a vida de maria sabina

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     Relato autobiogr€fico de Maria Sabina,

    a S€bia dos Cogumelos Sagrados

    "Naquela tarde, vendo minha irm€estirada, pensei. que estivesse morta.

     Minha •nica irm€. N€o... ela n€o podiamorrer. Eu sabia que os meninos santos

    tinham o poder. Eu sabia que nossa gente

    os comia para curar doen‚as. Ent€o, tomeiuma decis€o; naquela mesma noite, eucomeria os cogumelos santos...

     Fiz a velada em que curei minha irm€ Maria Ana como os antigos mazatecos.Usei velas de cera pura; flores, a‚ucenas

    e gladƒolos...Queimei o copal num braseiro e com a

    f d f i i t

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    Alvaro Estrada

    f o€ i d a d eR ~ 1 1 ~ /as•biadoscogumelos

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    A VIDA DEMARIA SABINA

    A S‰BIA DOS COGUMELOSPOR

    ALVARO ESTRADA

    com cantos xam†nicosmazatecos, cantados por Mar‚a Sabina,traduzidos  para o  portuguˆs a partirda vers€o em castelhano feita  por

    Alvaro Estrada.

    ``i

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     Maria Sabina, "a s€bia dos cogumelos"

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    r

    Huautla de Jim•nez, na serra mazateca

     A

    casa de  Mar‚a Sabina

    R. Gordon Wasson numa velada

    L

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    APRESENTAŠ‹O

     Na noite de 29 para 30 de junho de 1955, quando assisti, pela primeira vez, a uma "velada" cantada por Mar‚a Sa- bina, em Huautla de Jim•nez, e, a convite dela, ingeri pela primeira vez os cogumelos divinos, fiquei pasmo. Foi noandar de baixo da casa de Cayetano Garc‚a e sua esposaGuadalupe. A modesta hospitalidade de nossos anfitriŒes, deseus filhos e parentes, todos vestindo suas melhores roupas,o canto de Mar‚a Sabina e de sua filha Mar‚a Apolonia, a

    arte percutiva de Mar‚a Sabina e sua danƒa nas trevas, com- binados com os mundos distantes que eu via, com uma cla-reza visual jamais atingida pelos olhos em pleno dia …meu corpo estendido na esteira e respondendo a meu tatocomo se pertencesse a outra pessoa: … todos esses efeitos,compartilhados por meu fotgrafo, Allan Richardson, sacu-diram-nos at• o amago de nosso ser. Minhas indagaƒŒes etno-micol‡gicas tinham-me levado longe, mas nunca esperei umaexperiˆncia extraterrena como aquela.

    Eis uma cerimŽnia religiosa, disse a mim mesmo na-quele momento e durante os meses que se seguiram, quedeve ser apresentada ao mundo de uma maneira digna, sem

    sensacionalismos, sem simplificaƒŒes e sem torn‡-la grossei-ra, com sobriedade e veracidade.Somente minha esposa, Valentina Pavlovna, e eu po-

    d‚amos fazer-lhe justiƒa, no livro que est‡vamos escrevendo,e em revistas s•rias. Mas, em vista da vulgaridade que reinana imprensa de nosso tempo, era inevit‡vel que se espalhas-

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     Maria Sabina conta sua vida a  Alvaro Estrada

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    sem pelo mundo inteiro todos os tipos de narraƒŒes defor-madas. Previmos tudo isso, e assim foi, a ponto de os "fe-derais" terem de empreender uma limpeza a fundo em algu-mas aldeias ind‚genas das terras altas da Am•rica Central,no final da ltima d•cada, para deportar uma turba de per-didos que andavam por ali fazendo das suas.

    Minha esposa e eu levamos adiante nosso programa e,

    aps sua morte, em 1958, continuei sozinho. Nosso livro, Mushrooms Russia and History, foi lanƒado em maio de1957, por um preƒo indigesto, esgotou-se rapidamente, enunca foi reimpresso. Publicamos artigos em  Life e  Life emespanhol,em This Week e em v‡rias revistas especializadas.

    Precis‡vamos urgentemente de ajuda referente „ mico-logia, e de imediato nos dirigimos ao professor Roger Heim,ent€o diretor do Laboratoire de Cryptogamie do Mus•um National d'Histoire Naturelle, de Paris. Avaliou rapidamenteo significado de nossa descoberta. Entregou-se de corpo ealma a nossos planos de trabalho de campo, viajou v‡riasvezes para o M•xico, e foi conosco at• aldeias remotas nas

    montanhas do sul do M•xico. Roger Cailleux, seu competenteassistente, conseguiu, felizmente, cultivar em laboratrio v‡-rias esp•cies dos cogumelos divinos, a maioria novas para acî ncia. O professor Heim entregou-os ao doutor AlbertHofmann, de Basil•ia, descobridor do LSD, para an‡lisequ‚mica. Ele e seus colegas, os doutores Arthur Brack eHans Kobel, conseguiram isolar os princ‚pios ativos, quechamaram de psilocibina e psilocina. O doutor Aurelio Cer-letti iniciou as investigaƒŒes farmacolgicas, e o professorJean Delay, de Paris, os estudos psiqui‡tricos sobre a psilo-cibina e a psilocina. Foi assim que Valentina Pavlovna e eu

    tivemos a sorte de reunir uma equipe de primeira, que coo- perou conosco; em 1958, o Mus•um publicou um grande vo-lume, ricamente ilustrado,  Les champignons hallucinoĝ nesdu Mexique, em cuja p‡gina de rosto figuramos Roger Heime eu, enquanto os outros contribu‚ram com seus respectivoscap‚tulos.

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    Espantou-nos o interesse despertado por nossas ativida-des, n€o somente na imprensa (inclusive livros e histriasem quadrinhos) como tamb•m entre os miclogos, dos quaisum nos fez o favor de realizar uma viagem-rel†mpago, deuma semana, ao M•xico, onde nunca tinha estado, entrevis-tar nossos prprios informantes e apressar-se (em funƒ€o das

     publicaƒŒes de Roger Heim) em ter seu trabalho impresso,

    a fim de obter uma espria prioridade.Em 1958, gravamos em fita uma velada completa, im-

     pressionante, de Mar‚a Sabina, e uma equipe nossa traba-lhou com as fitas at• 1974, quando finalmente publicamosnosso  Maria Sabina Sings her Mazatec Mushroom Velada.Os Cowan … George e Florence … reduziram as fitas aum texto em mazateco, escrito nos caracteres que os lingis-tas entendem; traduziram o texto para o espanhol e para oingl̂ s, e foi publicado em tr̂ s colunas paralelas; Georgeacrescentou um cap‚tulo acerca da l‚ngua mazateca; a no-taƒ€o musical de uma velada inteira foi preparada sob a

    supervis€o de Willard Rhodes, etnomusiclogo de renome,que acrescentou um cap‚tulo sobre a msica; todos contri- bu‚mos para as notas, e eu escrevi tamb•m o prlogo e um‚ndice anal‚tico; o conjunto era ilustrado com mapas e fo-tografias da mesma velada, tiradas por Allan Richardson.Harcourt Brace Jovanovich mostraram a amplitude de suavis€o e seu empenho na publicaƒ€o, acompanhada da msi-ca, em cassetes e discos. A impress€o ficou a cargo dos in-compar‡veis Mardersteig de Verona.

    Tive a impress€o de ter atingido, finalmente, a meta aque nos propus•ramos em 1955 … tratar devidamente a ve-lada de Maria Sabina …, exceto num ponto essencial. Ha-

    via entre Mar‚a Sabina e ns uma boa vontade rec‚proca,mas, para ns, ela estava al•m de uma barreira ling‚sticaintranspon‚vel, impenetr‡vel. Sua  persona estava fora denosso alcance. N€o tive outro rem•dio sen€o resignar-me aesse v‡cuo em nossa apresentaƒ€o ao mundo daquele sober- bo expoente da antiga rel igi€o, por n€o saber como avanƒar.

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    Imaginem, pois, minha surpresa e minha alegria ao co-nhecer no M•xico, em 1975, Alvaro Estrada, ‚ndio mazate-co, de l‚ngua materna mazateca, e ao saber que ele j‡ estavacolhendo dos l‡bios de Mar‚a Sabina o relato de sua pr- pria vida! Aqui, no livro de Estrada, esta "s‡bia" octogen‡-ria, ‡grafa,' conta como foi sua vida, fala de seus antepassa-dos e de sua dura inf†ncia, de seus dois maridos que se fo-ram, de como conheceu os cogumelos e estes se revelaram aela num acontecimento t€o dram‡tico quanto o que ocorreucom Saulo a caminho de Damasco, como ns, os Wasson,entramos em sua vida, e tudo o que aconteceu desde ent€o,at• agora, quando sua peregrinaƒ€o neste mundo chega aofim. O relato que Mar‚a Sabina fez a Estrada, traduzido porele, • (o que n€o • pouco) exato, at• onde posso ver, na me-dida em que • poss‚vel considerar exata a memria de qual-quer pessoa ‡grafa. Maria Sabina pertence „ pr•-histria, „ proto-histria, quase sem fontes documentais que permitamverificar sua memria sem ajuda. O que diz, at• onde estouem condiƒŒes de julgar, • exato no essencial, mas tudo est‡um pouco desgastado nas bordas … • ligeiramente inexato.Tendo em conta sua idade avanƒada e o fato de ser ‡grafa, parece-me um feito not‡vel, sem dvida. E mais: destas p‡-ginas desprende-se algo de valor incalcul‡vel para todos ns,o retrato de uma pessoa que teve uma genu‚na vocaƒ€o reli-giosa e a levou adiante at• o fim de seus dias. Quem sabe?Talvez Maria Sabina n€o esteja mal situada para tornar-se amais famosa entre os mexicanos de seu tempo. Muito tempodepois das personagens do M•xico contempor†neo teremafundado no abismo esquecido do passado morto, talvez seunome e o que representou mantenham-se gravados na mente

    I Devo advertir o leitor de que M ar‚a Sabina … ‡grafa, n €o analfabeta. O s poetas que compuseram a  Ilƒada e a Odiss…ia, os hinos v•dicos e o cant de D•- bo ra er am tod os ‡g ra fo s. O m un do int eir o et a ‡grafo naqueles tempos, e regi Œ e sinteiras continuam a sˆ-lo. Mar‚a Sabina nunca encontrou a palavra escrita nasociedade em que cresceu. "Analfabeto", com seu tom pejorativo, se aplicamelhor Aqueles que, num m undo invadido pela escrita, n€o se propuseram a a p r e n -der a ler e a escrever.

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    dos homens. Ela merece. Ela n€o •, provavelmente, excep-cional entre os xam€s de primeira categoria no M•xico, an€o ser por ter permitido que pessoas n€o pertencentes aoseu s•quito pessoal em terra mazateca a conhecessem. Gos-taria que os pintores e escultores famosos do M•xico a pro-curassem e fizessem o seu retrato, e que os compositores

    tomassem nota de seus cantos tradicionais. O drama da sua passagem por este mundo precisava ser assentado em letraimpressa. Pelo menos isso foi feito, de modo admir‡vel, pornosso amigo Estrada.

     Na histria de sua vida, Mar‚a Sabina n€o tem nada adizer acerca das fontes de seus versos, de seus cantos. Parans, do mundo moderno, perguntas desse tipo se impŒem.Para ela, n€o existem. Quando • interrogada a esse respeito,sua resposta • simples: as coisinhas (cogumelinhos sagrados)lhe dizem o que dizer, como cantar.

    O avŽ e o bisavŽ de Mar‚a Sabina foram grandes xa-m€s, assim como sua tia e seu tio-avŽ. Recentemente, repas-

    sando minha coleƒ€o de  slides tirados durante as muitasveladas a que assisti, chamou-me a atenƒ€o a presenƒa cons-tante de crianƒas de todas as idades, rodeando-a com reve-rˆncia e adoraƒ€o. Se v€o dormir, adormecem com seus can-tos ressoando nos ouvidos. Mar‚a Apolonia canta sua partena velada de 1958 com uma crianƒa no colo, apertada con-tra o corpo da m€e: al•m de ouvi-la, a criaturinha, desde o princ‚pio, sente a m€e cantar. N€o h‡ dvida acerca de ondea s‡bia aprendeu seus cantos, sem esforƒo. Desde a inf†n-cia, suas melodias e seus versos s€o a trama e a urdidurade seu ser.

