a estrutura radial num poema de mário faustino

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A estrutura radial num poema de Mário Faustino Author(s): Antonio Manoel dos Santos Silva Reviewed work(s): Source: Luso-Brazilian Review, Vol. 20, No. 2 (Winter, 1983), pp. 258-274 Published by: University of Wisconsin Press Stable URL: http://www.jstor.org/stable/3513411 . Accessed: 22/05/2012 08:24 Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at . http://www.jstor.org/page/info/about/policies/terms.jsp JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected]. University of Wisconsin Press is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Luso- Brazilian Review. http://www.jstor.org

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A estrutura radial num poema de Mário Faustino

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Page 1: A estrutura radial num poema de Mário Faustino

A estrutura radial num poema de Mário FaustinoAuthor(s): Antonio Manoel dos Santos SilvaReviewed work(s):Source: Luso-Brazilian Review, Vol. 20, No. 2 (Winter, 1983), pp. 258-274Published by: University of Wisconsin PressStable URL: http://www.jstor.org/stable/3513411 .Accessed: 22/05/2012 08:24

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Page 2: A estrutura radial num poema de Mário Faustino

A estrutura radial num poema de Mario Faustino

Antonio Manoel dos Santos Silva

Referindo-se a Marginal Poema 19 de Mgrio Faustino, Benedito Nunes, apos considera-lo, junto com Cavossonante Escudo Nosso, uma

aplicagao pessoal e renovada da tecnica de Un coup de des, afirma:

Encontramos aqui uma estrutura radial e contlnua, cor nucleos semdnticos bem demarcados (Sexo-plexo, peixe-sexo-eixo-nexo- deixa-queixo), nos quais assentam as correspondencias que se estabelecem de bloco a bloco ou de estdncia a estdncia, numa complicagao crescente, que da ao poema a aparencia de um uni- verso em expansao, de um cosmos que se formou. (Nunes 2, p. 25. As citagoes pertencentes a textos de Mario Faustino remetem a esta edigao. Marginal Poema 19 encontra-se em pp. 142-146).

Se buscarmos os elementos formadores dessa estrutura radial, verificaremos algo diferente no texto faustiniano, cujos nucleos sao estes: seixo, plexo, peixe, sexo, eixo, nexo e queixo. E as razoes para propormos tal esquema de base firmam-se na consti-

tuigao lingulstica do poema, mas se fundam tambem na intuicao a respeito do manejo livre e moderno de uma forma tradicional, sendo que algumas delas foram acolhidas apesar do perigo de raiarem ao impressionismo crftico.

Benedito Nunes, talvez nao ele mas o impressor, coloca, na ponta inicial de seu modelo interpretativo, o vocgbulo sexo;1 no

poema, essa posigao vem ocupada por seixo. No esquema dele esta incluldo tambem o vocgbulo deixa, enquanto nos o marginaliza- mos da estrutura radial, uma vez que se desvia da classe dos outros elementos e do princfpio rltmico de alternacia s6nica estabelecida no decurso textual:

Luso-Brazilian Review XX, 2 0024-7413/83/0258 $1.50 ? 1983 by the Board of Regents of the

University of Wisconsin System.

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Santos Silva

Grafico 1

*----[ pi - ek

,[ p - ey - % ]

-----[ s

---- n

- Ek s

- kis - k s - ]I

>[ k - eys - i ]

Por outro lado, as estdncias demarcadas com esse vocabulo assemelham-se entre si por sua materialidade fonica, excegao feita a ultima, iniciada por queixo, bem menor, o que nos lembra nitidamente a estrutura classica da cancao. Inclufssemos deixa como um dos destaques, nao s6 aceitariamos um desvio rftmico nao motivado, como tambem diluirlamos a alternancia e ate a provavel ligacao cor a forma convencional possivelmente mobilizada.2

Os vocabulos da estrutura radial determinada por nossa leitura a partir da oferecida por Benedito Nunes ficam sendo, portanto, os sete indicados: seixo, pZexo, peixe, sexo, eixo, nexo e queixo. Caracterizam-se como radiais por ocuparem uma posicao rftmica equivalente-inlcio de cada grupo de versos ("estancias ou blocos"), por se isolarem como unidades fbnicas por intermedio da espacializagao, e por pertencerem a mesma classe gramatical, manifestando-se com identicas categorias flexionais. Em fungao deles, o poema pode dividirse em dois grandes conjuntos: quatro blocos seguidos de tres.3

- id ------- I

II I I I I I I I I I I I- - - - -- I

II I I I I I I I I I I I t-- - --

259

,[ s- eys - i ]

- i ]

+[ - eys - [ ]

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Luso-Brazilian Review 20:2

Observando preliminarmente que a alterndncia sonica estabelecida com as palavras radiais suporta o liame entre os diferentes blocos, vamos analisar cada um deles segundo a ordem com que se sucedem.

