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  • Psicologia de emergncias e desastres na Amrica Latina: Promoo de direitos e construo de estratgias de atuao

    Conselho Federal de PsicologiaConselho Regional de Psicologia 16 regio.

    Palestrantes:Angela CoelhoDesire Salazar

    Maria Carolina da SilveiraNorma ValncioRaquel VenturaRodrigo Molina

    Tatiana Richart ReichertWanderley Gomes da Silva

    1 EdioBraslia-DF

  • permitida a reproduo desta publicao, desde que sem alteraes e citada a fonte. Disponvel tambm em: www.pol.org.br

    1 edio 2011Projeto Grfico Luana Melo/Liberdade de expresso

    Diagramao Fabrcio MartinsReviso Ana Lcia Dantas / Ceclia Fujita / Jora Coelho/Suely Touguinha

    Liberdade de Expresso - Agncia e Assessoria de [email protected]

    Coordenao-Geral/ CFPYvone Duarte

    Edio Priscila D. Carvalho Ascom/CFP

    ProduoGustavo Siqueira Gonalves Ascom/CFP

    Direitos para esta edio Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL Quadra 2,Bloco B, Edifcio Via Office, trreo, sala 104, 70070-600 Braslia-DF

    (61) 2109-0107E-mail: [email protected]

    www.pol.org.brImpresso no Brasil maio de 2011

    Catalogao na publicaoBiblioteca Dante Moreira Leite

    Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo

    Conselho Federal de PsicologiaPsicologia de emergncias e desastres na Amrica Latina: promoo de direitos e construo de estratgias de atuao / Conselho Federal de Psicologia. - Braslia: CFP, 2011.p. 100

    ISBN: 978-85-89208-40-6

    1. Preveno 2.Emergncias em desastres 3. Amrica Latina 4. Psicologia I. Ttulo.

    LB3407

  • Conselho Federal de PsicologiaXV Plenrio

    Gesto 2011-2013

    DiretoriaHumberto Cota Verona Presidente

    Clara Goldman Ribemboim Vice-presidenteDeise Maria do Nascimento Secretria

    Monalisa Nascimento dos Santos Barros Tesoureira

    Conselheiros efetivosFlvia Cristina Silveira Lemos

    Secretria Regio NorteAluzio Lopes de Brito

    Secretrio Regio NordesteHeloiza Helena Mendona A. Massanaro

    Secretria Regio Centro-OesteMarilene Proena Rebello de Souza

    Secretria Regio Sudeste Ana Luiza de Souza Castro

    Secretria Regio Sul

    Conselheiros suplentes Adriana Eiko Matsumoto Celso Francisco Tondin

    Cynthia Rejanne Corra Arajo Ciarallo Henrique Jos Leal Ferreira Rodrigues

    Mrcia Mansur SaadallahMaria Ermnia Ciliberti

    Mariana Cunha Mendes Torres Marilda Castelar Roseli Goffman

    Sandra Maria Francisco de Amorim Tnia Suely Azevedo Brasileiro

    Conselheiras convidadas Angela Maria Pires CaniatoAna Paula Porto Noronha

    Plenrio responsvel pela publicao

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    Apresentao

    Eventos adversos, sobretudo de origem climtica, que levam a situaes de emergncias e desastres tm ocorrido em nmero e magnitude crescentes, no planeta Terra e em nosso pas. A ocorrncia desses eventos tem obrigado todos ns a reconhecer que, por um lado, nos pases que se organizam para enfrentar esses eventos, ocorre uma reduo dos efeitos desastrosos para a populao, principalmente no que diz respeito perda de vidas. Por outro lado, vai ficando claro que precisa ser engendrada uma nova organizao das sociedades, que possibilite o surgimento de mecanismos de autoproteo social e melhor aproveitamento dos recursos pblicos na preveno de desastres, no estabelecimento de modos alternativos de obter respostas s necessidades de locomoo, habitao e alimentao e, ainda, na ateno s populaes afetadas.

    No caso brasileiro, essas ocorrncias coincidem com um estgio avanado de deteriorao das condies de vida nas cidades, onde ocorreu, em menos de um sculo, crescimento significativo de sua populao e inverso no tipo de ocupao do territrio, passando de uma maioria vivendo no meio rural para uma maioria vivendo no meio urbano. Soma-se a isto uma histria mais que centenria de degradao das condies de vida do povo brasileiro (que sofreu uma indita, mas ainda pequena reduo nos ltimos anos), cujo resultado tem sido o surgimento contnuo de desastres que causam sofrimento populao.

    A Psicologia brasileira vive este processo e vem se posicionando diante dele. Vem buscando espaos para contribuir na poltica pblica de defesa civil e, ao mesmo tempo, vem construindo referncias de atuao em emergncias e desastres calcadas na experincia prtica e no acmulo terico sobre o tema.

    No que tange atuao dos Conselhos de Psicologia, destacamos alguns eventos importantes. Em 2006, a Secretaria Nacional de Defesa Civil aceitou a proposta de trabalho do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e, em colaborao, foi realizado o I Seminrio Nacional de Psicologia das Emergncias e dos Desastres. Desde ento, diferentes iniciativas tm sido realizadas. O ponto culminante dessa colaborao pode ser identificado na realizao da I Conferncia Nacional de Defesa Civil (I CNDC), em

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    2010, quando o CFP participou ativamente do processo de construo das atividades e dos debates sobre o tema. A participao foi marcada todo o tempo pela busca de vitalidade e exerccio pleno dos processos democrticos na construo de uma Poltica Pblica de Defesa Civil.

    A Conferncia teve muitos entraves para a sua realizao. Contudo, o CFP pde estabelecer relaes com outras entidades da sociedade civil, buscando articular no movimento social propostas para uma Conferncia efetivamente democrtica. De fato, uma Conferncia que no deixasse no seu rastro canais de expresso da crtica e propostas da sociedade no teria cumprido o seu papel. Nesse sentido, a atuao do CFP foi radical na busca da garantia de relaes democrticas na construo da I CNDC.

    O CFP, em parceria com ABEP e Secretaria Nacional de Defesa Civil, props atividades de promoo da participao de psiclogos e estudantes no V Seminrio Nacional de Defesa Civil (Defencil), em 2009, e na Conferncia Nacional de Defesa Civil. O CFP tambm participou da Comisso Organizadora da Conferncia Nacional de Defesa Civil e em vrios estados, os CRPs trabalharam para que efetivamente acontecessem as Conferncias Estaduais.

    Alm disso, o CFP contribuiu com a criao da Rede Latino-Americana de Emergncias e Desastres, que j se reuniu na Argentina, Brasil, Cuba e Chile e tem proposto atividades sobre o tema em Congressos e eventos diversos, inclusive no Frum Social Mundial de 20l0, quando inscreveu a nica atividade deste tema no Frum realizado em Porto Alegre. Vrios CRPs tambm organizaram/participaram de atividades que propiciaram a discusso acerca do assunto.

    Em 2010, o CFP tambm realizou, em parceria com o CRP-02, de Pernambuco, e atores estaduais, as Oficinas de Prtica da Psicologia nas Emergncias e Desastres, que buscaram contribuir para estruturar o trabalho dos psiclogos que atuavam na reconstruo das cidades atingidas pelas chuvas de 2010.

    Foi com esse histrico, portanto, que os Conselhos de Psicologia chegaram ao incio de 2011, quando enchentes atingiram os estados de Esprito Santo, Gois, Minas Gerais, So Paulo, Rio de Janeiro, Santa

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    Catarina e Paran, reafirmando sua disposio em estar junto com a sociedade e com os governos para prevenir tragdias como as que, mais uma vez foram assistidas. O CFP em conjunto com os Conselhos Regionais situados nos estados brasileiros mais afetados em 2011 buscou construir respostas efetivas, que possibilitassem a contribuio organizada da Psicologia.

    Foi nesse ensejo que se realizaram oficinas sobre a atuao de psiclogos em situaes de emergncias e desastres em parceria com os Conselhos Regionais de Psicologia de Esprito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina e So Paulo, entre os quais figura o Seminrio Estadual de Emergncias e Desastres: estratgias latino-americanas de enfrentamento questo, realizado em parceria com o CRP-16 (Esprito Santo). Os textos que compem a presente publicao so fruto das reflexes dos palestrantes do seminrio. Esperamos que, assim como o material publicado como resultado do seminrio de 2006, estes textos venham a compor o conjunto de referncias que estamos construindo para a atuao dos psiclogos brasileiros em emergncias e desastres.

    Vale ressaltar o fato de o evento que d origem a essa publicao olha no apenas para o Brasil, mas para as experincias latino-americanas. A presena de psiclogos de outros pases do continente reflexo do dilogo que estamos construindo com eles, pensando juntos estratgias de promoo do protagonismo social dos povos latinos e caribenhos. Como veremos nos textos a seguir, a questo dos desastres no est desvinculada dos contextos de explorao a que nossos povos foram submetidos, e as respostas, se construdas em rede pelos nossos povos, certamente sero muito mais efetivas.

    Pela grande relevncia da questo, o Sistema conselhos, coordenado pelo CFP, realizou o planejamento estratgico unificado da Psicologia das Emergncias e Desastres nos dias 8 e 9 de abril de 2011 e, baseado nas deliberaes do VII CNP, elaborou a proposta de ao do Sistema para esta rea.

