arquéstrato, iguarias do mundo grego: guia gastronómico do

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    or be accompanied by a notice to this effect.

    Arqustrato, iguarias do mundo grego: guia gastronmico do Mediterrneo Antigo

    Author(s: Soares, Carmen

    Published by: Imprensa da Universidade de Coimbra

    Persistent URL: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/39608

    DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1245-4

    Accessed : 30-Nov-2016 20:50:29

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    OBRA PUBLICADA COM A COORDENAO CIENTFICA

    Srie DiaitaScripta & RealiaISSN: 2183-6523

    Destina-se esta coleo a publicar textos resultantes da investigao de membros do

    projeto transnacional DIAITA: Patrimnio Alimentar da Lusofonia. As obras consistem

    em estudos aprofundados e, na maioria das vezes, de carcter interdisciplinar sobre

    uma temtica fundamental para o desenhar de um patrimnio e identidade culturais

    comuns populao falante da lngua portuguesa: a histria e as culturas da alimentao.

    A pesquisa incide numa anlise cientfica das fontes, sejam elas escritas, materiais ou

    iconogrficas. Da denominar-se a srie DIAITA de Scripta - numa aluso tanto traduo,

    ao estudo e publicao de fontes (quer inditas quer indisponveis em portugus, caso

    dos textos clssicos, gregos e latinos, matriciais para o conhecimento do padro alimentar

    mediterrnico), como a monografias. O subttulo Realia, por seu lado, cobre publicaes

    elaboradas na sequncia de estudos sobre as materialidades que permitem conhecer a

    histria e as culturas da alimentao no espao lusfono.

    Carmen Soares Professora Associada com agregao da Universidade de Coimbra

    (Faculdade de Letras). Tem desenvolvido a sua investigao, ensino e publicaes

    nas reas das Culturas, Literaturas e Lnguas Clssicas, da Histria da Grcia Antiga

    e da Histria da Alimentao. Na qualidade de tradutora do grego antigo para

    portugus coautora da traduo dos livros V e VIII de Herdoto e autora da

    traduo do Ciclope de Eurpides, do Poltico de Plato e de Sobre o afecto aos

    filhos de Plutarco. Tem ainda publicado fragmentos vrios de textos gregos antigos

    de temtica gastronmica (em particular Arqustrato). coordenadora executiva

    do curso de mestrado em Alimentao Fontes, Cultura e Sociedade e diretora do

    doutoramento em Patrimnios Alimentares: Culturas e Identidades. Investigadora

    corresponsvel do projeto DIAITA-Patrimnio Alimentar da Lusofonia (apoiado pela

    FCT, Capes e Fundao Calouste Gulbenkian).

    A presente obra constitui a primeira traduo para portugus do texto grego de

    literatura gastronmica mais antigo a ter chegado aos nossos dias, ainda que apenas

    sob a forma de fragmentos. O poema do siciliano Arqustrato (sc. IV a. C.) um

    retrato da alimentao requintada das elites aristocrticas, com poder econmico para

    comprar o mais caro dos ingredientes (o peixe fresco de qualidade) e para realizar as

    rotas gastronmicas implcitas no texto. Na introduo procede-se anlise dos dados

    biogrficos do autor e histria da transmisso e receo da sua obra at ao presente.

    Segue-se a traduo dos 60 fragmentos que a compem, acompanhada de notas

    explicativas e de fotos de algumas das iguarias (reproduzidas da forma mais fidedigna

    possvel). No cap. III realiza-se uma anlise detalhada do contributo do poema para a

    histria da alimentao na Grcia antiga. A a cozinha de Arqustrato considerada

    sob cinco perspectivas: produtos, mtodos culinrios, utenslios, mobilirio e agentes

    de produo. Destaca-se nesta parte o recurso a mapas de localizao de ingredientes

    usados na confeo das receitas culinrias presentes na obra e um pormenorizado

    estudo da terminologia tcnica usada no universo da cozinha do poeta. A obra est,

    ainda, complementada por um anexo com as receitas das fotos, atualizadas segundo os

    padres modernos, pela bibliografia (edies e estudos) e por ndices de fauna e flora

    alimentares mencionados (em portugus, nome latino cientfico e em grego).

    9789892

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    Carmen Soares

    Arqustrato

    Guia Gastronmico do Mediterrneo Antigo

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

    ANNABLUME

    Iguariasdo Mundo Grego

  • Srie DiaitaScripta & RealiaISSN: 2183-6523

    Destina-se esta coleo a publicar textos resultantes da investigao de membros do

    projeto transnacional DIAITA: Patrimnio Alimentar da Lusofonia. As obras consistem

    em estudos aprofundados e, na maioria das vezes, de carcter interdisciplinar sobre

    uma temtica fundamental para o desenhar de um patrimnio e identidade culturais

    comuns populao falante da lngua portuguesa: a histria e as culturas da alimentao.

    A pesquisa incide numa anlise cientfica das fontes, sejam elas escritas, materiais ou

    iconogrficas. Da denominar-se a srie DIAITA de Scripta - numa aluso tanto traduo,

    ao estudo e publicao de fontes (quer inditas quer indisponveis em portugus, caso

    dos textos clssicos, gregos e latinos, matriciais para o conhecimento do padro alimentar

    mediterrnico), como a monografias. O subttulo Realia, por seu lado, cobre publicaes

    elaboradas na sequncia de estudos sobre as materialidades que permitem conhecer a

    histria e as culturas da alimentao no espao lusfono.

    Carmen Soares Professora Associada com agregao da Universidade de Coimbra

    (Faculdade de Letras). Tem desenvolvido a sua investigao, ensino e publicaes

    nas reas das Culturas, Literaturas e Lnguas Clssicas, da Histria da Grcia Antiga

    e da Histria da Alimentao. Na qualidade de tradutora do grego antigo para

    portugus coautora da traduo dos livros V e VIII de Herdoto e autora da

    traduo do Ciclope de Eurpides, do Poltico de Plato e de Sobre o afecto aos

    filhos de Plutarco. Tem ainda publicado fragmentos vrios de textos gregos antigos

    de temtica gastronmica (em particular Arqustrato). coordenadora executiva

    do curso de mestrado em Alimentao Fontes, Cultura e Sociedade e diretora do

    doutoramento em Patrimnios Alimentares: Culturas e Identidades. Investigadora

    corresponsvel do projeto DIAITA-Patrimnio Alimentar da Lusofonia (apoiado pela

    FCT, Capes e Fundao Calouste Gulbenkian).

  • Srie Diaita: Scripta & RealiaEstudos Monogrficos

  • Estruturas EditoriaisDiaita: Scripta & RealiaEstudos Monogrficos

    ISSN: 2183-6523

    Diretor PrincipalMain Editor

    Carmen SoaresUniversidade de Coimbra

    Assistente EditorialEditoral Assistant

    Joo Pedro Gomes Universidade de Coimbra

    Comisso Cientfica Editorial Board

    Andrew Dalby Investigador Independente,

    Historiador de Alimentao, Frana

    Delfim Leo Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,

    Instituto de Estudos Clssicos, Portugal

    John WilkinsUniversity of Exeter, Department of Classics and

    Ancient History, United Kingdom

    Maria de Ftima SilvaFaculdade de Letras da Universidade de Coimbra,

    Instituto de Estudos Clssicos, Portugal

    Mara Jos Garca Soler Universidad del Pas Vasco, Espaa

    Ornella Montanari Alma Mater Studiorum, Bologna, Italia

    S. Douglas Olson Universiy of Minnesota,

    Department of Classical and Near Eastern Studies, USA

    Todos os volumes desta srie so submetidos a arbitragem cientfica independente.

  • IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

    ANNABLUME

    Carmen Soares

    Arqustrato

    Guia Gastronmico do Mediterrneo Antigo

    Iguariasdo Mundo Grego

  • Capa - Fotografia Cover - PhotoPormenor de tanque das termas da Villa Romana de Milreu. Hlio Ramos| Direo Regional da Cultura do Agarve|2016

    Conceo Grfica GraphicsRodolfo Lopes, Nelson Ferreira

    Infografia InfographicsPMP, Lda.

    Impresso e Acabamento Printed bywww.artipol.net

    ISBN978-989-26-1244-7

    ISBN Digital978-989-26-1245-4

    DOIhttp://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1245-4

    Depsito Legal Legal Deposit 417274/16

    Reviso da terminologia cientfica de fauna e flora por Jorge Paiva(Faculdade de Cincias e Tecnologia da Universidade de Coimbra)

    Fotografias do receiturio por Guida Cndido(Arquivo Fotogrfico Municipal da Figueira da Foz)

    Receitas modernas por Chef Vtor Dias(Hotel Quinta das Lgrimas, Coimbra)

    Mapas por Tiago Cordeiro(Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, licenciatura em Arqueologia)

    Ttulo Title Arqustrato, IguarIas do Mundo grego. Guia Gastronmico do Mediterrneo AntigoTtulo InglsArchestratus, Delicacies from the Greek World. A Gastronomic Guide of the Ancient Mediterranean

    Autora AuthorCarmen Soares

    Editores PublishersImprensa da Universidade de CoimbraCoimbra University Presswww.uc.pt/imprensa_ucContacto Contact [email protected] online Online Saleshttp://livrariadaimprensa.uc.pt

    Coordenao Editorial Editorial CoordinationImprensa da Universidade de Coimbra

    Novembro 2016

    Trabalho publicado ao abrigo da Licena This work is licensed underCreative Commons CC-BY (http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/pt/legalcode)

    Imprensa da Universidade de CoimbraClassica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis http://classicadigitalia.uc.ptCentro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de CoimbraA ortografia dos textos da inteira responsabilidade da autora.

    Publicao financiada pela Fundao Calouste Gulbenkian, no mbito do:Concurso anual de 2014 de Apoio a Projectos de Investigao no domnio da Lngua e Cultura Portuguesas.

    Srie DIAITAScripta & Realia

  • Arqustrato, IguarIas do Mundo grego. Guia Gastronmico do Mediterrneo Antigo Archestratus, delIcacIes froM the greek World. A Gastronomic Guide of the Ancient Mediterranean

    Autora AuthorCarmen Soares

    Filiao AffiliationUniversidade de Coimbra

    ResumoA presente obra constitui a primeira traduo para portugus do texto grego de literatura gastronmica mais antigo a ter chegado aos nossos dias, ainda que apenas sob a forma de fragmentos. O poema do siciliano Arqustrato (sc. IV a. C.) um retrato da alimentao requintada das elites aristocrticas, com poder econmico para comprar o mais caro dos ingredientes (o peixe fresco de qualidade) e para realizar as rotas gastronmicas implcitas no texto. No cap. I procede-se anlise dos dados biogrficos do autor e histria da transmisso e receo da sua obra at aos nossos dias. Segue-se a traduo dos 60 fragmentos que a compem (cap. II), acompanhada de notas explicativas e de fotos de algumas das iguarias (reproduzidas da forma mais fidedigna possvel). No cap. III realiza-se uma anlise detalhada do contributo do poema para a histria da alimentao na Grcia antiga. A a cozinha de Arqustrato considerada sob cinco perspectivas: produtos, mtodos culinrios, utenslios, mobilirio e agentes de produo. Destaca-se nesta parte o recurso a mapas de localizao de ingredientes usados na confeo das receitas culinrias presentes na obra e um pormenorizado estudo da terminologia tcnica usada no universo da cozinha do poeta. A obra est, ainda, complementada por um anexo com as receitas das fotos, atualizadas segundo os padres modernos, pela bibliografia (edies e estudos) e por ndices de fauna e flora alimentares mencionados (em portugus, nome latino cientfico e em grego).

