domingues, ivan - o intelectual público, a Ética republicana e a fratura do Éthos da ciência

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    O intelectual pblico, a tica republicanae a fratura dothos da cincia

    IvanDomingues

    resumoNo artigo, procura-se focalizar o aparecimento do intelectual pblico no curso da modernidade, tendocomolocus a Frana e prottipo o pensador humanista (hommes des lettres, segundo Tocqueville, que nosserviu de fonte). Em seguida, sua associao com a tica republicana (affaire Zola, o intelectual comocidado do mundo) e sua coextenso s atividades cientficas, ao moldar a tica da cincia, de acordocom a tipologia traada por Robert K. Merton. E ainda, o desaparecimento do intelectual pblico e afratura dothos da cincia na atualidade, conforme mostra John Michael Ziman, ao sublinhar o surgimentodoboss e o papel dobusiness na cincia contempornea. No fim do estudo, ao explorar os conflitos entreas cincias, as corporaes e as naes, procura-se discutir as sadas e a possibilidade de relanar a ticarepublicana, de religar othos da cincia e de reinventar o intelectual pblico. A condio ser a amplia-o do espao pblico, para alm da poltica e da esfera do Estado, interpondo entre o pblico e o privadoda tica republicana tradicional a zona mais ampla da cultura e do social. Nesse quadro, o Brasil situadoe a situao daintelligentsia brasileira discutida.

    P alavras-chave Intelectual pblico. tica republicana. tica da cincia. thos da cincia. Nova ticarepublicana. Reinveno do intelectual.

    Introduo

    A ideia, com a ajuda de fontes diversas, recolhidas dentro e fora da filosofia, esboara figura do intelectual pblico, em uma abordagem atenta sua significao atual e sua histria, recobrindo o seu surgimento, o seu papel na vida da cidade, o pice e adecadncia das suas atividades ao sofrer a concorrncia do acadmico e doexpert.O objetivo, mais do que traar-lhe a histria, lanar o debate sobre a necessidade dereinventar a figura, as funes e o papel do intelectual em um mundo como o de hoje,onde a cena pblica desloca-se rapidamente da praa pblica, da arena poltica e dosmeios de comunicao tradicionais para outras paragens, outros espaos e novos meios.

    Ns vamos mostrar que o surgimento do intelectual pblico vai junto com a tica a tica republicana, modelada na poca das Luzes , a qual vai ligar othos da cin-cia nova e as humanidades clssicas, e que ser fraturada no curso da modernidade.

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    As questes que vamos abordar so as seguintes. Faz sentido, em um mundo como ohoje, colocar na nossa agenda a urgncia e o imperativo de voltar com o intelectupblico, pautando suas aes com a rgua da tica republicana? Como faz-lo, se a cehoje da academia, da universidade e do mundo das letras dominada pela figura dexpert e do empreendedor, em um mundo governado pelobusiness e pela busca do lu-cro, onde a atividade da cincia custa muito caro e os governos e as grandes corporacontrolam tudo? oportuno pensar na volta da tica republicana depois que ela foabandonada pelos cidados, pelos polticos e pelos intelectuais? razovel proporreligao e a sutura dothos da cincia, justamente agora, depois da fratura, quando elefoi deixado de lado pelos cientistas?

    Na sequncia, vamos fazer a apresentao do quadro ou do contexto onde se de

    senvolve a vida intelectual no Ocidente, do qual dois pases sero especialmente considerados, por motivos diferentes: a Frana e os Estados Unidos.Por um lado, no que tange Frana, em uma tentativa de gnese improvisada

    pragmtica, tratava-se de descrever o surgimento do intelectual pblico moderno, poi l na terra dos gauleses que ele nasceu, e o livro de Tocqueville,O antigo regime e arevoluo, muito nos ajudou nessa importante tarefa. Este ponto ser abordado naprxima seo, onde vamos trabalhar o livroiii , captulo1, focalizando duas coisas.Primeira, o contexto e as circunstncias que viram oshommes de lettres tornarem-se,na metade do sculoxviii , os principais atores polticos do pas, tendo como palco Pa-

    ris. Segunda, esse fenmeno histrico de importncia extraordinria um fato nicona cena europeia, a julgar pela Alemanha e a Inglaterra, onde os intelectuais e os escrtores viviam afastados da poltica.

    Por outro lado, era preciso tipificar o intelectual no sentido prprio e francs dapalavra. Foi ento que voltamos aoaffaire Dreyfus, episdio de significao extraordi-nria, que est na origem da terceira repblica e tambm da gestao do termo e dfigura do intelectual, empregado no incio com uma conotao negativa nas mos dMaurice Barrs (algum refugiado no cu platnico das abstraes, sem qualquer cotato com a realidade e tratando de assuntos que no conhece: um palpiteiro, em sumaE foi ento que o artigo famoso de mile Zola, Jaccuse, mais uma vez evidenciou seu valor imenso, tanto ao mostrar o intelectual pblico em ao, ocupando o espao pblico em defesa de uma causa ou de uma ideia, quanto por seus lustros literrios, evdenciando que o intelectual pblico um cidado do mundo, fala em nome da humanidade e seu grito de protesto o grito da alma indignada. Eu no conheo nenhudos acusadores, escreve Zola; eles so para mim meras entidades e eu s tenho umpaixo ao acusar Paty de Clam e todo o estado maior a paixo da luz, em nomehumanidade, que tanto sofreu e que tem direito felicidade (Zola, 1898, p. 2).

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    Do lado americano, ou melhor, anglo-americano, tratava-se de situar as cin-cias e pensar os cientistas como um tipo particular de intelectual. Para tanto, explora-mos dois estudos importantes oriundos das duas tradies: do lado americano, o en-saio notvel de Robert K. Merton (1942); do lado britnico, os estudos de John MichaelZiman, sobretudoCincia real (2000). Nessas duas obras, ainda que a natureza dos pro-blemas e os objetivos sejam diferentes das discusses de Tocqueville e Zola, a questotica e a natureza do trabalho intelectual esto no centro das atenes.

    No fim do artigo, vamos situar o Brasil dos dias de hoje, de olho nas experincias edemandas recentes, dentro e fora dos meios acadmicos, em um ambiente por demaispragmatista em todas as esferas e em que o intelectual pblico virtualmente desapareceu.

    Nosso esforo vai consistir, ento, em articular as duas mais importantes ver-

    tentes da atividade intelectual moderna: as humanidades e as cincias, cujos sujeitosso as gens de lettres e oshommes de science, conforme veremos em seguida. Quanto sfontes, alm das citadas, duas obras foram importantes em nossa pesquisa, uma con-sagrada aO declnio dos mandarins alemes, cobrindo o perodo de 1893 a 1930 e deautoria de Fritz Ringer (2000), um scholar alemo radicado nos EUA; outra de autoriade Tony Judt (2007), historiador britnico recentemente falecido e, como Ringer, comcarreira feita nos EUA. Os dois livros so uma verdadeira mina para tratar da questo edo destino do intelectual em dois pases de primeiro plano no Ocidente. O livro deRinger, sobre o fim dos mandarins alemes, termina antes da ascenso do nazismo e

    deixa uma mensagem melanclica, a saber, a de o fim de uma era, no do intelectualpblico, que mal existiu no pas de Goethe, mas de uma casta, a do Herr Professor , comprivilgios e dignidades sem igual no Ocidente. O livro de Judt, diferentemente, pro-fundamente desestabilizador e iconoclasta. O foco o intelectual pblico, que era umalegio na Frana, e quase ningum no perodo analisado se salva, a seus olhos, nemSartre, nem Simone de Beauvoir, nem Merleau-Ponty, nem Emannuel Mounier, nemJean-Marie Domenach, nem Louis Aragon e Dominique Desanti. S Albert Camus eRaymond Aron. Aps t-lo lido, nunca mais nossos olhos e sentimentos com respeitoa esses cones daintelligentsia francesa foram os mesmos.

