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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA - DHC CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DOS SERTÕES Sítio Arqueológico Pedra Lavrada: reflexões sobre a preservação do Patrimônio Cultural em Ouro Branco-RN LENILSON SILVA DE AZEVEDO CAICÓ-RN 2018

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ

    DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA - DHC

    CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DOS SERTÕES

    Sítio Arqueológico Pedra Lavrada: reflexões sobre a preservação

    do Patrimônio Cultural em Ouro Branco-RN

    LENILSON SILVA DE AZEVEDO

    CAICÓ-RN

    2018

  • LENILSON SILVA DE AZEVEDO

    Sítio Arqueológico Pedra Lavrada: reflexões sobre a preservação

    do Patrimônio Cultural em Ouro Branco-RN

    Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso

    de Especialização em História dos Sertões, do

    Departamento de História do Centro de Ensino

    Superior do Seridó, da Universidade Federal do Rio

    Grande do Norte, como requisito final para a obtenção

    do título de Especialista em História dos Sertões.

    Orientador: Dr. Abrahão Sanderson Nunes Fernandes

    da Silva

    CAICÓ-RN

    2018

  • LENILSON SILVA DE AZEVEDO

    Sítio Arqueológico Pedra Lavrada: reflexões sobre a preservação

    do Patrimônio Cultural em Ouro Branco-RN

    Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Especialista em

    História dos Sertões, do Centro de Ensino Superior do Seridó, da Universidade Federal do Rio

    Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores:

    _______________________________________

    Dr. Abrahão Sanderson Nunes Fernandes da Silva –

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Orientador)

    _______________________________________

    Dra. Paula Rejane Fernandes –

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    _______________________________________

    Dra. Juciene Batista Félix Andrade –

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    Caicó-RN, 18 de setembro de 2018.

  • .

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    Aos meus pais, Maria e Dilson (in memorian),

    meus filhos Lunna e Lenon, minha esposa

    Luanna, dedico-lhes. Com amor!

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, fonte de inspiração e vida.

    Aos meus amados pais, Dilson Cirilo de Azevedo (in memorian) e Maria Silva de

    Azevedo, pelos ensinamentos primeiros, princípio de tudo o que aprendi de edificante para a

    vida!

    Aos meus segundos pais, Joaquim Cesário da Costa Neto e Maria Luíza de

    Figueiredo Costa (Quinca – in memorian - e Tatá), que desde a minha infância dispensaram

    amor filial;

    À minha esposa, Luanna Elízia, e aos meus filhos Lunna e Lenon, que

    compreenderam minha ausência quando dos momentos de dedicação a esse curso;

    Ao professor e orientador Dr. Abrahão Sanderson Nunes Fernandes da Silva, pelo

    desprendimento, disponibilidade e maestria com que conduziu os trabalhos para a confecção

    do presente trabalho.

    Aos professores Helder Macedo e Lourival Andrade, em nome dos quais estendo o

    agradecimento a todo o corpo docente que nos ensinou muito mais do que conhecíamos dos

    nossos sertões.

    Às queridas professoras Dra. Paula Rejane e Dra. Juciene Andrade, pelos

    ensinamentos quando da qualificação e adequações para a apresentação final.

    Aos colegas de curso, pela amizade e companheirismo, fortalecendo uma amizade

    que torço ser para o resto da vida...

    Aos amigos, colegas, funcionários do CERES / UFRN, da cantina, professores, que

    estiveram convivendo comigo estes inesquecíveis dias.

    Aos professores de toda a minha vida estudantil desde as escolas públicas do

    município de Ouro Branco, e aos colegas de trabalho e alunos da Escola Estadual Dr José

    Gonçalves de Medeiros, em Acari-RN, por fazerem parte da motivação para concluir mais

    essa qualificação.

    Aos conterrâneos que dividiram comigo noites de viagens, nos ônibus escolares ou

    nas caronas de conversas e partilhas de agradáveis experiências e lições de vida.

    A todas as pessoas que contribuíram para a concretização desse sonho. Meus

    agradecimentos!

  • Toda sociedade existe instituindo o mundo como seu mundo, ou seu mundo como o

    mundo, e instituindo-se como parte deste mundo.

    Cornelius Castoriadis

  • RESUMO

    O trabalho ora proposto é um estudo sobre o sítio Arqueológico Pedra Lavrada, localizado no

    sertão da região Seridó, Rio Grande do Norte, no município de Ouro Branco, no leito do

    riacho Santa Maria (rio Raposa), o qual guarda um importante patrimônio cultural formado

    por diversos registros de arte rupestre esculpidas nas rochas. Partindo da ideia de que referido

    acervo arqueológico é resultado do processo historicamente construído, no tempo e no espaço,

    faz-se uma reflexão acerca de sua patrimonialização para a preservação da memória e da

    construção da identidade de um povo a partir de sua herança derivada de práticas sociais

    operadas desde a pré-história. Num primeiro momento, faz-se uma caracterização do sítio

    arqueológico, aliada à sua referência enquanto lugar de memória, e as ferramentas legais

    disponíveis para a sua proteção. A partir de uma perspectiva interdisciplinar, procede-se a

    uma análise acerca da socialização do conhecimento arqueológico, por meio da educação

    patrimonial, como ferramenta para a sensibilização da comunidade, com vistas à sua

    valorização e conservação, ressaltando o potencial do sítio para o desenvolvimento do

    Turismo Arqueológico (ou Arqueoturismo) e do Ecoturismo, elementos ligados à noção de

    pertencimento que propicia o seu uso sustentável, perfazendo-se o Patrimônio Sertanejo como

    um elemento identitário. Outra importante proposta relaciona-se à utilização do sítio

    arqueológico Pedra Lavrada como ferramenta pedagógica no âmbito do ensino de História nas

    escolas públicas locais, especificamente nas temáticas relacionadas à Pré-História, a partir de

    reflexões das memórias ligadas à formação do território da região Seridó e especificamente do

    município de Ouro Branco. Perfaz-se, assim, uma importante contribuição para a

    sistematização das informações sobre o sítio arqueológico Pedra Lavrada, por meio de

    apontamentos para a sua apropriação pela comunidade, como elementos definidores de ações

    para a preservação e conservação desse patrimônio.

    Palavras-chave: Sítio Arqueológico Pedra Lavrada, patrimônio, memória, identidade, sertão.

  • ABSTRACT

    The present work is a study about the Pedra Lavrada Archaeological site, located in the Seridó

    region, Rio Grande do Norte, in the municipality of Ouro Branco, on the bed of the Santa

    Maria stream (Raposa river), which holds important cultural heritage formed by several

    records of rock art carved in the rocks. Starting from the idea that this archaeological

    collection is the result of the historically constructed process, in time and space, a reflection is

    made on its patrimonialization for the preservation of memory and the construction of the

    identity of a people from its inheritance derived from social practices operated since

    prehistory. At first, a characterization of the archaeological site is made, along with its

    reference as a place of memory, and the legal tools available for its protection. From an

    interdisciplinary perspective, an analysis is made of the socialization of archaeological

    knowledge, through heritage education, as a tool to raise awareness in the community, with a

    view to its valorization and conservation, highlighting the potential of the site for

    development Archaeological Tourism (or Archaeotourism) and Ecotourism, elements linked

    to the notion of belonging that propitiates its sustainable use, becoming the Heritage Country

    as an identity element. Another important proposal relates to the use of the Pedra Lavrada

    archaeological site as a pedagogical tool in the teaching of History in local public schools,

    specifically in the themes related to Prehistory, based on reflections of the memories related to

    the formation of the territory of the Seridó region and specifically the municipality of Ouro

    Branco. Thus, an important contribution is made to the systematization of the information

    about the archaeological site Pedra Lavrada, by means of notes for its appropriation by the

    community, as defining elements of actions for the preservation and conservation of this

    patrimony.

    Keywords: Archaeological site Pedra Lavrada, patrimony, memory, identity, sertão.

  • LISTA DE ILUSTRAÇÕES

    Figura 1 - Mapa de localização e vias de acesso ao Sítio Arqueológico Pedra Lavrada

    (Ouro Branco-RN)...............................................................................................................

    12

    Figura 2 - Painel principal do Sítio Arqueológico Pedra Lavrada, em Ouro Branco-RN....

    13

    Figura 3 - Vista panorâmica / parcial dos suportes rochosos do Rio Raposa, onde estão

    os grafismos.........................................................................................................................

