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Ensaio Argumentativo
“A medicine that is technologically competent and
narratively competent is able to do for patients what
was heretofore impossible to do”
Rita Charon
SARA ALEXANDRA SILVA ROSADO, Nº 1905
MÓDULO 11| FISIOTERAPIA NA PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DA SAÚDE I
UNIDADE CURRICULAR | DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL IV
RESPONSÁVEL DO MÓDULO | PROF. RICARDO MATIAS
2011-2012
“Uma medicina tecnológica e narrativamente competente tem possibilidade de fazer pelos
utentes o que antes era impossível.” (Charon, 2005)
Segundo Hunter (1991), a medicina é interpretativa e não simplesmente baseada em factos, a
capacidade de se indentificar com algo e intuir pode ser tão importante no diagnóstico e no
tratamento como são os dados científicos e a dedução lógica.
Neste sentido, a definição de raciocínio clínico em fisioterapia tem sido amplamente discutida e
alterada nos últimos anos, os primeiros estudos e modelos de raciocínio clínico que nos
forneceram informações sobre este conceito estavam direccionados para o diagnóstico,
acentando num modelo de raciocínio clínico hipotético-dedutivo (Edwards, Jones, Carr,
Braunack-Mayer, Jensen, 2004)
No entanto, esta definição tem sido alterada, sendo que, recentemente o raciocínio clínico é
descrito como “o processo em que o terapeuta, interagindo com o utente e outros, ajuda na
construção de significados, metas e estratégias de intervenção baseadas em dados clínicos,
escolhas do utente, opinião profissional e conhecimento” (Higgs e Jones, 2000, citados por
Edwards et al, 2004). Nesta nova definição, está patente a descentralização do racioncínio
clínico virado unicamente para o diagnóstico, englobando a experiência do utente, e colocando-o
no centro da intervenção. Evidências sugerem que um nível de participação no raciocínio clínico
adequado ao indivíduo, contribui para o sentimento de controlo por parte do utente (Atkins &
Ersser, 2008), ou seja, a adaptação do raciocínio clínico à especificidade do utente resulta numa
sensação de domínio. Sendo assim, esta evolução no raciocínio clínico tem por base a prática
centrada no utente que acenta em conceitos como a autonomia e o empowerment (Atkins &
Ersser, 2008).
Em contraste com o paradigma de pesquisa empírio-analítica (onde o racíocinio hipotético-
dedutivo encontra as suas raízes) que detém que a verdade e a realidade (conhecimento) é algo
objectivo e mensurável, uma abordagem de pesquisa interpretativa reconhece que a verdade ou
o conhecimento está relacionado com o significado e o contexto no qual ele é produzido, ou seja,
em qualquer situação podem existir múltiplas realidades, verdades ou perspectivas (Edwards et
al, 2004). Nesse sentido, e partindo do pressuposto que a realidade não existe por ela só e que
somos nós quem a interpretamos e lhe damos significado, surge o raciocínio narrativo que
pretende dar resposta a esta subjectividade, procurando não uma compreensão restrita à
doença do utente mas alargando essa compreensão à experiência única e individual de doença
que o utente vivenciou. Este tipo de raciocínio é distinto do hipotético-dedutivo, em que as
“hipóteses” são validadas por meio de testes, ao invés disso, estas são validadas através de um
consenso entre o terapeuta e o utente. (Edwards et al, 2004). A aprendizagem comunicativa,
vingente neste tipo de raciocínio, tem como objectivo aumentar a percepção e entendimento
comum de uma situação através de uma aprendizagem mútua entre o utente e o terapeuta, em
que o último, adquire conhecimento através de uma reflexão crítica sobre as perspectivas que o
utente detém (Edwards et al, 2004)
Neste sentido, desde o início de 1970, as escolas médicas norte-americanas incluiram o estudo
de textos literários no seu plano curricular, acentando no príncipio de que os textos literários
ajudam os profissionais de saúde a entender a dor e o sofrimento dos utentes, recorrendo à
interpretação das histórias clínicas dos mesmos (Charon, 2000). Esta conjugação entre a
medicina e a literatura reflecte-se na narrativa clínica (Charon, 2005). A narrativa clínica não se
restringe ao processo da doença e ao seu tratamento mas sim à experiência que o utente tem da
sua doença (Sakalys, 2003), tendo como objectivo que este lide com uma experiência
traumática, estabelecendo uma ligação entre ele, os outros e a realidade objectiva (Hawkins,
1993., citado por Sakalys, 2003). Esta relação estreita entre estas duas áreas não se restringe
ao ano de 1970, é inerente (Charon, 2000). A narrativa sempre foi um componente essencial na
medicina, as histórias dos utentes, a experiência na prestação de cuidados e a recuperação
sempre foram compartilhados entre médicos, bem como, entre os utentes e os seus familiares
(Charon & Wyer, 2008). No entanto, nos últimos anos a narrativa tem vindo a ganhar ênfase,
desenvolvendo-se assim a Medicina Baseada na Narrativa (Charon & Wyer, 2008).