0 primeiro desponta com o vocabulo seixo:

seixo refZetido no dorso o decurso

voZutas revoZta entre cauZes

bolhas, foZhas deposito de sombras

huZhas buZhas

por que temes o mar; por que nao temes o carvao que eZe forma; por que temes--?

a noite foi-se; a moita, a foice a tua lua! e vossa rosa!

arroz aZaga os campos ampZos o campo largo; o lago e amnp o; e peZos pelos do cao do chao um arrepio

As dezessete linhas livremente dispostas apresentam-se corn certa ordem grafica que possibilita a divisao do bloco em tres grupos, conforme a posigao relativa r margem usual: o primeiro, em posigao normal com extensoes escalonadas, estg constituldo pelos oito "versos iniciais," metricamente diversos; o segundo se forma cor os dois versos seguintes, perfeitos hendecassflabos bimembres, visualmente marcados por sangria menor; mais recuado ainda, em sangria maior, ha um terceiro grupo constitufdo de sete linhas, apoiado em unidades mel6dicas pentassilabicas, cor uma variagao decassilgbica, proporcional a base. A massa sonora tambem permite distinguir aT tres grupos diferenciados.4

Assim, nas oito linhas iniciais, a par de outras presengas menos impressionantes, chama atengao o reiterar de sequencias sonicas, as vezes determinadas por comutagao, as vezes por acrescimo, as vezes por diminuigao e ate por permuta. No segundo grupo, a reiteragao se faz com a sequencia sintagmatica por que temes. No final, a marca dominante esta na sucessao de segmentos paronomasticos, alguns dos quais entrelagados.

Desses tres grupos, o mais complicado e o dos oito versos iniciais, nao s6 porque podem reduzir-se a quatro, mas porque sua organizagao nominal o aproxima de uma descrigao impressionista de onde houvessem sido retirados elementos sintgticos importantes. A organizagao caotica, levemente atenuada por poucas coesoes sintagmgticas-sendo, mesmo estas, ambiguas em sua sintaxe, corn excegao de dep6sito de sombras-da forma a imagem de um mundo elementar, em caos e em movimento, imagem que se depreende de lexemas como decurso, voZutas revoltas, boihas, foZhas, depssito de sombras, huZhas e bulhas.

A esta descrigao polifonica sucede, no segundo grupo, um

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registro dialogico de forma problematica: os elementos lin- gulsticos revelam-nos um interlocutor (segunda pessoa) e pres- supoem a presenca de um eu poemgtico a indagar sobre o sentimento do temor cujo objeto se simboliza por mar (por que temes o mar?). SPmbolo amblguo em sua propria raiz referencial, mar concentra no poema duas significagoes para o sujeito indagador: a temida e nao temida pelo interlocutor.5 Essas duas significacoes, suspensas na aparencia, fazem-nos reler o grupo de oito linhas antecedentes. Seixo assume entao duas faces: a de dinamicidade-associavel a imagem de criagao e vida, de regeneragao pelas aguas, e a de estaticidade-associavel a imagem de destruigao ou morte, respectivamente expandidas nos versos 2 a 5 e 6 a 8.

0 terceiro grupo de linhas combina narracao, descrigao e diglogo, na expressao figurada de um complexo mundo de nascimento e morte, fim e renascimento, cont?nua transformagao da natureza. Dois s'mbolos centralizam esses sentidos: foice e arrozal; o primeiro se desdobra, por combinacao, em dois outros: de

destruigao, por liame com a tua lua (desde que Mario Faustino esteja empregando o termo segundo o que costuma fazer em todos os outros poemas), e de perfeigao criada, por liame com vossa rosa. A imagem do arrozaZ, por sua vez, alem de ligar-se semanticamente a foice e paronomasticamente a rosa (vossA ROSA, ARROZ AZaga), se

predica, visionariamente, como Zago e, por extensao, como campo. Nao precisamos destruir essa linguagem poetica traduzindo-a em arrozal tao ampZo que se parece com um imenso Zago cobrindo o

campo ou em imenso campo coberto por arrozal pronto para a ceifa ou ainda em depois de rogar as moitas, plantou-se wn arrozaZ que cobre o campo, agora semelhante a umn ago ou em outras parafrases mais. A linguagem do poeta sintetiza mais que todas as traducoes, como acontece com a ultima visao, animizadora esta, por meio de metafora zoomorfica, do mineral: pelos pelos do cao do chao, completada com o vocgbulo arrepio, fim do primeiro bloco e ponto de passagem semantica para o bloco iniciado com plexo.

Antes de prosseguir, convem reorganizar nossas observagoes. Tomando como fndice a espacializagao das linhas, chegamos a uma

divisao fonica do primeiro bloco em tres partes diferentes. Diante dessa estdncia tripartida e fragmentgria, oscilamos entre varias interpretacoes. Em arriscada escolha, preferimos encarar o vocgbulo seixo como slmbolo de um microcosmo, qualificado tanto como dinamismo germinal, caotico e vegetal, quanto como espago mineral e estatico e resultado de destruigao (dep6sito de sombras). Tal imagem inicial, descrita objetivamente, segundo a referenciali- dade da nao-pessoa, vem posta sob indagagao pela personagem poematica, e isso por meio de outra referencia simb6lica, mar, visto simultaneamente como portador de destruigao ou morte e como elemento de regeneragao, desejavel e indesejgvel. Mas o eu se indaga (ou indaga a outro ser) sobre uma opcao desejada, su- bentendida na interroga$ao, ora com marca negativa, ora sem. Finalmente, o mundo se amplia (noite, lua, compos ampZos); a imagem de destruigao, oposta ao do movimento ou fluxo, dg lugar a da revivificagao, a de uma vida em que o vegetal se organiza como lugar humano e o mineral se animiza; semelhante expressao

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visionaria inscreve-se nos sfmbolos do arrozal e do chao metafori- zado em peZos, metafora por sua vez do campo cultivado e vingado.

