as meninas de velázquez: a representação da representação

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AS MENINAS DE VELÁZQUEZ: A REPRESENTAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO Amanda Sangy Quiossa Rita de Cássia Mesquita de Almeida * RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar a obra barroca “As meninas”, de Diego Velázquez, a partir da interpretação de Michel Foucault e de outras, contrárias ou a favor do filósofo. ABSTRACT: this work aims to analyze the work baroque "As meninas”, by Diego Velázquez, from the interpretation of Michel Foucault and others, or contrary to the philosopher. PALAVRAS-CHAVE: Velázquez; Pintura barroca; Foucault. KEYWORDS: Velázquez; Baroque painting; Foucault. INTRODUÇÃO Este artigo tem a finalidade de ponderar as diversas interpretações que giram em torno do quadro “As Meninas”, de Diego Velázquez. Extremamente analisado, o quadro é motivo de polêmica e de infinitas indagações sobre qual foi a verdadeira intenção do pintor ao executar a obra, não só de especialistas em História da Arte como entre vários outros autores, de diversas áreas. Partiremos da análise mais famosa, publicada pelo filósofo Michel Foucault 1 , comparando-a com novas concepções surgidas recentemente, como a do artista plástico Ricardo Coelho, que expõe um contraponto muito nítido à obra de Foucault. E para inserir a obra no tempo, faremos uma breve passagem pelo contexto artístico, biografia e outras produções do pintor. * Graduandas do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 1 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 7ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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Page 1: As meninas de Velázquez: A representação da representação

AS MENINAS DE VELÁZQUEZ : A REPRESENTAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO

Amanda Sangy Quiossa Rita de Cássia Mesquita de Almeida*

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar a obra barroca “As meninas”, de Diego Velázquez, a partir da interpretação de Michel Foucault e de outras, contrárias ou a favor do filósofo.

ABSTRACT: this work aims to analyze the work baroque "As meninas”, by Diego Velázquez, from the interpretation of Michel Foucault and others, or contrary to the philosopher. PALAVRAS-CHAVE: Velázquez; Pintura barroca; Foucault.

KEYWORDS: Velázquez; Baroque painting; Foucault.

INTRODUÇÃO Este artigo tem a finalidade de ponderar as diversas interpretações que giram em

torno do quadro “As Meninas”, de Diego Velázquez. Extremamente analisado, o quadro é

motivo de polêmica e de infinitas indagações sobre qual foi a verdadeira intenção do pintor

ao executar a obra, não só de especialistas em História da Arte como entre vários outros

autores, de diversas áreas. Partiremos da análise mais famosa, publicada pelo filósofo

Michel Foucault1, comparando-a com novas concepções surgidas recentemente, como a do

artista plástico Ricardo Coelho, que expõe um contraponto muito nítido à obra de Foucault.

E para inserir a obra no tempo, faremos uma breve passagem pelo contexto artístico,

biografia e outras produções do pintor.

* Graduandas do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 1 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 7ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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1. VELÁZQUEZ, EXPRESSÃO DO BARROCO

Diego Rodríguez de Silva y Velázquez nasceu em Sevilha, em junho de 1599, e foi

o principal artista da corte do Rei Filipe IV de Espanha. Como quase nunca assinava seus

trabalhos, o artista teve atribuídas a ele muitas telas de outros pintores. Embora suas obras

chamem a atenção pela aparente naturalidade, não são frutos de simples observação, mas de

uma elaboração intelectual, na busca de uma representação do mundo em formas ideais.