    1 O surgimento do intelectual pblico

    Feitas essas observaes iniciais, perguntamos ento o que o intelectual pblico, comoele surgiu e se ele tem ainda algo a fazer e a dizer-nos nos dias de hoje. Tocqueville noseu livro famoso, coloca na gnese do intelectual moderno oshommes de lettres: filso-fos, escritores e livres pensadores. Em suma, podemos dizer, toda pessoa que capazde pensar por conta prpria, dispe de autoridade e dos meios para chegar ao pblico

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    (ctedra, plpito, mdia ou tribuna), usando-os para debater as ideias, defender umacausa, propor uma linha de ao e persuadir a sua audincia. Nesse sentido, o agrupamento dos intelectuais no novo, nem recente, nem unvoco. J o encontramos nGrcia antiga nas figuras dos filsofos, dos sofistas e dos historiadores, como Luciaque dizia do intelectual que ele era umapolis, um desenraizado, aptrida e cidado domundo. Est l nas figuras do apstolo Paulo, que foi o primeiro intelectual da cristandade, de Agostinho, que era filsofo e bispo, portanto poltico da Igreja, alm dos moges medievais refugiados nos monastrios e longe da promiscuidade das cidades, coo Vaticano como a verdadeira ptria. Est l nas figuras de Maquiavel e de Guicciarni, longe das igrejas e protegidos pelos prncipes, abrindo as vias para o pensamentlaico. Est l nos libertinos, nos enciclopedistas franceses e nos mandarins alemes

    Todavia, desde a metade do sculoxviii , segundo Tocqueville, a Frana gerou uma novafigura, o intelectual pblico, o intelectual que, s contando com o poder da pena e daideia, pde ocupar a arena poltica, propor a reforma do homem e da sociedade e serprotagonista da revoluo mais radical e de consequncias nunca vistas antes. Pergunta-se Tocqueville: como oshommes de lettres, que no possuam nem posies, nemhonrarias, nem riquezas, nem responsabilidade, nem poder, tornaram-se de fato asprincipais personalidades polticas da poca, e mesmo as nicas, uma vez que, enquanas outras exerciam o governo, apenas elas tinham a autoridade? (Tocqueville, 195p. 194). E mais, por que justamente na Frana? Por que a Frana e no a Inglaterra,

    Alemanha ou os Estados Unidos? Ao procurar responder a essas questes, Tocqueville observa que a Frana anteda Grande Revoluo, uma nao a um tempo estranha a seus prprios negcios e impotente com respeito a suas instituies, estorvada por elas e sem poder corrigi-lasera no obstante, dentre todas as naes da Terra, a mais letrada e a mais amorosa dbel esprit. Compreende-se ento facilmente, escreve Tocqueville, como os escrito-res a se tornaram uma potncia poltica e terminaram por ser a primeira. Tal foiuma experincia nica e sem rival em outros cantos da Europa e da Amrica do NorNa Inglaterra, por exemplo, aqueles (...) que escreviam sobre o governo e aqueles qgovernavam estavam misturados, uns introduzindo ideias novas na prtica, outros corrigindo e circunscrevendo as teorias com a ajuda dos fatos. Na Frana, ao contrrio

    o mundo da poltica estava dividido em duas provncias separadas e sem comr-cio entre si. Na primeira, administrava-se; na segunda, estabeleciam-se os prin-cpios abstratos sobre os quais toda a administrao deveria estar fundada. Aqui,tomavam-se medidas particulares que a rotina indicava; l, proclamavam-se leisgerais, sem jamais pensar nos meios para aplic-las: a uns a conduta dos neg-cios; aos outros a direo das inteligncias (Tocqueville, 1952, p. 199).

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    Trata-se, pois, da inveno do intelectual pblico, no do intelectual investidoem funes pblicas nos governos, nas magistraturas e nos rgos da Igreja, ou mesmodo professor universitrio convertido em funcionrio pblico e pago pelo Estado, que j existia nessa poca, mas do intelectual engajado na poltica e ocupando o espao p-blico da cidade, de uma regio inteira ou da nao. Trata-se tambm de uma invenofrancesa que logo ir encontrar seus equivalentes em outros pases, inclusive no Bra-sil, mas que, na Frana, encontrar um ambiente nico e todo seu. De um lado, o gostodas letras e o cultivo doesprit, referidos por Tocqueville; de outro, a irradiao, o mo-dismo, a mdia e certa arrogncia to tpica dos parisienses e to marcante, at o fimdos anos 80, dos cafs enfumaados doQuartier Latin.

    Desde os tempos dos romanos, os franceses eram conhecidos por uma marca

    que foi conservada at hoje: o gosto da novidade, j retida por Csar que assim se re-feria a seus sditos gauleses: povos vidos de novidades (rerum novarum cupidi). A importncia e a centralidade de Paris, referidas por Rousseau e Montaigne, foramobjeto de admirao de Goethe, que assim se lhe referiu em comentrio a Eckermann:imagine uma cidade como Paris, onde os melhores crebros do grande reino esto emum s lugar e instruem-se e estimulam-se mutuamente atravs do contato, do conflitoe da emulao dirios (GoetheapudJudt, 2007, p. 418). Sobre os franceses, o escritorbritnico Doutor Johnson dizia em defesa dos ingleses, conhecidos por no terem apoderosa retrica dos rivais, que um francs tem que falar sempre, quer ele entenda

    do assunto, quer no; um ingls contenta-se em no dizer uma palavra quando no temnada a dizer (Doutor Johnsonapud Judt, 2007, p. 338). Por sua vez, focalizando o fa-mosoesprit francs e o cultivo das letras to caracterstico de seus compatriotas, Bat-Louis de Muralt assim se refere aos franceses em plena poca das luzes: o estilo, inde-pendentemente do que ele exprima, um assunto importante na Frana. Em outrospases, os pensamentos do origem s expresses... Aqui, o inverso, frequentemen-te, so as expresses que do origem a pensamentos (Bat-Louis de Muraltapud Judt,2007, p. 338). Por fim, bem mais perto de ns, Benedetto Croce chama a ateno paraum trao importante da cultura e daintelligentsiafrancesas: o gosto pela abstrao epela generalidade. Na Frana, escreve Croce, temos o defeito de buscar as coisas decima, a la Napolon (CroceapudJudt, 2007, p. 419). Ora, esse mesmo trao vai serencontrado na intelectualidade francesa sete sculos antes, nos estatutos da Sorbon-ne quando ela foi fundada e continuou a acompanhar os Sorbonnards sculos afora.Segundo o historiador Judt, vrias vezes mencionado,

    desde que os estatutos da Universidade exigiram, em 1215, que os seus acadmi-cos trabalhassem a fim de fundar uma teoria geral do mundo, a caractersticadominante do intelectual francs tem sido a vontade de organizar e conter o co-

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    nhecimento dentro dos limites de um quadro nico (...) Esse hbito de pensa-mento, no entanto, no transmitido por um gene coletivo misterioso (...) Ele o produto de uma cultura urbana impressionantemente ininterrupta, a da comu-nidade parisiense de escritores e acadmicos, singular e nica na experinciaocidental (2007, p. 418).