* * *

A organizagao fonica serviu-nos, depois de lermos os indices visuais, para orientar-nos na determinagao de tres momentos sig- nificativos do conjunto iniciado pelo vocabulo seixo. Analoga tripartigao encontra-se no bloco iniciado com a palavra plexo:

plexo de nervos entre linfas arestas vibrat6rias

radios, femures por que temes o refluxo do mar na vidraca? "e preciso comprar tambem bilhetes de saida" -e fiZetes de sangue sobre o lombo da fera:

um arrepio e passa um p6ssaro

um pio e pelo fio

passam-se as asas:

espada e pdssaro; as suas asas; suas, azuis; asas mais alas; mas o

Neste bloco, os quatro "versos" iniciais se caracterizam por apoiar-se em seqiuncias jamubico-peonicas, abracadas por troqueus, por razogvel variagao vocglica e certo relevo consonantal de vibrantes. As cinco linhas demarcadas por sangria menor mostram o predomfnio de clausulas anap4sticas, com encaixe de uma linha trijambico-peonica (comPRAR tamBBM biLHEtes de salda). A terceira faixa significante deste bloco ap6ia-se em clgusulas metricas pentassilgbicas e numa combinagao de grupos-de-forga onde ressalta o jambo; mas o que chama atengao maior e a espessura sonica gerada por repetidas e distintas paronomasias, cujo apice ludico esta no verso final.

Outra vez, em correlagao paralellstica corn o primeiro bloco, este, iniciado por plexo, tambem se caracteriza, no primeiro momento, pela polifonia predominante e pela descriCao nominal; no segundo momento, pelo discurso dial6gico e por estilo mesclado;6 e no terceiro momento, pelo retorno ao estilo do primeiro do qual se diferencia por trazer leves nexos sintaticos.

Quanto ao sentido, o vocgbulo plexo associa-se ao bloco anterior que terminara cor arrepio-que repercute semanticamente no sintagma arestas vibratorias. Mas a palavra plexo comporta tambem o sentido simbolo-esoterico de centro de vitalidade, pois seus determinantes projetam a imagem conceitual de um corpo energetico a fluir e a ser atravessado por um fluxo de forga. Na segunda fase deste bloco, com o retorno do diglogo, retorna igualmente o motivo do temor ligado ao do mar; se ligarmos as tres frases, veremos que funcionam como correlatos objetivos do sentimento de receio frente

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a morte. Finalmente, na terceira fase, nos defrontamos com os sTmbolos do p6ssaro e da espada, sugeridores da oposigao entre ansia de infinitude ou liberdade e ameaga de anulagao.

Antes de passar para o terceiro bloco, hg que atentar para os seguintes detalhes de composicao: as sete linhas finais do segundo bloco significante estao em estreito liame, apesar da distancia sintatica, cor as sete linhas finais do primeiro. Alem do jogo paronomastico predominante num e noutro, notamos, antes de tudo, o fato de um arrepio, que finalizara o primeiro bloco, iniciar o estggio final do segundo; depois, o fato da proximidade semgntica de vocabulos como foi-se e passa, foice e espada; e finalmente, como conseqiencia dessas semelhancas, o fato da reiteragao de sfmbolos zoomorficos dados pela mudanca de cao para p6ssaro. Ora, e isto valera para todo o poema, esta relagao per- mite uma leitura dos estagios finals de cada bloco, corn a operagao da elipse dos dois estagios anteriores, o mesmo se aplicando se pegarmos cada um dos outros dois estggios-o inicial e o medial- dos diferentes blocos.7

0 vocabulo peixe marca o inlcio do terceiro bloco:

peixe sob os raios de luz, raiz de treva, rastros de dente-de-epadarte, resto memoria de alimento por paus e pedras perto do Zimite inferior das ondas mais pesadas proibido

passar acima, aonde e Zeve o ar do dia proibido

nao temer a jauZa aberta nao temer jaula fechada temer a jauZa

abaulada a jaula, a jaula, as alas:

aZa azuZ a cor, a cor azuZ, acorda!

azuZ, o

Este, como os anteriores, se apresenta tripartido, com iguais indices de espacializagao das linhas poeticas: as nove primeiras comegam na margem normal, com a peculiaridade do distanciamento medial que se observa na antepenultima e na ultima; as quatro seguintes, com uma cunha nos dois primeiros "versos" e escalona- mento do quarto, destacam-se por sangria menor; as quatro ultimas, com escalonamento, vem em sangria maior.

0 primeiro momento alia uma base metrica hendecassilgbica com clausulas trissTlabas e outras elementares; a grande variagao de m6dulos intensivos nao esconde al o predom?nio de segmentos anapesticos e jambicos; sonicamente ha convergencia para vibrantes e oclusivas e para as vogais /a/, /e/ e /i/. Alem de certas aproximagoes (raios - raiz, rastro - resto, pedras perto, ondas - aonde), ganha relevo a repetigao de proibido, ja destacado

Santos SiZva 263

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espacialmente pelo afatamento medial. 0 segundo momento baseia-se na reiteracao dos vocabulos temer e

jaula, mais este do que aquele. Nao passa despercebido tambem o equillbrio rftmico estabelecido entre as seis clausulas visualmente destacadas seja pela cunha, seja pelo escalonamento.8 No terceiro

momento, sempre de modo paralelo com os momentos equivalentes dos blocos anteriores, volta a predominar a paronomasia.