    20

    Figura 4 - Algumas figuras geométricas esculpidas nas rochas...........................................

    20

    Figura 5 - Algumas "itaquatiaras" do sítio arqueológico Pedra Lavrada.............................

    20

    Figura 6 - Durante todo o ano, abaixo do painel principal se acumula água, que serve

    para o gado. .........................................................................................................................

    23

    Figura 7 - É comum ver minas nas adjacências do Sítio Arqueológico...............................

    23

    Figura 8 - Imagem que se aproxima de uma figura humana com uma espécie de cauda

    de peixe. ................................................................................................................... ...........

    27

    Figura 9 - Preguiça-gigante (Megatherium americanum)....................................................

    29

    Figura 10 - Peças do fóssil encontrados pelo proprietário do sítio, na década de 50 ..........

    29

    Figura 11 – Reprodução do gliptodonte - mamífero extinto, membro da ordem Xenarthra

    (desdentados) família Glyptodontidae. ancestral do tatu), cujos restos, partes de sua

    carapaça, foram encontradas em escavação no Sítio Arqueológico Riacho Verde.............

    30

    Figura 12 - O desmatamento ocorre de modo acelerado nas imediações do Sítio

    Arqueológico Pedra Lavrada................................................................................................

    31

    Figura 13 - Área de Preservação Permanente (APP) do Sítio Arqueológico Pedra

    Lavrada/RN..........................................................................................................................

    34

    Figura 14 - Registro do Sítio arqueológico Pedra Lavrada no IPHAN................................

    53

    Figura 15 - Passarela suspensa no Sítio Xique-Xique 2, em Carnaúba dos Dantas-RN......

    54

    Figura 16 - Poço da Raposa (ou “Poço da Moça”), onde fica o painel principal das

    inscrições rupestres do Sítio Pedra Lavrada.........................................................................

    60

    Figura 17 - Aspectos dos caracteres rupestres existentes num bloco isolado, há 13

    metros do painel principal....................................................................................................

    66

    Figura 18 - Aspectos dos caracteres rupestres existentes num conjunto de blocos no Rio

    Raposa............................................................................................................................. .....

    67

  • Figura 19 - Aspectos dos caracteres rupestres existentes num conjunto de blocos,

    contornados para uma melhor visualização.........................................................................

    68

    Figura 20 - Aspectos dos caracteres rupestres existentes num conjunto de blocos,

    localizado no meio do Rio Raposa, contornados para uma melhor visualização................

    67

    Figura 21- Caracteres para parte inferior esquerda do painel..............................................

    69

  • SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 12

    2 PATRIMÔNIO CULTURAL E MEMÓRIA A PARTIR DO SÍTIO

    ARQUEOLÓGICO PEDRA LAVRADA...................................................................

    18

    2.1 SÍTIO ARQUEOLÓGICO PEDRA LAVRADA: APONTAMENTOS PARA CARACTERIZAÇÃO

    DE SEUS VESTÍGIOS...........................................................................................................

    19

    2.2 SÍTIO ARQUEOLÓGICO PEDRA LAVRADA COMO UM LUGAR DE MEMÓRIA.................. 24

    2.3 PROTEÇÃO LEGAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL DE PEDRA LAVRADA.......................... 31

    3 SÍTIO ARQUEOLÓGICO PEDRA LAVRADA: SOCIALIZAÇÃO DO

    CONHECIMENTO DE UM PATRIMÔNIO SERTANEJO....................................

    36

    3.1 O PATRIMÔNIO SERTANEJO COMO ELEMENTO IDENTITÁRIO........................................ 36

    3.2 SOCIALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO............................................................................ 39

    3.3 EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA A VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO

    DO SÍTIO PEDRA LAVRADA...............................................................................................

    45

    3.4 TURISMO ARQUEOLÓGICO (ARQUEOTURISMO) E O ECOTURISMO COMO

    FERRAMENTAS PARA A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL DE PEDRA

    LAVRADA........................................................................................................................ .

    49

    4. ELEMENTOS PRÁTICOS SOBRE A UTILIZAÇÃO SOBRE A

    UTILIZAÇÃO DO SÍTIO ARQUEOLÓGICO PEDRA LAVRADA COMO

    FERRAMENTA PEDAGÓGICA................................................................................

    57

    4.1 A IMPORTÂNCIA DO SÍTIO ARQUEOLÓGICO PEDRA LAVRADA PARA A FORMAÇÃO DO

    TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE OURO BRANCO.................................................................

    57

    4.2 REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DA HISTÓRIA................................................................. 61

    4.3 SÍTIO ARQUEOLÓGICO PEDRA LAVRADA E O ENSINO DA PRÉ-HISTÓRIA.................... 64

    5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 72

    REFERÊNCIAS............................................................................................................ 75

  • 12

    1 INTRODUÇÃO

    O Sítio Arqueológico Pedra Lavrada, localizado no município de Ouro Branco,

    microrregião Oriental do Seridó, sertão do Estado do Rio Grande do Norte, no leito do riacho

    Santa Maria (rio Raposa), em afloramentos rochosos; é dotado de diversos registros de arte

    rupestre esculpidas nas rochas. Em tais figuras, há predominância de grafismos1 com

    elementos geométricos, não havendo indícios de figuras pintadas.

    A área fica na zona rural, a aproximadamente 12 quilômetros de distância do núcleo

    urbano, conforme mapa a seguir:

    Figura 1 - Mapa de localização e vias de acesso ao Sítio Arqueológico Pedra Lavrada (Ouro Branco-RN).

    Fonte: SOUZA; LUCENA; NASCIMENTO; 2016, p. 370.

    Dentre os Petróglifos2 do Seridó, isto é, gravações executadas na pedra, o objeto de

    pesquisa situa-se em blocos rochosos no curso do rio conhecido como rio Raposa. O painel

    principal, que fica numa rocha vertical, mede aproximadamente 3,5 x 6,0 metros de largura.

    Existem outras ocorrências nas adjacências, compondo-se numa área de aproximadamente

    9.527 m².

    1 Círculos, linhas, etc. 2 Diz-se de imagens geometrizadas com representações simbólicas, gravadas na rocha.

  • 13

    A pesquisa que ora se propõe pode viabilizar um estudo mais aprofundado acerca do

    sítio arqueológico Pedra Lavrada, que possa favorecer a adoção de medidas que sirvam para a

    sua preservação, tais como o reconhecimento e proteção oficiais por parte do Poder Público, o

    desenvolvimento e gestão sustentável do local com a participação consciente da comunidade,

    e a promoção de estudos científicos por meio de instituições de ensino que disponham de

    especialistas nas áreas pertinentes.

    Os registros encontrados em referido espaço, tendo a rocha como suporte, necessitam

    urgentemente de ações, por parte do poder público e da comunidade, direcionados à sua

    proteção e preservação, dentro de um contexto histórico e cultural em que ações de

    exploração de recursos naturais são empreendidas sem qualquer controle, em suas imediações,

    pondo em risco referido patrimônio.

    Figura 2 - Painel principal do Sítio Arqueológico Pedra Lavrada, em Ouro Branco-RN (Fonte: Acervo do autor).

    Ante a dificuldade inicial em trabalhar um sítio do qual os estudos são preliminares e

    escassos, a pesquisa ora proposta encontra avanços oriundos das discussões mais recentes,

    que permitem que se façam alguns apontamentos. Estudos sobre Pré-História do Brasil

    indicam a existência de oito tradições arqueológicas, dentre as quais se situam três,

    denominadas Nordeste, Agreste e Itaquatiaras. No Rio Grande do Norte, a tradição Nordeste

    ocorre por meio de pinturas monocromáticas e gravuras que representam figuras humanas e

  • 14

    também animais (como pequenos quadrúpedes, pássaros, dentre outros) e também algumas

    geométricas, como já referido. Especificamente na região do Seridó, foram registrados

    diversos sítios arqueológicos de arte rupestre. Em sua maioria, são encontradas pinturas

    figurativas, que foram feitas utilizando-se provavelmente uma tinta mineral chamada ocre, um

    composto de hidróxido e óxido de ferro (NASCIMENTO & SANTOS, 2013).