    Em 1955, depois de assistir a duas veladas (minhas

    duas primeiras) com Mar‚a Sabina, meu programa levou-me„ serra costeira, a San Agust‚n Loxicha, ao sul de Miahua-tl‡n, em companhia do engenheiro Roberto Weitlaner. Pas-samos ali alguns dias com Aristeo Mat‚as, s‡bio de primeiracategoria, e na terƒa-feira, 21 de julho, assistimos a uma vela-da presidida por ele. Cantava baixinho, mas pareceu-me ins-discut‚vel que os cantos eram os mesmos que cantava Mar‚a

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    Sabina. Cantava em zapoteco, lingisticamente afastado domazateco, t€o distante deste quanto podem estar duas l‚n-guas, mas as duas culturas s€o da ‡rea mesoamericana. Re-gistrei em meu di‡rio o que me  pareceu uma semelhanƒamusical e divulguei essa minha impress€o em  Mushrooms Russia and History.

     Mas isso n€o • tudo. Em 1967, o licenciado AlfredoLpez Austin, em•rito nahuatlato,  publicou em  Historia me- xicana (vol. XVII, n.‘ 1,  julho-setembro) seus "Termos donahuallatolli", onde apresentou a seus leitores uma lista dostermos reunidos por Ruiz de Alarcn, em 1619, em seu Tra-tado de las supersticiones de los naturales de esta Nueva

     Espa‰a. Qual n€o seria minha surpresa ao descobrir nesseTratado, que versa sobre a cultura nahuatl, not‡veis corres- pondˆncias com as veladas de Mar‚a Sabina, segundo o tex-to da velada que divulguei em 1974. Eis aqui alguns dos

     paralelismos:

    1 . Tanto Mar‚a Sabina quanto o s‡bio nahuatl fazemuma longa auto-apresentaƒ€o (para usar o termo de LpezAustin), que, no caso de Mar‚a Sabina,

    comeƒa com profis-sŒes de humildade e chega a afirmaƒŒes de poder e de capa-cidade de falar com seres sobrenaturais quase em termos deigualdade.

    2. Ruiz de Alarcn assinala que o s‡bio nahuatl insis-te no amoxtli, "livro", como  procedimento  para chegar aoconhecimento secreto que utiliza. Mar‚a Sabina emprega a

     palavra espanhola libro, que n€o tem atualmente correspon-dente em mazateco. Conta muito em seu mundo m‚stico. Osamoxtli de Ruiz de Alarcn s€o os cdices dos nahuas, pin-tados „ m€o, que eram vistos com imensa reverˆncia no mo-mento da conquista. Como assinalou Henry Munn, a B‚blia

    e outros livros litrgicos da igreja paroquial de Huautla subs-titu‚ram os cdices de outros tempos como foco de adoraƒ€o,mas na mente de Mar‚a Sabina gerou-se um "livro" m‚stico,que pertence exclusivamente a ela e que pode proceder dosamoxtli de tempos anteriores „ conquista.

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    3. Mar‚a Sabina refere-se duas vezes, com admiraƒ€o,a um jovem forte, atl•tico, viril, uma esp•cie de Apolo me-soamericano, chamando-o de Jesus Cristo (espantosa con-fluencia de id•ias!). Seu colega nahuatl, mais de trˆs s•culosantes, introduzia uma divindade semelhante em seu canto,mas essa divindade era Piltzintecuhtli, o  Nobil‚ssimo Infan-te, que, como nos informa o doutor Alfonso Caso, em seuensaio "RepresentaƒŒes dos cogumelos nos cdices" (Estu-

    dios de la cultura nahuatl, vol. IV), recebe o dom dos cogu-melos divinos das m€os de Quetzalcatl, no Cdice vindo- bonese, especialmente importante para ns  por fornecer aorigem m‚tica dos cogumelos milagrosos.  Na consciˆncia deMar‚a Sabina, e,  provavelmente, de outros s‡bios que sur-gem hoje em dia, h‡ uma s‚ntese completa do cristianismo edas religiŒes anteriores „ conquista.

    Se nas palavras de Mar‚a Sabina descobrimos traƒosque Ruiz de Alarcn recolheu nos textos nahuas de seu tem- po, h‡ mais de trˆs s•culos, traƒos que  j‡ deviam ser trans-ling‚sticos na Am•rica Central, os cantos em mazateco con-tidos em nossas fitas, e que tamb•m escutamos' no zapotecode San Agust‚n Loxicha, devem ter sido tradicionais j‡ na-quela •poca, legados de tempos muito anteriores „ conquista.Qu€o anteriores? Para esse c‡lculo, dispomos de trˆs  pointsde rep r̂e que  permitem triangular at• o  passado remoto:dois contempor‡neos nossos, mas distantes no espaƒo  …

    San Agust‚n Loxicha e Huautla …, e o terceiro distante, notempo e no espaƒo  … a cultura nahuatl do in‚cio do s•culoXVII. Devemos ter em mente que, lentamente, no ritmo deum caracol, as culturas evolu‚ram na  proto e na pr•-hist-ria, antes do aperfeiƒoamento da arte da escrita. Devemoslembrar o quanto deve ser antigo o culto dos cogumelos di-

    vinatrios na Am•rica Central: a habilidade dos ‚ndios como2 Estou convencido de que os cantos eram musicalmente id̂ nticos, mas,

    como n€o os gravei e, conseqentemente, n€o posso prova-lo, devo dizer que talgravaƒ€o esta por fazer.

    3 Em franĉ s no original. (N. da T.)

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    toda primeira sexta-feira de cada mˆs... 8 uma pessoa humilde, pelo que me consta, e n€o p rejudica ningu•m... Os s‡bios e cu ran-deiros n€o competem com a nossa religi€o, nem mesmo os feiti-ceiros. Todos eles s€o muito religiosos e vˆm „ missa.  N€o fazem prose litismo e, portanto, n€o s€o considerados herege s, e • remotaa possibilidade de lhes serem lanƒados an‡temas, nem em pensa-mento!

    Progredimos muito desde os tempos de Motolinia e doSanto Of‚cio da Inquisiƒ€o do in‚cio do s•culo XVII!

    H‡ vislumbres interessantes neste livro de Alvaro Es-trada. Veja-se, por exemplo, o cap‚tulo XV. Conta em de-talhes como Mar‚a Sabina e um tal Apolonio Ter‡n, h‡ unstrinta anos, dedicaram-se „ organizaƒ€o da irmandade doSagrado Coraƒ€o de Jesus e da primeira confraria. Amboseram s‡bios, e cada um estava a par da vocaƒ€o do outro.Mas ela assinala que, enquanto trabalhavam juntos, n€o fa-lavam de suas "sabedorias", nem mesmo entre e les. S fala-vam de assuntos relacionados „s irmandades e confrarias.

    "Os s‡bios n€o devem andar fazendo alarde do que s€o, por-que • um assunto delicado." A‚ est‡, em suas prprias pa-lavras, o obst‡culo que tive de vencer h‡ mais de vinte anos,quando eu, um forasteiro loiro, um estranho, irrompi na-quele c‚rculo secreto. Embora ela diga que obedece „ Igrejae „s autoridades municipais, e afirme que, quando acolheufavoravelmente meu pedido, simplesmente satisfazia os de-sejos do delegado municipal Cayetano Garc‚a, n€o deixo deduvidar. Diz ainda que teria inclusive me concedido umavelada sem o patroc‚nio das autoridades. N€o fosse por Caye-tano, eu nunca a teria conhecido e, se a tivesse encontrado

     por acaso, teria ela feito uma velada para mim? Isto • cer-

    tamente discut‚vel."8 verdade" … diz … "que antes de Wasson ningu•mfalava com tanta desenvoltura acerca dos meninos. Nenhummazateco revelava o que sabia sobre esse assunto... Os me-ninos s€o o sangue de Cristo. Quando ns, mazatecos, fala-mos das veladas, fazemos isso em voz baixa, e para n€o pro-

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    r

    ervan‡rios n€o era novidade quando Cortez caiu sobre eles.Conheciam empiricamente as propriedades de todas as plan-tas que estavam a seu alcance, com uma precis€o que noscausa vergonha. O homem antigo dependia desse conheci-mento para sobreviver. No que se refere „ Sib•ria, onde, en-tre as tribos mais isoladas, as veladas com cogumelos sobre-viveram at• nossos dias, h‡ duas semelhanƒas not‡veis em

     pontos espec‚ficos do culto dos cogumelos: 1. em ambos oscasos o cogumelo "fala" pela boca do s‡bio, que serve uni-camente de ve‚culo para a voz do cogumelo; 2. os cogumeloss€o visualizados como pequenos seres, machos, fˆmeas ouambos, do tamanho de cogumelos, "duendes", "polichine-los", dados a todos os tipos de artimanhas simp‡ticas e tra-vessas … tricksters, no vocabul‡rio dos antroplogos. O cul-to mesoamericano certamente remonta, em parentesco gen•-tico direto, „ Sib•ria, „ migraƒ€o atrav•s do Estreito de Be-ring ou da ponte terrestre da ltima •poca glacial.

    Mar‚a Sabina sempre esteve de bem com a Igreja. Em- bora ela n€o saiba sua prpria idade, graƒas „ diligˆncia de

    Estrada sabemos que, segundo os registros paroquiais deHuautla,4 nasceu a 17 de marƒo de 1894, e foi batizada Ma-r‚a Sabina oito dias depois.' Parece que, at• onde • poss‚-vel recordar, n€o tem havido conflito entre a Igreja e as pr‡-ticas habituais dos curandeiros nativos. O padre AlfonsoAragn, que foi encarregado da parquia durante cerca devinte anos, at• 1960, e que deu um forte impulso „ Igrejaem Huautla, sempre manteve contato com os s‡bios de sua parquia. Numa entrevista a Estrada, em 1970, o padre An-tonio Reyes disse sobre sua parquia em Huautla:

    A Igreja n€o • contra esses ritos pag€os, se • que podem serchamados assim... Isso n€o acontece, a prpria Mar‚a Sabina •membro da Associaƒ€o do Apostolado da Oraƒ€o, e vem „ missa

    .4 Cf. reproduƒ€o da certid€o de batismo p. 246 Sua m€e sempre chamou-a de "Bi", e seu primeiro marido de "Sabi", con-

    firmando assim o nome que consta no registro da parquia e invalidando a lendade que teria adotado o nome de "Sabina" quando ficou "s‡bia".

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    nunciar o nome que tˆm em mazateco (ndilxi8tjoa)B ns oschamamos de coisinhas ou  santinhos. Assim eram chamados por nossos an tepassados" (cap. XVI).

    O relato que Mar‚a Sabina nos faz de sua vida, comEstrada como maieuta, • extraordin‡rio. Em 1971, IrmgardWeitlaner Johnson e eu voltamos a visitar Huautla. Sab‚a-mos o que tinha ocorrido desde minha ltima visita, em 1962,e tem‚amos que o tumulto do mundo exterior tivesse mudado

    Mar‚a Sabina radicalmente. Ficamos atŽnitos ao ver que,contrariamente ao que esper‡vamos, Mar‚a Sabina continua-va a mesma. Isto • amplamente confirmado pelo livro queagora apresentamos ao pblico. N€o se vangloria. O gover-nador - de Oaxaca deu-lhe dois colchŒes para a primeira ca-ma que teve na vida. Visitou os "seres principais" das cida-des de Oaxaca e M•xico, e, por sua vez, os grandes do mun-do foram procur‡-la em sua humilde cabana, no alto do passo entre Huautla e San Miguel. Um bispo visitou-a, n€oh‡ a menor raz€o para duvidar disso . Ele queria provar oscogumelos, mas n€o era •poca de cogumelos. Pediu-lhe queensinasse sua sabedoria „ geraƒ€o mais jovem de seus des-cendentes, e sua r•plica de ‡graf a foi memor‡vel:

    Disse-lhe que se pode herdar a cor d‡ pele ou dos olhos, e at•o modo de chorar ou de sorrir, mas com a sabedoria n€o se podefazer o mesmo. A sabedoria est‡ dentro da pessoa desde o nasci-mento. Minha sabedoria n€o pode ser ensinada, • por isso quedigo que ningu•m me ensinou minha Linguagem, porque • a Lin-guagem que os meninos santos falam ao entrarem em meu corpo.Quem n€o nasce para ser s‡bio n€o pode alcanƒar a Linguagem,mesmo que faƒa muitas veladas. (p. 11)

     Nem uma vez Mar‚a Sabina me censurou  por ter reve-lado ao mundo os cogumelos e seus dons como ministrante.