Tambem aqui, o primeiro momento esta construido em forma de

descrigao caotica, tornando mais complexas as imagens do peixe, ser dos mundos inferiores e profundos (sob os raios de Zuz / raiz de treva, perto do timite inferior das ondas mais / pesadas e proibido passar acima), mas ao mesmo tempo fugidio (rastro de

dente-de-espadarte) e imagem de um salvador ou regenerador ja passado (resto/memoria/de aZimento por paus e pedras). No segundo se presentifica outra vez o discurso dialogico em torno do temor, com as oscilagoes modais (nao temer, temer) diante do mesmo objeto (jaula). No terceiro, retorna a descricao, agora opondo sfmbolos relativos ao aprisionamento (jauZa) e a liberdade ou ascensao dinamica (aZa).

Chegamos assim ao quarto bloco significante:

sexo de multivalves ostras boquirrotas de monte aberto nao hd tempo para explicar-te,vai-te,volta as doze mas, e a porta trancada mas, e a rua impedida mas, e o vermeZho o verde a barricada

a cor azuZ corvo que solta o soZ,a corda azul --este horizonte a Zeste!

a hora, a zona a peste...

e a zorra terra zombando a Zua o queijo, a queda

o beijo o

Este repete a estrutura tripartida que vimos assinalando com base nos sinais graficos de leitura. Sua primeira fase compoe-se da linha-vocgbulo introdutoria, sexo, mais dois versos ritmicamente jambicos. Sua segunda fase gira em torno de segmentos mel6dico- metricos pentassilabicos que sao o princfpio dominante, ressaltando- se al tambem a reiteragao anaforica de mas nos tres versos mediais. Assim, como acontecera nos tres blocos anteriores, a terceira fase deste bloco se caracteriza por maior espessura fonica, agora conseguida por meio de rimas nascidas de comutagoes que atingem palavras colocadas em posigoes diversas: Zeste - peste, queijo -

beijo; ainda ha as paronomasias: a hora, a zona (...) e a zorra terra zombando, a cor azuZ (...) a corda azul.

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Em paralelo, sempre com modificagoes individualizadoras relativas aos blocos precedentes, este tem sua primeira fase-tres linhas iniciais-marcada pelo discurso descritivo; suas referencias sao sfmbolos da sexualidade feminina. A segunda fase, como num pequeno drama ressaltado pelas oposig6es, grava-se pelo discurso dial6gico, direto e contlnuo, em que se insinuam ideias de conflitos coletivos, de oposigoes polltico-ideologicas, de circunstancias im- peditivas ou de c6digos de restrigao. A terceira fase retorna, como sempre, a descri9ao, com uma ressalva agora: mescla-se com lendas (a da raposa e a do corvo) que se superpoem a representagoes de atos cosmicos. Em todo caso, somando-se al ainda signos de sugestao sobre o desamparo humano e indfcios de aniquilagao e esperanca, as imagens voltam a apontar para uma especie de ampli- tude espacial como se viu nos finals dos outros blocos.

Ate este ponto do poema, os conjuntos significantes subdividem- se em tres momentos (ou fases) cada um. A partir de agora, sem anular as possibilidades de leitura que ja apontamos,9 a organizagao sera diferente. Portanto, podemos parar aqui e assinalar os elementos gerais da anglise ate agora empreendida.

Temos quatro blocos. Tomando os elementos introdutorios, verificamos que eles se cruzam: seixo forma, pela identidade dos fones medialmente situados, uma linha axial com peixe, enquanto que pZexo, pelos mesmos motivos, se liga com sexo, estabelecendo outra linha. Neste sentido ha um cruzamento que, na ordem de leitura seguida por n6s, se manifesta como alterndncia, princfpio de composigao que continua pelo resto do poema. Entretanto, noutro sentido, os blocos se fecham: peixe se liga com pZexo pela identidade de seus fones iniciais, enquanto, por semelhante equivalencia, seixo se liga com sexo.

Verificamos tambem que o segundo momento de cada bloco se exprime por meio de um discurso dialogal, centralizado sobre o temor ou impedimento, medo ou restrigao. Verificamos ainda que cada bloco tem, como fases inicial e terminal, a descricao. Todos os quatro comecam caoticamente, sendo que no eixo de seixo-peixe sao mostrados nominalmente seres cuja aparencia luminosa esconde uma forga ambigua, enquanto que no eixo de plexo-sexo encontramos a ideia de centro de vitalidade somada a de energia nervosa e aspera. As fases terminals, com predomlnio de paronomasias, sao descrig6es que implicam ideias de infinitude ou amplitude: a do primeiro e a do quarto blocos, uma amplitude c6smica, as duas outras, um movimento ascensional. Se nos fosse possfvel formular um grafico que tentasse a visualizagao dessas relacoes, complicar- nos-lamos. Mas, aceitando o risco da imperfeicao inerentes a tais tipos de tradugoes por tragos, sugerimos o que segue:

Santos SiZva 265

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Grtfico 2

seixo

sexo

peixe

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Vale percebermos que no centro de intersecgao dos quatro blocos, suas segundas fases, temos sempre um processo dialogal; que, nas margens, temos descricao, sugerindo um fechamento para esta primeira parte. Entretanto, o poema continua gragas ao encadeamen- to sintagmgtico de um bloco para outro. Se na passagem do primeiro para o segundo deles, encontravamos um encadeamento por meio do associagoes semdnticas (wn arrepio / plexo), na do segundo para o terceiro, o encadeamento por meio da ligagao gramatical (mas o / peixe), que tambem se verifica na passagem do terceiro para o

quarto (azuZ, o / sexo), na passagem do quarto para o quinto bloco -portanto, da primeira para a segunda parte, havera o seguinte nexo: o beijo o / eixo.