Cercado de prestígio e honrarias, Velázquez morreu em Madri, em 6 de agosto de 1660. É

tido como uma grande expressão do Barroco. 2O Barroco é um estilo artístico que surgiu na

Europa ocidental nos séculos XVII e XVIII. Embora tenha assumido diversas

características ao longo de sua história, seu surgimento está intimamente ligado à Contra-

Reforma. A arte barroca procura comover intensamente o espectador. Nesse sentido, a

Igreja converte-se numa espécie de espaço cênico, num teatro sacro onde são encenados os

dramas.3

Contrariamente à arte do Renascimento, que pregava o predomínio da razão sobre

os sentimentos, no Barroco há uma exaltação dos sentimentos; a religiosidade é expressa de

forma dramática, intensa, procurando envolver emocionalmente as pessoas. Além da

temática religiosa, os temas mitológicos e a pintura que exaltava o direito divino dos reis -

teoria defendida pela Igreja e pelo Estado Nacional Absolutista que se consolidava -

também eram freqüentes. De certa maneira, assistimos a uma retomada do espírito religioso

e místico da Idade Média, numa espécie de ressurgimento da visão teocêntrica do mundo. E

não é por acaso que a arte barroca nasce em Roma, a capital do catolicismo.4 O Barroco é

marcado pela presença constante da dualidade. Antropocentrismo versus teocentrismo, céu

versus inferno, claro versus escuro, entre outras oposições.

Como influências presentes na obra de Velázquez, há o naturalismo de Caravaggio e

o emocionalismo dos Carracci, representando o declínio do alto nível cultural e do fim do

direcionamento da arte para a classe dominante. As massas passam a ser levadas em conta,

2 Disponível em http://www.pitoresco.com.br/universal/velazquez/velazquez.htm. Acessado em 27 jun. 2007. 3 SILVA, Henrique Vanderlei; SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 31. 4 Ibidem, p. 32.

Page 3: As meninas de Velázquez: A representação da representação

o que não ocorria no Maneirismo. As obras de arte deveriam fazer propaganda, persuadir,

dominar, mas através de uma linguagem pura e apurada.5

Essa intensidade dramática do Barroco está bem exemplificada na pintura de

Rubens. Esse pintor flamengo, que viveu de 1577 a 1640, é considerado um dos maiores

expoentes de todo o Barroco e um dos maiores gênios da pintura de toda a História da Arte.

Este, através de suas visitas a Espanha, despertou em Velázquez o desejo de conhecer a

Itália, que por sua vez conseguiu ser enviado em missão oficial a todas as províncias

italianas, comprando obras de arte para a coroa espanhola e tomando conhecimento do

trabalho dos melhores artistas.

Sucederam-se as obras-primas A Rendição de Breda (1634), Vênus olhando-se ao

Espelho, Cavalo Branco, retratos de bobos da corte e as efígies de Esopo e de Menippe.

Executou em Roma o retrato do Papa Inocêncio X que irá, séculos mais tarde, tornar-se

uma obsessão na obra de Francis Bacon. Entre suas obras, podemos citar como pintura de

tema mitológico o quadro O Rapto das Filhas de Leucipo. De tema religioso, Sansão e

Dalila, da passagem bíblica do Velho Testamento. E, como exemplo de pintura que exalta a

nobreza, temos a série de quadros sobre a vida de Maria de Médici, feitos por encomenda

para a rainha-mãe e regente da França.6

A arte religiosa assume um caráter oficial e perde suas características espontâneas e

subjetivas, tornando-se mais condicionada pelo culto e menos pela fé imediata. Isso se deve

ao medo do subjetivismo da Reforma, ao medo de que haja interpretações arbitrárias das

representações católicas. A Igreja católica deseja que as obras expressem o significado real

de sua ortodoxia, de maneira a se firmar diante do Protestantismo.

Nos estados protestantes, a pintura barroca assumiu características diferentes. Como

nesses países havia condições favoráveis à liberdade de pensamento, a investigação

científica iniciada no Renascimento pôde prosseguir, permitindo assim a confecção de

quadros como A aula de anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt.7 A força da burguesia

nesses estados – e especificamente na Holanda – levou a pintura aos temas burgueses e de

cenas da vida comum, como A Ronda Noturna, também de Rembrandt.

5 Disponível em http://www.pitoresco.com.br/universal/velazquez/velazquez.htm. Acessado em 27 jun. 2007. 6 Loc. cit. 7 Disponível em http://www.historiadaarte.com.br/barroco.html. Acessado em 04 jul. 2007.

