter. Na teoria da relatividade,
isso é negado. No que concerne ao espaço, não há nenhuma dificuldade em concordar, se pensamos nos fatos óbvios do movimento relativo. Mas mesmo aqui a mudança de significado tem de ir além do que teríamos sancionado pelo senso
comum. Também a mesma exigência se faz quanto ao tempo, de sorte que as datas relativas de acontecimentos e os lapsos de
tempo entre elas devem ser calculados como díferentes quanto ao instrumento na Terra, quanto ao instrumento no cometa e
quanto ao instrumento no éter. Esse é um esforço maior para a nossa credulidade. Não necessitamos provar a questão além
da conclusão de que para a Terra e para o cometa, espacialidade e temporalidade têm cada uma significado diferente dentro de condições diferentes, tais como as apresentadas pela Terra e pelo cometa. Assim, a velocidade tem significados diferentes para os dois' corpos. Assim, a afirmação científica moderna é de que, se alguma coisa tem a velOcidade da luz em referência a
1 150 1
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
qualquer significado do espaço e do tempo, então terá a mesma velocidade de acordo com qualquer outro significado de espaço e de tempo.
Esse é um pesado golpe contra o materialismo cientifico clássico, que pressupõe um instante presente definido, no qual toda matéria é simultaneamente real. Na teoria moderna, não há essa unidade de instante presente. Podemos achar um signi
ficado para a noção do instante simultâneo ao longo de toda a
natureza, mas será um significado diferente para noções diferentes de temporalidade.
Há certa tendência de fazer uma interpretação extrema
mente subjetivista dessa nova teoria. Quero dizer que a relatividade do tempo e do espaço foi construida como se fosse dependente da escolha do observador. É perfeitamente legítimo
ter em vista o observador, se ele facilita as explicações. Mas é o corpo do observador que queremos, e não a sua mente. Mas esse corpo só é útil como um exemplo de aparelho muito familiar. No todo, é melhor concentrar a atenção no interferômetro de Michelson e deixar o corpo e a mente de Michelson fora do exemplo. A questão é a seguinte: por que o interferômetro tinha faixas negras no anteparo, e por que essas faixas não se deslocavam levemente enquanto o instrumento girava? A nova
relatividade associa espaço e tempo com uma intimidade até agora não contemplada: e pressupõe que a sua separação no fato concreto pode ser conseguida por modos alternativos de
abstração, tendo significações alternativas. Mas cada modo de
abstração dirige a atenção para alguma coisa que existe na natureza e portanto a isola com o propósito de a considerar. O fato relevante para a experiência é a importância do interferômetro para só um dentre os muitos sistemas alternativos dessas
relações espaciotemporais que aparecem entre entidades naturais.
O que agora devemos pedir à filosofia é dar-nos uma interpretação do status do tempo e do espaço na natureza, de modo que seja preservada a possibilidade de significados alter-
1 151 1
-"'~?C
"p •• ".'.""':""",~.,,,,,,,'''''''''
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
nativos. Esses capítulos não comportam o exame dos detalhes, mas não há dificuldade em apontar onde se deve procurar a
origem da discriminação entre o espaço e o tempo. Pressuponho a teoria orgânica da natureza, que esbocei como base de
um objetivismo radical. Um acontecimento é a consideração em unidade de um
modelo de aspectos. A efetividade de um acontecimento para
além de si mesmo surge dos seus próprios aspectos que vão formar as unidades preendidas de outros acontecimentos. A
não ser nos aspectos sistemáticos das formas geométricas, essa efetividade é trivial, se o modelo refletido liga-se simplesmente ao acontecimento como um todo. Se o modelo dura através das partes sucessivas do acontecimento e também se apresenta no conjunto, de modo que o acontecimento seja a história de vida
do modelo, então, em virtude desse modelo duradouro, o acontecimento ganha em efetividade externa, porque a sua própria
efetividade é reforçada pelos aspectos análogos de todas as suas partes sucessivas. O acontecimento constitui um valor modelado com uma permanência inerente através de suas próprias partes. E, em razão dessa duração inerente, o acontecimento é
importante para a modificação do seu meio. Nessa duração do modelo é que o tempo se diferencia do
espaço. O modelo é espacialmente agora, e a sua determinação
temporal constitui a sua relação com cada acontecimento parcial, pois é reproduzido nessa sucessão temporal dessas partes
espaciais de sua própria vida. Quero dizer que essa norma par
ticular da ordem temporal permite que o modelo seja reproduzido em cada fragmento temporal da sua história. De certa for
ma, cada objeto duradouro descobre na natureza e dela exige um princípio de discriminação entre espaço e tempo. A parte o
fato de um modelo duradouro, esse principio pode estar nisso, mas seria latente e trivial. Assim, a importância do espaço em confronto com o tempo e do tempo em confronto com o espaço afirmou-se com o desenvolvimento dos organismos duradouros. Os objetos duradouros apresentam uma diferença entre
1 152 1
I A CJ~NCJA E o MUNDO MODERNO I
o espaço e o tempo, com respeito aos modelos, componentes
dos acontecimentos, e, de outra parte, a diferenciação entre o espaço e o tempo nos modelos componentes de um acontecimento expressa a conformação da comunidade de aconteci
mentos para com objetos duradouros. Pode haver comunidade sem objetos, mas não pode haver objetos duradouros sem uma peculiar conformação à comunidade por parte deles.
/ É muito necessário que esse ponto não seja mal compre
endido. Duração significa que um modelo que é apresentado na preensão de um acontecimento é também apresentado na
preensão daquelas entre as suas partes que foram discriminadas por certa norma. Não é verdade que qualquer parte da totalidade do acontecimento apresentará o mesmo modelo que o todo. Por exemplo, consideremos o modelo corporal completo apresentado na vida do corpo humano durante um minuto. Um dos polegares durante o mesmo minuto é parte de todo o acontecimento corporal. Mas o modelo dessa parte é o modelo do polegar, e não o modelo do corpo todo. Assim, a duração
exige uma norma definida para obter as partes. No exemplo anterior, sabemos imediatamente qual é a norma: devemos tomar a vida do corpo humano durante qualquer porção desse mesmo minuto; por exemplo, durante um segundo ou um décimo de segundo. Em outras palavras, o significado da duração
pressupõe um significado para o lapso de tempo no continuum
espaciotemporal. A questão agora levantada é se todo objeto duradouro re
vela o mesmo princípio de diferenciação entre o espaço e o
tempo: ou mesmo se, em diferentes estágios de sua história de vida, um objeto não pode variar em sua discriminação espacio
temporal. Até há alguns anos, todos, sem hesitação, afirmavam que havia somente esse princípio a descobrir. Assim, lidando com um objeto, o tempo teria exatamente o mesmo significado com a duração de outro objeto. Seguir-se-á que as relações espaciais teriam um único significado. Mas agora parece que a observada efetividade dos objetos só pode ser explicada afirman-
1 153 1
":I~
,~
-'!'«"'>"""-' ,"'---~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
do-se que os objetos em estado de movimento relativamente a cada um dos outros utilizam, para a sua duração, significados do tempo e do espaço que não são idênticos de um objeto para outro. Todos os objetos duradouros devem ser concebidos em repouso em seu próprio espaço, e em movimento através de qualquer espaço definido de modo que não é inerente à sua duração peculiar. Se dois objetos estão mutuamente em repou
so, utilizam o mesmo significado de espaço e de tempo para o fim de expressarem a sua duração; se em movimento relativo,
os espaços e os tempos diferem. Segue-se que, se queremos conceber um corpo em um estágio de sua história de vida, em movimento relativamente a si mesmo em outro estágio, o corpo nesses dois estágios utiliza significados diferentes de espaço
e, correlativamente, significados diferentes de tempo. Em uma filosofia orgânica da natureza, não há que optar
entre a velha hipótese da unicidade da discriminação temporal
e a nova hipótese da sua multipliCidade. É pura e simplesmente
matéria para prova extraída de observações.' Em capítulo anterior, disse que um acontecimento tem
contemporâneos. A questão é interessante se, na nova hipótese, tal afirmação pode ser feita sem a qualificação de uma referência a um definido sistema espaciotemporal. É possível fazê-lo, no sentido de que "num" ou noutro sistema temporal os dois
acontecimentos são simultâneos. Em outros sistemas temporais, os dois acontecimentos contemporâneos não serão simultâneos,
embora um possa cobrir o outro. De modo análogo, um acon
tecimento precederá o outro sem qualificação, se em "todos" os sistemas temporais ocorrer tal precedência. É evidente que,
se partirmos de um dado acontecimento A, os outros acontecimentos em geral serão divididos em dois grupos, isto é, os
que indiscriminadamente são contemporâneo~ de A, e aqueles que precedem ou seguem A. Mas haverá um grupo a mais) isto
1 Cf. meu PrincipIes ofNatural Knowledge, seção 52:3.
1 154 1
1 A CI~NcrA E O MUNDO MODERNO I
é, os acontecimentos que limitam os dois grupos. Eis aqui um caso crítico. Vocês devem estar lembrados de que tivemos de considerar uma velocidade crítica, isto é, a velocidade teórica da luz in vacuo.'Vocês também devem estar lembrados de que a utilização de diferentes sistemas espaciotemporais significa o movimento relativo dos objetos. Quando analisamos essa relação crítica de determinado grupo de acontecimentos com um
dado acontecimento A, encontramos a explicação necessária
da velocidade crítica. Suprimo todos os detalhes. É evidente que a exatidão na afirmativa deve ser introduzida pela inclusão de pontos, linhas e instantes. Também a origem da geometria
demanda discussão: por exemplo, a medida dos comprimentos, a retidão das linhas, a chateza dos planos e a perpendicularidade. Esforcei-me por desenvolver essas investigações em outros livros, sob a égide da teoria da abstração extensiva; mas são demasiado técnicas para a presente ocasião.
Se não houver nenhum significado definido para as relações geométricas da distância, é evidente que a lei da gravitação necessita ser revista, pois a fórmula que exprime essa lei é que duas partículas se atraem mutuamente em proporção
ao produto da sua massa e em relação inversa ao quadrado de suas distâncias. Essa enunciação afirma tacitamente que há um significado definido para ser atribuído ao instante em que a atração é considerada, e também um significado definido para
ser atribuído à distância. Mas distância é uma noção puramente
espacial, de modo que na nova teoria há um número infinito de tais significados de acordo com o sistema espaciotemporal que
adotarmos. Se as duas partículas estão relativamente em repou
so, então podemos contentar-nos com ambos os sistemas espaciotemporais utilizados. Infelizmente nessa sugestão não há nenhuma indicação sobre o processo quando não estão mutua-
1 Essa não é a velocidade da luz no campo gravitacional ou em um meio de moléculas ou elétrons.
1 155 1
·r:.~~r~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
mente em repouso. É, portanto, necessário formular novamente a lei de modo que não pressuponha nenhum sistema espaciotemporal determinado. Foi o que fez Einstein. Naturalmente o resultado é mais complicado. Ele introduziu na fisica matemática certos métodos de matemática pura que oferecem as
fórmulas independentes dos sistemas determinados de medida adotados. A nova fórmula introduz vários resultados pequenos
que não figuram na lei de Newton. Mas nos efeitos maiores a lei
de Newton e a de Einstein estão de acordo. Sendo assim, esses efeitos extraordinários da lei de Einstein servem para explicar a
irregularidade da órbita do planeta Mercúrio, inexplicável pela lei de Newton. Essa é uma forma de confirmação da nova teoria. É bastante curioso que haja mais de uma fórmula alternativa baseada na teoria do múltiplo sistema espaciotemporal, tendo a propriedade de incorporar a lei de Newton, e em acréscimo de explicar as peculiaridades do movimento de Mercúrio. O único meio de escolha entre elas é esperar pela prova experimental no que respeita a esses efeitos em que as fórmulas diferem. A
natureza é, com muita probabilidade, inteiramente indiferente às preferências estéticas dos matemáticos.
Só resta acrescentar que Einstein provavelmente rejeitaria a teoria dos sistemas espaciotemporais múltiplos que venho expondo até aqui a vocês. Interpretaria a sua fórmula em termos
de desvios em espaço-tempo que alteram a teoria da não-variação para as propriedades de medida, e dos tempos próprios
de cada caminho histórico. Seu modo de enunciar tem a maior simplicidade matemática e permite tão-somente uma lei da
gravitação, excluindo as alternativas. Mas não posso reconciliar
isso com os fatos dados da nossa experiência quanto à simultaneidade e ao arranjo espacial. Há outras dificuldades de caráter
mais abstrato. A teoria da relação entre acontecimentos à qual agora
chegamos é baseada primeiro na doutrina de que as ligações de um acontecimento são todas relações inteiramente internas, na medida em que concerne a esse acontecimento, embora não
1 156 1
I A CIENCtA E o MUNDO MODERNO I
n'ecessariamente na medida em que concerne a outros relata.
Por exemplo, os objetos eternos, assim envolvidos, são externamente ligados aos acontecimentos. Essa ligação interna é a razão pela qual um acontecimento só pode ser encontrado onde está e como está, ou seja, em apenas um grupo definido de relações, pois cada relação entra na essência do acontecimento; sendo assim, pondo-se à parte essa relação, o acontecimento ,~
não seria ele mesmo. Isso é o que significa a verdadeira noção de relações internas. Entretanto, tem sido comum e geral
sustentar que as relações espaciotemporais são externas. Essa
doutrina é negada aqui. A concepção de ligação interna envolve a análise do acon
tecimento em dois fatores, um deles a atividade básica e substancial de individualização, e o outro o complexo de aspectos
- isto é, o complexo de ligações como entrada na essência do acontecimento dado - que são unificados por essa atividade individualizada. Em outras palavras, o conceito de relações internas requer o conceito de substância como a atividade que sin
tetiza as relações em seu caráter de resultado. O acontecimento é o que é devido à unificação em si de uma multiplicidade de relações. O esquema geral dessas relações mútuas é uma abstração que pressupõe cada acontecimento como uma entidade in
dependente, o que de fato não é, e questiona qual remanescente dessas relações formativas é então deixado na forma de relações externas. O esquema das ações assim expresso imparcialmente
toma-se o esquema de um complexo de acontecimentos varia
velmente ligados como todos a suas partes e como partes unidas em algum todo. Mesmo aqui, a relação interna nos desperta
a atenção, pois a parte é evidentemente constitutiva do todo.
Mesmo um acontecimento isolado que tenha perdido a sua situação em qualquer complexo de acontecimentos é igualmente excluído pela verdadeira natureza de um acontecimento. Assim, o todo é evidentemente constituido pelas partes. Por isso, o caráter interno das relações mostra-se realmente através do esquema imparcial de relações externas abstratas.
1 157 1
"!<i1f';rr"
~ ".~:'
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Mas essa apresentação do universo real como extensível e divisível omitiu a distinção entre o tempo e o espaço. De fato, omitiu o processo de realização, que é o ajustamento das ativi
dades sintéticas em virtude do qual os vários acontecimentos transformam-se nas suas próprias realizações. Esse ajustamento é o das substâncias ativas básicas, por onde essas substâncias apresentam-se com as individualizações ou os modos da subs
tância única de Spinoza. Esse ajustamento é o que introduz o processo temporal.
Assim, em certo sentido, o tempo, em seu caráter de ajustamento do processo de atualização sintética, estende-se além do continuum espaciotemporal da naturezaJ Não há necessidade de que o processo temporal, nesse sentido, deva ser constituído de uma única série de sucessão linear. Em razão disso, de modo a satisfazer as exigências presentes da hipótese científica, introduzimos a hipótese metafísica de que não é este o caso. Supomos, porém (com base na observação direta), que o processo temporal de realização pode ser dividido em um grupo
de processos lineares. Cada uma dessas séries lineares é um sistema espaciotemporal. Em defesa dessa hipótese de processos definidos em série, apelamos para: (I) a imediata apresentação através dos sentidos de um universo que se estende para além de nós e simultaneamente conosco; (2) a apreensão de uma sig
nificação para o ponto consistente no que está acontecendo agora imediatamente nas regiões além do cognoscível pelos nossos
sentidos; (3) a análise do que está implícito na perduração de objetos notados. Essa perduração de objetos envolve o arranjo
de um modelo como se atualiza agora. Esse arranjo é o de um
modelo enquanto inerente a um acontecimento, mas também enquanto apresentador de um fragmento temporal da natureza, o qual empresta aspectos aos objetos eternos (ou, igualmente, enquanto os objetos eternos emprestam aspectos aos
l Cf. meu Concept ofNature, capfrulo 111.
1158 1
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
acontecimentos). O modelo é espacializado em uma duração completa em benefício do acontecimento em cuja essência o modelo entra. O acontecimento é parte da duração, ou seja, é
parte do que é apresentado nos aspectos que lhe são inerentes; e, inversamente, a duração é o todo da natureza em simultaneidade com o acontecimento, naquele sentido de simultaneidade. Assim, um acontecimento, ao realizar-se, arranja um modelo,
e esse modelo demanda uma duração definida determinada
por uma significação definida de simultaneidade. Cada uma de
tais significações de simultaneidade relaciona o modelo assim disposto em um sistema espaciotemporal definido. A realidade dos sistemas espacíotemporais é constituída pela realização do modelo; mas é inerente ao esquema geral dos acontecimentos enquanto constituidora de sua passividade em relação ao processo temporal de realização.
Notem que o modelo demanda uma duração que envolva um lapso definido de tempo, e não simplesmente um momento instantâneo. Tal momento é mais abstrato pelo fato de que simplesmente denota certa relação de contigüidade entre os acontecimentos concretos. Sendo assim, uma duração é espa
cializada; e por espacialização compreende-se que a duração é o campo do modelo realizado que constitui o caráter do acontecimento. Uma duração, como o campo do modelo realizado na realização de um dos acontecimentos contidos, é uma épo
ca, ou seja, uma parada. Perduração é a repetição do modelo em acontecimentos sucessivos. Assim, a perduração demanda
uma sucessão de durações, cada uma apresentando o modelo. Segundo esse raciocínio, o "tempo" está separado da "extensão"
e da "divisibilidade" que surge do caráter do que há de espacio
temporal na extensão. De acordo com isso, não devemos conceber o tempo como outra forma de extensividade. O tempo é a pura sucessão de durações epocais. Mas as entidades que se sucedem nessa apresentação são durações. A duração é o que se requer para a realização de um modelo em um dado acontecimento. Assim, a divisibilidade e a extensividade estão em uma
1 159 1
"";'~
•
e,_',' .. ..,.',~.
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
dada duração. A duração significativa não é realizada através de suas sucessivas partes divisíveis, mas é dada com as suas par
tes. Desse modo, a objeção que Zenão poderia fazer à validade conjunta de duas passagens da Critica da razão pura de Kant é encontrada abandonando-se a primeira das duas passagens. Refiro-me às passagens da seção "Dos Axiomas da Intuição"; a primeira das subseções sobre "A Quantidade Extensiva", e a
outra da subseção sobre "A Quantidade Intensiva", em que as
considerações a respeito da quantidade em geral, extensiva e
intensiva, são resumidas. A primeira passagem diz assim:
Chamo quantidade extensiva aguela em gue a representação
do todo torna-se possível por meio da representação de suas
partes, e portanto necessariamente precedida por esta. 4 Não posso
apresentar a mim mesmo nenhuma linha, por peguena que
seja, sem traçá-Ia no pensamento, isto é, sem mostrar as suas
partes uma após a outra, partindo de um ponto dado e, as
sim, primeiro de tudo traçando a sua intuição. O mesmo se
aplica a todas as porções do tempo, até mesmo as menores.
Só posso imaginar dentro dele o progresso sucessivo de um
momento a outro, mostrando, assim, no fim, por todas as
partes do tempo, e suas adições, uma quantidade definida
de tempo.
A segunda passagem diz assim:
Essa propriedade peculiar das guantidades de gue nenhuma
de suas partes é a menor parte possível (nenhuma parte in
divisível) é chamada de continuidade. O tempo e o espaço
são quanta continua, pois não há nenhuma parte deles gue não
esteja incluída entre limites (pontos e momentos), nenhuma
parte que não seja ela mesma, além disso, um espaço ou um tempo.
O espaço consiste tão-somente em espaços; o tempo, tão-somente em
tempos. Os pontos e os momentos são tão-somente limites, meros lu
gares de limitação, e como lugares pressupondo sempre aquelas
4 Realces meus, tanto aqui como na segunda citação.
I 160 I
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
intuições que, supostamente, limitam e determinam. Meros
lugares ou partes que poderiam ser dados antes do tempo e
do espaço nunca poderiam ser compostos de tempo ou de
espaço.
Estou de pleno acordo com a segunda citação se "tempo e espaço" forem o continuum extensivo; mas ela é incompatível .~
com a outra passagem, pois Zenão objetaria que aqui está impli
cada uma regressão viciada. Todas as partes do tempo incluem alguma parte menor de si mesmas e assim por diante. Também
essa série retrocede até chegar a nada, desde que o momento inicial seja sem duração e marque simplesmente a relação de contigüidade com um tempo primitivo. Assim, O tempo é im
possível se as duas citações se correlacionam. Aceito a segunda
e rejeito a primeira. Realização é a transformação do tempo no
campo da extensão. Extensão é o complexo de acontecimen
tos como suas potencialidades. Realizando-se, a potencialidade torna-se fato. Mas o modelo potencial demanda a duração; e a duração deve ser apresentada como um todo epocal, pela rea
lização do modelo. Assim} o tempo é a sucessão de elementos
divisíveis e contíguos em si mesmos. Tornando-se temporal} a
duração atrai sobre si} portanto} realização com respeito a al
gum objeto duradouro. Temporalização é realização. Temporalização não é outro processo continuo. É uma sucessão atômica.
Assim, o tempo é atômico (isto é, constituído de épocas)} pois
o temporalizado é divisível. Essa doutrina deriva da referente
aos acontecimentos e da natureza dos objetos duradouros. No próximo capítulo, consideraremos a sua importância para a teo-
ria do quantum da ciência moderna.
Deve-se notar que essa doutrina do caráter epocal do tempo não depende da doutrina moderna da relatividade e permanece da mesma maneira - e na verdade com maior simplicidade - se essa doutrina for abandonada. Depende da análise do caráter intrínseco de um acontecimento} considerado como
a entidade mais concreta e mais finita.
I 161 I
·':;<f':;Y
-'-""'" ",."> ",,",,,
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Ao rever esse argumento) notamos primeiro que a segun
da. citação de Kant, na qual aquele está baseado, não depende de nenhuma doutrina peculiar de Kant. A última das duas está de acordo com Platão como contrário a Aristóteles.s Em segun
do lugar, o argumento declara que Zenão abrandou seu argu
mento. Devia insistir nele contra a noção corrente de tempo
em si) e não contra o movimento) que envolve relações entre
o tempo e o espaço) pois o que se transforma tem duração.
Mas nenhuma duração pode transformar-sé até que uma duração menor (parte da precedente) antecedentemente se tenha
transformado em um ser (primeira afirmação de Kant). O mesmo argumento aplica-se à duração menor) e assim por diante.
Igualmente a regressão infinita dessas durações converge para
nada - e mesmo na concepção aristotélica não há primeiro
momento. De acordo com isso) o tempo é uma noção irracio
nal. Em terceiro lugar, na teoria epocal, a dificuldade de Zenão é cumprida concebendo-se temporalização como a realização
de um organismo completo. Esse organismo é um aconteci
mento tendo em sua essência suas relações espaciotemporais
(tanto dentro como fora de si mesmo) por todo o continuum
espaciotemporal.
5 Cf. Ewclid in Greek, por SirT. L. Heath, Camb. Univ. Press, em uma nota sobre Pontos.
1 162 1
I CAP[TULO VIII I
A TEORIA DO QUANTUM
A teoria da relatividade provocou justamente enorme atenção por parte do público. Mas, a despeito de toda a sua importância) não foi o principal ponto que absorveu o recen
te interesse dos físicos. Inquestionavelmente, essa situação foi
auxiliada pela teoria do quantum. O ponto de interesse nessa teoria é que, de acordo com ela, alguns efeitos que parecem
capazes de aumento gradual devem na realidade aumentar ou decrescer só por certos saltos definidos. É como se pudéssemos caminhar a três ou quatro milhas por hora) mas não a três e
meia milhas por hora. Os efeitos em questão são concernentes à radiação da luz
de uma molécula excitada por alguma colisão. A luz consiste em ondas de vibração no campo eletromagnético. Depois que uma onda completa passou determinado ponto, tudo nesse ponto é
restaurado em seu estado original e está pronto para a próxima
onda que se seguir. Imaginem ondas do mar e pensem nas ondas sucessivas de crista em crista. O número de ondas que passam
por determinado ponto em um segundo é chamado de a freqü
ência desse sistema de ondas. Um sistema de ondas de luz de freqüência definida corresponde a uma cor definida no espectro. Ora) uma molécula, quando excitada, vibra com um número
definido de freqüências definidas. Em outras palavras, há um conjunto definido de modos de vibração da molécula, e cada modo de vibração tem uma freqüência definida. Cada modo de vibração pode agitar no campo magnético ondas de sua própria
1163 1
,~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
freqüência. Essas ondas levam consigo a energia da vibração, resultando que, por fim (enquanto essas ondas são produzidas), a
molécula perde a energia de seu excitamento e as ondas cessam. Assim, uma molécula pode irradiar luz de algumas cores definidas, vale dizer, de algumas freqüências definidas.
Vocês poderiam pensar que cada modo de vibração poderia ser excitado a qualquer intensidade, de modo que a energia
despertada pela luz dessa freqüência pudesse ser de qualquer quantidade. Mas não é isso que acontece. Nesse caso, parecem
existir certas quantidades mínimas de energia que não podem ser subdivididas. O caso é análogo ao do cidadão americano que, pagando sua dívida em moeda de seu país, não pode dividir um cêntimo de modo a corresponder a uma subdivisão exata das mercadorias obtidas. O cêntimo correspondente à
quantidade mínima da energia da causa de excitamento. Essa causa de excitamento é ou suficientemente forte para produzir
a emissão de um cêntimo de energia ou fracassa na produção de uma energia, qualquer que seja ela. Em qualquer caso, a molécula só emitirá um número integral de cêntimo de energia. Há mais uma peculiaridade que podemos ilustrar trazendo um inglês para a cena. Ele paga sua dívida em moeda inglesa, e a sua menor unidade é um farthing, que difere em valor do
cêntimo. O farthing é, de fato, cerca de meio cêntimo, em cálculo aproximativo. Na molécula, diferentes modos de vibra
ção têm diferentes freqüências. Comparem cada modo a uma nação. Um modo corresponde aos Estados Unidos, e outro à
Inglaterra. Um modo só pode irradiar a sua própria energia em
um número integral de cêntimos, de modo que um cêntimo de energia é a menor quantia que ele pode oferecer, ao passo que
o outro modo só pode irradiar a sua energia em um número integral de farthings, de modo que um farthing de energia é a menor quantia que ele pode oferecer. Além disso, pode-se achar uma regra para nos dar o valor relativo tanto do cêntimo de energia de um modo, como do farthing de energia de outro modo. A regra é de uma simplicidade pueril: cada uma das
11641
I A CIÊNCIA E O MUNDO MODERNO I
menores moedas de energia tem um valor em estreita relação com a freqüência pertencente a esse modo. Conforme essa regra, comparando fanhings com cêntimos, a freqüência de um americano seria duas vezes a de um inglês. Em outras palavras, um americano faria em um segundo duas vezes mais coisas que
faria um inglês. Deixo vocês julgarem se isso corresponde às caracteristicas das duas nações. Também sugiro que há méritos'"
ligados a ambos os lados do espectro solar. Algumas vezes pre
cisamos de luz vermelha, outras vezes de luz violeta.