    Palavras-chaveLiteratura gastronmica, Grcia antiga, Arqustrato, alimentao do Mediterrneo, ingredientes, tcnicas culinrias, histria da alimentao.

    Abstract The present work offers the first translation into Portuguese of the oldest Greek gastronomic text that has come down to us, albeit only in fragmentary form. The poem written by the Sicilian author Archestratus (4th century BC) is an account of the sophisticated food eaten by the aristocratic elites with enough economic power to buy the most expensive ingredients (such as high quality fresh fish) and to undertake the gastronomic tours implied in the text. In chapter I, a survey is offered of the biographical data pertaining to the author and of the transmission and reception of his work up to the present day. This is followed by the translation of the 60 fragments (chapter II), with notes and photographs that illustrate some of the dishes. In chapter III, a detailed analysis is offered of the poems contribution to the historical study of food in ancient Greece. Here, Archestratus cuisine is considered from five perspectives: produce, culinary methods, utensils, furniture and production agents. Attention may be drawn to the use of maps showing the whereabouts of ingredients used in the confection of the recipes present in the work and a detailed study of the terminology used in the poets kitchen. Extra features in the book are appendices with some of the recipes, updated according to modern standards; bibliography (editions and secondary literature); and indices of the food-orientated fauna and flora mentioned (in Portuguese, with Latin scientific name and Greek term).

    KeywordsGastronomic Literature, Ancient Greece, Archestratus, Mediterranean Food, Ingredients, Culinary Technics, Food History.

  • (Pgina deixada propositadamente em branco)

  • Autora

    Carmen Soares professora associada com agregao da Universidade de Coimbra (Faculdade de Letras). Tem desenvolvido a sua investigao, ensino e publicaes nas reas das Culturas, Literaturas e Lnguas Clssicas, da Histria da Grcia Antiga e da Histria da Alimentao. Na qualidade de tradutora do grego antigo para portugus, coautora da traduo dos livros V e VIII de Herdoto e autora da traduo do Ciclope de Eurpides, do Poltico de Plato e de Sobre o afecto aos filhos de Plutarco. Tem ainda publicado fragmentos vrios de textos gregos antigos de temtica gastronmica (em particular, Arqustrato). coordenadora executiva do curso de mestrado em Alimentao Fontes, Cultura e Sociedade e diretora do doutoramento em Patrimnios Alimentares: Culturas e Identidades. Desempenha ainda as funes de investigadora corresponsvel do projecto DIAITA Patrimnio Alimentar da Lusofonia (apoiado pela FCT, Capes e Fundao Calouste Gulbenkian).

    CV completo disponvel online: http://www.degois.pt/visualizador/curriculum.jsp?key=7724126685525965

    Trabalhos disponveis online: https://coimbra.academia.edu/carmensoares

  • 8

    Author

    Carmen Soares is associate professor with aggregation (habilitation) at the University of Coimbra (Faculty of Letters). She has developed her research, lecturing and publishing in the areas of Culture, Literature and Classical Languages, History of Ancient Greece and Food History. As a translator of ancient Greek to Portuguese, she has been co-author of the translation of books V and VIII by Herodotus and author of the translation of Cyclops by Euripides, the Statesman by Plato and Plutarchs On Affection for Offspring. She has also published several excerpts of ancient Greek texts of a culinary theme (particularly Archestratus). She is executive coordinator of the MA course in Food - Sources, Culture and Society and Director of the PhD course in Food Heritage: Cultures and Identities. She is co-responsible researcher of the DIAITA Project Lusophone Food Heritage (supported by FCT, Capes and Calouste Gulbenkian Foundation).

    Complete CV online: http://www.degois.pt/visualizador/curriculum.jsp?key=7724126685525965

    Work available online at: https://coimbra.academia.edu/carmensoares

  • Sumrio

    Nota Prvia 11

    ndice de Mapas 13

    ndice de Imagens 13

    Abreviaturas 14

    Captulo I Apresentao do autor e da obra 151. 1. Autor e data 181. 2. Transmisso manuscrita e impressa da obra 191. 3. Caractersticas formais da obra 24

    Captulo II Traduo portuguesa anotada & edio modernizada do poema 33

    2. 1. Das metodologias de edio adotadas 352. 2. Da traduo anotada 382. 3. Traduo portuguesa anotada do poema 38

    Captulo III Contributos do poema de Arqustrato para a Histria da Alimentao 63

    Apndice Receiturio modernizado de Arqustrato 103

    Bibliografia 111Fontes (edies, tradues e comentrios) 111Estudos 112

    ndices remissivos 117Nomes comuns portugueses de fauna e flora 117Nomes gregos de fauna 118Nomes gregos de flora 120

  • (Pgina deixada propositadamente em branco)

  • Nota Prvia

    Publicar em portugus sobre a Histria da Alimentao do Mundo Grego antigo um desafio que se me coloca, antes de mais, enquanto docente de um mestrado e de um doutoramento da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra na rea interdisciplinar dos Estudos sobre Alimentao. Confrontada com a inexistncia de tradues em lngua materna dos mais antigos textos literrios de temtica gastronmica a chegarem aos nossos dias e consciente de que o desconhecimento ou fraca divulgao desse legado cultural (na melhor das hipteses confinado a circuitos de comunicao restritos a investigadores e acadmicos) condiciona e limita a perceo que qualquer indivduo tem da histria das culturas em que se insere, de que produto e/ou com que dialoga, decidi escrever o presente livro.

    Porque foi pensado para responder a uma necessidade bem clara do panorama cultural portugus o alheamento em relao obra grega que nos chega mais completa sobre a gastronomia do Mediterrneo e que em traduo livre apelido de Iguarias do Mundo Grego o livro que compus procurou harmonizar as expectativas de leitores no familiarizados com a histria e a lngua gregas antigas (mas interessados em conhecer esse universo) com as metodologias de investigao dos domnios cientficos da histria e da literatura. Em resultado desse perfil de pblico, optei no geral por, sempre que aparecem termos gregos (que no exclu por completo da minha escrita), estes vm acompanhados da sua transliterao em caracteres latinos e da respetiva traduo portuguesa. Tive igualmente em conta que os especialistas de Estudos Clssicos tm ao seu dispor tanto edies apenas do texto grego, como edies bilingues recentes (com o texto grego a par da respetiva traduo), e que apresento na rubrica Fontes da bibliografia final do volume.

    A respeito da autoria das tradues de textos gregos apresentadas, h que esclarecer que so todas da minha responsabilidade, salvo indicao expressa em sentido contrrio.

    Para as numerosas questes hermenuticas que legitimamente levanta um texto com a riqueza lingustica, estilstica, cultural e histrica como o caso do poema de Arqustrato que temos sob anlise, o leitor dispe de comentrios exaustivos, que acompanham as tradues para lngua inglesa, publicadas em 2000 (Olson-Sens) e 2011 (Wilkins-Hill). Nesse sentido, os comentrios que fao em nota de pgina traduo configuram-se em notas explicativas, reservando para a ltima parte do presente volume a anlise dos

  • 12

    contributos que a fonte literria em estudo fornece em termos de universo material e imaterial da alimentao grega antiga.

    Outro fator que influiu de forma determinante a abordagem que fiz ao texto do poeta Arqustrato, a ponto de me levar a apresentar uma proposta de edio modernizada da traduo, foi o desejo de dar inteligibilidade a um corpus literrio to fragmentado. Em vez de me limitar a apresentar uma traduo sequencial contnua do poema, decidi introduzir diversas moldu-ras temticas nesse corpus original, as quais servem o propsito de agilizar a aproximao do leitor contemporneo a um texto cuja compreenso se encontra bastante comprometida pelo prprio carcter fragmentado ou at mesmo truncado em que nos chegou. Esta foi uma atualizao deliberada de um legado multissecular, mas que, por continuar vivo (ou seja, por ser inteligvel para os leitores modernos), admitiu da parte de quem o estuda uma intromisso que teve por fim torn-lo atual.

    O desejo de levar essa atualizao para alm do texto, estendendo-a ao receiturio nele contido, determinou ainda a incluso de fotos de confees elaboradas com base nas descries do poeta sobre o modo de cozinhar algu-mas dessas iguarias. Essas imagens so apresentadas imediatamente a seguir traduo do fragmento da receita, tendo sido remetida para o Apndice a receita pormenorizada (contendo quantidades e mtodos de preparo), da responsabilidade do Chef Vtor Dias. Esta outra modernizao da traduo s foi possvel graas generosa colaborao da equipa de cozinha do Hotel Quinta das Lgrimas (Coimbra).

  • 13

    ndice de Mapas

    Mapa 1 - Centros de produo e venda de cereais e po 67Mapa 2 - Locais de captura de diversas espcies de mariscos 70Mapa 3 - Locais de captura de moluscos 71Mapa 4 - Locais de captura e consumo de peixes de escama com receita de preparao 72Mapa 5 - Locais de captura e consumo de peixes de pele com receita de preparao 73

    ndice de Imagens

    Imagem 1 - folha de rosto da obra de Dalechamps, J. (1583), Athenaei Naucratitis, Deipnosophistarum libri quindecim 15Imagem 2 - pormenor de tanque da Villa romana de Milreu (Esti, Faro) 33Imagem 3 - prato de Fritada de peixe mido 42Imagem 4 - prato de Bodio assado 43Imagem 5 - prato de Congro cozido 45Imagem 6 - prato de Peixe-porco cozido e grelhado 46Imagem 7- prato de Cao grelhado e estufado 48Imagem 8 - Trouxas de bonito nas brasas 52Imagem 9 - prato de Sargo grelhado 52Imagem 10 - prato de Bifes de atum grelhados 53Imagem 11 - prato de Robalo grelhado 56Imagem 12 - prato de Raia estufada 57Imagem 13 - Lebre no espeto 59Imagem 14 - Vaso grego proveniente de Alccer do Sal 60Imagem 15 - almofariz e pilo do Museu Monogrfico de Conimbriga 63Imagem 16 - preparao do peixe bonito 113

  • 14

    Abreviaturas

    a. C.: antes de Cristoadj.: adjetivoaprox.: aproximadamenteapud: preposio latina (na obra de)Ath.: Ateneuca.: circa (latim), cerca (portugus)comm.: commentarium (latim), comentrio (portugus)d. C.: depois de Cristofrg.: fragmentofrgs.: fragmentosgr.: gregoibidem (latim): a, no mesmo lugar (referindo-se a pgina anteriormente citada)i. e.: id est (latim), isto (portugus)p.: pginapl.: pluralpp.: pginassc.: sculoscs.: sculossc.: scilicet (latim), a saber (portugus)sing.: singularsubst.: substantivoT: testimonum (latim), testemunho (portugus)trad.: traduov.: versovv.: versos

  • 15

    Captulo I

    Apresentao do autor e da obra

  • Imagem 1 - folha de rosto da obra de Dalechamps, J. (1583), Athenaei Naucratitis, Deipnosophistarum libri quindecim... Lugduni, apud Antonium de Harsy (Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra)

  • A sobrevivncia de textos ao longo de sculos depende tanto de condi-cionalismos materiais (a natureza dos suportes de escrita, as condies de armazenamento e de transmisso interindividual e intergeracional) como das escolhas (sempre subjetivas) dos indivduos (na maioria das situaes mos annimas de copistas e de possuidores das obras)1. O que nos leva a supor a longssima e atribulada corrente de transmisso das obras que da Antiguidade grega e latina nos chegaram mais ou menos completas que as preferncias permitiram preservar sobretudo os textos que, pelo seu primor literrio, apuramento esttico e contedos morais, filosficos, histricos e cientficos, adquiriram o estatuto de obras maiores dos grandes gneros literrios: pica, lrica e prosa (histrica, filosfica e cientfica). A Ilada e a Odisseia de Homero, a Eneida de Virglio, as peas de teatro de squilo, Sfocles, Eurpides, Aristfanes, Plauto e Terncio, as Histrias de Herdoto e a Geograf ia de Estrabo, os dilogos de Plato e os tratados de Aristteles, os textos mdicos da escola hipocrtica e de Galeno so alguns dos ex libris mais conhecidos (e transmitidos) dessa Biblioteca Clssica.