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O Barroco durante os 150 anos que imperou, significou um modelo de vida. A

integração existente entre pintura, escultura e arquitetura, a música que confere às

cerimônias palacianas e principescas um grande esplendor, o mobiliário, o vestuário, a

literatura e inclusive os penteados e o modo de se expressar.8

2. FOUCAULT & “LAS MENINAS”

Michel Foucault faz em seu texto uma análise detalhada do quadro de Diego

Velázquez, buscando compreender a obra, em todas as relações que se pode fazer entre seus

componentes. Ele constrói sua narrativa basicamente a partir das incertezas e ambigüidades

presentes no quadro.

O autor começa seu texto analisando a presença de Velázquez dentro do quadro. Para

Foucault, o pintor está no ponto neutro da oscilação entre o momento de pausa e o ato de

pintar. Neste último ele se esconde atrás do cavalete e não pode ser visto pelo espectador,

enquanto no momento de pausa ele observa o modelo e podemos vê-lo por inteiro.

Velázquez então, está representado no momento entre a observação do modelo e o ato de

pintar, tendo em vista a impossibilidade de representá-lo nos dois momentos.9

Em relação ao olhar de Velázquez, Foucault o interpreta como direcionado ao

espectador, ou seja, seu olhar se projeta para fora do quadro. Isso, não nos permite perceber

qual o alvo da sua contemplação. O fato de sua visão se direcionar a nós estabelece uma

relação nossa com o quadro. O espectador torna-se alvo do olhar de Velázquez, na medida

em que está no lugar de seu modelo. Ao mesmo tempo, que este olhar pode estar nos

expulsando e dando atenção ao que estava lá desde o começo, isto é, o modelo, o

direcionamento do olhar do pintor para fora do quadro transmite uma sensação de vazio que

parece aceitar todos como modelos. 10

No olhar de Velázquez também é possível perceber uma ambigüidade. Ele pode ser

considerado não-estável, como se o sujeito e o objeto, o espectador e o modelo, trocassem

de lugar infinitamente. Isso se dá, pois não sabemos o que ele está pintando, o que acaba

por confundir nossa função de espectador. Não sabemos se estamos sendo olhados, e com

8 KOCH, Wilfried. Dicionário dos estilos arquitetônicos. São Paulo: Marins Fontes, 2004. p. 50. 9 FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 3. 10 Ibidem, p .4.

Page 5: As meninas de Velázquez: A representação da representação

isso, nossa função de espectador se confunde com o papel de modelo. Por outro lado, pode-

se perceber um caráter imóvel no seu olhar, se considerarmos que este quadro foi pintado

uma vez e permanecerá sempre estático.11

O espectador se percebe retratado na tela virada que é invisível e ele próprio. É

utilizada uma estratégia para enfatizar isso. A luz que vem de uma janela na extremidade

direita, com uma perspectiva muito curta.12 Ela ilumina tanto a tela, o lugar em que o pintar

está sendo representado pintando e à sua frente, o lugar que o espectador ocupa. A luz

dourada que sai desta janela leva o espectador direto ao pintor e o modelo direto à tela. A

janela então, com seu papel parcial emite uma luz inteira e mista que serve de lugar-comum

à representação. Ela envolve tanto os personagens quanto os espectadores, que se sentem

olhados pelo pintor através desta luz, que é a mesma nos faz vê-lo. Esta luz é equilibrada

pela tela invisível, que está na outra extremidade.13

Foucault analisa os quadros presentes no fundo da pintura. Ele dá destaque para um

que, para ele, brilha com uma luz diferenciada, que lhe é interior. De acordo com o autor,

este quadro, entre os elementos destinados a oferecer representações, mas que não o fazem

de forma nítida, devido à sua posição, ou distância, é o mais nítido. Ele o interpreta como

um espelho, em que aparecem duas silhuetas e acima delas, mais atrás, uma cortina de

púrpura.14

Ele o coloca como elemento pouco observado, tanto pelos personagens do quadro,

quanto por nós, espectadores. Este espelho não reflete nada que está visível no quadro. Não