Não houve, espero, nenhuma dificuldade em compreender o que a teoria do quantum afirma sobre as moléculas. A perplexidade foi suscitada pelo esforço em adaptar a teoria ao corrente quadro cientifico do que se passa na molécula ou no átomo.
O fato de os acontecimentos da natureza precisarem ser explicados em termos de locomoção de material foi a base da teoria materialista. Em conformidade com esse princípio, as ondas da luz devem ser explicadas em termos da locomoção de um éter material, e os acontecimentos internos de uma molé
cula são agora explicados em termos da locomoção de partes materiais separadas. Com respeito às ondas da luz, o éter material é retirado para uma posição indeterminada ao fundo, e é raramente considerado. Mas, com respeito às suas aplicações no átomo, o princípio é indiscutível. Por exemplo, um átomo
neutro de hidrogênio é suposto como sendo formado por dois grupos de materiais: um grupo é o núcleo, que consiste em um
material chamado eletricidade positiva, e o outro é um único elétron, que é eletricidade negativa. O núcleo apresenta sinais
de ser complexo e de ser sub divisível em grupos menores, uns
de eletricidade positiva e outros eletrônicos. A hipótese é de que, seja qual for a vibração ocorrida no átomo, deve ser atribuída à locomoção vibratória de alguma parte do material, destacável do restante. A dificuldade na teoria do quantum é que, nessa hipótese, temos de conceber o átomo proporcionando um número definido de sulcos, que são os únicos caminhos ao longo dos quais a vibração pode ocorrer, ao passo que a clássica
1 165 1 L
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
configuração científica não proporciona nenhum desses sulcos. A teoria do quantum necessita de um tipo de trem que tenha um número definido de linhas, e o quadro científico proporciona cavalos galopando pelos campos. O resultado é que a doutrina física do átomo alcançou um estado fortemente sugestivo dos epiciclos da astronomia antes de Copérnico.
Sobre a teoria orgânica da natureza, há duas espécies de
vibrações radicalmente diferentes umas das outras. Há locomo
ção vibratória e há deformação vibratória orgânica; e as condições para os dois tipos de mudanças são de caráter diferente.
Em outras palavras, há locomoção vibratória de um modelo dado como um todo, e há mudança vibratória de modelo.
Um organismo completo na teoria é o que corresponde a uma parte de material na teoria materialista. Haverá um gênero primário, compreendendo um número de espécie de organismos, de tal modo que cada organismo primário, pertencente a uma espécie de gênero primário, não é passível de decom
posição em organismos subordinados. Qualquer organismo de gênero primário chamarei de um primaz. Pode haver diferentes espécies de primazes.
Deve-se ter em mente que estamos lidando com as abstrações da física. Assim, não estamos pensando no que seja um primaz em si, como um modelo resultante da compre
ensão dos aspectos concretos; nem estamos pensando no que um primaz é com relação ao seu ambiente, com respeito aos
seus aspectos concretos compreendidos ali. Pensamos nesses
vários aspectos simplesmente à medida que seus efeitos sobre modelos e sobre a locomoção são expressáveis em termos
espaciotemporais. De acordo com isso, na linguagem da física os aspectos de um primaz são simplesmente a sua contri
buição ao campo eletromagnético. Isso é exatamente o que sabemos dos elétrons e dos prótons. Um elétron para nós é simplesmente um modelo de seus aspectos em seu ambiente, à medida que esses aspectos são importantes para o campo
eletromagnético.
I 166 I
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
Há pouco, ao discutir a teoria da relatividade, vimos que
o movimento relativo de dois primazes significa apenas que os seus modelos orgânicos estão utilizando diferentes sistemas espaciotemporais. Se dois primazes não permanecem mutuamente, seja em repouso, seja em movimento relativo uniforme, pelo menos um deles está mudando o seu sistema espaciotemporal inerente. As leis do movimento expressam as condições .::
nas quais são efetuadas as mudanças desses sistemas espaciotemporais. As condições para a locomoção vibratória fundam-se
sobre essas leis gerais do movimento. Mas é possível que certas espécies de primazes sejam
suscetíveis de se dividirem em pedaços em condições que as levem a efetuar mudanças de sistemas espaciotemporais. EsSas espécies só poderiam experimentar um longo período de perduração se tivessem conseguido formar uma associação favorável entre primazes de diferentes espécies, de tal modo que nessa associação a tendência ao colapso fosse neutralizada pelo ambiente de associação. Podemos imaginar o núcleo atômico como composto de um grande número de primazes de diferentes espécies e talvez com muitos primazes da mesma espécie, sendo de tal modo a associação completa que favoreça a esta
bilidade. Como exemplo de uma tal associação pode-se citar a associação de um núcleo positivo com elétrons negativos para obter um átomo neutro. O átomo neutro está, por causa disso,
protegido de qualquer campo elétrico que, de outro modo, produziria mudanças no sistema espaciotemporal do átomo.
As exigências da física sugerem agora uma idéia em perfeita consonância com a teoria filosófica orgânica. Exponho-a em
forma de pergunta: Nossa teoria orgânica teria sido corrompida
pela teoria materialista, na medida em que esta afirma sem discussão que a perduração deve significar uma identidade indiferenciada por toda a respectiva história de vida? Talvez vocês
tenham notado que (em um capítulo anterior) usei a palavra "reiteração" como sinônimo de "perduração". É óbvio que não são sinônimos perfeitos em sua significação; e agora quero su-
I 167 I
L_··_·.~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
gerir que reiteração, no que difere de perduração, está mais próxima daquilo que a teoria orgânica requer. A diferença é muito semelhante àquela entre galileanos e aristotélicos: Aristóteles diz "repouso" onde Galileu acrescenta "ou movimento retilíneo
uniforme". Assim, na teoria orgânica, um modelo não necessita perdurar em identidade indiferenciada através do tempo. O modelo pode ser essencialmente um dos contrastes estéticos que
demandam um lapso de tempo para o seu desenvolvimento. O tom é um exemplo de tal modelo. Assim, a perduração do mo
delo agora significa a reiteração da Sua sucessão de contrastes. Isso é claramente a noção mais geral de perduração sobre a teoria orgânica, e "reiteração" é talvez a palavra que a expressa de modo mais direto. Mas, quando traduzimos essa noção nas abstrações da física, toma-se imediatamente a noção técnica de "vibração". Essa vibração não é a locomoção vibratória: é a vibração da deformação orgânica. Há certas indicações na física moderna de que, para o papel dos organismos corpusculares na base do
campo físico, necessitamos de entidades vibratórias. Esses corpúsculos seriam os descobertos como expelidos do núcleo dos átomos, que depois se decompõem em ondas de luz. Podemos conjeturar que tais corpúsculos não têm grande estabilidade de perduração quando isolados. Com isso, um ambiente desfavorável que leve a rápidas mudanças no próprio sistema espaciotem
poraI, ou seja, um ambiente lançando-se em violenta aceleração, faz com que os corpúsculos se despedacem e se decomponham em ondas de luz do mesmo período de vibração.
Um próton, e talvez um elétron, seria uma associação de tais primazes, uns superpostos aos outros, com as suas freqüências e dimensões espaciais arranjadas de modo a promover
a estabilidade do organismo complexo, quando impulsionado em movimento acelerado. As condições de estabilidade forneceriam as associações de período possíveis para os prótons. A expulsão de um primaz viria de um impulso que conduz o próton ou a estabelecer-se em uma associação alternativa, ou a gerar um novo primaz Com a ajuda da energia recebida.
[ 168 [
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
Um primaz deve associar-se com uma freqüência definida de deformação orgânica vibratória, de modo que, quando feito em pedaços, decompõe na luz ondas da mesma freqüência, que então desprendem toda a sua energia proporcional. É muito fácil (como hipótese particular) imaginar vibrações estacioná
rias do campo eletromagnético de freqüência definida, e diretamente irradiada de um centro e para ele, que, de acordo ~
com as leis eletromagnéticas aceitas, consistiria em um núcleo
vibratório esférico que satisfaça um conjunto de condições, e um campo vibratório externo que satisfaça outro conjunto de
condições. Esse é um exemplo de deformação orgânica vibratória. Além disso (nessa hipótese particular), há duas maneiras de determinar as condições subsidiárias de modo a satisfazer as exigências ordinárias da física matemática. A energia total, de acordo com uma dessas maneiras, satisfaria a condição do quantum; de modo que consiste em um número integral de unidades ou cêntimos, tais que o cêntimo de energia de um primaz é proporcional à sua freqüência. Não expus em minúcias as condições para a estabilidade ou para uma associação estável. Mencionei a hipótese particular explicando mediante exemplo que a teoria orgânica da natureza apresenta possibilidades para a reconsideração das leis físicas fundamentais, possibilidades essas inacessíveis à oposta teoria materialista.
Nessa hipótese particular dos primazes vibratórios, supõe-se que as equações de Maxwell abrangem todo o espaço,
até mesmo o interior de um próton. Expressam as leis que go
vernam a produção e a absorção vibratórias da energia. Todo o processo para cada primaz resulta em certa energia média
caracteristica dos primazes e proporcional à sua massa. De fato, a energia é a massa. Há correntes vibratórias de energia, tanto
dentro como fora do primaz. Dentro do primaz, há a distribuição vibratória de densidade elétrica. Na teoria materialista tal densidade indica a presença da matéria; na teoria orgânica da vibração, indica a produção vibratória da energia. Essa produção é restrita ao interior do primaz.
[169 [
~, ,;~;
-"","-"""""'''''~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Toda ciência deve começar COm algumas afirmações quanto à última análise dos fatos com os quais trabalha. ESS'lS
afirmações são justificadas parte pela fidelidade dela aos tipe,s de ocorrência de que temos consciência direta, parte pelo êxito em representar os fatos observados com certa generalidade, privados de suposições ad hoc. A teoria geral da vibração dos primazes, que esbocei, é apresentada simplesmente como um
exemplo do tipo de possibilidades que a teoria orgânica abre à ciência física. O principal é que ela aCrescenta a possibilidade
da deformação orgânica à da mera locomoção. As ondas da luz formam um grande exemplo da deformação orgânica.
Em qualquer época, as afirmações da ciência estão cedendo, quando apresentam sintomas do estado epiciclico do qual a astronomia se salvou no século XVI. A ciência física está apresentando agora tais sintomas. Para reconsiderar os seus fundamentos, deve recorrer a uma concepção mais concreta do caráter das coisas reais e deve conceber as suas noções funda
mentais como abstrações derivadas dessa intuição direta. Desse modo é que ela serve às possibilidades gerais de revisão que se abrem para ela.
As descontinuidades introduzidas pela teoria do quan
tum exigem revisão dos conceitos físicos para que possam ser
conhecidos. De modo particular, indicou-se a necessidade de alguma teoria da existência descontínua. O que essa teoria reivindica é que uma órbita de um elétron possa ser considerada
como uma série de posições destacadas, e não como uma linha contínua.
A teoria de um modelo primaz ou vibratório dada ante
riormente, combinada com a distinção entre temporalidade e extensividade no capítulo anterior, produz exatamente esse resultado. Vale lembrar que a continuidade do complexo de acontecimentos resulta da relação de extensividade, ao passo que a temporalidade resulta da realização em um acontecimento em causa de um modelo que demanda, para a sua disposição, que a totalidade de uma duração seja espacializada (isto é, parada)
I 170 I
I A CIt:NCIA E O MUNDO MODERNO I
como dada por seus aspectos no acontecimento. Assim, a realização procede por via de uma sucessão de durações epocais; e a contínua transição, isto é, a deformação orgânica, está dentro da duração já dada. A deformação orgânica vibratória é efetivamente a reiteração do modelo. Um período completo define
a duração exigida para o modelo completo. Assim, o primaz é
atomicamente realizado em uma sucessão de durações, deven- ç.
do cada duração ser medida de um máximo a outro. Com isso,
conforme o primaz é considerado como entidade total perdurável, ele deve ser atribuído a essas durações sucessivamente. Se é considerado como uma coisa, a sua órbita deve ser apresentada
diagramaticamente por uma série de pontos destacados. Assim, a locomoção do primaz é descontínua no espaço e no tempo. Se formos abaixo dos quanta do tempo, que são os sucessivos períodos vibratórios do primaz, achamos uma sucessão de campos eletromagnéticos vibratórios, cada um estacionário no espaço-tempo de sua própria duração. Cada um desses campos apresenta um só período completo da vibração eletromagnética que constitui o primaz. Essa vibração não deve ser considerada como resultado da realidade: é o que é o primaz em uma de suas atualizações descontínuas. Igualmente as durações sucessivas em que o primaz é atualizado são contíguas; segue-se que
a história de vida do primaz pode ser apresentada como desenvolvimento contínuo de ocorrências no campo eletromagnético. Mas essas ocorrências entram em realização como blocos
atômicos totais, que ocupam períodos definidos de tempo. Não há necessidade de conceber que o tempo seja atômi
co no sentido de que todos os modelos devem ser realizados
nas mesmas durações sucessivas. Em primeiro lugar, ainda que
o período seja o mesmo no caso dos dois primazes, as durações da realização não podem ser as mesmas. Em outras palavras, os dois primazes podem estar fora da fase. Da mesma forma, se
os períodos forem diferentes, o atomismo de qualquer duração de um primaz é necessariamente subdividido pelos momentos
limite de durações do outro primaz.
I 171 I I
.l >,,,,.
I ALFRED NORTH WH!TEHEAD I
As leis da locomoção dos primazes expressam sob quais condições qualquer primaz mudará o seu sistema espaciotemporal.
É desnecessário levar adiante essa concepção. A justificação do conceito de existência vibratória deve ser puramente experimental. O aspecto ilustrado por esse exemplo é que a concepção cosmológica adotada aqui é perfeitamente compa
tível com as exigências da descontinuidade encaradas na fisica. Igualmente, se se adotar esse conceito de temporalização
como realização sucessiva de durações em épocas, a dificuldade de Zenão desaparece. A forma particular, que foi dada aqui a esse conceito, foi simplesmente com o propósito de o ilustrar e deve necessariamente exigir nova formulação antes de poder ser adaptado aos resultados da física experimental.
1172 1
I CANTULO IX I
CIÊNCIA E FILOSOFIA
No presente capítulo, meu objetivo é considerar algumas reações da cíência sobre a corrente do pensamento filosófico durante os séculos modernos dos quais tratamos. Não farei nenhuma tentativa de comprimir a história da filosofia moderna nos limites de um capítulo. Considerarei apenas alguns contatos entre a ciência e a filosofia, à medida que se referirem ao esquema do pensamento que é propósito destes capítulos desenvolver. Por essa razão, será omitido todo o grande movimento
idealista alemão, visto que ele está fora de contato efetivo com a ciência contemporânea no que se refere à recíproca modificação dos conceitos. Kant, de quem parte esse movimento, estava saturado da física newtoniana e das idéias dos grandes físicos franceses - como Clairaut,6 por exemplo, que desenvolveu as
idéias newtonianas. Mas os filósofos que desenvolveram a escola kantiana de pensamento, ou que a transformaram no hege
lianismo, ou não tinham a base que Kant tinha do pensamento cientifico, ou não tinham a potencialidade dele para ser um
grande físico, caso a filosofia não tivesse absorvido as principais
energias dele.
6 Cf. a curiosa prova da leitura cientffica de Kant na Critica da razão pura, Analit;02 Transcendental, Segunda Analorja da Experiência, onde ele se refere ao fenõmeno da ação capilar. Esse é um esclarecimento desnecessariamente complexo; um livro em repouso sobre a mesa seria igualmente suficiente. Mas o assunto fora adequadamente tratado pela primeira vez por Clairaut em um apêndice de seu Figura da Terra. Kant lera evidentemente esse apêndice, e o seu espirito estava cheio dele.
1173 1
.",.~~
.,~:-,."~",,,:,-'~,,' ,
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
A origem da filosofia moderna é análoga á da ciência e sua contemporânea. A tendência geral de seu desenvolvimento
foi estabelecida no século XVII, em parte através das mãos dos mesmos homens que estabeleceram os princípios científicos.
Esse estabelecimento de propósitos aconteceu após um perío
do de transição que data do século Xv. Houve, de fato, uma mudança geral da mentalidade européia, que carregou na sua
torrente religião, ciência e filosofia. Pode ser brevemente carac
terizada como sendo a clara repetição das fontes originárias da
inspiração grega por parte dos homens cujo caráter espiritual era derivado de herança da Idade Média. Não houve, portanto, revivescência da mentalidade grega. As épocas não nascem do que está morto. Os princípios da estética e da razão que anima
ram a civilização grega revestiram-se de mentalidade moderna.
Entre as duas se acham outras religiões, outros sistemas jurídi
cos, outras anarquias e outras heranças raciais separando o vivo
do morto. A filosofia é peculiarmente sensivel a tais diferenças. Por
que, embora se possa fazer a réplica de uma estátua antiga, não
há réplica possivel de um antigo estado de espírito. Não pode
haver aproximação maior que aquela que uma máscara permi
te com relação à vida real. Pode haver compreensão do passado,
mas há uma diferença entre as reações modernas e as antigas ao
mesmo estímulo.
No caso particular da filosofia, a distinção em tonalidade fica na superfície. A filosofia moderna está marcada de subjeti
vismo, em contraste com a atitude objetiva dos antigos. A mes
ma mudança percebe-se na religião. Na história primitiva da
Igreja cristã, o interesse teológico centralizava-se em discussões
sobre a natureza de Deus, o sentido da Encarnação e as supo
sições apocalípticas do destino final do mundo. Na Reforma, a Igreja foi dilacerada por dissensões quanto a experiências indi
viduais dos crentes com respeito à justificação. O drama inteiro
de toda a realidade fora substituído pelo sujeito indivídual da experiência. Lutero indagou: "Como eu sou justificado?". Os
1174 1
I A CltNCIA E O MUNDO MODERNO I
filósofos modernos têm indagado: "Como eu tenho conhecimento?". A ênfase está no sujeito da experiência. Essa mudan
ça de ponto de vista é a tarefa do cristianismo no seu aspecto
pastoral de apascentar o rebanho dos crentes. Século após sé
culo ele insistiu no valor infinito da alma humana indiYiilllli!. Assim, ao egotismo instintivo dos desejos físicos acrescentou
um sentimento instintivo de justificação por um egotismo de'~
concepção intelectual. Cada ser humano é O guardião natural de sua própria importância. Sem dúvida, essa direção moderna
da atenção enfatiza verdades do mais alto valor. Por exemplo, no campo da vida prática aboliu a escravidão e imprimiu no
imaginário popular os direitos humanos fundamentais. Descartes, no seu Discurso do método e nas suas Medita
ções, desvendou com grande clareza as concepções gerais que
desde então têm influenciado a filosofia moderna. Há um sujeito que recebe experiência. No Discurso do método, esse sujeito
cé sempre mencionado na primeira pessoa, ou seja, como sendo
o próprio Descartes. Descartes parte de si mesmo como sen
do uma mentalidade que, em virtude da consciência de suas
próprias apresentações inerentes de sentido e de pensamento,
está, portanto, consciente de sua existência como entidade una.
A subseqüente história Qa filosofia revolve a ~()rmulação c~rtesiana do dado primário. O mundo antigo teve como ponto
de partida o drama do Universo; o mundo moderno, o drama
interior da Alma. Descartes, em suas Meditações, baseia expli
citamente a existência desse drama interior na possibilidade do
erro. Não pode haver correspondência com o fato objetivo e, portanto, deve haver uma alma com atividades cujas realidades
são puramente derivadas dela mesma. Eis aqui para exemplo
uma citação da Meditação lI:·
• Tirada da edição brasileira, traduzida por Enriço Corvesieri (São Paulo, Nova Cultural,
2000). (N. T.)
11751
-" :~ ..
L
I ALFRED NORTH WHITEHEAO I
Contudo, ao menos, é bastante certo que me parece que vejo,
que ouço e que me aqueço; e é propriamente aCjuilo que em
mim se chama sentir (sentire), e isto, tomado assim precisa·
mente, nada é a não ser pensar. De onde começo a conhecer
o que sou, com um pouco mais de clareza e de discernimento
do que anteriormente.
De novo na Meditação III:
Porque, assim como notei acima, se bem Cjue as coisas que
sinto e imagino talvez não sejam nada fora de mim e nelas
mesmas, tenho certeza de Cjue essas formas de pensar, Cjue
denomino sentimentos e imaginação apenas na medida em
que são formas de pensar, se encontram em mim.
o objetivismo da Idade Média e do mundo antigo passou para a ciência. A natureza é aí concebida por si mesma, com as
próprias reações mútuas. Sob a_influênsia receIlte da relativi: dai" houve tendência para posteriores formulações subjetivas. Mas,.à parte essa exceção recen!~ a na~ureza do pensamento
cientifico teve as suas leis formuladas sem nenhuma referência .---------
à dependência de observadores individuais. Há, porém, essa di-ferença entre a atitude moderna e a ~~tiga para com a ciência. O anti-racionalismo dos modernos impediu toda e qualquer tenta
tiva para harmonizar os conceitos finais da ciência com as idéias
resultantes de uma visão mais concreta do conjunto da realida
de. A matéria, o espaço, ? tempo e as várias leis concernentes à
transiçã?_5~~~ __ cO~§ê1!~~ões_~~~~Ii~is ~ªº_j.idos COmo fatos irre
dutíveis fiI?-~~~_~~~_?S q~ai~ !l~_o~~~ev~I!los pre~cupar. O efeito desse antagonismo com a filosofia foi igualmente
infeliz tanto para a filosofia como para a ciência. Neste capítulo nos interessará a filosofia. Os filósofos são racionalistas. Andam à procura de fatos irredutíveis e inflexíveis. Desejam explicar
à luz de princípios universais a mútua referência entre vários
detalhes que entram no fluxo das coisas. Também procuram tais princípios como propósito de eliminar a mera arbitrarie-
1176 1
I A C1tNCIA E O MUNDO MODERNO I
dade, de modo que qualquer que seja o fato aceito, ou dado, a existência do restante das coisas satisfará alguma exigência
da racionalidade. Exigem significação. Nas palavras de Henry Sidgwick,7
o primeiro objeto da filosofia é unificar completamente e tra·
zer à clara coerência todos os departamentos do pensamento
racional, e esse objeto não pode ser realizado por nenhuma .~
filosofia que deixe fora de sua análise o importante corpo de
juízos e raciocínios que formam o objeto da ética.
Assim, a propensão para a história da parte das ciências físicas e das sociais, com a recusa destas em refletir sob algum
mecanismo final, desviou a filosofia da corrente efetiva da vida moderna. Perdeu o seu próprio papel como constante crítica
das formulações parciais. Retirou-se para a esfera subjetiva do espírito, por ter sido expulsa pela ciência da esfera objetiva da
matéria. Assim, a evolução do pensamento no século XVII cooperou com a crescente significação da personalidade individu
al procedente da Idade Média. Vemos Descartes tomar como
ponto de partida o próprio espírito do qual a sua filosofia o certificava e investigar as suas relações com a matéria última
- exemplificada, na Meditação 11, pelo corpo humano e um pedaço de cera - que a sua ciência afirmou. Há a vara de Aarão
e as serpentes dos mágicos; e a única questão para a filosofia é
qual a coisa que destrói a outra; ou se, como pensava Descartes,
todas elas viviam felizes juntas. Nessas correntes de pensamen
tos devem ser encontrados Locke, Berkeley, Hume e Kant. Dois grandes nOmes estão fora dessa lista, Spinoza e Leibniz. Mas
há certo isolamento de um e outro a respeito de sua influência
filosófica no que concerne à ciência; como se vagueassem nos
extremos que estão além dos limites da sã filosofia, Spinoza retendo modos mais antigos de pensamento, e Leibniz pela no
vidade das suas mônadas.
? A Memoir, Apêndice I.
1177 1 L
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
o interessante é que a história da filosofia corre paralela
mente com a da ciência. Para amJ:,as, o século XVII determinou
a cena para os seus dois sucessores. Mas no século XX um novo
ato tem início. É um exagero atribuir mudança geral no clima
de pensamento a qualquer trecho escrito ou a qualquer autor.
Sem dúvida, apenas Descartes exprimiu definidamente e de forma decisiva o que já estava no ar desse período. Analoga
mente, ao atribuir a William James a estréia de uma nova Cena
na filosofia, estaremos negligenciando outras influências de seu tempo. Mas, admitindo isso, haverá ainda certa congruência em
contrastar seu ensaio A consciência existe?, publicado em 1904, com o Discurso do método de Descartes, publicado em 1637. James tirou do palco o equipamento antigo; ou, antes, alterou
lhe inteiramente a iluminação. Tomemos para exemplo esses
dois períodos do seu ensaio:
Negar categoricamente que a "consciência" existe parece tão
absurdo em face disso ~ pois inegavelmente os "pensamen
tos" existem -, que temo que alguns leitores não me seguirão
por muito mais tempo. Deixem-me então, desde já, explicar
que quero apenas negar que a palavra significa uma entida
de, mas insistir mais enfaticamente que ela representa uma
função.
o materialismo cientifico e o ego cartesiano foram ambos
refutados na mesma ocasião, um pela ciência e outro pela filo
sofia, representadas por William James com os seus anteceden
tes psicológicos; e a dupla objeção marca o fim de um período
que durou mais ou menos duzentos e cinqüenta anos. Natural
mente, tanto a "matéria" como a "consciência" expressam algo
tão evidente na experiência comum, que qualquer filosofia
deve proporcionar algumas coisas que correspondam à sua res
pectiva significação. Mas o ponto é que, a respeito de ambas, o
pensamento do século XVII estava afetado de um pressuposto agora censurado. James nega que a consciência seja uma enti
dade, mas admite que seja uma função. A diferenciação entre
1178 1
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
entidade e função é, portanto, vital para compreendermos a
refuta~ão que James manteve contra os antigos moldes de pen
samento. No ensaio em questão, o caráter que James atribui à
consciência é cabalmente discutido. Mas James explicou com ambigüidade o que entende pela noção de entidade, a qual se recusa a aplicar à consciência. No trecho que vem imediata
mente após o citado, afirma: "'
Não há, penso, nenhuma matéria original ou qualidade do
ser, contrastada com aquela da qual são feitos os objetos
materiais, da qual nossos pensamentos sejam feitos; mas há
uma função na experiência que os pensamentos efetuam, e
para cuja efetivação é invocada essa qualidade do ser. Essa
função é conhecer. Supõe-se a "consciência" necessária para
explicar o fato de que as coisas não só existem, mas também
são registradas, são conhecidas.