    Mas n€o • sem angstia que leio suas palavras:

    Antes de Wasson, eu sentia que os meninos santos me eleva-

    vam. J‡ n€o sinto o mesmo ... Se Cayetano n€o tivesse trazido osestrangeiros, os meninos santos conservariam seu poder. .. Desdeo momento em que chegaram os estrangeiros... os meninos santos perderam a pureza. Perderam a forƒa, foram est ragados. De agoraem diante, n€o servir€o mais. N€o tem rem•dio. (pp. 110-111)

    Estas palavras me fazem tremer: eu, Gordon Wasson,

    sou considerado respons‡vel pelo fim de uma pr‡tica reli-giosa milenar na Am•rica Central. "[Os cogumelinhos] n€oservir€o mais. N€o tem rem•dio." Temo que esteja dizendoa verdade, exemplificando sua sabedoria. Uma pr‡tica rea-lizada em segredo durante s•culos foi trazida „ luz, e a luzanuncia o fim.

    Quando de minha primeira velada com Mar‚a Sabina,em 1955, tive de optar entre ocultar minha experî ncia eapresent‡-la dignamente ao mundo. N€o hesitei nem por umsegundo. Os cogumelos sagrados e o sentimento religiosoque contˆm pelas serras do M•xico meridional tinham deser revelados ao mundo, como mereciam, custasse o quecustasse. Se eu n€o fizesse isso, a "consulta ao cogumelo"duraria mais alguns anos, mas sua extinƒ€o seria inevit‡vel.O mundo saberia vagamente que tal coisa tinha existido, masn€o qual a sua import†ncia. Por outro lado, dignamenteapresentada, manteria seu prest‚gio, assim como o de Mar‚aSabina. Alvaro Estrada estabeleceu o cap‚tulo final de meusesforƒos; agradeƒo-lhe por isso, e tamb•m a Mar‚a Sabina,

     por sua cooperaƒ€o.

    R. GORDON WASSON

    Danbury, Connecticut, 1 de dezembro de 1976

    r

    R Este nome em mazateco, por sua vez, …, evidentemente, um eufemismousado no lugar de uma palavra mais antiga, esquecida atualmente. Significa sim’ plesmente "os queridinhos que chegam pulando".

    22 23

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    INTRODUŠ‹O

    Com certeza n€o foram unicamente o ouro e as riquezas na-turais do An‡huac, ou a cultura e a arte mesoamericanasque surpreenderam os religiosos e conquistadores espanhisque chegaram a esta terra no s•culo XVI. Tamb•m os rem•-dios abor‚gines ("maravilhosa coleƒ€o" de vegetais e plan-tas alucingenas) chamaram a atenƒ€o, foram estudados  …e condenados … por escritores,  bot†nicos e m•dicos do Oci-dente, na •poca colonial do M•xico.

    A repress€o do Tribunal do Santo Of‚cio, no  princ‚pio,„queles que ingeriam o ololiuhqui,o  peyotl ou o teonan‡catl(sementes, cactus e cogumelos, respectivamente, e todos alu-cingenos) e, mais tarde, as condenaƒŒes que partiram do plpito durante s•culos, fizeram com que os m•dicos ind‚ge-nas tornassem  privado … pode-se dizer secreto … o rito ea adoraƒ€o das plantas m‡gicas.

    Em nossos dias, essas pr‡ticas "demon‚acas" dos ‚ndiosforam desaparecendo „ medida que a cultura ocidental avan-ƒava no M•xico. Um fenŽmeno parecido foi extinguindo cos-tumes similares em outras regiŒes asi‡ticas e americanas.Mas foi em Huautla …  povoado situado na serra maza-

    teca de Oaxaca … que os investigadores encontraramuma mina deste tipo de  pr‡ticas nativas, nas quais o cogu-melo … ao qual os investigadores acrescentaram o adjetivoalucingeno …• parte central da religi€o ind‚gena.  Nela,diz-se que o antigo teonan‡catl Š Carne dos Deuses na •po-ca  pr•-hisp†nica  … tem o poder de curar todas as doenƒas,

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    e tamb•m  proporciona a forƒa m‚sticaque cria a linguagemelevada, esot•rica, do xam€.1

    Durante o transe, o  s‡bio (nome que os mazatecos d€oao xam€)  fala, invocando as divindades tribais, assim comoas crist€s. Sincretismo inevit‡vel de nosso tempo.

    Algu•m j‡ ter‡ escrito sobre as plantas alucingenas eseu uso?: "As referˆncias que encontramos no M•xico" …

    dizia-nos o etnomiclogo Robert Gordon Wasson

    -

     … "acer-ca do uso particular do teonan‡catl  pelos ind‚genas mexi-canos s€o valiosas, mas incompletas. Sahagn, Motolin‚a,Diego Dur‡n, o padre De la Serna, Ruiz de Alarcn, Tezo- zomoc, e o bot†nico e m•dico de Felipe II, dom FranciscoHern‡ndez, escreveram sobre o assunto. Sem dvida, os in-formantes dos cronistas n€o disseram tudo o que sabiamacerca das v‡rias  plantas alucingenas que conheciam e uti-lizavam, devido ao  princƒpio de n€o revelar a ningu•m es-tranho „ comunidade os segredos religiosos. E atualmentesabe-se que a ingest€o de tais  plantas sempre esteve ligada„ religi€o. Toda religi€o tem segredos; a  prpria religi€o

    crist€ fala em mist…rios."O doutor Gonzalo Aguirre Beltr‡n escreve, em seulivro sobre  Medicina e Magia, que "a falsa vis€o que osten-tam tratadistas t€o c•lebres quanto [Hernando Ruiz de]Alarcn, [Jacinto de la] Serna e [Pedro] Ponce, ao tocarnesse aspecto fundamental da medicina ind‚gena, • f‡cil deexplicar em indiv‚duos cujos princ‚pios religiosos impedemde ver algo que n€o seja obra do demŽnio  … o indefeso ecaluniado demŽnio  … na m‚stica abor‚gine."

    Em suma, vemos que nem os ind‚genas revelaram tudoo que sabiam e nem os cronistas foram capazes de despo- jar-se de seus preconceitos  para deixar um testemunho im-

    t Xam€ (tamb•m chamado por alguns de Shaman),  palavra de origem sibe-riana que identifica o Homem-Deus-Medicina. Vide Mircea Eliade,  El chama- xismo y las t…cnicas arcaicas del …xtasis, M•xico, Fondo de Cultura Econmica,1960.

    '- Entrevista in•dita, realizada na Cidade do M•xico, em junho de 1975.

     parcial e objetivo do culto que os antigos mexicanos ofere-ciam „ Carne dos Deuses.

    Os motivos que nos levaram a escrever A Vida de Ma-rƒa Sabina foram: 1. a intenƒ€o de deixar um testemunho de

     pensamento e da vida da  s‡bia mazateca, que  jornalistas eescritores de v‡rios  pa‚ses n€o souberam apreciar em pro-fundidade; 2. que seja um documento til para etnlogos,

    etnomiclogos, estudiosos dos costumes e outros especialis-tas; 3. que o pblico em geral tenha uma id•ia mais  precisaacerca dos costumes nativos e que a  juventude trate commais respeito os elementos da religi€o ind‚gena.

    Tampouco descartamos a  possibilidade de que este tra- balho seja um est‚mulo para que os  jovens escritores … prin-cipalmente ind‚genas …tomem contato com esses costumesnativos para resgat‡-los de sua agora prxima e definitivaextinƒ€o.

    O presente manuscrito • o resultado de uma s•rie deentrevistas que. efetuamos periodicamente, entre setembrode 1975 e agosto de 1976, alternando o trabalho t•cnico

     profissional, que nos obriga a residir temporariamente naCidade do M•xico, com as visitas a Huautla, para falar comMar‚a Sabina.  N€o foi um trabalho f‡cil o nosso, emboraquem escreve isto seja natural de Huautla e fale a l‚nguanativa dos mazatecos.

    Para facilitar a leitura, omitimos as  perguntas do ques-tion‡rio que apresentamos a Mar‚a Sabina, mas conserva-mos as fitas onde est€o gravadas as  palavras da s‡bia ma-zateca.

     Na redaƒ€o final do texto, assim como em cada mo-mento, estivemos conscientes da responsabilidade de escre-ver a biografia de uma pessoa que, por motivos circunstan-ciais, n€o sabe escrever, ler ou falar castelhano, e,  portanto,nunca  poder‡ saber exatamente se o que se escreveu a seurespeito • correto ou n€o.

     N€o posso deixar de mencionar a ajuda que, de umaforma ou de outra, me foi dada por amigos e familiares en€o devo esquecer o aux‚lio desinteressado de Robert Gor-

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    don Wasson e Henry Munn,  pessoas que dedicaram  partede suas vidas „ procura, por meio de uma apurada investi-gaƒ€o, de uma maior compreens€o desse horno religiosusque no  passado usou o cogumelo divino.

    A todos eles, meu agradecimento infinito.

    ALVARO ESTRADA

    M•xico, D.F., 4 de setembro de 1976 I

     N€o sei em que ano nasci, mas minha m€e, Mar‚a Concep-cin, disse-me que foi na manh€ do dia em que se celebra aVirgem Madalena, l‡ em Rio Santiago, munic‚pio de Huau-t1a. Nenhum de meus antepassados jamais soube sua pr-

     pria idade.'Minha m€e nasceu e criou-se num lugar perto de Huau-

    tla, na direƒ€o de San Andr•s Hidalgo. Meu pai, CrisantoFeliciano, nasceu e c riou-se em R‚o Santiago. Quando se

     juntaram … n€o se casaram …, ela devia ter uns catorzeanos, e ele, vinte. Havia trˆs anos que minha m€e vivia como seu homem quando eu nasci. Logo fui batizada. Meus pa-

    1 A certid€o de  batismo de Mar‚a Sabina (ver p. 24) foi lavrada  pelo  p‡rocoArturo Garc‚a, a 25 de agosto de 1976, com  base no s dados originais que seencontram no arquivo da igreja de Huautla. Pode-se observar que os nomes dos padrinhos de  batismo, constantes no documento, n€o conferem com aqueles for-necidos  por Marfa Sabina. No entanto, cabe aqui esclarecer que, at• hoje, •dif‚cil saber com exatid€o o nome de alguns mazatecos, devido „ dificuldade quet̂ m em  pronunciar o s nomes de origem ocidental. Um exemplo  pode ilus trarisso. Durante a entrevista, Mar‚a Sabina nos disse que tinha tido um tio-avŽ denome N'dorto. Reconheceu que desconhecia as  palavras "em castelhano", masEvaristo G. Estrada nos disse que o nome corresponde ao de Antonio Justo. "E

     prov‡vel  … disse-nos outro informante … que aqueles que escreveram documentos

    desse ripo no inicio do s•culo tenham inventado os nomes das  pessoas,  porqueestas n€o sabiam como se chamavam."  Note-se ainda que nenhum dos nomes temsobrenome,  porque "antigamente n€o eram usados".  Neste documento, aparecetamb•m a n€o-coincidˆncia da data que Mar‚a Concepcin deu „ filha Mar‚aSabina: "dia da Virgem Madalena" (22 de  julho). Quanto aos nomes dos  pais,a nica variaƒ€o est‡ em Crisanto Feliciano, dito  pela s‡bia, e que aparece comoLauriano na certid€o de  batismo.