    Aceitao bem diversa tiveram as obras em verso e em prosa que, entre o final da poca Clssica e o incio do Perodo Helenstico da histria da Grcia (scs. V-IV a. C.), foram sendo escritas em grande quantidade sobre matria gastronmica. Esta uma literatura j na poca considerada menor, principalmente por razes de ordem sociolgica e moral. Os livros de culi-nria (gr. opsartytika biblia), escritos em prosa, se certo que proliferaram, por veicularem um saber tcnico destinado a um pblico de origem maiori-tariamente servil, os cozinheiros profissionais, no menos evidente que no mereceram o interesse dos agentes transmissores de cultura, a aristocracia erudita e endinheirada2. Como detalharei mais adiante, mesmo um poema com os requintes literrios do que estamos a analisar, foi objeto do que se poderia denominar de censura moral3, uma vez que, nos meios intelectuais dominados pelos valores dos filsofos esticos e dos peripatticos, todo o

    1 Sobre as bibliotecas na Antiguidade, vd. Casson 2001.2 Dessa vasta galeria de escritos tcnicos de culinria chegam at ns um punhado de nomes

    de autores, ttulos das respetivas obras e uma amostra muito restrita de receiturio. Sobre esse gnero literrio, nascido pelas mos do Siciliano Miteco (sc.V a. C.) e com numerosos cultores nesse sculo e nos dois imediatamente posteriores, na sua maioria naturais de cidades dessa ilha e do Sul da Itlia (como so dois Heraclides, Dionsio e gis, todos os quatro de Siracusa, e Hegesipo de Tarento), vd. Bilabel 1921, Dalby 1996: 109-111, Soares 2010.

    3 Repare-se que muito provvel que esta censura possa ser entendida como o reflexo indireto do possvel sucesso da obra entre o pblico leitor. Nesse sentido parece, alis, apontar uma traduo adaptada para latim do poema, da autoria do poeta latino Quinto nio (finais do sc. III-incios do II a. C.), intitulada Hedyphagetica. Para uma traduo para ingls e comentrio do trecho que deste texto sobreviveu, vd. Olson-Sens (2000: 241-245).

  • 18

    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    discurso que apelasse aos prazeres do corpo era vivamente atacado4, repdio herdado por autores cristos subsequentes5.

    O texto que estudamos no oferece dvidas quanto ao nome do seu Autor, mas levanta algumas questes em termos de dados biogrficos e de data de composio da obra, que necessrio ponderar.

    1. 1. Autor e data

    Embora haja coerncia entre os vrios testemunhos antigos em relao origem siciliana de Arqustrato, as opinies dividem-se quanto sua cidade, referida como sendo Gela (costa sul da ilha) ou Siracusa (leste da ilha)6. Destas duas, os fragmentos sobreviventes do poema apenas mencionam a segunda, direta ou indirectamente, por trs vezes (frgs. 12, 22 e 46). Mas essa ausncia de menes a Gela pode simplesmente ser fruto do acaso da seleo de trechos que do poema sobreviveram. No se deve, no entanto, esquecer que numa dessas menes a Siracusa, ou melhor, aos naturais da cidade, o poeta se demarca das suas prticas do simpsio, ao afirmar num tom claro de reprovao: Esquece os modos dessa gente de Siracusa, que, maneira das rs, se limitam a beber, sem comer (frg. 60). Sendo o poeta, como se deduz da prpria leitura da obra, um membro da elite requintada da sua cidade-me, nado e criado nos hbitos e prticas sociais do seu meio, seria natural que partilhasse da cultura (neste caso a cultura do banquete) em que se formou. este raciocnio que nos faz simpatizar com a opinio dos editores de Arqustrato, S. Douglas Olson e Alexander Sens, para quem o poeta seria natural de Gela e no de Siracusa (Olson-Sens 2000: xx).

    To ou mais difcil estabelecer uma data, mesmo que aproximada, para a composio do poema. Passemos em revista os principais argumentos dos estudiosos da obra nesta matria. Enquanto Olson-Sens (2000: xxi-xxii e n. 5) apontam como perodo provvel os primeiros dois teros do sc. IV a. C., Dalby (1995: 403-404), apoiando-se em referncias na obra a determinadas cidades, prope um intervalo mais estreito de redao da obra: entre ca. 360 e 348 a. C. A seu ver, as recomendaes de compra de pescado de qualidade na regio dos estreitos de Messina (frgs. 7, 10, 17, 18 e 41) apontariam para

    4 Exemplo claro da identificao entre os prazeres da comida e os do sexo encontramo-lo numa meno de Ateneu (VIII 335b) precisamente ao filsofo estico Crisipo, que colocava ao mesmo nvel o poema gastronmico de Arqustrato e Os prazeres de Afrodite, obra desconhecida, mas de teor licencioso, atribuda a Filnide de Samos ou de Lucade, datada de incios do sc. IV a. C.

    5 Como Justino Mrtir (II Apologia 15, 3), que contrape a mensagem de Cristo a vrios escritores e filsofos, colocando em sequncia os que chama de Arqustratos e Epicuros.

    6 o que se depreende do Testimonium 2 (Olson-Sens 2000: 3), onde se afirma: Arqustrato o Siracusano ou o de Gela.

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    Captulo I Apresentao do autor e da obra

    uma data posterior morte do tirano de Siracusa, Dionsio I (em 367), pois s a partir dessa poca as cidades da zona voltaram a viver um clima de paz e prosperidade, que garantiria condies de segurana a quem viajava. J o ano de 348 a. C. corresponde data da destruio de Olinto por Filipe II da Macednia, cidade mencionada por Arqustrato (frg. 20). Repare-se que, como observam Wilkins-Hill (2011: 11), o facto de Arqustrato ser conhecido do filsofo Clearco (ca. 340-250 a. C.) aponta para uma data que no diste muito desses meados do sc. IV a. C.

    1. 2. Transmisso manuscrita e impressa da obra

    O que sucedeu com a receo da obra de Arqustrato foi que apenas nos chegou por via indireta, ou seja, no possumos nenhum manuscrito com os versos escritos na sequncia original que o poeta lhe deu, mas apenas cita-es, de extenso muito varivel (que vai de um verso a 21 versos), feitas por um outro autor, Ateneu. Quer isto dizer que o que o leitor moderno pode conhecer no a totalidade da obra, mas to s o recorte que dela nos legou aquele que poderamos chamar de seu primeiro editor7. H, pois, todo um conjunto de condicionantes externas ao poema que teremos de considerar, na medida em que nos permitem compreender, ainda que em traos largos e por aproximao, a fortuna que os versos de Arqustrato tiveram num panorama geral de indiferena dos cultores do livro em relao a textos de literatura gastronmica.

    Ateneu, o principal responsvel pela preservao da memria bibliogrfica de literatura gastronmica grega, viveu nos sculos II e III d. C.8, cerca de sete sculos mais tarde dessa corrente de escritores de livros de matria culinria e diettica. Era, alm disso, um Romano natural de Nucratis9, cidade egpcia de forte predomnio cultural e comercial gregos, prxima da prspera Alexandria e da famosa biblioteca do seu Museu. O elevadssimo nmero de citaes, parfrases ou resumos de obras de numerosos autores gregos, presentes no seu monumental texto, tem sido interpretado com uma sensata amplitude interpretativa em termos de relao de Ateneu com as obras em apreo. Ou seja, como advoga Jacob (2000: 86), o Naucratita representa um grupo de indivduos eruditos, com hbitos de compra e de coleccionismo de livros, de

    7 Romeri (2000: 256-7) fornece um estudo esclarecedor sobre o papel de editor (e no de mero compilador) de Ateneu, sem que isso retire ao seu texto uma estrutura prpria, de que fazem parte os trechos citados.

    8 Sobre a vida e obra do escritor, vd. Rodrguez-Noriega Guilln (1998, introduo traduo dos livros I e II, em especial as pp. 7-13) e Murray 2015. Para uma viso de conjunto do autor e sua obra, vd. Braund-Wilkins 2000 e Jacob 2013.

    9 Ao longo da sua obra, Ateneu refere vrias vezes ser essa a sua terra natal (3. 73 b, 7. 301 c, 11. 489 d-e).

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    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    frequncia de bibliotecas e de trocas de livros com outros biblifilos. No , no entanto, possvel saber que parte da cultura livresca transmitida na sua obra ele consultou directamente nos textos dos respectivos autores ou em colectneas elaboradas por outros antes de si. No obstante, o que podemos supor que o seu distanciamento temporal e de mentalidades em relao a esses autores e obras ajuda a perceber os juzos preconceituosos que tece sobre o texto que temos sob anlise.

    Por ser natural de uma regio do Imprio em que dominava a cultura erudita helenstica, Ateneu escreveu em grego. O seu pblico-alvo, porm, eram os Romanos, sendo que se percebe da leitura da sua obra que tinha por principal objetivo dar-lhes a conhecer a cultura grega (ento entendida como padro cultural erudito), atravs da apresentao de numerosssimos dos seus escritores e obras. A herana grega evocavam-na as personagens do dilogo por meio dos bens alimentares por eles consumidos (pois o contexto dramtico so dilogos tidos durante a refeio) e por meio do patrimnio literrio desse universo helenstico10. O leque de fontes citadas no s ele-vado, mas tambm variado do ponto de vista temtico (literatura, filosofia, medicina, botnica, zoologia, gramtica, lexicografia, histria, etc.). Numa altura em que proliferavam as bibliotecas tanto pblicas como privadas e em que se assistia ao concomitante desenvolvimento do comrcio livreiro, Ateneu transps para a obra que escreveu um af de compilao, convertendo o seu prprio texto numa biblioteca virtual do que consultou ou do que teve conhecimento por interposta fonte.

    Face natureza da obra que comps, bem como sua extenso (em quinze livros), o Naucratita merece hoje o ttulo de maior enciclopedista da Antiguidade Clssica11. O teor do texto, composto na forma literria dos dilogos simposacos (herdeiros do clebre Sympsion ou Banquete de Plato12), fica sugerido pelo sentido literal do ttulo Deipnosophistai: Sbios (do grego sophistai) Mesa (do grego deipnon: refeio). A ao dramtica rene uma srie de convivas na casa do anfitrio Larncio, em Roma, ambiente propcio a reflexes sobre o que lhes vai sendo servido de comida e bebida, os objectos

    10 Wilkins (2008) prope essa leitura metafrica da obra de Ateneu, ao mesmo tempo que alerta para o cuidado do autor em no deixar que semelhante louvor ofusque a aluso aos erros dos Gregos (com destaque para o luxo dos banquetes e excessos dos prazeres), exemplos dos perigos que a decadncia dos grandes imprios (outrora o grego, no presente o romano) arrasta consigo.