Assim, James está negando que a consciência seja uma
"matéria".
O termo "entidade", ou mesmo o termo "matéria", não se
explica por si próprio. A noção de "entidade" é tão geral, que pode ser tomada para significar qualquer coisa de que falamos.
Não se pode pensar sobre mero nada; e aquilo que é um objeto de pensamento pode ser chamado entidade. Nesse sentido, a função é uma entidade. Evidentemente, não era isso que James
tinha em mente.
De acordo com a sua teoria orgânica da natureza, que ten
tei evidenciar nesses capítulos, para meus próprios propósitos
apresentarei James negando exatamente o que Descartes afir
mou no seu Discurso do método e nas suas Meditações. Descar
tes discrimina duas espécies de entidades, "matéria" e "alma".
A essência da matéria é a extensão espacial; a essência da alma
é a sua cogitação, no pleno sentido que Descartes atribuiu à
palavra cogitare. Por exemplo, na Seção 53 da Parte I dos seus Principias de filosofia, afirma
1179 1
~)
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
gue de todas as substâncias há um atributo principal, como
pensamento do espírito, extensão do corpo.
Anteriormente, na Seção 51, Descartes declara:
Por substância podemos entender nada mais gue uma coisa
gue existe de tal modo gue não tenha necessidade de nada
além de si mesma, no gue se refere à sua existência.
Além disso, um pouco adiante, Descartes diz:
Por exemplo, porque qualquer substância que cessa de durar
cessa também de existir, a duração não se distingue da subs·
tância, exceto no pensamento.
Assim, concluímos que, para Descartes, espíritos e corpos existem de tal modo que não tenham necessidade de nada além de si mesmos individualmente (Só Deus é exceção, como sendo o fundamento de todas as coisas); que tanto o corpo como o espírito duram, porque sem duração eles cessariam de existir;
que a extensão espacial é o atributo essencial dos corpos; e que a cogitação é o atributo essencial dos espíritos.
É difícil louvar demasiadamente o gênio ostentado por Descartes em todas as seções dos seus Principias de filosofia que tratam dessas questões. O seu gênio é digno do século em
que escreveu e da clara inteligência francesa. Descartes, na sua distinção entre tempo e duração, e no seu modo de basear o
tempo no movimento e em sua estreita relação entre matéria e extensão} antecipou} tanto quanto possível em sua época} as
doutrinas modernas sugeridas pela teoria da relatividade, ou por alguns aspectos da doutrina de Bergson sobre a geração das
coisas. Mas os princípios fundamentais foram apresentados de modo a pressupor substâncias existentes independentemente, com a posição simples na comunidade das durações temporais, e no caso dos corpos, com a posição simples na comunidade das extensões espaciais. Esses princípios cond~zem dir~tamente à
/
J:' /, /. ' (
,;
·i (:
1 180 1
/. ~ .J
';~".r""-" '
/
, '~J
y-'-
"\-"'" --"" ;-/ J./ ('/'-
I'~/::'- 0/ ., ~ )",;> Y'
I A CI~NcrA E o MUNDO MODERNO I
"*
~ ,
.' teoria de um~ natureza materialista e meca.~içisg ~~~lP:inada F_or es~í~itos a cogitar. Depois do fim do século XVII, a ciência encarregou-se da natureza materialística, e a filosofia, dos espiritos a cogitar. Algumas escolas de filosofia admitiam um dua
lismo final; e as várias escolas ideali~tas su~l~I!.~.!:ªº:L9.!J~ a n-,~.tureza era o principal exemplo das cogitações do espírito, Mas
Tõdãs -;~ ~sc~la~-" ~dmitia~··~ anális~ cartesiana dos elementos':
últimos da natureza. Excluo Spinoza e Leibniz dessas anrma
ções sobre a principal corrente da filosofia moderna, derivada de Descartes, embora sejam naturalmente influenciados por ele e, por sua vez, influíssem nos filósofos. Penso principalmente
nos contatos efetivos entre a ciência e a filosofia. ,/ Essa divisão do território entre a ciência e a filosofia não
foi tarefa simples; de fato ilustrou a fraqueza do puro e simples pressuposto sobre o qual repousa. Temos em vista a natureza como um jogo entre corpos, cores, sons, cheiros, gostos, tatos e outras variadas sensações corporais, dispostas no espaço, em modelos de mútua separação por volumes interferentes e de forma individual. Também o conjunto é um fluxo, ~e._muda com o lapso de ternQ9. Essa totalidade sistemática nos é revelada como um complexo de coisas. Mas o dualismo do século
XVII cortou-o pela raiz. O mundo objetivo da0êIlc~ali.rr:!it.av~=se à simples matéria espacial com posição si!'lJ21.~.no espaço e ~o tempo, e s~j~it; -a normas defi;idas q':1ant<? à ~uaJ()~qmoçã~ O mundo subjetivo da filosofia anexou cores) sons, cheiros} gostos, sensações corporais, formando o conteúdo subjetivo da
cogitação das inteligências individuais. Ambos os mundos partilhavam do fluxo geral; mas o tempo, medido, é atribuido por
Descartes às cogitações do espírito do observador. Claro que
há uma fraqueza fatal nesse esquema. As cogitações do espírito apresentam-se como trazendo entidades, tais como as cores} por exemplo, perante o espírito como termos da contemplação. Mas, nessa teoria, as cores são, afinal de contas, apenas a mobília do espírito. Assim, o espírito parece confinar-se ao seu próprio mundo privativo de cogitações. A conformação da experiên-
-(;' /.' ./~. d 1 181 1
~"/'
7- ~,
J
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
cia, ao mesmo tempo subjetiva e objetiva, na sua integridade está no eS.E,írito como uma de suas paixões particulares. Essa ------- --_ .. ~,~_.-._-------- - - --conclusão tirada dos dados cartesianos é o ponto de partida do
qual Berkeley, Hume e Kant desenvolveram os seus respectivos sistemas. E, anteriormente a eles, é o ponto no qual Locke se concentrou como sendo a questão vital. Assim, a questão sobre como se obtém o conhecimento do verdadeiramente mundo
objetivo da ciência torna-se um problema de p~;;;'ordial imp()rtância. Descartes afirma qu;~ ~;;,:p~cl;j-~ti~~';-percebicfo pelo intelecto. Diz (Meditação 11):
t necessáriO, portanto, que eu concorde que não poderia
mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera e que é
apenas o meu entendimento que o concebe; refiro-me a este
pedaço de cera em particular, porque para a cera em geral é
ainda mais evidente. Então, qual é esta cera que não pode
ser concebida a não ser pelo entendimento ou pelo espírito?
Com certeza é a mesma que vejo, que toco, que imagino, e a
mesma que conhecia desde o início. Mas o que se deve notar
é que sua percepção, ou a ação pela qual é percebida, não é
uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e nunca o
foi, apesar de assim parecer anteriormente, mas apenas uma
intuição (inspectio) do espírito.
Deve-se notar que a palavra latina inspectio está associada no
seu uso clássico com a noção de teoria em oposição à prática. As duas grandes preocupações da filosofia moderna agora
nos são apresentadas claramente. O estudo da inteligência divi
de-se em psicologia ou estudo do funcionamento mental consi
derado em ~~ ~ ~E1 suas "p'_~!..~~~.!el~Ç_?~_~,~e_ ~~ _~r~ste!ll?19g~ª ,Q.1!
teoria do conhecimento do mundo objetivo comum. Noutras palavras, há o estudo das cogitações como paixões da mente, e o estudo delas que nos leva a uma pesquisa (intuição) de um mundo objetivo. Essa divisão não é nada cômoda, pois dá lugar a numerosas perplexidades cuja consideração preocupou os sé
culos que estão neste ínterim.
1182 1
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
Enquanto o homem pensou em termos de noções físicas em relação ao mundo objetivo e de mentalidade em relação ao mundo subjetivo, o enunciado do problema, como o realizado por Descartes, bastava como ponto de partida. Mas
~
o equilíbrio foi abalado pelo aparecimento da fisiologia No
século XVII, oS homens passaram do estudo da física ao estudo da filosofia. Pelo fim do século XIX, notadamente na .'
Alemanha, os homens passaram do estudo da fisiologia ao da
psicologia. A mudança de tom foi decisiva. Naturalmente, no período primitivo a intervenção do corpo humano foi total-
mente considerada, por Descarte'if0r exemplo, na Parte V do __ c;. >0'
Discurso do método. Mas o instintôfisiológico não se tinha de-""I" ~ senvolvido. Considerando o corpo humano, Descartes pensou com o instrumental de um físico, ao passo que os psicólogos modernos se acham impregnados da mentalidade médica dos fisiologistas. A carreira de William James é um exemplo dessa mudança do ponto de vista. Também ele possuía o claro e in-cisivo gênio que podia estabelecer num relance o ponto exato
da solução final. A razão por que pus Descartes e James em imediata jus
taposição agora se evidencia. Nenhum filósofo terminou uma época com a solução de um problema. Seu grande mérito é de
natureza oposta. Cada um deles abre uma época com a clareza dos enunciados de termos nOS quais o pensamento possa ser proficuamente expresso em determinados estágios do conhe
cimento, um para o século XVII, outro para o século XX. A
esse respeito, devem ambos ser contrapostos a santo Tomás de Aquino, que expressa o ponto culminante da escolástica aris
totélica. Em diversos aspectos nem Descartes nem James foram os
mais característicos de duas respectivas épocas. Tendo a atribuir essa posição a Locke e a Bergson respectivamente, pelo menos no que concerne às suas relações com a ciência do tempo. L,Q; cke desenvolveJ1 a linha do pensamento que mantém a filosofia em movimento; por exemplo, insistiu no apelo à psicologia.
1 183 1
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Iniciou a época de pesquisas famosas sobre problemas de limi
tado escopo. Sem dúvida, ao fazê-lo, infundiu na filosofia algo ~o anti-racionalismo da ciêq,çia. Mas a tarefa verdadeiramente
básica de uma metodologia proveitosa é começar daqueles claros postulados que devem ser tomados como os últimos no que
diz respeito às ocasiões em questão. A crítica de tais postulados metodológicos está assim reservada para outra oportunidade.
Locke descobriu que a situação filosófica legada por Descartes
envolve problemas de epistemologia e psicologia. Bergson introduziu na filosofia a concepção orgânica da
ciência fisiológica. Mstou-se completamente do estático mate
~smo do século XVl!:.QJ.eu protesto contra a_espacializasão... é um protesto contra a concepção newtoniana da natureza como
~o tudo menos uma eleva4a abstrasão. O seu chamado antiintelectualismo deve ser apresentado nesse sentido. Em alguns aspectos, recorre a Descartes, mas esse recurso vem acompanha
do de uma compreensão natural da biologia moderna. Há outra razão para associar Locke e Bergson. O germe de
uma teoria orgânica da natureza deve ser procurado em Locke.
O seu mais recente expositor, o professor Gibson, S afirma que
o modo de Locke conceber a identidade da autoconsciência "como a de um organismo vivo envolve genuína transcendên
cia da visão mecânica da natureza e do espírito incorporada
à teoria da composição". Mas deve-se notar que, em primeiro
lugar, Locke vacila ao tomar essa posição; e, em segundo lugar, o
que é ainda mais importante, só aplica essas idéias à autocons
ciência. A atitude fisiologista ainda não se tinha estabelecido.
O resultado da fisiologia foi repor o espírito na natureza. Os ;;;urologjstas indicaram primeiro o efeito dos estímulos sobre ~--- ------ ~-~-----------
os nervos do corpo, depois a integração nos centros nervosos e
~t~_Q __ ile~~~!~ento de uma referência projetiva para além do corpo de qu-",--,""sultou um"e_ficácia motriz em reno-
sef. seu livro, Locke's TheoryofKnowledgeQf!d its HisroriCQ/ Relatiofls, Camb. Univ. Press, 1917.
1 1841
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
vada excitação nervosa. Em bioquímica, aclara-se o delicado
~~tamento da comp~ição química das partes para preservar
todo o organismo. Assim a cognição mental é vista como ~~e~riência refletiva de uma totalidade, expondo por si o que é em ~i meSmo como uma ocorrência de unidade. Essa unidade é ~a '
integração da soma dos seus acontecimentos parciais, mas não é I o seu agregado numérico. Tem a sua própria unidade como um'~ --r
"'ãêontecimento. Essa unidade total, considerada como entidade V
por si mesma, é a preensão em unidade dos aspectos-modelo
do universo dos acontecimentos. O conhecimento de si mesmo
surge de sua própria relevância para as coisas cujos aspectos
apreende. Conhece o mundo como um sistema de mútua re
levância e assim o vê refletido em outras coisas. Essas outras
. coisas incluem mais especialmente as várias partes do seu pró-prio corpo.
É importante discriminar o modelo corporal, que dura, do
acontecimento corporal, ~~:~~ess .. do. pel()n:'0(leloc:l~radourº, e das partes do. acontecimento corporaL As próprias partes do aCo";tedmento-~~~oral são ~travessadas por seus próprios mo
delos que constituem elementos do modelo corporaL As.l'ª!1"~
sl0.""rl'.()3ã().reaII11ente partes do ambiente .do acontecimen, to cOrporal inte~r..?, mas tão relacionadas que os seus aspectos mútuos são peculiarmente efetivos, modificando o modelo de
qualquer uma delas. Issº. resultado cará!!f}I1.timº_~~elaçful do .!odo.para com a parte. Assim, o corpo é uma porção do
~biente quanto à parte,.!3_parte é llf!Jª.porçi<Uh.Lm.bi.ell~~~_~_ ao corp~; apenas são particularmente sensíveis, cada
um às modificações do outro. Essa sensibilidade é disposta de tal modo, que a parte se ajusta p~;ap~~;~-;:Y;;:r a estabilid;;de d~ ~().do.corpo. É um exemplo especial do ambiente favorável que protege o organismo. A relação da parte com o todo tem a especial reciprocidad~ a~~ci~d~-ã noç-ã~ de organism~
--em-que _a p~~~ está para ~ t.<?9.0;, n:t_a~ e~~_~ .. r~l~~EJ?E~y~~~~m -tOcla-a- n:~tureza e não se inicia no caso especial dos organismos mais desenvolvidos.-·-·----· ---------- --
1185 1
I ALFRED NORTH WHrrEHEAD I
Além disso, encarando essa questão como matéria de quí
mica, não há necessidade de construir as ações de cada molécula
em um corpo vivo por meio de sua referência particular exclusi
va ao modelo do organismo vivo completo. É verdade que cada
molécula está afetada pelo aspecto desse modelo nela refletido, de modo a não ser senão o que poderia ser se posta em qual
quer outro lugar. Do mesmo modo, em algumas circunstâncias
um elétron pode ser uma esfera e em outras circunstâncias um
volume oval. O modo de abordar o problema, no que conceme
à ciência, é simplesmente indagar se a molécula apresenta nos
corpos vivos propriedades que não devem ser observadas entre as coisas inorgânicas em torno. Do mesmo modo, em um campo
magnético, o ferro doce apresenta propriedades magnéticas que
estão ausentes em outro lugar. As ações autopreservativas ime
diatas dos corpos vivos e a nossa experiência da ação física dos
nossos corpos que seguem a determinação da vontade sugerem a
modificação das moléculas no corpo como resultado do modelo total. Parece possível que possa haver leis físicas que expressem
as modificações dos últimos organismos básicos quando fazem parte dos organismos com adequada integridade compacta de modelo. Estaria, contudo, de pleno acordo com a observação empírica do ambiente, se os efeitos diretos dos aspectos entre o cor
po e as suas partes fossem destituídos de importância. Devemos
esperar transmissão. Desse modo, a modificação do modelo total
transmitir-se-ia por meio de uma série de modificações, de uma
série descendente de partes, de modo que finalmente a modificação da célula transforma o seu aspecto na molécula, efetuando
assim uma alteração correspondente na molécula - ou em outra
entidade mais sutil. Assim, para os fisiologistas a questão está na
física das moléculas em células de características diferentes. Podemos agora nos ater à relação da psicologia com a
fisiologia e çom a física. O ca;;Po particular da psicologia é apenas o acontecimento considerado de seu próprio ponto de
vista. A unidade desse campo é a unidade do acontecimento.
Mas é o acontecimento com uma só unidade, e nãó o aconteci-
1 186 1
I A CIÊNCIA E O MUNDO MODERNO I
mento como uma soma de partes. As relações das partes entre
si e com o todo são os seus aspectos, cada um no outro. Um
corpo para um observador externo é o agregado de aspectos
para ele do corpo como um todo, e também do corpo como uma soma de partes. Para o observador exterior, os aspectos da
forma e dos objetos dos sentidos são dominantes, pelo menos para a cognição. Mas devemos também admitir a possibilidade"
de podermos descobrir em nós mesmos aspectos diretos das
mentalidades dos mais altos organismos. A exigência de que a cognição de mentalidades alheias deve necessariamente fazer
se por meio de inferências indiretas partindo de aspectos_~e forma e de objetos de sentidos é cOJ!lcletarneI)te dJ!sautoriz.'l-da por essa filosofia do organismo. O princípio fundamental é o de que o que quer que merg';lIie na realidade insere os seus aspect~~--e~-~;da ;cont.~s.i.~ento .indivi~ual.:_
Além disso, mesmo para o autoconhecimento, os aspectos
das partes de nossos próprios corpos em parte tomam a forma de aspectos da forma e dos objetos de sentido. Mas essa parte do acontecimento corporal a respeito da qual a mentalidade cognitiva é associada é por si mesma o campo psicológico da
unidade. Seus componentes não se referem ao próprio acon
tecimento; são aspectos,do que está para além desse aconteci- ,I
mento. Assim,. ~ aut<:.c~~h~~~~~~~~~!:~re~c:<? __ ~~?!::~:~meI!to ;J~/ corporal é o conhecimento de si mesmo como uma unidade
" complexa, cujos component<:~.~:r~!vem toda~~ reali~~~~s_/"'Y' para além de si mesma, restritas sob a limita cão <lJLseu model;;hpectos. As~im, conhecemo-nos como uma função de
unificação de uma pluralidade de coisas diferentes de nós mes mos. A cognição desvenda um acontecimento como sendo uma
~ade, organizando uma combinação real de coisas alheias.
Mas esse campo psicológico não depende de sua própria cognição, de modo que esse campo é ainda um acontecimento de
unidade abstraído de sua própria cognição. Desse modo, a consciência será o funcionamento do c~.:
nhecimento. Mas o que é conhecido já é uma preensão de
11871
* F í/,~YjJj P 0-/,.,<'.>,' 7/] _
~-,"-~ I 2 , .I I ALFRED NORTH WHITEHEAD I /~/_) />---) /;: u//'~ /_ . A··"
aspectos de um universo real. Esses são aspectos de outros
acontecimentos modificados mutuamente. No modelo dos r '-acont~_ci~~_~~osJ.JiC;élm no seu modelo de mú-~uo --;elaciona-
~< .,
~~
"'" ~, .
" , ", " '" "1..."
universo. Assim, nenhum sujeito individual pode ter realidade independente, ."isto que é uma preensão de asp,,<:!'5lS limitados ?e outro~ sujeitos que_IlãQ de-/... A expressão técnica "sujeito-objeto" é um termo inade
quado p~ra a situação fundame~tal revelada na experiência. É real~-ent~--um~--;erniniscênci~do aristotélico ".sujeito,:QT~!::. cado". Já pressupõe a doutrina metafisica de sujeitos diversos
qualificados por seus predicados particulares. Essa é a doutrina dos sujeitos com os mundos particulares das experiências. Acei
tando-o, n~o há como escapar do solipsismo. O ponto é que a
expressão "sujeito-objeto" indica uma entidade fundamental na
base dos objetos. Assim, os "objetos" concebidos desse modo
não passam de fantasmas dos predicados de Aristóteles. A si
tuação primária revelada na experiência cognitiva é "eu-objeto
entre objetos". Com isso quero dizer que o fato primário é um
mundo sem partes que transcende o "aqui-agora" que marCa o
eu-objeto, e transcendendo o "agora" que é o mundo espacial de realização simultânea. É um mundo que também inclui a rea
lidade do passado e a limitada potencialidade cio futuro, COmbinado com o mundo completo da potencialidade abstrata, o domínio dos objetos eternos, que transcende e encontra exem-
~1f5/)· !l 1 1881 /) /!/'.; .~ /
;'
)/' i'- ,,,,-!/ ;./; /- " '.y ~ ./ ','J- -'y y~' / ,,) ,-- /J
,,,,.J-1
( )d/
/flJ ")~/' r7?,I 'h.) ."'\. - ") ,5 '/ ~ - ,-" ;'? ; ///'A/, ~_/_""'/ '--
-;); ~ I'; C-I~~A!o ~~~DO/~~~ERN~ í' ~ /)' ( p~<'< ~_ -'/. '.~_:_:: __ '~ _~ " -- 'J,' ! / ._?' __ ::': ___ ~_.~ J ~.~ ?:;"'-"-p1tfidiÇ:ão n~ ~u;so atual da realização em comp-a~ação com ele.
I O eu-objeto, como o aqui-agora da consciência, é consciente
da essência experiente, constituída por seu relacionamento in
terno com o mundo das realidades e com o mundo das idéias.
J! Mas o eu-objetoJendo assim constitJlído, está no mundo d~ __ realidades, apresenta-se como um organismo que requer a en
trada de idéias com vistas a esse estado entre as realidades. Essa <
questão da consciência deve ser reservada para outra ocasião.
O ponto que se deve considerar na presente discussão é que uma filosofia da natureza como orgânica deve 2artir do ex-
,-------------
C' tremo -')I)()stoao_e.~giº9Qela filosofia materialista. O ponte) d~
:y partida materi~ista_é de su~stâE--"i~_~JCi.stentesJndepeIlge!1~emente, matéria e __ espírit~~ A matéria sofre modificações de suas ~eIações- exte-m;;, ~-o espírit~ sofre modificacões dos objetos
que contempla. Há nessa teoria materialista duas eSl'écies..de substâncias independentes, cadaUIna_q_ualificada por suas paixões apropriadas. O ponto de partida orgânico é da análise de processos como a realização de acontecimentos dispostos em
comunidades que se comunicam entre si. O acontecimento se
ria a unidade das coisas reais. O modelo duradouro emergente é a estabilização da consecução emergente, de modo a tomar-se
um fato que retém a sua identidade através do processo. Será de notar que perduração não é primordialmente a propriedade de durar para além de si mesmo. Quero dizer que perduração
é a propriedade de achar o seu modelo reproduzido em partes temporais do acontecimento total. Nesse sentido é que um
acontecimento total traz um modelo duradouro. Há um valor
intrínseco idêntico para o todo e para as suas partes sucessivas.
A cognição é o patenteamento em alguma medida da realidade
individual, do substrato real da atividade, pondo diante de si
possibilidades, realidade e propósito. É também possível chegar a essa concepção orgânica do
mundo se partirmos das noções fundamentais da física moderna, em vez de, como acima) da psicologia e da fisiologia. De
fato, por causa dos meus próprios estudos sobre matemática e
1189 I
V ./)'/ ~j .r 9/v - I r ;j" /, ,~-~
/f)" /z/ '~)J' t·, .p--iJ~/':.--:r ,) /), 'A_; )(:~~:_".;) ). ./ 0(:)
" ') '. J ALFRED NORTH WHITEHItÁD I f) !//;/> ,/ " " rr>YJLy
v fJ
física matemática, realmente cheguei à minha convicção desse
modo. A física matemática supõe em primeiro lugar um campo
eletromagnético de atividade que abrange espaço e tempo. As leis que condicionam esse campo são nada menos que as condi
ções observadas pela atividade geral do fluxo do mundo, como se individualiza nos acontecimentos, Em fisica, há uma abstra-
, ção. A ciência ignora o que uma coisa é em si. Suas entidades
apenas são consideradas em relação à realidade extrínseca, vale dizer, com respeito aos seus aspectos em outras coisas. Mas a
:: abstração vai mais -~lém do gue i;~~i~E9;q~e-~ãotãc;:~~~ente 0;-1-------,----- -- -. - __ 'o •
1 aspectos em outras coisas, ~odificando as especificações __ ~.~---'--- -- - - _._--- -----
cíotemporais da história de vida dessas outras coisas tomadas,
<0~~
~
3/ que contam . .f\ realidad~ jntrínseca do observ~~()F é que .~ntra;
~;i~ero -dizer que se ape~-'p_~~~ __ ~_ gue o observador é e~ si ~esmo, Por exemplo, o .fato de que ele verá vermelho ou azul entra
pas aIifIll.ções cientificas, Mas ~rrn~I~() que qobservad_or_:;:ê
naveraaáe não entra na ciênci<:. q_ q~~}~p"()_!:!~ (~~as_asil1?:y!~ div~rsida~"c!..as_ ~xperiên<:ias de :;:ermelho d_o o_~~':fya~or de todas as suas outras experiênc.i~. De acordo com isso, o caráter
intríns~co do observador só tem importância para fixar a indivi- 1-'
'dualidade auto-idêntica das entidades físicas, Essas entidades só
;J\ .. ' Jf
- . - ----._--,-- ._.
são considera~as c"mo agentes ~e Jixam,ocaminho_noternJJo ;-n;~spaço das histórias de vida de entidades duradouras.
A linguagem da fisica deriva das idéias materialistas do século XVII, Mas verificamos que, mesmo em suas abstrações
extremas, o que é realmente pressuposto é a teoria orgânica de
aspectos explicada anteriormente. Primeiro, considerem qual
quer acontecimento em espaço vazio, tomando-se "vazio" como
privado de elétrons ou prótons, ou de qualquer outra forma de
carga elétrica. Tal acontecimento tem três papéis na física. Em
primeiro lugar, é a cena real de uma aventura de energia, quer
como seu habitat, quer como o lugar de determinada corrente
de energia: de qualquer modo, nesse papel a energia está presente, ou localizada no espaço durante o tempo considerado, ou
corrend. o através do espaço. / , " , //j'
.i J./11901 --" "i. " )-
I A Cl~NClA E o MUNDO MODERNO I
Nesse segundo papel, o acontecimento é um liame ne
cessário no' modelo da transmissão, pelo qual o caráter de todo acontecimento recebe alguma modificação de todos os outros
acontecimentos. No seu terceiro papel, o acontecimento é o repositório
de uma possibilidade, quanto ao que aconteceria a uma car-ga elétrica, ou por meio de deformação ou de locomoção, se <
acontecer que ela exista. Se modificarmos a nossa afirmação
considerando um acontecimento que em si mesmo inclui uma
porção da história de vida de uma carga elétrica, então ainda permanece a análise dos seus três papéis, não permanecendo,
porém, o fator de que a possibilidade incorporada no tercei-ro papel seja agora transformada em qualquer realidade. Nessa substituição da realidade pela possibilidade, obtemos distinção
entre acontecimentos vazios e plenos. Recorrendo aos acontecimentos vazios, notamos neles a
deficiência de individualidade de conteúdo intrínseco; Considerando o primeiro papel de um acontecimento vazio como um habitat de energia, notamos que não há discriminação
individual de um fragmento individual de energia, quer estaticamente localizada, quer como elemento de uma corrente.