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    drinhos de batismo chamavam-se Juan Manuel e Mar‚a Se- bastiana, fam‚lia camponesa que tinha muita afeiƒ€o pormeu pai. Minha m€e pariu Mar‚a Ana, minha irm€, depoisde eu ter completado dois anos de idade. S nascemos nsduas. N€o conheci bem meu pai, porque morreu quando eutinha trˆs anos. Sei que era muito trabalhador; plantava mi-lho e feij€o em terras que tinha conseguido comprar como seu trabalho. Vendia suas colheitas no mercado de Huau-

    tla ou nos povoados vizinhos. Nossa casa, em R‚o Santiago,era uma chocinha com paredes de barro misturado com car-riƒo e com cobertura de hastes de folha de cana. Minha m€efazia as tortillas e punha no fogo a panela de feij€o, quedepois servia. Na hora de comer, tom‡vamos ‡gua com fa-rinha de milho, adoƒada com aƒcar mascavo, quente. Na-quela •poca n€o havia caf•, poucas pessoas o cultivavam.Deit‡vamos antes do anoitecer. Meu pai sa‚a para a lavouramuito cedo, pouco depois de cantar o primeiro galo. Dor-m‚amos no ch€o, sobre esteiras, e vestidos. Dorm‚amos to-dos assim.

    Quando minha irm€ Mar‚a Ana nasceu, meu pai j‡ esta-va doente. Sua doenƒa n€o tinha cura, porque a origem deseu mal n€o era assunto deste mundo, era castigo do pode-roso Senhor dos TrovŒes, que cuida dos campos e lhes d‡fertilidade. E meu pai, quando ainda era solteiro, tinha pro-vocado a ira desse Senhor grande e poderoso. A histria •a seguinte:

    Certa madrugada, o jovem Crisanto Feliciano dirigiu-se ‡ sua lavoura para fazer a limpeza; era preciso tirar asfolhas e o mato que havia no terreno. Levava sua enxada eseu machete. Como todos os homens de seu tempo, usava cal-ƒa e camisa de algod€o puro. Nos dias de festa, vestia umcot‹n2 que chegava at• os joelhos, e era amarrado com umcinto de seda na cintura.

    a Abrigo de l€ de forma retangular com um corte na  parte central paraintroduzir a cabeƒa.

    32

    ,mp

    Crisanto Feliciano trabalhou dois dias em seu terreno, para juntar as folhas, o mato e toda a su jeira que impedia a boa semeadura, e, em seguida, fez de tudo aquilo um mon-t‚culo, num lugar prximo a uma lavoura vizinha e alheia.Por fim, ateou fogo ao mont‚culo. As varas, as folhas secase o mato arderam facilmente. Era de tarde, e o final do diase aproximava. O vento soprava forte, os dias tinham sido.muito quentes e o ar estava seco. As chamas do mont‚culose avivaram e o vento brincou com elas, at• aproxim‡-lasdo terreno vizinho; tanto que chegaram a queimar alguns p•s de milho. Crisanto ap ressou-se em sufocar as chamasque ardiam no milharal alheio. N€o foi muito o que quei-mou, mas Crisanto sabia que o fato de ter danificado a la-voura, ainda que o estrago fosse pequeno, podia causar-lhea morte. Sabia que todos os campos estavam protegidos peloSenhor dos TrovŒes: se algu•m roubasse espigas, morria. Seum burro comesse um p• de milho, tamb•m morria. Umalavoura assim protegida n€o pode ser atacada nem pelos ra-tos, nem pelas cutias, nem pelos p‡ssaros. Uma lavoura protegida pelo Senhor dos TrovŒes’cresce bonita e abundan-te. Crisanto estava condenado a morrer, tinha queimado ummilharal sagrado. S alguns p•s, sim, mas era o suficiente para atrair a maldiƒ€o do Senhor dos TrovŒes. As pessoasque, deliberada ou imprudentemente, danificam uma lavou-ra sagrada, sofrem de g†nglios que brotam no peito e no pescoƒo. Os g†nglios arrebentam quando est€o maduros, e setransformam em caroƒos purulentos e repugnantes. Ent€o as pessoas morrem. O dano causado a uma, lavoura sagrada n€o pode ser pago com nada; nem repondo os p•s d•stru‚dos,nem pagando o preju‚zo em dinheiro ao propriet‡rio.

    Crisanto sabia que estava perdido, mas tinha uma es- peranƒa. Seu avŽ e seu pai eram homens  s‡bios:

    3 usavam

    3 Este • um termo que aparece com freq n̂cia no texto. E o nome que sed‡ ao xam€ mazateco. As palavras s€o Chot‡-a Tchi-n…e (pessoa s‡bia). Entreos mazatecos, h‡ tr̂ s categorias de "curandeiros". No plano inferior se situa ofeiticeiro  Mi-…e) que, dizem, pode transformar-se em animal (nagual) durantea noite. Tem grande capacidade de fazer o mal e transformar outras pessoasem naguais. No plano intermedi‡rio, situamos o curandeiro (Chot‡a-xi-bend‡a)

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    meninos santos'  para falar com os Senhores donos do mon-tes. Os s‡bios podem falar com os seres que s€o donos detodas as coisas do mundo. E eles podiam falar com o Senhordos TrovŒes. Podiam pedir-lhe que perdoasse Crisanto, que, por imprudˆncia, tinha queimado p•s de milho  protegidos.

    Assim pensou Crisanto, e isso lhe deu esperanƒa paraviver. E n€o contou a ningu•m o que tinha acontecido, n€o

    quis alarmar seus familiares. "Mais tarde direi a eles...", pensou.Passaram-se os meses e o jovem Crisanto Feliciano con-

    tinuou ocultando sua pena. Mas, numa certa ocasi€o, seu pai, Pedro Feliciano, despertou para comer os meninos san-tos. Ali, durante a noite, o s‡bio viu que seu filho morrerialogo, por causa dos caroƒos. No dia seguinte, ao amanhecer,disse-lhe: "Crisanto, meu filho, tive uma vis€o terr‚vel. Virotransformado em peru. O  pequeno que brota revelou-me quevocˆ est‡ condenado a morrer. Tamb•m sei o motivo, o mes-mo  pequeno que brota me contou..."

    Deste modo, Crisanto viu-se obrigado a contar ao pai

    o episdio do milharal queimado. propriamente dito, que usa massagens, beberagen s e artif ‚cios como sua prpriaLinguagem no momento de proceder „ cura, na qual invoca os donos dos lugares,das montanhas, das nascentes, Essas duas categorias s€o muito conhecidas nocampo mexicano, mas aqui em

    .Huautla existe ainda uma terceira categoria, su- perior, que • a do s‡bio e m•dico (Chota'-a Tchi-n…e), que n€o faz o mal e n€ousa beberagens para curar. Sua terapˆutica … a ingest€o do cogumelo, e essem•dico-s‡bio adquire o poder de diagnosticar e curar o doente, ao qual tamb•md‡ v‡rios pares de cogumelos.

    9 Nixti-santo ( meninos santos),  Ndi-xi-tjo (pequeno que brota, sinŽnimo decogumelinho),  Ndi-santo (santinhos) e  Ndi-lzojmi (coisinhas), s€o quatro termoseufemisticos que designam os cogumelos na l‚ngua mazateca, Mar‚a Sabina cha-ma-os de meninos santos, ou simplesmente meninos.  Na l‚ngua mazateca o "x"tem uma pronncia de "sh" e a pronncia correta • mais forte, uma combinaƒ€ode s, j e h. O respeito tradicional que os mazatecos tˆm pelos cogumelos m‡gicos

    faz com que os distingam dos cogumelos comest‚veis, conhecidos como Tjain-T'xua (cogumelo branco; nanacate em nahuatl) ou Tjain-nƒ (cogumelo vermelho),'designados pela cor, e que s€o duas variedades muito apreciadas por seu sabor"parecido com o da carne de frango quando  se cozinha em tezmole". O tezmole• um caldo amassado e picante. Os cogumelos venenosos s€o designados porTjain-zca (cogumelo-loucura). Fica claro que os mazatecos tˆm perfeito conheci-mento dos diferentes tipos de cogumelos.

    Seu pai consolou-o dizendo: "Lutaremos contra a forƒado Senhor dos TrovŒes. Despertaremos com o  pequeno que

    brota. Pediremos aos Senhores que o perdoem." Mais tarde,

    o s‡bio Pedro Feliciano, junto com seu pai, Juan Feliciano,despertaram v‡rias vezes com os meninos santos, mas n€oconseguiram nada. Tamb•m chamaram feiticeiros e chupa-dores,' sem resultado.

    Depois, numa certa noite, enquanto Crisanto tentavaadormecer, passou uma m€o sobre o peito e seus dedos sedetiveram ao sentir pontos inchados acima das tetas. "Queser‡?", perguntou-se. De repente compreendeu tudo: eramos g†nglios da maldiƒ€o que comeƒavam a brotar. Sentiumedo e muita preocupaƒ€o. Naquela noite, pensou sobre asua vida. Pensou que era muito jovem (tinha uns vinte anosde idade) e a preocupaƒ€o n€o o deixou dormir o resto danoite.

     Na manh€ seguinte, decidido, Crisanto disse ao pai:"Quero uma mulher para mim. Vi uma moƒa na estrada deHuautla, vive com os pais, adiante de San Andr•s. Vocˆ

     poderia pedi-la para que ela viva comigo."Algum tempo depois, os pais pediram a moƒa e, umdia, Crisanto foi buscar sua mulher, chamada Mar‚a Con-cepcin. Levou-a para viver com ele em R‚o Santiago.

    Meu pai sofria de seu mal e minha m€e compreendia.Os primeiros g†nglios arrebentaram, formando bolhas puru-lentas que acabaram cobrindo o pescoƒo e parte do peito.

    Com o passar dos anos, meu pai foi piorando. Quandoeu tinha uns trˆs anos, imagino, e minha irm€ Mar‚a Anaapenas quatro ou cinco meses de idade, ele morreu. Nem osfeiticeiros, nem os curandeiros e nem os s‡bios puderam

    Chupador …uma variedade de curandeiro. O doutor Aguirre Beltr‡n trata

    do tema substituindo a palavra chupar  pela palavra  suc‚€o: "A sucƒ€o • feitaaplicando a boca diretamente sobre a regi€o supostamente doente, ou ent€o colo-cando entre as duas um caniƒo oco. Em todos os casos o m•dico agoureiro extraia doenƒa, digamos, o esp‚rito da doenƒa, materializada em diversos objetos pe-quenos que, segundo a regi€o e o grupo •tnico, podem ser lascas de quartzo,

     pedaƒos de papel, pequenos insetos, etc." Aguirre Beltr‡n,  Medicina y Magƒa,

    M•xico, INI, 1963.  Medicina indƒgena, p. 52.

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    O feiticeiro pega o peru escolhido e sacrifica-o cortando-lhe a cabeƒa comum golpe de machete. Esvazia o sangue do peru numa x‚cara, na qual pŒetamb•m treze gr€os de cacau mo‚do. Feita a mistura, o feiticeiro borrifa asenxadas, as estacas de plantio, os mecapales (faixas de couro usadas para levarcargas), os machetes, os balaios e todos os utensilios da lavoura que foram usa-dos no plantio. O feiticeiro invoca o poder do Senhor dos TrovŒes, pede-lheque proteja o milharal ao qual a cerimŽnia • dedicada. Pede que caia a maldi-ƒ€o sobre aquele que estragar ou roubar uma espiga: que brotem bolhas emseu pescoƒo. Que nada possa cur‡-lo. Que n€o haja cura sobre a Terra paraquem ousar estragar o plantio. O feiticeiro e os lavradores dirigem-se „ roƒa, e pelos camin hos continu am as pergi ndo o sangu e do peru mistur ado com ca cau.V€o para os cantos do terreno, as curvas do caminho, os lugares que podemservir de acesso aos ladrŒes. Conclu‚da a aspers€o, a comitiva volta „ casa do

     propriet‡rio, onde o feiticeiro extrai as tr eze sementes da cinza cerimonial. Essassementes, assadas junto com os p•s de milho, s€o enterradas, posteriormente, nocentro da plantaƒ€o.