    Humberto Cota VeronaConselho Federal de Psicologia

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    Sumrio

    Mesa: A sociologia dos desastres: perspectivas para uma sociedade de direitos ............................................................................. 11

    Norma Valncio ................................................................................................. 13

    Mesa: Emergncias e desastres e sua interface com as polticas pblicas de sade mental e assistncia social ............................ 31

    Angela E. L. Colho ........................................................................................... 33

    Raquel Ventura .................................................................................................. 51

    Mesa: A participao da sociedade no enfrentamento das emergncias e desastres ..............................................................55

    Tatiana Richart Reichert ................................................................................. 57

    Wanderley Gomes da Silva ............................................................................ 59

    Mesa: O papel do psiclogo como operador de emergncias e desastres: contribuies para uma prtica cidad ..................... 63

    Desire Salazar Ramrez ................................................................................. 65

    Maria Carolina da Silveira .............................................................................. 73

    Mesa: A Psicologia das Emergncias e Desastres e compromisso social: a experincia latino-americana ......................................... 87

    Rodrigo Molina .................................................................................................. 89

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    Mesa: A sociologia dos desastres: perspectivas para uma sociedade de direitos

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    A sociologia dos desastres: perspectivas para uma sociedade de direitos

    Norma Valncio1

    Nas vrias sociedades, os desastres se tornaram ocorrncias familiares, seja porque tais fenmenos lhes cortaram a prpria carne ceifando vidas, devastando os lugares coletivamente partilhados e destruindo os meios de sobrevivncia , seja porque a tragdia sucedeu a outrem e, por exigncias ticas ou polticas, em graus variados, demandou seu envolvimento no drama coletivo alheio, por meio de providncias de apoio aos grupos afetados.

    No mundo contemporneo, a familiaridade com que os desastres tomam na vida cotidiana deve-se, de um lado, produo social da fragilidade coletiva diante no apenas dos fatores tecnolgicos ameaantes, mas dos fatores naturais de ameaa, aqueles mesmos cujo avano das foras produtivas prometia controlar, no que tange aos seus efeitos deletrios. Mais do que uma simples aspirao, as tentativas de domesticar o mundo natural foram condio fulcral da empreitada modernizadora dos ltimos 600 anos, engendrando um trao civilizacional comum, enfeixando crescentemente as vrias sociedades das mais democrticas s mais autoritrias. No atacado, uma civilizao que ultrapassa a capacidade de suporte do planeta, que a base biofsica que permite a existncia de seus sujeitos, tem um fim previsvel: sua autodestruio. No varejo, esboroa-se a promessa de que, quanto mais tecnificada fosse uma sociedade, mais protegida estaria diante o impacto de estiagens prolongadas, ventos fortes, chuvas intensas e raios. No ambiente urbano, essas hostilidades permanecem: guas pluviais arrastam os veculos em vias expressas, descargas eltricas queimam os inmeros equipamentos de que depende o exerccio de funes privadas e pblicas; ventos entortam torres de transmisso de energia; sinais telefnicos cessam; h paralisia coletiva na cidade em

    1 Doutora em cincias sociais, professora associada III do Departamento de Sociologia da UFSCar, onde coordena o Ncleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (Neped).www.ufscar.br/neped [email protected]

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    que h gua demais ou gua de menos e um sentimento de fracasso e impotncia atravessa a rotina do cidado. A familiaridade com os desastres deve-se, ainda, forma transescalar como forjamos nossa sociabilidade. A calamidade que assola uma comunidade distante pode reverter em danos diretos e indiretos a nossa rotina, uma vez em que afete nossos vnculos sociais e econmicos. A disperso, os membros da famlia e amigos em diferentes cidades, estados e pases, bem como a dependncia que os mercados locais tm do abastecimento de produtos oriundos de mltiplos territrios, so expresso dessa fragilidade. Os tsunamis ocorridos em 2004 na sia enredaram numa mesma desventura socioespacial cidados asiticos e europeus, estes ltimos, devido a sua multiterritorialidade, permissvel pela prtica do turismo. Por fim, h a interpenetrao do mundo real e virtual na sociabilidade da vida moderna, que confere simultaneidade e verdade s experincias que ocorrem tanto na esfera do mundo sensvel quanto daquele que nos atrela ao espao distante, incrementando, pelo testemunho e/ou pelos vnculos, nosso imaginrio de vivncias de desastres. Enfim, o l e o c se imbricam gradativa e incessantemente: somos obrigados a conviver com os desastres.

    No se passa um nico ano, ms ou semana em que estejamos livres de notcias de catstrofes, em nosso pas e nos demais pases; tais notcias mobilizam demasiadamente nossas aes e sentimentos, a ponto de suscitar no imaginrio social um temor difuso: o de que, ali adiante, haja um desastre espreita, quem sabe, pronto para fazer ruir as nossas prprias vidas. Teremos como nos proteger ou nos recuperar dos danos e prejuzos havidos?, Algum vir em nosso socorro?: essas so questes que perpassam a mescla de desamparo e angstia coletivos.

    Apesar do quo concreto os desastres aparentem ser, tais fenmenos esto sujeitos a ser capturados por diversas e, no raro, contraditrias interpretaes, devido diversidade cultural e de recortes epistmicos conviventes que balizam as prticas dos grupos sociais que interagem territorialmente.

    Saberes no cientficos, como os saberes populares o dito senso comum , os saberes artsticos e os saberes religiosos adotam critrios distintos de reconhecimento e de expresso de desastres que guardam profunda pertinncia com a realidade concreta e a vida subjetiva.

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    O socilogo Jos de Souza Martins (2000) lembra que o senso comum diz respeito a um repertrio de conhecimento vlido, que permite aos vrios grupos viver, interagir, sobreviver, dar sentido ao contexto em que atuam e compreender as adversidades a que so lanados. desse senso comum que se manifesta dona Alessandra, desabrigada em desastre ocorrido em Nova Friburgo, no ano de 2007, num desabafo:

    Estamos em quatro paredes, sem sada, entendeu?! No pode continuar aqui nem voltar para a casa (interditada). E pra gente que tem filhos fica muito difcil. No sabe pra onde ir (entrevista in Valencio et al, 2007).

    A obra Novus Angelus, do artista Paul Klee, mereceu a seguinte referncia do filsofo Walter Benjamim (BENJAMIN, 1982:32 apud LEIS, 1997):

    Sua cara est voltada para o passado. No que para ns aparece como uma corrente de acontecimentos, ele v uma nica catstrofe, que acumula sem cessar runa sobre runa e a lana a seus ps. O anjo quisera deter-se, acordar aos mortos e recompor o despedaado. Mas uma tormenta descende do paraso e se arremoinha nas suas asas e to forte que o anjo no pode recolh-las. Essa tempestade o empurra irresistivelmente para o futuro, ao qual volta suas costas, enquanto o cmulo de runas sobe ante ele at o cu. Tal tempestade o que chamamos progresso.

    No menos expressiva a obra de Cndido Portinari, Retirante, parte

    de um conjunto de telas em que o autor retrata aspectos das mazelas relacionadas s persistentes secas, exprimindo a misria das famlias empurradas s migraes compulsrias, aspirando sobreviver em nveis bastante elementares.

    Poeticamente, Carlos Drummond de Andrade (2002) antropomorfiza o ato de chover e, no seu poema Caso Pluvioso, caracteriza a devastao do mundo interior do narrador, devido s lamrias incessantes duma personagem feminina:

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    A chuva me irritava. At que um dia descobri que maria que chovia. A chuva era maria. E cada pingo de maria ensopava o meu domingo. E meus olhos molhando, me deixava como terra que a chuva lavra e lava. Eu era todo barro, sem verdura... maria, chuvosssima criatura! (...) No chovas, maria, mais que o justo chuvisco de um momento, apenas susto. (...) Chuvadeira, maria, chuvadonha, chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha! (...) Choveu tanto maria em minha casa que a correnteza forte criou asa e um rio se formou, ou mar, no sei, sei apenas que nele me afundei.

    Drummond, no poema Composio, retoma o tema das chuvas destruidoras para constatar a reduo desoladora dos elementos materiais da existncia social:

    (...) Onde vivemos gua. O sono, mido, em urnas desoladas. J se entornam, fungidas, na corrente, as coisas caras que eram pura delcia, hoje carvo. O mais barro, sem esperana de escultura. Na Bblia Sagrada, encontra-se nas palavras de Jeremias (14:2-6) a desolao em torno da seca e da fome em Jud: Chorou a Judia, e caram as suas portas, e ficaram obscurecidas por terra (...) foram tirar a gua e no acharam gua, voltaram com seus cntaros vazios: confundiram-se e afligiram-se e cobriram as suas cabeas. Pela desolao da terra, porque no veio a chuva sobre a terra, se confundiram os lavradores, cobriram as suas cabeas. A cerva tambm pariu no campo a sua cria e a abandonou: porque no havia erva. E os asnos monteses puseram-se nos rochedos, engoliram vento como os drages, desfaleceram os seus olhos, porque no havia erva.

    Assistindo s calamidades recentes havidas no Brasil, frei Leonardo Boff (2011) nos brindou com a sbia reflexo:

    Somos, em grande parte, ainda devedores do esprito cientfico moderno que identifica a realidade com seus aspectos meramente materiais e mecanicistas sem incluir nela, a vida, a conscincia e a comunho ntima com as coisas que os poetas, msicos e artistas nos evocam em suas magnficas obras. O universo e a natureza

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    possuem histria. Ela est sendo contada pelas estrelas, pela Terra, pelo afloramento e elevao das montanhas, pelos animais, pelas florestas e pelos rios. Nossa tarefa saber escutar e interpretar as mensagens que eles nos mandam. Os povos originrios sabiam captar cada movimento das nuvens, o sentido dos ventos e sabiam quando vinham ou no trombas dgua. Chico Mendes, com quem participei de longas penetraes na floresta amaznica do Acre, sabia interpretar cada rudo da selva, ler sinais da passagem de onas nas folhas do cho e, com o ouvido colado ao cho, sabia a direo em que ia a manada de perigosos porcos selvagens. Ns desaprendemos tudo isso.