No entanto, com a evolução da medicina tecnológica, as narrativas foram cada vez mais sub-
valorizadas, em favor dos factos que a medicina baseada na evidência fornece, sendo estes
mais científicos e objectivos (Charon & Wyer, 2008). Medicina tecnológica é um termo utilizado
para definir a prática médica utilizando equipamentos de diagnóstico e terapêutica sofisticados,
em oposição às técnicas mais tradicionais (Ponce, 2002). A prática médica foi-se alterando
gradualmente, passou de uma actividade pessoal, em que o médico ouve e toca o utente, para
uma actividade impessoal que ocorre em laboratórios (Charon, 2000). Posto isto, na segunda
metade do século passado, um conjunto de preocupações relativas à medicina têm sido ouvidas,
entre elas, a incapacidade dos médicos em ouvir e em reconhecer o sofrimento do utente e da
família, por deixarem de atribuir significado às experiências dos utentes (Charon, 2000), ou seja,
embora a tecnologia nos forneça toda uma gama de aparelhos ou instrumentos que nos
possibilitem diagnosticar com maior grau de certeza e com maior objectividade, ela pode levar os
profissionais de saúde a descentralizarem-se do utente, como ser único e individual, e a
focarem-se nos dados objectivos e mensuráveis fornecidos pela medicina tecnológica.
Com os avanços na medicina, a doença começou a ser vista como separada do corpo (Charon,
2000), ou seja, para além de serem criadas novas máquinas altamente tecnológicas e evoluídas,
o ser humano começou a ser interpretado como uma “máquina”. A conversa com o utente foi
substituída pela auscultação e percussão, e a interpretação foi substituida pela concordância
entre os avaliadores (Charon, 2000), o que significa que na base está um raciocínio hipotético-
dedutivo com base numa aprendizagem instrumental, que tem como objectivo estabelecer
relações de causa-efeito que levam a previsões sobre eventos observáveis que são correctas ou
incorrectas (Edwards et al, 2004)
A medicina que se restringe e se foca demasiado na tecnologia pode correr o risco de, em vez
de desfrutar do facilitismo que esta lhe fornece, cair no reducionismo, ou seja, resumir o utente à
estrutura afectada, desprovendo o mesmo da sua experiência, cenças, atitudes, expectativas e
valores. No entanto, os avanços tecnológicos são indiscutivelmente interessantes e colaboram,
sem dúvida, directa ou indirectamente no salvamento de vidas (Ponce, 2002).
Assim sendo, a medicina tecnológica pode trazer grandes benefícios e grandes consequências
aos profissionais de saúde, é necessário bom senso na escolha dos métodos de diagnóstico e
das alternativas terapêuticas mais pertinentes entre as disponíveis (Ponce, 2002).
A literatura incorporada na medicina poderá ser uma alternativa para que os profissionais de
saúde não se foquem demasiado nos aspectos objectivos e mensuráveis fornecidos pela
tecnologia. É necessário diferenciar a “doença” de “estar doente” (Grossman & Cardoso, 2006),
ou seja, o utente não se trata apenas de uma pessoa portadora de uma doença, ele está
efectivamente doente e o estar doente implica uma série de alterações a nível bio-psico-social,
que não se restringem à estrutura afectada.