    A complexidade e antiguidade das inscrições encontradas no Sítio Arqueológico

    Pedra Lavrada, na comunidade rural de mesmo nome, município de Ouro Branco, Rio Grande

    do Norte, fazem perceber quão difícil é a tarefa de decifrá-las, no tocante aos seus prováveis

    motivos. São de fundamental importância para tal os estudos de Niéde Guidon (GUIDON,

    1985), que na década de 1970, empreendeu a Missão Franco-brasileira que se empenhou em

    pesquisas na região sudeste do Piauí, evidenciando grande riqueza arqueológica, culminando

    com a criação do Parque Nacional Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, estado do

    Piauí (1979), oferecendo reflexões acerca da preservação dos sítios arqueológicos, bem como

    resultados de datação que aguçaram as discussões sobre o período das primeiras ocupações na

    América do Sul.

    Cabe basear-se também em estudos já empreendidos e consequentes descobertas de

    informações valiosas, como a expressa no pensamento de Gabriela Martin, que faz referência

    aos possíveis motivos das expressões comunicadas na pré-história e testemunhadas através

    dos tempos:

    Por muito que os autores materiais dos registros rupestres tenham separado as zonas da sua vida cotidiana e da sua vida espiritual, representadas pelas

    gravuras e pinturas rupestres, habitavam áreas escolhidas por longos

    períodos, vieram de outro lugar, muitos morreram e outros abandonaram a

    região obrigada por outros grupos ou impelida na procura de melhores formas de sobrevivência. (MARTIN,1999, p. 239)

    Outros autores oferecem apontamentos para o embasamento da pesquisa ora proposta,

    como Helder Alexandre Macedo, com os resultados das pesquisas acerca dos sítios

    arqueológicos de Carnaúba dos Dantas-RN (MACEDO, 2003).

    Há que se considerar que o estudo das inscrições, no tocante às funções que possam

    ser atribuídas, encontra limitações, pois a vida cotidiana na pré-história está

    fundamentalmente ligada à utilização de elementos constantes da natureza que estava

    imediatamente ao alcance dos povos que ali viveram, quais sejam: lítico, osso, cerâmica,

    madeira, etc. Sendo assim, é essencial que se estude os contextos arqueológicos dessas

    manifestações artísticas, lançando olhar sobre os estudos precedentes, e isso demanda um

  • 15

    esforço bem mais complexo, o que não é, ao menos no momento presente, objetivo desta

    pesquisa.

    Percebe-se a necessidade de conscientização acerca dos valores identitários do Sítio

    Arqueológico Pedra Lavrada, como um lugar que foi socialmente produzido, a partir da

    acumulação de experiências humanas expressas por meio de vestígios da cultura material, que

    foram resultantes da apropriação de aspectos de seu tempo, do espaço, e fazem parte da sua

    história ancestral. No entanto, esse importante sítio arqueológico serve atualmente como para

    descanso do gado, e de onde já se aproximam ações de extração da vegetação em seu entorno

    e de minerais subterrâneos em suas adjacências.

    A adoção de ações para a conservação de referido patrimônio cultural, enquanto

    herança imaterial expressa por meio de saberes, lugares, celebrações e formas de expressão

    (PINHEIRO, 2010, p. 41); pode ocorrer, por exemplo, por meio do tombamento legal e sua

    inserção no cadastramento dos geossítios para a criação do Geoparque Seridó, pelo Serviço

    Geológico do Brasil – CPRM, dentre outras medidas, que são urgentes e fundamentais, sendo

    ações constantes do objeto da presente pesquisa o estudo no tocante ao conhecimento desse

    patrimônio cultural, aclarando informações que se fazem essenciais para a gestão e uso

    consciente e sustentável desse território e sua consequente conservação.

    Nesse contexto, far-se-á também a análise sob a perspectiva de uma sociedade que se

    vislumbra com o novo, a modernidade, destruindo aquilo que considera antigo ou

    ultrapassado. Há que se considerar ainda o desenvolvimento de estratégias voltadas ao

    aprimoramento da relação entre sociedade e patrimônio arqueológico no contexto do sertão

    seridoense, com o objetivo de promover o uso pedagógico e turístico de modo sustentável,

    para que, participando do processo de construção e enraizamento, as pessoas possam

    compreender, respeitar e valorizar o seu patrimônio cultural.

    No primeiro capítulo, se promoverá a pertinente discussão acerca do Patrimônio,

    voltada para a proteção e gestão do patrimônio arqueológico dos vestígios da existência

    humana, com enfoque no seu valor cultural, e sua importância para a memória e também para

    a construção da identidade de um povo. O fato de haver risco iminente de desaparecimento

    diante de empreendimentos humanos na contemporaneidade justifica a preocupação com a

    sua conservação, sendo um de seus instrumentos a adoção de ações que viabilizem a educação

    patrimonial.

    Nessa perspectiva, a conscientização aliada à identificação, poderá contribuir para o

    reconhecimento, valorização e preservação da cultura e identidades locais, e deve ser

  • 16

    fomentada por meio de práticas educativas de preservação que visem levar informações

    patrimoniais para a comunidade, através de instrumentos que sejam efetivos e contribuam

    para a preservação da memória e fortalecimento da identidade coletiva, a partir do sítio

    arqueológico Pedra Lavrada, em Ouro Branco/RN.

    No segundo capítulo, vislumbra-se uma abordagem acerca da ideia de patrimônio

    sertanejo, especificamente, na zona rural, aliado à noção de socialização do conhecimento e

    da educação patrimonial. Faz-se uma ligação com o patrimônio arqueológico a partir da arte

    rupestre, como potencial interpretativo. A educação patrimonial será assim refletida em

    consonância com o estudo do meio, ou seja, a paisagem como um elemento histórico,

    enquanto elemento de ensino e aprendizagem pedagógica, além da reflexão acerca da

    conceituação de Turismo Arqueológico (Arqueoturismo), baseado nas noções de turismo

    cultural e ecoturismo.

    No terceiro capítulo, traz-se a formulação de elementos um tanto mais práticos, com

    aspectos avaliativos sobre a utilização do Sítio Arqueológico Pedra Lavrada como ferramenta

    pedagógica, no âmbito do ensino da pré-história e das memórias ligadas à formação do

    território da região Seridó e especificamente do município de Ouro Branco, a exemplo da

    herança cultural indígena e dos colonizadores do sertão da região Seridó.

    O embasamento teórico oferecido pelas obras consultadas, relevantes à presente

    pesquisa, oferecem subsídios para a formulação de teorias que permeiam o estudo e atinjam

    seus objetivos, e assim possa se tornar um instrumento para a preservação e conservação

    desse patrimônio cultural, servindo tal estudo para corroborar com outros futuros acerca de

    tais manifestações humanas nesse espaço, bem como com a compreensão da sua importância,

    em vista de um sentimento de pertencimento e identidade, preservando sua memória, sua

    história, enfim.

    O sítio arqueológico Pedra Lavrada é dotado de relevância singular no tocante às

    perspectivas que tal patrimônio cultural proporciona. Assim, a análise proposta justifica-se,

    seja para pesquisa científica e difusão nos meios acadêmicos; seja para atividades

    educacionais e turismo; na medida em que tais ações sejam amparadas pela formação de uma

    consciência preservacionista, dentro do contexto da apreensão por parte da comunidade do

    espaço enquanto lugar de memória, capaz de suscitar a noção de pertencimento, fundamental

    para a construção da identidade, sendo possível até ações para o seu desenvolvimento

    socioeconômico.

  • 17

    Objetiva-se, assim, estudar o sítio arqueológico do sítio Pedra Lavrada, a partir de

    uma discussão que contemple a ideia de patrimônio cultural, refletindo sobre as ações de

    educação patrimonial que favoreçam a sensibilização da comunidade sobre a importância de

    conhecer o passado e a necessidade preservar o patrimônio arqueológico. Consequentemente,

    oferecer apontamentos para construção de reflexões futuras, bem como suscitar no Poder

    Público a função que lhe compete, qual seja a de promover mecanismos legais para a

    preservação daquele espaço.

    A pesquisa ora empreendida se desenvolve metodologicamente por meio da revisão

    de literatura a partir das produções ligadas às temáticas de patrimônio, Arqueologia, memória,

    preservação e conservação. Com isso, buscam-se resultados através de produção textual a

    partir dos dados apresentados, promovendo-se uma discussão crítica, com base nas

    formulações acerca do espaço que se construiu historicamente e se chamou de Sertão.