Há simplesmente uma determinação quantitativa de atividade,
sem individualização da atividade em si. Essa falta de indivi
dualização é ainda mais evidente no segundo e terceiro papéis.
Um acontecimento vazio é algo em si mesmo, mas deixa de
realizar uma individualização estável de conteúdo, Ntl que se refere ao seu conteúdo, o acontecimento vazio é um elemento
realizado em um esquema geral de atividade organizada, Faz-se necessária alguma qualificação quando o aconteci
mento vazio é a cena da transmissão de uma marcha definida
de formas ondulatórias freqüentes. Há agora um modelo definido que se conserva permanentemente no acontecimento. En
contramos aqui o primeiro sinal esmaecido de individualidade duradoura, Mas é individualidade sem a mais fraca apresentação de originalidade, pois é simplesmente uma permanência
1 191 1
I·
1
1;/. '
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
que resulta unicamente da implicação do acontecimento em
um esquema de modelação mais amplo.
Voltando agora ao exame de um acontecimento ocupado,
o elétron tem individualidade determinada. Pode ser traçada por toda a sua história de vida através de uma variedade de acontecimentos. Um conjunto de elétrons, combinado com as
análogas cargas atômicas de eletricidade positiva, forma um
corpo como ordinariamente percebido. O mais simples corpo dessa espécie é uma molécula, e um conjunto de moléculas for
ma um agrupamento de matéria ordinária, tal como uma cadei
ra ou uma pedra. Assim, uma carga de eletricidade é a marca de
individualidade de conteúdo, como adicional à individualidade de um acontecimento em si. Essa individualidade do conteúdo é o ponto forte da doutrina materialista.
Pode, contudo, ser igualmente bem explicado na teoria do organismo. Quando consideramos a função da carga elétrica, notamos que o seu papel é marcar o surgimento de um mo
delo transmitido através do tempo e do esp"~ço. É a chave de alguns modelos determinados. Por exemplo, o campo de força
em qualquer acontecimento deve ser apresentado tendo-se em
conta as aventuras dos elétrons e prótons, e assim também são
as correntes e a distribuição de energia. Além disso, as ondas elétricas se originam nas aventuras vibratórias dessas cargas.
Assim, o modelo transmitido deve ser concebido como o fluxo
dos aspectos através do espaço e do tempo derivado da história de vida da carga atômica. A individualização da carga decorre
da conjunção de duas características, em primeiro lugar pela
continuação do seu modo de funcionar como chave para determinar a difusão de um modelo; e, em segundo lugar, pela unidade e continuidade de sua história de vida.
Podemos concluir, portanto. que a teoria orgânica ~re
~~_nta d_i~e~~~nte o ~ue_a física realmente afirma aJS!_s_p_~itçu~k
sua~,,"tida<les últim~~. Notamos também a completa futilidade dessas entidades, se concebidas como indivíduos inteiramente _---o _. ___ " ___ " ~" __ o - ____ "' ____ .. " .. ___ . --concretos. No que se refer~ à física, est_ã?_~~t~iramente ocupa-
1192 1
,. )- ~ , /, r /
V>' )
j), ) ,>
"/, ':--)-')
,'.
I A cíE:NClA E O MUNDOtMODERNO I (./~' 7.) ;.> jY-'~J~-
;>~ ,/
:) ,
_ dos em se rD,Qyex:.._gIILem torno do outro, e não têm nenhuma
_~)_r~;ii~a~_~!o~~_nd~s~a funç.~~: ~~~~~~-ent~'-~; fisjca, não hã'
y;-
realidade intrinseca, "-'É óbvioq;e-~ basear a filosofia no pressuposto do orga
nismo deve remontar a Leibniz.9 Suas mônadas são para ele as
últimas entidades reais. Mas m".éeve as substâ.n.c.@uMxesianas. com as suas paixões qualificadoras, como também expressan- ti:
do-igualmente para ele a caracterização-fi~al da~~oisasreais. Assim, para ele não há realidade de relações internas. Tinha, "/ pois, em suas mãos dois pontos de vista distintos. Um era que a '-01---
entidade real final é uma atividade organizadora, fundindo em uma unidade, de modo que essa unidade é a realidade, O outro ponto de vista é que as entidades reais finais são substâncias que suportam qualidades. O primeiro ponto de vista depende da aceitação das relações internas ligando todas as realidades. A última é incompativel com a realidade de tais relações. Para combinar esses dois pontos de vista, suas mônadas são inteira-
mente inaptas; e as suas paixões refletem o universo pelo di-
vino arranjo de uma harmonia preestabelecida. Esse sistema,
assim, pressupunha um agregado de entidades independentes. Não discriminava o acontecimento, como a unidade da expe-
riência, do organismo duradouro como a sua estabilização em
importância, e do organismo cognitivo expressando uma per-
feição aumentada de individualização. Nem admitia relações variamente denominadas, relacionando dados de sentido com
vários acontecimentos em diversos modos. Essas relações va
riamente denominadas são de fato as perspectivas que Leibniz
admite, mas só sob a condição de que sejam puramente qua-
lidades das mônadas organizadoras. A dificuldade surge real-mente da indiscutida aceitação da noção de posição simples
como fundamental para o espaço e o tempo, e da aceitação da noção da substância individual independente, como funda-
9Cf. Bertrand Russell, The PhilosophyofLeibniz, para a sugestão dessa linha de pensamento.
,~ /J---, /
() /'..)/ I
1193 1
L ___ _
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
mental para uma entidade real. O único caminho que se abria
a Leibniz era, assim, o mesmo mais tarde seguido por Berkeley
(numa interpretação prevalente do seu significado), isto é, um apelo a um Deus ex machina, capaz de ser superior às dificul
dades da metafísica. Do mesmo modo que Descartes introduziu a tradição do
pensamento que guardou em alguma medida a subseqüente
filosofia do contato com o movimento cientifico, assim Leibniz introduziu a tradição alternativa de que as entidades, que são
as últimas coisas reais, são em certo sentido processos de orga
nização. Essa tradição foi a base das grandes realizações da filosofia alemã. Kant refletiu as duas tradições, uma após a outra. Kant era um cientista, mas as escolas dele derivadas só tiveram
reduzido efeito na mentalidade do mundo científico. Devia ser
a tarefa das escolas filosóficas do século XX reunir as duas correntes em uma expressão do quadro do mundo derivado da
ciência, e portanto acabar com o divórcio entre a ciência das
afirmações e as nossas experiências éticas e estéticas.
11941
..,., l.oC;' -"
~ . //,'0/ ./ I:/~- ;o, . ,f~ .' J.J
-~--/ '. , .J ! I '-"
..:;/---
/c ./
" /~)-" / .
/
I) .,--, .' 1,/
/ .
I CAP[lULO X I
A ABSTRAÇÃO
(~-
Nos capítulos anteriores examinei a reação do movimen
to científico com relação às mais agudas questões que têm preocupado os pensadores modernos. Nenhum homem, nenhuma
-"s-"o,:-ci:.;e.c.de-ad_e=lim=i",tada_d_e ho.:n_e_n_s_e_n_e_nh_tlIIl~ép_o~c_a pode...mrefletir so~~".!~as as co~as ao mesmo tempo. Assim, procurando deslindar os diversos impactos da ciência sobre o pensamento, o
tópico foi tratado historicamente. Nesse retrospecto, tive em mente que o resultado final de toda a história é a patente dissolução do cômodo esquema do materialismo científico que domino,:! os três séculos el11 exame. De acordo com isso, várias 'es~oj';;-d~ ~rítica das opiniÕes dominantes foram esboçadas; e
esforcei-me por delinear uma doutrina cosmológica alternati
va, \)ast,mte ampla. para i~;:J~ir o que é fundamental ta~t~ para a ciência como para os seus criticos. Nesse esquema alternativo,
) a noção de matéria como fundamental foi substituida pela sua
l/ J síntese orgânica. Mas a aproximação sempre se deu com base
na consideração das complexidades reais do pensamento cien
tifico e das perplexidades peculiares que sugere.
No presente capítulo e no subseqüente, deixaremos de lado os problemas peculiares à ciência moderna e nos colocare
mos ~~to de vista de tlIIla co~i~en,ção~e_~paixonada da natureza das coisas, ~_~te~i?!~s a q~~lg~er)nvestigaçãQ especial em seus detalhes. Esse ponto de vista é chamado "metafísico". Assim, aqueles leitores que acham a metafísica enfadonha, mesmo em dois breves capítulos, farão bem em passar imedia-
1195 1
~-
7!(? Dl .. y~-
~
.../- ' ,~
'~ / " I ALFRED NORTH WHITEHEAD 1
:j-;;
tamente para o capítulo sobre "Religião e ciência", que resume
o tópico do impacto da ciência em relação ao pensamento mo
derno. Esses capítulos metafísicos são puramente descritivos. Sua ,.-
justificação deve ser procurada: (I ~ nosso conhecimento di-
!J reto das circunstâncias reais que constituem nossa expert~Q<;La imediata; (2) em seu êxito como base para harmonizar as nossas
, exposições sis~~_Q1jl!!~_aº;:t~ ge v~rios -gpos de experiência;eJ3) D-:-en,. seu êxito proporcionador dos conceitos em cujos temos se
c . pode esboçar urna epistemologia. Pelo (3) qlleroexprimir qu~
uma exposição do .. caráter geral daquilo que conhecemos deve -h;bilitar-nos a esboçar uma exposição de como o conhecimen
to é possível CCIpO !ldjunto às coisas conhecidas. ... - - Em: q~lquer circunstância de cognição, aquela que é co
nhecida é uma circunstância real de experiência, diversificada I
em referência a um domínio de entidades que transcendem
essa circunstância imediata __ nQ __ ~~º_!i_d_o _~~ q~~. têm cºI}~~ges
al:!áJ<?gas ou diferentes com outras circunstâncias de espécie.
Por exemplo, determinado matiz de vermelho pode, na circunstância imediata, estar implicado com o volume da esferi
cidade em algum modo definido. Mas esse matiz de vermelho e esse volume esférico apresentam-se como transcendentes a
essa circunstância no sentido de que qualquer uma delas tem
outras relações com outras circunstâncias. Do mesmo modo,
pondo de parte a ocorrência real das mesmas coisas em ou
tras circunstâncias, cada circunstância real é colocada num do
mínio de entidades entrelaçadas e alternativas. Esse domínio
é desvendado por todas as proposições falsas que podem ser o predicado significativo daquela circunstância. É o domínio
das sugestões alternativas, cujo terreno na realidade transcende
t/r cada circunstância real. A verd~dei.~~_ .. ~rr:'::portân~~a ~_a~_Y..!~RO~ições falsas para cada circunstância real.é_d"s",,:,clacia rela art~, pelo romance e pela crítica .~~ . .:~ferência a ide~~. A ~?mpre-
I Cf. ::neu Pr;nciplesofNatural Knowledge, capitulo V, seção 13.
/ ~ / -~) [y':/" : ... )- J //." .
I 196 I ·0·
L-/'--, -/, 'j"
'r '" / ~. ~t··
; V ' / /. , ~ , j~
I J)//'; .' .'~, lÁ CI~NCI:'; O MUNDO MODERNO J.- \ / __ _ '/-J,' j ',' • - ___ ,_o _ c"'_' ~ /- - -,' ' '/.' r- o,,," / f , j ~,)./ j./ '
l} ; ensão da realidade requer ul'Il~ .. referência à idealidade. Eis o I -- - - -----------.- - ..
fundamento da posição metafísica que sustento. Os dois do-
mínios sã() intrinseca~_1'!te l.~er~s.~ _t9!ªLsituação metafí~-VerdaJe·de· <Í~e alguma proposição a respeito de uma
r,-"', circunstância 'real é faisa pode exprimir a ,,:,~rdade vital qu~ /) à realização esté~~. Expressa a "gr~nde re~u's-a" qu-e Ta sua
característica primária. Um acontecimento é decisivo em pro
porção à importância (para ele) das duas proposições falsas: a
sua importância para o acontecimento não pode ser dissociada
do que o acontecimento é em si, por meio de consecução. Essas
unidades transcendentes foram chamadas "universais". Prefiro ·,:usar o termo "objetos eternos", com o fim de me desvencilhar
de pressupostos que se prendem ao termo antigo em razão de sua longa história filosófica. Objetos eternos são assim, emsua natureza, abstE~ Por "abstrato" entendo que aquilC) que .um
obj~~~!~iº-º, é eI!L~i ~ ist~ é, a sua essência - é compreen:--- -L ' sível sem referência a nenhuma circunstância determinada de ./ .. . .
[
~;
experiênci~. ?~bstrato é transcender determinadas circuns
tâncias concretas de acontecimento real. Mas transcender uma
-circu_I?:s~~nci~ 'real-não significa estar em desc~ne~ão com el~ Xõ--~ontrário, sustent~-que -Zad;-obf~to etern~--te~ a sua pró
pria conexão com -cada u~à- dessas circunstâncias, que ~h;~o os-eu -mod"O de entrar nessa circunstância. Assim, um objeto
eterno deve ser compreendido pelo conhecimento: (I) de sua
individuali<lad~.sleter'!l.in",da; (2) de sua.'.. relações .ger:ais com. outros objetos eternos como ap~os para a re~lização em cir
cunstâncias reais; e (3) do princípio geral que expressa a sua inclusão em determinadasci'~c~~stâncias reais.
Esses três pontos capitais expressam dois princíl'icl,,_ O primeiro princípio é que cada objeto eterno é um indivíduo
que, em sua própria feição peculiar, é o que é .. Essa individual~
dade determinada é a essência individual do obje!o e não pode ser descrita de Outro modo a não ser como sendo ela mesma.
Assim, a essência individual é simplesmente a essência consi
derada a respeito da sua unicidade e além disso a essência de ! . . 1 .
<
!f) 5' }. 0///·'·1';97'1 /.?/~
j)/ ,..<,_r--' o'} /-'Z/-''''
)
'1) ti" lo :// - -" './. "; )_" " ~;/JJ': , .
/y'/c./j> ' /'~'/ ;~. ;:_,----" ...... 0
, ~~y/j.;) 4
:g) )//,) /',U "~ ____ ;...-. )/) 1 J, -/' . I ALFRED NORTH WHJTEHEAD I
?vP-JI./,J-
"
'.
~
'\ ~ ~
um objeto eterno considerada ~_~:~E.4o ~ua pró~!i~" -7) contri~~~~~_i~.,,!_ ~_cc:~~ ... ~ir<:uns~ncia rt;_ª~. Essa contribuição ",~, ~
liniCa é idêntica para todas essas circunstâncias com respeito ao ~" '" , fato de que o objeto em todos os modos de introdução é ape- .i
nas a identidade de si mesmo. Mas varia de uma circunstância \\-\
para outra, com respeito às diferenças do seu modo de inclusão.
Assim, !_situ::ção rIle~aªsica.de um3bj"to et~,!,oé a da po,,- ~ sibilidade para uma realidade. Todas as circunstâncias reais são definidas quanto ao seu caráter mediante o modo como essas
possibilidades são realizadas para essa circunstância. Assim, realização é uma seleção entre possibilidades. Mais claramente,'
_ é uma seleçã"3'le re~ulta_"-IIl_uma gradação de.Qossibilidades ' . • ~---- ___ o_o· _.' ___ •••• _____ _
/1 com respeito à sua realização nessa circunstância. Essa conclu-
t-i y
são leva-nos ao segundo princípio metafísico: um obj~t~~em~,
~?_~i~~r_~? ~_~_~ __ ~_~~_ entidaci.~_~?s~E~~ não pode ser s~ar~d()de Sua referência a outros objetos eternos, .nem de sua r!'Je:~,\
rênc~~~_~ealida~_~~l!!_~r~J, embora esteja em desc_onexão com '"
o modo real de inclusão em detelllli.nadas circunstâncias reais. ----------- - - -_. - "--._--- ------- _.- ---Esse princípio é expresso pela afirmação de que cada objeto~ : --- - -- --....
;;; eterno ~!E_._~_~_ "'_~~_~_sência relacio~al". ~ssa essência r~l~çi~~~l, ~ de~rmina comoé..E~~!vel que o objeto ~ejaiIlcluído em cir- . ~,
cun~t.ânci'!.s reªis.
/ Em outras palavras, se A for um objeto eterno, o que A é em si envolve a situação de A no universo, e A não pode
ser separado dessa situação. Na essência de A, existe uma determinabilidade quanto aos relacionamentos de A com outros
objetos eternos, e uma indeterminabilidade quanto aos relacio-
'\
'\ namentos de A com as circunstâncias reais. Visto que outros
objetos eternos se acham determinadamente na essência de A, " segue-se que há relações internas. Quero dizer com isso que"
essas relações são constitutivas de A, pois uma entidade que se -'",
acha em relações internas não tem de ser como uma entidade .~ que não esteja nessas relações. Em outras palavras, uma vez 0'.c
com relações internas, sempre com relações internas. As rela- (;<S ções internas de A formam conjuntamente a sua significação.
J) 9 ;;íJy :;.-. 1198 I
2,j,') (' jj,; /1;J I , ' . j /
) .
I A CI~NCLA E O MUNDO MODERNO I
Repitamos que uma entidade não pode apresentar relações externas, a não ser que na sua essência tenha uma indeter
minabilidade que está como paciente dessas relações eternas. A significação do termo "possibilidade" aplicado a A é simplesmente que se acha na essência de A uma passividade para as
relações com as circunstâncias reais. Os relacionamentos de A com a circunstância real são simplesmente o modo como os ,"
relacionamentos eternos de A com outros objetos eternos são
graduados quanto à sua realização nessa circunstância.
Assim, O principio geral que expressa a inclusão de A na determinada circunstância real ex é a indeterminabilidade que está na
essência de A quanto à sua introdução em ex; e é a determinabilidade que está na essência de ex quanto à inclusão de A em ex. Assim,
a preensão sintética, que é ex, é a solução da indeterminabilidade de A na determinabjlidade~de ex. De acordo com isso, o relacionamento entre A e a é externo com relação a A, e é interno
com relação a ex. Toda circunstância real ex é a solução de todas as modalidades em inclusões categóricas atuais: a verdade e a
falsidade tomam o lugar da possibilidade. A completa inclusão de A em ex é expressa por todas as proposições verdadeiras que exis
tem sobre A e ex, e também - pode ser - sobre outras coisas. O relacionamento determinado do objeto eterno A com
todos os outros objetos eternos é o modo como A é sistemati
camente e pela necessidade de sua natureza relacionado com
todos os demais objetos eternos. Esse relacionamento represen
ta uma possibilidade para a realização. Mas O relacionamento é um fato que concerne a todos os relata implicados, e não
pode ser isolado como se envolvesse somente um dos relata. De acordo com isso, há um fato geral de mútuo relacionamento
sistemático inerente ao caráter da possibilidade. O domínio dos objetos eternos é descrito propriamente como um "domínio",
porque cada objeto eterno tem a sua circunstância nesse com
plexo sistemático geral de mútuo relacionamento.
Com respeito à inclusão de A em uma circunstância
eterna a, os mútuos relacionamentos de A com outros objetos
1199 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
eternos, assim graduados em realização, demandam para a sua expressão uma referência à situação de A e dos outros objetos eternos no relacionamento espaciotemporal. Também esse relacionamento não é expressável (para esse propósito) sem uma referência à situação de a e de outras circunstâncias reais no mesmo relacionamento espaciotemporal. De acordo com isso, o relacionamento espaciotemporal em cujos termos o curso
real dos acontecimentos deve ser expresso, não é senão uma limitação seletiva dentro dos relacionamentos sistemáticos gerais entre os objetos eternos. Por "limitação", aplicada ao conti
nuum espaciotemporal, entendo aquelas determinações de fato
- tais Como as três dimensões do espaço e as quatro dimensões do continuum espaciotemporal - inerentes ao curso real dos acontecimentos, mas que se apresentam como arbitrários com respeito a uma possibilidade mais abstrata. A consideração dessas limitações gerais na base das coisas gerais, distintas das limitações peculiares a cada circunstância real, será mais completamente resumida no capítulo sobre "Deus".
Além disso, a situação de todas as possibilidades em referência à realidade demanda referência a esse continuum espaciotemporal. Em qualquer consideração determinada de uma possibilidade, podemos conceber que esse continuum seja
transcendido. Mas, enquanto haja qualquer referência definida á realidade, requer-se o "modo" definido da transcendência desse continuum espaciotemporal. Assim, primariamente, o conti
nuum espaciotemporal é um lugar de possibilidade relacional,
selecionada de um domínio mais geral de relacionamento sistemático. Esse limitado lugar do relacionamento das possibi
lidades expressa uma limitação de possibilidade inerente ao sistema geral do processo de realização. Qualquer que seja a possibilidade geralmente coerente com esse sistema, ela está incluída nessa limitação. Também, o que quer que sej a possível abstratamente, em relação ao curso geral dos acontecimentos - como distintos das limitações determinadas introduzidas por circunstâncias determinadas -, abrange o continuum espa-
I 200 I
I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I
ciotemporal, em todas as situações espaciais alternativas e em todos os tempos alternativos.
Fundamentalmente, o continuum espaciotemporal é o sistema geral de relacionamento de todas as possibilidades enquanto esse sistema seja limitado por sua importância para o fato geral da realidade. Também é inerente á natureza da possibilidade que deve incluir sua importância para a realidade, pois ,
possibilidade é aquilo em que se encontra o realizável, abstra
ído da realização. Já se enfatizou que uma circunstância real deve ser con
cebida como uma limitação e que esse processo de limitação
pode ser caracterizado ainda mais como uma gradação. Essa característica de uma circunstância real (digamos ) demanda maior elucidação. Uma indeterminabilidade está na essência de qualquer objeto eterno (digamos A). A circunstância real a sintetiza em si todo objeto eterno e, nessas condições, inclui o "completo" relacionamento determinado de A com todos os demais objetos eternos. Essa síntese é uma limitação da realização, mas "não" do conteúdo. Cada relacionamento preserva sua própria identidade. Graus de entrada nessa síntese são inerentes a cada circunstância, como a. Esses graus só podem ser expressos como relevância de valor. Essa relevância de valor
varia - em comparação com diferentes circunstâncias - em grau de inclusão desde a essência individual de A como um elemento na sintese estética (em algum grau de inclusão) até
o mais baixo grau, que é a exclusão da essência individual de A como um elemento da síntese estética. Enquanto está no mais baixo grau, todo relacionamento determinado de A é
apenas ingrediente na circunstância com relação ao "modo" determinado como esse relacionamento é uma alternativa não completada, não contribuíndo com nenhum valor estético, exceto como formador de um elemento no substrato sistemático de um conteúdo não completado. Em um grau mais alto, pode permanecer não completado, mas ser de importância
estética.
I 201 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Assim, A, concebido só com respeito ao seu relacionamento com outros objetos eternos, é "A concebido como 'nãoser' "; onde "não-ser" significa "abstraido do fato determinado de inclusões em fatos reais e de exclusões deles". Também "A
como 'não-ser' " com respeito a uma circunstância definida a
significa que A, em todos os seus relacionamentos determinados, é excluído de a. Novamente, "A como 'ser' com respeito
a cc significa que A, em alguns de seus relacionamentos determinados, está incluído em ex. Mas não pode haver circunstância que inclua A em todos os seus relacionamentos determinados, pois alguns desses relacionamentos são contrários. Assim, quanto a relacionamentos excluídos, A será "não-ser" em a; mesmo quando a respeito de outros relacionamentos A seja "ser" em a. Nesse sentido, todas as circunstâncias são uma síntese de "ser" e "não-ser". Além disso, embora alguns objetos eternos sejam sintetizados em uma circunstância ex, simplesmente através do "não-ser", cada objeto eterno que é sintetizado através do "ser" está também sintetizado através do "não-ser". "Ser" aqui significa "individualmente efetivo na síntese estética". Também a "síntese estética" é a "síntese de experiência" encarada como autocriativa, sob as limitações lançadas sabre ela por seu relacionamento interno a todas as demais circunstâncias reais. Concluímos, pois - o que já foi afirmado anteriormente -, que o fato geral da preensão sintética de todos os objetos eternos em todas as circunstâncias apresenta o duplo aspecto do relacionamento determinado
de cada objeto eterno com circunstâncias em geral, e de seu relacionamento determinado com cada circunstância determinada. Essa afirmação resume o enunciado de COmo as relações externas são possíveis. Mas o enunciado depende de ser desvencilhado do continuum espaciotemporal, de sua simples implicação em circunstâncias reais - de acordo com a explicação comum - e de apresentá-lo em sua origem da natureza geral da possibilidade abstrata, limitada pelo caráter geral do curso real dos acontecimentos.
1 202 I
1 A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO 1
A dificuldade levantada a respeito das relações internas é explicar como uma verdade determinada é possível. Enquanto houver relações internas, todas as coisas devem depender de alguma outra coisa. Mas, se for esse o caso, não podemos conhecer nenhuma coisa enquanto não conhecermos tudo mais. Evidentemente, portanto, necessitamos dizer todas as coisas imediatamente. Essa suposta necessidade é claramente falsa. .,
Sendo assim, cabe-nos explicar como pode haver relações in
ternas, visto que admitimos verdades finitas. Uma vez que as circunstâncias reais são selecionadas do
domínio das possibilidades, a explicação final de como as circunstâncias reais têm o caráter geral que elas têm de fato deve ser procurada em uma análise do caráter geral do dominio da possibilidade.
O caráter analítico do dominio dos objetos eternos é a verdade metafísica primária a seu respeito. Por esse caráter se entende que qualquer objeto eterno A nesse domínio é passivel de análise em um número indefinido de relacionamentos subordinados de escopo limitado. Por exemplo, se B e C são dois outros objetos eternos, então haverá algum relacionamento perfeitamente definido R (A, B e C), que envolve tão-somente A, B e C, como para não exigir a menção de nenhum outro objeto eterno na qualidade de relata. Claro que o relacionamento R (A, B e C) pode envolver relacionamentos subordinados que
são, eles mesmos, objetos eternos, e o próprio R (A, B e C) é
um objeto eterno. Também haverá outros relacionamentos que,
no mesmo sentido, envolvem apenas A, B e C. Temos agora de
examinar como, tendo em vista o relacionamento interno de objetos eternos, é possivel esse relacionamento limitado R (A, Be C).