Sendo assim, mesmo admitindo a tecnologia como algo positivo para os cuidados médicos,
fornecendo-nos muitos meios úteis de diagnóstico e de tratamento, ela deve ser utilizada com
bom senso e com a noção de que a analogia homem-máquina nos cuidados de saúde pode
surgir por consequência à evolução da tecnologia e, se isso ocorrer, a vida deixa de ser o
objecto central da prática clínica e a forma humana passa a ser entendida como uma máquina
(Koifman, 2001). Por isso, é necessário respeitar fronteiras para que se possa desfrutar o mais
possível do que a evolução tecnológica tem para dar à medicina.
“A vida só tem sentido na pessoa humana individualizada” (Kofman, 2001), a questão é: Como é
que se individualiza o ser humano na prática clínica? Como já foi referido, a medicina tecnológica
tem muitos efeitos adversos, ficando comprometida, muitas vezes, a relação médico-utente
(Koifman, 2001) pelo facto do profissional de saúde se suportar demasiado nos dados objectivos
e desvalorizar o utente e o seu “todo”, o que nos reporta para um modelo de prática biomédico,
onde são menosprezados aspectos emocionais, sociais e culturais da doença (Grossman &
Cardoso, 2006). O utente só é visto como um ser individual se a intervenção se centrar
essencialmente nele e em tudo o que ele engloba, ou seja, ter uma prática centrada no utente
implica compreender a doença nas diferentes dimensões bio-psico-social, existindo uma
preocupação em entender a experiência pessoal do utente relativamente à doença, partilha de
porder e responsabilidade entre o utente e os profissionais, em que os utentes são activos no
processo de raciocínio clínico (Atkins, Ersser, 2008). A medicina tecnológica é insuficiente para
que esta individualização ou centralização do utente seja possível, é necessário, portanto,
recorrer a uma medicina narrativamente competente. A competência narrativa é definida como a
capacidade para reconhecer, absorver, interpretar e ser movido pelas histórias que se ouvem ou
se leêm (Charon, 2004).
Capacidades que muitas vezes faltam nos profissionais de saúde, como a sintonia com a
individualidade dos utentes, sensibilidade às dimensões culturais e emocionais dos cuidados e
compromisso ético podem ser vencidas através do desenvolvimento de competência narrativa.
(Charon, 2004). Talvez o reforço desta competência narrativa nos profissionais de saúde lhes
proporcione skills para se colocar no lado do utente, imaginando o que ele suporta e deduzindo o
que ele precisa (Charon, 2004).
Quanto mais a medicina compreende a complexidade da doença, mais os clínicos podem
formular melhorar as suas funções no que diz respeito aos utentes, tanto em dimensões técnicas
como em dimensões de atribuição de significado (Charon, 2004), ou seja, quanto mais a
medicina se direcciona para a compreensão da doença como algo que passa a fazer parte de
um indivíduo único, que lhe atribui significado, mais efectiva será a intervenção junto desse
utente.
No entanto esta compreensão é dificultada por dificuldades de comunicação, dado que, durante
a formação, os profissionais de saúde, tornam-se cada vez mais adeptos do processo de traduzir
a experiência do utente para uma linguagem médico-científica (Colbert & Tsai, 2007) e isso pode
afastá-los dos utentes, criando uma barreira de comunicação que pode ser ultrapassada através
da narrativa (Bandman, 2008), em que o profissional de saúde se coloca do lado do utente,
procurando assim compreendê-lo realmente.
A narrativa, escrita pelo profissional de saúde, representa um momento de auto-reflexão, em que
o utente é visto como um ser único, são recordados os sorrisos, as lágrimas, as conversas
difíceis e os olhares dolorosos (Colbert &Tsai, 2007)
Quando os médicos reflectem sobre as suas próprias vidas na medicina e quando eles analisam
as memórias e associações desencadeadas pela sua intervenção, eles tornam-se mais
acessíveis e úteis para os utentes. A consciência explícita dos seus sentimentos e experiências
aprofundam a sua capacidade de responder com empatia aos utentes (Dasgupta & Charon,
2004). A narrativa não se trata apenas de uma ferramenta ou um instrumento utilizado para
chegar a um raciocínio, ela própria representa um processo de raciocínio narrativo que
englobado com o raciocínio hipotético-dedutivo permite construir um raciocínio clínico, dentro da
sua nova definição.