    A presente perspectiva de análise problematiza formulações concernentes à

    preservação e conservação do Sítio Arqueológico Pedra Lavrada, em consonância com outras

    produções científicas, perfazendo-se como importante subsídio para o empreendimento de

    instrumentos e ações para a preservação do patrimônio e da memória.

  • 18

    2 PATRIMÔNIO CULTURAL E MEMÓRIA A PARTIR DO SÍTIO

    ARQUEOLÓGICO PEDRA LAVRADA

    Cada vez mais o termo Patrimônio é amplamente utilizado, e “Não parece haver

    limite para o processo de qualificação dessa palavra” (GONÇALVES, 2005, p. 17), pois está

    relacionada a bens materiais e imateriais, que fazem parte da cultura, enquanto condição de

    produção e reprodução da sociedade (MENESES, 1996), e por isso merecem toda atenção e

    proteção. Dessa forma, conforme entendimento a partir da noção de imaterialidade, a

    apropriação humana que se faz do patrimônio, com referências culturais da coletividade,

    reafirma a própria identidade de um povo, conforme veremos adiante.

    Nessa perspectiva, qualquer patrimônio, material ou imaterial, é cultural, visto tratar-

    se de algo que comporta valores da sociedade, e é construído no processo de produção do

    espaço em que está inserido. Assim, há que se compreender o que liga aspectos culturais de

    uma sociedade ao meio em que ela está inserida, para daí criar ferramentas de proteção desse

    patrimônio. Nisso consiste o processo de “patrimonialização”.

    A definição de Patrimônio Cultural pode ser compreendida como:

    Todas as manifestações e expressões que a sociedade e os homens criam e

    que, ao longo dos anos, vão se acumulando com as das gerações anteriores. Cada geração as recebe, usufrui delas e as modifica de acordo com sua

    própria historia e necessidades. Cada geração dá a sua contribuição,

    preservando ou esquecendo essa herança. (GRUNBERG, 2007, p. 5).

    Dessa formulação, compreende-se o patrimônio cultural como algo construído

    histórica e socialmente, e sua duração tem relação com a sua valorização. O sítio arqueológico

    Pedra Lavrada, assim, ao figurar como importante patrimônio cultural do povo ouro-

    branquense, pode tornar-se não somente uma representação simbólica dessa sociedade, mas

    um importante referencial de memória.

    O patrimônio ora em análise, é de grande interesse para a Arqueologia, cuja análise

    se debruça sobre as ligações existentes, o sentimento de pertencimento da sociedade em vista

    da construção de sua memória, a partir de suas práticas, de sua cultura. Eis o motivo de

    também a História enveredar sobre um novo caminho para trabalhar a cultura: trata-se da

    Nova História Cultural, que trata a cultura como “um conjunto de significados partilhados e

    construídos pelos homens para explicar o mundo” (PESAVENTO, 2003, p. 15). Como se vê,

  • 19

    as temáticas ligadas à cultura material, identidade e memória interessam às discussões

    arqueológicas e sobretudo historiográficas:

    Tempo, espaço e movimento passam a compor expectativas essencialmente

    existenciais, especialmente nos quadros de re-simbolização e revalorização dos sentidos e funções culturais. Portanto, parece-nos que uma das chaves da

    compreensão da situação atual das perspectivas historiográficas é o estudo

    da memória e da identidade. (DIEHL, 2002, p.112).

    O estudo acerca da identidade e memória tem fundamental importância, assim, para

    o conhecimento da cultura material existente no sítio arqueológico Pedra Lavrada, que é

    composta de vestígios esculpidos no ambiente, produtos de construções e readaptações na

    ação do homem naquele espaço. Diante do reconhecimento desse patrimônio cultural, a

    identidade é o que faz com que o indivíduo se situe dentro da sociedade em que está inserido,

    e também seja reconhecido como membro desta, numa relação e processo permeados pelo

    tempo e pelo espaço.

    A comunidade que está no entorno do patrimônio arqueológico em estudo, por meio

    do conhecimento a respeito do mesmo, pode apropriar-se, fazer florescer um sentimento de

    pertencimento, contribuindo para o fortalecimento e constituição da identidade e da memória.

    2.1 SÍTIO ARQUEOLÓGICO PEDRA LAVRADA: APONTAMENTOS PARA CARACTERIZAÇÃO DE SEUS

    VESTÍGIOS

    No sítio arqueológico em questão, os vestígios relacionam-se a expressões humanas

    por meio da arte rupestre, que são representações, por meio de pinturas e gravuras, feitas por

    populações pré-coloniais. Referidas pinturas usam como aporte rochas, e muito tem a revelar

    acerca do cotidiano das populações pré-históricas que as fizeram. As gravuras entalhadas na

    rocha são como uma transmissão de pensamentos ou sentimentos do homem pré-histórico,

    por meio de diversos motivos em formas geométricas.

  • 20

    Figura 3 - Vista panorâmica / parcial dos suportes rochosos do Rio Raposa,

    onde estão os grafismos (Fonte: acervo do autor)

    Figura 4 - Algumas figuras geométricas esculpidas nas rochas (Fonte: Acervo do autor)

    Figura 5 - Algumas "itaquatiaras" do sítio arqueológico Pedra Lavrada (Fonte: Acervo do autor)

  • 21

    No âmbito da Arqueologia histórico-cultural, utiliza-se o termo “tradição” para

    expressar a correlação existente entre determinado grupo étnico e a cultura material. Aspectos

    individuais e históricos são levados em consideração, e as variadas leituras que possam ser

    feitas dos motivos tendem a ser feitas a partir do estudo particular para o geral, sem considerar

    a existência de um padrão de comportamento inerente a todos os grupos humanos

    (VASQUES, 2009). Nessa perspectiva, a tradição é tida como um horizonte cultural em

    determinada área, que era compartilhada por vários grupos humanos que ali viviam, sendo tal

    conceituação dividida conforme as técnicas e temáticas das pinturas.

    A tradição é dividida em subtradições3, que por sua vez são divididas em estilos.

    Martin (2003) cita em seus estudos, dentre outras, a subtradição Seridó, pertencente à tradição

    Nordeste, e as Itaquatiaras4, que guardam grande semelhanças com os grafismos encontrados

    no sítio arqueológico Pedra Lavrada, sendo compostas de gravuras de grande porte,

    insculturas sulcadas de modo profundo (baixo relevo), onde predominam motivos gráfico-

    geométricos, composições sinópticas que suscitam inúmeras interpretações. As gravuras

    assemelham-se às que são enquadradas na subtradição Ingá, por estarem situadas em local de

    ocorrência de cursos d’água. No entanto, há que se considerar a tradição Geométrica, na qual

    os registros podem ser considerados como “grafismos puros”5, visto não ser possível sua

    identificação a primeira vista.

    No sítio arqueológico Pedra Lavrada, grande parte das diversas e complexas

    inscrições, medem entre 3 a 7 milímetros de profundidade. No entorno do sítio, ainda no

    curso do rio, é possível visualizar cúpulas polidas, incididas em lajedo, que podem ter sido

    utilizadas para pilar grãos, macerar vegetais, modelar instrumentos, dentre outras atividades

    comuns no período pré-histórico.

    As pesquisas realizadas pelo geólogo Arnóbio Souza trazem importantes

    informações acerca da técnica provável utilizada para obtenção das gravuras encontradas no

    sítio Pedra Lavrada. Segundo o autor, foi a de picoteamento à percussão e posterior polimento

    (SOUZA, 2003). As inscrições, de grande complexidade, tem um grau de conservação

    satisfatório, não obstante os desgastes provenientes da ação do tempo e da erosão decorrentes

    dos períodos em que ocorrem grandes vazões no rio.

    3 Grupos desvinculados de uma tradição, com presença de elementos gráficos novos, em outra área geográfica e

    em condição ecológica diferente. 4 Segundo Gabriela Martin, “Itacoatiaras”, expressão que significa “pedra pintada” na língua indígena Tupi, são petroglifos que se apresentam em tamanhos e modos de fazer diferentes, tendo em comum motivos relacionados

    à fonte de água, dispostas geralmente às margens de rios (MARTIN, 1996, pp.266-267). 5 Grafismos cujos traços não permitem identificação imediata com uma representação de universo humano.