A espacializagao do quinto bloco indica-nos tres fases, que nao sao iguais as existentes nos quatro que acabamos de analisar. A

primeira, iniciada com eixo, comega na margem normal; a segunda encaixa uma sangria de dez espagos dentro de conjuntos com sangria de cinco; a terceira, em sangria de dez espagos, com verso escalonado inserto, termina o bloco. Se quisermos, podemos ler ainda seis pequenos momentos distintos:

eixo celeste vibraqao contra a coluna tronco de vertebras tronco de trevas ronco terrestre

aqui formam-se as explos6es que franzem sobre cenhos e pregam pregas acidentes entre Zlbios cerrados, rosto e crosta-

precisava de ti mas onde estavas precisavam de mim mas onde estava

o beijo e as verdes uvas salvando sua parreira-

tu vertes parras, sem eira nem beira; sem, sem e nem; semente; nem sentes nem mentes-

as uvas e as Zuvas alvas da nuvem

-diz-seque e dia- e dia e pias ave enganada negra mas tarta gana mas muda; a tartaruga-

Percebe-se, mesmo que se desprezem os travess!es (?ndices grgficos de encaixes ou explicativos ou dialogais), certo arredon- damento f6nico em alguns desses momentos menores. Ficaremos, todavia, corn as tres fases maiores ja apontadas.

Dois fatos de construcao do significante salientam-se na

Santos Silva 267

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primeira fase (cinco linhas iniciais): o predomlnio de clgusulas pentassilabicas com esquema acentual

/ /

e o fechamento sonoro estabelecido na relagao entre celeste e terrestre, nas rimas parciais vocalicas de vertebras e trevas, nas reiteragoes e similitudes s6nicas presentes em contra, tronco e ronco.

A segunda fase se distingue da primeira por sua maior variabili- dade rftmica, ainda que, na organizagao intensiva, predominem jambos e anapestos, na metrica, a extensao hendecassilabica e, no nfvel dos fones, uma gradagao, realizada na combinagao entre vibrantes e oclusivas surdas que vao cedendo lugar para o pre- domfnio das nasais.

A terceira surge com a presenca marcante do princlpio da isor- ritmia, com acento necessgrio em quarta sflaba, domlnio de clausu- la pentassilabica em suas duas vertentes intensivas principais:

/ / e

/ / _

afora o primeiro verso (as uvas e as luvas) com metrica e ali- nhamento de intensidade diferentes.

Nesta longa estancia, a primeira fase e nitidamente descritiva, com enumeraqao nao caotica; os voclbulos eixo, coluna, tronco e vertebras sustentam-se pelo mesmo no semdntico (apoio e verti- calidade, por exemplo). Outro elemento de equivalencia esta na relagao estabelecida entre vibraqao e ronco, que poem em contato dois termos opostos, opostos ate por sua posigao: ceZeste e terrestre. Importa salientar ainda que esta primeira fase recolhe, com sua descrigao, imagens disseminadas pelas quatro fases iniciais dos blocos precedentes. Assim, celeste vibraqao contra a coZuna reune em si algumas unidades mlnimas de sentido existentes em voZutas/ revoltas entre caules e em arestas vibrat6rias; a expressao tronco de vgrtebras repete elementos semanticos encontraveis em pZexo / de nervos entre Zinfas / arestas vibrat6rias; tronco de trevas, de maneira semelhante, liga-se com deposito de sombras e, mais diretamente, com raiz de treva; ronco terrestre aproxima-se da imagem vulcdnica monte aberto. Mas, acima dessas recolhas, verifica-se que todo o complexo imagetico deste primeiro momento conduz a configuragao de um ser humano.

A segunda fase combina descrigao, diglogo e narragao. Nela se sucedem representagoes do medo e da interdigao, do conflito e da aus&ncia indesejavel, da aspiragao e da indiferenga. Recolhem-se, portanto, alguns motivos aparecidos anteriormente, alem das figuras dos interlocutores e da personagem da fgbula (raposa). 0 mesmo acontece com a terceira fase, na qual vemos repetirem-se os motivos de tres fabulas de Esopo, duas das quais jg ocorridas e outra nova. Reaparece tambem o s?mbolo da ave (e dia e pias / ave enganada), assim como reaparece o de espago celeste e inatinglvel, este gragas

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a uma sutil transformacao metaforica de motivos tradicionais: as uvas e as Zuvas / aZvas da nuvem.

0 quinto bloco termina com a nomeacao de uma personagem de fabulas de Esopo: a tartaruga. A esta nomeacao se segue um sugestivo travessao que funciona como instrumento mediador entre o

quinto e o sexto blocos. Este parecerg, em virtude desse ndice nexivo, uma expansao relativa ao vocabulo que o antecede.