    11 No existe nenhuma traduo em portugus da obra, pelo que aconselhamos as edies bilingues completas de grego-ingls (Olson 2007-2012; Gulick 1927-63) e grego-italiano (Scin 1993, Citelli-Gambato 2001). Existem outras tradues e edies bilingues para parte dos livros, em francs (Desrousseaux-Astruc 1956) e em espanhol (Rodrguez-Noriega Guilln 1998-2014).

    12 o prprio Ateneu que d conta, logo na abertura do seu texto (2 a), de que se filia nessa obra do filsofo.

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    Captulo I Apresentao do autor e da obra

    e rituais do servio de mesa e toda uma infindvel galeria de assuntos discu-tidos durante esses convvios aristocrticos. sob o pretexto de abonar com autoridades literrias os assuntos em debate que Ateneu vai colocando na boca das suas personagens ttulos de obras e citaes, ou resumos de passos delas retirados.

    Alis o principal mrito dos quinze livros dos Sbios Mesa no reside tanto na qualidade literria da escrita, mas sim no facto de constituir a nica fonte para conhecermos um acervo de obras raras ou em risco, que, de outra forma, se teriam perdido. Porque o tema maior da obra que Ateneu est a escrever o banquete, natural que nela encontremos um vasto conjunto de referncias a literatura de temtica gastronmica, de que a mais completa das obras preservadas precisamente o poema de Arqustrato.

    Do que foi at agora apresentado, fica evidente que o lugar discreto deste autor no panorama da literatura grega antiga desde logo se ficou a dever ao prprio percurso de transmisso e receo da obra (desde a sua composio at aos nossos dias). Foi este um percurso caracterizado por duas abordagens bem distintas por parte dos seus editores. Antes de 1877 (com W. Ribbeck) ningum procedera a uma edio exclusiva do poema, que at a circulou apenas integrado no longo texto de Ateneu. Sobre a tradio manuscrita da obra de Ateneu, h que reter os contornos gerais de uma transmisso em que no se consegue recuar para alm dos incios do sc. X d. C., data do seu mais antigo manuscrito (Venetus Marcianus 447)13. Este documento no contm os livros iniciais de os Sbios Mesa, uma vez que apenas exibe, com algumas lacunas, cpia da obra a partir do livro 3 (mais precisamente do nmero 74a em diante) e at ao seu termo (livro 15. 702 c). Este manuscrito, assinado por John, o Calgrafo, considerado o arqutipo a partir do qual outras cpias foram feitas e usadas, nomeadamente para a primeira edio impressa da obra, em 1514 (por Marcus Musurus).

    Os livros iniciais, em falta nesse documento, so reconstitudos com base em snteses que nos sculos XV e XVI foram produzidas da obra completa, conhecidos pelo termo grego para resumo: epitome. Deste chegaram-nos dois manuscritos independentes: um (Laurentianus LX. 2) copiado por Jacob Questenberg, volta de 1490, a partir de um manuscrito do Vaticano que se perdeu; outro (Parisinus suppl. gr. 841) sado da mo do copista Demtrias Damilas, por volta de 1476-1506, feito, ao que tudo indica, a partir de um manuscrito similar ao precedente. Por estes dois Eptomes serem tomados por resumos feitos a partir do manuscrito mais antigo, a que faltam os livros

    13 No procedi ao estudo dos manuscritos, tarefa que outros tradutores e estudiosos da obra j realizaram em detalhe. Sigo, na sntese que fao de seguida, os dados apresentados sobre a matria pelos editores Olson-Sens (2000: lxvii-lxx).

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    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    iniciais, os autores de edies crticas do texto grego consideram poder reconstituir com elevada fidedignidade as partes omissas naquela que a cpia mais antiga da obra de Ateneu (o acima referido manuscrito Venetus Marcianus 447).

    Quanto s edies impressas da obra, primeira, editada em Veneza no ano de 1514, sucedem-se mais duas dignas de meno, a de Bedrot, publicada em Basileia em 1535, com o texto em grego, e a de Casaubon (Leiden, 1597), edio bilingue em latim e grego (verses apresentadas paralelamente em duas colunas por pgina). Alis, o interesse por publicar no idioma erudito e da cincia da poca (o latim) era tal, que, mais de uma dcada antes, Dalechamps (1583) procedera sua publicao anotada apenas em lngua latina. Das edies da poca Moderna, as fundamentais datam de trs sculos mais tarde: a edio grego-latim de Schweighuser do incio do sculo XIX (5 vols. publicados entre 1801-1805) e, do seu termo, a edio apenas em grego de Kaibel (em 3 vols., sados entre 1887-1890). Esta ltima com a particular importncia de ter inspirado uma das principais edies feitas no sc. XX (Gulick 1927-1941, edio grego-ingls em 7 vols.). Muito recentemente foi disponibilizada pela mesma editora da Universidade de Harvard (Loeb) uma nova edio bilingue (Olson 2007-2012).

    Importa referir que, no panorama das bibliotecas portuguesas, a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra dispe no seu acervo de duas dessas edies de referncia: a traduo latina de Dalechamps e a edio bilingue de Schweighuser. No caso da primeira, uma vez que apresenta a assinatura do proprietrio na folha de rosto, Francisco Rodrigues Cao, pudemos chegar a alguns elementos sobre a biografia do mesmo e sobre a cronologia de aquisio da obra. Passamos a apresentar a histria deste livro da Biblioteca Joanina, devido ao interesse de que se reveste para a cultura lusfona14.

    De acordo com o assentamento do ndice de Alunos da Universidade de Coimbra, elaborado pelo Arquivo dessa mesma universidade entre 1940 e 1950, sabemos que um estudante com esse nome, natural de Maiorca (localidade prxima da Figueira da Foz) e filho de Antnio Rodrigues Cao, frequentou a Faculdade de Medicina entre 1636 e 164215. Dever coincidir com o mdico mencionado em carta rgia de 23.4.1654, em que se pede informao ao reitor da Universidade sobre o interesse desse mdico em ser professor na Faculdade de Medicina, o que pedido com todo o segredo e brevidade. No entanto, quando se cruza este elemento com as folhas de Ordenados (designao

    14 Agradeo Dra. Ana Maria Bandeira, bibliotecria e arquivista do Arquivo da Universidade de Coimbra, ter-me fornecido os elementos que permitem apurar a identidade do mais antigo possuidor da edio de Dalechamps da Biblioteca Joanina.

    15 Informao completa, com datas das vrias matrculas, disponvel online: http://pesquisa.auc.uc.pt/details?id=128429 (acedido em 22-01-2016).

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    Captulo I Apresentao do autor e da obra

    por que eram conhecidos os livros de registo de pagamento dos vencimentos dos lentes), esse nome, Francisco Rodrigues Cao, no aparece, o que leva a supor que no ter chegado a assumir o cargo. Conhecemos, igualmente, a data da sua morte, uma vez que num livro de bitos da freguesia de So Cristvo (Coimbra), com a data de 12.6.1666, o seu bito vem registado, sendo a referido como mdico famoso, a viver em Coimbra.

    No h, no entanto dvidas de que Francisco Rodrigues Cao foi uma figura de proa do meio intelectual do sculo XVII e um mdico de renome. Nesse sentido aponta o que dele escreveu Bernardo de Brito na sua obra monumental Monarchia lusytana (Lisboa 1690: tomo I, p. xxxi) e as concluses a que chegaram os responsveis pela obra Memoria Professorum Universitatis Conimbrigensis (Coimbra 2003). O primeiro denomina-o de grande Medico, & Mathematico, os segundos informam que foi mdico do Infante D. Pedro e que era possuidor de uma rica biblioteca (a que pertenceu, sem dvida, o exemplar da traduo latina dos Deipnosophistai de Ateneu por Dalechamps, hoje pertencente ao acervo da Biblioteca Joanina da UC).

    Voltando histria da transmisso impressa da obra de Ateneu, notamos que data do sc. XIX o interesse dos editores modernos por potenciar o contri-buto da obra de Ateneu para o resgate de obras a que uma tradio manuscrita de sucessivas cpias fora alheia, como foi o caso do poema de Arqustrato. Assim, conforme referimos atrs, a primeira compilao do total de trechos atribudos ao autor Siciliano de forma dispersa ao longo dos Deipnosophistai surge em 1877, pelas mos de W. Ribbeck, que se limitou a apresent-los pela sequncia em que os mesmos haviam sido citados pelo Naucratita. No entanto, a ordem por que foram sendo introduzidos por Ateneu na malha narrativa do seu texto no correspondia quela por que a havia composto o poeta grego, o que tornou a tarefa de Ribbeck pouco til para leitores interessados em aproximarem-se do sentido da obra original. Volvida pouco mais de uma dcada (em 1888), P. Brandt colmata essa fragilidade da primeira edio dos fragmentos de Arqustrato com uma edio interpretativa da estrutura do poema. Esta aproximao ao que poder ter sido a ordem original dos versos foi to bem conseguida que as edies subsequentes mantiveram-na, com ligeirssimas correes (Lloyd-Jones/Parsons 1983), ou dela se afastam pouco (Montanari 1983, Olson-Sens 2000). Na traduo que apresentamos no cap. 2 seguimos o texto fixado pela mais recente destas edies, pelo que a nossa numerao dos fragmentos concorda com a proposta dos editores S. Douglas Olson e Alexander Sens16.

    16 No obstante seguirmos a proposta de corpus estabelecida por estes dois autores para o poema de Arqustrato, sempre que divergirmos de leituras por eles estabelecidas, dessa discordncia ser dado conta em nota de rodap.

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    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    1. 3. Caractersticas formais da obra

    Explicada a cadeia de transmisso escrita do poema de Arqustrato, atentemos agora nas caractersticas formais da obra. O total de versos cita-dos por Ateneu corresponde a aproximadamente 334 hexmetros dactlicos, distribudos por 60 fragmentos, cada um entendido como formando uma unidade do corpo geral do poema, cuja extenso total impossvel determinar com exatido17. Se tivermos em conta que, da obra sobrevivente, cerca de 1/3 contm o que se podem apelidar de receitas culinrias e que em 90% dos fragmentos se mencionam produtos alimentares18, relacionando-os por norma a um lugar de produo e/ou consumo, facilmente deduzimos que o que foi preservado por Ateneu do poema completo justifica a classificao da obra como arqutipo dos guias gastronmicos. A o seu leitor encontra, como desenvolverei mais adiante, desde logo a indicao de especialidades gastronmicas por regies ou localidades.