    Sintetiza primorosamente a filsofa Olgria Matos (2008):

    A modernidade (...) dominada pelo princpio do desempenho. Sua temporalidade no a da experincia, do conhecimento, da felicidade; ela institucionalmente organizada (...), o que corresponde ao encolhimento do espao de experincias na vida social e de liberdade; liberdade de acesso ao passado e ao futuro como construo de uma subjetividade democrtica. (...) O tempo na contemporaneidade fatalizado pela ordem das urgncias, o culto dos meios e esquecimento dos fins. (...) A escalada da insignificncia resulta numa lgica de desengajamento em relao ao mundo compartilhado. (...) com a dificuldade na criao de laos duradouros, com a obsolescncia de valores como o respeito, solidariedade, responsabilidade e fidelidade.

    Assim, v-se que diferentes discursos podem atravessar o que chamamos de realidade, podem portar sentidos que extrapolam o contexto em que foram produzidos, podem apresentar facetas do mundo objetivo e revelar densas relaes intersubjetivas. Mas s o apreo cultura geral permite que tais discursos se expressem. A proteo liberdade de expresso o fundamento para que a torrente de manifestaes do pensamento, das artes e das crenas logre compor um manancial explicativo abundante acerca de nossa condio existencial em geral e acerca dos desastres, em particular.

    Inadvertidamente, o esforo cientfico vem fragmentando sobremaneira a produo de conhecimento, o que dificulta o necessrio

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    enfeixamento das peas do quebra-cabea da realidade socioambiental, incluindo os aspectos explicativos em torno dos desastres. Bem o expressou o filsofo Chesterton, ao dizer que a cincia contempornea desceu tanto s mincias, nas suas especialidades, que nos permite tudo saber sobre um nada e nada saber sobre as questes mais amplas que nos afligem. Os cientistas tm renunciado busca de uma hermenutica diatpica (SOUZA SANTOS, 2002) isto , ao esforo em empreender um dilogo franco entre os vrios topoi ou lugares de argumentos que os saberes e conhecimentos, empricos e tericos, proporcionam. O descumprimento dessa tarefa tem sido escamoteado pelo embate estril de particularidades pouco convergentes, sem o sustentculo de um fio integrador consistente; ou, ainda pior, h a estratgia de tomar uma particularidade tecnocientfica como a totalidade da verdade relevante que houvesse para ser conhecida. No tema dos desastres, tais estratgias tm se consubstanciado nas prticas de especialistas das cincias naturais e exatas que subtraem o ponto de vista das cincias humanas e sociais no debate. A questo social que h para ser sabida sobre os desastres exige mais do que a doxa de especialistas das cincias naturais e exatas. A questo social dos desastres exige a presena da episteme das cincias humanas e sociais, uma vez que, por definio, desastre um acontecimento social. A prtica tecnocientfica de monocultura das ideias tem correspondncia com a histria poltica do Brasil. Desde os tempos coloniais, a concepo que regia as elites governantes era a que via o pas como espao a ser conquistado economicamente (MORAES, 1999), custa de obras. Tudo se passava como se no houvesse povos conviventes nesse espao, que merecessem ser ouvidos na feitura do projeto de bem-estar coletivo denominado nao. As mudanas incessantes na paisagem urbana e rural so aspectos vivos desse carter civilizador questionvel, que se mantm por meio de uma subservincia quase que permanente dos povos no Brasil, que devem seguir metas de crescimento e ajustar-se a elas para no frustrar as elites. A inrcia da burocracia pblica nacional impede a identificao das evidentes falhas na propagao do bem-estar coletivo, porque tais falhas so inerentes ao projeto que no construdo em comum acordo com os povos que so parte constituinte da nao. Os hiatos tornam-se, a cada gerao, profundos abismos. Neles se formam as massas destitudas

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    no apenas das coisas o que constatvel pela misria material visvel nas bordas perifricas do territrio urbano e rural , mas massas destitudas de um sentido identitrio substantivo, referido necessidade de saber-se em pertencimento ao pas; pas onde, ambiguamente, radica formalmente o seu direito civil, mas os faz perambular s tontas em busca de oportunidades sempre fugidias, sempre aqum de sua condio cultural, de suas posses, de seu merecimento. No projeto nacional, reiteradamente, a valorizao do espao se d com a precedncia da cumulao econmica sobre os lugares comunitariamente produzidos. Os territrios culturalmente significativos, nos quais grupos sociais fragilizados em sua cidadania podem conferir sentido vida coletiva, no esto imunes: ali lhes afetar, cedo ou tarde, o apelo burocrtico a um desenvolvimento que destruir sua espacialidade, desentocando-os como bestas-feras ao invs de proteg-los, ao invs de integr-los num projeto nacional coparticipativo. Essas massas destitudas so os alvos preferenciais dos desastres. A sucesso de desastres que, ano aps ano, acomete tais massas revela a catstrofe social para a qual temos fechado nossos olhos.

    Os discursos hegemnicos e nem por isso, mais verdadeiros , com a autoridade que lhes conferem os financiamentos milionrios obtidos, silenciam as vozes que apelam para que os governantes olhem para essa catstrofe social. Especialmente, o meio tcnico componente do Sistema Nacional de Defesa Civil necessita que a composio de seus quadros e o teor de sua capacitao sejam adequados para dar-se conta dessa dimenso scio-histrica do problema. A persistncia de uma racionalidade mope e apartadora da sociedade no tema de defesa civil tem sido conveniente para certos grupos de poder. Mas preciso atentar que essa convenincia no perdurar, a realidade dos fatos dir que uma postura politicamente insustentvel. Essa teimosia atual obstaculiza ou, minimamente, protela que um ambiente inclusivo, de salutares controvrsias, rume para um necessrio processo de apaziguamento social, na busca de consensos, na renncia de privilgios e na feitura de novos pactos em torno de uma territorialidade minimamente segura para todos; enfim, na concretizao de uma Cultura de Paz como escopo de um novo projeto civilizacional brasileiro. No Brasil, no h ingenuidade alguma na adoo poltica de uma perspectiva reducionista

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    para interpretar os desastres como meros problemas tcnicos, com discursos que apelam para solues e equacionamento exclusivo por meio de obras civis e megacomputadores: trata-se de afastar a sociedade civil das discusses dos problemas socioambientais dos quais emanam os desastres, bem como apart-la de pr-atividade na resoluo desses problemas que lhes dizem respeito. A pior desigualdade que pe em degradao a condio humana a que se exprime nas diferentes possibilidades do sujeito em arbitrar sobre o seu prprio destino, e nesse ponto exatamente que a discusso sobre desastres ocorre no Brasil: calam-se todos os demais saberes e conhecimentos, incluindo aqueles que advm dos grupos afetados; transferem-se imensos volumes de recursos financeiros para os mesmos setores da sociedade econmicos, polticos e cientficos que j se beneficiaram historicamente com a perpetuao das injustias sociais.

    Precisamos refletir sobre as nossas palavras e atitudes. Refletir humildemente em torno da forma como, sorrateiramente, o componente humano dos desastres escapa, sem quaisquer constrangimentos, quando dizemos que os grupos vulnerveis so passveis de remoo de seus lugares, tratados como meros objetos que se pode transplantar de um lado para outro conforme as convenincias locativas que o mercado de terras permitir. Padecemos de vrias sociopatias, uma das quais a banalizao do discurso em torno da retirada compulsria dos pobres de territrios tidos como inseguros; mas, simultaneamente, h a prtica de restrio de seu acesso aos territrios melhores, pois os grupos afluentes no desejam vizinhana com os empobrecidos, posto que isso desvalorize seus imveis e, segundo seus valores preconceituosos, deprecie a convivncia comunitria. Assim, a remoo torna-se uma equao de difcil resoluo e obnubila o fato da expulso pura simples das massas e o descompromisso com seu destino incerto. A produo dessa migrao involuntria gera uma horda de desamparados cuja tentativa de territorialidade precria noutra jurisdio sofrer contestao das autoridades locais, que se diro isentas de responsabilidade, em solues de moradia, para com os ditos forasteiros. O Brasil, contudo, , em sua gnese, um pas de forasteiros que naturalizou o genocdio dos nativos. Corrompe-se em tal nvel a memria histrica que forasteiros bem-estabelecidos tornam-se o grupo que se autorreconhece como tradicional,

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    a nica gente que se porta como digna de considerao. Grupos sistematicamente desterritorializados na histria nacional tornam-se cada vez mais passveis de remoo, expulsos de suas moradias, desintegrados da sociedade, at que entrem em exausto coletiva, at que peream na busca v por um cho. As formas mais terrveis de violncia e brutalidade a que a Humanidade assistiu geralmente comearam pela palavra dos mais fortes, propalando a violncia moral e psquica contra os mais fracos; da, lograram legitimao poltica para tomar corpo na forma de violncia fsica contra os ltimos. O termo remoo de pessoas, assim como remoo de famlias de reas de risco, tornando questo de segurana pblica e de punio os que foram socialmente incapacitados para o autoprovimento de habitao digna, faz parte de um arcabouo societrio que mostra uma face embrutecida de nossa humanidade, a qual precisamos a todo o custo superar, antes que degringole na supresso da pessoa dos removveis, o que seria um desastre social inimaginvel.