  • 22

    Outros sítios arqueológicos fazem parte do conjunto Seridó, como o Xiquexique 1 e

    2 localizados no município de Carnaúba dos Dantas-RN; e o Mirador, em Parelhas-RN. As

    pinturas rupestres do Seridó datam de cerca de 9 mil anos. Além do sítio arqueológico objeto

    do presente estudo, há de se referir também à existência de um sítio vizinho, denominado

    Riacho Verde, onde já foram encontrados fósseis do Pleistoceno da megafauna brasileira, isto

    é, animais de grande porte do período geológico compreendido entre 2,5 milhões a

    aproximadamente 11 mil anos, especificamente da Preguiça Gigante (Megatheriidae), bem

    como do “Tatu Gigante” (Pampatherium humboldti), identificados a partir de fragmentos de

    molariformes que foram coletados em um depósito do tipo tanque (SOUZA et al., 2003). Far-

    se-á referência a tal achado adiante.

    O geólogo ouro-branquense Arnóbio Souza, escreveu, em 2015, juntamente com a

    geógrafa Mycarla Lucena e o também geólogo Marcos Nascimento, um artigo intitulado

    “Caracterização da geodiversidade de um sítio arqueológico: potencialidades para o

    geoturismo e geoconservação”, o qual se reporta ao Sítio Arqueológico Pedra Lavrada. O

    objetivo do trabalho foi caracterizar referido sítio arqueológico, tendo em vista a ocorrência

    de elementos como serras, leitos de rios com afloramentos rochosos, com registros de arte

    rupestre nas rochas. Foram realizadas visitas in loco para a identificação geográfica da área,

    dos elementos geológicos, geomorfológicos, arqueológicos com os registros fotográficos, bem

    como os elementos bióticos (SEABRA, 2016).

    O estudo aponta tais manifestações como potencialidades para o desenvolvimento do

    geoturismo e consequente geoconservação desse ambiente natural, e foi apresentado no

    Fórum Internacional do meio Ambiente “Paisagens, solos e biodiversidade: desafios para um

    bom viver”, realizado na cidade de Santiago, Chile. O resultado foi a publicação em um livro,

    que servirá como referência para trabalhos sobre o tema em toda a América Latina.

    Durante todo o ano, o local onde está abrigado o painel principal das gravuras do

    Sítio Arqueológico Pedra Lavrada se mantém com água, que tem servido para alimentar o

    gado de criadores daquelas adjacências. O local é conhecido como “Poço da Raposa” ou

    “Poço da Moça”, de onde surgiu uma narrativa mitológica que será tratada mais adiante.

  • 23

    Figura 6 - Durante todo o ano, abaixo do painel principal se acumula água,

    que serve para o gado. (Fonte: Acervo do Autor)

    Figura 7 - É comum ver minas nas adjacências do Sítio Arqueológico. (Fonte: Acervo do autor)

    Muitas são as interpretações que podem advir da observação das inúmeras figuras

    encontradas e ainda a serem descobertas no Sítio Arqueológico Pedra Lavrada. As visões

    acerca dos motivos dos desenhos - a maioria deles círculos concêntricos, acompanhados de

    outras retas, ovais, triangulares, quadriláteros, etc, e, finalmente, figuras de homens e animais

    que possam estar encobertas pela areia -, podem corroborar com a ideia de Gabriela Martin

    (2008, p. 292) de que “É evidente que a maioria dos petróglifos ou itaquatiaras do Nordeste

    do Brasil, estão relacionados com o culto das águas. (…) É natural que nos sertões

  • 24

    nordestinos, de terríveis de estiagens, as fontes d’água fossem consideradas lugares sagrados

    (...)”. Apesar da suposição, o significado dos petróglifos, bem como o culto que possam estar

    vinculado aos mesmos não são conhecidos.

    2.2 SÍTIO ARQUEOLÓGICO PEDRA LAVRADA COMO UM LUGAR DE MEMÓRIA

    Quando se fala em preservação do patrimônio cultural do Sítio Arqueológico Pedra

    Lavrada, está-se diante de uma reflexão que se vincula à ideia da própria delimitação de um

    lugar de memória, na construção da identidade do povo que vive no seu entorno. Referidos

    conceitos estão interligados, sendo a memória uma importante fonte histórica para o estudo do

    passado.

    Os questionamentos que possam porventura vir à tona concernentes à importância

    desse patrimônio, como o porquê, quem o escolheu, e a quem interessaria tal preservação,

    devem ser respondidos a partir da informação, e desse modo se verificará que sua relevância

    advém de aspectos que vão além de sua raridade ou singularidade. Os estudos a serem

    empreendidos para o seu conhecimento podem ser transmitidos para a população do seu

    entorno, que pode apropriar-se das informações, enquanto destinatários por excelência da

    preservação.

    Percebe-se que a comunidade local ainda não vislumbra uma relação de

    pertencimento àquele patrimônio cultural, enquanto ideia de ancestralidade. Por isso, para a

    efetivação de estudos para sua preservação e posterior conhecimento mais aprofundado dos

    motivos ali presentes, deve-se entender a relação da comunidade com o seu território, tanto na

    dimensão social quanto na cultural:

    A noção de território é sempre norteada pela delimitação de espaços, que se

    efetiva em uma esfera de jogo de poder, entre elementos de uma comunidade

    e seus membros, com a outorga desse poder de delimitar, e ser reconhecida,

    uma determinada territorialidade, como é indicado por Bordieu (1989). Nesta delimitação entra em cena a aproximação feita por Bordieu (1989)

    entre identidade regional e étnica, que estão intimamente ligadas à

    propriedade, enquanto signos originários, que são referenciados pelo lugar, com seus sinais duradouros, que se vinculam como produtoras da identidade

    do grupo. Isto porque as regiões, paisagens ou territórios são produtos

    histórica e culturalmente determinados (CURY; FLORES e CORDEIRO JR apud BORDIEU, 2010, p. 249).

  • 25

    O processo histórico e a realidade sociocultural em que a comunidade rural Pedra

    Lavrada está inserida deve ser considerado, assim, como modo de se construir a sua

    identidade, ressignificando e dando um novo valor àquele espaço, que já guarda ligações que

    lhe são caras, entre passado e presente, marcando a paisagem em sua memória, entendida

    assim como o conjunto de experiências que estabelecem tal relação.

    A memória é contextualizada, visto mediada pela experiência, sendo possível sua

    atualização do ponto de vista histórico, sendo

    [...] uma representação produzida através da experiência. Constitui-se de um saber, formando tradições, caminhos – como canais de comunicação entre

    dimensões temporais -, ao invés de rastros e restos como no caso da

    lembrança. [...] A memória pode constituir-se de elementos individuais e

    coletivos, [...] possui a capacidade de instrumentalizar canais de comunicação para consciência histórica e cultura [...]. (DIEHL, 2002, p.

    116).

    O caráter simbólico que envolve a noção de memória faz com que esta se cristalize

    na memória coletiva, por meio de significados, representações, fluindo para a construção da

    identidade, não sendo mais tratada como monumento histórico. A cultura material é

    representada a partir da interação do homem com o espaço e tempo que o envolve, numa

    relação eivada de simbolismos, e cujo conhecimento pressupõe uma representação:

    Para representarmos alguma coisa não basta manipulá-la corretamente e

    utilizá-la com finalidades práticas. Precisamos ter uma concepção geral do objeto e considerá-lo de ângulos diferentes, a fim de descobrir-lhe as

    relações com outros objetos; e localizá-lo determinando sua posição em um

    sistema geral. (CASSIER, 1997, p. 31).

    O conhecimento prévio da representação, assim, para que haja o processo de

    ressignificação, parte dessa contextualização por parte dos indivíduos, fazendo com que a

    cultura material torne-se referência para o fortalecimento dos vínculos de identidade, fluindo

    no tempo por meio da memória. Para além da descrição das figuras contidas no sítio

    Arqueológico Pedra Lavrada, assim, existe a necessidade de reconhecê-los como registros que

    testemunham a ação e comportamentos culturais de humanos no passado, que podem ser

    conhecidos pelos estudos científicos já empreendidos e podem servir de referência, e outros

    mais aprofundados que possam ser feitos a partir de então, utilizando-se o instrumental

    teórico disponível, perseguindo assim o entendimento de quem as produziu, bem como o seu

    contexto sociocultural.

  • 26

    As informações contidas nas representações produzem discursos que podem ser

    reconstituídos sob a ótica histórica e antropológica, demarcando um ponto de partida da

    identidade, sem, no entanto, significar que os povos que as produziram tenham um passado

    comum com quem as observa. Mas o fato é que se trata de um mesmo espaço e tempo

    histórico que formam de modo mais abrangente um marco identitário.