    Foi, portanto, nesse ambiente especial que se inventou o intelectual pblico, umintelectual engajado na poltica, entregue a uma causa impessoal, seduzido pelos encantos do pensamento radical e capaz de seduzir-nos pela radicalidade de seu pensamento, em um tempo em que os franceses tinham perdido a confiana em seus governantes, tomados de desgosto pelas coisas antigas e a tradio, sendo ento naturalmen

    conduzidos, como observou Tocqueville, a querer reedificar a sociedade de seu tempsegundo um plano completamente novo, que cada um [dos escritores] traava luz nde sua razo (Tocqueville, 1952, p. 195). O resultado bem conhecido. Uma das relues mais perigosas, mais vastas e mais profundas que j apareceram no mundo, conduzida por intelectuais e escritores. Acrescenta Tocqueville,

    quando estudamos a histria de nossa revoluo, vemos que ela foi conduzidaprecisamente com o mesmo esprito com que se escreveram tantos livros abstra-tos sobre os governos. Mesma atrao pelas teorias gerais, pelos sistemas com-

    pletos de legislao e pela exata simetria nas leis; mesmo desprezo pelos fatosexistentes; mesma confiana na teoria; mesmo gosto pelo original, pelo enge-nhoso e pelo novo nas instituies; mesma vontade de refazer a um tempo a cons-tituio inteira segundo as regras da lgica e conforme a um plano nico, em vezde retific-la em suas partes. Effrayant spectacle! Pois aquilo que qualidade noescritor por vezes vcio no homem de Estado, e as mesmas coisas que frequen-temente tm permitido fazer belos livros podem levar a grandes revolues(Toqueville, 1952, p. 200),

    e mesmo a grandes desastres, como o Terror, os gulags e os genocdios de povos intei-ros, pode-se dizer, a supor o liame que muitos viram, depois do autor do Ancien rgime,entre os acontecimentos que sucederam a 1789 na Frana e as outras revolues dsculoxx .1

    1 Embora haja mais de um paralelismo entre a poca de Tocqueville e a nossa, as diferenas entre as sociedadeclasse e as sociedades de massa devem ser vigorosamente afirmadas ao procurar compreender em profundidadfenmeno do totalitarismo.

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    Depois de Tocqueville, passados cem anos, a Grande Revoluo institucionalizou-se e as coisas mudaram, e muito. Por um lado, mais alm do Terror e do sofrimento, aRevoluo Francesa est na origem de uma nova experincia da poltica, de novas ins-tituies sociais e dos direitos humanos. Por outro, a figura do intelectual engajado,surgida naquela poca, sobreviveu ao contexto de nascimento e mostrou que seus diasseriam bem mais longos. Ptria das letras e do intelectual pblico, a Frana continuousendo o cone do pensamento radical e olocus de novas experincias de pensamento ede engajamento: republicanos, catlicos e marxistas. Herdeiros dos jacobinos e dosbolchevistas, como mostram os historiadores ao reportarem-se aos marxistas, elesocuparam a cena poltica ao longo do sculoxx , at a grande desiluso, iniciada no ps-guerra e consumada nas ltimas dcadas do sculo. O resultado ser o eclipse quase

    que total da poltica, diagnosticado por Judt como devido profunda indiferena mos-trada pelos franceses com respeito moral pblica e, especialmente, no tocante rela-o entre a moral e a poltica. Foi ento que os franceses se insurgiram contra o holismodos Sorbonnards, criando o pensamento da suspeita e ps-moderno, marcado com ogosto pelos fragmentos, pelos escombros, pela margem, pela dobra e pela deriva. E foiento que o intelectual total, engajado, cidado do mundo e falando em nome da hu-manidade, a exemplo de Diderot, Zola e Sartre, chegou ao fim e, em seu lugar, ficou ointelectual especfico (Foucault), oexpert (como se via Lvi-Strauss) e o acadmico (umalegio). Tambm eles podero ocupar a cena pblica, mas sem engajamento poltico ou

    partidrio, emitindo opinies tcnicas quando solicitados, nada mais. A exceo Foucault, que parte em defesa das minorias, dos prisioneiros, dos loucos e doayatollahKhomeini, ao apoiar a revoluo do Ir.

    2 Os hommes de lettres, a tica republicana e os enjeux do intelectual pblico

    Aqui no o lugar para contar a histria do intelectual pblico. Simplesmente no hespao, muitos j o fizeram antes, e no esse o nosso propsito. O que vamos fazer traar-lhe o perfil e desenhar o modelo, associando a figura e osenjeux, palavra fran-cesa usualmente glosada como aquilo que se pode perder ou ganhar em uma aposta, emum jogo ou em uma competio, com uma conotao de risco (aquilo que arriscamosou que est em jogo =en jeu), significado ao qual iremos agregar os sentidos adicionaisde desafios, de tarefas, de deveres e de funes. O quadro das discusses e onde a figu-ra ser afixada a relao entre tica, conhecimento e sociedade, em cujo centro va-mos encontrar a poltica, mas no exclusivamente.

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    Antes de mais nada, ser preciso qualificar o adjetivo pblico, o que ele inclui e oque ele exclui. Tocqueville nos mostra sua abrangncia e em que ele consiste. Trata-doshommes de lettres que, no contexto da revoluo francesa, ocuparam a cena pblicae engajaram-se na poltica, aliando a pena e a baioneta. Certamente, essa no a nica maneira de exercer o ofcio de intelectual, nem a sua forma completa ou acabad A academia e o mundo das letras conhecem outros tipos e outras maneiras de exerceofcio. H a recluso letrada, longe das disputas acadmicas, doaffairisme dos neg-cios e das mil mscaras do mundo da poltica, como nos casos de Petrarca e MontaignH tambm a via do professor de humanidades, refugiado em seu gabinete, e do cientista trancado no laboratrio, de costas para o mundo. O que temos em mente um tipde intelectual criado na era moderna, na esteira do humanismo cvico da Renascen

    italiana, com a virtude cvica frente, e do Iluminismo francs em suas vertentes moderada e radical, onde vamos encontrar lado a lado Diderot, Montesquieu, Voltaire mesmo Rousseau, ainda que algo dissidente, como sabido. Uns colocando no centdas atenes as potncias do intelecto e o direito de examinar tudo; outros colocandno centro a virtude poltica, ao fundir democracia e repblica (Montesquieu); outrosainda, distinguindo e, ao mesmo tempo, articulando a virtude moral e a virtude poltica (Rousseau). Ento, a cena pblica, no momento do surgimento do intelectual pblco, ser a arena poltica, vista como lugar de embate e de convencimento.2 J a virtudeou othos do intelectual pblico ser a virtude cvica ou a fuso da virtude moral e d

    virtude poltica, tendo ao fundo a perspectiva do indivduo e a do cidado, como caso do filsofo de Genebra. Ao falar dosenjeux e dos tipos de engajamento, levando em considerao a natu-

    reza da poltica e as conexes do mundo da poltica com o mundo intelectual, havemuito que assimilar e distinguir, tanto ao incluir quanto ao excluir. No sero as mesmas as vises da poltica dos Iluministas radicais e moderados, nem a mesma a visda cincia e da tcnica (arte) de Kant e Rousseau, um derivando a cincia e as artes d virtudes ou potncias do intelecto (Kant), outro derivando-as dos vcios (RousseauQuanto ao mais, o mundo intelectual o mundo do pensamento e o prottipo do intelectual o pensador, co-extensivo ao filsofo e ao cientista. Assim, Descartes e Bacoe tambm Galileu e Newton, todos eram pensadores e atuavam na cena pblica, sendportanto, intelectuais pblicos. Ao ocuparem-se da poltica e de matrias pblicashouve aqueles que se deram bem no fim dos embates, como Galileu e Victor Hugoaqueles que se deram mal e foram derrotados. Incluem-se entre estes Lavoisier, quefoi guilhotinado, apesar de tudo o que ele fez pela cincia e por seu pas, e tamb

    2 Sem dvida, o embate com a religio deve ser includo entre as principais aes do intelectual do sculoxviii ;porm, no ser focalizado por ns, para no ampliar em demasia o escopo do estudo.