A razão de existirem relacionamentos finitos no domínio dos objetos eternos é que o relacionamento desses objetos entre si é inteiramente impróprio para a seleção, e sistematicamente completo. Estamos discutindo possibilidade; sendo assim todos os relacionamentos que são possíveis estão, portanto, no
I 203 I
I ALFRED NORTH WHJTEHEAD I
domínio da possibilidade. Todos esses relacionamentos de cada
objeto eterno fundam-se na situação perfeitamente definida desse objeto como um relatum no esquema geral dos relaciona
mentos. Essa situação definida é aquilo a que chamo a "essência relacional" do objeto. Essa essência relacional é determinável pela referência a esse objeto apenas e não exige referência a nenhum outro objeto, exceto os especificamente envolvidos na
sua essência individual quando essa essência é complexa (como
será explicado a seguir). A significação das palavras "todo" e "al
gum" deriva desse princípio - ou seja, a significação da variável em lógica. O princípio todo é que uma determinação especial pode ser feita do modo de alguma relação definida de um objeto eterno definido A, com um número definido n de outros objetos eternos, sem nenhuma detenninação de outros objetos, Xl'
X 2, ... Xn, mas que têm, cada um deles, a situação exigida para
representar as suas respectivas partes nesse múltiplo relaciona
mento. Esse princípio depende do fato de que a essência relacional de um objeto eterno não é exclusiva a esse objeto. A simples essência relacional de cada objeto eterno determina o esquema completo e uniforme das essências relacionais, desde que cada objeto esteja internamente em todas as suas relações possíveis.
Assim, O domínio das pOSSibilidades proporciona um esquema uniforme de relacionamentos entre conjuntos finitos de objetos
eternos; e todos os objetos eternos estão em todos esses relacio
namentos, confonne o pennite a situação de cada qual.
Sendo assim, as relações (como em possibilidade) não envolvem as essências individuais dos objetos eternos; envolvem
todo objeto eterno como relata, sujeito á cláusula de que esses
relata tenham as essências relacionais exigidas. (É essa cláusula que, automaticamente e pela natureza do caso, limita o "todo"
da expressão "todo objeto eterno".) Esse é o princípio do Isolamento dos Objetos Eternos, no domínio da possibilidade. Os objetos eternos são isolados porque seus relacionamentos como
possibilidades são expressáveis sem referência às suas respecti
vas essências individuais. Em contraste com o domínio da pos-
12041
I A CJ!:NClA E O MUNDO MODERNO I
sibilidade, a inclusão dos objetos eternos em uma circunstân-
cia real significa que, a respeito de alguns dos relacionamentos
possíveis, há uma combinação de suas essências individuais.
Essa combinação realizada é o que um valor patente definido - ou formado - perfaz pelo relacionamento eterno definido
a respeito do qual a combinação real efetua-se. Assim, O relacionamento eterno é a forma - o dõoç -; a circunstância real ,.
patente é o superjecto do valor informado: valor, abstraído de
qualquer superjecto determinado, é a matéria abstrata - a À~ - que é comum a todas as circunstâncias reais; e a atividade
sintética que apreende possibilidade sem valor em informado valor superjacente é a atividade substancial. Essa atividade é omitida em qualquer análise dos fatores estáticos na situação metafísica. Os elementos analisados da situação são os atribu-
tos da atividade substancial. A dificuldade inerente ao conceito de relações internas fini
tas entre objetos eternos está, assim, afastada dos dois princípios metafísicos: (I) de que os relacionamentos de um objeto eterno A, considerados como constitutivos de A, apenas envolvem ou
tros objetos eternos como simples relata sem referências a suas
essências individuais, e (2) de que a divisibilidade do relacionamento geral de A em uma multipliCidade de relacionamentos
finitos de A está por conseguinte na essência do objeto eterno. É
óbvio que o segundo princípio depende do primeiro. Compreender A é compreender o modo de um esquema geral de relaciona
mento. Esse esquema de relacionamento não exige a unicidade
individual dos outros relata para sua compreensão. Esse esquema também se revela como analisável em uma multiplicidade de
relacionamentos limitados que têm a sua própria individualidade e, contudo, ao mesmo tempo, pressupõem o total relaciona
mento na possibilidade. Com respeito á realidade, há primeiro a limitação geral dos relacionamentos, que reduz esse ilimitado esquema geral ao esquema espaciotemporal quadridimensional. Esse esquema espaciotemporal é, por assim dizer, a maior me
dida comum dos esquemas do relacionamento (limitado pela
12051
{
'\
" , " ,
'~ ~, ,'~\ J x t
/ !
.j::,-; ~.,
J .' é/
I ALFREO NORTH WHITEHEAD I
realidade) inerente a todos os objetos eternos. Com isso quer-se dizer que o modo como os relacionamentos selecionados de um
objeto eterno A são realizados em qualquer circunstância real é
sempre explicável expressando a situação de A com respeito a esse esquema espaciotemporal, e expressando-se nesse esquema
o relacionamento da circunstância real com outras circunstân
cias reais. Um relacionamento finito e definido envolvendo os
objetos eternos definidos de um limitado conjunto de tais ob
jetos é, ele mesmo, um objeto eterno; trata-se daqueles objetos eternos como nesse relacionamento. Chamarei de "complexos"
esses objetos eternos. Os objetos eternos que são os relata em um objeto eterno complexo serão chamados de "componentes" desse objeto eterno. Também, se quaisquer desses próprios relata são complexos, os seus componentes serão chamados de "com
ponentes derivados" do objeto complexo original. Também os componentes dos componentes derivados serão chamados de componentes derivados do objeto original. Assim, a complexidade de um objeto eterno significa a sua divisibilidade em um
relacionamento de objetos eternos componentes. Da mesma forma, a análise do esquema geral do relacionamento dos objetos eternos significa a sua apresentação com uma multiplicidade de objetos eternos complexos. Um objeto eterno, como um determinado matiz de verde, que não pode ser dividido em um relacionamento de componentes, será chamado "simples".
Podemos agora explicar como O caráter analitico do do
mínio dos objetos eternos permite uma divisão desse domínio
em graus.
No mais baixo grau dos objetos eternos devem ser colocados
os objetos cujas essências individuais sejam simples. Esse é o grau zero da. complexidade Em seguida, considerem qualquer conjun
to de tais objetos, finitos ou infinitos, quanto ao número de seus membros. Por exemplo, considerem o conjunto de três objetos eternos A, B e C, dos quais nenhum é completo. Seja R (A, B e C) para alguns relacionamentos possíveis definidos de A, B e C Para usar um exemplo simples, A, B e C podem ser três cores definidas
I 206 I
I A CI~NC1A E O MUNDO MODERNO I
com o relacionamento espaciotemporal com cada uma das três
faces de um tetraedro, regular, em qualquer parte e em qualquer tempo. Assim, R (A, B e q é um objeto eterno do mais baixo grau complexo. Analogamente, há objetos eternos de graus sucessivamente mais altos. A respeito de qualquer objeto eterno complexo,
S (DI' ... Do)' os objetos eternos D" ... Do' cujas essências individu-ais são constitutivas das essências individuais de S (DI' ... DJ são ••
chamados os componentes de S (D" ... DJ Obviamente, o grau de complexidade que deve ser atribuído a S (DI' ... Do) deve ser tido como um dos mais altos graus de complexidade encontrados
entre os seus componentes. Há, assim, uma divisão do domínio da possibilidade em ob
jetos eternos simples e em vários graus de objetos eternos complexos. Um objeto eterno complexo é uma situação abstrata. Há um duplo sentido de "abstração" no que se refere à abstração
dos objetos eternos definidos, isto e, abstração da possibilidade. Exemplo: A e R (A, B e C) são ambos abstrações do domínio da possibilidade. Notem que A deve significar A em todos os seus relacionamentos possíveis, e entre eles R (A, B e C). Tambem R
(A, B e C) significa R (A, B e C) em todos os seus relacionamentos. Mas essa significação de R (A, B e C) exclui outros relacionamentos nos quais A pode entrar. Portanto, A como em R (A, B e C) e mais abstrato do que A isoladamente. Assim, à medida que
passamos do grau dos objetos eternos simples para graus cada vez mais altos de complexidade, estamos possibilitando graus de
abstração cada vez mais altos do domínio da possibilidade. Podemos agora conceber os estágios sucessivos de um
progresso definido para algum determínado caminho de abs
tração do domínio da possibilidade, que envolva um progresso (no pensamento) atraves de sucessivos graus de crescente complexidade. Chamarei esse caminho de progresso de "uma hierarquia abstrativa". Qualquer hierarquia abstrativa, finita ou infinita, é baseada em algum grupo definido de objetos eternos simples. Esse grupo será chamado de a "base" da hierarquia. Assim, a base de uma hierarquia abstrativa é um conjunto de
I 207 I
.ri
i ,
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
objetos de complexidade zero. A definição formal de uma hierarquia abstrativa é como segue:
Uma "hierarquia abstrativa baseada em t', em que "g" é
um grupo de objetos eternos simples que satisfaçam as seguintes condições:
(I) os membros de "g" pertencem a ele e são os únicos objetos eternos simples na hierarquia;
(2) os componentes de qualquer objeto eterno complexo
na hierarquia são também membros da hierarquia; e (3) qualquer grupo de objetos eternos pertencente à hie
rarquia, se todos do mesmo grau, ou se diferentes entre si quanto ao grau, estão juntamente entre os componentes ou componentes derivados de pelo menos um objeto eterno que também pertence à hierarquia.
Deve-se perceber que os componentes de um objeto eterno são necessariamente de um grau inferior de complexidade do que o objeto mesmo. Com isso, qualquer membro dessa hierarquia, que é do primeiro grau de complexidade, pode ter como componentes tão-só membros do grupo "g"; e qualquer número do segundo grau pode ter como componentes apenas membros do primeiro grau e membros de "g"; e assim por diante nos mais altos graus.
A terceira condição que deve ser satisfeita por uma hierarquia abstrativa será chamada de condição da conexidade.
Assim, uma hierarquia abstrativa origina-se de sua base: inclui todos os graus sucessivos a partir de sua base, ou continuando
indefinidamente, ou até o seu máximo grau; e está "em conexão" COm o reaparecimento, em um grau mais alto, de qualquer
conjunto de seus membros que pertençam a graus mais baixos,
na função de um conjunto de componentes ou componentes derivados de pelo menos um membro da hierarquia.
Uma hierarquia abstrativa é chamada de "finita" se pára
em um grau definido de complexidade. É chamada de "infinita" se inclui membros pertencentes respectivamente a todos os graus de complexidade.
I 208 I
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
Percebe-se que a base de uma hierarquia abstrativa pode conter qualquer número, finito ou infinito. Além disso, o infinito do número de membros de base nada tem que ver com a
questão de se a hierarquia é finita ou infinita. Uma hierarquia abstrativa finita possuirá, por definição,
um grau de complexidade máxima. É característico desse grau que um membro dele não é um componente de nenhum ou- ,~
tro objeto eterno pertencente a qualquer grau da hierarquia. Também é evidente que esse grau de complexidade máxima
deve possuir só um membro, pois, de outro modo, a condição de conexidade não seria satisfeita. Inversamente, qualquer objeto eterno complexo define uma hierarquia abstrativa finita que deve ser descoberta por um processo de análise. Esse objeto eterno complexo do qual partimos será chamado "vértice" da hierarquia abstrativa: é o único membro do grau de complexidade máxima. No primeiro estágio da análise, obtemos o componente do vértice. Esses componentes podem ser de complexidade variegada; mas deve estar entre eles pelo menos um membro cuja complexidade é de um grau mais baixo que o do vértice; um grau que seja mais baixo que um objeto eterno
dado será chamado de o "grau aproximado" desse objeto. Tomamos, pois, os componentes do vértice que pertencem ao seu grau aproximado; e, como segundo estágio, nós os dividimos em seus componentes. Acrescentem a eles os componentes do
vértice que também pertencem a esse grau de "segunda aproximação" partindo do vértice; e, no terceiro estágio, analisem
como anteriormente. Assim encontramos objetos pertencentes
ao grau de terceira aproximação partindo do vértice; e acrescentamos a eles os componentes pertencentes a esse grau, que
deixamos partindo dos estágios precedentes da análise. Procedemos desse modo mediante os estágios sucessivos, até alcançarmos o grau dos objetos mais simples. Esse grau forma a base
da hierarquia. É de notar que, lidando com hierarquia, estamos inteira
mente no domínio da possibilidade. Sendo assim, os objetos
I 209 I
!'ll'l
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
eternos são privados de combinação real: permanecem no seu "isolamento".
O instrumento lógico que Aristóteles usava para a divisão do fato real em elementos mais abstratos era a classificação em espécie e gênero. Esse instrumento tem a sua aplicação extraordinariamente importante para a ciência nos seus estágios preparatórios. Mas o seu uso na descrição metafísica distorce a
verdadeira visào da situaçào metafísica. O uso do termo "uni
versal" está em relação íntima com essa análise aristotélica; a significação do termo foi ultimamente ampliada, mas ainda sugere essa análise classificatória. Por essa razão o evitei.
Em qualquer circunstãncia real ex haverá um grupo "g" de objetos eternos simples que estão incluídos nesse grupo do modo mais concreto. Essa inclusão total em qualquer circunstância, de modo a conceder a mais completa fusão da essência individual patente, é evidentemente da sua própria espécie e não pode ser definida em termos de qualquer outra coisa. Mas tem uma característica peculiar necessariamente ligada a ela. Essa característica é que há uma hierarquia abstrativa infinita
baseada em "g", de modo que todos os seus membros estão igualmente envolvidos nessa completa inclusão em ex.
A existência de tal hierarquia abstrativa infinita é o que se pretende com a afirmação de que é impossivel completar a descrição de uma circunstância real por meio de conceitos. Chamarei a essa hierarquia abstrativa infinita que está associa
da com ex de "a hierarquia associada de ex". É também o que se
pretende com a noção de conectividade de uma circunstância real. Essa conectividade de uma circunstância é necessária para
a sua unidade sintética e para a sua inteligibilidade. Há uma hierarquia correlacionada de conceito aplicável à circunstância, incluindo conceitos de todos os graus de complexidade. Também na circunstância real, as essências individuais dos objetos eternos envolvidos nesses conceitos complexos realizam uma síntese estética, produtiva da circunstância com uma experiência pela experiência. Essa hierarquia associativa é o volume,
I 210 I
I A CltNCIA E O MUNDO MODERNO I
o modelo, a forma da circunstância, conforme a circunstância seja constitutiva do que entra em sua realização total.
Certa confusão de pensamento foi causada pelo fato de que a abstração da possibilidade corre em direção oposta a uma abstração da realidade, quanto ao grau de abstração. Evidentemente, ao descrever uma circunstância real /x, estamos mais perto do fato concreto quando descrevemos ex, predicando algum <
membro da sua hierarquia associada, que é de um alto grau
de complexidade. Dissemos, pois, mais .sobre ex. Assim, como um alto grau de complexidade, alcançamos por aproximação a completa concreção de ex, e com um grau baixo perdemos nessa
aproximação. Com isso, os objetos eternos simples representam o extremo da abstração, partindo de uma circunstãncia real,
ao passo que objetos eternos simples representam o mínimo de abstração, partindo do dominio da possibilidade. Penso que, quando se falar de um alto grau de abstração, se achará que a abstração do domínio da possibilidade é o que usualmente se expressa - em outras palavras, uma elaborada construção
lógica. Até aqui considerarei apenas uma circunstância real do
lado de sua completa concreção. É esse lado da circunstância em virtude do qual é um acontecimento na natureza. Mas um acontecimento natural, nesse sentido do termo, é apenas uma
abstração de uma circunstância completa. Uma circunstância completa inclui aquela que, na experiência cognitiva, toma
a forma de memória, antecipação, imaginação e pensamento. Esses elementos em uma circunstância de experiência são
também modos de inclusão de objetos eternos complexos na preensão sintética, como elementos no valor patente. Diferem
da concreção de inclusão completa. Em certo sentido, essa diferença é inexplicável, pois cada modo de inclusão é de sua própria espécie, não para ser explicação em termos de outra coisa. Mas há uma diferença comum que discrimina esses modos de inclusão da completa inclusão concreta que foi discutida. Essa "diferença" vem a ser a "ab-ruptude". Por "ab-ruptude" entendo
I 211 I
, f:
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
que aquilo que é recordado, antecipado, imaginado ou pensado é exaurido por um conceito complexo finito. Em cada caso, há um objeto eterno finito apreendido na circunstância como o vértice de uma hierarquia finita. Essa ruptura de uma ilimita
bilidade real é o que, em qualquer circunstância, separa o que é chamado de mental daquilo que pertence ao acontecimento físico a que é referido o funcionamento mental.
Em geral, parece ser alguma perda de vivacidade na apre
ensão dos objetos eternos em questão: por exemplo, Hume fala de "modelos fracos". Mas essa fraqueza parece ser um terreno
muito inseguro para diferenciação. Freqüentemente, as coisas realizadas em pensamento são mais vívidas do que as mesmas coisas em despreocupada experiência física. Mas as coisas apreendidas como mentais são sempre sujeitas à condição de que chegamos a uma parada quando tentamos explorar graus de complexidade cada vez mais elevados nos seus relacionamentos realizados. Verificamos sempre que pensamos tão-somente nisso - seja o que for - e em nada mais. Há uma limitação
que separa, de um lado, o conceito finitó dos graus mais altos e, do outro, a complexidade ilimitável.
Assim, uma circunstância real é uma preensão de uma hierarquia infinita (sua hierarquia associada) junto a várias hierarquias finitas. A síntese na circunstância da hierarquia infinita
está de acordo com o seu modo especifico de realização, e o das hierarquias finitas está de acordo com outros modos específicos
de realização. Há um princípio metafisico essencial à coerência racional dessa exposição do caráter geral de uma circunstância de experiência. Chamo a esse princípio de "Translucidez da
Realização". Com isso quero dizer que qualquer objeto eterno
é tão-somente ele mesmo, seja qual for o modo de realização em que esteja envolvido. Não pode haver desvio da essência individual sem como conseqüência produzir um objeto eterno diferente. Na essência de cada objeto eterno, está uma indeterminabilidade que expressa sua passividade indiferente diante
de qualquer modo de inclusão em qualquer circunstáncia real.
I 212 I
1
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
Assim, na experiência cognitiva, pode haver a cognição do mesmo objeto eterno como tendo entrada na mesma circunstância com implicação em mais de um grau de realização. Assim, a translucidez da realização e a possível multiplicidade dos modos de inclusão na mesma circunstância formam juntas o fun
damento da teoria da corr~l'ondência da verdade. Nessa apresentação de uma circunstância real em termos ,~
de sua conexão, com o domínio dos objetos eternos, voltamos à marcha de pensamento do nosso capítulo 2, em que foi discu
tida a natureza da matemática. A idéia, atribuída a Pitágoras, foi ampliada e apresentada como o primeiro capítulo da metafísi
ca. O capítulo seguinte trata do misterioso fato de que há um curso real dos acontecimentos que é em si um fato limitado, no sentido de que, em metafísica, poderia ter sido diferente. Mas outras investigações metafísicas foram omitidas; por exemplo, a epistemologia e a classificação de alguns elementos da insondável riqueza do campo da possibilidade. Esse último tema toma a metafísica visível nos pontos especiais de várias ciências.
I 213 I
,I ,
CAPITULO XI
DEUS
Aristóteles achou necessário completar a sua metafísica com a introdução de um Primeiro Motor: Deus. Por duas razões isso é um fato importante na história da metafísica. Em primeiro lugar, se conferimos a alguém o título de o maior metafísico, tendo em vista a genialidade de observação profunda,
a bagagem geral de conhecimento e o incentivo a seus descendentes metafísicos, devemos escolher Aristóteles. Em segundo lugar, na sua consideração dessa questão metafísica, ele se mos
trou completamente imparcial; e é o último metafísico euro
peu de primeira importância para quem isso pode ser reivin
dicado. Depois de Aristóteles, os interesses éticos e religiosos começaram a influir nas conclusões metafísicas. Os judeus se
dispersaram, primeiro voluntariamente e depois forçadamente,
e a escola judaica de Alexandria apareceu. Depois interferiu o cristianismo, seguido de perto pelo islamismo. Os deuses gre
gos que cercavam Aristóteles eram entidades metafísicas su
bordinadas, bem dentro da natureza. Com isso, acerca do seu Primeiro Motor, não teria motivo, senão seguir a sua marcha
metafísica do pensamento, aonde quer que ela o levasse. Não o conduziu muito longe para produção de um Deus aproveitável
para fins religiosos. Pode-se duvidar se qualquer metafísica propriamente geral pode alguma vez, sem a ilícita introdução de outras considerações, chegar muito mais longe que Aristóteles. A sua conclusão, porém, representa um primeiro passo sem o qual nenhuma prova em mais estrita base de experiência pode
I 215 I
,~.,
I ' •• 11
i ~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
ser de maior proveito para enunciar o conceito. Isso porque nada, dentro de um limitado tipo de experiência, pode fornecer-nos informações para adaptar nossas idéias de qualquer entidade na base de todas as coisas atuais, a menos que o caráter
geral das coisas exija que exista tal entidade. A expressão Primeiro Motor adverte-nos de que o pen
samento de Aristóteles estava enredado numa física e numa
cosmologia incorretas. Na física de Aristóteles, causas especiais
eram exigidas para sustentar o movimento das coisas materiais. Isso poderia ser facilmente conformado em seu sistema, desde
que o movimento cósmico geral pudesse ser sustentado, porque, então, em relação ao sistema geral de trabalho, cada coisa podia ser provida com o seu verdadeiro fim. Portanto, há necessidade de um Primeiro Motor que sustente os movimentos das esferas dos quais depende o ajustamento das coisas. Hoje repudiamos a física e a cosmologia de Aristóteles, uma vez que a forma exata do argumento acima está manifestamente errada. Mas, se a nossa metafísica geral é em algum ponto semelhante à
delineada no capítulo anterior, surge um análogo problema metafísico, que só pode ser resolvido de um modo análogo. Em lugar do Deus aristotélico como Primeiro Motor, queremos Deus como Princípio de Concreção. Essa posição pode ser substanciada apenas pela discussão das implicações gerais do curso das
circunstâncias reais, ou seja, do processo da realização. Concebemos a realidade como em relação essencial com
uma possibilidade insondável. Os objetos eternos informam circunstâncias reais com modelos hierárquicos, incluidos e ex
cluídos em todas as variedades de discriminação. Outra visão da
mesma verdade é que toda circunstância real é uma limitação imposta à possibilidade, e que, em virtude dessa limitação, o valor determinado desse conjunto formado das coisas aparece. Desse modo expressamos Como uma só circunstância deve ser vista em termos de possibilidade, e como a possibilidade deve ser vista em termos de uma só circunstância real. Mas não há circunstâncias únicas, no sentido de circunstâncias isoladas. Rea-
I 216 I
I A ClENCIA E o MUNDO MODERNO I
lidade é por toda parte combinação - combinação de objetos eternos isolados de outra maneira, e combinação de todas as circunstâncias reais. O capítulo anterior centralizou seu interesse no abstrato; o presente capítulo lida com o concreto, isto
é, aquilo que cresceu junto. Considerem uma circunstância a: - temos de enumerar
como outras circunstâncias reais estão em a, no sentido em qutf
seus relacionamentos com a são constitutivos da essência de a.
O que a é em si é que é uma unidade de experiência realizada;
de acordo com isso perguntamos de que modo outras circunstâncias estão na experiência que a é? Também para o presente
excluímos a experiência cognitiva. A resposta completa a essa pergunta é que os relacionamentos entre circunstâncias reais são como insondáveis em sua variedade de tipo como são aquelas entre os objetos eternos no domínio da abstração. Existem, porém, tipos fundamentais de tais relacionamentos em cujos termos toda a complexa variedade pode encontrar a sua des
crição. Uma preliminar para compreender esse tipo de unidade
(de uma circunstância na essência da outra) é notar que estão envolvidas nos modos de realização das hierarquias abstrativas discutidas no capítulo anterior. Os relacionamentos espaciotemporais, envolvidos nessas hierarquias como realizadas em a, têm
todos definição em termos de " e das circunstâncias entradas em a. Assim, as circunstâncias entrantes emprestam seus aspectos à
hierarquia e, portanto, convertem as modalidades espaciotemporais em determinações categóricas; e as hierarquias empres
tam as suas formas às circunstâncias e, portanto, limitam as cir
cunstâncias entrantes a serem entrantes apenas sob essas formas. Assim, do mesmo modo (como se viu no capítulo anterior) que cada circunstância é uma síntese de todos os objetos eternos sob a limitação de gradações de realidade, assim cada circunstância é uma síntese de todas as circunstâncias sob a limitação de gradações de tipos de entrada. Cada circunstância sintetiza a totalidade do conteúdo sob a sua própria limitação do modo.
I 217 I
'~ ";1.~',f-':,?
'">:''''' ~D "_
.1.., ,,"'~-' ~",""""
li! ,
~
I ALFRED NORTH WH!TEHEAD I
A respeito desse tipo de relacionamento interno entre a e outras circunstâncias, essas outras circunstâncias (como constitutivas de ,,) podem ser classificadas de muitos modos alternativos. Todos esses se referem a diferentes definições do passado, do presente e do futuro. Tomou-se comum em filosofia afirmar que essas várias definições devem necessariamente ser equivalentes.
A opinião atual em ciência física mostra de modo conclusivo que
essa afirmação é carente de justificação metafísica, ainda que tal
discriminação possa ser considerada desnecessária para a ciência física. Essa questão já foi tratada no capítulo sobre a relatividade.
Contudo, a teoria física da relatividade atinge somente de leve as várias teorias que são metafisicamente sustentáveis. É importante para minha argumentação insistir na liberdade irrestrita dentro da qual o real é uma determinação categórica única.
Toda circunstância real apresenta-se como um processo; é um devir. Ao revelar-se, coloca-se como uma entre inúmeras outras circunstâncias, sem as quais ela não poderia ser o que é.
Ela também se define como uma realização indiVidual particular que enfoca em seu modo limitado um domínio irrestrito de
objetos eternos. Qualquer circunstância ex resulta de outras circunstâncias
que conjuntamente formam o passado dela. Manifesta para si mesma outras circunstâncias que conjuntamente formam o presente dela. É com relação a essa sua hierarquia associada, como
manifestada nesse presente imediato, que uma circunstância encontra sua própria originalidade. É essa revelação que consti
tui sua contribuição própria à produção de realidade. Ela pode estar condicionada e até mesmo completamente determinada
pelo passado daquilo que ela emite. Mas sua manifestação no
presente sob essas condições é aquilo que diretamente emerge de sua atividade preensiva. A circunstância a também mantém dentro de si uma indeterminação sob a forma de um futuro, dotado de determinação parcial por causa de sua inclusão em " e também por ter determinada ligação espaciotemporal com" e com circunstâncias reais do passado e do presente de a.