    Mas antes de avanarmos para a anlise da tipologia literria do texto, h que considerar um outro aspeto formal da obra: o seu ttulo. Se com algumas das obras clssicas o problema que, a este propsito, se levanta ao estudioso moderno a falta de ttulo19, no caso presente a dificuldade decorre precisamente da situao oposta: a pluralidade de nomes que at ao tempo de Ateneu vrios comentadores foram atribuindo ao poema gastronmico de Arqustrato. Ou seja, quando o enciclopedista romano aborda o assunto, volvidos cerca de seis sculos sobre a composio da obra, depara-se com seis denominaes distintas. Se tivermos em consi-derao que as fontes desses testemunhos so autores contemporneos ou cronologicamente prximos de Arqustrato e que, ainda assim, no concordam quanto ao ttulo da obra, parece ser sensata a interpretao dos editores e comentadores Olson-Sens, para quem essa diversidade onomstica seria o reflexo de que as cpias mais antigas da obra (a que teve acesso, na Biblioteca de Alexandria, Lcofron, um dos autores mais

    17 Olson-Sens (2000: xxiv) apontam para a possibilidade de estarmos perante pelo menos 28% do total da obra ou mesmo mais, embora, a meu ver, no apresentem argumentos slidos para fazerem semelhante proposta. Enquanto no possuirmos nenhuma outra fonte alm do j conhecido texto de Ateneu, considero este assunto uma falsa questo, sobre a qual no possvel avanar-se com nenhuma proposta definitiva.

    18 J procedemos anteriormente publicao desse conjunto de 17 receitas (Soares 2012a) - correspondentes aos frgs. 11, 13, 14, 19, 23, 24, 32, 34, 36, 37, 38, 46, 49, 50, 57, 58, 60 - cuja traduo revimos.

    19 Um dos casos mais clebres a extensa obra daquele que mereceu de Ccero o ttulo de Pai da Histria (De legibus, 1. 1. 5: pater historiae), Herdoto, cujo ttulo foi forjado pelos seus editores alexandrinos a partir de uma palavra central do prlogo: historia (usada com o sentido que ento tinha de investigao, pesquisa, inquirio).

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    Captulo I Apresentao do autor e da obra

    antigos a referir a obra, no sc. III a. C.) j no exibiam ttulo, se que o poeta alguma vez lho dera20.

    Passemos em reviso os nomes que a tradio transmitiu at ao tempo de Ateneu, recolhidos nos Testemunhos apresentados por Olson-Sens (2000: 3-12), a saber: Gastronomia (T 2, 5), Gastrologia (T 6, 7), Deipnologia (T 2), Opsologia (T 2, 5), Opsopoiia (T 2) e Hedypatheia (T 2). A maioria destes ttulos riqussima em termos de informaes sobre a receo da obra nos tempos mais prximos da sua composio. Os quatro primeiros correspondem a termos novos, inventados com o propsito de ridicularizar os esforos do autor por conferir cientificidade a uma rea de saber (a culinria) emergente, mas, ontem como (muitas vezes) hoje, considerada menor. Os elementos lexicais que remetem para o domnio (elevado) da cincia (reino do logos, ou seja da razo ou do inteligvel) so as palavras nomia e logia (ambas com o sentido de cincia, estudo), bem conhecidas por entrarem na composio dos ttulos de reas do saber maiores, como a astronomia e a astrologia (ento tidas como sinnimos)21. Essas segundas partes dos nomes compostos surgem antecedidas por elementos lexicais pertencentes ao quotidiano alimentar, a saber: gastro- (do substantivo gaster: estmago), deipno- (do substantivo deipnon: refeio) e opso- (do substantivo opson: conduto, comida, iguaria22).

    Da que, se buscssemos tradues literais, as correspondncias para os ttulos Gastronomia, Gastrologia, Deipnologia e Opsologia seriam, para os dois primeiros, Cincia/Estudos do Estmago, para os subsequentes, Cincia/Estudos da Refeio/Mesa e Cincia/Estudos das Iguarias. Mais do que conhecer o significado literal dos ttulos propostos para o poema, importa contextualiza-los, indicando as fontes em que Ateneu informa ter encontrado essas atribuies. Os trs primeiros recolhe-os nos escritos dos filsofos Clearco de Soles23, um Peripattico, e Crisipo,

    20 Os estudiosos debatem essa questo nas pp. xxii-xxiv. A meno ao bibliotecrio alexandrino vem no Testimonium 7 (Olson-Sens 2000: 9-10), que viveu no reinado de Ptolomeu II Filadelfo (283-246 a. C.).

    21 Alis da autoria do referido bibliotecrio alexandrino a derivao formal entre o neologismo que d nome ao ttulo Gastrologia e a denominao Astrologia, ttulo de um poema pseudo-hesidico (Hesodo, frg. 288-293), derivao que teria servido de trocadilho para o nome do poema de Arqustrato (Olson-Sens 2000: xxiii).

    22 Como detalharemos no cap. 3, existem dois elementos distintos na alimentao grega: a base, constituda por cereais (preparados sob a forma de papas ou po), e os suplementos (no sing. opson e no pl. opsa), i. e. todos os restantes alimentos que acompanham aquela (sejam os produtos cozinhados ou crus, como as frutas). Quer isto dizer que a palavra opson, consoante remeter para um preparado mais simples ou sofisticado, pode, na traduo portuguesa, cobrir as trs propostas avanadas.

    23 Foi discpulo da escola aristotlica, o Liceu, e viveu em finais do sc. IV a. C., sendo conhecido por se especializar em estudos cientficos de zoologia. Dispomos de uma edio alem recente dos fragmentos atribudos a Clearco (Tsitsiridis 2013).

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    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    um Estico24. Por se tratarem de fontes francamente hostis ao tom he-donista do poema de Arqustrato, todos esses ttulos se revestem de tom sarcstico e so por isso considerados insultos forjados contra um texto onde se cantam os prazeres do convvio mesa. Alis, Ateneu bem claro quanto identificao que ele prprio e esses filsofos avessos fruio sensorial faziam entre os valores exaltados no poema de Arqustrato e os valores professados pelos Epicuristas. Dessa realidade nos d conta o enciclopedista, quando coloca na boca de Crisipo a denncia de ser Arqustrato o poeta predileto dos epicuristas, a quem dirige o insulto de glutes (gastrimargoi)25. Ele mesmo partilhava de semelhante reprovao, como se depreende do facto de apelidar o poeta de gluto (desta vez usando o sinnimo gr. tenthes26) ou de, recorrendo a uma terminologia menos acintosa, mas, ainda assim, clara na denncia da filiao epicurista do escritor, cham-lo de filsofo hedonista27.

    Impe-se, neste momento, registar que remonta pelo menos ao sc. III a. C., perodo em que viveu o criador literrio do termo GASTRONOMIA, o filsofo Crisipo, a certido de nascimento da palavra e de um conceito que teve de aguardar por mais de 21 sculos para assistir sua elevao ao estatuto de tratado, pela mo do francs Jean Anthelme Brillant-Savarin, autor da Physiologie du Got (Paris, 1825). A incompreenso que a obra de Arqustrato despertou na altura em que foi escrita e nos tempos subsequentes deriva, estou em crer, de uma longussima damnatio, imposta durante sculos por correntes filosficas e doutrinas religiosas refreadoras dos prazeres sensoriais (categoria em que se inclui o Cristianismo, religio dominante na Europa e Novos Mundos por ela colonizados).

    Retomando o elenco dos ttulos atribudos por fontes indirectas obra de Arqustrato, ficaram apenas por explicar as denominao Opsopoiia e Hedypatheia. H entre elas uma divergncia profunda em termos de uso lingustico. Enquanto a primeira estava j bem implantada entre a termino-logia tcnica culinria da poca, na mediada em que designa a arte daquele que cozinha, profissional que em grego se apelidava, entre outros termos,

    24 Crisipo de Solos (280-207 a. C.) dirigiu a escola do Prtico com Pinturas (ou Stoa Poikile), por isso conhecida por escola dos Esticos, e foi o discpulo mais influente do seu fundador, Zeno de Chipre. O racionalismo, ou seja, a centralidade que a doutrina estica confere razo (o logos) na relao do homem com o mundo coloca os seguidores dessa escola de valores nos antpodas de toda e qualquer proposta (mesmo literria, como o caso da obra de Arqustrato) em que se valorize o oposto da razo, o prazer (hedone). Sobre Crisipo e o estoicismo, vd. Gould 1970, Sharples 1996: 20-27, 43-58, 67-78, 123-127.

    25 Cf. testimonium 6 Olson-Sens.26 Cf. testimonium 8, frgs. 6 e 22 Olson-Sens.27 Vd. frg. 17: .

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    Captulo I Apresentao do autor e da obra

    pelo substantivo composto opsopoios28, a segunda mais um neologismo, registado nas obras de dois autores de quem Ateneu no refere nenhuma crtica a Arqustrato, Linceu e Calmaco (Olson-Sens 2000: T 2, p. 3). Se a essa neutralidade ou at mesmo simpatia pelo poema de Arqustrato (como o caso de Linceu29) juntarmos o facto de ser um nome muito prximo deste (Hedypatheia) aquele que o poeta latino Quinto nio30, de poca no muito distante daquela em que viveu o poeta grego, d a um poema seu (Hedyphagetica) inspirado na obra de Arqustrato, melhor compreendemos e aceitamos que seja o ttulo composto da raiz hedy- (comum aos nomes prazer/hedone e doce, delcia/hedys) e da raiz path (do vb. suportar, viver, fruir/pathein) aquele que tem sido aceite entre os comentadores modernos como o mais provvel ttulo original do poema31.

    Em suma, em termos de ttulo original da obra de Arqustrato, aceita--se como hiptese mais consensual o composto grego Hedypatheia, cuja traduo portuguesa ao p da letra corresponde a Vivncia dos prazeres e que noutras lnguas modernas se tem vertido para Life of Pleasure ou Life of Luxury (em ingls), Les plaisirs de la vie, ou Friandises (em francs), La buena vida (em espanhol) e Vita di delizie (em italiano). A proposta de traduo que avano no segue essa linha literal, uma vez que procura congregar o sentido etimolgico deste ttulo com o contedo da obra32. No obstante o estado fragmentado em que esta nos chega, temos a sorte de se terem preservado dois trechos (os frgs. 1 e 3) que resumem o seu mbito temtico. da conjugao da afirmao constante do frg. 1 (de que se apresenta ao leitor os resultados de uma pesquisa realizada para um

    28 Opsopoios letra significa o fazedor (-poios, do verbo gr. fazer: poiein) de comida (opso-), isto , o cozinheiro. Termo sinnimo deste e muito vulgar em grego a palavra mageiros, que tem por sentido primitivo sacrificador. Estamos, neste ltimo caso, nitidamente perante uma situao de sincretismo semntico, ou seja quando a mesma palavra funde duas actividades indis-sociveis luz da cozinha grega, onde a carne dos animais domsticos tinha de ser imolada aos deuses segundo um ritual prprio, o que levou ao aparecimento de profissionais especializados, sobretudo no contexto dos banquetes pblicos. Em ocasies especiais, aquelas em que a mesa festiva substitua uma dieta tendencialmente cerealfera e vegetal do quotidiano, por ocasio de datas comemorativas (como casamentos, nascimentos, vitrias em concursos pblicos, entre outros), os particulares tambm contratam esses profissionais. Conhecemos a popularidade dessa casta de chefs que invadem a cidade de Atenas entre a segunda metade do sc. V e o sc. IV, sobretudo graas literatura dos comedigrafos, assunto j amplamente estudado por Garca Soler (2008). Da mesma autora, leia-se ainda Garca Soler 2011.

    29 Cf. Ateneu 7. 285 e-6 a, 313 e-14 a.30 Finais do sc. III-incios do II a. C. (239-169 a. C.).31 Repare-se que o composto latino Hedyphagetica tem por segundo elemento de composio

    um outro termo de origem grega (-phagetica), da famlia do vb gr. phagein/comer. letra, este ttulo traduzir-se-ia por Iguarias ou Comidas deliciosas.