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    Robespierre, de fato mais poltico do que intelectual, conhecido como o Incorruptvele, portanto, o modelo em pessoa das virtudes moral e poltica, at cair em desgraa eser executado. Todas essas possibilidades devem ser levadas em conta na construodo modelo ao fixarem-se a figura e os enjeux do intelectual.

    Quem nos ajuda a definir-lhe othos, como dizamos, Rousseau ao referir-seao cidado republicano em uma passagem famosa do Discurso sobre a economia poltica.

    No suficiente dizer aos cidados, sejam bons, preciso ensinar-lhes a s-lo,e o exemplo, que a esse respeito a primeira lio, no o nico meio que se deveusar. O amor ptria o mais eficaz, pois, como eu disse antes, todo homem virtuoso quando sua vontade particular em tudo conforme vontade geral, e

    ns queremos de bom grado o que querem as pessoas que amamos. Parece que osentimento da humanidade evapora-se e se enfraquece ao estender-se por toda aTerra, e que no poderamos ser tocados pelas calamidades da Tartria ou do Ja-po, do mesmo modo como o somos quanto quelas de um povo europeu. pre-ciso de alguma forma limitar e comprimir o interesse e a comiserao para dar-lhe efetividade (Rousseau, 1964, p. 254).

    Entendemos que o filsofo suo abre o caminho, mas no nos fornece todo oconjunto de caracteres do intelectual de que precisamos. Fala do cidado em geral, o

    cidado poltico, e no exatamente do intelectual e do intelectual pblico. Ser precisoento recalibrar o modelo e othos, ao efetuarmos a passagem. No modelo do intelec-tual que temos em mente, o amor ptria deve transfigurar-se em amor humanidadee o intelectual pblico no se v exatamente como o cidado de um pas ou de uma na-o, mas como cidado do mundo. Em comum, definindo o tipo ideal, vamos encon-trar a primazia da coisa pblica, o senso de responsabilidade individual, a rennciaaos interesses particulares em favor do interesse geral, o respeito ao outro e a solidari-edade. Seu horizonte virtualmente a humanidade, no o indivduo ou o grupo, como j tinham visto Agostinho e o romano Terncio, citado por Diderot, mostrando que setratava de algo compartilhado por cristos e pagos. Assim, Terncio, que dizia: eusou um homem e nada do que humano me estranho. A esses traos somam-se aautoridade moral, a independncia intelectual, a curiosidade e o af do questionamento,a capacidade de indignao e a disposio de fazer das objees de conscincia umacruzada contra as injustias deste mundo, sem regateio e sem moeda de troca. Tudoisso est l, implcita ou explicitamente, nos escritos do famoso filsofo de Genebraem que muitos viram o guia espiritual da Revoluo Francesa, e at mesmo do Terror,ao inspirar os jacobinos e Robespierre.

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    se aquilo que o fsico ingls Snow, em um ensaio com grande repercusso, chamou dechoque das duas culturas, a das humanidades clssicas e a dashard sciences. Uma dasconsequncias foi o estreitamento do conceito de intelectual e, mais ainda, do intelec-tual pblico, como assinala Snow ao referir-se a uma conversa entre ele e o matemti-co G. H. Hardy ocorrida nos anos 30, em Cambridge, na Inglaterra.

    J notou como a palavra intelectual usada hoje em dia? pergunta Hardy,dirigindo-se a Snow. Parece existir uma nova definio que certamente no in-clui Rutheford, nem Eddington, nem Dirac, nem Adrian. Isso parece um poucoestranho, no acha? (Snow, 1995, p. 20-1).

    Em nossa anlise, com o intuito de aproximar os dois tipos de intelectual, ire-mos distinguir as duas fases da cincia visada como prtica social, assunto de um gruposocial especfico e desenvolvida em laboratrios e academias, com a inteno de extra-ir-lhe othos, a saber, othos da cincia acadmica tradicional, auto-referenciada eauto-suficente, e othos da cincia ps-acadmica, fortemente voltada para o mercadoe dependente da economia, para usarmos duas excelentes expresses de Merton eZiman. Trs coisas sero mostradas: (1) o vnculo da cincia tradicional com a ticarepublicana, a exemplo do intelectual pblico e doshommes de lettres (a cincia comobem da humanidade); (2) a fratura dothos da cincia acadmica tradicional e o ocaso

    da tica republicana; (3) a necessidade de religar othos da cincia, relanar a ticarepublicana e reinventar o intelectual pblico, juntando as gens de lettres e oshommesde science. O nervo do argumento a transformao da cincia, no curso do sculoxx ,em coisa pblica e matria de poltica pblica, vencendo o isolamento do cientista elanando-o na arena poltica. O resultado um novo tipo de intelectual pblico, que vem cena pblica com suaexpertise e a esta retorna ao sair dela, em estrito paralelismocom oshommes de lettres, que tambm se especializaram, e como o fazem, bem enten-dido, oshommes de science com sua autoridade moral emprestada da credibilidade dacincia. o que mostraremos em seguida.

    3 Os hommes de science, a tica republicana e o intelectual pblico

    Todavia, por mais importante que seja, a Frana com sua cultura invejvel e sua tradi-o poderosa, o cenrio francs no d o quadro completo, e deixa na penumbra o ou-tro lado da experincia contempornea. O outro lado no ser encontrado na Alema-nha, terra do mandarim e do Herr Professor , que conheceram os dias finais com a ascensodo nazismo, como mostrou Ringer (2000). Alemanha cuja reconstruo do ps-guerra

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    terminou no por restaurar o mandarim, mas por instaurar um novo tipo dehomo aca-demicus, j em livre curso na Amrica do Norte e em outras paragens. Ora, esse outrlado ser fornecido pela considerao dos Estados Unidos, onde foi forjado o sucessdo intelectual pblico e onde o processo foi conduzido ao estado de perfeio, sem cocorrncia no Ocidente, na figura doexpert e do cientista-empreendedor.

    Para bem compreendermos as coisas que esto em jogo, preciso levar em considerao que o processo americano tem dois momentos. O primeiro comum a outros pases e foi retratado por Robert K. Merton em seu famoso ensaio, referido anteonde focaliza othos da cincia acadmica. O segundo momento, especialmentemarcante da terra dosYankees, gestado a partir das primeiras dcadas do sculo passa-do, com a vinculao da cincia com a indstria e o mercado, mas cujos traos e el

    mentos podem ser encontrados em outros pases, e cujo modelo ou perfil traado poJohn Michael Ziman e outros estudiosos.Ora, o primeiro modelo de intelectual, traado por Merton, ao tratar do cientista

    comprometido com as causas da cincia e com as coisas do mundo, como GalileDarwin e Einstein (exemplos nossos), justamente o intelectual pblico comthos re-publicano, calcado no cidado do mundo, porm reconduzido pelo eminente socilogo democracia. Todavia, na poca moderna, houve a fuso das duas tradies, e otros bem que podero falar de repblica, em vez de democracia, a exemplo de Zimancomentar Merton, evidenciando que elas so intercambiveis. Pois bem, no tocante

    Merton, nos anos 1940, em plena guerra, ele definiu othos da cincia com a ajuda dequatro traos ou caractersticas, normas segundo ele. Ou seja, como todas as normapreceitos fundados sobre valores compartilhados por uma comunidade porosa emutvel, como no caso dos cientistas e, portanto, diferente do exrcito e das confrarias religiosas, caracterizadas pela hierarquia e a rigidez. Os quatro traos so, seguindo a exposio de Merton: Universalismo (a cincia visa o universal e no tem ptriComunalismo (a pesquisa cientfica deve ser socialmente construda, conduzida noespao pblico e seus resultados publicizados), Desinteresse (a cincia tem valor intrnseco e est acima dos interesses dos cientistas) e Ceticismo Organizado (Organized Skepticism, donde o OS, por causa do ingls, as proposies da cincia devem ser acatadas com reservas e averiguadas o tempo todo) (Merton, 1970 [1942], p. 653-62).