Mas que importância ou relevância tem tudo isto para os utentes? A comunicação tem um papel
crucial no processo de intervenção e, ao ser facilitada, os utentes compreendem melhor a sua
doença, compreendem-se melhor a eles próprios e aos seus médicos, encarando a experiência
médica de forma diferente (Bandman, 2008).
A narrativa trata-se de um processo de reflexão, caracterizado por uma retroespecção
relativamente a uma questão preocupante, desencadeada por uma experiência, que cria e
clarifica significados próprios e que resulta numa mudança de perspectiva (Dasgupta & Charon,
2004) ao contar a nossa expeiência de doença, estamos a começar a reconhecer as
consequências da mesma gradualmente, a reconhecer o medo, a esperança e o amor expostos
na doença (Charon, 2005).
Desta forma, a narrativa tem sido explorada como tendo efeitos terapêuticos, estudos empíricos
demonstram que “terapias em que as pessoas falam acerca de tudo, reduzem a angústia e
promovem o bem-estar físico e mental” (Smyth e Pennebaker, 1999, citados por Saklys, 2003),
ou seja, a narrativa é um exercício que ajuda a reflectir em experiências passadas, atribuir-lhe
um significado, reenquadrando-as e organizando-as, de forma a que o utente se conheça melhor
a ele próprio, compreenda melhor a doença e consiga arranjar mecanismos para lidar com a
situação, podendo mesmo promover um bem-estar físico e mental.
Segundo Rybarczyk e Bellg (1997), citados por, Sakalys (2003), construir narrativas pessoais
provoca uma diminuição da ansiedade, um aumento do relaxamento e uma melhor satisfação
por parte do utente.
Portanto, a narrativa apresenta efeitos positivos tanto na construção do raciocínio por parte dos
profissionais de saúde como para os utentes, através dela há uma aproximação entre o
terapeuta e o utente, proporcionada por uma facilitação da comunicação. Posto isto, a forma de
pensar analítica, por si só, torna-se insuficiente para a prática de cuidados de saúde, é
necessário que exista uma fusão entre o pensamento analítico, fornecido pela medicina
tecnológica e o pensamento narrativo. Estas duas formas de pensar representam duas formas
de organização da experiência. A narrativa vai limar as arestas da medicina tecnológica, senão
veremos: Segundo Gerteis, 1993 citado por Charon, 2005, os pacientes expressam satisfação
com a qualidade técnica do atendimento, mas as suas necessidades subjectivas, muitas vezes
permanecem insatisfeitas e as suas identidades individuais são frequentemente não
reconhecidas. Isto significa que, para os utentes, é clara a importância da medicina tecnológica e
parece haver uma satisfação no que respeita a esse campo, no entanto, como referido ao longo
do texto, as grandes falhas na medicina prendem-se com a integração do subjectivo numa
realidade que se torna cada vez mais objectiva, ligada à ciência, aos dados concretos e aos
factos.
Nesse sentido, a narrativa pode ser entendida como a ponte entre as provas de grande escala
nos RCT‟s e arte de aplicar este conhecimento aos casos únicos (Charon & Wyer, 2008) ou seja,
o raciocínio hipotético-dedutivo e o raciocínio narrativo complementam-se e juntos oferecem uma
maior objectividade na medicina, dado que, se centram no utente como um ser único e
individual. Picasso uma vez pintou o retrato de um homem com um olho aberto e outro fechado,
estabelecendo a analogia com a medicina, precisamos de manter um olho fechado que nos dirija
objectivamente, no entanto, é necessário que um dos olhos esteja aberto para vermos cada
utente como um ser único (Colbert & Tsai, 2007).
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