    32 Alis, como bem observa Dalby (2003b: 222), o termo grego intraduzvel, posio que legitima a adoo em lnguas modernas de tradues livres do ttulo ou nele inspiradas.

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    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    territrio especfico, todo o mundo grego) com as informaes do frg. 3 (em que se clarifica que a natureza do domnio de investigao gastronmica, pois o objeto de indagao consiste em apurar onde que cada comida melhor) e o texto do frg. 2 (que especifica os nomes dos continentes em questo: a sia e a Europa, sendo que as especialidades mencionadas nos passos sobreviventes se inserem todas em locais de ocupao grega33) que chego minha proposta de ttulo explicativo para o poema de Arqustrato: Iguarias do Mundo Grego.

    verdade que o substantivo iguaria se confina ao campo semntico da comida, deixando de fora os vinhos e outros prazeres da mesa a que se refere o Arqustrato que Ateneu nos legou (como o ambiente material e humano em que decorrem as refeies). Pelo que, tomado por si s, este ttulo pode parecer restritivo. No obstante esse perigo de afunilamento, tive, igualmente, em linha de conta que o que efectivamente temos do poema so sobretudo pratos requintados da a propriedade da escolha iguarias para o ttulo e que a juno de um subttulo descritivo teria a vantagem de confirmar, atravs do emprego do adjectivo derivado do nome gastronomia, que no estamos perante apenas um catlogo de comidas (em que as bebidas aparecem como complemento), mas sim perante uma obra com um espectro temtico mais complexo.

    Alis a introduo no subttulo da denominao guia gastronmico serviu ainda esse desgnio de esclarecer o leitor moderno de outro aspeto essencial da obra, que a filiao do poeta numa prtica comum entre os homens de cultura e cincia da poca mesmo que se trate de uma cincia a dar os primeiros passos na afirmao do seu direito a semelhante estatuto, como era o caso da gastronomia (que, como vimos atrs, letra significa a cincia relacionada com o que, em ltima instncia, acaba no estmago das pessoas). Ou seja, assim como os historiadores, os botnicos, os zologos e os mdicos eram impulsionados a realizar viagens, maioritariamente navegando ao redor da costa, ou seja realizando priplos (nome gr. formado da preposio volta de/peri e do subst. navegao/ploos ou do vb. navegar/plein), tambm o nosso poeta fornece itinerrios para especialidades gastronmicas disponveis e acessveis de barco pelo Mediterrneo, esse mar situado no meio de terras (ideia expressa pelo adj. latino composto: medi-terraneus) e responsvel pela unio de trs continentes, se aqui incluirmos o que viria a ser chamado de frica e que Arqustrato no contempla (no que do seu texto nos chegou).

    33 No esquecer que na Antiguidade Clssica as fronteiras do territrio de cultura grega eram mais vastas do que as da moderna Grcia e que se estendiam no continente europeu a ocidente at ao Sul da Itlia e Siclia (a denominada Magna Grcia, pelos Romanos) e a oriente at zona envolvente do Mar Negro e costa da sia Menor, ocupando regies que hoje integram a Turquia.

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    Captulo I Apresentao do autor e da obra

    Note-se, ainda, que ao introduzir o passo do poema que Olson-Sens numeram como frg. 20 (7. 294a), Ateneu atribui ao poeta o ttulo de bom guia ( )34, neste caso dos lugares (de referncia) da Itlia ( ), referncia que denota a importncia que essa dimenso cientfica de pesquisador-viajante teria no conjunto da obra. Foi da harmonizao destes vrios elementos que cheguei minha proposta de subttulo para a obra de Arqustrato: Guia Gastronmico do Mediterrneo Antigo.

    Devido ao seu carcter fragmentado, as opinies dos comentadores mo-dernos quanto ao subgnero literrio do poema tm-se filiado nesta e noutras categorizaes. Assim, h quem o qualifique de pardia pica (Wilkins-Hill 2011: 13-15)35, outros de catlogo gastronmico (Dalby 1995: 402; Olson-Sens 2000: xliii), de receiturio (Degani 1990)36 ou quem avente tratar-se de uma combinao entre o gnero didtico e o relato de viagens (Garca Soler 2001: 30). Destas vrias hipteses de categorizao literria, aquela que a meu ver se afigura mais viciada pelos filtros ticos e crticos das fontes antigas responsveis pela transmisso do poema o que lhe retira credibilidade, pois falta-lhe iseno a primeira. verdade, como referi acima, que o gnero lrico em que foi escrita a obra o criado para a pica (o hexmetro) e que a linguagem empregue ressoa em muitos termos e composies estilsticas (como o caso de numerosos eptetos) a Homero. Mas, como ficou claro num estudo recente sobre criaes lingusticas de Arqustrato e exclusivas do seu poema (Amado Rodrguez 2010), essa no foi a fonte de inspirao maior do poeta-gastrnomo. Os poetas trgicos (em particular squilo) e os cmicos marcaram igualmente de forma muito significativa a sua escrita. A estas influncias, h que juntar outras duas que j os comentadores antigos no se inibiram, no seu tom sarcstico, de revelar: Hesodo e Tegnis, autores de poemas de pendor fortemente didtico. Alis, a presena nos fragmentos sobreviventes de destinatrios internos dos conselhos de Arqustrato, dois

    34 Esse reconhecimento da importncia da viagem em busca da boa comida e bebida justificou o atributo que lhe deu a tradutora e estudiosa italiana do poema Ornella Montanari (1999: 70): il periegeta della cucina.

    35 Nessa mesma linha insere-se a qualificao de Montanari (1999: 67): poesia pardico-gastronmica. Dalby (1996: 121) prefere no ser to categrico, pelo que, sem excluir da obra algumas marcas do discurso pardico, prefere valorizar a sua dimenso didctica, caracterstica responsvel por a obra se prestar a ser recitada em pblico, muito graas memorizao de preceitos (de etiqueta, gastronomia e convvio social mesa) que estimula. Note-se que o prprio Wilkins, em trabalho de co-autoria com Hill, havia comeado por categorizar a obra de guia gourmet (1996: 146),

    36 Vd. p. 532 da edio reimpressa em 2004. Note-se que, para Degani, h duas almas da poesia gastronmica: uma contendo receitas (representada por Arqustrato), outra descritiva do banquete (com intuitos estticos e de puro divertimento, representada por Mtron de Ptane, atravs do seu poema Banquete tico analisado em detalhe em Degani 1991).

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    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    companheiros seus, Mosco (frgs. 5, 28 e 36) e Cleandro (frg. 18), remetem para a mesma estratgia discursiva usada por esses antecessores na compo-sio de cantos didticos (Hesodo dirigiu-se ao irmo Perses e Tegnis ao amigo Cirno).

    Repare-se que a valorizao que alguns comentadores modernos conferem a essa aproximao da escrita de Arqustrato ao grande poeta pico grego e a estes dois nomes maiores da poesia didtica no decorre exclusivamente de caractersticas formais do texto sobrevivente, mas do eco que desse esforo de imitao literria os prprios Antigos lhe reconheceram, conforme tes-temunham trs passagens do seu compilador, Ateneu. Em tom depreciativo e condenatrio, igual ao de outras autoridades esticas incontestveis, como o j mencionado Crisipo, o enciclopedista romano apelida Arqustrato de o Hesodo ou o Tegnis dos bons-garfos37 e, retomando as palavras do mestre filsofo do Prtico de Pinturas, afirma que para os f ilsofos glutes a Gastrologia de Arqustrato o seu Tegnis38. Noutro passo, a respeito de uma personagem do Banquete do Naucratita, Teodoro (um filsofo cnico, cuja alcunha Cinuclo denuncia a afiliao na escola fundada em Atenas por Antstenes39), diz-se que se ajoelha perante Arqustrato, em nome (dos prazeres) do ventre, como se de Homero se tratasse40.

    Em suma, no obstante a proximidade que o poema de Arqustrato tem com as correntes lricas do gnero pico e didtico e a desconstruo da seriedade de temas que trata (o que lhe mereceria a incluso no gnero pardico), considero a categorizao de pardia pica tendenciosa, ou seja, excessivamente alinhada com as vozes crticas de fontes antigas, que decorrem da incompreenso face a propostas literrias preconceituosamente tomadas como menores.

    Pessoalmente considero que, assumindo o risco de toda e qualquer categorizao ser imperfeita (desde logo devido ao carcter fragmentrio da obra), prefervel uma abordagem mais neutra e que valorize as palavras que do autor nos so transmitidas (sejam elas poucas ou muitas). Assim sendo, o que Ateneu resgatou para a posteridade da obra do poeta foi no s um catlogo de especialidades gastronmicas, devidamente acompanhadas de algumas recomendaes quanto ao protocolo de mesa e ao ambiente humano e material das refeies tomadas em conjunto, mas tambm uma constante meno a lugares de captura (no caso do pescado), compra e consumo

    37 Cf. Ateneu 7. 310 a: .38 Cf. Ateneu 3. 104 b:

    .39 Sobre os Cnicos, vd. Branham and Goulet-Caz 1996, Desmond 2008.40 Cf. Ateneu 4. 163 c: , ,

    .

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    Captulo I Apresentao do autor e da obra

    dos melhores ingredientes, bem como da origem geogrfica dos melhores preparadores das iguarias cantadas. Ou seja, quem ler o poema do princpio ao fim no tem dvidas (porque fica esclarecido desde o frg. 1) de que est perante uma apresentao (epideigma) de uma pesquisa (historia) destinada a um pblico-alvo bem identificado: a Grcia inteira. Mais: esse foi um trabalho de recolha realizado preferencialmente para as geografias europeia e asitica (frg. 2) desse mundo habitado por indivduos que partilham da mesma cultura (ainda que vivam em regies politicamente independentes, as chamadas poleis). O poeta esclarece, nesse mesmo passo, que percorreu (emprego do vb. gr. perierkhesthai) territrios que ao longo dos versos sobre-viventes vemos ascenderem a dezenas de designaes de cidades, de regies, de rios ou de lagos.

    Fica, pois, muito evidente o propsito de Arqustrato em se filiar na metodologia de pesquisa daquele que era o grande nome da prosa clssica das narrativas de viagens, com um fundo cientfico apoiado na observao direta do universo descrito (da a necessidade de se deslocar aos lugares mencionados) ou, quando de todo impossvel essa autopsia (palavra grega para verificao pessoal pela vista), valendo-se de testemunhos fidedignos de terceiros. Referimo-nos a Herdoto, cujo decalque lingustico se evidencia naquelas que so, na ordem hoje conhecida dos fragmentos do poema, as suas duas primeiras palavras: historia e epideigma.

    Embora no possamos asseverar que Arqustrato efectivamente visitou todos os lugares das especialidades que menciona, tal incerteza no nos deve incomodar41. Mesmo que parte dos stios sejam apenas visitas virtuais, o que uma obra deste tipo denuncia uma prtica que sabemos comum entre as elites endinheiradas da Antiguidade greco-romana: a viagem (seja ela motivada por desejos de formao, de lazer, de negcios ou de outra qualquer natureza)42.