reflete o pintor, nem seus personagens. Ele capta aquilo que nos é duplamente invisível no

quadro, os modelos que o Velázquez representado pinta em sua tela e as figuras que

observam o pintor.15

A descrição da obra e de seus participantes para Foucault seria

Velázquez compôs um quadro; que neste quadro ele se representou a si mesmo em seu ateliê, ou num salão do Escorial, a pintar duas personagens que a infanta Margarida vem contemplar, rodeada de aias, de damas de honor, de cortesãos e de anões; que a esse grupo pode-se muito precisamente atribuir nomes: a tradição reconhece aqui dona Maria Agustina Sarmiente, ali, Nieto, no primeiro plano,

11 Ibidem, p. 6. 12 Idem. 13 Op. Cit. p.7. 14 Op. cit. p. 10. 15 Op. cit. p. 11.

Page 6: As meninas de Velázquez: A representação da representação

Nicolaso Pertusato, bufão italiano. Bastaria acrescentar que as duas personagens que servem de modelo ao pintor não são visíveis, ao menos diretamente; mas que podemos distingui-las num espelho; que se trata sem dúvida, do rei Felipe IV e de sua esposa Mariana.

O espelho então, reflete o que está pintado na grande tela à esquerda. Opõe-se à

janela e a reforça, sendo ambos parte do quadro e representantes de algo exterior.16 O

espelho, de maneira discreta, busca à frente do quadro o que é olhado, mas que não é

visível, o tornando visível, mas não destacado. Já a janela, através da luz que projeta da

direita para a esquerda conecta as personagens ao pintor, ao quadro e à cena que observam.

O espelho ainda coloca em evidência uma porta que também recorta um retângulo claro, se

abre na parede ao fundo.17

Esta porta também não retém muita atenção e fixa o verso da cena. Um homem está

parado nela, de perfil. Não se sabe quem ele é e de onde veio, nem se está saindo ou

entrando na sala. Ele é real enquanto no espelho o que aparece são reflexos prováveis. É

como se sua presença, nítida e real, recusasse as pálidas e minúsculas silhuetas refletidas no

espelho.18

Foucault propõe uma análise que parte do olhar do pintor. Esta análise parte do lado

esquerdo da tela, passando pelos quadros o fundo com o espelho no centro, a porta aberta,

outros quadros e enfim, a janela à direita onde é emitida uma luz. Desta forma se torna

possível perceber todo o ciclo de representação: o olhar, a paleta, o pincel, a tela em que

não se sabe o que está representado, como instrumentos materiais da representação. Já os

quadros, os reflexos, o homem real, são a representação acabada, mas vazia de seus

conteúdos ilusórios e verdadeiros que lhe são justapostos. Seguindo da esquerda para a

direita nos quadros que seguem há uma diluição da representação, só são perceptíveis suas

molduras, de onde parece emanar a luz, que na verdade vem do exterior. A abertura lateral,

onde termina este ciclo representa a amplitude do quadro. Ela ilumina os personagens do

quadro. 19

No centro do quadro está a infanta Margarida que se posiciona com a cabeça virada

para a direita e o busto para a esquerda, dirige seu olhar aprumado aos espectadores. Uma

16 Op. cit. p. 12. 17 Op. cit. p. 13. 18 Op. cit. p. 14. 19 Op. cit. p.15.

Page 7: As meninas de Velázquez: A representação da representação

linha mediana dividindo o quadro em duas partes iguais pode ser traçada entre os dois olhos

da menina. Seu rosto está a um terço da altura total do quadro. Ela é o tema principal da

pintura, o que é enfatizado pela presença da governanta ajoelhada na sua direção, da aia que

olha para a princesa, da outra dama de honor também voltada para ela, porém com os olhos

voltados para frente fitando a princesa e o pintor.20

Foucault classifica dois grupos de duas personagens, em que, por sua posição e

proporção, se correspondem e se emparelham. Atrás há os cortesãos e à frente os anões.