* **

Ao contrgrio dos outros, o sexto bloco nao apresenta sangrias que nos permitam perceber imediatamente momentos diferenciados em seu interior. Apresenta, sim, como nos outros, versos escalonados e, igualmente, relevos visuals proporcionados pelo maior espagamen- to grafico entre algumas linhas poeticas. Sem embargo, torna-se possfvel determinar algumas orientagoes composicionais no nlvel das combinagos fonicas. Para percebe-las procederemos, como vimos fazendo ate agora, com uma transcricao preliminar do texto:

nexo tremendo entre paZavras de vulcao e boquiabertas

neves eternas deixa que a voz se cale e sinta-se fluente fossil flexivet

roZado no sal sujo da mare curva

maos torcidas vertentes retorcidas

torso mole privado de coZuna "um maZ sem gravidade"

sem gravidade caido sobre o peito o morto

As quatro primeiras linhas deste bloco destacam-se como pequena unidade gragas a recorrencia de alguns elementos comuns ou cruzados. Tomando as vogais no seu ponto de maior nitidez encontramos a pre- domindncia do /e/; na seqiencia consonantal sobressaem as oclusivas e llquidas e, dentro dessa ocorrencia, a combinacao de dentais e vibrantes.

As cinco linhas seguintes apresentam-se com maior variabilidade sonica mas nao deixam de contrastar com as quatro anteriores. Podemos ve-las, pois, em funcao deste contraste, como um momento a parte, o que se pode comprovar, em primeiro lugar, pelo exame da seqiuncia vocglica intensivamente marcada e, depois, pela obser- vagao do fato de que, na ordenagao consonantal, sob a grande variedade, predominam as fricativas sobre as oclusivas e as laterais sobre as vibrantes.

Da individualidade para a constituigao f6nica dos versos restantes, a reiteragao de segmentos inteiros. Primeiro, ha segmentos longos que sdo /toRsidas/ (em maos torcidas/vertentes

Santos SiZva 269

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retorcidas) e /seygravidadi/ (em sem gravidade) e, depois, outras

reiteragoes que interligam as diferentes linhas: /toRs/, em torcidas, retorcidas e torso; /oR/ em torcidas, retorcidas, torso e morto, /id/ em torcidas, retorcidas, gravidade, cafdo; /Rt/ em vertentes e morto, e finalmente, /I/ em vertentes, sem, sem. Essa tessitura cruzada de sons inter-relaciona todos os elementos.

Dizlamos que este sexto bloco esta precedido pelo travessao apos a referencia a tartaruga. Isto nos leva a uma leitura que ve em todo o decurso do bloco uma explicagao desse lexema antecedente. Mas ha aqui vgrios estratos de significagao.

0 primeiro deles esta no discurso divislvel em tres registros: um expositivo-descritivo (primeiro momento), outro exortativo- dialogal (segundo momento) e outro, conclusivo e mesclado (dial6gico e descritivo). No primeiro recolhem-se motivos surgidos na primeira fase do terceiro bloco, embora a situagao semdntica seja nova; podemos associar boquiabertas com boquirrotas, vulcao e neves eternas com monte aberto. No segundo, repetem-se:

-- o motivo da mudez, que surgira no quinto bloco (gana mas muda - entre Zabios cerrados), no quarto (nao ha tempo para explicar-te) em ligacao, performativa ou nao, com o motivo da fala;

-- o motivo da interdigao que surgira no quinto bloco (pregam pregas acidentes), no quarto (a porta trancada - a rua impedida - o vermelho), e no terceiro (proibido/passar acima - proibido - jaula fechada - jauZa abauZada);

-- o motivo do fluxo contlnuo das coisas, que aparecera no primeiro bloco (o decurso / voZutas / revoZtas entre cauZes / bolhas, foZhas - o mar), no segundo (o refluxo do mar - passa um

passaro - passam-se as asas) e, entre outros; -- o motivo da iminencia da morte, que tambem se fizera

presente no primeiro, no segundo e no terceiro blocos. No ter- ceiro momento tambem encontramos a recolha concentrada de motivos surgidos nos blocos anteriores; assim por exemplo, o motivo da torcedura, que surgira logo no inlcio do primeiro bloco (voZutas / revoltas), o motivo da queda (presente no quinto bloco) e o motivo da axialidade (presente, explicitamente nos blocos primeiro e quinto e, implicitamente, nos outros).

Essa recolha de motivos nao pode ser descrita, porem, como una repetigao simples, ja que no sexto bloco as qualidades mudam. Vamos passar por cima da amostra dessas diferengas, a fim de considerar a sexta estancia como uma grande expansao orientada para o s?mbolo da tartaruga, o que nos e permitido por expressoes tais como fossil flexivel, maos torcidas, vertentes retorcidas e torso moZe privado de coluna.

Identificado o objeto simb6lico por meio dessas imagens conceituais de fundo visual, podemos agora, ficando ainda no plano das qualificagoes imediatas, avancar mais nossa observagao. Verificamos que esse ser vem caracterizado como elo (nexo) entre o som e o silencio, entre o semovente e o estgtico, entre a vida e a morte, como nos mostram, respectivamente, as expressoes: paZavras de vulcao// e boquiabertas/neves eternas - sinta-se fZuente // fossil fZexfveZ - torso moZe privado de coluna ...// caido contra

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o peito / o morto. Mas num nfvel mais profundo (se o simb6lico e o mftico puderem

ser assim considerados), este bloco suporta uma significagao mais complexa. Antes de tudo, a tartaruga vem descrita como ser que une, ou como instrumento de relacao. Verificar tal qualificaqao nao fica diffcil, porque se trata simplesmente de encontrar sinonimos para nexo. A dificuldade comega a partir mesmo da ralizagao gramatical cor o determinante tremendo. Este pode ser adjetivo, sintagmaticamente coeso e qualificador adjacente de nexo e cor os significados de "grandiosidade," "extraordinariedade" (horrlvel palavra) ou "sujeito atemorizante;" mas pode ser verbo em gerlndio, remetendo a um ser nem ativo, nem passivo, um ser intransitivo-"que treme," "que oscila," "instavel." Assim, o vocabulo, morfologicamente ambrguo, leva-nos a atribuir a nexo (por sua vez denominagao figurativa de tartaruga) duas ordens de sentido: a ordem ativa (que faz tremer) e a ordem intransitiva (que treme).