    Para a Sociologia dos Desastres, o termo desastre no objeto de fcil desvelamento. Ao contrrio, h uma profuso de interpretaes que contribui para que enxerguemos os diversos aspectos humanos e sociais do problema. O mais relevante, em primeiro lugar, o entendimento do desastre como crise, em ocorrncia num tempo social; isto , num tempo que no meramente o cronolgico (SOROKIN, 1942). Sob o aspecto da gesto pblica, o desastre um evento sociocultural, no passvel a gerenciamento por sistemas tecnocrticos (HEWITT, 1998). O ponto de vista do afetado em seus vieses de gnero, etrio, tnico e outros deve ser visto como igualmente vlido; no que complementa Enrico Quarantelli (2005): desastre uma crise que exige foco no processo coletivo de planejamento. No se trata, pois, de os gestores produzirem planos escritos, formalizando intenes pblicas, mas promoverem efetivamente interaes e relacionamentos que permitam trocas de conhecimento, treinamentos conjuntos e capacidade ampliada de avaliao, de apoio mtuo, bem como atualizao/socializao constante das informaes. Continua o referido autor, alertando para o fato de o desastre ser uma crise com sria implicao social, circunstncia na qual a noo de justia se torna mobilizadora entre os afetados e do que decorre a falcia da ideia de que a tecnologia seja soluo para os

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    processos disruptivos no contexto de devastao. No o incremento tecnolgico strictu, mas a reconceitualizao das polticas pblicas o que est em jogo; isto , a compreenso acerca de como funciona a estrutura social em considervel estresse (QUARANTELLI, 2005).

    relevante destacar que o embate em torno da definio de desastre crucial, pois envolve uma mal disfarada disputa pelo poder de influir nas arenas decisrias, bem como na cena desoladora. Embora o desastre seja um acontecimento social trgico definio sociolgica em torno da qual h relativo consenso vrios so os planos em que ele ocorre. H um plano simblico, no qual atuam e disputam diversas e, no raro, divergentes interpretaes do fenmeno. E h um plano concreto, que imiscuiu dimenses socioambientais, sociopolticas, econmicas. Tanto no plano simblico quanto no plano concreto, um fenmeno de desastre circunscreve mltiplas e diferentes vivncias, de tal sorte que as afetaes num desastre no so as mesmas para um comerciante, com a dor que passou com a perda de suas mercadorias; para uma dona de casa, na destruio de sua moradia; para uma criana, na perda de seus brinquedos e de amiguinhos falecidos no evento; para um idoso, na perda de seus objetos de valor sentimental que exprimem uma trajetria de vida; para um agricultor, com a devastao da lavoura; para a diretora de uma escola que desabou; para os funcionrios de um hospital alagado. Por conseguinte, a autoridade pblica, nas suas providncias de restabelecimento dos sistemas de objetos e dos sistemas de aes da coletividade, precisa aglutinar adequadamente essa pluralidade de dramas, atenu-los a partir de uma escuta ativa de suas especificidades.

    Para bem agir perante um desastre preciso compreend-lo adequadamente. Assim como no aceitaramos nos submeter a uma interveno cirrgica baseada num diagnstico equivocado, uma m interpretao do fenmeno do desastre leva adoo de procedimentos incorretos, insuficientes ou deficientes, que no curam a doena social e, por isso, no conseguem reduzir as ocorrncias no futuro, do que deriva que o corpo social fique ainda mais fragilizado quando defrontado com um novo fator de ameaa adiante. Para bem explicar os desastres, preciso considerar o contexto scio-histrico que os gera.

    O contexto brasileiro socialmente bastante adverso e, por isso, propenso aos desastres. A estratgia de culpabilizao dos setores

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    empobrecidos por sua territorialidade precria emudece quanto ao fato de que as reas mais seguras orbitam numa lgica de mercado que inerentemente excludente. Apenas quando os gestores pblicos aceitarem corajosamente que as desigualdades distributivas da terra e da renda so fatores incitadores das calamidades e, assim, corresponsabilizarem os setores afluentes pelos privilgios que, tomando dimenses socioespaciais, alastram a inseguridade do morar e do viver dos pobres, poderemos ter alguma esperana de que os desastres possam ter seus efeitos adversos mitigados. No entanto, ao se locupletar na difcil tarefa de tocar na ferida das desigualdades, tais gestores produzem lastro para demais prticas de violncia fsica e simblica contra os afetados. O patrimonialismo, isto , o mando poltico entendido como patrimnio pessoal do governante, como uma extenso de seu poder domstico, tambm a mazela-mor da nao, da qual deriva o raquitismo da vida civil. Conforme Raimundo Faoro (1979), o patrimonialismo acostuma o povo a servir, habitua-o inrcia de quem espera tudo de cima, oblitera o sentimento de liberdade, adormece a iniciativa que rume para a garantia da cidadania.

    Desalojados, desabrigados e abandonados nos desastres so subgrupos de afetados que tm a esfera social da vida completamente comprometida. Conforme assinala Hannah Arendt (2000), a esfera social onde convergem as esferas privada e pblica. Enquanto na esfera privada as narrativas primordiais do self e as redes primrias comeam a ser construdas a partir do exerccio da alteridade, protegidas pela casa, isto , pelo locus onde a intimidade resguardada para o repouso, o devaneio e a satisfao das necessidades bsicas, na esfera pblica, se desenvolvem as noes de ser poltico, de participao no projeto de bem comum. Se essa participao obstruda, as foras que deveriam se orientar para a consecuo do bem comum so corrodas, convertendo os agentes silenciadores e os silenciados em participantes de um jogo de mtua hostilidade e rancor, o que se reflete na paisagem e no sentimento de insegurana que suscitado de lado a lado.

    relevante atentar para o fato de que, sendo os grupos afetados sistematicamente vtimas de violncia institucionalizada no Brasil, nos termos da violncia que passam a manifestar sua indignao quando omisses do ente pblico redundam em perda de suas moradias, de seus

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    pequenos negcios, de seus entes queridos. Tornam-se rotineiros episdios em que autoridades locais passam a ser abertamente hostilizadas pelos grupos afetados nos desastres: sofrem espancamentos, so atirados em guas das enchentes e outros.

    Assim, a uma ordem social injusta corresponde potencialmente o incremento da desordem pblica.

    Por fim, diferentemente do que se possa pensar, a relao entre assistncia humanitria e os direitos humanos no das mais auspiciosas. Assistncia humanitria refere-se ao suporte vital para a reabilitao de grupos afetados nos diversos tipos de desastres, dos furaces e terremotos s guerras civis e, ainda, refere-se ao suporte exgeno e voluntrio com o qual a sociedade afetada pode, eventualmente, contar. Quanto mais protegidos os direitos da pessoa humana pelo Estado e em todas as circunstncias, menos assistncia humanitria para os sujeitos afetados ser necessria, pois em tais sujeitos se desenvolve em maior medida a capacidade de autoproteo. Trata-se, assim, de uma relao inversamente proporcional: os grupos ou naes mais desprotegidas em seus direitos e cujas instituies estejam esgaradas e/ou contaminadas pela indiferena social so os que mais precisam que os olhos alheios se compadeam de sua desventura, vide o caso haitiano, como tambm o foi o da populao afrodescendente em Nova Orleans, em relao ao desastre secundrio relacionado ao furaco Katrina. Quando as autoridades de um pas, como o Brasil, denominam as medidas de reabilitao dos seus nacionais como assistncia humanitria, e tais medidas passam a ser cada vez mais necessrias, temos a vrios indicativos preocupantes, como o indicativo de que os direitos da pessoa humana no pas andam em frangalhos. Ajuda ou assistncia so termos designativos de prticas sociais que no correspondem a deveres pblicos perante o cidado; dito de outra forma, os direitos da pessoa seriam negociveis, passveis de atendimento ou no. Se no so tidas como deveres pblicos, as prticas dos agentes do Estado em torno da garantia de tais direitos podem manifestar-se de formas bastante precria, reduzidas a medidas comezinhas e degradantes da condio humana dos afetados, como a distribuio de meros colches e itens bsicos de alimentao. Quanto menos atentas as instituies do Estado estiverem com o dever de proteo da pessoa humana, pela adoo de polticas

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    compensatrias quando as circunstncias assim o exigirem, maior ser a necessidade de prover aportes humanitrios aos grupos desvalidos, anmicos e impotentes, gerando a aparncia de grande compaixo e solidariedade onde, estruturalmente, paira a indiferena social. Quanto menos cidadania o ambiente socioinstitucional propagar, com mais compaixo alheia o afetado por desastre ter de contar. A compaixo em si no permite a transformao social, no movedora de doao e renncia coletivas que deflagrem a superao das desigualdades sociais; pelo contrrio, reforadora dessas desigualdades, emperra as interaes nesse estgio societrio que enaltece a figura dos doadores e voluntrios, mas devasta a autoestima dos grupos afetados, conduzidos a se entender como incapazes de refazer por si prprios as rotinas de suas vidas esfaceladas pelas tragdias. Ser chegado o dia em que os desastres sero tantos, contnuos, intensos, imensos, derivados do vasto quadro de cidadania incompleta, que nem sequer a comezinha compaixo civil emergir: em seu lugar, se impor o tdio, o distanciamento eglatra dos grupos afluentes, resguardando tristemente suas iluses exclusivistas de bem-estar num contexto coletivo de embrutecimento e devastao.

    Quando os desastres ocorrem, neles se explicitam as omisses e inadequaes das prticas pblicas de preveno e preparao ante os fatores correntes de ameaa, o que preciso de pronto reconhecer.

    Erros que cometemos so pedras que esto em nosso caminho, seja para paviment-lo e assentar ensinamentos, seja para obstruir nosso desenvolvimento. Desastres recorrentes revelam, essencialmente, erros recorrentes, isto , falhas estruturais dos mecanismos de proteo da pessoa humana, do que decorre que as competncias pblicas precisam distanciar-se do tecnicismo cego que as tem afastado daquilo que seu legtimo mister: proteger o cidado e suprir o dficit de cidadania onde houver.