    O lugar de memória, na formulação de Nora (1993), pode ser compreendido a partir

    do espaço físico, material, que serve como suporte para a formação de uma memória coletiva,

    imaterial. A busca pela memória, por parte da sociedade, mostra o quanto esta necessita do

    passado. Tal narrativa unifica o tempo, dando-lhe sentido. O passado, nesse contexto, é

    tratado como processo, e a necessidade de memória é uma necessidade da história. A

    sociedade necessita preservar sua memória, como forma de reconstituir-se a si mesma,

    preservando, para tanto, vestígios, trilhas, fósseis, tudo para a identificação do indivíduo com

    os lugares de memória.

    Assim, para que a comunidade que vive no entorno do Sítio Arqueológico Pedra

    Lavrada possa estabelecer a identidade com tal espaço, há que se identificar um nascimento,

    um ponto de partida, que possibilite vencer o passado dado, qual seja, aquele que é visto como

    inacessível, desligado dos indivíduos de modo definitivo, não havendo verdadeira memória,

    espontânea. A identidade, assim, só terá sentido a partir da reconstituição da memória: "Os

    lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é

    preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios

    fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são naturais" (NORA, 1993, p. 13). O

    que define o espaço como “lugar de memória”, nesse sentido, é o caráter simbólico atribuído

    pela imaginação dos indivíduos.

    O autor, como se vê, enfatiza a necessidade de ritualização da memória, mais

    especificamente uma memória-história no espaço denominado “Lugares de Memória”, que

    reunifica na contemporaneidade o indivíduo fragmentado. Tais lugares são ao mesmo tempo

    materiais, simbólicos e funcionais (NORA, 1993), e cabe ao historiador desvendar o que

    houver de obscuro, dizer o não dito.

    Para que a comunidade do entorno do Sítio Arqueológico Pedra Lavrada construa

    sua identidade com aquele espaço, é preciso que se aproprie e acesse o lugar de memória de

    modo compartilhado. Com isso, se favorece de modo fundamental a preservação do

    patrimônio cultural, diante da possibilidade de desaparecimento devido à degradação

    ambiental e extrativismo mineral. A perda do espaço físico, assim, traria como consequência a

  • 27

    fragmentação do simbolismo referido anteriormente, não podendo mais figurar como lugar de

    memória, tornando inacessível a memória-história.

    O Poço da Raposa é também conhecido como “Poço da Moça”, devido a uma lenda,

    ainda hoje repetida pelos mais velhos, de que uma moça de cabelos compridos encantava os

    homens, muitas vezes caçadores que por ali passavam, e que mergulhavam na água e

    desapareciam. Referida narrativa mitológica também compõe a narrativa identitária, temática

    que será refletida mais adiante. Recentemente, o autor da presente pesquisa, em visita ao sítio

    arqueológico Pedra Lavrada, oportunidade em que acompanhava o filósofo Túlio Madson6

    que buscava informações para a produção de um artigo, ante o mito descrito acima, e

    percebendo tal relato ser repetido pelos moradores do entorno; procedeu à observação do

    local, e tendo escolhido um ponto próximo ao painel principal das inscrições para promover

    uma escavação superficial, descobriram uma imagem dentre as figuras do painel principal um

    tanto curiosa e até então desconhecida. Trata-se de uma forma que se aproxima de uma figura

    humana, cujos pés estão em forma de cauda de um peixe.

    Figura 8 - Imagem que se aproxima de uma figura humana

    com uma espécie de cauda de peixe. (Fonte: Acervo do autor)

    6 Possui graduação em Filosofia (Bacharelado) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2009) e

    mestrado em Filosofia (2012) na linha de História e crítica da Metafísica pela mesma instituição.

  • 28

    Da observação da imagem, vê-se uma figura que se assemelha a uma cabeça com

    olhos, um tronco, e no lugar dos pés, uma espécie de cauda de peixe, que, por outro lado,

    pode também indicar os pés humanos propriamente ditos. É provável também que se trate de

    um peixe, visto o formato da figura, diferenciando-se apenas a espécie de braço à direta da

    imagem. Seja como for, acaso se comprove a semelhança com alguma criatura aquática, ou

    uma criatura com traços antropozoomórficos7, tal figura, singular perante todo o conjunto

    encontrado, reforçaria a ideia de que os indivíduos que as esculpiram teriam feito em razão de

    cultuarem a água, a exemplo de outros petróglifos (gravuras rupestres na pedra) encontrados

    em outros sítios no Nordeste brasileiro. No entanto, muito há de se estudar para que se tirem

    conclusões. Afinal, a imagem agora descoberta pode fazer parte de outras, componentes de

    acervo que estão soterradas sob o painel principal, pela ação da água que corre sazonalmente

    pelo rio e consequente depósito de detritos no local.

    Na contemporaneidade, a atenção dada ao patrimônio arqueológico no sítio em

    estudo se resume a uns poucos estudos de pesquisadores universitários e visitações de

    estudantes de ensino básico do município de Ouro Branco-RN, além de curiosos, sem, no

    entanto, tais ações representarem atitudes orquestradas com o objetivo comum de

    conservação. O próprio acesso ao local é difícil, com estradas vicinais sem manutenção, e sem

    qualquer sinalização.

    Ressalte-se que, bem próximo, existe o Sítio Arqueológico Riacho Verde, também de

    grande importância, onde, na década de 50, o antigo proprietário, conhecido como Celso de

    Alfonso, encontrou um fóssil de uma preguiça gigante em um tanque natural. O mesmo

    capitaneou uma escavação, demonstrando entender a importância do material contido naquele

    local. No entanto, somente parte da terra fora retirada, e lá foram encontrados ossos

    petrificados de uma preguiça gigante. Um pesquisador, chamado “Dr. Clerot”, levou a maior

    parte da ossada para o estado da Paraíba, e não se tem notícia de onde esteja o material,

    permanecendo no sítio algumas peças pequenas.

    7 Denominação dada a alguns Deuses egípcios por possuírem partes do corpo em forma de animais, ou seja,

    meio humanos e meio animais.

  • 29

    Figura 9 - Preguiça-gigante (Megatherium americanum).

    Figura 10 - Peças do fóssil encontrados pelo proprietário do sítio, na década de 50

    (Fonte: Acervo do autor).

    O antigo proprietário do Riacho Verde relatara acreditar na existência de mais fósseis

    no local8. Recentemente, chegou ao conhecimento da imprensa local que um grupo de

    estudiosos contatou a família para que autorizasse novas escavações9. Existem pesquisas em

    andamento, empreendidas pelos pesquisadores Cleberson Porpino (paleontólogo –

    Universidade do Estado do Rio Grande do Norte), Herminio Araujo Jr (paleontólogo –

    8 Entrevista concedida ao autor em agosto de 2006, gravada em fita magnética. 9 Maiores informações em: < http://lenilsonazevedo.com.br/arqueologo-da-uern-visita-sitio-arqueologico-em-

    ouro-branco-rn/> Acesso em: 20/04/2018.

  • 30

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Valdeci dos Santos Jr. (arqueólogo), dentre

    outros. O grupo de pesquisadores encontrou diversos materiais, dentre eles partes da carapaça

    de um pampatherium humboldti, uma espécie de tatu gigante, extinto há milhares de anos.

    Eles acharam outros pedaços do que podem ser ossos petrificados, como parte de um anfíbio.

    Todo o material que fora recolhido foi levado para laboratórios, nos estados do Pernambuco e

    Rio de Janeiro, o qual, após análise, será trazido ao conhecimento do público.

    Figura 11 – Reprodução do gliptodonte - mamífero extinto, membro da ordem Xenarthra (desdentados)

    família Glyptodontidae. ancestral do tatu), cujos restos, partes de sua carapaça, foram encontradas em escavação no Sítio Arqueológico Riacho Verde.

    O achado no sítio Riacho Verde, em Ouro Branco-RN, poderá representar um marco

    da paleontologia da região. Quanto ao fóssil da preguiça gigante, não se tem registro acerca

    do destino do material, e o pesquisador que foi até o local para recolhê-lo aparentemente nada

    deixou de registro a esse respeito.