    Nesta obra inaugural de um gnero literrio atualmente com uma elevada procura comercial o Guia Gastronmico deparamos j com a presena do que se podem denominar de seus principais marcadores discursivos, a saber:

    1. a identificao de especialidades locais ou regionais, atravs da associao de um territrio mais ou menos extenso a determinado produto; das sessenta indi-caes toponmicas registadas pelo Autor, a grande maioria corresponde a nomes de cidades, em segundo lugar, em termos de nmero de ocorrncias, surgem as

    41 Dalby (1996: 121), com base na descrio informada que Arqustrato faz de produtos locais e modos de preparo de numerosos pratos de origens distintas do Mundo Grego, bastante favorvel ideia de que o poeta efectivamente tenha viajado.

    42 Obra de referncia sobre este assunto continua a ser Andr-Baslez 1993.

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    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    designaes hidrogrficas (nomes de lagos, rios e estreitos) e, por ltimo, as de-nominaes territoriais amplas (Itlia, Ponto, Inia);

    2. a indicao, para um mesmo produto, dos lugares onde se podem adquirir, permitindo estabelecer rotas por produtos; neste domnio, note-se que, apesar de incompleta, a obra de Arqustrato permite individualizar trs roteiros distintos, com base nos produtos considerados, a que poderamos chamar rota do po, rota do vinho e rotas do pescado (sendo que estas so passveis de se subdividir em rota do peixe, rota do marisco e rota dos moluscos)43;

    3. a anlise crtica, e no simples catlogo, da oferta gastronmica, abordagem baseada numa hierarquizao da qualidade, que tem por extremos a excelncia (cuja verso mais comum em grego corresponde ao substantivo arete/ e ao superlativo do adjectivo bom, agathos/, i. e. timo, aristos/) e a mediocridade (sentido em grego contido no adjectivo mau, kakos/, e seus sinnimos);

    4. o propsito didtico do texto: destinado a transmitir um tipo de conhecimento que, como confessa Arqustrato, raro entre (pelo menos) os seus contempor-neos, pois, e cito as suas palavras, de facto pouca gente sabe o que comida verdadei-ramente boa e m (frg. 39, vv. 4-5). Da a insistncia com que o poeta autntico mestre de uma arte elitista, que designaramos, avant la lettre, de arte do gourmet refere a qualidade como bssola norteadora dos conselhos que vai dando sobre onde comer bem, o que bom, o que no presta, o tolervel ou o que outros gostam mas ele no aprecia!

    Em suma, este texto arquetpico dos modernos guias gastronmicos alia preocupaes de pertinncia atual incontestvel: a inventariao de especialidades alimentares por origem geogrfica; a hierarquizao dos produtos segundo uma escala de qualidade; a transmisso de informaes (que se querem) fidedignas sobre uma realidade pouco conhecida do leitor.

    43 Assunto a desenvolver abaixo, cap. 3, quando se analisarem os produtos.

  • Captulo II

    Traduo portuguesa anotada & edio modernizada do poema

  • Imagem 2 - pormenor de tanque da Villa romana de Milreu (Esti, Faro) Crditos fotogrficos: Hlio Ramos / Direco Regional de Cultura do Algarve / 2016

  • 2. 1. Das metodologias de edio adotadas

    imagem do que tm feito outros tradutores do poema de Arqustrato, decidi apresentar a verso portuguesa em texto corrido e no em verso44. Uma vez que era impossvel respeitar na passagem do grego para uma traduo compreensvel e atual portuguesa tanto a localizao dos termos na ordem por que aparecem nos versos originais como o efeito mtrico prprio da lngua em que foram escritos, preferi substituir a forma potica pela prosa. Ressalve-se, no entanto, que esses elementos estilsticos continuam a poder ser apreciados pelos leitores que tiverem acesso ao poema na sua verso grega.

    Embora siga a ordem e numerao dos fragmentos estabelecidos por Olson-Sens (2000), no me limitei a apresentar a sua traduo, mas dei-lhe a forma de traduo interpretativa. Ou seja, tive em conta que a reordenao que os editores modernos e contemporneos deram s partes sobreviventes das Iguarias do Mundo Grego obedeceu ao desgnio de conferir sentido ao discurso de Arqustrato. Por entender que a obra sairia valorizada em termos de acessibilidade de leitura, se fornecesse ao leitor da traduo portuguesa um guio de leitura que a acompanhasse, em vez de ficar apartado dela (na introduo ou no estudo ao poema), criei sete segmentos interpretativos para o texto. O primeiro permite ao leitor conhecer os objectivos que presi-diram composio da obra: fornecer um guia gastronmico das iguarias do Mediterrneo helenizado. Da propor para esses frgs. 1 a 3 a denominao: Apresentao do Guia Gastronmico. Estes trs fragmentos servem para introduzir o leitor na matria propriamente dita do poema, cuja evoluo, ao longo dos pouco mais de 330 versos que Ateneu cita, obedece ordem dos acontecimentos durante um banquete, essa reunio de homens livres destinada partilha de bebida, pelo que os Gregos a denominavam de simpsio45. Na verdade, a narrativa simptica de Arqustrato comea com indicaes sobre os preparativos do banquete, mais precisamente dando conselhos sobre ambiente material e humano do convvio (frg. 4). O ttulo proposto para esse preldio do banquete foi, por essa razo, Regras de conforto e de etiqueta. As seces subsequentes j dizem respeito, todas elas, a componentes-chave ou momentos principais do convvio gastronmico.

    O po, por fazer parte da base da refeio grega (desde logo por, falta de talheres de mo, ser necessrio para levar os alimentos das travessas, taas

    44 Essa foi a opo assumida pela traduo mais recente em ingls (Wilkins-Hill 2011). Os editores e tradutores cuja numerao dos fragmentos sigo preferiram, pelo contrrio, traduzir em verso branco (Olson-Sens 2000).

    45 O termo gr. symposion forma-se da juno do prefixo sym-, que significa com, raiz posio-, com o sentido de bebida. Por extravasar os propsitos da presente obra, no detalharemos a histria do simpsio na Grcia Antiga, abordagem que se pode encontrar em obras de referncia, como: Murray 1990, Wcowski 2002.

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    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    e pratos boca), ganha o estatuto de produto indispensvel e de presena constante mesa (desde o primeiro ao ltimo servio). Esse lugar privilegiado justificou a criao de uma rubrica autnoma, justamente intitulada O po, rei da mesa mediterrnea. Em dois fragmentos (5 e 6), o poeta canta e faz recomendaes sobre as qualidades dos cereais, as variedades de po e a origem dos mais reputados padeiros.

    Desenrola-se, de seguida, diante do leitor do poema, uma longa sequncia de iguarias ou de ingredientes que entram na sua confeco, que se estende at ao ltimo fragmento da obra. Este universo de 54 frgs. passvel de ser segmentado em quatro unidades de leitura, cada uma correspondente a um momento ou servio de mesa distinto. Comea-se (tal como hoje) pelo consumo de pequenas pores de comidas destinadas a abrir o apetite para o prato principal, pelo que para esses passos criei a rubrica Aperitivos. O seu estatuto de componente marginal da refeio (para no dizer mesmo dispensvel, como sugere o frg. 9) o sentido literal que o termo grego usado para denominar essas entradas encerra. Se no vejamos: a comida conduzida do recipiente em que se coloca at boca por esse talher que o po (da a propriedade de se lhe chamar em portugus conduto46); em grego o termo genrico mais comum para designar comida levada boca com po opson, donde se compreende que a palavra grega usada para designar os alimentos marginais se construa pela juno do prefixo para- (ao lado) raiz ops-, o que resulta no vocbulo paropsis (que Arqustrato usa no frg. 9 e que traduzi por aperitivo).

    Os momentos ou servios de mesa mais relevantes so aqueles a que os Gregos consagraram centralidade, relevncia evidenciada pelo prprio facto de lhes atriburem designaes prprias, pormenor lingustico que reflete uma atitude cultural. Ou seja, assim que os convivas esto instalados nos leitos em que comiam reclinados, so-lhes colocadas ao alcance da mo mesas, de preferncia individuais (como informa o frg. 4), que so abastecidas por duas vezes. Comea-se por saciar a fome e a satisfao do paladar com preparados salgados, em que o conduto das mesas mais finas e/ou dos dias especiais corresponde a pescados ou carnes variadas (em vez dos legumes e leguminosas das mesas do dia-a-dia). Porque efectivamente constituem o primeiro servio da refeio e podiam ser trazidos para a sala j em recipientes colocados sobre as mesas portteis ou simplesmente sobre o tampo dessas mesas (amovvel em relao ao p), esses preparados eram denominados,

    46 Note-se que conduto vem da forma verbal latina conductus, que significa conduzido. J tive ocasio de proceder noutro lugar (Soares 2012b: 37-40) a uma anlise mais profunda do sentido de opson com o significado genrico de conduto (e no se restringindo ao sentido de peixe, que tambm adquire, sobretudo em contexto ateniense)

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    Captulo II Traduo portuguesa anotada & edio modernizada do poema

    num rigor lingustico digno de nota, de primeiras mesas (protai trapezai47). Considerando que de Arqustrato nos chegaram ingredientes e pratos tanto de fauna aqutica como terrestre, abrimos as rubricas Primeiras mesas: pratos de pescado e Primeiras mesas: pratos de carne.

    Concludo este servio, impunha-se a recolha dos recipientes usados e uma limpeza das mesas. Ou seja, o fim deste primeiro ato era bem marcado, podendo ser assinalado pela recolha aos bastidores (a cozinha) das prprias mesas. Tanto assim que a ltima parte da refeio, destinada ao servio de frutas, doces ou mesmo alguns petiscos salgados, recebia a denominao de segundas mesas (deuterai trapezai48), uma vez que, efectivamente, eram apresentadas aos convivas depois de consumidas as primeiras mesas. Outra marca essencial da autonomizao destas sobremesas49 em relao ao servio precedente est na substituio do domnio da comida pelo domnio da bebida. Esta a matriz identificadora do symposion: beber vinho em grupo, num gesto de devoo ao divino (assinalado pela presena indispensvel da consagra-o do vinho aos deuses). Assim, os dois ltimos itens da nossa traduo interpretativa do poema gastronmico do expresso a essa dupla faceta do simpsio, que, na opinio de Arqustrato (e que no pode ser generalizada a todos os perodos e contextos socioculturais), sendo predominantemente um momento de ingesto de vinho, se devia acompanhar do consumo de alguns alimentos slidos. Donde os dois fragmentos finais da obra virem respetivamente intitulados de Segundas mesas: vinho, o rei do simpsio (frg. 59) e Segundas mesas: acepipes, fruta e doce (frg. 60).

    Mas a nossa proposta de modernizao da edio portuguesa vai para alm da palavra. Transvaza para o domnio da interpretao culinria. Assim, recorremos colaborao do Chef Vtor Dias, responsvel pela equipa de cozinha dos restaurantes de um hotel de reconhecido prestgio no panorama nacional, o Hotel Quinta das Lgrimas, para propormos interpretaes de boa parte do receiturio do poema. As fotos dos pratos por ele recriados so apresentadas no corpo do texto da traduo do poema; j as fichas tcnicas de confeo, apesar de entendidas como parte integrante da leitura interpre-tativa e modernizada da obra, figuram no final do livro, em apndice prprio (Receiturio modernizado de Arqustrato).