I 218 I
I A CI~NC!A E O MUNDO MODERNO I
Esse futuro é uma síntese em a de objetos eternos como não-ser e como requerentes da passagem de a para outras individualizações (com determinadas relações espaciotemporais
para a) em que não-ser toma-se ser. Há também em ex o que, no capítulo anterior, denominei
a realização "abrupta" de objetos eternos finitos. Tal realização abrupta exige quer uma referência dos obj etos básicos da hie-"
rarquia finita para circunstâncias determinadas diferentes de "
(como suas situações, no passado, presente e futuro); quer uma realização de objetos eternos em determinadas conexões, mas sob o aspecto de isenção da inclusão no esquema espaciotemporal de ligação entre circunstâncias reais. Essa sintese abrupta de
objetos eternos em cada circunstância é a inclusão na realidade do caráter analítico do domínio de eternidade. Essa inclusão
possui aquelas gradações limitadas de realidade que caracterizam toda circunstância por causa de sua limitação essencial. É essa extensão realizada da ligação eterna além da ligação mútua das circunstâncias reais que apreende em toda circunstância o alcance total da ligação eterna. Chamo essa realização abrupta de "configuração graduada" que toda circunstância preende em sua síntese. Essa configuração graduada é o modo como o real inclui o que (em um sentido) é não-ser como um fator positivo
em sua própria realização. É a fonte de erro, de verdade, de arte, de ética e de religião. Por ele, o fato é confrontado com as
alternativas. Esse conceito geral, de um acontecimento como um pro
cesso cujo resultado é uma unidade de experiência, aponta para a análise de um evento na (I) atividade substancial, (2)
nas potencialidades condicionadas que existem para a síntese
e (3) no resultado alcançado da síntese. A unidade de todas as circunstâncias reais impede a análise de atividades substanciais em entidades independentes. Cada atividade individual é tão-somente o modo como a atividade geral é individualizada pelas condições impostas. A visualização que faz parte da síntese é também uma característica que condiciona a atividade
I 219 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
de síntese. A atividade geral não é uma entidade no sentido em
que circunstâncias ou objetos eternos o são. Ela é uma característica metafísica geral que subjaz a todas as circunstâncias, de um modo particular para cada circunstância. Não há com o que compará-la; para Spinoza, é uma substância infinita. Seus atributos são seu caráter de individualização em uma multiplicidade de modos, e o domínio dos objetos etemos que são di
ferentemente sintetizados nesses modos. Assim, a possibilidade
eterna e a diferenciação modal na multipliCidade individual são os atributos da substância única. De fato, cada elemento geral
da situação metafísica é um atributo da atividade substancial. Contudo, outro elemento na situação metafísica é revelado
pela consideração de que o atributo geral de modalidade é limitado. Esse elemento deve situar-se como atributo da atividade substancial. Em sua natureza, cada modo é limitado, de maneira a não ser outros modos. Mas, além dessas limitações de particulares, a individualização modal geral é limitada de duas maneiras: em primeiro lugar, é um curso real de acontecimentos, que
poderia ser de outra maneira, no que concerne à possibilidade eterna, mas é este curso. Essa limitação assume três formas: (l) as relações lógicas especiais a que todos os acontecimentos devem conformar-se, (2) a seleção de relacionamentos com os quais os acontecimentos se conformam e (3) a particularidade
que afeta o curso mesmo nos relacionamentos gerais de lógica e causalidade. Assim, essa primeira limitação é uma limitação de
seleção anterior. No concernente à situação metafísica, podia
ter havido um pluralismo moda! indiscriminado à parte da lógica e de outra limitação. Mas não podia então ter havido esses
modos, pois cada modo representa uma síntese de realidades, limitadas a conformar-se a um padrão. Aqui chegamos à segunda
maneira de limitação. A restrição e o preço do valor. Não pode haver valor sem padrões anteriores de valor, para discriminar a aceitação ou a rejeição do que está perante o modo configurador de atividade. Assim, há uma limitação anterior entre os valores, que introduzem contrários, graus e oposições.
I 220 I I I
I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I
De acordo com esse argumento, o fato de que há um processo de circunstâncias reais e o fato de que as circunstâncias são a manifestação de valores que exigem tal limitação, ambos exigem que o curso dos acontecimentos deva ser desenvolvido no meio de uma limitação anterior constituída de condições,
particularização e padrões de valor. Assim, como elemento posterior na situação metafísica, ~
foi exigido um princípio de limitação. Algum como determi
nado é necessário, e alguma particularização no o que do fato é necessária. A única alternativa para essa aceitação é negar a realidade das circunstâncias reais. Sua aparente limitação ra
cional deve ser tomada como prova de ilusão e devemos procurar a realidade atrás da cena. Se rejeitamos essa alternativa atrás da cena, devemos proporcionar uma base à limitação que está entre os atributos da atividade substancial. Esse atributo proporciona a limitação para a qual nenhuma razão pode ser dada, porque todas as razões decorrem dele. Deus é a última limitação, e a sua existência é a irracionalidade última. É que nenhuma razão pode ser dada só para a limitação que está na natureza dele impor. Deus não é concreto, mas é base da reali
dade concreta. Nenhuma razão pode ser dada para a natureza de Deus, porque essa natureza é a base da racionalidade.
Nesse argumento, o ponto a ser notado é que o metafisicamente indeterminado tem de ser, não obstante, categorica
mente determinado. Chegamos ao limite da racionalidade, pois
há uma limitação categórica que não resulta de nenhuma razão metafísica. Há uma necessidade metafísica para um princípio
de indeterminação, mas não pode haver razão metafísica para o
que é determinado. Se houvesse tal razão, não haveria nenhuma necessidade de outro principio, porque a metafísica já teria proporcionado a determinação. O principio geral do empirismo depende da doutrina de que há um princípio de concreção g"S'
não pode seLjescQ~erto_pel~ _~azão ab~. Tudo quanto se pode saber a respeito de Deus deve ser procurado na região das experiêrwias dete~i~.;:d~~-~·portanto fica em base e~~i·ri~-~.
--_.---" . - .. - - '--'--- -- ----"._~._-~-------
1221 I
""-"._--" ._'~;;--
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Com respeito à interpretação dessas experiências, a humanida
de tem diferido profundamente. Foi chamado respectivamente: lahweh, Alá, Brahma, Pai do Céu, Ordem do Céu, Causa Primeira, Ser Supremo, Acaso. Cada nome corresponde a um sistema de pensamento derivado das experiências daqueles que o empregaram.
Entre oS filósofos medievais e modernos, ansiosos por es
tabelecer a significação religiosa de Deus, prevaleceu o hâbito
infeliz de lhe fazer elogios metafisicos. Foi concebido como fundamento da situação metafísica em sua última atividade. Se se aderir a essa concepção, não pode haver nenhuma alternativa
senão nele discernir a origem de todo mal, tanto quanto de todo bem. Ele é, então, o supremo autor da peça, e a ele, portanto, devem ser atribuídos tanto os malogros como os sucessos dela. Se for concebido como a base suprema para a limitação, está em sua verdadeira natureza separar o Bem do Mal e estabelecer a Razão "dentro do supremo domínio dela".
I 222 I
I CAPiTULO XII I
RELIGIÃO E CIÊNCIA
A dificuldade em abordar a questáo das relações entre religião e ciência é que a sua elucidação exige que tenhamos em mente alguma idéia clara do que queremos dizer com os termos "religião" ou "ciência". Além disso, quero falar no modo
mais geral que for possível e manter em segundo plano toda e qualquer comparação de crenças particulares, científicas o~ religiosas. Temos de compreender o tipo de conexão que existe entre as duas esferas e então tirar algumas conclusões específicas a respeito da situação existente que no presente o mundo enfrenta.
O conflito entre religião e ciência é o que naturalmente ocorre à nossa mente quando pensamos nesse assunto. Tem-se
a impressão de que, durante a última metade de século, os resultados da ciência e as crenças da religião chegaram a uma posição de patente desacordo, da qual não pode haver escapatória,
e.xceto pelo abandono ou do claro ensinamento da ciência ou
do claro ensinamento da religião. Nessa conclusão insistiram os debatedores representantes de cada um dos lados. Nem todos
os debatedores, evidentemente, mas os de inteligência mais penetrante a quem toda controvérsia desperta para a abertura.
A inquietação das mentes sensiveis, o zelo da verdade e o senso da importância dos resultados devem guiar a nossa mais
sincera simpatia. Quando consideramos o que tanto a religião como a ciência constituem para a humanidade, não há nenhum exagero em dizer que o caminho futuro da história depende do
I 223 I
,~
11
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
que esta geração decidir quanto às relações entre uma e outra.
Temos aqui as duas mais poderosas forças (pondo de parte o simples impulso dos vários sentidos) que influenciam o homem e parecem agir uma contra a outra - a força das nossas intui
ções religiosas e a força do nosso impulso para a observação acurada e para a dedução lógica.
Um grande estadista inglês aconselhou um dia os seus
compatriotas a usar mapas de grandes escalas, cOmO modo de
precaução contra alarmes, pânicos e mal-entendidos gerais com
relação às relações legítimas entre nações. Do mesmo modo, lidando com o entrechoque dos elementos permanentes da natureza humana, é bom colocar a nossa exposição em mapa de grande escala e desligarmo-nos da absorção imediata nos presentes conflitos. Quando o fazemos, descobrimos imediatamente dois grandes fatos. Em primeiro lugar, sempre existiu um conflito entre religião e ciência; e, em segundo lugar, tanto religião como ciência sempre estiveram em estado de contínuo desenvolvimento. Nos primeiros tempos do cristianismo, havia uma crença geral entre os cristãos de que o mundo estava chegando ao fim exatamente no período da existência das pessoas
que então viviam. Só podemos tirar inferências indiretas sobre até onde essa crença era autorizada; mas o certo é que era amplamente aceita e que formava uma parte considerável da doutrina religiosa popular. Com o tempo, a crença mostrou-se
equivocada e a doutrina cristã ajustou-se à mudança. Também na mesma Igreja primitiva, teólogos muito fiducialmente dedu
ziam da Bíblia opiniões concernentes à natureza do universo
físico. Em 535 d.C., um monge chamado Cosmas' escreveu um livro que intitulou Topografia cristã. Era um homem viajado,
que havia visitado a Índia e a Etiópia; e finalmente viveu em um mosteiro de Alexandria, que era então um grande centro de cultura. Nesse livro, baseando-se no sentido direto dos textos
2 Cf., de Lecky, The Riseand InfTuence ofRationa/ism in Europe, capitulo li!.
12241
I
I A Cl~NCIA E O MUNDO MODERNO I
bíblicos, encarado por ele de modo literal, negava a existência dos antipodas e afirmava que o mundo era um paralelogramo plano cujo comprimento é o dobro de sua largura.
No século XVII, a doutrina do movimento da Terra foi condenada por um tribunal católico. Há cem anos, a extensão do tempo exigida pela ciência geológica angustiava as pessoas religiosas, protestantes e católicas. E hoje a doutrina da evolu-"
ção é igualmente uma pedra no caminho. São apenas alguns
exemplos que ilustram um fato geral. Mas todas as nossas idéias estarão em perspectiva equivo
cada se pensarmos que essa repetida perplexidade se restringiu
a contradições entre religião e ciência; e que, nessas controvérsias, a religião sempre estivesse errada, e a ciência sempre certa. Os verdadeiros fatos do caso são muito mais complexos e recusam-se a ser reduzidos a esses simples termos.
A própria teologia apresenta exatamente o mesmo ca
ráter de desenvolvimento gradual, resultante de um aspecto de conflito entre as suas próprias idéias. Esse fato é um lugarcomum para os teólogos, mas é freqüentemente obscurecido no ímpeto da controvérsia. Não pretendo atribuir proporções exageradas a meu exemplo; assim, limitar-me-ei aos escritores católicos. No século XVII, um erudito jesuíta, padre Petavius,
mostrou que os teólogos dos três primeiros séculos do cristianismo faziam uso de expressões e afirmativas que do século V em diante passariam a ser condenadas como heréticas. Também
o Cardeal Newman consagrou um tratado à discussão do de
senvolvimento da doutrina. Escreveu-o antes de se tomar um grande prelado católico; mas durante a sua vida o livro jamais
foi recolhido e continuou a ser reeditado. A ciência é ainda mais inconstante que a teologia. Nenhum
homem de ciência podia concordar sem restrição com aquilo em que Galileu acreditava, em que Newton acreditava ou nem mesmo todas as suas próprias crenças cientificas de dez anos atrás.
Em ambas as regiões do pensamento, acréscimos, distinções e modificações foram introduzidos. De modo que agora,
1 225 1 J ..... .
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
mesmo quando a mesma asserção se faz como se fez há mil ou mil e quinhentos anos, está sujeita a limitações ou ampliações de sentido não contempladas nos primeiros tempos. Os lógicos nos dizem que uma proposição pode ser verdadeira ou falsa e que não há nenhum meio termo. Mas na prática sabemos que
uma proposição expressa uma verdade importante, mas que é sujeita a limitações e restrições que permanecem irreveladas
presentemente. É uma característica geral do nosso conheci
mento o fato de que estamos insistentemente atentos a verdades importantes; e, ainda, que os únicos enunciados dessas
verdades que estamos em condições de fazer pressupõem um prisma geral de concepções que podem vir a ser modificadas. Fornecerei a vocês dois exemplos, ambos da ciência: Galileu afirmou que a Terra se move e que o Sol é fixo; a Inquisição disse que a Terra é fixa e o Sol se move; e os astrônomos ne'Wtonianos, adotando uma teoria absoluta do espaço, disseram que tanto o Sol COmo a Terra se movem. Mas agora dizemos que qualquer dessas três afirmações é igualmente verdadeira, contanto que tenhamos estabelecido o nosso sentido de "repouso" e de "movimento" do modo exigido pela afirmação adotada. No
tempo da controvérsia de Galileu com a Inquisição, o modo de Galileu afirmar os fatos era, incontestavelmente, o processo frutuoso em proveito da investigação científica. Mas, em si, não
era mais verdadeiro que a formulação da Inquisição. Mas nesse tempo os conceitos modernos de movimento relativo não estavam no espírito de ninguém; de modo que as afirmativas eram
feitas na ignorância das restrições exigidas para a sua mais per
feita verdade. Contudo, essa questão dos movimentos da Terra e do Sol expressa um fato real no universo; e todos os lados
adotavam importantes verdades a ela concernentes. Mas, com relação aos conhecimentos daqueles tempos, as verdades passaram a ser inconsistentes.
Novamente darei a vocês outro exemplo tomado da ciência física moderna. Desde os tempos de Newton e Huyghens no século XVII, havia duas 'teorias' sobre a natureza física da
1 2261
I A CIÊNCIA E o MUNDO MODERNO I
luz. A teoria de Newton era que um raio de luz consistia em uma corrente de partículas ou corpúsculos muito pequenos e que temos a sensação da luz quando esses corpúsculos atingem nOssa retina. A teoria de Huyghens era que a luz consiste em ondas muito pequenas e oscilantes e um éter que tudo abrange e que essas ondas atravessam um raio de luz. As duas teorias são contraditórias. No século XVIII, a teoria de Newton era aceita,
e no XIX era-o a de Huyghens. Hoje, há um grande grupo de fenômenos que podem ser explicados apenas com a teoria on
dulatória, e um grupo considerável que só pode ser explicado com a teoria corpuscular. Os cientistas têm de deixar as teorias nesse ponto e aguardar o futuro, na esperança de alcançar alguma visão mais ampla que reconcilie ambas.
Devemos aplicar os mesmos princípios às questões em que há uma variação entre ciência e religião. Em nada acreditaríamos na história do pensamento que não se afigurasse a nós como comprovado por sólidas razões baseadas na investigação crítica nossa ou de autoridades competentes. Mas, admitindo que se tenha tomado essa precaução, um choque entre os dois sobre pontos do detalhe onde eles se situam não deve conduzir-nos apressadamente a abandonar doutrinas das quais temos provas sólidas. Pode ser que estejamos mais interessados em um
grupo de doutrinas do que em outro. Mas, se tivermos qualquer senso de perspectiva e da história do pensamento, esperaremos e nos guardaremos de mútuos anátemas.
Devemos esperar, mas não esperar passivamente ou em
desespero. O entrechoque é um sinal de que há mais amplas verdades e mais delicadas perspectivas nas quais se achará a
reconciliação de uma religião mais profunda e com uma ciência mais sutil.
De certo modo, portanto, o conflito entre ciência e religião é matéria de pouca importância que tem sido excessivamente enfatizada. Uma simples contradição lógica não pode por si mesma indicar mais do que a necessidade de alguns reajustamentos, possivelmente também de caráter mínimo de
1 227 1
" \/'.?,
,:
~.,~" '"., .. ,
I ALFRED NORTH WH!TEHEAD I
ambos os lados. Devem ser lembrados os mais amplos aspectos
diferentes de acontecimentos com os quais temos de lidar em
ciência e em religião respectivamente. A ciência diz respeito às
condições gerais que se observam para regular os fenômenos
físicos, ao passo que a religião está inteiramente envolvida na
contemplação dos valores morais e estéticos. De um lado há a
lei da gravitação; do outro, a contemplação da beleza da santi
dade. O que de um lado se vê, do outro se perde, e vice-versa. Considerem, por exemplo, a vida de John Wesley e a de
são Francisco de Assis. Para as ciências físicas, temos nessas vidas
exemplos simplesmente comuns da operação dos princípios da química fisiológica e da dinâmica das reações nervosas; para
a religião, temos vídas da mais alta significação na história do
mundo. Pode surpreender-nos que, na falta de uma expressão completa e perfeita dos princípios da ciência e dos princípios da religião que se aplicam a essas especificações, a exposição
dessas vidas de seus prismas divergentes deva envolver discrepâncias? Seria um milagre se isso não se desse.
Seria, entretanto, desviar-se do nosso ponto pensar que
não necessitamos de nos incomodar com o conflito entre ciên
cia e religião. Em uma era intelectual, não pode haver interesse
ativo que ponha de lado a nossa esperança de uma visão da harmonia da verdade. Concordar com a discrepância é destruir a sinceridade e a pureza moral. Pertence ao auto-respeito do
intelecto seguir todos os emaranhados do pensamento até o esclarecímento final. Se detiverem esse impulso, não conseguirão
religião nem ciência de uma reflexão plenamente consciente.
O que importa é o seguinte: com que espírito encararemos o
resultado' Chegaremos, aqui, a algo absolutamente vital.
Um entrechoque de doutrinas não é um desastre, é uma
oportunidade. Explicar-me-ei com alguns exemplos tomados da ciência. O peso de um atomo de hidrogênio era bem conhecido. Também era uma doutrina cientifica estabelecida que o peso médio de tais átomos em uma massa considerável seria
sempre o mesmo. Dois experimentadores, o recentemente fa-
1228 I
1 A CII~NC!A E o MUNDO MODERNO 1
lecído (1919) Lord Rayleigh e o também recentemente falecido (1916) SirWilliam Ramsay, verificaram que, se obtivessem nitrogênio por dois métodos diferentes, cada um igualmente
adaptado a esse propósito, sempre observariam uma leve diferença persistente entre os pesos médios do átomo nos dois
casos. Agora pergunto eu, seria racional da parte desses homens desesperar por causa desse conflito entre a teoria química e a ,:
observação cientifica? Suponhamos que, por alguma razão, a doutrina química fosse tida em alta conta em toda uma região como fundamento de sua ordem social: seria prudente, seria
licito, seria moral proibir o descobrimento do fato de que as experiências produzem resultados discordantes? Ou, por ou-tra parte, deviam Sir William Ramsay e Lord Rayleigh ter proclamado que a teoria química era então uma ilusão evidente?
Vemos imediatamente que qualquer um desses modos seria um método de encarar o resultado com espírito inteiramente
errado. O que Rayleigh e Ramsay fizeram foi o seguinte: perceberam imediatamente que tinham enveredado por uma linha de investigação que descobriria alguma sutileza da teoria química que até então tinha iludido a observação. A discrepância
não foi um desastre: foi uma oportunidade para incrementar o progresso do conhecimento químico. Todos sabem o desfecho do caso: finalmente descobriu-se o argônio, um novo elemento
químico, que andava despercebido e encoberto, misturado com
o nitrogênio. Mas o caso é uma continuação que forma o meu
segundo exemplo. Essa descoberta chamou a atenção para a
importância de observar cuidadosamente diferenças diminutas nas substâncias químicas obtidas por diferentes métodos. Pos
teriores investigações com mais meticuloso cuidado foram em
preendidas. Finalmente, outro físico, F. W. Aston, trabalhando no Laboratório Cavendish de Cambridge, na Inglaterra, descobriu que ainda o mesmo elemento podia assumir duas ou mais
formas distintas, chamadas isótopos, e que a lei da constância do peso médio do átomo corresponde a cada uma dessas formas,
mas enquanto estiver entre os diferentes isótopos, difere leve-
I 229 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
mente. A pesquisa foi um grande passo no alcance da teoria química, ultrapassando muito em import2ncia a descoberta do argônio da qual se originou. A moral da história está ao alcance de todos, e eu lhes deixo a sua aplicação ao caso da religião e
da ciência. Na lógica formal, contradição é o sinal de derrota, mas na
evolução do conhecimento real marca o primeiro passo do pro
gresso em direção a uma vitória. Essa é uma grande razão para a máxima tolerância da variedade de opiniões. De uma vez por
todas, esse dever de tolerância foi resumido nas palavras: "Deixai que ambos cresçam juntos até a colheita".' O malogro dos cristãos em proceder conforme esse preceito, da mais alta autoridade, é uma das curiosidades da história da religião. Mas ainda não esgotamos a discussão do temperamento moral exigida pela busca da verdade. Há caminhos curtos que conduzem simplesmente a sucesso ilusório. É bem fácil descobrir uma teoria, logicamente harmoniosa e com importantes aplicações no âm
bito do fato, desde que se contente em deixar de parte metade das provas. Todas as épocas produzem pessoas de lúcida inteligência e com a mais louvável compreensão da importância de alguma esfera da experiência humana, que elaborou ou herdou um esquema de pensamento que se adapta exatamente a essas experiências que provocaram o seu interesse. Essas pessoas estão resolutamente em condições de ignorar ou de menosprezar
todas as provas que confundem esses esquemas com exemplos
contraditórios. Aquilo com que não podem concordar é para elas tolice. Uma inamovível resolução de considerar a prova
completa é o único método de preservação contra os extremos flutuantes da opinião em moda. Esse conselho parece tão fácil,
e é na verdade dificílimo de seguir. Uma razão para essa dificuldade é que não podemos pen
sar primeiro e agir depois. Desde que nascemos, estamos imersos na ação e só podemos guiá-la convenientemente pensando.
• Trata-se de uma afirmação de Jesus na parábola do joio e do trigo (cf. Mt 13,30). (N. T.)
1230 I
I A CIÊNCIA E O MUNDO MODERNO I
Temos, portanto, em várias esferas de pensamento, de adotar as idéias que parecem trabalhar nessas esferas. É de absoluta necessidade confiar em idéias geralmente adequadas, muito embora conheçamos a existência de sutilezas e distinções que ultrapassam a nossa capacidade. Também, à parte as necessidades da ação, nem podemos ter em mente a prova completa, a não ser com roupagem de doutrinas incompletamente harmoniza- "
das. Não podemos pensar em termos de uma multipliCidade indefinida de detalhes; nossa prova pode adquirir a sua própria
importância só se nos ocorrer com idéias gerais à frente. Essas idéias nós as herdamos, formam a tradição da nossa civilização. Essas idéias tradicionais nunCa são estáticas. Estão ou desaparecendo em fórmulas sem significado, ou ganhando poder pelas novas luzes lançadas por uma mais refinada apreensão. São transformadas pela exigência da razão crítica, pela vívida prova da experiência emocional e pelas frias certezas da percepção científica. Uma coisa é certa: não podemos conservá-las. Nenhuma geração pode simplesmente reproduzir os seus antepas
sados. Podemos preservar a vida em um fluxo de forma, ou preservar a forma em meio a uma teia de vida. Mas não podemos incluir permanentemente a mesma vida no mesmo molde.
A situação atual da religião entre os povos europeus ilustra as afirmações que fiz. Os fenômenos estão misturados. Está havendo reações e revivescências. Mas, em conjunto, por
muitas gerações, houve gradual declínio da influência religiosa na civilização européia. Cada revivescência toca um pico mais
baixo que o predecessor; e cada período de fraqueza, uma pro
fundídade mais baixa. A curva média marca uma firme queda na tonalidade religiosa. Em alguns países, o interesse pela religião
é mais alto que em outros. Mas nos países em que o interesse é relativamente alto, ainda decai à medida que as gerações passam. A religião tende a degenerar em uma doutrina apropriada para embelezar uma vida confortável. Um grande movimento histórico dessa escala resulta da convergência de muitas causas . Quero sugerir duas delas que lanço no escopo desse capítulo.
I 231 I
LI -."""'''',,,",,''' ",.'"'
I ALFRED NORTH WHITEHEAD 1
Em primeiro lugar, por mais de dois séculos a religião
esteve em defensiva, e numa fraca defensiva. O período foi de um progresso intelectual nunca visto precedentemente. Desse modo, uma série de situações novas foi produzida no pensamento. Cada uma dessas ocasiões encontrou desprevenidos os pensadores religiosos. Algo que, proclamado como vital, foi finalmente, depois de lutas, amarguras e anátemas, modi
ficado e interpretado diversamente. A seguinte geração dos
apologistas da religião então congratulava-se com o mundo religioso pela visão mais profunda que tinham alcançado. O resultado da contínua repetição da retirada pouco digna, du
rante muitas gerações, destruiu, afinal, completamente a autoridade intelectual dos pensadores religiosos. Considerem esse contraste: quando Darwin ou Einstein proclamam teorias que modificam as nossas idéias, é um triunfo para a ciência. Não iremos adiante dizendo que haja outra derrota para a ciência,
porque as suas velhas idéias foram abandonadas. Sabemos que
se galgou mais um degrau na visão científica. A religião não recuperará a sua antiga força enquanto não
encarar a mudança no mesmo espírito em que o faz a ciência. Os seus princípios podem ser eternos, mas a expressão desses princípios exige contínuo desenvolvimento. Essa evolução da religião é principalmente um desligamento das suas próprias
idéias das noções adventícias que nela se infiltraram, em conseqüência da expressão de suas próprias idéias em épocas primi
tivas. Esse desatar-se, por parte da religião, dos laços da ciência imperfeita é o que há de melhor. Delineia a sua genuína mensa
gem. O grande ponto a ser observado é que, normalmente, um
progresso na ciência mostra que afirmativas de várias crenças religiosas exigem alguma espécie de modificação. Pode ser que tenham de ser expandidas ou explicadas, ou na verdade inteiramente reformuladas. Se a religião é uma sadia expressão da verdade, essa modificação só apresentará mais adequadamente o ponto exato de importância. Esse processo é uma vantagem. Portanto, tendo em vista que a religião tem algum contato com
1232 I
I A CltNCIA E o MUNDO MODERNO I
os fatos físicos, é de esperar que o ponto de vista desses fatos deva ser continuamente modificado à proporção que o conhecimento cientifico progride. Desse modo, a exata relevância desses fatos para o pensamento religioso tornar-se-á cada vez
mais clara. O progresso da ciência deve resultar na incessante codificação do pensamento religioso, para a grande vantagem da religião.