    Esses quatro aspectos da atividade cientfica, comuns s cincias naturais e cincias humanas, tm fundamento emprico, pode-se dizer, visto que Merton os ti-rou da experincia e da prxis corrente dos cientistas. Todavia, eles devem ser vistomenos como categorias empricas do que como preceitos normativos, a moldura ondse enquadram as aes das cincias que fornecem algo como uma lente de aumento um modelo otimizado ou, antes, um tipo ideal no sentido de Weber, em que qualquecientista poderia facilmente reconhecer sua presena e marca pessoal. Ao montar o

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    quadro da cincia e traar o tipo ideal dothos do cientista, Merton se afasta da viausual da sociologia da observao direta e do survey e recorre a fontes histricas e do-cumentais, cujas principais referncias no vo ser encontradas no corpo do texto, masem notas de rodap.

    Assim, para estabelecer o nexo entre a tica e a cincia, ele cita Albert Bayet queem um importante livro publicado em 1931, A moral da cincia, observa que se trata deum liame real e de uma moral prtica, antes mesmo de ser formulada e objetivada pe-los cientistas: essa moral [da cincia] no teve seus tericos, mas teve seus artfices.Ela no exprimiu seu ideal, mas o serviu; ele est implicado na existncia mesma dacincia (Bayetapud Merton, 1970 [1942], p. 653, nota 2). Por outro lado, as ideias deque a cincia universal e o cientista o cidado do mundo so estabelecidas com a aju-

    da de uma argumentao mais abundante, que assimila a cincia e o cientista, ao mes-mo tempo em que os distingue e os tensiona. Assim, Pasteur os distingue: o cientistatem uma ptria, a cincia no (Pasteurapud Merton, 1970 [1942], p. 656). Algum tempoantes, tambm Raumur (1683-1757), notvel fsico e engenheiro, fundador da meta-lografia e especialista em ao, em seu livro A arte de converter o ferro forjado em ao, aoperguntar-se se ns somos os senhores de nossas descobertas, tendo por alvo aquelesque o censuraram por ter publicado segredos das corporaes, responde: senhoresde nossas descobertas? (...) Ns somos devedores de nossa Ptria, mas devemos tam-bm ao resto do mundo, aqueles que trabalham para aperfeioar as cincias e as artes

    devem mesmo olhar como cidados do mundo inteiro (Raumurapud Merton, 1970[1942], p. 658-9, nota 11). Mais tarde, passada a fase herica, a par dos indivduos, soas academias e as associaes cientficas que vo sustentar essas ideias, evidenciandoo universalismo da cincia, seu valor intrnseco, sua ao desinteressada e sua distn-cia ao paroquial e ao local. A cincia completamente independente das fronteirasnacionais, das raas e dos credos, estabelecer a Resoluo do Conselho da Associa-o Americana para o Progresso da Cincia, citada por Merton, e publicada por Science(Merton, 1970 [1942], p. 654, nota 4). Tambm Nature publicar no mesmo ano algoparecido com o ttulo O progresso da cincia e a sociedade: proposta de associaomundial (cf. Merton, 1970 [1942], p. 654, nota 4). Tais so os argumentos que justifi-cam os trs traos ou caracteres dothos do cientista e da tica da cincia: universalismo,comunalismo e desinteresse. Quanto ao quarto trao, ceticismo organizado, ele noprecisa de muita retrica para ser justificado. Trata-se de algo j sabido desde os gre-gos, de incio reconhecido e propagado pelas escolas mdicas, que viram no ceticismoo avesso e no empirismo o direito de uma mesma coisa, resultando na dvida perma-nente e na busca incessante do conhecimento e da verdade (pois, como viu SextoEmprico, o mdico e o ctico so questionadores e inquisidores). Na modernidade, oceticismo mantm sua natureza e muda de forma, alm de escala. Continua sendo uma

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    estratgia de conhecimento e de pesquisa, porm converte-se em organizaoinstitucionalizada em escala mundial, com os laboratrios frente e as instituieatrs, ao conferir s cincias os meios de lidar com a contingncia, o cambiante e provisrio, os quais, alm da experincia, so as marcas por excelncia do real empric Ao fixar esse trao, Merton se encontra em boa companhia, justamente na companhde Bacon, Boyle, Galileu, Pascal, Weber e uma pliade de cientistas ilustres, dando ogem a uma proposta epistemolgica que faz lembrar a de Popper e do falibilismo.

    Tudo isso sugere que houve uma verdadeira converso moral cincia, levandocientista a consagrar-lhe toda uma vida e a dedicar-lhe o melhor de si, em uma espcie de sacerdcio, sem exigir nada em troca, a no ser o respeito e o reconhecimentE mais, uma converso no to-s individual, mas coletiva, envolvendo grupos inte

    ros nos quatro cantos do planeta, que vo comportar-se e agir do mesmo jeito, pondobusca da verdade acima de tudo, inclusive do interesse pessoal. O resultado, ao seinteriorizado e integrado ao indivduo e ao grupo, a formao dothos da cincia, queest na origem tanto da moralidade das atividades dos cientistas quanto da moralizadas aes e aplicaes das cincias, autorizando o estudioso a falar, em sentido prprio, de tica da cincia.

    A publicao do artigo de Merton, muito bem escrito e, sem dvida instigantedespertou um sem-nmero de polmicas, dividindo a recepo entre os seguidores dsocilogo, uma legio, e o exrcito de crticos, no faltando aqueles que colocassem

    curiosidade e a liberdade (autonomia) no centro da tica da cincia, e no, por exemplo, o ceticismo. Ou, ento, que considerassem a cincia como atica ou axiologicmente neutra, na esteira de Weber e Durkheim. O certo que, independentemente doendosso integral ou no dothos mertoniano, as pessoas admitiam que havia umthosda cincia e que essethos era compatvel com a democracia, no com o totalitarismo, vez que a cincia e as descobertas cientficas s nascem e frutificam ao ar livre.

    Esse foi o caso de John Ziman, fsico de formao e socilogo da cincia por co verso, ingls de origem, tendo passado boa parte de sua vida na Nova Zelndia, esdado em Oxford e atuado na Universidade de Bristol, na Inglaterra. Quarenta anos dpois, ele volta aothos de Merton e, talvez inspirado por uma passagem do socilogoonde ele fala da importncia do mrito e do desinteresse do cientista, que deve resisti tentao de buscar o lucro fcil e contentar-se com o reconhecimento e as honrariaprope um acrograma (sigla) para batizar com um s nome o talthos. O acrograma apalavracudos , criada a partir do vocbulo inglskudos, um jogo de palavras, enfim, nasacepes de admirao, prestgio e respeito e, portanto, com uma carga semntica positiva significando cada letra. De fato, ao criar o termo, Ziman violentou o texto Merton pelo menos duas vezes. Uma primeira, ao trocar a ordem das palavras, comando comCommunalism, ao invs deUniversalism; uma segunda, ao inserir o termo

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    Originality , no empregado por Merton. Todavia, a ideia boa, o O do acrograma po-deria ser obtido de outro modo (Merton fala deOrganized Skepticism) e qualquermertoniano reconhece Merton l (Ziman, 1984, cap. 6).