    Enquanto isso a carne do peru …  preparada em tezmole,  para que os lavr a-dores comam. Tamb•m se preparam tamales amargos em forma de bola e feitosde massa fermentada (de milho). Os lavradores se renem e se preparam paracomer. O feiticeiro preside a mesa e diz: "Todos vocˆs devem lembrar-se de quen€o deve sobrar nem uma migalha do que v€o comer, porque • um manjarsagrado, que nem os c€es devem tocar. Se isso acontecesse, invalidaria a ceri-

    mŽnia que efetuamos. N€o devem esquecer que, a partir deste momento, devemrespeitar o jejum sexual durante cinqŒenta e dois dias. Nesses dias de abstinˆncian€o deve haver raiva nem maus sentimentos nos participantes. Se, durante anossa refeiƒ€o, surgir algum visitante inesperado, n€o devem oferecer-lhe nada,

     porque todo o alimento que h‡ nesta casa …, neste momento, sagrado. A ‡gua,o tezmole, os tamales, o caf•, pertencem ao Senhor dos TrovŒes. E n€o se deveconvid-lo porque o visitante, alheio ao nosso ritual, poderia profanar nossacerimŽnia com uma mulher. O ato sexual elimina a pureza de toda a cerimŽnia.Mas aquele que profanar desse modo nosso rito ser‡ castigado: seus test‚culosapodrecer€o."

    Os lavradores e a fam‚lia do dono da lavoura comem, tomando muito cui-dado, colocando um prato fundo debaixo do queixo, para n€o desperdiƒar nenhu-ma migalha dos tamales e nenhuma gota do tezmole, at… deixarem os pratoscompletamente limpos, O tezmole deve ser completamente consumido. Assim,os comensais n€o deixam vest‚gios daquilo que foi o seu a limento. Al•m disso,nenhum deles sente que comeu. Tˆm a sensaƒ€o de estŽmago vazio, "porque,

    na verdade, quem se alimentou foi o Senhor dos TrovŒes".Al•m disso, se um lavrador ou um visitante inoportuno for convidado, inva-lida a cerimŽnia da fertilidade e proteƒ€o do plantio, e os perus que foram man-tidos "na engorda" para a colheita seguinte de milho crescem magros e s€o pouco dignos de tom ar pa rte no ritual.

    O dono do milharal coloca uma cruz, feita com as folhas da planta, noslugares vis‚veis do campo. A plantaƒ€o tamb•m pode ser de cana ou de feij€o.

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    }

    cur‡-lo. O coitado morreu transformado em peru. A maldi-ƒ€o mortal do Senhor dos TrovŒes faz com que se adoeƒa pouco a pouco. A pessoa maldita f ica anos sofrendo, podemser quatro, cinco, seis ou sete, e durante esse tempo os g†n-glios se transformam em bolhas repugnantes. Algumas pes-soas condenadas a sofrer desse modo resignam-se a morrer,outras lutam contra a maldiƒ€o do Senhor dos TrovŒes. Os

    feiticeiros falam onde est‡ o eco, onde h‡ montanhas e en-costas. L‡ pedem ajuda ao Senhor do Chicn Nind.‘ Mas pouco se pode fazer, e diante da maldiƒ€o do Senhor dosTrovŒes n€o h‡ nada a fazer. O pescoƒo dos doentes se asse-melha ao de um peru. E • assim porque o Senhor dos Tro-vŒes tem a seu serviƒo um peru que • sagrado. esse peruque se encarrega de castigar as pessoas e animais que seatrevem a estragar as plantaƒŒes. O peru transforma as pes-soas ou animais em perus. Por isso morrem com bolhas no pescoƒo. Os feiticeiros sacrificam galinhas, entregam moe-das (cacau) e ovos de peru ao Chicn Nind.7

    ‘Chicn Nind (Homem da Montanha). Ser mitolgico entre os mazatecos.

    Diz-se que • Senhor e Dono das Montanhas, que • um homem branco e quetem o poder de encantar os esp‚ritos e conjurar as m‡s inflû ncias ou esp‚ritosque provocam a doenƒa. Algumas pessoas identificam-no com Quetzalcatl.

    T Das versŒes que encontramos em Huautla, fornecidas por anciŒes, o pro-cedimento seguido pelos feiticeiros para efetuar esse rito … o seguinte:

    Quando o milho comeƒa a amadurecer, no princ‚pio de julho, os lavradoresficam atentos, ao nascer do sol, para escutar o "glu-glu" de um peru, que vemdo horizonte leste. E como se um peru enorme estivesse gorgolejando nos dom‚-nios do Senhor dos TrovŒes. Diz-se que este poderoso Senhor envia o peru paraavisar os lavradores de que chegou a hora de fazer o rito no qual a semeaduralhe • entregue. Os vizinhos ajudam cada lavrador a semear, sem receber paga-mento por isso. S€o volunt‡rios que prestam serviƒo a um indiv‚duo da comu-nidade. Assim, a fam‚lia propriet‡ria da roƒa convida os lavradores a participardo ritual da fertilidade e da p roteƒ€o da semeadura, depois de se ter "escutado"o aviso do peru sagrado. Para isso, os lavradores se renem, de madrugada, emtorno de um feiticeiro experiente, poderoso por seus conhec imentos, que iniciao ritual enviando os Iavradores ao local do plantio para que tragam de voltatreze p•s de milho completamente arrancados, "com raiz e tudo". De volta „choƒa, o feiticeiro recebe os p•s e desprende os gr€os, para coloc‡-los entre ascinzas do chamado braseiro cerimonial. Em seguida escolhe um peru, o maior,se a fam‚lia contar com v‡rios, ou se conforma com o nico que h‡. As fam‚liasmant̂ m os perus "em engorda", durante o ano compreendido entre o plantioe o plantio dos p•s de milho.

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    II

    Minha m€e, ao ficar viva, viu que n€o devia esperar nadada parte de seus sogros, e decidiu voltar a viver com os pais. Viveu seis anos com Crisanto Feliciano. Ela ainda era jovem, tinha uns vinte anos. Meu pai tinha morrido aos vin-te e cinco ou vinte e seis, n€o sei exatamente com que idadeele morreu.

    Meus avs maternos eram muito pobres. Minha m€enos trouxe para viver com eles e esqueceu R‚o Santiago com-

     pletamente.Meu avŽ, Manuel Cosme, quase um anci€o, trabalhava

    como pe€o para os fazendeiros, e minha av, Mar‚a Estefa-n‚a, cuidava da casa e do terreno em volta da chocinha, ondese plantava milho e feij€o. Tamb•m havia cabaƒas e chu-chus. O lugar onde viemos morar … e onde continuo moran-do … chama-se Cerro Fort‚n, fica acima do bairro mixteco, bem perto do Nind Tocoxho. Meus avs tinham abando-nado a chocinha da estrada de San Andr•s, „ qual meu paitinha ido um dia para buscar sua mulher. Passaram a vivernesta parte alta, de onde se via, l‡ embaixo, o pequeno po-

    voado de Huautla. Havia poucas casinhas de palha. Tudoestava coberto de ‡rvores e mato, mas a igreja j‡ estavaconstru‚da.

    1 Montanha situada em frente a Huautla. Tamb•m conhecida como Cerrode Adoraci‹n.  Diz a lenda que ali mora o Chicon Nind.

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    Meus avs me disseram que, quando eram jovens, ti-nham trabalhado como servos para o cura Catarino Garcia.'Esse cura viveu muitos anos em Huautla. Teve filhos comalgumas ind‚genas. Ao morrer pediu … e foi feito … que oenterrassem debaixo do altar da igreja de Huautla.

    A vida com meus avs foi dif‚cil. Geralmente, levant‡-vamos de madrugada, e, „ luz de um galho de ocote3 aceso,

    minha av, minha m€e e minha tia Juanita trabalhavam al€, a seda ou o algod€o. Meus avs criavam bichos-da-sedadentro da choƒa; os bichos-da-seda demoravam quase umano para crescer. Primeiro as mariposas punham seus ovi-nhos sobre esteiras, nasciam l‡ pelo mˆs de marƒo. Aos cincomeses os bichinhos sa‚am de seus ovinhos e ns lhes d‡va-mos alimento, as folhas de amora, que comiam ruidosamen-te. Escolh‚amos os bichinhos, e os separ‡vamos dos maiscrescidos, para que n€o lhes fizessem mal. Os bichos-da-se-da cresciam at• ficarem do tamanho de um dedo. Trˆs me-ses depois de abrirem os ovinhos, comeƒavam a babar, nsarrum‡vamos varas nas paredes, e eles depositavam a seda

    nessa cama de varas. N€o era f‡cil criar o bicho-da-seda.Exigia muito cuidado. Durante o dia ou „ noite limpava-sea seda, tirando os dejetos dos bichos. Era preciso aliment‡-los bem, se n€o os bichos n€o davam seda suficiente nemde boa qualidade...

    Por fim, limpava-se e juntava-se a seda, que era usa-da para fazer as faixas que os varŒes utilizavam em sua ves-timenta. Com a l€ e o algod€o faziam-se os panos com quenos vest‚amos. Nossa vida n€o mudava: despertar quandoa luz do dia ainda estava longe. Quando o primeiro galo damadrugada cantava, j‡ est‡vamos sorvendo nossa ‡gua defarinha adoƒada com aƒcar mascavo para aliviar a fome

    e o frio. De vez em quando tom‡vamos ch‡ de folhas de li-m€o ou laranja e, raramente, caf•. Minha m€e fazia as tor-tillas e bordava. Minha av ou minha tia trabalhavam no

    2Origin‡rio da Sierra de Ixtl‡n, Oaxaca. Contempor†neo de Benito Ju‡rez.

    Esp•cie de  pinhei ro, com muita resina. (N. da T.)

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    http://ves-timenta.com/http://ves-timenta.com/

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    tear rstico, meu avŽ sempre alugava seu braƒo de lavra-dor, assim como um tio nosso, chamado Emilio Cristino.

    Conforme minha irm€ e eu cresc‚amos, nossas tarefasna casa iam aumentando. Cuid‡vamos das galinhas no mon-te ou recolh‚amos varas que eram usadas para fazer o fog€oem que se cozinhava a comida.

    Eu tinha uns onze anos e minha irm€ nove quando

    nosso avŽ nos levou para plantar milho; ele fazia pequenasestacas de plantar para ns. Com as estacas faz‚amos um buraco na terra, onde deposit‡vamos os gr€os de milho. Afam‚lia toda ia para o plantio. Mar‚a Ana e eu, sentadas,escav‡vamos com dificuldade; acho que os gr€os de milhoca‚am € flor da terra, em desordem, •ramos muito peque-nas. Os adultos, ao contr‡rio, semeavam em fileiras perfei-tas, deixando os gr€os na profundidade certa. Quando seaproximava a colheita, os p•s eram altos, mais altos do queMar‚a Ana e eu, e isso nos fazia rir de alegria.

    Se n€o era tempo de trabalhar no campo, mandavam -nos cuidar das galinhas no monte, ou das duas ou trˆs ca-

     bras que, depois, eram vendidas. Aproveit‡vamos esse tem- po para brincar com nossas bonecas, que ns mesmas faz‚a-mos. A uma de minhas bonecas dei o nome de FlorenciaJos•. Era de trapo; fiz para ela um huipil 4 de seda. Em casan€o pod‚amos brincar, porque meu avŽ e minha tia Juanitaeram muito severos. N€o gostavam de nos ver brincar, eras trabalhar e trabalhar.

    Para o plantio do feij€o, nos chamavam, Para plantarmilho, nos levavam. Na semeadura assim como na colheita.

     Nos dias normais, com‚amos feij€o, se houvesse, ou nosconform‡vamos com simples tortillas salpicadas de pimenta,mas pod‚amos comer verduras, erva-moura ou

     guasmole' nosdias de Finados. Nos dias de festa, meu avŽ comprava car-

    o Vestido de mulher, semmangas; no M•xico e na Am•rica Central.( N. da T.)

    5O guasmole … um fruto de regiŒes sub-tropicais, abundante somente na

    outono, que se cozinha em tezmole.

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    ne de gado ou de carneiro, que minha av preparava emcaldo picante.

    O pouco alimento que minha av servia de madrugadaacalmava a fome contida durante muito tempo. Acho quenossa vontade de viver era muito grande, maior do que a demuitos homens. A vontade de viver nos mantinha lutando,dia aps dia, para, finalmente, conseguir alguma coisa que

    aliviasse a fome que Mar‚a Ana e eu sent‚amos. Tia Juanitaescondia a comida e quando minha m€e nos dava algumacoisa, a fome logo voltava a incomodar. Faz‚amos um esfor-ƒo para ter no estŽmago um s bocado, cada tarde, cadamanh€.