    Para concluir, importante se faz ponderar acerca das assertivas que tomam os desastres como uma espcie de caos, o que sociologicamente imprprio. A tragdia representada como caos interessa apenas aos setores que se sentem vontade para instituir formas de controle social autoritrias, visando a impor certo tipo de ordenamento ao que considerado um estado de confuso geral ou desordem social. , ainda, perturbador observar que a mquina pblica pode seguir operando

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    regras tidas como normais, mesmo quando essas, em seu contedo e ritmo, esto aqum das necessidades de provimento mnimo do cidado desamparado. A burocracia estatal atua segundo as regras institudas, numa sociedade que segue amorfa; mas precisa sacudir a letargia de seus agentes, que se distanciam do sofrimento social, e realizar, enfim, aquilo que justo e imperativo para a sociedade a quem serve. No se pode sonegar, opinio pblica, a compreenso de que muitas vidas tm sido vividas sem substantividade, so cotidianamente vilipendiadas pela omisso e ineficincia histrica do poder pblico. No devemos apenas lamentar, nos desastres, as vidas perdidas de pessoas de camadas afluentes como se fossem as nicas portadoras de projetos para o seu futuro, ora minados; de sonhos que jamais se concretizaro. A trivialidade da morte daqueles que sofrem constante aviltamento de sua condio humana e cujos corpos so carreados por gua contaminada e lama tem muito a nos dizer sobre uma ordem social injusta. Os grupos empobrecidos que venturosamente sobrevivem e resistem no terreno no so destitudos de um sentido de vida partilhado: h uma luta incessante pela garantia dos mnimos sinais vitais; h valores que norteiam essa luta; h uma vigorosa solidariedade intracomunitria que, ao invs de ser vista como elemento indicativo de uma dignidade coletiva inerente, e lanar pontes para um novo pacto social, obscurecida e sufocada pela ideologia do caos, em torno da qual essa dignidade friamente subtrada dos grupos severamente afetados. Compreender a importncia dos recursos culturais que as comunidades produzem e exercitam para se manter de p quando tudo rui ao derredor um passo necessrio para respeit-las; para viabilizar o partilhamento das estratgias exitosas, para difundir os saberes dos sujeitos sujeitados. dar um passo adiante no processo civilizacional. Ademais, sob o manto da heterogeneidade cultural, que caracteriza a sociedade brasileira, dever no aplicar medidas padronizadas e reducionistas de preveno, preparao, resposta e reconstruo. Grupos sociais distintos exigem medidas distintas: povos tradicionais, como quilombolas, indgenas e ribeirinhos, so portadores de uma cosmogonia diversa da de grupos plenamente integrados ao mundo moderno; por conseguinte, suas demandas ao Estado so diferenciadas. Medidas vocalizadas pelo ente pblico como sendo remoo tornam-se ainda mais violentas e devastadoras se dirigidas a tais grupos, cuja

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    cultura, modo e meios de vida esto imbricados aos recursos ambientais de sua territorialidade especfica. Da porque, conforme assinala Critelli (2004), temos de ser vigilantes para fugir de dois tipos de arrogncia: tanto aquela relacionada ao ato de tomar para si o poder de julgar os outros e decidir unilateralmente sobre o seu destino, como tambm por meio das ditas boas aes, quando se vai socorro do outro, impedindo-o de decidir sobre a prpria vida. Passados mais de 60 anos da Declarao Universal dos Direitos Humanos, andamos a passos de tartaruga para viabilizar que todos os seres humanos sejam iguais em dignidade e direitos, conforme o seu Artigo 1; que tenham direito a um padro de vida capaz de assegurar a si e a sua famlia sade e bem-estar, inclusive alimentao, vesturio, habitao, cuidados mdicos e os servios sociais indispensveis, e o direito segurana em caso de perda dos meios de subsistncia em circunstncias fora de seu controle, conforme sinaliza o seu Artigo 25.

    Assim, os profissionais que atuam nos desastres precisam enxergar os grupos afetados para alm da ideologia do caos, depreendendo as lgicas e os processos sociopolticos subjacentes degradao humana a que tais grupos so levados. Se tais profissionais tiverem empenho nessa questo, sua interveno ser condizente com a tarefa impostergvel de transformao da realidade social, ora em visvel e crescente barbrie.

    A indagao impostergvel, que imperativo fazer para que saiamos das nvoas das ideologias, a seguinte: por que a nao brasileira, que mobiliza tantos esforos em donativos e trabalho voluntrio nos desastres, aceita testemunhar passivamente a desproteo cotidiana dos grupos empobrecidos, que so vtimas fceis nos desastres? A resposta a esse paradoxo mostra, uma vez mais, a fratura entre a ao humanitria e a ao em prol dos direitos humanos, e em torno dos ltimos que devemos nos aglutinar para alterar radicalmente as abordagens de enfrentamento dos desastres, que aumentaro exponencialmente nos anos vindouros. O abandono dos pobres prpria sorte, cedo ou tarde, respingar no restante da sociedade, como j est ocorrendo. Os processos segregacionistas so um autoengano coletivo, no tm a fora de mascarar por muito tempo a perniciosidade de uma nao cindida: de um lado, a segurana ilusria dos condomnios de alto padro e, de outro, amplos contingentes humanos que, sem alternativas habitacionais

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    condizentes, so submetidos ao mercado de terras paralelo, em morros e reas de vrzea, ambos desprovidos de infraestrutura.

    Um misto de fria das guas, de um lado, e de estresse hdrico, de outro, dissolver paulatinamente a distino de classe social na composio dos grupos severamente afetados nos desastres. Isso requer um exame na conscincia coletiva da nao, at que ela caia em si e saiba quo relevante que os grupos afetados nos desastres sejam parte constitutiva ativa nos processos deliberativos em defesa civil, influindo em suas polticas e em seus programas, influindo no corao da instituio.

    Penso que tais exigncias que, em ltima instncia, apontam para a justia social, no sejam exclusivas da sociedade brasileira, pois dizem respeito a todos os povos submetidos nas Amricas e no restante do mundo. So, enfim, exigncias do Tempo que corre contra ns.

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    Mesa: Emergncias e desastres e sua interface com as polticas pblicas de sade mental e assistncia social

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    Percepo de risco no contexto da seca: um estudo exploratrio2

    Angela E. L. Colho3

    RESUMO

    O significado de um desastre para os sobreviventes determina no s como a situao vivenciada, mas tambm como a recuperao ocorre. Experincias repetidas com um mesmo evento podem gerar uma subcultura do desastre que mitigaria os efeitos do estresse. Este estudo analisou as percepes de risco dos residentes de duas cidades no nordeste brasileiro. Os resultados revelaram que os participantes da regio sem seca apresentaram nveis de percepo de risco mais altos do que os participantes da regio da seca. Essa diferena pode ser explicada pela alta percepo de risco das pessoas que residem em Areia (experincia desconhecida) ou pela baixa percepo de risco dos residentes de Queimadas (experincia conhecida). Esses resultados mostram a importncia de se considerar a percepo de risco do sobrevivente como uma varivel de pesquisa. Tambm importante avaliar o desenvolvimento da subcultura do desastre, a qual pode alterar o significado do evento e a resposta a este.

    Palavras-chave: Desastre, Percepo de Risco, Seca.

    Introduo

    O significado de todo evento uma interao complexa entre o evento, o passado e o presente da pessoa, bem como o seu contexto social (URSANO, KAO & FULLERTON, 1992). O significado do evento para os sobreviventes determina no somente como a situao vivenciada inicialmente, mas tambm a maneira como a recuperao ocorre e a vida restabelecida. Consequentemente, o significado do contexto no est

    2 Artigo originalmente publicado na revista Psicologia para Amrica Latina: Psicol. Am. Lat. n.10m Mxicom jul. 2007, verso On-line ISSN 1870-350X

    3 Doutora em Psicologia social. Professora do Centro Universitrio de Joo Pessoa Unip, em Joo Pessoa, PB. Trabalha com aspectos psicossociais das emergncias e dos desastres.

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    somente no contexto em si nem nas pessoas, mas tambm na interao entre as pessoas e o evento (APPLEY & TRUMBULL, 1986; Silva, 1993).

    De acordo com Appley e Trumbull (1986, p. 313), o contexto em que um evento ocorre definido apenas em parte pelo tempo real e pelo espao geogrfico. Embora essa informao ajude a determinar as caractersticas de um determinado evento ou processo, o significado do evento origina-se, na maior parte, dos aspectos mais indiretos do ambiente em que ocorre. Lazarus (1966) indicou a importncia de usar a percepo de risco dos sobreviventes como uma varivel na pesquisa do estresse e demonstrou o aumento da possibilidade de predizer a ocorrncia de problemas psicolgicos usando medidas de percepo de risco.

    Algumas consideraes sobre a avaliao cognitivaEmbora determinados ambientes produzam estresse em algumas

    pessoas, diferenas individuais e grupais sempre existiram. As pessoas e os grupos diferem em sua sensibilidade e vulnerabilidade para determinados tipos de eventos, bem como em suas interpretaes e reaes a eles. Para melhor compreenso das variaes entre pessoas em situaes similares, tanto os processos cognitivos que mediam o evento e a reao quanto os fatores que afetam esta mediao devem ser considerados (LAZARUS & FOLKMAN, 1984). Alm disso, devemos considerar que o processo da avaliao cognitiva essencial nossa sobrevivncia, porque ns necessitamos distinguir entre as situaes que so seguras e aquelas que so perigosas.

    A avaliao cognitiva pode ser compreendida como um processo de categorizao de um evento, cujos vrios aspectos esto relacionados ao bem-estar das pessoas. Lazarus e Folkman (1984) discutem que essa categorizao reflete uma relao original e de transformao que ocorre entre os valores e as crenas da pessoa e o ambiente, cujas caractersticas necessitam ser interpretadas.

    De acordo com o modelo terico em discusso, h dois nveis de avaliao cognitiva: primrio e secundrio. A avaliao primria envolve a avaliao do evento, levando em considerao se a pessoa est correndo risco agora ou no futuro, e de que forma. A avaliao secundria a avaliao do que pode ser feito para enfrentar o evento. H trs tipos de avaliao preliminar: (1) irrelevante; (2) benigna positiva e (3)

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    estressante. A avaliao primria irrelevante ocorre quando a interao da pessoa com o ambiente no contm implicaes negativas para o seu bem-estar. No caso da avaliao benigna, a interao considerada positiva e benfica para o bem-estar da pessoa.