    47 Em latim: primae mensae.48 Em latim: secundae mensae.49 Repare-se que etimologicamente a palavra portuguesa sobremesa remete para sentido

    idntico ao da expresso grega segundas mesas, uma vez que se pode entender que esse servio apresentado depois (o mesmo dizer sobre, por cima de) do primeiro servio (o dos salgados, tido por elemento principal da refeio).

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    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    2. 2. Da traduo anotada

    Considerando que, s aps tomar conhecimento da traduo completa do poema, o leitor rene condies para acompanhar uma anlise crtica s problemticas que ele levanta em termos de contributos para a histria da alimentao grega e, por via da influncia que esta imprime nos povos com que dialoga, para a histria da alimentao de influncia mediterrnea helenstica, decidi usar de alguma conteno nas anotaes traduo. Tive igualmente em considerao que as recentes tradues para outras lnguas modernas (constantes da rubrica Fontes da Bibliografia Final) apresentam notas filolgicas, literrias e historiogrficas no geral de grande profundidade e atualidade, pelo que complementam o meu estudo. No entanto, sempre que se revelou necessrio compreenso do texto, tratmos estes ltimos aspetos com maior detalhe.

    Em suma, atendendo a que a abordagem que fiz obra visa em especial evidenciar a sua importncia para o conhecimento da Histria da Alimentao, optei por reservar para o estudo desenvolvido no captulo final da obra comentrios que cada fragmento suscita, no tanto em si, mas mais na sua relao com os outros.

    Porque, como vimos na apresentao da obra (cap. I), o poema identifica especialidades associadas a numerosssimos territrios do Mediterrneo helenizado, um dos marcadores identitrios do discurso do poeta so os topnimos antigos, na maioria das vezes desconhecidos do leitor moderno. Se lhes juntarmos, por fora da predominante referncia a especialidades feitas com pescado, a abundante presena de denominaes hidrogrficas, compreende-se a necessidade de se fornecerem algumas coordenadas geo-grficas ao nosso leitor. Estas encontram-se em mapas, ao longo do cap. III.

    Por respeito para com aquele que o editor antigo da obra de Arqustrato (ou seja, Ateneu) e com o objectivo de facilitar a localizao de cada fragmento no contexto da sua extensa obra Sbios Mesa, indica-se imediatamente abaixo de cada traduo para portugus a localizao do trecho grego em apreo na referida obra.

    Passamos a apresentar a traduo dos fragmentos do poema, agrupados sob os ttulos temticos acima explicados.

    2. 3. Traduo portuguesa anotada do poema

    APRESENTAO DO GUIA GASTRONMICO

    Frg. 1Fazendo uma apresentao da minha pesquisa a todo o mundo grego.(apud Ath. 1. 4e)

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    Captulo II Traduo portuguesa anotada & edio modernizada do poema

    Frg. 2Percorri a sia e a Europa(apud Ath. 9. 383c)

    Frg. 3onde que cada comida melhor50(apud Ath. 7. 278d)

    REGRAS DE CONFORTO E DE ETIQUETA

    Frg. 4Toda a gente deve comer de uma elegante mesa individual51. Quanto ao total

    recomendado de [convivas] de trs ou quatro, nunca mais de cinco! Pois, neste caso, tratar-se-ia antes de uma messe de soldados mercenrios, uns ruf ias.

    (apud Ath. 1. 4e)

    O PO, REI DA MESA MEDITERRNEA

    Frg. 5Em primeiro lugar so os dons de Demter52 de farta cabeleira que vou men-

    cionar, meu caro Mosco. Presta bem ateno ao que te digo. Os melhores e mais f inos de todos (limpos das impurezas da mais comum cevada) podem arranjar-se em Lesbos, na colina53 rodeada pelo mar da famosa reso mais brancos que a neve pura! Os deuses, se por ventura comem farinha de cevada, a que, para eles, Hermes a vai comprar. Tambm a h razovel em Tebas das Sete Portas, em Tasos e noutras cidades mas assemelha-se a grainhas, quando comparada quela54! No tenhas qualquer dvida a respeito disto.

    50 Entre < > situaram os editores (desde Casaubon) termos omissos, mas deduzidos por comparao com versos idnticos da Ilada e Odisseia de Homero (cf. Olson-Sens 2000: 18).

    51 Difererimos, na nossa leitura, da proposta de Olson-Sens (2000: 19), que propem (contra o que a prtica habitual grega) que haja uma nica mesa para todos os convivas. Conforme tornaremos claro abaixo (cap. 3, a propsito do mobilirio), o texto grego indica que em frente de todos (o mesmo dizer, de cada um dos convivas) colocada uma mesa de servio, para uso individual.

    52 Os dons de Demter so uma expresso metafrica para cereais, de que o poeta mais abaixo no poema especifica as espcies mais cultivadas e apreciadas para a produo de farinha e po: a cevada e o trigo.

    53 Traduzimos por colina a palavra grega mastos (seio, peito). O poeta recorre, aqui, a uma metfora do corpo feminino para significar uma forma de relevo. Por no encontrarmos um termo em portugus que servisse cumulativamente os sentidos conotativo e denotativo da palavra do original, optmos pelo emprego do sentido de valor metafrico.

    54 Remete para a farinha de cevada de melhor qualidade, inicialmente referida, a de Lesbos.

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    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    Compra um po da Tesslia, que tenha sido bem enrolado mo at formar uma bola, aquele a que os locais chamam krimnites e outros po kondrinos. Em segundo lugar o meu elogio vai para o f ilho da farinha de trigo de Tgea, o po escondido. No entanto, quando se trata de po feito para vender na praa, a ilustre Atenas que oferece aos mortais o de melhor qualidade. Mas em ritras, de abundantes cachos, um po branco, a sair do forno no momento em que atingiu o ponto exato de cozedura, esse que faz as delcias da refeio.

    (apud Ath. 3. 111f-12b)

    Frg. 6Mas, em casa, tem um tipo da Fencia ou da Ldia55, algum que, sendo um

    entendido em cereais, tos prepare, no dia-a-dia, de todas as maneiras que tu mandes.(apud Ath. 3. 112c)

    APERITIVOS

    Frg. 7Os mexilhes, tem-nos o Eno grandes, as ostras Abido, os ursos56 Prio e as

    vieiras Mitilene. Mas a Ambrcia que os oferece em maior quantidade e, junta-mente com estes, um sem nmero de (). No estreito de Messina poders arranjar conchas do cabo Peloro e conchas de casca f ina em feso, nada ms. Bzios h os da Calcednia; mas, quanto a arautos57, que Zeus d cabo deles tanto os do mar como os pblicos, excepo de um nico homem, aquele meu camarada que vive em Lesbos, terra rica em passas de uva, de seu nome gaton.

    (apud Ath. 3. 92d-e)

    Frg. 8Que te sejam servidas azeitonas engelhadas, amadurecidas na rvore.(apud Ath. 2. 56c)

    55 H que considerar que Ateneu faz esta citao de Arqustrato com intuito de demonstrar que o gastrnomo desconhecia serem os padeiros mais afamados os oriundos da Capadcia. Em todo o caso, este trecho ilustra j a fama de profissionais de um determinado sector alimentar por regies geogrficas.

    56 Crustceo de difcil identificao; provavelmente corresponder espcie classificada por Lineu como Scyllaris arctus, que tem por nome comum portugus lagosta-da-pedra.

    57 Os bzios (gr. thethea) vm apelidados de arautos, provavelmente devido ao seu uso como cornetas, tocadas para convocar a ateno do auditrio.

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    Captulo II Traduo portuguesa anotada & edio modernizada do poema

    Frg. 9s taas com molhos de jacintos-das-cearas58 e de caules digo adeusinho, bem

    como a todo o tipo de aperitivos.(apud Ath. 2. 64a)

    PRIMEIRAS MESAS: PRATOS DE PESCADO

    Frg 10Quanto enguia louvo qualquer uma, se bem que, de longe, a melhor seja a

    capturada em frente ao estreito do mar de Rgio59. A, tu, um Messnio60, ganhas a todos os outros mortais, por pores na boca semelhante comida.

    No obstante, grande prestgio tm, pela sua qualidade excecional, as enguias copaicas e estrimnias, realmente grandes e admirveis pela sua corpulncia61. Independentemente de tudo isso, considero que a enguia a rainha de todos os festins e ocupa o primeiro lugar entre as iguarias, ela que, por natureza, o nico peixe com uma espinha mnima.

    (apud Ath. 7. 298e-9a)

    Frg. 11O peixe-mido abomina-o todo, excepto o de Atenas: de peixitos que falo,

    aqueles que os Inios62 chamam peixe-espuma63. E compra-o fresco, aps ter sido

    58 Em portugus o correspondente culinrio ao termo bolboi (bolbos) uma espcie em concreto, conhecida por jacinto-das-cearas ou cebolinho de flor azul. No cap. 3 retomaremos este assunto, quando abordarmos o uso de plantas aromticas na cozinha de Arqustrato.

    59 Sendo Rgio uma cidade situada a sul da pennsula itlica, de frente para o estreito da Siclia, este um dos poucos casos em que o autor est a louvar a fauna da sua prpria ilha.

    60 De acordo com os fragmentos que nos chegaram, os dois interlocutores das palavras do poeta so Mosco e Cleandro, o que nos faz pensar que o uso deste adjectivo toponmico (da Messnia, regio a noroeste da Lacnia) denunciaria a naturalidade de pelo menos um deles, que seria no um Grego das ilhas, mas do continente.

    61 So numerosas as referncias em textos gregos dos scs. V e IV a. C. a atestarem o apreo gastronmico das enguias do lago Copas (situado na regio da Becia), de que referimos a ttulo de exemplo passos de comdias de Aristfanes (Acarnenses, vv. 880-894; Paz, vv. 1005-1009; Lisstrata, vv. 35-36, 701-702) e da obra do poeta gastronmico Mtron de Ptane, autor do Banquete tico (Ateneu, Deipnosophistai, 134d-137c). As enguias do rio Estrmon (que marcava at ao tempo das conquistas de Filipe II a fronteira oriental entre a Grcia e a Macednia e hoje divide a Grcia da Bulgria) vm igualmente referenciadas por fontes contemporneas (de que destacamos Aristteles, Histria dos animais 592a7-9).

    62 Os Gregos, por razes de parentesco lingustico e de cultos religiosos comuns, subdividiam-se em trs etnias helnicas claramente diferenciadas. Uma delas a agora referida, dos Inios, as outras duas so os Drios e os Elios.

    63 Sobre o peixe-espuma, cf. Aristteles, Histria dos animais 569a 29, b 28. A designao usada para peixes pequenos de vrias espcies, incluindo peixe-espadilha e anchovas.

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    Arqustrato, Iguarias do Mundo Grego

    capturado nos braos sagrados da bela baa do Falero64! O de Rodes, rodeada pelo mar, tambm ser notvel, se tiver mesmo vindo da regio.

    Mas se, por ventura, tiveres vontade de provar esses peixes midos, tens de comprar, juntamente com eles, urtigas do mar (as anmonas cobertas de tentculos). Mistura umas com os outros e frita-os numa frigideira, com flores bem cheirosas de hortalia fresca, modas em azeite.

    (apud Ath. 7. 285b-c)

    Imagem 3 - prato de Fritada de peixe midoVeja-se receita executada no Apndice

    Frg 12Quanto ao elops65, come sobretudo um na clebre Siracusa, que esse excelente.

    Na verdade este peixe originrio da, de modo que, sempre que captur