Conforme a atenção que se dê ao quadro e ao seu centro de referência, este conjunto de

personagens pode constituir duas figuras. Uma seria um grande X. Na sua ponta esquerda

superior estaria o olhar do pintor e à direita o do cortesão; nas pontas inferiores, à esquerda

está o pé do cavalete, e do lado direito o anão, que está com o pé apoiado no cachorro. No

centro deste X está o olhar da infanta. A outra figura seria uma grande curva. Suas pontas

seriam determinadas pelo pintor à esquerda e pelo cortesão à direita; o recôncavo seria o

rosto da princesa e o olhar que a aia a dirige. Esta delicada linha desenha uma concha que,

de maneira instantânea, que ao mesmo tempo encerra e libera, no centro do quadro, a

localização do espelho. A partir destas duas possibilidades de figuras a se formarem com

diferentes pontos no quadro, pode-se perceber dois centros em que se pode organizar o

quadro: o rosto da infanta e o espelho.21

Foucault conclui nos falando da reciprocidade do olhar dos personagens no quadro e

dos três grupos que o olham externamente. Os personagens olham para o modelo e para o

espectador, da mesma maneira que são olhados pelos modelos, pelos espectadores e pelo

pintor.22 Outro ponto colocado pelo autor é relativo à importância do espelho, que reflete os

modelos, o rei e a rainha. A intenção deste reflexo é atrair para dentro do quadro aquilo que

organiza o olhar de todos os personagens representados na tela.23 Mas devido aos objetos

de representação, e os soberanos não estarem representados de forma clara no quadro, a

obra pode ser considerada como uma visão de um mestre (que seria Velázquez) que

20 Loco citatum. 21 Op. Cit. p. 16. 22 Op. Cit. p. 18. 23 Op. Cit. p.19.

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representa os soberanos sendo representados. Seria então o que Foucault chama de a

representação como pura representação.24

3. OUTRAS INTERPRETAÇÕES

Murillo Mendes25

Compartilhando da tese de Foucault, Mendes começa afirmando que a tela é a

representação de uma cena invertida, vista pelo seu reverso, e isto significa que não é

possível ver o conteúdo da tela no seu verso. Ele também acredita no discurso da

invisibilidade presente no quadro, que diz respeito ao posicionamento de Velázquez na tela.

“O pintor, dentro da motivação da pintura, marca um espaço imponderável, se situa num

deslocamento do visível e do invisível”. Ou seja, Velázquez se retrata num intervalo de

tempo entre o momento de pintar e aquele em que observa o modelo, e fica a insinuação de

um possível conteúdo invisível (aquilo que está sendo pintado). Assim, ele entende que o

pintor nos observa na medida em que nos encontramos no lugar de seu modelo, e o que era

para ser observado na realidade observa, através de uma linha do olhar de Velázquez. O

objeto passa, então, a posicionar o sujeito, e para que este último exista é preciso que seja

representado. Contudo, há a incerteza do sujeito em relação ao que está sendo pintado, por

conta da invisibilidade do conteúdo da tela, da qual só se pode ver o avesso.

Sobre a luz que incide no cenário da pintura, Mendes diz que “ela é um elo de

ligação entre o real e o espaço representado”, porque “faz visível o espaço dos modelos

reais e irreais”. Ele acredita, assim como Foucault, que a luz se estende para fora da tela,

iluminando também o espectador que, para ambos os autores, é um possível modelo de

Velázquez. O espelho, por sua vez, é analisado como sendo a representação da

representação, visto que seu reflexo é a reprodução do invisível (o tema da tela que só pode

ser vista pelo seu verso).

24 Op. Cit. p. 20. 25 Disponível em www.artecritica.arq.com.br/cultura.htm. Consultado em 26 abr. 2007. Devido à falta de numeração nas páginas dos artigos consultados, resolvemos omitir as notas de referência a cada citação. Entenda-se que foram retiradas aqui e ali, em todo o texto.