    V‡rios homens souberam que minha m€e tinha ficadoviva e vieram pedi-Ia. Tinham boas intenƒŒes; como • decostume, chegavam de madrugada, com aguardente e gali-nhas, que davam de presente ao meu avŽ, Manuel Cosme.Minha m€e nunca aceitou. "Meu nico compromisso de ago-ra em diante ser‡ criar minhas filhas" … era a sua resposta,apesar de ter ficado casada somente por seis anos.

    Ela viveu comigo, solteira, pelo resto de sua vida.

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    ~

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    I I I

    Uma vez, meu tio Emilio Cristino ficou t€o doente que j‡n€o podia se levantar. Eu tinha uns cinco, seis ou sete anos,e n€o soube qual era a sua doenƒa. Minha av, Maria Este-fan‚a, preocupada, saiu „ procura de um s‡bio chamado JuanManuel, para que ele curasse meu tio.

    O s‡bio Juan Manuel n€o era um homem muito velho.chegou „ nossa choƒa aps o anoitecer. Trazia um embrulhode folhas de bananeira, que tratava com extremo cuidado.

    Aproximei-me para ver o que havia dentro do embrulho,mas, rapidamente, o s‡bio Juan Manuel pegou-o e impediu-me de chegar mais perto, lanƒando-me um olhar autorit‡rio:"Ningu•m pode ver agora o que trago aqui, n€o • bom. Umolhar curioso pode estragar o que trago aqui..." … disse. Acuriosidade me manteve acordada. Vi como o s‡bio JuanManuel desembrulhou as folhas de bananeira. Dali tirou v‡-rios cogumelos frescos e grandes, do tamanho de uma m€o.Eu estava acostumada a ver esses cogumelos no monte ondecuidava das galinhas e das cabras. Havia muitos cogumelos,sua cor de caf• contrastava com o verde dos pastos.

    O s‡bio Juan Manuel tinha vindo para curar meu tio,

    Emilio Cristino; pela primeira vez, eu presenciava uma ve-lada' com os meninos santos. Compreendi isto mais tarde.Vi como o s‡bio Juan Manuel acendia as velas e falava comos donos dos montes e com os donos dos mananciais. Vi

    1 Velada.  Nome com que se designa a cerimŒnia.

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    como repartia os cogumelos, contando-os por pares, e osentregava a cada um dos presentes, incluindo o doente. Maistarde, na completa escurid€o, falava, falava e falava. Sualinguagem era muito bonita. Eu gostei dela. As vezes o s‡- bio cantava, cantava e cantava. N€o compreendia exatamen-te suas palavras, mas me agradavam. Era uma linguagemdiferente da que falamos todos os dias. Apesar de n€o com-

     preendˆ-la, aquela linguagem me atra‚a. Falava de estrelas,de animais, de outras coisas, desconhecidas para mim.Fazia tempo que tinha anoitecido, e eu n€o sentia so-

    no. Sentadinha, bem quieta, na minha esteira, seguia comatenƒ€o aquela velada. Compreendia muito bem que os co-gumelos tinham feito o velho Juan Manuel cantar. Depoisda meia-noite, o s‡bio acendeu uma vela e fincou-a no solo.Vi que danƒava enquanto dizia "ver" animais, objetos e personagens. N€o, eu n€o podia compreender tudo o que di-zia. O s‡bio falava sem parar. Queimava incenso e esfregava"S€o Pedros2 nos antebraƒos do doente.

    De madrugada, meu tio j‡ n€o parecia t€o doente, ia-serecuperando lentamente. O s‡bio Juan Manuel lhe dava †ni-mo com sua linguagem estranha. Meu tio se levantou. N€oficava de p• h‡ v‡rios dias, devido „ doenƒa.

    Meu tio Emilio Cristino recuperou-se por completo duassemanas depois.

    Alguns dias depois da velada em que o s‡bio Juan Ma-nuel curou meu tio, Mar‚a Ana e eu cuid‡vamos de nossasgalinhas no monte, para que n€o fossem v‚timas de gaviŒesou raposas. Est‡vamos sentadas sob uma ‡rvore quando derepente vi, perto de mim, ao alcance de minha m€o, v‡rioscogumelos. Eram os mesmos cogumelos que o s‡bio Juan

    Manuel tinha comido, eu os conhecia bem. Minhas m€os2 Sao Pedro, assim • designado o tabaco (nicotiana rstica) mo‚do, mistu-

    rado com cal, e 3s vezes tamb•m com alho. Seu uso • cerimonial e atribui-sea ele poder contra as m‡s influˆncias da feitiƒaria. Pode ser carregado numa bolsinha de pano ou como um escapul‡rio. Esse tabaco • identificado como piciete ou  piziate, e a palavra •, certamente, uma deformaƒ€o da express€o dosantigos mexicanos:  Picietl (nahuatl).

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    IV

    Ao terminar nossa inf†ncia, a carga de trabalho tinha aumen-tado para Mar‚a Ana e eu. T‚nhamos aprendido a fazer"tortillas", cozinhar, lavar e varrer.

    Certo dia, de madrugada, chegaram umas pessoas quefalaram por muito tempo com minha m€e e meus avs. As pessoas se foram e minha m€e me disse que t inham vindo pedir minha m€o. Queriam que eu me unisse em vida ma-

    rital com um jovem. As pessoas vieram outras vezes, maseu n€o via nenhum jovem casadouro entre eles. No entanto,conheci aquele que seria meu marido no dia em que veio buscar-me. N€o houve casamento. Minha m€e, sem me con-sultar, mandou-me juntar a roupa dizendo que, a partir da-quele momento, eu j‡ n€o lhes pertencia: "Agora, vocˆ per-tence a este jovem, que ser‡ seu marido. V‡ com ele. Sirva-o bem. Vocˆ j‡ • uma mulherzinha. ..", foram suas palavras.Esse • o costume. Eu tinha uns quatorze anos. Nos primei-ros dias de minha nova vida, senti medo, porque n€o sabiao que estava acontecendo. Depois resignei-me. Com o pas-sar do tempo, comecei a gostar muito de meu marido. Cha-mava-se Serapio Mart‚nez. Era um jovem de vinte anos. Gos-tava de andar com roupas limpas e n€o parecia um esfarra- pado. Mais tarde comprovei que tinha bom coraƒ€o. Toma-va pouca aguardente, quase nada; e n€o gostava do traba-lho no campo. Digo , com orgulho, que sabia ler e escrever.Dedicava-se ao com•rcio de fios vermelhos e negros, usa-

    dos para bordar os huipiles' que ns, mulheres, vestimos.Tamb•m vendia panelas, pratos e copos. Viajava a Crdo- ba, Veracruz, Tehuac‡n e Puebla, para comprar as merca-dorias, que vendia em Huautla ou nos povoados vizinhos. No princ‚pio viajava a p•, e transportava a mercadoria nascostas. Levava oito dias para ir e voltar de Puebla. Depoisconseguiu comprar animais de carga para transportar o que

    ali comprava.Quando eu lhe disse que estava gr‡vida, encarou o fa-to com naturalidade. N€o demonstrou nenhum sentimento,nem de alegria nem de tristeza; simplesmente balbuciou:"Ent€o prepare-se para ser m€e...". Ao regressar de suasviagens, falava comigo sobre as condiƒŒes da estrada ou so- bre os novos preƒos do fio ou das panelas.

    Certa vez, n€o falou como de costume. Quando lhe perguntei porque estava calado, respondeu: "Sei que emHuautla est€o reunindo as pessoas para lutarem com armas.Uns se chamam carrancistas e outros zapatistas. Andam comrifles e cavalos. Logo vir€o buscar-me. Receberei meu rifle;

    se virem que sou bom, v€o me dar um cavalo."As palavras de Serapio se cumpriram. Os homens da

    guerra levaram-no. Ele n€o opŽs resistˆncia.Foi-se quando Catarino, meu primeiro filho, tinha ape-

    nas dez dias de idade. "N€o se preocupe , Sab‚..." …disse-me Serapio … "encontrarei um meio de mandar algumdinheiro para voc .̂ ..". Fiquei olhando para ele at• perd -̂lo de vista na estrada. Partiu com uns homens que vieram

     busc‡-lo. Chorei muito. Mas os dias foram passando e eume conformei com o pensamento de que voltaria logo.Fiquei com minha m€e em minha cabaninha. Meus avs j‡ tinham morrido, tio Emilio e t ia Juanita tamb•m tinhammorrido.

    Os novos soldados ficaram aquartelados em Huautladurante v‡rios dias. Depois partiram. Serapio foi nomeado

    1 huipile • nome mexicano dos trajes regionais usados pelas mulheresind‚genas.

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    corneteiro, inicialmente. Um ano mais tarde era major doex•rcito, e trabalhou sob as ordens do general Adolfo Pi-neda,2 que sei, Alvaro, era seu avŽ. Durante o tempo em queSerapio estava na guerra, chegava dinheiro para mim,que ele enviava irregularmente. Um soldado ia de casa emcasa, levando not‚cias verbais, cartas e dinheiro. Serapion€o me escrevia porque eu n€o sabia ler, somente uma vezme enviou um recado; procurei algu•m que soubesse ler

     para dizer-me o que estava escrito ali. Mandava dizer queeu n€o devia me preocupar com ele, que estava bem. Mas,em outras ocasiŒes, n€o havia recado nem dinheiro, s umanot‚cia cruel: "Serapio morreu em combate..." Eu cho-rava. Chorava sobre o corpinho de meu filho Catarino re-c•m-nascido.

     Naquele tempo o povo vivia assus tado; ns, que t‚nha-mos familiares na guerra, est‡vamos sempre angustiados.Chegava um homem e dizia: "Sabi, n€o se aflija, Serapioest‡ vivo ... " Pouco depois, a vers€o mudava: "Serapio est‡ perdido, ningu•m sabe dele. Vamos esperar que ele apa-reƒa logo." Em seguida, uma esperanƒa: "Serapio j‡

    apareceu. .." e, logo, outra desilus€o: "N€o. J‡ morreu..."Acabei me acostumando a essa vida de sobressaltos e houvemomentos em que j‡ n€o me importava se Serapio aindaestava vivo ou j‡ estava morto. Os rumores que chegavam† minha porta recebiam unicamente um frio agradecimento .

    Mas senti que meu coraƒ€o encheu-se de alegria quando, depois de seis meses, Serapio apareceu diante de mim.A primeira vista, n€o o reconheci. Tinha um rifle pesado,um uniforme e uma coisinha que se pŒe na cabeƒa". Falou

     pouco de sua vida de soldado, disse-me apenas que tinhasido escolhido para corneteiro e que, quando seu superiormorreu em combate, deixou o clarim e passou a carregar

    o fuzil do soldado morto. Viram que ele era ‡gil. Para test‡-lo, uma vez fizeram-no correr junto com um cavalo, e viramque agentou- muito. Os ‡geis tinham mais chance de pro-

    2 Personagem do movimento carrancista em Huautla, de origem mazateca.a Quepe.

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    moƒ€o. Os ‡geis e os valentes. A valentia vinha em primeirolugar. E Serapio era valente, sua juventude ajudava.

    Serapio partiu novamente para a guerra e eu j‡ n€ome preocupei tanto. Voltou oito meses depois, para ficar. Nessa •poca meu filho Catarino j‡ comeƒava a andar.

    Serapio tomava pouca aguardente e trabalhava muito,mas gostava de mulheres. Trouxe v‡rias mulherzinhas paraminha casa. ramos tr̂ s sob o mesmo teto quando isso

    acontecia. As mulheres iam embora de minha casa quinzeou trinta dias depois de terem chegado. Eu n€o era ciumenta porque me sentia a verdadeira mulher de Serapio . Tive trˆsfilhos com ele: Catarino, Viviano e Apolonia. Cada umdeles nasceu a intervalos de um ano e meio.

    O gosto de meu marido pelas mulheres fez com quenossas relaƒŒes n€o fossem t€o boas quanto eu gostaria.Sentia amor por ele e me do‚a saber que estava apaixonado por uma jovem de Tierra Caliente. Foi-se afastando de mim porque preferiu a outra.

    Serapio contraiu a doen‚a de vento } em Tierra Calientee morreu depois de tr̂ s dias de agonia. Seus animais decarga e seu dinheiro ficaram com a outra mulher.