As controvérsias religiosas dos séculos XVI e XVII puseram os teólogos em um estado de espírito muito infeliz. Estavam sempre atacando e defendendo. Eles mesmos se tinham
como guardiões de uma fortaleza cercada por forças hostis. Semelhante quadro expressa meia verdade. Razão por que era tão popular. Mas era perigoso. Esse quadro especial estimulava um espírito belicoso de partido que realmente expressa, ao cabo, falta de fé. Não ousavam modificar, porque se esquivavam à
tarefa de livrar a sua mensagem espiritual das associações de determinadas imagens.
Deixem-me explicar por meio de um exemplo. Nos
primitivos tempos medievais, o Céu estava no firmamento, e o Inferno era debaixo da terra. Vulcões eram a garganta do
Inferno. Não afirmo que tais crenças entrassem nas formulações oficiais: mas entravam no entendimento popular das doutrinas gerais acerca do Céu e do Inferno. Todo mundo cifrava nessas noções a doutrina da vida futura. Entravam
nas explicações de abalizados expositores da fé cristã. Por exemplo, ocorriam nos Diálogos do Papa Gregório Magno,3
homem cuja elevada posição só é ultrapassada pela impor
tância dos benefícios que prestou à humanidade. Não estou dizendo o que devemos crer acerca da vida futura. Mas, seja
qual for a doutrina certa, nesse exemplo, o entrechoque entre ciência e religião, que relegou a Terra a uma posição de planeta de segunda grandeza, ligado a um Sol de segunda
) Cf. Gregorovius, Hist6ria de Roma na Idade Média, uvro 111, capítulo 111.
1233 I
.. ,
/
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
grandeza, beneficiou grandemente a espiritualidade da religião, afastando essas fantasias medievais.
Outro modo de considerar essa questão da evolução do pensamento religioso é notar que qualquer forma verbal de afirmação que o mundo apresentou durante algum tempo revela ambigüidades e que freqüentemente tais ambigüidades atingem o âmago da significação. O sentido efetivo em que uma
doutrina foi sustentada não pode ser determinado pela simples análise lógica das afirmações verbais feitas na ignorância das
armadilhas da lógica. Temos de tomar em conta a reação real da natureza humana ao esquema de pensamento. Essa reação tem caráter misto, incluindo elementos de emoção derivados do mais profundo das nossas naturezas. Aqui é que a crítica pessoal da ciência e da filosofia chega à fase da evolução religio
sa. Exemplos e mais exemplos podem ser dados dessas forças motoras em desenvolvimento. Por exemplo, as dificuldades his
tóricas inerentes à doutrina da pureza moral da natureza humana pelo poder da religião dividiram o Cristianismo no tempo de Pelágio e Agostinho, isto é, no início do século V Ecos dessa controvérsia ainda ressoam na teologia.
Até aqui, o meu ponto foi o seguinte: a religião é a expressão de um tipo de experiências fundamentais da humanidade; o pensamento religioso desenvolve-se em crescente acuidade
de expressão, desimpedido de imagens adventicias. A ação recíproca entre ciência e religião é um grande fator que promove
esse desenvolvimento. Chego agora à minha segunda razão do moderno esmore
cimento de interesse pela religião. Isso envolve a última ques
tão que expus em meu parágrafo inicial. Devemos saber o que entendemos por religião. As Igrejas, na apresentação de suas respostas a essa indagação, evidenciam aspectos da religião expressos em termos ora adequados a reações emocionais de tempos idos, ora dirigidos a incítar modernos interesses emocionais. O que desejo exprimir na primeira alternativa é que o apelo religioso é dirigido para incitar esse temor instintivo da ira de
1234 1
1
I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I
um tirano que se formou nas populações infelizes dos impérios arbitrários do mundo antigo, e particularmente a excitar esse
temor de um tirano todo-poderoso por trás das desconhecidas forças da natureza. Esse apelo ao instinto fácil de puro e
simples temor está perdendo a sua força. Falta-lhe o caráter direto de resposta, porque a ciência moderna e as condições modernas de vida nos ensinaram a encOntrar ensejos de apreen- "
são mediante uma análise critica das causas e das condições. A
religião é a reação da natureza humana à sua procura de Deus.
A apresentação de Deus sob o aspecto do poder desperta todos os instintos modernos de reação critica. É fatal, pois a religião decai a menos que as suas principais posições exijam assentimento imediato. A esse respeito, a linguagem antiga está em divergência Com a psicologia das civilizações modernas. Essa mudança em psicologia deve-se em grande parte à ciência e é uma das principais maneiras pelas quais O progresso da ciência enfraqueceu a firmeza das velhas formas religiosas de expressão. Os motivos não religiosos que entraram no pensamento
religioso moderno são o desejo de uma organização confortável da sociedade moderna. A religião foi apresentada como valio-sa para a ordem da vida. As suas reivindicações detiveram-se na sua função essencial à reta conduta. Também o propósito da reta conduta depressa degenera na formação de agradáveis
relações sociais. Temos aqui uma sutil degradação das idéias religiosas, depois da sua gradual purificação sob a influência de
mais agudas intuições éticas. A conduta é um produto da religião, um inevitável produto, mas não o ponto principal. Todos
os grandes doutrinadores se revoltaram contra a apresentação
da religião como uma simples sanção de normas de conduta.
São Paulo denunciou a Lei, e os teólogos puritanos falaram dos imundos farrapos da retidão. A insistência sobre as normas de conduta marca o declinio do fervor religioso. Acima e além de
todas as coisas, a vida religiosa não é uma procura de conforto. Devo agora afirmar, com a devida cautela, o que me parece ser o caráter essencial do espírito religioso.
1 235 1
c"";,
0i
,~ ... """"> .. '''''''0'"
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Religião é a visão de alguma coisa que está além, atrás e dentro do perpassar das coisas imediatas; algo que é real e, todavia, está à espera de ser realizado; algo que é uma remota possibilidade e, todavia, o maior dos fatos presentes; algo que dá sentido a tudo quanto passa e, todavia, esquiva-se à apreensão; algo cuja posse é o último bem e, todavia, está além de todo alcance; algo que é o último ideal e a busca impossível.
A adoração é imediata reação da natureza humana à visão
religiosa. A religião surgiu da experiência humana misturada com as mais cruéis fantasias da imaginação bárbara. Gradativamente, lentamente, firmemente, a visão se repete na história
sob forma mais nobre e mais clara expressão. É o único elemento na experiência humana que mostra persistentemente uma tendência ascensional. Declina e depois ressurge. Mas, quando renova as suas forças, ressurge com riqueza acrescida e pureza de conteúdo. O fato da visão religiosa e a sua história de persistente expansão são o nosso motivo de otimismo. Quanto ao mais, a vida humana é um relâmpago de gozo passageiro que brilha por sobre uma grande quantidade de tormentos e misé
rias, uma bagatela de experiência passageira. A visão exige apenas adoração; e adorar é submeter-se à
exigência de assimilação, acentuada pela força motriz de mútuo amor. A visão nunca ordena. Está sempre presente e tem
o poder de amor que apresenta o único propósito cujo cumprimento é a eterna harmonia. Tal ordem como a vemos na
natureza nunca é força; apresenta-se como o harmonioso ajustamento de um detalhe complexo. O mal é a força motriz pura
e simples do propósito fragmentário, que não leva em conta a
visão eterna. O mal domina, retarda e prejudica. O poder de Deus é o culto que Ele inspira. É forte a religião que, no ritual e nos modos de pensamento, evoca uma apreensão da visão ordenadora. A adoração a Deus não é uma norma de salvação, é uma aventura do espírito, um vôo em busca do inatingível. A morte da religião é acompanhada da repressão da sublime
esperança de aventura.
1236 I
I CAPfTULO XIII I
REQUISITOS PARA O PROGRESSO SOCIAL
O propósito destes capítulos foi analisar a reação da ciência formando esse fundo de idéias instintivas que controlam as atividades das gerações sucessivas. Esse fundo toma a forma de uma vaga filosofia quanto à última palavra sobre as coisas, quando tudo está dito. Os três séculos que formam a época da ciência moderna revolucionaram as ídéias de Deus, espírito, matéria, e também de espaço e de tempo no seu caráter de expressar posição simples para a matéria. A filosofia em conjunto enfatizou o espírito, e assim esteve fora de contato com a ciência
durante os dois últimos séculos. Mas está voltando lentamente à sua antiga importância devido ao destaque da psicologia e da sua aliança com a fisiologia. Também, a reabilitação da filosofia foi facilitada pela recente derrocada da concepção seiscentis
ta dos princípios da ciência. Mas, até esse colapso, a ciência apoiava-se seguramente sobre os conceitos de matéria, espaço,
tempo e por último energia. Também, houve leis arbitrárias da natureza determinando a mudança. Foram empiricamente ob
servadas, mas por alguma razão obscura eram tidas como uni
versais. Quem quer que, na teoria ou na prática, não as levasse em conta era denunciado com inexorável vigor. Essa posição por parte dos cientistas era puro blefe, se se pode atribuir a eles a crença em suas próprias declarações, pois a sua filosofia corrente falhou completamente ao justificar a afirmativa de que o conhecimento imediato inerente à circunstância presente lança alguma luz sobre o passado ou sobre o futuro.
I 237 I
<
I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I
Também esbocei uma filosofia alternativa da ciência, na qual organismo toma o lugar de matéria. Para esse fim, o espírito implícito na teoria materialista dissolve-se em uma função de organismo. O campo psicológico então apresenta o que o fato é
em si. O nosso acontecimento corpóreo é um tipo incomum de organismo e conseqüentemente inclui a cognição. Além disso, o espaço e o tempo, em sua mais concreta significação, tornam
se o Iocus do acontecimento. Um organismo é a realização de
uma forma definida de valor. A importância de algum valor atual depende da limitação que exclui luzes cruzadas neutra
lizantes. Assim, um acontecimento é um fato que, em razão de sua limitação, é um valor por si só; mas, em razão de sua verdadeira natureza, também requer todo o universo a fim de
ser ele mesmo. A importância depende da duração. Esta última é a re
tenção através do tempo de uma realização de valor. O que dura é identidade de modelo, auto-herdada. A duração requer ambiente favorável. Toda a ciência insiste nessa questão dos
organismos duradouros. A influência geral da ciência no momento presente pode
ser analisada com base nestes tópicos: Concepções Gerais a Respeito do Universo, Aplicações Técnicas, Profissionalismo no Conhecimento, Influência das Doutrinas Biológicas nas Razões
de Conduta. Esforcei-me nos capítulos anteriores por dar um resumo desses pontos. Faz parte do objetivo deste capítulo de
conclusão considerar a reação da ciência sobre alguns proble
mas concernentes às sociedades civilizadas. As concepções gerais introduzidas pela ciência no pen
samento moderno podem ser separadas da situação filosófica
expressa por Descartes. Refiro-me à aceitação dos corpos e dos espíritos como substâncias individuais independentes, existindo cada uma em seu próprio lugar, pondo-se de parte qualquer referência necessária uma à outra. Tal concepção estava muito de acordo com o individualismo que resultara da disciplina moral da Idade Média. Mas, embora a fácil recepção da idéia
12381
I A Cl~NC1A E O MUNDO MODERNO I
seja assim explicada, a derivação em si permanece em confusão, o que é natural, não obstante lamentável. A disciplina moral tinha encarecido o valor intrinseco da entidade individual. Esse encarecimento tinha posto a noção de indivíduo e de suas ex
periências no primeiro plano do pensamento. Nesse ponto começa a confusão. O patente valor individual de cada entidade foi transformado na existência substancial e independente de ,.
cada entidade, o que é uma noção muito diferente. Não quero afirmar que Descartes tenha feito essa transi
ção lógica, ou antes ilógica, em forma de raciocínio explícito. Longe disso. O que ele fez foi primeiro concentrar-se sobre a sua própria experiência consciente, como sendo fatos dentro do mundo independente de sua própria mentalidade. Foí levado a especular dessa maneira pelo corrente encarecimento do valor individual de sua essência completa. Transformou implicitamente esse patente valor individual, inerente ao verdadeiro fato de sua própria realidade, em um mundo particular de pai
xões ou modos de substância independente. Também a independência atribuída às substâncias corpó
reas foi inteiramente tirada do domínio dos valores. Degene
raram em um mecanismo totalmente sem valor, salvo como sugestivo de uma ingenuidade externa. Os céus tinham perdido a glória do Senhor. Esse estado de espírito é ilustrado pela
fuga do protestantismo aos efeitos estéticos dependentes de um meio material. Foi tomado para conduzir a uma atribuição de valor aquilo que era sem valor. Essa fuga já estava em plena
força antes de Descartes. Assim, a doutrina científica cartesia
na de fragmentos de matéria, desprovidos de valor intrínseco, era simplesmente um enunciado, em termos explícitos, de uma
doutrina que era corrente antes da sua entrada no pensamento cientifico ou na filosofia cartesiana. Provavelmente, essa doutrina estava latente na filosofia escolástica, mas não foi levada às suas conseqüências enquanto não encontrou a mentalidade do Norte da Europa no século XVI. Mas a ciência, como a equipou Descartes, deu estabilidade e situação intelectual a um
1 239 1
• , '·,1
-,,,.,,~,,,,<",,~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
ponto de vista que tem tido efeitos muito variados sobre os pressupostos morais das comunidades modernas. Os seus bons
resultados surgem ,da sua eficiência como um método para as
investigações científicas nessas regiões limitadas então mais ap
tas à exploração. O resultado foi uma limpeza geral do espirito europeu das manchas que lhe deixou a histeria das remotas
idades bárbaras. Esses efeitos foram sumamente bons e com
pletamente exemplificados no século XVIII. Mas no século XIX, quando a sociedade sofria transfor
mação em um sistema de manufatura, os maus efeitos dessas
doutrinas foram deveras fatais. A doutrina do espírito, como
substância independente, conduz diretamente não apenas ao
mundo particular da experi~ncia, mas também ao mundo
particular da moral. As intuições morais podem ser mantidas para se aplicarem tão-só ao mundo estritamente particular
da experiência psicológica. Assim, juntos, o respeito próprio
e a realização do máximo de nossas próprias oportunidades
individuais constituem a moralidade eficiente dos mentores
entre os industrialistas desse período. O mundo ocidental padece agora da concepção moral limitada das três gerações
anteriores. Também a afirmação da mera desimportância da simples
matéria levou a uma falta de reverência no tratamento da be
leza natural ou artística. Justamente quando a urbanização do mundo ocidental estava entrando no seu estado de rápido desenvolvimento e quando a consideração mais delicada e ansiosa
das qualidades estéticas do novo ambiente material era exigida,
a doutrina da irrelevância de tais idéias andava no auge. Nos
mais adiantados países industriais, a arte era tratada como uma
frivolidade. Um exemplo notável desse estado de espírito em meados do século XIX pode ser visto em Londres, onde a maravilhosa beleza do estuárío do Tâmisa, tendo em vista que o rio serpenteia pela cidade, é ostensivamente desfigurada pela ponte da estrada-de-ferro de Charing Cross, construída em detrimento dos valores estéticos.
1240 I
I A CIÊNCIA E O MUNDO MODERNO I
Os dois males são: um,· a ignorância da verdadeira relação
de cada organismo com o seu ambiente; e, o outro, o hábito de
ignorar o valor intrínseco do ambiente que deve ser. admitido, o
seu peso em qualquer consideração dos fins. Outro grande fato que o mundo moderno encama é o
descobrimento do método de preparar profissionais, os quais se especializam em determinadas âreas do pensamento e, por- j;.
tanto, acrescentam progressivamente à soma de conhecimentos
dentro das respectivas limitações de assunto. Em conseqüência
desse sucesso da profiSSionalização do conhecimento, há dois pontos para reter, que diferenciam nossa época presente do
passado. Em primeiro lugar, a linha do progresso é tal, que qualquer ser humano individual, de idade média comum, será obrigado a enfrentar novas situações que não encontram nenhum
paralelo no seu passado. A pessoa fixa para os deveres fixos, que nas sociedades antigas era uma dádiva divina, no futuro será um perigo público. Em segundo lugar, o moderno profissionalismo no conhecimento atua em direção oposta, no que con
cerne à esfera intelectual. O químico moderno é provável que seja fraco em zoologia, mais fraco ainda no seu conhecimento
geral do drama elisabetano e completamente ignorante sobre os principios do ritmo na versificação inglesa. É, provavelmente, mais seguro ignorar sua compreensão da história antiga. Na
turalmente estou falando de tendências gerais, pois os químicos
não são piores do que os engenheiros, ou matemâticos ou eru
ditos. Conhecimento efetivo é conhecimento profissionalizado, sustentado por um conhecimento restrito dos assuntos úteis
que lhe são próprios.
Essa situação tem os seus perigos. Produz espiritos encaixados. Cada profissão faz progresso, mas é progresso em seu próprio encaixe. Ora, estar mentalmente em um encaixe é vi
ver na contemplação de um dado conjunto de abstrações. O encaixe evita andar à toa e a abstração abstrai de alguma coisa
à qual nenhuma atenção posterior se presta. Mas não há encaixe de abstrações que seja adequado à compreensão da vida
I 241 I
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
humana. Assim, no mundo moderno, o celibato da classe culta medieval foi substituido pelo celibato da inteligência, que se divorciou da contemplação concreta dos fatos completos. el,.ro que ninguém é simplesmente um matemático, ou simplesmente um jurista. As pessoas têm uma vida fora da profissão ou do negócio. Mas o ponto é a restrição do pensamento sério
em um encaixe. O restante da vida é tratado superficialmente,
com as imperfeitas categorias de pensamento derivadas de uma
só profissão. Os perigos resultantes desse aspecto do profissionalismo
são grandes, especialmente em nossas sociedades democráticas. A força diretiva da razão é enfraquecida. Os guias da inteligência carecem de equilíbrio. Vêem esse aspecto ou aquele grupo de circunstâncias, mas não os dois grupos juntos. A tarefa de coordenação é deixada àqueles a quem falta ora a força, ora o caráter para alcançar êxito em alguma carreira. Em suma, as funções especializadas da comunidade são levadas a cabo melhor e mais progressivamente, mas a direção generalizada carece de visão. O progresso nos detalhes só aumenta o perigo produzido pelo enfraquecimento da coordenação.
Essa crítica da vida moderna vem muito a propósito, qualquer que seja o sentido em que tomarmos o sentido de comunidade. Dá certo se vocês o aplicarem a uma nação, a uma cidade, a um distrito, a uma instituição, a uma família,
ou mesmo a um individuo. Há um desenvolvimento de abstrações determinadas e uma contração de apreciação concreta.
O todo é perdido em um dos seus aspectos. Não é necessário,
para meu objetivo aqui, sustentar que a nossa prudência diretiva, ou como indivíduos, ou como comunidades, é menor
agora que no passado. Talvez tenha melhorado ligeiramente. Mas o novo ritmo do progresso requer maior força de direção se quisermos evitar desastres. O ponto é que as descobertas do século XIX estavam na direção do profissionalismo, de modo que somos deixados sem nenhuma ampliação da sabedoria e em grande necessidade dela.
1242 I
I A ClENClA E O MUNDO MODERNO I
A sabedoria é o fruto de um desenvolvimento equilibrado. É esse equilíbrio do crescimento da individualidade que deveria ser o objetivo garantido pela educação. As mais úteis descobertas para o futuro imediato deveriam empenhar-se em fomentar esse objetivo sem o prejuízo do necessário profissionalismo intelectual.
A minha própria crítica aos nossos métodos tradicionais'"
de educação é que eles estão muitíssimo ocupados com análises
intelectuais e com a aquisição da informação formulada. O que quero dizer é que deixamos de fortalecer o hábito da aprecia
ção concreta dos fatos individuais em sua plena interação de valores emergentes e que apenas enfatizamos formulações abstratas que ignoram aspectos da interação de valores diferentes.
Em todos os paises, o problema do eqUilíbrio entre a educação geral e a especializada está sendo considerado. Só posso falar com conhecimento de primeira mão sobre o meu próprio
país. Sei que nele, entre educadores práticos, há considerável insatisfação com a prática existente. Igualmente, a adaptação
de todos os sistemas às necessidades de uma comunidade democrática está muito longe de ser conseguida. Não penso que a solução esteja em termos de antitese entre, de um lado, a completude do conhecimento especial e, do outro, o conhecimento geral de um caráter mais superficial. O excesso de peso
que contrabalança a completude da preparação intelectual de especialísta deveria ser de uma espécie radicalmente diferente
do conhecimento intelectual puramente analitico. Atualmente a nossa educação combina um estudo completo de algumas
abstrações com um mais rápido estudo de um maior núme
ro de abstrações. Somos COm grande exclusividade livrescos em nossa rotina escolar. A preparação geral deveria satisfazer o desejo juvenil de fazer alguma coisa. Deveria haver alguma análise também nisso, mas só o bastante para ilustrar os modos de pensar em diversas esferas. No Jardim do Éden, Adão viu os animais antes de lhes dar nome: no sistema tradicional, as crianças nomeiam os animais antes de os ver.
1243 I
\li";:;
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Não há uma solução única e fácil das dificuldades práticas da educação. Podemos, no entanto, guiar-nos por certa simplici
dade na sua teoria geral. O estudante deve concentrar-se em um
campo limitado. Tal concentração deve incluir todas as aquisi
ções práticas e intelectuais exigidas para essa concentração. É
esse o processo ordinário, e a respeito dele eu estaria inclinado
até a aumentar as facilidades para a concentração, em vez de
as diminuir. Com a concentração, encontram-se associados al
guns estudos subsidiários, tais como as línguas para a ciência.
Tal esquema da preparação profissional deveria dirigir-se a um
fim claro apropriado ao estudante. Não e necessário elaborar as especificações dessas afirmativas. Tal preparação deve, naturalmente, ter a amplitude requerida para o seu fim. Mas o seu desígnio não deve ser complicado pela consideração de outros
fins. Essa preparação profissional pode tocar apenas um lado da educação. O seu centro de gravidade está na inteligência, e a sua
principal ferramenta e o livro impresso. O centro de gravidade do outro lado da preparação deve estar na intuição sem um divórcio analitico do ambiente total. O seu objetivo e a apreensão imediata com o mínimo de análise visceral. O tipo de genera
lidade, de que acima de tudo necessitamos, e a apreensão da variedade do valor. Refiro-me a um crescimento estético. Há al
guma coisa entre os grosseiros valores especializados do homem
prático e o fino valor especializado do erudito. A ambos os tipos falta alguma coisa. E, se combinamos os dois grupos de valor,
não obtemos os elementos que faltam. O que se espera é uma
apreciação da infinita variedade dos valores vividos realizados por um organismo em seu próprio ambiente. Quando compre
endemos tudo a respeito do Sol e da atmosfera e da rotação da Terra, ainda nos falta conhecer a radiação do pór-do-sol. Não há
nenhum substituto da percepção direta da concreta realização de uma coisa na sua realidade. Queremos fatos concretos com
uma forte luz lançada sobre o que importa para o seu valor. O que pretendo é arte e educação estética. É, porem, arte
em tal sentido geral do termo, que me e dificil chamá-Ia pelo
[244[
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
próprio nome. A arte é um exemplo especial. O que queremos
é promover hábitos de apreensão estética. De acordo com a
doutrina metafísica que estou desenvolvendo, fazer isso é au
mentar o abismo da individualidade. A análise da realidade indica os dois fatores, a atividade emergindo do valor estético in
dividual. Também o valor patente é a medida da individualiza
ção da atividade. Devemos estimular a iniciativa criadora pata .
a manutenção de valores objetivos. Não obteremos a apreensão
sem a iniciativa, ou a iniciativa sem a apreensão. Já que nos
encaminhamos para o concreto, não podemos excluir a ação. A
sensibilidade sem o impulso acentua a decadência, e o impulso sem a sensibilidade acentua a brutalidade. Uso o termo "sensibilidade" na mais geral acepção, de modo a incluir a apreensão do que está para além: isto e, sensibilidade para todos os fatos em questão. Assim, "arte" no sentido geral que tomo é qualquer seleção pela qual os fatos concretos são de tal modo dispostos que chamam a atenção para os valores particulares realizáveis
por eles. Por exemplo, a mera disposição do corpo humano e do olhar de modo a conseguir uma bela visão do pór-do-sol é uma simples forma de seleção artística. O hábito da arte é o hábito
de deleitar-se com valores vividos. Mas nesse sentido, a arte diz respeito a algo mais do que
um pôr-do-sol. Uma fábrica com o seu maquinário, a sua comu
nidade de operários, o seu serviço social para a população em geral, sua dependência do gênio organizador e planejador, sua potencialidade como fonte de riqueza para os possuidores do
seu sortimento é um organismo que apresenta uma variedade
de valores vividos. O que esperamos ensinar é o hábito de apreender tal organismo em sua totalidade. É muito discutivel que a
ciência da economia política, estudada em seu primeiro perío
do depois da morte de Adam Smith (1790), fizesse mais mal do que bem. Destruiu muitas ilusões econômicas e ensinou como
considerar a evolução econômica em progresso. Mas implantou
nos homens certo conjunto de abstrações que foram desastrosas na sua influência sobre a mentalidade moderna. Desuma-
[ 245 [
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
nizou a indústria. Isso é apenas um exemplo do perigo geral inerente à ciência moderna. O seu processo metodológico é
excludente e intolerante, e justamente assim. Fixa a atenção em um grupo definido de abstrações, negligencia tudo mais e faz questão da mais insignificante informação e teoria importante para o que foi considerado. Esse método triunfa, desde que as abstrações sejam judiciosas. Mas, ainda que triunfe, tem seus
limites. O desprezo desses limites leva a desastrosas concep
ções. O anti-racionalismo da ciência é parcialmente justificado como preservação da sua eficaz metodologia; é em parte um preconceito irracional. O moderno profissionalismo é a prepa
ração do espírito para se conformar com a metodologia. A reviravolta histórica do século XVII e a primeira reação de caráter naturalista foram exemplos de transcender as abstrações que fascinaram a sociedade culta na Idade Média. Essas épocas primitivas tinham um ideal de racionalismo, mas não conseguiram alcançá-lo, pois se descuidaram de notar que a metodologia do raciocínio exige as limitações implicitas na abstração. Assim, o verdadeiro racionalismo deve sempre transcender a si mesmo recorrendo ao concreto em busca de inspiração. Um racionalis
mo satisfeito de si é, com efeito, uma forma de anti-racionalismo. Significa uma parada arbitrária em determinado grupo de abstrações. Tal é o caso da ciência.
Há dois princípios inerentes à verdadeira natureza das
coisas, repetindo-se em algumas incorporações determinadas, qualquer que seja o campo explorado: o espírito de mudança
e o espírito de conservação. Nada real pode existir sem ambos.