0 duplo sintagma circunstancial, entre palavras de vulcao / e boquiabertas neves eternas, tera sua significagao afetada pelo duplo sentido de nexo tremendo. Se interpretarmos a este como "ordem ativa," os sintagmas coordenados dentro do sintagma cir- cunstancial remeterao a sentidos opostos que se fundem pela forca ativa; se o interpretarmos, porem, como ordem intransitiva, os sentidos suportados pelos dois sintagmas coordenados conservam-se opostos e nos remetem as forgas que causam a instabilidade do ser em sua ordem intransitiva.

Lexicalmente, os constituintes de entre paZavras de vuZcao / e boquiabertas neves eternas levam tambem a dupla relagao: a metonlmica, existente entre palavras e boquiabertas e a antitetica, existente entre neves eternas e vulcao. Nesse nfvel, paZavras de vuZcao e boquiabertas neves eternas podem significar ura oposicao entre "linguagem efemera" e "linguagem perene." Tal oposigao se liga ao mito da invengao da cltara por Hermes. Assim, se tartaruga puder ser interpretada como s?mbolo mftico da cltara (e, por ex- tensao, da arte e da poesia, particularmente), duas gamas de senti- do serao aT possfveis: a arte como forga integradora do efemero e do eterno, ou, contrariamente, a arte (poesia) que se situa agonicamente entre um e outro, naquela especie de relagao que nos faz lembrar uma elucidativa passagem de outro poema de Mario Faustino, praticamente contemporaneo deste que analisamos:

Entre nome e fenomeno baZanqa nunca meu coraqao ("Cavossonante Escudo Nosso", p. 138)

Todavia, esta fica sendo apenas uma entre tantas das inter- pretacoes do slmbolo. Pode ser muito bem que paZavras de vulcao e boquiabertas neves eternas sejam sintagmas que estao a projetar a imagem da longevidade. Neste caso estarlamos em presenga de outros sentidos: tartaruga simbolizaria o homem (universal) que une o eterno ao contingente (se tremendo indicar a ordem ativa) ou que oscila entre o efemero e o absoluto (se tremendo indicar a

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ordem intransitiva). Provavelmente haja al uma interseccao de figuragoes simb6licas,

cujo resultado interpretativo dificilmente se reduz. Mas talvez o mais adequado seria ler tartaruga como sfmbolo de homem-poeta, en-

quanto realidade existencial oscilando entre (ou fundindo) o humano

concreto, a materialidade que evolui lentamente (longevidade da natureza), e o divino desejado (ou perdido), divino desejado que e a espiritualidade dinamicamente em evolucao.

No dialogo que se segue ao primeiro momento deste sexto bloco, a simbologia continua com sua duplicidade: voz se cale e sinta-se

fZuente e fossil flex~vel. Mas esta claramente orientada para o mito da criagao da cftara e para a representacao do homem como ralidade circunstancialmente determinada pelo fluxo contlnuo do

tempo: fossil fZexivel / rolado no sal / sujo da mare curva. Esse afunilamento do slmbolo em direcao da realidade existen-

cial humana se confirma no terceiro momento do bloco. Neste ha uma descricao, por sintagmas independents montados a maneira de

pianos cinematograficos, de gestos que deixam impllcita una his- t6ria de agonia (no sentido vulgar) de um ser humano destinado a morte. Dos signos de indlcio de um sofrimento atroz (mdos torcidas / vertentes retorcidas) passa-se para a visao de um corpo desprovido de seus sistemas de apoio (torso mole privado de coluna), em seguida para o falso diagnostico de doenga conforme a

linguagem direta e cotidiana (um maZ sem gravidade), dal para a sugestao (sfmbolo do descenso) e para a referencia a morte.

0 sexto bloco, nao podemos esquece-lo, constitui uma verdadeira

expansao relativa ao ultimo elemento surgido no quinto. Seu vocabulo final, como seu inicial, e gramaticalmente ambfguo, pois pode ser um nome-substantivo, o que nos permitiu a interpretagao acima, ou pode ser um nome-adjetivo, pela relagao que estabelece com o setimo e ultimo bloco:

queixo a tartaruga

a tartaruga se interroga: o tempo, o qua?

Somente tres linhas: um nome, um sintagma nominal, uma sen- tenga completa. Tres linhas sucessivas fonicamente arredondadas pela repetigao das sllabas terminais (queixo... 0 que?), dos sintagmas mediais (a tartaruga / a tartaruga) e de sflabas atonas. Tres linhas em que o vocabulo tempo se destaca por ser o menos reiterado em qualquer de suas seqiincias f6nicas, remetendo-nos assim ao tema central de todo o poema.