    Assim terminou minha vida de casada. Tive maridodurante seis anos, o mesmo tempo que meu pai viveu comminha m€e. Como ela, enviuvei aos vinte anos de idade.

    4 Tchƒin-tjao (broncopneumonia). "Esta doenƒa • trazida  pelos ventos defurac€o. Se as nuvens de urna tormenta prxima s€o escuras, trazem Tchƒin-tjao":Ricardo Garc‚a Enr‚quez. Xochitonalco, Agencia Municipal de Huautla.

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    V

     Nunca comi os meninos santos enquanto vivia com Serapio, pois , de acordo com nossas crenƒas, a m ulher que toma co-gumelos n€o deve ter contato com os homens. Os que v€odespertar n€o devem ter contato sexual durante quatro diasantes e quatro dias depois da velada. Os que assim o qui-serem podem completar cinco e cinco. Eu n€o tomava osmeninos santos  porque temia que meu homem n€o com-

     preendesse. A condiƒ€o deve ser cumprida „ risca.

    Em meus primeiros anos de viuvez, senti as mol•stiasde meus partos. A cintura e os quadris do‚am. Mandei cha-mar uma massagista, que n€o me aliviou muito. Tamb•mtomei banhos de vapor sem obter um bom resultado. Chameitamb•m um curandeiro e um chupador, mas n€o me alivia-ram nada. Finalmente, decidi voltar a tomar os meninos

     santos. Tomei-os sozinha, sem recorrer a nenhum s‡bio.Essas coisinhas trabalharam em meu corpo, mas lembro

    que minhas palavras n€o foram boas. Tomei-as somente para apertar com suavidade minha cintura. Fiz massagemem todas as partes do meu corpo que do‚am. Passaram osdias e sarei. E tinha decidido tom‡-los, porque estava limpa.

     N€o tinha marido. No fundo eu sabia que era mulher dou-tora. Sabia qual era o meu destino. Sentia bem no fundode mim. Sentia que tinha um grande poder, um poder quedespertava em mim durante as veladas.

    Mas havia fome em casa. Assim, comecei a trabalhar para manter minha m€e e meus trˆs filhos. O trabalho ‡rduo,

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    constante, n€o me assustava. Eu sabia arar a terra e cortarlenha com o machado, sabia semear e colher espigas. Tra- balhava tanto quanta um homem forte, „s vezes viajava aTeotitl‡n, onde comprava panelas, que revendia no mercadode Huautla. A criaƒ€o do bicho da seda e o dif‚cil trabalhode juntar a l€ e o algod€o diminu‚ram quando os comer-ciantes de Huautla trouxeram tecidos da cidade. Ent€o co-nhecemos as mantas e os tecidos de cor.

     Nesses anos de viuvez, plantei milho e fei j€o. Tamb•mcolhi caf•. Nos dias em que trabalhava no campo, cavava pequenas fossas onde punha m eus fi lhos pequenos, para quen€o me atrapalhassem. As vezes, revendia p€o e velas nasfazendas e povoados vizinhos como San Miguel, Tenangoe R‚o Santiago.

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    VI

    V‡rios anos, n€o sei quantos, depois de eu ter ficado viva pela primeira vez, minha irm€ Mar‚a Ana adoeceu. Sentiadores no ventre; eram pontadas agudas que a faziam dobrar-se e gemer de dor. Eu via que ia ficando cada vez maisgrave. Quando ela se sentia mais ou menos aliviada, voltavaaos afazeres dom•sticos; mas, sem que ela pudesse se con-trolar, uma vez desmaiou na estrada.

    Seus desmaios ocorreriam freqentemente mais tarde.

    Temendo por sua sade, contratei curandeiros paratrat‡-la, mas pude ver, com angstia, que seu mal aumentava.Certa manh€, n€o se levantou da cama; tremia e gemia.Fiquei preocupada como nunca. Chamei v‡rios curandeiros,mas foi intil, eles n€o puderam curar minha irm€.

     Naquela tarde, vendo minha irm€ estirada, pensei queestivesse morta. Minha nica irm€. N€o, isso n€o podia acon-tecer. Ela n€o podia morrer. Eu sabia que os meninos santostinham o poder. Eu os tinha comido quando crianƒa, e melembrava de que n€o faziam mal. Eu sab ia que nossa genteos comia para curar doenƒas. Ent€o, tomei uma decis€o;naquela mesma noite, eu comeria os cogumelos santos. Fiz

    isso. Dei a ela tr̂ s pares. Eu comi muitos, para que medessem poder imenso. N€o posso mentir, devo ter comidotrinta pares de "derrumbe".'

    1 Variedade de cogumelos.  Psilocybe caerulescens Murril var.  Mazateco rumHeim.

    Quando os meninosestavam trabalhando dentro de meucorpo, rezei e pedi a Deus que me ajudasse a curar Mar‚aAna. Pouco a pouco, senti que podia falar cada vez commais facilidade. Aproximei-me da enferma. Os meninos san-tos guiaram minhas m€os para apertar seus quadris. Suave-mente, fui fazendo massagem onde ela dizia que do‚a. Eufalava e cantava. Sentia que cantava bonito. Dizia o que os

    meninosme obrigavam a dizer.

    Continuei apertando minha irm€, no ventre e nos qua-dris; finalmente, veio muito sangue. ‰gua e sangue, comose estivesse parindo. Nunca me assustei, porque sabia que o pequeno que brota a estava curando atrav•s de mim. Osmeninos santos aconselhavam, e eu executava. Fiquei comminha irm€ at• que o sangue parou de sair. Logo ela paroude gemer e dormiu. Minha m€e sentou-se junto dela parasocorre-la.

    Eu n€o pude dormir. Os  santinhos continuavam traba-lhando em meu corpo. Lembro que tive uma vis€o: apare-ceram uns personagens que me inspiraram respeito. Eu sabia

    que eram os Seres Principais de que falavam meus ascen-dentes. Eles estavam sentados atr‡s de uma mesa sobre aqual havia muitos pap•is escritos. Eu sabia que eram pap•isimportantes. Os Seres Principais eram v‡rios, uns seis ouoito. Alguns me olhavam, outros liam os pap•is da mesa,outros pareciam procurar logo entre os mesmos pap•is. Eusabia que n€o eram de carne e osso. Sabia que n€o eramseres de ‡gua ou tortilla. Sabia que era uma revelaƒ€o queos meninos santos me entregavam. Logo escutei uma voz.Uma voz doce mas autorit‡ria ao mesmo tempo. Como avoz de um pai que gosta dos filhos mas cria-os com firmeza.Uma voz s‡bia que disse: "Esses s€o os Seres Principais..."Compreendi que os cogumelos falavam comigo. Senti umafelicidade infinita. Na mesa dos Seres Principais apareceuum livro, um livro aberto que foi crescendo, at• ficar dotamanho de uma pessoa. Em suas p‡ginas havia letras. Eraum livro branco, t€o branco que resplandecia.

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    Um dos Seres Principais falou comigo, e disse: "Mar‚aSabina, este • o Livro da Sabedoria. o Livro da Lingua-gem. Tudo o que nele est‡ escrito • para vocˆ. O Livro •seu, pegue-o para trabalhar..." Eu exclamei, emocionada:"Isso • para mim! Recebo-o..."

    Os Seres Principais desapareceram e me deixaram sdiante do imenso Livro. Eu sabia que era o Livro da Sabe-

    doria.O Livro estava diante de mim, eu podia vˆ-lo, masn€o toc‡-lo. Tentei acarici‡-lo, mas minhas m€os n€o toca-ram nada. Limitei-me a contempl‡-lo e, ent€o, comecei afalar. Ent€o me dei conta de que estava lendo o Livro Sa-grado da Linguagem. Meu Livro. O Livro dos Seres Prin-cipais.

    Eu tinha atingido a perfeiƒ€o. J‡ n€o era uma simplesaprendiz. Por isso, como um prˆmio, como uma nomeaƒ€o,o Livro me tinha sido outorgado. Quando se tomam osmeninos santos, se , pode ver os Seres Principais. De outromodo, n€o.' que os cogumelos s€o santos; d€o Sabedoria.A Sabedoria • a Linguagem. A Linguagem est‡ no Livro.O Livro • outorgado pelos Principais. Os Principais apare-cem com o grande poder dos meninos.

    Eu aprendi a sabedoria do Livro. Depois, em minhasvisŒes posteriores, o Livro j‡ n€o aparecia, porque eu j‡guardava seu contedo na memria.

    Fiz a velada em que curei minha irm€ Mar‚a Ana comoos antigos mazatecos. Usei velas de cera pura; flores, aƒu-

    ‘ De acordo com as explicaƒŒes que nos deram os anciŒes de Huautla, osSeres Principais s€o os  personagens que encabeƒam um cargo municipal, ou •o t‚tulo que se d‡ a  pessoas que tˆm cargos importantes. Em mazateco se dizChot‡a-tjƒ-tj‹n.  No que diz respeito „s visŒes de Mar‚a Sabina, os Seres Prin-cipais s€o a  personificaƒ€o dos cogumelos que ela comeu. Os cogumelos se trans-formam em "personagens que manuseiam  pap•is im portante s". Outra pessoa, emHuautla, disse-nos que os Seres Principais s€o como  sombras ou  pessoas que se"v êm" vestidas como camponeses, mas com roupas brilhantes e coloridas quandovistas durante o transe.

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    cenas e glad‚olos (pode-se usar qualquer tipo de flor, desdeque tenha cheiro e cor), tamb•m se usa copal' e S€o Pedro.

    Queimei o copal num braseiro e com a fumaƒa defumeios meninos santos que tinha nas m€os. Antes de comˆ-los,falei com eles, pedi-lhes favor. Que nos abenƒoasse, que nosindicasse o caminho, a verdade, a cura. Que nos desse o poder de rastrear as pegadas do mal, para acabar com ele .Eu disse aos cogumelos: "Tomarei seu sangue. Tomarei seu

    coraƒ€o. Porque minha consciˆncia • pura, • limpa comoa sua. Dˆem-me a verdade. Que me acompanhem S€o Pe-dro e S€o Paulo ... " Ao sentir-me enjoada, apaguei as velas.A escurid€o serve de fundo para o que se vˆ ali.

     Nessa mesma velada, logo que o Livro desapareceu,tive outra vis€o: vi o Supremo Senhor dos Montes, o Chicon

     Nind. Vi que era um homem a cavalo que vinha at• minhachoƒa. Eu sabia, a voz me dizia, que aquele ser era um personagem. Sua cavalgadura era bela: um cavalo branco,t€o branco quanto a espuma. Um belo cavalo.

    O personagem parou sua cavalgadura diante da porta

    de minha choƒa. Eu podia vˆ-lo atrav•s das paredes, euestava dentro da casa, mas meus olhos tinham o poder dever al•m de qualquer obst‡culo. O personagem esperavaque eu sa‚sse.

    Com decis€o, sa‚ ao seu encontro. Parei junto dele.Sim, era o Chicon Nind, o que mora tio Nind To-

    coxho, o que • dono das montanhas. O que tem poder paraencantar os esp‚ritos. E que, assim mesmo, cura os doentes.Para o qual sacrificam perus e ao qual os curandeiros en-tregam moedas (cacau), para que cure.

    Parei junto dele e me aproximei mais. Vi que n€o tinharosto, embora usasse um chap•u branco. Seu rosto, sim, eracomo uma sombra..

    3Resina que pode ser extra‚da de v‡rios tipos de ‡rvores; queima-se comoincenso. (N. da T.)

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    A noite era negra, as nuvens cobriam o c•u, mas oChicon Nind era como um ser coberto por um halo. Emu-deci.

    O Chicon Nind n€o disse nem uma palavra. Logo fezsua cavalgadura andar, para seguir seu caminho. Desapa-receu pela estrada, rumo „ sua morada: o enorme Monte daAdoraƒ€o. O Nind Tocoxho. Ele vive l‡, eu no Monte do

    Fortim, o mais prximo do Nind Tocoxho, quer dizer quesomos vizinhos. O Chicon Nind tinha vindo porque, emminha s‡bia linguagem, eu o tinha chamado.