    A avaliao primria estressante est subdividida em trs categorias. A primeira categoria envolve os danos e as perdas. Nesse caso, os danos pessoa j ocorreram, sejam eles em termos fsicos ou psicolgicos. Na segunda categoria, existe uma ameaa de danos que no aconteceram ainda, mas est sendo antecipada. A avaliao cognitiva da ameaa diferente daquela da perda no que diz respeito possibilidade de articular antecipadamente estratgias de enfrentamento. Quando as pessoas podem antecipar as perdas futuras, elas podem planejar e resolver algumas das dificuldades que sero encontradas. A terceira categoria est relacionada avaliao do estresse e do desafio a ser enfrentado, e semelhante quela da ameaa, porque tambm necessita da mobilizao de estratgias para lidar com a situao. Entretanto, a diferena principal que o foco da avaliao do desafio est no ganho e no crescimento, enquanto que a da ameaa caracterizada por emoes negativas.

    Na avaliao cognitiva secundria, a nfase nas necessidades da pessoa em saber como controlar a situao, e se algo pode ser feito para alterar o resultado. Esta estratgia de avaliao crucial, uma vez que os resultados do evento podem depender das aes realizadas pela pessoa (LAZARUS & FOLKMAN, 1984).

    Lazarus e Folkman (1984) enfatizam diversos fatores pessoais que tm relevncia particular na avaliao cognitiva. Os fatores pessoais relevantes ao evento e os fatores ambientais que tm o potencial de criar o risco sero enfatizados na discusso atual. Os fatores individuais e ambientais devem ser considerados e analisados juntos ou perdero o seu poder de previso da avaliao cognitiva, uma vez que os processos individuais e ambientais interagem para determinar o relacionamento entre ambos. Muitos dos fatores pessoais e ambientais tm o potencial de contribuir ao aumento da percepo do risco ou diminu-la.

    Com relao aos fatores pessoais que so determinantes importantes da avaliao, podemos mencionar como um exemplo as crenas, que influenciam a avaliao de diversas maneiras. Primeiramente,

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    determinando o que importante para a pessoa; em segundo lugar, dando forma sua compreenso sobre o evento e, consequentemente, a suas emoes e a estratgias de enfrentamento; e, em terceiro, fornecendo a base para a avaliao dos resultados.

    Embora muitas crenas sejam importantes para a avaliao, as crenas a respeito do controle pessoal e do sentido da existncia so particularmente importante para a teoria do estresse. A maioria dos estudos sugere que a avaliao de determinado resultado como controlvel minimizaria o estresse. No entanto, as crenas no so suficientes para a avaliao. Elas esto articuladas a outros fatores ambientais que iro determinar a extenso da perda/ganho, ameaa ou desafio que ser vivenciado.

    Dessa forma, uma compreenso dos eventos que pem em risco a vida das pessoas ajudaria na anlise da percepo de risco e na elaborao de estratgias de mitigao de desastres.

    Consideraes sobre os desastresA distribuio geogrfica dos desastres entre os pases desenvolvidos

    e os pases em desenvolvimento merece considerao especial. Berz (1989) relata que, dos 109 piores desastres naturais que ocorreram entre 1960 e 1987, 41 aconteceram nos pases em desenvolvimento. Entretanto, quando o nmero de mortos considerado, nos pases em desenvolvimento este nmero chega a 750.850 mortos, em contraste com os 11.410 nos pases desenvolvidos.

    Os desastres naturais tm feito parte da histria da humanidade. Sua ocorrncia mudou pouco nos ltimos 100 anos, mas o que mudou realmente foi a capacidade das sociedades de lidar com tais eventos (APTEKAR, 1994). Entretanto, no mundo moderno, h um paradoxo entre o desenvolvimento tecnolgico nas cincias, que contribui para uma vida mais segura e mais saudvel, e a incidncia de extremos da natureza (por exemplo, terremotos, secas). O paradoxo torna-se mais complicado porque a aplicao dos avanos tecnolgicos tem tambm alguns componentes de risco que so resultado da execuo inadequada e/ou falhas das novas tecnologias. Atualmente, as comunidades esto em risco no somente por causa dos eventos geofsicos, mas tambm por causa das exploses industriais, da

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    liberao de substncias txicas e dos acidentes no transporte de produtos qumicos (SMITH, 1992).

    Os desastres so fenmenos complexos e multidimensionais que causam morte, sofrimento e perdas econmicas (WEISAETH, 1993). Korver (1987) encontrou mais de 40 definies cientficas dos desastres, refletindo a variedade das disciplinas que os analisam, entre elas Psicologia, Medicina, Sociologia, Cincias Polticas, Engenharia e Economia. A maioria das definies enfatiza a destruio severa que excede a capacidade de a comunidade afetada recuperar-se (WEISAETH, 1993, World Health Organization WHO, 1992). Os desastres, suas causas e suas consequncias esto tambm relacionados aos processos e s estruturas sociais (TIERNEY, 1989). O grau de desorganizao social que ocorre depois dos desastres est intrinsecamente relacionado s estratgias pr-desastre da comunidade. Em pases desenvolvidos, os sistemas para a deteco primria do evento, bem como as estratgias de gerenciamento pr e ps-desastre, tm reduzido consideravelmente os danos fsicos e aumentado as chances que os sobreviventes tero de recuperar-se e reconstruir suas comunidades (KROLL-SMITH & COUCH, 1993).

    O comportamento humano e os processos sociais afetam e so afetados por todos os estgios dos desastres, desde o perodo pr-desastre ao impacto e aos estgios da recuperao (KREPS, 1984; TIERNEY, 1989). Consequentemente, a capacidade do ajuste e os recursos psicolgicos, sociais e fsicos da comunidade so elementos essenciais para definir quando um evento destrutivo poder conduzir aos desastres. Por exemplo, os terremotos de magnitudes similares no so igualmente destrutivos em todas as partes do mundo. Algumas sociedades desenvolveram tecnologias para diminuir os efeitos dos terremotos, como a construo de edifcios mais resistentes e o desenvolvimento de planos de emergncia mais eficazes (TIERNEY, 1989).

    Algumas definies limitam os desastres aos eventos que so concentrados no tempo e no espao, ou que acontecem repentinamente, sem aviso, e de maneira incontrolvel (BERREN, SANTIAGO, BEIGEL & TIMMONS, 1989). J as agncias internacionais definem o desastre como uma severa ruptura ecolgica e psicolgica, que excede a capacidade de enfrentamento da comunidade afetada (WHO, 1992, p. 2). Quando comparados com as definies apresentadas, os eventos como a seca, a fome, os acidentes nucleares e qumicos, os conflitos sociais e as

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    epidemias seriam classificados como desastres pela definio da WHO, mas no pelas anteriores. Embora os eventos tivessem consequncias desastrosas em longo prazo, no seriam considerados desastres pelas primeiras duas definies porque no acontecem abruptamente nem so limitados no tempo e no espao. As implicaes econmicas, emocionais e polticas podem estar atreladas a definio dos desastres. Em alguns casos, a negao da severidade de um terremoto, de um ciclone ou da seca, afeta no somente a ajuda humanitria internacional, mas tambm compromete a possibilidade de ajuda local (QUARANTELLI, 1986).

    Weisaeth (1993) indica as caractersticas que ajudam a definir as consequncias do desastre. Primeiramente, considerando um evento como um desastre, pode alterar, entre outros fatores, a quantidade de ajuda oferecida. Se um evento for classificado como desastre, chamar provavelmente mais ateno das agncias de ajuda para emergncias. Em segundo, o conceito de desastre tem valores polticos e emocionais, que podem influenciar os sobreviventes e o pblico em geral. E, em terceiro lugar, a extenso de um desastre, em contraste com outros eventos graves e traumticos (por exemplo, um acidente de carro com vtimas fatais), cria uma demanda, que poder levar a exausto dos recursos da comunidade.

    Muitas mudanas sociais, econmicas e culturais influenciaram as estratgias de preveno e de mitigao dos desastres nos ltimos 20 anos (ALEXANDER, 1997). Essas mudanas foram influenciadas pela abordagem de que os riscos so interfaces entre os processos naturais do ambiente e as populaes que vivem nesses lugares (SMITH, 1992). Hewitt (1997) oferece uma perspectiva humana ecolgica dos desastres, com nfase na distribuio das vulnerabilidades humanas, de condies de interveno e de respostas ao evento. O autor sugere que, em vez de ser uma exceo, os desastres ocorrem em situaes normais da vida diria. O que essencial avaliao considerar as vulnerabilidades das pessoas e o risco com o qual elas tm de lidar como parte de sua vida diria, em vez de apenas enfatizar, o agente fsico, que causou o desastre. Alexander (1997) sugere que o risco e a vulnerabilidade so as duas faces de uma mesma moeda. O risco pode ser considerado o produto do perigo (evento fsico e seu impacto) em conjunto com a vulnerabilidade (susceptibilidade ao perigo ou perda).

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    Percepo de risco no contexto dos desastresDake (1992) afirma que a maioria dos estudos sobre a percepo e

    a comunicao dos riscos enfatiza primeiramente os danos que podem acontecer. A maioria deles ignora o contexto cultural em que tais riscos so elaborados e discutidos e o ambiente no qual o risco e a percepo do risco ocorrem. O autor revela que, quando as pessoas percebem o risco e se preocupam com ele, a cultura que fornecer o sentido social construdo sobre a natureza do evento. Os sistemas de crenas so construdos e internalizados pelas pessoas, dessa forma, passando a fazer parte integral de sua viso de mundo, e iro influenciar a interpretao dos eventos que ocorrero.