A simples mudança sem conservação é uma passagem do nada para o nada. A sua integração final resulta em simples não-en
tidades transitórias. A simples conservação sem mudança não pode conservar, pois afinal de contas há um fluxo de circunstâncias, e a novidade do ser desvanece com a mera repetição. O caráter da realidade existente é composto de organismos que duram através do fluxo das coisas. O baixo tipo de organismos realizou uma auto-identidade que domina toda a sua vida físi-
12461
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
ca. Elétrons, moléculas, cristais pertencem a esse tipo. Apresentam uma identidade completa e maciça. Nos mais altos tipos, onde a vida aparece, há maior complexidade. Assim, ainda que haja um complexo modelo duradouro, retira-se para os mais profundos recessos do fato total. Em certo sentido, a auto-identidade do ser humano é mais abstrata do que a de um cristal. É a vida do espíríto. Relaciona-se antes com a individualizaç~o da atividade criadora; de modo que as mudáveis circunstância; recebidas do ambiente são diferenciadas da personalidade viva
e são pensadas formando um campo percebido. Na verdade, o campo da percepção e o espírito que percebe são abstrações que, concretamente, combinam com os sucessivos acontecimen,tos corpóreos. O campo psicológico, enquanto restrito aos objetos sensíveis e às emoções experimentais, é a menor permanência, protegida simplesmente da não-entidade da mera mudança; e o espírito é a maior permanência, que abrange esse campo completo, cuja duração é a alma viva. Mas sem fertilização a alma perderia as suas experiências transitórias. O segredo dos organismos superiores reside nos seus dois graus de per
manências. Por esse meio se absorve a novidade do ambiente na permanência da alma. O ambiente mudável já não é um inimigo da duração do organismo, em razão da sua variedade. O modelo do organismo superior retirou-se para os recessos da atividade individualizada. Tomou-se uma maneira uniforme de
lidar com as circunstâncias; e essa maneira só é fortalecida tendo uma variedade própria de circunstâncias para considerar.
Essa fertilização da alma é a razão da necessidade da arte.
Um valor estático, por sério e importante que seja, toma-se não durável por sua impressionante monotonia de duração. A alma
brada por se livrar dele na mudança. Sofre as agonias da claustrofobia. São-lhe necessárias as transições de humor, espírito, irreverência, jogo, sono e principalmente da arte. A grande arte é a disposição do ambiente, de modo a proporcionar valores à
alma vívida mas transitória. Os seres humanos exigem alguma coisa que os absorva por certo tempo, alguma coisa fora
12471
.~~~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
da rotina para a qual possam olhar. Mas não podemos subdividir a vida, a não ser na análise abstrata do pensamento. Assim,
a grande arte é mais do que uma diversão transitória. É algo
adicionado à permanente riqueza das próprias consecuções da
alma. Justifica-se tanto pela fruição imediata como pela disciplina do ser interior. Sua disciplina não é diferente da sua fruição, mas existe em razão dela mesma. Transforma a alma
em permanente realização de valores que se estende além da essência anterior. Esse elemento de transição na arte mostra-se
na ausência de repouso que a sua história apresenta. Uma épo
ca fica saturada pelas obras-primas de um só estilo. Algo novo
deve ser descoberto. O ser humano vagueia ansiosamente. Contudo, há um equilíbrio nas coisas. A simples mudança antes de conseguir a adequação da realização, na qualidade ou na pro
dução, destrói a grandeza. Mas a importância de uma arte viva, que não cessa de mover-se, mas deixa a sua marca permanente,
dificilmente pode ser exagerada. No que diz respeito às necessidades estéticas do mundo
civilizado, as reações da ciência foram infelizes. A sua base ma
terialista dirigiu a atenção para as coisas enquanto opostas aos
vaÚJres. A antítese é falsa, se tomada em sentido concreto. Mas é válida no nível abstrato do pensamento ordinário. Esse encarecimento mal colocado misturou-se com as abstrações da
economia política, que de fato são abstratas e em cujos termos
o comércio é levado a efeito. Assim, todo pensamento concer
nente à organização social se expressava em termos de coisas
materiais e capitais. Os valores finais eram excluídos. Eram po
lidamente respeitados e depois entregues ao clero para serem
guardados aos domingos. Desenvolveu-se um credo de moralidade de competição mercantil, em alguns aspectos surpreendentemente elevado; mas inteiramente desprovido da consideração do valor da vida humana. Os trabalhadores eram concebidos como simples mãos tiradas do mercado de trabalho. À
pergunta de Deus os homens deram a resposta de Caim: "Serei aCaso guarda do meu irmão?"; e incorreram na culpa de Caim.
1248 I
I A CI~NClA E O MUNDO' MODERNO I
Essa foi a atmosfera em que se efetuou a Revolução Industrial da Inglaterra e em grande parte em outros lugares. A história interna da Inglaterra durante o último meio século tem sido um esforço lento e penoso para desfazer os males cometidos na
primeira fase da nova época. Pode ser que a civilização nunca
se liberte do mau clima que envolvia a introdução do maquinismo. Esse clima penetrou todo o sistema comercial dos países ~
progressistas da Europa setentrional. Resultaram em parte dos erros estéticos do protestantismo, em parte do materialismo
cientifico, em parte da natural sofreguidão da humanidade, em parte das abstrações da economia política. Encontra-se uma
elucidação do que estou afirmando aqui no ensaio de Macaulay criticando a obra CoUoquies on Society, de Southey. Foi escrito em 1830. Ora, Macaulay é um exemplo favorável dos homens que viviam nesse tempo ou em qualquer tempo. Tinha gênio; tinha bom coração, era honrado e reformador. Eis um excerto:
Dizem que o nosso tempo inventou atrocidades além da ima
ginação dos nossos pais; que a sociedade foi trazida a um
estado comparado com o qual o extermínio seria uma bên
ção; e tudo porque as habitações dos fiadores de algodão
são desprotegidas e retangulares. O senhor Southey desco
briu um meio, diz-nos, pelo qual os efeitos da manufatura e
da agricultura podem ser comparados. E qual é esse meio?
Ficar sobre uma colina, olhar para uma cabana e uma fábrica
e ver qual é a mais bonita.
Parece que Southey disse muitas bobagens no seu livro;
mas, no que diz respeito a esse excerto, veria que não estava tão
errado se voltasse à terra depois de quase um século. Os males
do antigo sistema industrial são agora um lugar-comum do conhecimento. O ponto em que desejo insistir é na cegueira com que mesmo os melhores homens daquele tempo consideravam a importância da estética na vida nacional. Uma causa que con
tribui para a eficácia substancial em produzir erros desastrosos
foi o credo científico de que a matéria em movimento é a única
I 249 I
. Y;~;""'
<" """," , .. ~,.
I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I
realidade concreta da natureza, de modo que os valores estéticos constituem um acréscimo estranho e irrelevante.
Há um outro lado do quadro das possibilidades de decadência. No presente momento, trava-se uma discussão sobre o futuro da civilização nas novas circunstâncias do adiantamento técnico e científico. Os males do futuro foram prognosticados de vários modos, a perda da fé religiosa, o uso maligno do poder
material, a degradação correspondente a uma média de natalidade diferencial favorecendo os mais baixos tipos de humani
dade, a supressão da criação estética. Sem dúvida, todos esses males são penosos e ameaçadores. Mas não são novos. Desde os alvores da história, a humanidade sempre perdeu a sua fé religiosa, sempre sofreu do uso maligno do poder material, sempre sofreu da esterilidade dos mais altos tipos intelectuais, sempre testemunhou periódica decadência da arte. No reinado do egípcio Tutancâmon, travou-se desesperada luta religiosa entre modernistas e fundamentalistas; os quadros das cavernas apresentam uma fase de delicado acabamento estético segui
do de um período de comparativa vulgaridade; os mentores religiosos, os grandes pensadores, os escritores e poetas, toda a casta clerical na Idade Média, foram notavelmente estéreis: finalmente, se nos ativermos ao que realmente aconteceu no passado e abandonarmos visões românticas das democracias, reis, generais, exércitos e comerciantes, o poder material foi geralmente exercido com cegueira, obstinação e egocentrismo, freqüentemente com brutal malignidade. E, ainda assim, a humanidade tem progredido. Mesmo se tomarmos um pequeno
oásis de peculiar excelência, o tipo de homem moderno que teria mais probabilidade de felicidade na Grécia antiga no seu
melhor período, é provavelmente (como agora) um comum boxeador profissional de peso pesado, e não um erudito em grego de Oxford ou da Alemanha. Verdadeiramente, a maior utilidade de um erudito de Oxford teria sido escrever uma ode em glorificação ao boxeador. Nada prejudica mais um homem de nervos fracos nOS seus deveres do presente do que a atenção
I 250 I
I A ClENC1A E O MUNDO MODERNO I
consagrada aos pontos de excelência no passado comparados com o malogro comum do tempo presente.
Mas, afinal de contas, tem havido períodos de real decadência; e presentemente, comO em outras épocas, a sociedade está em declínio e há necessidade de ação preservativa. Os
profissionais não são novos para o mundo, mas no passado os profissionais formaram castas não progressistas. O ponto é que I'
O profissionalismo agora coincide com o progresso. O mundo
agora se defronta com um sistema que evolui por si mesmo, que não pode parar. Há perigos e vantagens nessa situação. É
óbvio que o lucro em poder material apresenta oportunidade para melhoramento social. Se a humanidade puder aproveitar
a ocasião, sobrevirá uma idade de ouro de criatividade benéfica. Mas o poder material em si é eticamente neutro. Pode igualmente ser bem trabalhado na má direção. O problema não é como produzir grandes homens, mas como produzir grandes sociedades. A grande sociedade fornecerá os homens para as ocasiões. A filosofia materialista encarecia a quantidade dada do material, e dai derivadamente a natureza dada do ambiente. Assim, operava mais prejudicialmente sobre a consciência social da humanidade, porque dirigia a atenção quase exclusiva para o aspecto da luta pela vida. É insensato olhar para o uni
verso com óculos cor-de-rosa. Devemos admitir a luta. A questão é: quem deve ser eliminado? Como educadores, devemos ter idéias claras sobre esse ponto, porque apresenta o tipo que deve ser produzido e a ética prática que se deve inculcar.
Mas, durante as últimas três gerações, a exclusiva direção da atenção para esse aspecto das coisas foi um desastre
da maior importância. As palavras de ordem do século XIX foram luta pela vida, competição, guerra de classe, antagonismo comercial entre as nações, assuntos bélicos e militares. A luta pela vida foi apresentada no evangelho do ódio. A total conclusão por tirar de uma filosofia da evolução é felizmente de caráter mais equilibrado. Organismos bem-sucedidos modificam o seu ambiente. São bem-sucedidos os organismos que
I 251 I
':"""~.7
"" ....... -~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
modificaram o ambiente, de modo a se assistirem mutuamente. Essa lei é exemplificada na natureza em vasta escala. Por exemplo, os indios norte-americanos aceitavam o seu ambiente, com o resultado de que apenas uma escassa população conseguiria manter-se em todo o continente. Quando chegaram ao
mesmo continente, as raças européias seguiram uma politica oposta. Desde logo cooperaram para modificar o seu ambiente.
O resultado foi que uma população mais de vinte vezes maior
do que a dos índios agora ocupa o mesmo território, e o continente ainda não está cheio. Repitamos que há associações de
diferentes espécies, que cooperam mutuamente. Essa diferença de espécie é apresentada nas mais simples entidades físicas, tais como as associações entre elétrons e os núcleos positivos, e em todo o reino da natureza animada. As árvores de uma floresta brasileira dependem da associação de várias espécies de organismos, cada uma delas dependente das outras espécies. Uma só árvore de per si é dependente de todas as probabilidades adversas de circunstâncias passiveis de mudança. O vento lhe
impede o crescimento; as variações de temperatura não permitem que tenha folhagem; as chuvas deslocam-lhe o solo; as suas folhas são dispersas e perdidas para o bem da fertilização. Podemos obter espécies individuais de árvores escolhidas em circunstâncias excepcionais ou onde intervém o cultivo feito
pelo homem. Mas, na natureza, o meio normal pelo qual as árvores florescem é a sua associação em floresta. Cada árvore
pode perder alguma coisa para a sua perfeição individual de
crescimento, mas todas mutuamente se auxiliam, preservando as condições de sobrevivência. O solo é preservado e sombrea
do; e os germes necessários à sua fertilidade não são queimados, nem congelados, nem destruidos com a limpeza. A floresta é o triunfo da organização de espécies mutuamente dependentes. Além disso, a espécie de germe que mata a floresta também se extermina a si mesma. Ademais, os dois sexos apresentam a mesma vantagem de diferenciação. Na história do mundo, não se tributa louvor àquelas espécies que se especializam em
I 252 I
I A Clt:NCIA E O MUNDO MODERNO I
métodos de violência, ou mesmo em armas de defesa. De fato, a natureza começou por produzir animais encaixados em duras conchas como defesa contra os males da vida. Também experimentou em tamanho. Mas animais menores sem armas externas, de sangue quente, sensíveis e alertas, expulsaram esses monstros da superfície da Terra. Também os leões e os tigres
• não são espécies bem-sucedidas. Há alguma coisa no uso rápido
da força que contraria o seu próprio objeto. O seu principal
defeito é o de impedir cooperação. Todos os organismos exigem um ambiente de amigos, parte para o defender de mudanças violentas, parte para o suprir às suas necessidades. O Evangelho
da Força é incompativel com a vida social. Entendo por força o antagonismo na mais geral acepção.
Quase igualmente perigoso é o Evangelho da Uniformidade. As diferenças das nações e das raças da humanidade são exigidas para preservar as condições nas quais o mais alto desenvolvimento é possível. Fator precípuo no desenvolvimento progressivo da vida animal foi o poder de mudar de localidade. Essa é a razão por que os monstros chapeados de armas passavam mal. Não podiam deslocar-se. Os animais deslocam-se em novas condições. Têm de adaptar-se ou morrer. A huma
nidade deslocou-se da floresta à planície, da planície ao litoral, de continente a continente, de hábito de vida a hábito de vida.
Quando os homens cessam de se deslocar, cessam de ascender na escala do ser. A locomoção física é ainda importante, mas maior ainda é o poder das aventuras espirituais do homem -
aventuras do pensamento, aventuras de apaixonado sentimen
to, aventuras de experiências estéticas. A diversificação entre as comunidades humanas é essencial para a provisão do incentivo,
é material para a Odisséia do espírito humano. Nações de hábitos diferentes não são inimigas; são dádivas divinas. Os homens requerem dos seus vizinhos algo suficientemente familiar para ser compreendidos, alguma coisa suficientemente diferente para provocar a atenção, e alguma coisa bastante grande para forçar a admiração. Não devemos, contudo, esperar que tudo
I 253 I
'T;;'
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
sejam virtudes. Devemos dar-nos por satisfeitos se houver alguma coisa bastante atraente para ser interessante.
A ciência moderna impôs à humanidade a necessidade de locomoção. O seu pensamento e a sua tecnologia progressivos
fazem a transição através do tempo de geração a geração, uma verdadeira migração em ignotas praias de aventura. O verdadeiro benefício da locomoção é ser perigosa e necessita de ha
bilidades para advertir dos males. É de esperar, portanto, que o futuro revele perigos. É próprio do futuro ser perigoso. E está
entre os méritos da ciência equipar o futuro para os seus deveres. As prósperas classes médias que governaram o século XIX deram valor excessivo à placidez da existência. Recusaram-se a enfrentar as necessidades de reforma intelectual imposta por novos conhecimentos. O pessimismo da classe média sobre o
futuro do mundo veio de uma confusão entre civilização e segurança. No futuro imediato, haverá menos segurança que no passado imediato, menos estabilidade. Deve-se admitir que há um grau de instabilidade incompatível com a civilização. Mas, em conjunto, as grandes épocas foram épocas instáveis.
Esforcei-me nestes capítulos para dar um registro da gran
de aventura na região do pensamento. Nele participaram todas as raças da Europa ocidental. Desenvolveu-se com a lentídão
de um movimento de massa. Meio século é a sua unidade de tempo. O relato é a epopéia de um episódio na manifestação da razão. Narra como determinado rumo da razão surge em
uma raça pela longa preparação de épocas antecedentes, como
depois do seu nascimento o seu assunto gradualmente se desdobra, como atinge os triunfos, como a sua influência condicio
na os verdadeiros surtos de ação da humanidade e finalmente como no momento de supremo triunfo as suas limitações se re
velam e pedem renovação do exercício da imaginação criadora. A moral da história é o poder da razão, sua influência decisiva na vida da humanidade. Os grandes conquistadores, de Alexandre a César e de César a Napoleão, influiram profundamente na vida das gerações subseqüentes. Mas o resultado total dessa
I 254 I
I A CI~NCiA E O MUNDO MODERNO I
influência apouca-se em insignificância, se comparado com a integral transformação dos hábitos e da mentalidade humanos produzidos pela longa linha de homens de pensamento de Tales aos nossos dias, homens individualmente sem poder, mas ao cabo os que dirigem o mundo.
•
I 255 I
íNDICE REMISSIVO
Ab-ruptude (em Ingressão), 21 1,212 Absoluto, 0, 120 Abstração, 195s. Abstração (na Matemática), 35s. Abstrato, 197 Aceleração, 66 Acontecimento, 955.,1255. Acontecimentos vazios, 191 Alemanha, 59 Alexander, S., prefácio (p. I I) Algebra, 47, 48 Ampére, 127 Anselmo, santo, 77 Aquino, santo Tomás de, 22, 23,183 Argumentos (da função), 48 Aristóteles, 18, 20s.; 21, 26, 46, 64, 66,162,168,210 Arnold, Matthew, 107 Arquimedes, 18, 19;20s. Arte, 244, 245 Arte medieval, 28s. Aspecto,92, 132s. Aston, F. w., 229 Atividade substancial, 137-138, 157,205 Atomo, 128, 129 Atualização, 198
Bacoo, Francis, 21, 58; 59s.; 87,124 Bacon, Roger, 18 Belisário, 29 Bento, são, 30 Bergson, Henri Louis, 70; 183s. Berkeley, George, 88, 89s.; 99,112,177
I 257 I
.. ~ ... =y
"
"...-,'.
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Bichât, 128 Biologia, 59, 84, 132 Bizantino, Império, 28, 29, 30 Boaventura, são, 22 Boyle, Robert, 58 Bruno, Giordano, 13
Cálculo diferencial, 76 Cálculo integral, 46, 47 Campo fisico, 126 Carlyle,81 Cervantes, 58 Chaucer,31 China, 19, 100 Circunstância imediata, 42, 62, 63 Clairaut, Alexis Claude, 81, 173 Classificação, 46 Clough, A. H., 108 Cognição, 91, 189 Coleridge, 108 Colombo, Cristóvão, 31, 52 Componentes, 206 Conectívidade, (de uma circunstância) 210 Conexidade (de uma hierarquia), 208 Configuração, 135 Conservação de Energia, Física 129 Continuidade, 128 Copérnico, Nicolau, 13,31,58,166 Cosmas, 224 Cromwell, Oliver, 32
D'Alembert, 77, 81 Da Vinci, Leonardo, 61 Dalton, John, 128, 129 Darwin, 232 Deformação orgânica vibratória, 166 s. Demócrito, 128 Demos, R., 11 Densidade, 69s., 169 Desargues, 75 Descartes, 33; 47s.; 49, 58; 97,107, I 77s.; 238s. Destino,24 Determinismo, 103 Direito romano, 25, 29 Distância, 155
I 258 I
I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I
Divindade, Escolástica, 26 Divisibilidade, 159s. Duque de Alba, 14 Duração, 113; 1345s.; I 52s.; 167s.; 189
Educação, 243s. Egipcios, 29, 47 Einstein, 24, 46, 82, 84,156 Elemento primordial, 54, 55 Elétron, 53s.; 104,; l65s. Época, 159 Espacialização, 70, 159, 185 Espaço fisico, 126 Ésquilo,24 Essência, 157 Essência individual, 197s. Essência relacional, 198s. Éter, 165 Euripides,24 Evolução, 120, 129s. Existência descontínua, 54; 170s. Explicação mecânica, 32 Extensão, 159
Falácia da concreção deslocadaJ 71s.; 78 Faraday, 127 Fermat, 75 Filosofia, 113 Filósofos jônicos, 20 Fisica, 59 Força, 64s. Forma, 205, 87 Fourier, 81 Francisco de Assis, são, 228 Frederico, o Grande, 84 Freqüência, 163s. Fresnel, 127 Frost, Robert, 31 Futuro, 218, 219
Galileu Galilei, 14,20,22,26,47,49; 58s.; 84,147,168,226 Galvani,84 Gauss, 82, 84 Geometria, 37s. Gibson, 184
I 259 I
•
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Giotto,31 Gravitação, 65s.; 155 Grêcia, 195. Gregório Magno, 30, 233 Gregorovius, 233
Harvey, 58, 59, 61, 62 Heath, SirT. L., 162 Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 45 Henry James, 15 Hierarquia abstrativa finita, 208, 209 Hierarquia abstrativa infinita, 207, 208 Hierarquia associada, 210 Hooker, Richard, 23s. Hume, David, 16, 17, 50, 62, 71, 72, 77, 101, 182 Huyghens, 49, 58, 59, 226, 227
Idealismo, 85,117,118 Indução, 40; 61s. Ingresso, 93s.; 197 Invenção, 1245. Isótopos, 229, 230 Itália, 58, 59
James, William, 15, 178s.; 182s. Jorge 11, 88 Josê de Habsburgo, imperador, 84 Justiniano, 28, 29
Kant,50;88s.; 112, 129, 160, 173 Kepler, Johann, 20, 49, 58, 66
Lagrange, Joseph Louis, 81, 82 Laplace, Pierre Simon, 81, 129 Lecky, 25, 224 Lei Periódica, 129 Leibniz, Gottfried Wilhelm, 47s.; 51, 58, 87, 107, 177 Leis da locomoção, 655. Leis da natureza, 48; 136s. Limitação, 200s. Lloyd Morgan, II Localização simples, 68s.} 78, 89 Lock~John,47,50,58,84,89, 107, 177 Locomoção vibratória, 166 Lógica abstrata, 43
I 260 I
I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I
Lucrêcio, 128 Luta pela vida, 142
Macaulay, 249 Massa, 67, 131 Matemática, 20, 31; 35s. Matemática aplicada, 395. Matéria, 54; 59s.; 88, 13ls. Matéria (filosófica), 206 Materialismo cientifico, 33 Maupertuis,81s. Maxwell, James Clark, 8Is.; 127, 146 Mecanismo, 101 s. Mecanismo orgânico, ]05, ]37 Meio ambiente, 140s. Memória, 71 Menor ação (teorema), 83, 136 Mente, 74s. Mersenne, 49 Mêtodo da exaustão, 46 Michelson,147s. Mil!, John Stuart, 103 Milton, 101 Modo, 92 Movimento cientifico, 21 Müller, Johannes, 128, 129 Müller, Max, 160
Não-ser, 202 Narses,29 Newman, John Henry, 108, 225 Newton, 19, 20, 25; 47s.; 58, 59; 8Is.; 145, 146; 225s. Noção aritmêtica árabe, 465.
Objetivismo, 115, 116 Objeto dos sentidos, 93 Objetos eternos, 113s.; 132s.; I97s. Objetos eternos complexos, 206 Objetos eternos simples, 205, 206 Oersted,l27 Ordem da natureza, 16s.; 44s.; 57, 71 Organismo, 54s.; 59, 85; 105s.; 132, 133; 166s.; 188
Pádua, Universidade de, 59, 60 Paley, 100, 101
I 261 I
•
,
~-'''''-~'~' """=~
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Papado, 23, 29 Pascal, 58, 75 Passado, 218s. Pasteur, Louis, I 295. Pelágio, 234 Percepção, 94 Periodicidade, 49s. Perspectiva, 92 Petavius, 225 Pitágoras, 45s.; 48, 213 Platão, 20; 45s.; 162 Ponto de vista, 93 Pope, Alexander 10 I Possibilidade, 199 Preensão, 91s.; 185 Preensão sintética, 199s. Presente, 218s. Presente ilusório, 134 Primaz, 166 Processo, 95 Profissionalismo,24Is. Proposições falsas, 196 Propriedade modal do espaço, 86s. Propriedade separativa do espaço, 85, 86 Próton, 54s.; I 66s. Psicologia, 84, 96 Pusey,108
Qualidade, 72s. Qualidades primárias, 74 Qualidades secundárias, 74, 118 Quantidade extensiva, 160
Racionalismo, 23s.; 57 Ramsay, Sir William, 229 Rawley, Dr., 60 Rayleigh, Lord, 229 Realidade extrínseca, 133 Realidade intrínseca, 133 Realismo, 117s. Reforma, 21 Reiteração, 134s.; 1675. Relações externas, 199 Relações internas, 156, 157, 198s. Relatividade, 67, 68, 149s.
[ 262 I
IY
" ~;
i
II
I~ 1:-: L
I A CI~:NCIA E ° MUNDO MODERNO I
Responsabilidade moral, 1025. Retenção, 134 Revolta histórica, 21, 33, 57, 70, 136 Rieman, 82, 84 Roma, 30 Romanos, 19 Rousseau, 53, 88, ]23 Royal Society, 47, 71, 72 RusseIl, Bertrand, 193
Santo Agostinho, 234 Sarpi, Paul, 22s.; 34 Schleiden, 129 Schwann, 129 Seções cônicas, 46 Sêneca,25 Ser, 202 Shakespeare, 58 SheIley, 108; II Os. Sidgwick, Henry, I 77 Simultaneidade, 156, 159 Smith, Adam, 245 Safodes, 24 Southey, 249 Spinoza,Baruch,47,58,92, 107, 108, 158, 177,220 Subjetivismo, 114, 115 Substância, 72s.; 158 Superjecto,
Tecnologia, I 24sa. Tempo, 152s. Temporalização, ] 6] Tennyson, 101; 102s. Teologia escolástica, 26 Teoria mecanicista, 70 Trabalho virtual, 83 Tragédia, 24 Translucidez da realização, 212 Trento, Concílio de, 22 Trigonometria, 48, 49, 50
Universais, 197
Valor, 114; 20Is.; 220, 221 Vasco da Gama, 31
[ 263 [
·~t~-'7.
"
"
I ALFRED NORTH WHITEHEAD I
Velocidade, 645.; 1655. Vesálio, 13 Vibração, 1685. Vida, 59 Vitalismo, 104, 131, 132 Volta, 84 Voltaire, 59, 77, 130
Walpole,84 Walt Whitman, 31 Washington, George, 84 Watt, James, 123 Wesley, John, 88 Wordsworth, 31; 1015.
Young, Thomas, 127
Zenão, 1605.; 1 72
h "'" eco dos I. ~ III',OS
1 #0 . a.; c 1719
(OS7)3;:ara, "109
....... " 78.7~4 ) tO"til~ÓttO::II~'os.tO/J1 4
v'"rf%. t OIt/
t.---' t_'
J !
t 7;
~
1264 I