    A partir da apropriação do lugar onde está contido o patrimônio arqueológico de

    Pedra Lavrada, este compreendido como lugar de memória, pode-se também refletir sobre o

    fato de ser tal patrimônio uma via de acesso capaz de oferecer novas perspectivas

    socioeconômicas à comunidade, através do turismo arqueológico, como será tratado

    posteriormente na presente pesquisa. O seu conhecimento, por meio de estudos pode, assim,

    oferecer apontamentos para construção de reflexões futuras, além de suscitar ações para a sua

    preservação.

  • 31

    2.3 PROTEÇÃO LEGAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL DE PEDRA LAVRADA

    A constatação da não existência de ações de preservação por parte do Poder Público

    é outro fator que põe em risco a própria existência do Sítio Arqueológico Pedra Lavrada, no

    município de Ouro Branco-RN. Os moradores da comunidade rural onde tal patrimônio se

    localiza, que leva o mesmo nome, apesar de não entenderem cientificamente a importância

    daquelas expressões, compreendem que foram elaborados por seres humanos no passado. A

    falta de informação, de identidade, concorrem para os riscos de destruição local, que serve

    como para descanso do gado, e de onde já se aproximam ações de extração da vegetação em

    seu entorno e de minerais subterrâneos em suas adjacências.

    Figura 32 - O desmatamento ocorre de modo acelerado nas imediações do

    Sítio Arqueológico Pedra Lavrada (Fonte: Acervo do autor)

    A adoção de ações para a conservação de referido patrimônio cultural por parte do

    poder público, a exemplo do tombamento legal e sua inserção no cadastramento dos

    geossítios para a criação do Geoparque Seridó10

    , pelo Serviço Geológico do Brasil – CPRM,

    dentre outras medidas, são urgentes e fundamentais, sendo objeto da presente pesquisa, o

    estudo no tocante ao conhecimento desse patrimônio cultural, aclarando informações que se

    fazem essenciais para a gestão e uso sustentável desse território e sua conservação.

    Nascimento (et. al., 2015) traz pertinente estudo acerca do Projeto Geoparques do

    Brasil que está sendo proposto pelo Serviço Geológico do Brasil – CPRM, no qual se insere,

    10 Far-se-á referência mais detalhada adiante.

  • 32

    de forma destacada, o Projeto Geoparque Seridó. Em virtude talvez da escassez de estudos e

    mesmo do desconhecimento a respeito da existência e complexidade do Sítio Arqueológico

    Pedra Lavrada, este ainda não faz parte dos 25 (vinte e cinco) geossítios cadastrados,

    conforme estudos técnicos e diagnósticos que embasaram tal proposta.

    No que toca à proteção legal, especificamente ao Patrimônio Arqueológico, a

    Constituição Federal de 1988 faz referência nos artigos 20, 23 e 216. Dentro da ideia de

    patrimônio cultural se inclui o patrimônio arqueológico em estudo, além de outras leis

    federais.

    O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que é o órgão

    federal competente para a proteção do patrimônio, publicou a portaria número 230 (2002), por

    meio da qual exige a implementação de programas de educação patrimonial desde o início dos

    trabalhos arqueológicos empreendidos com vistas à obtenção de licenças ambientais,

    justamente para garantir de modo eficaz tal proteção.

    A esse respeito, pertinente a formulação de Adler Homero Fonseca de Castro (2006),

    corroborando com o fato de que referida ação tem o intuito de impedir a destruição de uma

    coisa possuidora de valor cultural, e que

    [...] a proteção só pode ser feita pelo Governo, já que envolve,

    necessariamente, a interferência do Poder Público sobre uma coisa, por

    desapropriação ou pelo estabelecimento de limitações aos direitos dos cidadãos. Daí se depreende que o conceito de proteção ao patrimônio

    cultural é muito recente. [...], sendo uma medida revolucionária, por tratar

    não mais de direitos individuais, mas sim, coletivos. (CASTRO, 2006, p.

    101).

    O instrumento por meio do qual se materializa legalmente referida proteção é o

    tombamento, que oferece maior segurança ao bem, tirando-o da condição de algo “solto”,

    esquecido, e adquirindo, assim, uma segunda existência. Por meio desse mecanismo legal, o

    Estado estabelece um regime jurídico diferenciado na propriedade privada ou pública com o

    objetivo de proteger interesses históricos, paisagísticos e culturais de determinado bem.

    Seguindo a análise a partir do campo do patrimônio cultural, importante a menção à

    “Carta de Lausanne”11

    , carta patrimonial aprovada na Convenção do ICOMOS/ICAHM

    (International Committee of Monuments and Sites12

    ) da Organização das Nações Unidas para

    a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), produzida na Suíça, no ano de 1990, a qual

    11 Disponível em: Acesso

    em: 22/04/2018. 12 Tradução: Comitê Internacional de Monumentos e Sítios.

  • 33

    enuncia recomendações e princípios voltados para a proteção e gestão do patrimônio

    arqueológico. Em consonância com o objeto da presente pesquisa, pertinente a ideia trazida

    no artigo primeiro da Carta em comento, que o define como a porção do patrimônio material

    que engloba todos os vestígios da existência humana, em qualquer lugar onde houverem

    quaisquer atividades humanas, no subsolo ou sob nas águas, assim como o material a eles

    associados.

    Da definição ora colocada, depreende-se que as expressões nos mais diversos lugares

    que denunciam a presença humana na antiguidade devem ter proteção por parte do Estado,

    pelo seu valor cultural, e sua importância para a memória e também para a construção da

    identidade de um povo. O fato de haver risco iminente de perda do patrimônio objeto desse

    estudo diante de empreendimentos humanos na contemporaneidade, justifica a preocupação

    com a sua preservação, sendo um de seus instrumentos a atuação do Poder Público no sentido

    de prover meios para o devido cuidado.

    O Sítio Arqueológico Pedra Lavrada encontra-se numa área de Proteção Permanente

    (APP) que é, segundo redação da Lei nº12.651/12 (Art. 3°, do Código Florestal), área

    protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os

    recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo

    gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

    Referido dispositivo legal se baseia no princípio básico de garantia de um meio ambiente

    ecologicamente equilibrado, preservando áreas naturais, com rígidos limites de exploração.

    As atividades humanas empreendidas no entorno do sítio objeto do presente estudo

    vem causando danos ao meio ambiente. A degradação não afeta, desse modo, apenas os

    recursos naturais existentes naquele espaço. Todo o patrimônio cultural está em risco. As

    APP’s se destinam, assim, a proteger solos e as matas ciliares, prevenindo, por exemplo,

    assoreamentos dos rios, evitando alterações e garantindo a preservação. A lei em comento

    acaba por, naturalmente, proteger também o patrimônio contido no Sítio Arqueológico Pedra

    Lavrada, que se localiza no leito de um rio. Não obstante o fato de a exploração e degradação

    do meio ambiente avançar numa velocidade assustadora, a lei oferece ao poder público uma

    forte ferramenta para a sua proteção.

  • 34

    Figura 43 - Área de Preservação Permanente (APP) do Sítio Arqueológico Pedra Lavrada/RN.

    (Fonte: SOUZA; LUCENA; NASCIMENTO; 2016, p. 376).

    O Código Florestal atual, no seu art. 4º, inciso I, estabelece como áreas de

    preservação permanente:

    I - as faixas marginais de qualquer curso d'água natural perene e

    intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de:

    a) 30 (trinta) metros, para os cursos d'água de menos de 10 (dez) metros de

    largura; b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d'água que tenham de 10 (dez) a 50

    (cinquenta) metros de largura;

    c) 100 (cem) metros, para os cursos d'água que tenham de 50 (cinquenta) a

    200 (duzentos) metros de largura; d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d'água que tenham de 200

    (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;

    e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d'água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros; [...].

    As APP’s, como se pode observar, tem seus limites identificados quando às margens

    dos cursos d’água, variando entre 30 e 500 metros, a depender da largura do manancial.

    Infelizmente, a nova versão da lei citada considera somente o canal por onde passa a água

    durante o ano, e não o leito efetivo, quando atinge o seu nível mais alto (cheia sazonal), o que

    significou redução dos limites das APP’s, para aqueles que interpretaram tal dispositivo legal.

  • 35

    Além das áreas elencadas na lei, relacionadas ao meio ambiente propriamente dito,

    quando existe interesse social, o Chefe do Poder Executivo pode estender a proteção a sítios

    de excepcional beleza ou de valor científico, cultural ou histórico, como é o caso do Sítio

    Arqueológico Pedra Lavrada.