    Geralmente, os modelos usados para estudar as consequncias para a sade mental depois que os desastres ocorrem esto baseados nos modelos interacionais de Endler (1975) e Lazarus (1966). A percepo de risco foi identificada nesses modelos como uma varivel importante que relaciona as circunstncias da situao dos desastres com as respostas psicolgicas a curto e a longo prazos (KATES, 1977). Lazarus (1966) tem enfatizado a avaliao cognitiva da situao estressante como importante fator determinante das reaes do estresse e da ansiedade. Endler (1975) afirma tambm a importncia da percepo de risco como mediador das reaes de estresse no seu modelo interacional pessoa-situao de ansiedade. Spielberg (1972) incluiu a percepo como uma importante varivel em seu modelo de estado-trao de ansiedade. O autor definiu o estresse como a relao entre a pessoa e o ambiente, na qual os estressores esto relacionados s reaes de ansiedade devido percepo de risco (SPIELBERG, 1972, p. 47).

    Lewis (1990) afirma que o que ns fazemos para diminuir o risco depende do que ns pensamos que ameaador, e se ns pensamos que o risco pode ser reduzido. Devido a este fato, algumas perguntas podem ser feitas: Como as pessoas reconhecem o risco? Qual o critrio adotado para determinar se o risco aceitvel? Por que ns temos receio com relao a determinados eventos e ignoramos outros?

    Smith (1992) relata que na populao geral, o termo risco usado como um sinnimo para perigo. Mas risco, definido tecnicamente, tem a implicao adicional de que h uma possibilidade de um perigo real acontecer. O perigo definido como uma ameaa potencial para

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    seres humanos e seu bem-estar e risco como a probabilidade da ocorrncia do perigo (SMITH, 1992, p. 6). Dessa maneira, para o autor, os desastres podem ser vistos como a ocorrncia de um perigo. O termo administrao dos riscos significa identificar as vulnerabilidades que colocam as pessoas em perigo e tentar reduzi-las minimizando consequentemente as ameaas vida, propriedade e ao ambiente e, ao mesmo tempo, maximizar as oportunidades para o crescimento.

    A avaliao do risco no pode estar dissociada dos valores e dos julgamentos, que so condicionados, por sua vez, pelas crenas e pelas circunstncias individuais. Muitas pessoas tomam decises e agem em relao aos perigos que enfrentam baseadas em sua viso pessoal do risco, em vez de usar uma medida objetiva do perigo. Consequentemente, as percepes de risco devem tambm ser consideradas como um componente importante para o planejamento de estratgia para a administrao de risco, juntamente com medidas objetivas de avaliao desses processos. Geralmente, h uma distino entre os perigos reais e os percebidos, principalmente porque as pessoas percebem os riscos diferentemente das predies feitas baseadas nos modelos de avaliao objetiva. A resoluo do conflito entre os resultados das anlises tcnicas dos perigos e as percepes subjetivas de risco devem ser fator predominante a ser analisado para a elaborao das estratgias de administrao de risco (SMITH, 1992).

    A percepo do perigo est relacionada aos desastres e influenciada por um grupo dos fatores inter-relacionados, que inclui experincias passadas, atitudes atuais em relao ao evento, personalidade e valores, junto com as expectativas futuras. Um fator importante a experincia passada com o evento. Os desastres com os quais as pessoas no esto familiarizadas tm o potencial de causar comprometimento psicolgico maior. A experincia prvia com o evento, em nvel individual ou coletivo, pode criar as subculturas dos desastres, que ajudam a mitigar os efeitos do estresse relacionados ao desastre (BOLIN, 1989; MILETI, DRABEK, & HAAS, 1975; NORRIS & MURRELL, 1988). As subculturas dos desastres incluem ajustamentos reais ou potenciais, social, psicolgico e/ou fsico que so usados por residentes destas reas em um esforo para lidar com os desastres que aconteceram ou que a tradio indica que podero acontecer no futuro (MOORE, 1964, p.195). Hannigan

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    e Kueneman (1978) elaboraram esse conceito e incluram elementos culturais tais como as normas, os valores e as crenas que influenciaro uma subcultura de um desastre especfico.

    Diversos estudos foram realizados no campo da percepo de risco e do desastre. Meltsner (1978) relatou que a experincia direta com eventos similares , provavelmente, o incentivo mais importante para a adoo de medidas de mitigao. Aps o terremoto de 1971 que afetou San Francisco, na Califrnia, muitas medidas foram adotadas para mitigar os terremotos futuros. Um estudo revelou que 46% da populao em San Fernando e Sylmar (perto de San Francisco) tomaram precaues para minimizar os futuros abalos ssmicos. Essa porcentagem foi reduzida a 24% para o resto do Vale de San Fernando e a 11% para a rea de Los Angeles, que um pouco mais distante da rea onde o terremoto havia acontecido anteriormente.

    Lindell e Perry (1990) realizaram um estudo sobre a percepo de riscos de acidente nuclear com os residentes do estado de Washington, nos Estados Unidos, cinco meses antes do acidente de Chernobyl, em 1989, e um ms aps este acidente. Os resultados mostraram que a magnitude do acidente de Chernobyl reduziu a percepo de risco em nvel local. Os participantes da pesquisa disseram que os acidentes locais teriam uma probabilidade menor de acontecer devido ao acidente em Chernobyl.

    Em outro estudo sobre percepo de risco, Perry, Lindell e Greene (1982) analisaram a percepo de risco relacionada ao vulco na Montanha Santa Helena, no estado de Washington, que estava inativo por 123 anos, quando houve uma erupo em maro de 1980. Os moradores de sete comunidades situadas prximas montanha foram entrevistados em relao a sua estimativa de risco pessoal, as fontes e a frequncia da informao recebida e o nvel de confiana da populao em relao adequao da informao recebida. Os resultados indicaram que uma intensa disseminao da informao sobre as atividades do vulco durante um curto perodo de risco iminente sensibilizou a populao com relao ao evento. A alta percepo de risco estava associada com a alta frequncia em relao informao recebida.

    Smith (1992) considera alguns fatores que podem aumentar ou reduzir a percepo do perigo pelo pblico. Os perigos so considerados

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    mais seriamente quando tm o potencial para colocar em risco a vida das pessoas e este risco imediato. Os eventos so considerados menos perigosos quando a mortalidade distribuda em uma rea geogrfica e o risco vida indireto (por exemplo, as mortes que acontecem por desnutrio devido seca). Isso significa que uma enchente seria considerada muito mais sria do que uma seca.

    A identificao das vtimas e dos sobreviventes de um evento muito importante para a percepo do risco, tendo em mente que esse fato no se restringe somente esfera individual. Esta percepo ser amplificada se houver crianas envolvidas ou se as vtimas pertencerem a um grupo especfico. O nvel de conhecimento outro fator importante, particularmente quando este est relacionado ao nvel de credibilidade das fontes de informao sobre o risco. Esse fator crucial, especialmente quando ocorrem os riscos tecnolgicos complexos. Outra situao que agravaria o contexto seria se, juntamente com a falta do conhecimento cientfico, as pessoas no acreditarem na informao fornecida pelos tcnicos (SMITH, 1992).

    Smith (1992) relata que alguns analistas de risco consideram que as percepes de risco dos leigos no so vlidas porque esto baseadas em influncias emocionais e subjetivas. Entretanto, para o leigo, as percepes so as nicas abordagens importantes, porque elas incorporam as anlises tcnicas com os julgamentos individuais baseados na experincia, no contexto social e em outros fatores. A dificuldade na elaborao do planejamento de estratgia para administrao de risco comea quando os analistas tcnicos consideram que suas concluses devem ser aceitas, sem questionamentos, somente porque so baseadas em dados objetivos. Caso os leigos rejeitem essas concluses, os analistas entendero tal fato como sendo simplesmente uma negao do perigo existente. Essa interpretao por parte dos tcnicos pode ser errnea, se eles no levarem em considerao os fatores individuais emocionais, sociais e econmicos, que esto envolvidos no contexto do perigo. H claramente a necessidade de uma comunicao melhor sobre riscos entre os analistas e o pblico, considerando especialmente as diversas interpretaes dos riscos e seus componentes emocionais e sociais.

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    Um estudo exploratrio: a questo da seca na Paraba Este estudo parte de um projeto de pesquisa mais amplo sobre as

    respostas psicolgicas seca. A natureza da pesquisa foi exploratria, tendo em vista que ela abordou um evento pouco estudado, que classificado como de ocorrncia gradual, segundo a classificao dos desastres. As enchentes so os eventos naturais mais comuns no mundo, no entanto, um nmero muito maior de pessoas sofre as consequncias das secas. Foi estimado que na dcada de 1970, em mdia, aproximadamente 25 milhes de pessoas mundialmente foram afetadas negativamente pela seca (SMITH, 1992).

    Smith (1992) refere-se seca como um perigo assustador, porque ela evolui lentamente, insidiosamente, algumas vezes durante meses, e tem longa durao. Diferentemente de outros eventos, as secas no esto restritas a certas reas topogrficas e suas consequncias podem envolver centenas de quilmetros quadrados. Para o autor, nos pases desenvolvidos ningum morre por causa da seca. No entanto, em muitos pases em desenvolvimento, os efeitos desastrosos da seca, juntamente com uma situao de escassez alimentar, podero levar morte por fome.

    A seca comum em regies do Nordeste do Brasil (HASTENRATH & HELLER, 1977; SMITH, 1992), onde este trabalho foi realizado. A regio susceptvel seca geralmente descrita como sendo partes dos estados do Cear, Rio Grande do Norte, Paraba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, aproximadamente um dcimo do estado do Piau e uma parte do estado da Bahia.