Page 9: As meninas de Velázquez: A representação da representação

Mendes conclui destacando a realidade aparente do quadro. Para ele, a tela

constitui-se de diversos olhares e as únicas figuras irreais – os reis, refletidos no espelho –

são as menos observadas. Em suas palavras:

No conjunto, o quadro é uma cena olhando e sendo olhada. O puro espetáculo é o exterior. É um espetáculo composto de olhares, tanto da assistência quanto das figuras, olhando e sendo olhadas. O real é aparência da realidade. A representação se coloca no frágil e na palidez da realidade. As figuras do espelho, as únicas reais, são as mais frágeis e as que não são olhadas nem pelas figuras representadas e nem pelo espectador. No entanto, são as únicas figuras soberanas, os reis, superando o real e o irreal. E só a partir delas, que existe a possibilidade da representação, o motivo da elaboração do quadro.

Ricardo Coelho26

Coelho parte da crítica à interpretação de Foucault sobre o quadro e de uma

detalhada análise estrutural para fundamentar a sua tese. “O quadro é reanimado à nossa

maneira numa tentativa de refazer a sua execução e assim entender o famoso enigma de

Velázquez”. Contudo, reconhece que

a confrontação das interpretações não permite uma conclusão definitiva a respeito do quadro, porém, abre uma nova forma de olhar e analisar o enigma de ‘Las Meninas’ como uma representação que se desdobra no tempo, ou melhor, como uma fissura no tempo linear da representação, sendo impossível que a cena como a conhecemos tenha ocorrido a um só tempo.

A primeira hipótese que aparece em seu trabalho é em relação a uma evidência

revelada pelo tempo. Duas linhas verticais surgem, mostrando as duas bases iniciais de

divisão do quadro. De acordo com Coelho, as linhas devem ter sido feitas de algum

material “diferente da tinta a óleo usada no esboço” e se tornou visível com o tempo. Isso

demonstra que o quadro foi previamente estruturado e estudado de maneira detalhada. “O

primeiro segmento passa pelo rosto da dama de honra que supostamente nos observa;

deste segmento até a extremidade esquerda encontramos a segunda linha mestra do

quadro que, coincidentemente, corta o rosto de Velázquez passando pela sua palheta”.

(Anexo 1, figura 2).

26 Disponível em www.artewebbrasil.com.br/espaco/ricardocoelho.htm. Consultado em 26 abr. 2007. Devido à falta de numeração nas páginas dos artigos consultados, resolvemos omitir as notas de referência a cada citação. Entenda-se que foram retiradas aqui e ali, em todo o texto.

Page 10: As meninas de Velázquez: A representação da representação

O autor critica basicamente a teoria que perpassa toda a análise de Foucault: a

ambigüidade do quadro, o paradoxo existente nas relações espectador / objeto; interno /

externo; visível / invisível. Dentro disso, segue dois de seus principais argumentos para

iniciar sua análise: “a falsidade do espelho como ponto principal para especular outra

‘realidade possível’ e (...) a ‘impossibilidade essencial’ desta representação, o lugar do

pintor e do modelo, conseqüentemente o nosso”.

Coelho acredita que quem está sendo pintada no contexto da cena retratada é a

infanta Margarita, e utiliza um outro retrato da princesa, também feito por Velázquez, para

confirmar sua hipótese (Anexo 1, figura 6). Ele afirma que o olhar de concentração da

menina a algo externo só é possível porque ela estava num momento que exigia tal atitude,

e, portanto, não havia entrado na sala para simplesmente distrair seus pais, supostamente os

modelos da tela. Ao contrário, para Coelho os invasores, aqueles que estão “espionando” a

cena são justamente os reis.

Depois das primeiras observações a respeito da pose da princesa podemos afirmar que ela se encontra posando para Velázquez, seu olhar não é de espanto como supõe Foucault, e sim, como já afirmamos, de uma infantil concentração, aquela que só as crianças possuem, quando são convencidas da importância de seus atos. A disposição dos braços é a mesma da pintura de 1659, o que reforça nossa tese. (Anexo 1: figuras 7 e 8).