0 que da unidade ao texto de Marginal Poema 19 e exatamente a

indagagao do eu poetico, avatar da tartaruga mTtica, e que aspira a palavra humana mais perfeita, do eu poetico que balanga entre nome e fenomeno, entre essencia e existencia. Indagagao sobre o tempo, o tempo como fluxo. Ora, a forma de indagagao centraliza todos os blocos cor excegao da ata que a tudo sintetiza: e o dialogo sobre o sentimento do temor a respeito da fugacidade (sim- bologia do fluxo e do refluxo marltimos), e o diglogo sobre as in- terdigoes vigentes em qualquer epoca (simbologia do encerramento

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-jaula, porta trancada, rua impedida, lZbios cerrados) e e a exortacao sobre o silencio e o som, que rememora um dos motives blblicos condutores dos Cantos poundianos, tempus loquendi tempus tacendi (que a voz se cale e sinta-se fZuente).

Esse tempo, visto como fluir contlnuo, reitera-se nos primeiros e nos terceiros momentos de cada bloco, assumindo as vezes o aspecto imaginario de uma perenidade desejada. Mais ainda, ele esta, parece-nos, gerando a pr$pria estruturacao do poema, acumulativa de um lado, e de outro, interseccionada, com cada bloco penetrando em outro, f6nica, lexical, sintatica e semdnticamente, transforman- do em ondas que avangam superpondo-se e interpenetrando-se em seu perene movimento.

NOTAS

lEm seu primeiro trabalho sobre Mario Faustino, Benedito Nunes (1963:23) havia assinalado corretamente (portanto, o erro que apontamos se confirma como sendo do impressor), o seguinte eixo: seixo-p exo-peixe-sexo-eixo-nexo-deixa-queixo.

2Referimo-nos a cancao classica, classica e camoniana, com sua sequencia nem sempre regular de estrofes longas terminada com uma ata, estrofe menor, que serve de conclusao.

A subdivisao surge das formas de relaCao existentes na estrutura radial. Se existe uma alterndncia proporcionada pelos segmentos s6nicos mediais a ligar os sete blocos entre si, hg tambem uma distribuigao abragada entre os fones iniciais das palavras intro- dut6rias dos quatro primeiros blocos (seixo - pZexo - peixe - sexo), distinta da distribuigao livre e progressiva dos equivalentes existentes nas tres finais. Nao custa assinalar aqui para um sim- bolismo numerico subjacente. E nao devemos estranhar o fato no obra de quem se deixou influenciar por varios poetas ligados a esse tipo de simbologia e ao esoterismo. 0 simbolismo do nfmero 7 podera ser desdobrado aqui na expressao de duas ordens cosmicas: 3 + 4 (invertidas no poema em 4 + 3). Interessante verificar que a descriqao feita por Cencillo (1970:3) tanto da Heptada quanto da Trlada e do Quaternario serviriam como um dos tantos caminhos que se oferecem para a interpretacao de Marginal Poema 19.

4Contamos as sflabas metricas pelo sistema grave, e nao pelo agudo divulgado por Castilho e quase sempre seguido em nossos manuais. Chamamos de sangria ao afastamento do verso em relagao a margem normal.

5Esta interpretagao est, baseada em pressuposigoes e subentendidos determinados pelo estatuto lingufstico da pessoa; a personagem-inter- locutora nao precisa ser necessariamente distinta do sujeito, embora o seja enquanto fungao, quer seja interpretada como a "outra parte do eu"-o sujeito se vendo como objeto, quer seja interpretada como alteridade, como o interlocutor que e outra pessoa do discurso.

60 estilo mesclado, que esporadicamente se manifestara num verso de 0 Homem e Sua Hora (pp. 89-95), aparece geralmente nos segundos momentos deste poema. Entretanto, sua presenga maior, na obra de Mario Faustino, e sentida em Marginal Poema 15 (pp. 139-

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141), pela insergao de elementos coloquiais; pelo mesmo processo, mas nao com tamanha 8nfase, surge em Ariazul (pp. 151-153), Apelo de TeresopoZis (pp. 149-150), Moriturus salutat (pp. 147-148) e Soneto (pp. 135-136).

7Podemos ler o primeiro estagio do primeiro bloco e, saltando os outros, ler o primeiro estagio do segundo, prosseguindo sempre no mesmo estagio ate chegarmos ao fim do poema. 0 mesmo se pode fazer corn o segundo estagio de cada bloco. Resultado: tres poemas diferentes e interseccionados, formando o grande poema Marginal Poema 19. A despeito dessas possibilidades de escolha preferimos a que o poeta nos deu, acenando para as que ocultou.

8A espacializagao em cunha nota-se tambem em AriazuZ, na

seguinte passagem onde se encontram algumas expressoes que se

repetem em Marginal Poema 19:

constelado suicida no oceano: o ano

suscita wn outro ano ar de colina

eixo celeste vertebral coluna traodo pela brisa mastro mestre abandona a bandeira da baZanqa

9Veja-se a nota 7.

BIBLIOGRAFIA

Cencillo, Luis. Mito: semantica y realidad. Madrid: BAC, 1970. Nunes, Benedito. "A poesia de Mario Faustino." In Poesia de

Mario Faustino. Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1966. P. 25.

."0 projeto de Mgrio Faustino," Invengao - Revista de arte de vanguarda (Sao Paulo), No. 3, Ano 2 (1963). Pp. 20-35.

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