    Entrei em casa e tive outra vis€o: vi que algo ca‚a doc•u com um grande estrondo, como um raio. Era um objetoluminoso que cegava. Vi que ca‚a por um buraco que haviana parede. O objeto ca‚do foi se transformando numa esp•-cie de ser vegetal, tamb•m coberto por um halo, como oChicon Nind. Era como uma planta, com flores de muitascores, na cabeƒa tinha um grande resplendor. Seu corpoestava coberto de folhas e talos. Ficou parado ali, no centroda choƒa, olhei-o de frente. Seus braƒos e pernas eram como

    ramos, e estava empapado de frescor, e por tr‡s dele apa-receu um fundo avermelhado. O ser vegetal foi se perdendonesse fundo avermelhado at• desaparecer completamente.Ao esfumar-se a vis€o eu suava, suava. Meu suor n€o eramorno, mas fresco. Dei-me conta de que eu chorava e minhasl‡grimas eram de cristal, e, quando ca‚am no ch€o, tilin-tavam. Continuei chorando, mas assobiei e aplaudi, toquei edancei. Dancei porque sabia que era a Polichinela grandiosae a Polichinela suprema... De madrugada, dormi placida-mente. Dormi, mas n€o um sono profundo, eu sentia queme movia num sonho... como se meu corpo se movessenuma rede gigante pendurada no c•u, que oscilava de uma

    montanha a outra.Despertei quando o mundo j‡ estava ensolarado. Era

    de manh€. Lancei meu corpo no ch€o para ter certeza deque j‡ tinha voltado ao mundo dos humanos. J‡ n€o estava

     perto dos Seres Principais... ao ver o que me cercava, pro-

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    curei minha irm€ Mar‚a Ana. Estava dormindo. N€o quisacord‡-la. Tamb•m vi que uma parte das paredes da cho-cinha estava derrubada, outra estava para cair. Agora achoque enquanto os meninos santos trabalhavam em meu corpo,eu mesma derrubei a parede com o peso de meu corpo.Suponho que enquanto eu danƒava choquei-me contra a pa-rede e derrubei-a. Nos dias seguintes, as pessoas que passa-vam perguntavam o que tinha acontecido na casa. Limitava-me a dizer-lhes que as chuvas e vendavais dos ltimos diastinham conseguido afrouxar as paredes de barro e cana- brava, acabando por destru‚-las.

    E Mar‚a Ana sarou. Sarou rara sempre. Atualmentevive bem, com seu marido e seus filhos, perto de Santa Cruzde Ju‡rez.

    A partir daquela cura, tive f• nos meninos santos. As pessoas se deram conta do quanto era dif‚cil curar minhairm€. Muita gente ficou sabendo, e dentro de poucos diasvieram procurar-me. Traziam seus doentes. Vinham de lu-gares muito afastados. Eu os curava com a Linguagem dosmeninos. As pessoas vinham de Tenango, R‚o Santiago ouSan Juan Coatzospan .4 Os doentes chegavam p‡lidos, masos cogumelos diziam-me qual era o rem•dio. Diziam-me oque fazer para curar. As pessoas continuaram a me pro-curar. E desde que recebi o Livro, passei a fazer parte dosSeres Principais. Se eles aparecem, sento-me com eles e to-mamos cerveja ou aguardente. Estou entre eles desde a vezem que, agrupados atr‡s de uma mesa com pap•is impor-tantes, entregaram-me a sabedoria, a palavra perfeita: A Lin-guagem de Deus.

    A Linguagem faz com que os moribundos voltem „

    vida. Os doentes recuperam a sade quando escutam as palavras ensinadas pelos meninos santos. N€o h‡ mortal que possa ensinar essa Linguagem.

    4 San Juan Coatzospan,  povoado de raƒa mixteca incrustado em  plena regi€omazateca.

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    Depois que curei minha irm€ Mar‚a- Ana, compreendique tinha encontrado o meu caminho. As pessoas sabiamdisso, e vinham a mim para que eu curasse os seus doentes.Vinham em busca de cura aqueles que tinham sido encan-tados por duendes, os que tinham perdido o esp‚rito por umsusto no monte, no rio ou na estrada. Alguns n€o tinhamrem•dio e morriam. Eu curo com a Linguagem, a Linguagemdos meninos santos.

    Quando eles aconselham sacrificarfranguinhos, estes s€o colocados em cima das partes ondedi. O resto • a Linguagem. Mas meu caminho em direƒ€o„ sabedoria em breve seria interrompido.. .

    VII

    Doze anos depois de ficar viva, um homem chamado Mar-cial Carrera comeƒou a me pretender. Na verdade, eu n€o precisava ter um homem, pois sabia cuidar de mim mesmasozinha. Eu sabia trabalhar; minha fam‚lia, pelo menos, n€osofria tanto quanto eu tinha sofrido. Havia fome, sim, masn€o era t€o lancinante quanto a que Mar‚a Ana e eu tivemos.Meu trabalho contribu‚a para que cada um tivesse algo para

    comer e algo para vestir.Marcial Carrera insistiu. Segundo o costume, trouxe

    seus pais para falar com minha m€e. Minha m€e tentavaconvencer-me a aceitar esse homem. Dizia que um homemna casa ajudaria a tornar meu trabalho menos pesado. Pas-saram-se os dias e eu pensava nisso, pois meu pretendenten€o parecia ser homem de trabalhar. E mais, tinha fama de preguiƒoso e beberr€o.

    Mas no fim concordei. impus minhas condiƒŒes: seMarcial queria uma mulher, teria de vir morar em minhacasa porque eu n€o iria mudar minha m€e, meus filhos,minha esteira, minas panelas, minhas enxadas e meus ma-chetes para a casa dele. Achava que minha casa era melhordo que a do pobre Marcial.

    Marcial aceitou minhas condiƒŒes e veio morar emminha casa. Com o tempo comprovou-se que Marcial bebia

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    muita aguardente. Era curandeiro. Usava ovos de peru e penas de arara para fazer suas feitiƒarias.'

    Batia em mim freqentemente e me fazia chorar. N€ogostava de trabalhar no campo e nem sabia usar a enxadacom destreza.

    Como vi que Marcial ganhava pouco dinheiro, que n€oconseguia cobrir os pequenos gastos da casa, vi-me obrigada

    a voltar a trabalhar. Voltei a revender p€es e velas. Nos treze anos que vivi com Marcial tive seis filhos.Morreram todos, somente minha filha Aurora sobreviveu.Meus filhos morreram por doenƒa ou assassinados. Enquan-to vivi com Marcial nunca tomei os meninos. Temia queele n€o compreendesse e destru‚sse a minha limpeza corporalde s‡bia.

    Marcial, como meu primeiro marido, Serapio, gostavade ter outras mulheres. Os filhos de uma senhora com quemtinha relaƒŒes deram-lhe um golpe e feriram-no com ummachete. Esvaindo-se em sangue, morreu estirado na estrada.

    10s objetos usados na feitiƒaria (tema que niio • tratado com a devidaamplitude neste volume) incluem  penas de a rara, cacau (gr€o considerado moeda),ovos de  peru ("porque t•m mais forƒa que os de galinha"), velas de cera, copal, braseiros e tabaco (Sao Pedro).  Num  prximo volume, trataremos dos rituais dafeitiƒaria e do curandeirismo, assim como das plantas utilizadas na medicinamazateca.

    VIII

    O fato de ter ficado viva pela segunda vez de certo modome ajudou a tomar a decis€o de me entregar ao meu destino.O destino que j‡ estava fixado desde antes de eu nascer: sers‡bia. Meu destino era curar. Curar com a Linguagem dosmeninos santos. Tomei essa decis€o, mas tamb•m tinha decontinuar a trabalhar duro para manter minha fam‚lia, n€otanto quanto antes, porque meu filho Catarino j‡ comeƒavaa trabalhar. Comerciava com fios, que revendia em Tierra

    Caliente, percorrendo os caminhos de seu finado pai.' N€o tenho certeza, mas creio que eu tinha mais de qua-

    renta anos de idade. J‡ n€o me sentia em condiƒŒes de viajar para revender p€o e velas nas fazendas. No tempo em quemeu marido Marcial era vivo, com minhas economias con-segui construir uma casa de sete braƒas, com paredes demadeira e teto de sap•. A casa ficava „ beira da estrada quevai para San Miguel. Nessa casa montei uma vendinha emque vendi aguardente e cigarros. Em seguida passei a vendercomida para os viajantes.

     Nos dias seguintes € minha segunda viuvez, eu quis

     praticar o curandeirismo, como Marcial. Eu sentia que deviacurar, E que devia curar com os meninos santos, mas algo

    1A Tierra Caliente mazateca compreende a zona baixa da regi€o, com  po -voados em sua maioria ribeirinhos --- situados ‡ margem ou nas ilhotas darepresa Miguel Alem‡n …, cujos habitantes trabalham como pescadores, cafei-cultores ou coletores de timbd. Nesses povoados falam-se dialetos mazatecos.

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    me impedia. Algo como o medo que se tem de se entregara algo que lhe foi dado, „quilo a que se est‡ destinado.

    Pratiquei o curandeirismo, sim, mas isso n€o me satis-fez. Eu sentia que estava fazendo o que n€o devia, pensavaque a mulher limpa, a mulher de Cristo, a mulher estrelada manh€, n€o devia praticar o curandeirismo. Eu estavadestinada a algo superior. No curandeirismo eu enterrava

    ovos como oferenda aos Senhores dos Montes, enterrava-osnos cantos de fora da casa, ou dentro dela, mas vi que bro-tavam vermes onde tinham sido enterrados e isso me davanojo e pavor. Achei que esse n€o era o caminho do destino.

    Lembrei-me de meus ascendentes: meu bisavŽ JuanFeliciano, meu avŽ Pedro Feliciano, minha tia-av Mar‚aAna Jess e meu tio-avŽ Antonio Justo tinham sido s‡biosde prest‚gio.

    r x

    Para mim, a bruxaria e o curandeirismo s€o tarefas inferio-res. Os bruxos e curandeiros tamb•m tˆm sua Linguagem,mas • diferente da minha. Eles pedem favores ao Chicon

     Nind. Eu peƒo a Jesus Cristo, a S€o Pedro, a Madalena e aGuadalupe.

    Em mim n€o h‡ bruxaria, n€o h‡ raiva, n€o h‡ menti-ra. Porque n€o tenho sujeira, n€o tenho p. A doenƒa saise os doentes vomitam. Vomitam a doenƒa. Vomitam por-

    que os cogumelos querem que o faƒam. Se os doentes n€ovomitam, eu vomito. Vomito por eles, e desta maneira omal • expulso. Os cogumelos tˆm poder porque s€o a carnede Deus. E os que cr̂ em saram. Os que n€o cr̂ em n€osaram.

    As pessoas que se deram conta de que eu tinha curadoMar‚a Ana trouxeram seus filhos doentes. Um, dois, dez,muitos. Curei muitas crianƒas. As vezes, dou „s crianƒas um

     pedacinho de  pequeno que brota. Vomito pelas crianƒas seelas n€o o fizerem. Antes de iniciar a velada, pergunto onome do doente. Assim procuro a doenƒa e assim curo. Seo doente n€o me diz a causa de seu mal, eu adivinho. Quan-do o doente sua, isto revela que vai sarar. O suor tira a fe- bre, que • conseqˆncia da doenƒa . Minhas palavras obri-gam a maldade a sair.

    Para uma forte dor de dentes comem-se sete ou oito pares, isso basta. Os meninos devem ser tomados de noite;

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     para isso, celebra-se a velada, diante de imagens de santosda igreja. Os meninos santos curam as chagas, as feridas doesp‚rito. E o esp‚rito que adoece. Os curandeiros n€o sabemque as visŒes que os meninos mostram revelam a origem domal. Os curandeiros n€o sabem us‡-los. Os feiticeiros tam-

     b•m n€o. Os feiticeiros temem os s‡bios como eu, porquesabem que posso descobrir se eles causaram um encantamen-to, se roubaram sub-repticiamente o esp‚rito de uma crianƒa,de um homem ou de uma mulher. Os cogumelos me d€o o

     poder da contemplaƒ€o universal. Posso ver desde a origem.E posso chegar at• onde nasce o mundo.

    O doente sara e os familiares vˆm me visitar, depois, para dizer que est€o aliviados. Agradecem com aguardente,cigarros, ou algumas moedas. N