Para tentar tornar sua análise mais clara, Coelho descreve o que ocorreu,

provavelmente, na cena retratada. O que aconteceu foi o seguinte, segundo o autor:

Velázquez dispôs as meninas para que pudesse pintá-las. Num determinado momento, um

cortesão que passa pára e fica observando o que acontece, a partir da visão das costas dos

modelos e de frente para o pintor. Ao contrário do que afirma Foucault, o cortesão é

percebido pelo pintor, a ponto de ter sido retratado no quadro. Ao mesmo tempo, o rei

Filipe IV e sua esposa Mariana entram no salão pelo outro lado, ou seja, ficam observando

a cena por trás do pintor, e este não os percebe, num primeiro instante. Ao ver os pais no

salão, a infanta desperta a atenção de Velázquez, e é aí que, segundo o autor, se instaura a

grande tensão do quadro: o pintor se vê de costas para os reis. Segundo Gombrich,

talvez a princesa tenha sido trazida à presença de seus régios pais a fim de aliviar o tédio da longa pose para o quadro, e o rei ou a rainha comentasse com Velázquez que ali estava um tema digno do seu pincel. As palavras proferidas pelo soberano são sempre tratadas como uma ordem e, assim, é provável que

Page 11: As meninas de Velázquez: A representação da representação

devamos essa obra prima a um desejo passageiro que somente Velázquez seria capaz de converter em realidade.

Coelho concorda que pudesse ter havido essa sugestão dos reis, mas discorda, como já dito,

que o alvo da pintura fosse os monarcas. Dessa forma, Coelho acredita que

Velázquez no seu gênio pode ter-se imposto o desafio de reunir toda a cena da qual fazia parte numa única superfície. O tempo e o espaço eram seus obstáculos além da relação de respeito com os seus monarcas. Velázquez, para nós, não fixa um momento real de tempo antes da invenção da máquina fotográfica. Vai além, opera uma verdadeira montagem fotográfica que poderia ser, num sentido ideal, o próprio antecedente do procedimento cinematográfico. Velázquez subverte a estrutura linear da representação na profundidade do tempo.

O ponto chave do pensamento de Coelho é justamente esse rompimento da estrutura

linear do tempo no quadro. Ao tentar não desrespeitar os soberanos ficam de costas para

eles, o pintor criou um espelho na tela, primeira parte de sua montagem cinematográfica.

Nesse nível, a pintura possui o cortesão ao fundo, as meninas (o tema principal) e o retrato

dos reis que acaba de ser inserido no falso espelho no fundo do salão. “O espelho na sua

profundidade fictícia insere na superfície da representação a profundidade da quarta

dimensão, (...) um testemunho do próprio Velázquez ao virar-se para reverenciar seus

soberanos”.

Por conseguinte, Velázquez faz seu auto-retrato com a utilização de um espelho,

talvez o único verdadeiro usado no quadro, assumindo uma postura de observador de seu

próprio trabalho. Coelho conclui, então, que o verso da tela que vemos retratado é o da

própria tela em si. Com suas palavras:

a grande tela da qual vemos o verso na representação é o que não vemos quando vamos ao Museu do Prado em Madri, ou seja, a estrutura de sustentação da própria tela (...). Neste momento da sua execução Velázquez se observou a partir de um ponto de vista próximo de onde estiveram seus modelos, com a arquitetura e os quadros nas suas costas visíveis no reflexo do espelho.

Tem-se, então, a visão do pintor em três momentos distintos: de frente para a

infanta; de frente para os reis (falso espelho) e de frente para o espelho (auto-retrato). Além

disso, o autor afirma que o olhar de Velázquez se dirige a ele mesmo, na medida que o

pintor se retrata olhando para seu reflexo no espelho, e não ao espectador ou aos reis, como

afirma Foucault.