    Mais tarde, cerca de quinze anos depois, Ziman (2000, cap. 3) volta ao ponto.Consciente de que othos mertoniano, othos da cincia acadmica, encontra-se fra-turado e em processo de desintegrao, sendo substitudo por uma mentalidade em-presarial e taylorista, tpica da cincia industrial e protagonizada pelo cientista em-preendedor, ele pe ao lado do CUDOS o acrograma PLACE (cf. Ziman, 2000, p. 78-9)significando cada letra: Proprietrio ( Proprietary knowledge, associado privatizaodo conhecimento), Local ( Local problems, voltado para o particular e o local, a soluode problemas concretos e especficos, no para o geral e o universal), Autoritrio

    ( Authoritarian, fundado sobre a autoridade gerencial, ou seja, oboss), Comissionado (oconhecimento Commissioned, isto , encomendado: trata-se de um empreendimento visando resultados concretos e fins prticos, feito sob medida ou encomenda) e Espe-cialista (assunto de Expert problem-solving , com forte componente utilitrio e pragma-tista, em vez de conduzir ao aprimoramento do indivduo e criatividade pessoal).

    Ziman entende que os doisthos so contemporneos e esto em conflito per-manente no curso do sculoxx . De fato, othos acadmico foi urdido antes, em meadosdo sculoxix, e suas razes histricas remontam a bem antes, revoluo cientfica dosculoxvii, tendo Galileu como principal protagonista. Enquanto othos da cincia

    industrial foi formatado depois, nas primeiras dcadas do sculoxx , tendo como baseo thos acadmico, nele enxertando-se e dando cincia uma orientao utilitria epragmatista, ao voltar-se para as aplicaes prticas e a obteno de resultados com valor comercial (cf. Ziman, 2000, p. 77). Integrados no modo de produo de conhe-cimento de tipo 1, ambos vo juntos e complementam-se (Ziman dir que eles so gmeos); porm, de um ponto de vista sociolgico, ambos separaram-se e profissionali-zaram-se no incio do sculoxx , segundo a datao de Ziman (cf. 2000, p. 78), devido forte presso do contexto, quando a cincia aliou-se indstria e ao mercado: ento, acincia acadmica refuncionalizou-se ao integrar-se ao sistema de P&D (pesquisa edesenvolvimento), e a cincia industrial passou a comandar o processo, resultando napolarizao das chamadas cincias bsicas e cincias aplicadas, bem como na fraturadothos da cincia acadmica, tradicionalmente identificado com as cincias bsicas.Mais tarde, nas ltimas dcadas do sculo, tendo como contexto a sociedade ps-in-dustrial e a globalizao, haver a fuso dos doisthos e surgir a cincia ps-acadmi-ca, em um processo irresistvel e desestabilizador que deixar os cientistas fragilizadose confusos. Trata-se do modo de conhecimento de tipo 2, que retm as caractersticasdo conhecimento de tipo 1, e acrescenta-lhe outras novas, justificando o acrscimo doprefixo ps (cincia ps-acadmica, sociedade ps-industrial), ao sugerir que h

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    bem continuidades e mudanas nos dois modelos. Continuidades: historicamente, acincia ps-acadmica nasceu da acadmica, superpe-se a ela, preserva muitas desuas caractersticas (exigncia de validao etc.), compartilha muitas de suas funeslocaliza-se no mesmo espao institucional, universidades, institutos de pesquisa eoutras instituies, pblicas ou privadas (cf. p. 68). Mudanas: por um lado, a cincacadmica disciplinar e individualista, fundada na especializao e naexpertise, aopasso que a cincia ps-acadmica multidisciplinar e coletivista, organizada em equpes e funcionando em rede (cf. p. 70); por outro lado, a cincia industrial est organizadatop-down e voltada para o mercado, enquanto a cincia ps-acadmica caracteri-za-se pela flexibilizao gerencial, levando substituio domarket competition pelocommunal management (cf. p. 81).

    No plano dothos, junto com oteam, o trabalho em grupo e a organizao emrede, um novo modo de vida que se anuncia, conduzindo ao aprofundamento da frtura dothos acadmico, que ir alterar a prxis cientfica e os fins da cincia. Como nacincia industrial, os grupos de pesquisa so transformados em pequenas empresascomerciais (p. 76), a busca de vantagens competitivas e do lucro comanda o procesde produo do conhecimento, e h a troca da publicidade e universalidade mertonianapela propriedade intelectual e osroyalties. O resultado ser a substituio da tica aca-dmica por uma tica pragmtica e utilitarista, mal vista por muitos. Porm, Zimanem uma anlise em filigrana, mostra que no bem assim, argumentando que o prin

    cpio da utilidade da tica filosfica em sentido amplo no algo alheio dinmica cincia como prtica social e s suas aplicaes. Diferentemente da cincia acadmicque era vista como conhecimento puro descolado de seus efeitos ou resultados, a cincia ps-acadmica tem que responder por eles, ao integrar o princpio da responsabi-lidade social juntamente com a reflexo sobre a utilidade ao seuthos (cf. p. 74).

    Assim, othos da cincia ps-acadmica consistente tanto com o CUDOS quan-to com o PLACE. Consistente com o CUDOS, porque, segundo Ziman, o modo denhecimento de tipo 2 consistente com othos acadmico. Assim, a competio porfinanciamentos ( grants) refora a competio por reconhecimento cientfico, uma vez que so avaliados essencialmente pelos mesmos critrios (Ziman, 2000, p. 75Consistente com o PLACE, porque, como escreve Ziman, referindo-se cincia pacadmica, no fundo ela segue sendo proprietria, local, autoritria, comissionada[encomendada] e especialista, mesmo que ela no oferea [agora] um lugar to seguquanto ela costumava oferecer [antes] (p. 81). Ziman no explora esse ponto, mas sedvida um ponto importante, e caracteriza um dos aspectos mais salientes da sociedade ps-industrial e do mundo globalizado, a saber, a desestabilizao e a insegurana, que atingem a tudo e a todos, inclusive a atividade intelectual e os cientistaOs arquelogos e os astrofsicos so instados a justificar a utilidade de suas cincia

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    mas qual? Em muitas reas do conhecimento, os cientistas so forados a conviver tan-to com as normas mertonianas do CUDOS como com as normas tayloristas do PLACEE as duas no so a mesma coisa, e esto em choque. Uma tica que faz do conhecimento um sacerdcio e na qual o cientista busca prestgio e reconhecimento pessoal(CUDOS); a outra tica que faz do conhecimento a aquisio de uma habilidade (pro-fisso) e leva o cientista a buscar um place ou uma posio de comando (boss) nasempresas e no mercado (PLACE). Exemplos de cientista-cudos: Galileu, Newton,Darwin e Einstein (porm Einstein patenteou descobertas). Exemplos de cientista-place: Watson e Craig Venter (cf. Castelfranchi, 2008, p. 83-7).

    Vamos parando por aqui. Ziman, com efeito, no v contradies nas duas ticase pensa mesmo que h vantagens na tica utilitarista, no sentido de que ela poten-

    cialmente ajustada situao atual da cincia e permite colocar no centro da cincia aquesto da responsabilidade cientfica. Outros socilogos, em uma outra direo, ain-da que sem usar a terminologia de Ziman, vo dar-lhe razo quanto ao fundo e ao esp-rito, como Michael Gibbons e Helga Nowotny (cf. Gibbonset al., 1994; Nowotnyet al.,2006), que falam de um modo de produo de conhecimento de tipo 2, e como no casode Etzkowitz, que fala do modelo da trplice hlice, fundado na colaborao entre Uni- versidade, estado e empresa. O que gostaramos de acrescentar, ao concluir o tpico, que John Michael Ziman no considera que o surgimento da cincia ps-acadmica dlugar a um estado de coisas homogneo e definitivo. Tudo recente demais, coisa de

    uma gerao, e o que se oferece a nossos olhos fruto de um expediente pragmtico,no de umdesign ou um modelo construdo com a rgua da razo. H que considerar osinmeros expedientes e improvisaes para resolver problemas prticos, e h que so-pesar a presso do contexto (econmico, social e poltico), pois a cincia uma prxissocial e levada a adaptar-se oportunisticamente (a expresso do autor) mudan-a de circunstncias (cf. Ziman, 2000, p. 68).