    Esta pesquisa foi realizada em dois municpios, Queimadas (regio de seca) e Areia (regio sem seca), no estado da Paraba. A topografia desse estado faz que existam regies que so seriamente afetadas pela seca, enquanto outras recebem chuvas anuais regulares. Para garantir que todos os participantes estariam sob o mesmo nvel de presso e demandas econmicas, assegurando a consistncia das amostras entre homens e mulheres, somente os chefes de famlia casados foram entrevistados. Participaram da pesquisa 51 homens e 51 mulheres em cada cidade, perfazendo o total geral de 204 participantes nas duas cidades. Os homens e as mulheres que participaram da pesquisa moravam em residncias distintas, no eram casais de uma mesma residncia.

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    Os questionrios foram administrados oralmente na residncia dos participantes. Foi necessria a administrao oral para garantir a consistncia do procedimento, tendo em vista que alguns dos participantes no eram alfabetizados. Foi explicado para os participantes que o estudo era completamente voluntrio e que suas respostas seriam annimas e mantidas confidenciais. Foram usadas medidas para avaliar as respostas psicolgicas dos participantes, cujos resultados esto publicados em outro artigo (COLHO, ADAIR & MOCELLIN, 2004), bem como um questionrio sobre a percepo de risco.

    O questionrio sobre a percepo de risco era constitudo de seis questes relacionadas s opinies dos participantes sobre a seca e o seu impacto na sua vida diria. Quatro questes foram elaboradas na escala Likert. As outras duas questes foram abertas: Quem responsvel pela seca? e Voc acha que a seca vai acabar logo?

    Uma varivel composta geral foi criada com a mdia dos quatro itens do questionrio. Os valores foram codificados na ordem inversa dos valores originais do questionrio, de forma que um valor maior indicaria uma maior percepo de risco, com os valores totais variando de 4 a 16. O coeficiente de fidedignidade para esta escala foi de 91. Anlises de Varincia (Anovas) foram realizadas para avaliar as diferenas da percepo de risco de acordo com as cidades e as variveis demogrficas. O nico resultado significativo foi para cidade. Contrariamente s expectativas, os participantes residentes em Areia (sem seca) (M = 13.20, SD = 3.340) relataram nveis significativamente mais altos de percepo de risco do que os participantes residentes em Queimadas (seca) (M = 9.54, SD = 3.93), F = (1, 202) = 51.26, p = < .01.

    A fim de explorar as relaes entre a percepo de risco e as medidas psicolgicas, foram computados os coeficientes de correlao Produto-Momento de Pearson. Para as mulheres na rea da seca, houve tendncia a correlao positiva entre a percepo de risco e cada uma das medidas psicolgicas, implicando que quanto maior o nvel de percepo de risco, maiores os nveis de ansiedade e distresse emocional. Entretanto, para os homens essa relao no foi encontrada em Queimadas. Na rea sem seca, a tendncia para relaes positivas entre percepo de risco e respostas psicolgicas estava presente, mas s para homens.

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    Contrariando as expectativas de que as pessoas que morassem na rea da seca teriam mais medo da sua ocorrncia devido s consequncias negativas, os resultados deste estudo revelaram o oposto: os participantes na rea da seca tinham nveis de percepo de risco significativamente menores do que os participantes na rea sem seca. Essa diferena inesperada pode ser explicada por uma combinao de percepo de risco aumentada pelas pessoas que moram em Areia e pela percepo de risco diminuda das pessoas da regio com seca. Em qualquer um dos casos, o perigo tem diferentes significados, dependendo de onde voc mora.

    Uma explicao plausvel para a diminuio da percepo de risco dos residentes de Queimadas foi que a sua adaptao a esse estresse recorrente sugere algo similar aos processos encontrados no que tem sido chamado de subcultura do desastre. Essa ideia da subcultura do desastre inclui mecanismos reais ou potenciais em nveis psicolgicos, sociais e fsicos que so empregados pelos residentes de reas atingidas por eventos recorrentes. As comunidades, e presumivelmente as pessoas, aprendem com a experincia, incorporando a seus repertrios as lies que aprenderam em eventos prvios.

    As comunidades com histria de desastres recorrentes esto tipicamente mais bem capacitadas para responder ao prximo evento. A crescente familiaridade com o evento recorrente e suas consequncias gradualmente muda em nvel conceitual o significado do evento para as comunidades, que, por sua vez, influencia a avaliao do perigo pelo grupo. Embora medidas diretas da subcultura do desastre no tenham sido usadas nesta pesquisa, Queimadas tem todas as condies que poderiam contribuir para o seu surgimento, tendo em vista que a seca um evento repetitivo e que se estabelece vagarosamente. Com o evento recorrente, o perigo normalizado e colocado em um contexto que o torna compreensvel, dessa forma pode ser considerado menos ameaador do que os eventos que so desconhecidos para a comunidade. Alternativamente, as diferenas encontradas podem ter sido devidas ao aumento da percepo de risco das pessoas que residem em Areia. Esses residentes nunca vivenciaram a seca pessoalmente, s podem especular ou imaginar sobre o fato. As descries dos jornais geralmente revelam a condio mais grave, que pode contribuir para medos e preocupaes que no esto totalmente baseados na realidade.

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    Consideraes finaisExiste a necessidade de pesquisas sobre percepo de risco,

    preveno de desastres e estratgias de mitigao no contexto urbano. Tal necessidade encontra-se atrelada ao aumento demogrfico, assim como ao aumento da populao urbana no mundo. O desenvolvimento de estratgias eficazes da administrao de risco requer tanto o conhecimento do ambiente fsico como dos processos sociais, psicolgicos e econmicos que podem afetar as respostas das pessoas s condies ambientais de perigo.

    Indiretamente, a anlise dos riscos ir identificar as condies de vida, expondo as desigualdades e as vulnerabilidades das populaes. Consequentemente, as estratgias para a reduo dos riscos e dos desastres devero contribuir para reduzir as vulnerabilidades das pessoas. A construo de ambientes mais seguros tambm pode ser vista como uma busca pela equidade, porque, durante o processo da construo, preciso analisar as estruturas sociais, econmicas e polticas que poderiam estar contribuindo para o aumento dos riscos e das vulnerabilidades.

    Outro fator que merece considerao que as decises sobre as estratgias para a administrao dos riscos no podem estar baseadas inteiramente nas avaliaes objetivas e nas estatsticas sobre a probabilidade de risco. Talvez uma viso mais diversificada e mais ampla do risco possa nos ajudar a compreender como as pessoas percebem o perigo e desenvolvem estratgias mais eficazes de preveno.

    Os estudos futuros nessa rea devem considerar populaes mais amplas, de vrios nveis socioeconmicos e educacionais. Com esses dados, ser possvel relacionar caractersticas sociodemogrficas com os nveis de percepo de risco e os sentidos dados ao perigo. Os estudos devem incluir perguntas sobre o que foi feito realmente, quando o evento aconteceu em termos das aes realizadas pelas pessoas. No podemos esquecer que os desastres no ocorrem em um vcuo e que as aes que so realizadas pelas pessoas so elementos de um sistema cultural, social, poltico e econmico complexo.

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    Referncias

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    Os impactos das emergncias e dos desastres na poltica de Assistncia Social

    Raquel Ventura4

    Para entendermos os impactos das situaes de emergncia, desastre e contingncia na Assistncia Social, faz-se importante um resgate na histria e na evoluo dessa poltica pblica, como considerada hoje.

    A assistncia social no Brasil, na dcada de 80, deu um salto significante, mediante seu reconhecimento na Constituio de 1988 como um dos trips da seguridade social, ao lado da sade e da previdncia e ainda diferenciando-se desta ltima, com seu carter no contributivo e universal, por deixar claro que seus servios sero destinados a quem dela necessitar5.

    Pouco tempo depois, em 1993, a Lei Orgnica de Assistncia Social (Loas) vem ratificar a assistncia como dever do Estado. Sem desconsiderar o movimento e as aes da sociedade, coloca o Estado no lugar onde deve estar, como norteador das aes e principal financiador e executor da assistncia, e inaugura tambm o provimento dos mnimos sociais e dos benefcios assistenciais6. H que se considerar nesse percurso de evoluo todo o movimento dos trabalhadores sociais, das instncias de debate e controle social.

    Em 2004 houve mais um grande avano na busca da consolidao da assistncia social como poltica pblica universal, inclusiva, sistemtica e com carter tambm preventivo7. A Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS) e o Sistema nico de Assistncia Social (Suas) so apresentados

    4 Assistente social, gerente de Proteo Social Bsica da Prefeitura Municipal de Cariacica, ES.Secretaria Municipal de Assistncia Social da Prefeitura de Cariacica/ES. [email protected] (27) 3346-6330 / 9719-3390

    5 Constituio Federal de 1988, Art. 194: A seguridade social compreende um conjunto integrado de aes de iniciativa dos poderes pblicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos sade, previdncia e assistncia social.

    6 Loas, Art. 1 A assistncia social, direito do cidado e dever do Estado, Poltica de Seguridade Social no contributiva, que prov os mnimos sociais, realizada atravs de um conjunto integrado de aes de iniciativa pblica e da sociedade, para garantir o atendimento s necessidades bsicas.

    7 PNAS/SUAS: A poltica pblica de Assistncia Social realiza-se de forma integrada s polticas setoriais, considerando as desigualdades socioterritoriais, visando seu enfrentamento, garantia dos mnimos sociais e universalizao dos direitos sociais. (p. 33)

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    em princpio como proposta de governo, mas j com projeto de lei aguardando aprovao8.

    A PNAS/Suas vem nortear e apresentar uma metodologia de interveno, ratificando seu carter de Poltica de Proteo Social, pautando a garantia de segurana de sobrevivncia, acolhida e convivncia familiar. Apresenta como pilares da interveno a matricialidade familiar, a territorializao e a articulao de servios socioassistenciais, entendendo que outras polticas sociais so fundamentais para o desenvolvimento das potencialidades das famlias e o atendimento s suas necessidades.

    Dentre as dir