Page 12: As meninas de Velázquez: A representação da representação

Coelho termina ressaltando que “o enigma é causado por uma fissura no tempo

linear da representação. (...) Vemos o tema principal acrescido do passado e ainda que

não nos convencêssemos disso apenas com a imagem do espelho o auto-retrato seria mais

do que latente a esse respeito”. Concluímos, então, que Velázquez chega a tal ponto de

representação da representação que pinta o verso da própria tela que está sendo executada

naquele momento.

4. RELEITURAS

Velázquez obteve seu sucesso somente após a sua morte, mas precisamente no início

do XIX, quando se provou um modelo para os artistas realistas e impressionistas, em

especial para Edouard Manet. Até esse momento suas pinturas situadas nos palácios e no

museu de Madrid eram pouco conhecidas fora da Espanha.27 Sua influência estendeu-se

para artistas cubistas, como Pablo Picasso, e surrealistas, como Salvador Dali. Ambos

fizeram releituras de sua obra mais intrigante e tema deste trabalho. Picasso fez uma série

com nada mais de 58 telas28.

CONCLUSÃO

Velázquez pintou uma tela quando trabalhava, no século XVII, na corte de Filipe

IV, rei da Espanha. Aparentemente, mais um quadro retratando a família de um monarca.

Contudo, inseriu nele alguns elementos que o transformou em alvo de infinitas

interpretações. Foucault afirma que os reis são os modelos, os espectadores também, na

medida em que somos observados pelo Velázquez da tela, e que a princesa entra na cena

apenas para distrair os reis; confirma sua hipótese com a explicação do reflexo dos

soberanos no espelho no fundo da pintura.

Mas, porque então a infanta estava sendo servida, recebendo de sua dama de honor

uma xícara de chá? Qual o motivo de tanta concentração, de uma menina de apenas cinco

anos? Para Ricardo Coelho isso não era só uma postura de respeito perante os reis que,

27 Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Diego_Vel%C3%A1zquez. Acessado em 04 jul. 2007. 28 Ver mais: anexo 2.

Page 13: As meninas de Velázquez: A representação da representação

afinal, eram seus pais. Sua tese vai mais além da interpretação de Foucault. Coelho acredita

que a infanta Margarita e sua pequena corte – portanto, As Meninas – eram o motivo do

quadro. O autor destaca, ainda, algo mais intrigante na pintura: o fato de toda a cena não ter

acontecido ao mesmo tempo e de Velázquez estar olhando a si mesmo, porque se auto-

retrata através da ajuda de um espelho. Embora não explicite, ele coloca o pintor como

precursor, mesmo que indiretamente, dos cubistas, no tocante à idéia de reunir, numa

mesma pintura, vários momentos diferentes29. Talvez isso explique a admiração de muitos

pintores modernos por Velázquez. Ou talvez o pintor barroco só quisesse mesmo

representar o ato de pintar. Certeza, nunca teremos. Mas por muito tempo interpretações

sobre a tela surgirão.

ANEXO 1 – ESQUEMAS DE RICARDO COELHO

Figura 1 – quadro original, 1656. Museu do Figura 2 – bases iniciais do quadro. Prado, Madri, Espanha.

Figuras 3, 4 e 5 – outras linhas de base para a pintura.

29 Ver mais: anexo 3, com quadro de Picasso.

Page 14: As meninas de Velázquez: A representação da representação

Figura 6 – a princesa por Velazquez em 1659. Figura 7 – detalhe da 1. Figura 8 – detalhe da 6. ANEXO 2 – RELEITURAS

Fig. 1 – original de 1656. Fig. 2 – Tawfik, 1986. Fig. 3 – por Picasso. Fig. 4 – por Salvador Dali.

Fig. 5 – outra releitura de Picasso. 1957.

ANEXO 3 – OBRAS CITADAS AO LONGO DO TEXTO

“A Rendição de Breda”, Velázquez. “Ronda Noturna”, Rembrant. “A aula de anatomia do Dr.Tulp”,Rembrandt.

Page 15: As meninas de Velázquez: A representação da representação

“Vênus olhando ao espelho”,Velázquez. “Papa Inocêncio X”, Velázquez. “Dora Maar”, Picasso.

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