    Se foramos um pouco o texto de Ziman, podemos dizer que, alm de polarizadapelos doisthos, a cincia ps-acadmica d lugar a uma contradio, polarizada porduas foras antagnicas. Ziman no tematiza esse ponto, visto que parece satisfeito coma perspectiva de integrar a tica da responsabilidade social na tica utilitarista. Contu-do, somos autorizados a faz-lo e a buscar uma outra via, se exploramos certas passa-gens zimanianas e explicitamos por nossa conta o que elas tinham de implcito e dei-xavam na penumbra. Por um lado, a cincia ps-acadmica est organizada em gruposde pesquisa que funcionam como empresas que visam a obteno de uma utilidade com valor comercial (cf. Ziman, 2000, p. 76). Por outro, a cincia ps-acadmica est sendopressionada para servir nao como a fora poderosa no sistema nacional de P&D,como um motor tecnocientfico capaz de criar riqueza para toda a economia (p. 73).Esta a situao da cincia nas sociedades ps-industriais, tambm chamadas de so-

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    ciedades do conhecimento. Nelas, em vez da integrao, a realidade mostra que a tips-acadmica termina por aprofundar a fratura dothos acadmico, introduzindo-setoda sorte de fissuras e crispaes entre os grupos de pesquisa, bem como todo tipo dcontradies e polarizaes entre as naes e as corporaes e, portanto, no havendqualquer harmonia pr-estabelecida entre eles. Essas polarizaes e crispaes so-mam-se insegurana e desestabilizao que atingem o cientista e o sistema de P&em escala planetria, os quais se vero engolfados pelo taylorismo e o produtivismelevando o estresse a nveis nunca vistos antes. O resultado claro. Nesse quadro, nh mais place seguro para ningum, ao passo que o cudos se afunda.

    Mas nem tudo est perdido. Como viu Hlderlin, onde h perigo, cresce tambmo que salva. Esse parece ser o caso das contradies e polaridades. Ali onde elas ex

    tem, pode-se guardar certo otimismo, procurar venc-las e pr outra coisa no lugarCaber, ento, comunidade e a todos ns decidir o que queremos, ao fim e ao cabaprofundar a fratura do velhothos da cincia e do intelectual, o CUDOS? Resistir aoimprio taylorista doboss e do cientista-empreendedor, o PLACE? Voltar ao que era oumoldar algo diferente, e mesmo diferente dos dois?

    4 O relanamento da tica republicana, a religao do thos da cincia e a reinveno do intelectual pblico

    A sada, a meu ver, est na tica republicana, que no nem a do CUDOS trancadolaboratrio e buscando o conhecimento pelo conhecimento, mas que guarda algundos traos e das virtudes dothos mertoniano, como o comunalismo e o desinteressepessoal, nem a do PLACE pragmatista e empreendedor, visando tirar vantagensbuscando o lucro. Sada factvel, duplamente factvel, com efeito. Por um lado, em rzo da prpria contradio apontada implicitamente por Ziman, a mostrar que a coispblica e a nao ainda esto vivas, solicitando a cincia e suas aplicaes; por outlado, em virtude das foras que levam coletivizao da pesquisa e mudana de escdo processo de conhecimento, com custos econmicos, sociais, ecolgicos e moraaltssimos, chamando o cientista responsabilidade (social) e fazendo da cincia umatividade sria demais para ficar s nas mos dos cientistas. Ziman toca nesses pontoe voltaremos a eles no fim do artigo, ao introduzir a perspectiva da tica republicannas matrias da cincia e nas atividades intelectuais.

    Antes, porm, hora de falar do Brasil. Embora marginal, extenso e com populao escassa at o fim do sculoxix (menos de 10 milhes de habitantes), o Brasil teveseus intelectuais pblicos, religiosos uns, como o portugus Padre Vieira na poca dcolnia, e laicos outros, como Jos Bonifcio de Andrada, Joaquim Nabuco, Rui Barb

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    e Gilberto Freyre. No faltaram at mesmo aqueles que se aliaram ao Partido Comunista,como Jorge Amado, Graciliano Ramos e uma pliade de nomes ilustres. Na poca daditadura militar, o espectro da resistncia ia dos liberais arrependidos, passandopela esquerda catlica, at o Partido Comunista e um sem-nmero de grupos dissi-dentes, dos trotskistas aos guevaristas. Finda a ditadura, os intelectuais do PT assumema linha de frente e as posies de vanguarda, em uma histria de dois tempos. A pocado combate e da resistncia; a poca da conquista do poder e do aparelhamento, situa-o que tinha tudo para continuar no fosse o Mensalo, levando uns a abandonarem opartido, outros a recolherem-se no silncio. Estes, um pouco como no silncio obse-quioso da Igreja, s que no imposto, mas escolhido, a exemplo de muitos colegas co-nhecidos em nossos meios. Contudo, dentro e fora do PT, o que temos nas ltimas

    dcadas no capaz, de fato, de ocupar a cena pblica. Com raras excees e que, emgeral, se encontram no domnio das artes, como Chico Buarque, os intelectuais s soreconhecidos dentro de um meio especfico seu prprio partido, grupo, campo dis-ciplinar ou linha terica , no sendo exatamente, portanto, intelectuais pblicos.

    Assim, a exemplo da Frana, tambm ns aqui em baixo, nol-bas, como dizemos franceses, passamos a experimentar o mesmo esvaziamento da poltica e pareca-mos sem sada; a escolha era ou a renncia ou a adeso e o aparelhamento. Como nafigura do PLACE retratada por Ziman, tpica da sociedade industrial e da cincia ps-acadmica, muitos de ns fomos ou continuamos a ser chamados para servios de

    consultoria nos rgos do Estado, em Braslia ou em outros pontos do pas. Trata-se dafigura do intelectual pblico, como dizia Tocqueville, no francesa, fora do governo eem posio de combate, mas inglesa, e mesmo americana, dentro da administraoe em posio de cooperao. Nas universidades, pago pelo governo, o velho intelectualhumanista, livre pensador e bem pensante, descobre como o mandarim alemo queno tem mais vez e que hora de um novo tipo de intelectual, sado no das hostes doshomens de letras, mas das cincias sociais aplicadas, com suasexpertises ou especia-lidades; trata-se bem de uma nova experincia acadmica ou profissional, cujo resul-tado o taylorismo intelectual, onde o livro cede lugar ao paper , o clssico e o perma-nente ao efmero e ao datado, as honrarias aos produtos: DVDs,workshops, servios,patentes, pareceres, consultorias e relatrios.

    Pergunta-se ento se devemos contentar-nos com to pouco, passando nossas vidas cinzentas vendendo servios e formatando produtos, ou instrumentalizados eaparelhados, em uma situao em que no se sabe quem aparelha quem, se o partidoaparelha o governo ou o governo o partido, tamanha a promiscuidade entre o pblicoe o privado. Eu digo queno e que hora de reinventar e repensar a funo e o papel dointelectual. Mas como?

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    O modelo no h de ser Rousseau, Diderot ou Sartre, mas Zola. Todavia, o espo do intelectual pblico deve ser ampliado, para alm da poltica, e abrir-se para social e o cultural. Afinal, a poltica coisa do diabo, e mesmo quando nela visamobem fazemos o mal, como viu Weber, e o contra-exemplo da relao entre o intelectue a poltica Scrates, que vivia em praa pblica e foi condenado pelos ateniensePor isso, todo cuidado pouco. Mais do que nunca, em um tempo em que a poltica vse to degradada, transformada em negcio e vista pelos polticos profissionais comcoisa demarketing , hora de o intelectual repensar a poltica e convocar a tica. Contu-do, a tica republicana tradicional estava por demais polarizada entre o pblico e privado, a julgar por Rousseau ao contrapor o indivduo e o cidado, ao passo queespao pblico hoje maior do que o espao da poltica e da esfera do Estado, po

    alm da esfera do social, h o espao cultural, como dizamos. Ento, reinventar o intelectual pblico, depois do seu ocaso, reinventar o espao pblico e o espao da ctica, um pouco como viu Dewey nos EUA, ao abraar a causa da educao da Amou como viram Adorno, Horkheimer e Benjamin, ao falarem da indstria cultural, ainda Habermas, Dawkins, Chomsky e Umberto Eco, ao serem chamados para pronunciarem-se sobre temas da atualidade, e no s temas polticos, alm do prprioFoucault, ao referir-se biopoltica e ao biopoder.

    Com efeito, a via que permite considerar o cientista como intelectual e colocaoshommes de lettres ao lado doshommes de science como intelectuais pblicos, a exem-

    plo de Dawkins e Umberto Eco, uma questo prtica antes de ser uma questo terie depende to-s de que eles entrem ou tenham entrado na cena pblica, ao seremsolicitados ou por a terem invadido, como indivduo ou agrupamento social. Quanto mais, para esse fato ser pensado no plano terico-conceitual, a pressuposio que espao onde se desenvolve a atividade do intelectual, do intelectual pblico precisamente, um espao virtual ou vazio que pode ser preenchido tanto peloshommes delettres, ou os letrados, quanto peloshommes de science, ou os cientistas. Todavia, comoespecialistas que eles so solicitados, e no como meros criadores de ideias, no sentido do intelectual tradicional, como viu Raymond Aron.

    Em um mundo em que a atividadeintelectual e cientfica tornou-se fragmentadae ultra-especializada e, ao mesmo tempo, uma ao coletiva e um trabalho em equipa depender de polticas pblicas e de contratos firmados com os governos e as socieddes, o desafio quebrar o isolamento doexpert e traz-lo para a cena pblica. Assim,poder dar sua opinio e oferecer suaexpertise toda vez que for convocado, quando ocu-par a cena pblica, somando a sua opinio de outrosexperts e, resultando do conjun-to, um novo tipo de intelectual. Novo, porque no est em jogo voltar ao que era, recuarat a Renascena e relanar o intelectual generalista. Trata-se antes de forjar uma nov

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    figura, justamente o intelectual pblico e sua especialidade ou o intelectual pblicoespecializado que consegue transcender seu campo disciplinar. Junto com ele um novothos da atividade intelectual ser formatado: othos da inteligncia coletiva e da res-ponsabilidade social, e uma nova tica ir acompanhar as suas aes. No a tica dodever docudos nem a tica utilitarista do place, mas a tica republicana e, em vez da velha, polarizada pela dade pblico/privado, uma nova, ressemantizada pela amplia-o da esfera pblica e por uma gama diferente de valores. Sendo simplesmente a cin-cia e a cultura transformadas em coisa pblica (res publica), poder estender-se atividade intelectual, para alm do mundo da poltica, e em um sentido mais amplo eexigente do que a tica republicana tradicional.

    Bem entendido, ao falarmos de vencer os gaps e as fraturas dos diferentes dom-

    nios da atividade intelectual, no estamos propondo a fuso de campos disciplinaresou que o fsico deva aprender sociologia e passar a dar opinio sobre matrias sociaispura e simplesmente. Trata-se de vencer o fosso das duas culturas e reconhecer osmesmosenjeux dos campos de conhecimento como prtica social, caracterizados porcerta porosidade entre as disciplinas, permitindo o compartilhamento de experin-cias e mesmo sua remodelagem, ao fim e ao cabo. , pois, antes mesmo de uma questoepistmica, uma questo de cultura que est em jogo, exigindo uma nova viso das coi-sas e uma nova atitude do letrado e do cientista. a que entra a tica, e duas sero suastarefas, como dizamos: religar othos fraturado da cincia e atar as duas pontas em

    que se desenvolve a atividade intelectual moderna, junto com os dois tipos de inte-lectual que as acompanham, as cincias humanas e sociais e o intelectual humanista(hommes de lettres) e as cincias exatas e naturais (hommes de science).

    Pensamos que a relao entre a cincia, a poltica e a sociedade s ser visada emsua completude se, na extenso da tica republicana, for colocada a questo da gestoda cincia, vale dizer, a questo da cincia como matria de poltica pblica. O divisorde guas aparece ento um pouco depois da periodizao de John Michael Ziman, em1945, no fim da Segunda Grande Guerra, quando Roosevelt recomendou ao engenhei-ro Vannevar Bush um estudo que resultou no documento intitulado Science: the endless frontier(cf. Bush, 1945). A par do grupo de cincias diretamente ligado ao estado, comotinha ocorrido no projeto Manhattan e ocorrer no projeto Apollo, o documento asse-gurava s outras disciplinas e aos cientistas que delas se ocupavam verbas generosas eampla liberdade (um verdadeiro cheque em branco) ao aplic-las. No exagerado di-zer que o estudo de Bush definiu as regras do jogo entre o saber e o poder por vriasdcadas e, mais tarde, sofrer a concorrncia do modelo da cincia ps-acadmica eps-industrial, segundo Ziman, ou ainda, do modelo da trplice hlice proposto porEtzkowitz e Leydesdorf (cf. 1997).

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    Fazer essas coisas significa ao mesmo tempo reinventar o ofcio do intelectual refundar a tica republicana, ideias e propsitos cuja pertinncia intelectual e consis-tncia conceitual foram os objetivos maiores do presente estudo.

    Agradecimentos. Na origem, com igual ttulo, uma conferncia proferida em Ilhus, Bahia, no Seminrio de Histria e Filosofia da Cincia, ocorrido em agosto de 2010. Posteriormente, a verso francesa da conferncia foi apsentada em outubro do mesmo ano em Paris, Frana, no seminrio promovido pelo CERSES/CNRS/UniversitParis v . Agradecemos a todos aqueles que, presentes aos dois eventos, mediante perguntas, observaes variadasugestes valiosas, permitiram dar ao artigo um tratamento mais rigoroso e consistente do assunto.

    IvanDominguesProfessor Titular do Departamento de Filosofia,

    Coordenador do Ncleo de Estudos do Pensamento Contemporneo,Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas,

    Universidade Federal de Minas Gerais, [email protected]

    abstractThis article focuses on the emergence of the public intellectual throughout modernity, taking as itslocusFrance and utilizing, as a prototype, the humanistic thinker (hommes de lettres, cited by Tocqueville, who was also one of my sources). Following this analysis, the public intellectuals association with republethics (affaireZola: the intellectual as a citizen of the world) and their coextension into scientific activities, where they shaped the ethics of science, will be examined in accordance with the typology formlated by Robert K. Merton. The article also focuses on the disappearance of the public intellectual andthe current fracture of theethos of science, as demonstrated by John Michael Ziman who highlights theappearance of the boss and the role of business in contemporary science. Finally, the alternatives athe possibility of re-launching republican ethics, of bonding the ethos of science and of reinventing thpublic intellectual will be discussed: the condition will be the extension of the public space beyond political and the state sphere. Its insertion will thus be located between the public and the private domaof traditional republican ethics, the largest zone of which is constituted by culture and society. In thcontext, Brazil is analyzed and the state of the Brazilianintelligentsia is discussed.

    Keywords Public intellectual. Republican ethics. The scientific ethics.The scientific ethos. New republican ethics. Reinvention of the intellectual.

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