    No Brasil, a delimitação do patrimônio cultural, isto é, a competência para defini-lo

    como tal, é atribuída a políticas públicas que são como “’performances’ alegóricas

    dramatizando a busca de uma identidade em perigo” (GONÇALVES, 1996, p. 34). Assim, a

    preocupação com a preservação de dado patrimônio é latente somente quando existe o risco

    de perde-lo; senão, permanece do modo como se encontra. Assim,

    [...] só existe a preocupação de proteger alguma coisa se há risco de perdê-la.

    Sem risco, basta deixar que as coisas sejam como são. Mas então, a própria

    noção do que constitui patrimônio cultural de um povo deve vir da preocupação de que ele deixe de existir. (SILVA, 1996, p. 165).

    No âmbito municipal, a Câmara de Vereadores do município de Ouro Branco-RN

    aprovou, no ano de 2009, uma lei de tombamento de árvores por seu valor histórico,

    localizadas na zona urbana. Apesar de a lei se reportar à proteção de árvores especificamente,

    o seu artigo 3° estabelece que o poder público municipal deve instituir o “Livro de Tombo dos

    Bens Culturais”, sob a coordenação da Secretaria Municipal de Administração. Referido livro

    foi oficialmente instituído, e além das árvores, já foram tombados a “Casa da Oração” (Lei n°

    630/2010), considerada historicamente como morada do primeiro colonizador que se

    estabeleceu naquelas terras; os prédios do Mercado Público e da Prefeitura Municipal (Lei n°

    631/2010), e a Filarmônica Manoel Felipe Nery (Lei n° 742/2011). Referidas leis, apesar de

    utilizarem termos genéricos, representa um passo importante em vista da preservação do

    patrimônio cultural local, seja material, seja imaterial.

    No intento de se manter preservado o sítio arqueológico Pedra Lavrada, a proteção

    legal faz despertar o interesse público para um patrimônio dotado de características especiais,

    particularmente seu valor cultural, e que guarda, ainda escondidas, informações valiosas sobre

    o homem pré-histórico, e suas ações naquele espaço.

  • 36

    3 SÍTIO ARQUEOLÓGICO PEDRA LAVRADA: SOCIALIZAÇÃO DO

    CONHECIMENTO DE UM PATRIMÔNIO SERTANEJO

    A reflexão que será empreendida a seguir, tem por intuito mostrar que a exploração

    do Turismo Arqueológico ou Arqueoturismo e o Ecoturismo carecem de investimentos para

    que se tornem de fato conhecidas tais atividades, trazendo a tona o patrimônio arqueológico

    que “fala” muito sobre o passado da humanidade, que padece adormecido até sua descoberta.

    Antes, fundamental se faz a reflexão acerca desse patrimônio que está inserido no contexto do

    sertão nordestino.

    3.1 O PATRIMÔNIO SERTANEJO COMO ELEMENTO IDENTITÁRIO

    O sítio arqueológico Pedra Lavrada, está situado na zona rural do município de Ouro

    Branco, Seridó, estado do Rio Grande do Norte, no semiárido do Sertão nordestino. E quando

    se fala em Sertão, termo construído a partir de discursos de cronistas do período colonial do

    Brasil para definir o espaço territorial que fossem mais afastados do litoral:

    [...] parece ser um termo oriundo de desertão, de deserto: Não o deserto

    físico, mas o espaço onde há um vazio de súditos da Coroa portuguesa. Palavra talvez originada no século XV, sua etimologia é obscura, sendo seu

    primeiro significado talvez interior, ou seja, o espaço longe da costa. Um

    conceito que já aparece na carta de doação de Duarte Coelho. Apesar de

    sertão definir, inicialmente, o espaço continental afastado da costa, "a idéia de grandes vazios incultos e desabitados aparece como um dos elementos

    definidores da noção de sertão”. (SILVA, 2010, p. 112).

    Outros significados são atribuídos ao termo, mas quase sempre reportando à ideia de

    região não povoada, lugar desconhecido, que está distante do litoral, interior, e que não seria

    somente árido. É, portanto, uma definição que vai se moldando com o tempo, a partir de

    discursos diversos, levando-se em conta também a relação entre o sujeito e o sertão.

    Assim, as paisagens e recortes da realidade são decodificados por quem o observa,

    cuja presença/ausência de águas, matas e rochas permite que falemos de

    paisagens naturais (predominância da natureza) e culturais (predomínio da

    ação humana). Toda paisagem, firmada nas relações dos homens com a

  • 37

    memória e os seus sentidos, é cultural antes de ser natural, mesmo quando

    elementos da natureza tiverem preponderância em sua configuração. A ideia

    de paisagem, portanto, pressupõe um objeto de percepção da imaginação humana, projetado sobre a natureza e sobre a cultura, tendo como mediador

    o olhar e a cognição humanos. (MACEDO, 2007, p. 40)

    Dessa colocação, observa-se que as condições naturais do ambiente tem influência na

    experiência humana, e isso é fundamental para a compreensão do passado. A atividade

    pecuária no período colonial também delineia o processo de ocupação pelo homem branco da

    região do Seridó, onde se encontra o sítio arqueológico Pedra Lavrada. Um espaço que

    convive com a irregularidade pluviométrica, que fora no decorrer do tempo norteador de

    discursos políticos e governamentais para justificar a ideia de “problemas regionais”, atraso,

    apropriação feita com base na natureza e que acabou por gestar um imaginário social e

    simbólico condizente com tal ideia.

    A imagem construída sob justificativas ideológicas e naturalistas do sertão

    nordestino, especificamente do semiárido, era fundamentada no sofrimento consequente das

    longas estiagens, reforçando a ideia de região problema:

    Na relação da sociedade local com a natureza, compõe-se, portanto, conjunto

    de representações que norteiam as ações no espaço e a seu turno fundamentam as representações que as motivaram. Com a consubstanciação

    da região problema (o Nordeste), a elite política local obtém subsídios do

    governo central para o desenvolvimento regional, pautado: a) no reforço da

    estrutura fundiária e manutenção de lógica agroexportadora (inicialmente a cana-de-açúcar, na zona da mata, e, posteriormente, o algodão no sertão),

    nos meados do século XIX aos anos 1950 do século XX; b) em

    implementação de política de industrialização direcionada pela SUDENE, dos anos 1960 aos anos 1980. (DANTAS, 2006, p. 23).

    Para além desse sertão construído, constituiu-se também um lugar onde muitas

    significações que transitam entre a ciência e o senso comum, expressando uma valorização ou

    desvalorização da vida simples, diferente daquilo que se observou externamente, reforçando a

    ideia de diferenciação cultural e distância. Mas o sertão, como lugar de memória, detém uma

    capacidade de propiciar mudanças de suas significações, a partir dos olhares que sobre ele se

    lancem:

    A própria abundância e complexidade das denominações e qualificações do

    sertão semiárido é sintomática de que este é um campo rico em diferentes representações sociais, donde a suposta naturalização do termo não

    enfraquece o debate, constituindo-se, antes, em mais um dos seus problemas.

    Este espaço tem constituído o locus de interações frequentes entre arte e

  • 38

    ciência, sedimentando um tema recorrente do pensamento nacional em busca

    da nossa alma coletiva. Ao atrair o olhar e a reflexão acadêmica com

    surpreendente continuidade, o semiárido evidencia a potência narrativa de suas especificidades naturais e humanas no trabalho de compreensão do

    Brasil. (MACIEL, 2010, p. 214).

    Diante de tal reflexão, vê-se a necessidade de se compreender o patrimônio cultural

    como parte essencial, elemento que está ligado à comunidade, aos grupos sociais, e que

    pertence a um meio ambiente, perfazendo-se como um fator de entendimento da atividade

    humana. Assim, além de todas as ações do homem no tempo e no espaço sertanejo, o estudo

    do patrimônio arqueológico neste espaço específico, lugar de memória, tem papel

    fundamental na compreensão e contextualização, verdadeira mediação entre culturas de um

    passado ainda mais remoto do que o colonial e as atuais, por meio de interpretações que

    comunicam para o presente e para o futuro.

    O empoderamento desse patrimônio sertanejo pode levar a comunidade e estudiosos

    a contribuírem com a sua conservação, e possam assim sair de suas residências ou muros

    acadêmicos para conhecerem a sua própria história, sua cultura, dando condições para o

    desenvolvimento do turismo arqueológico e seus benefícios, como será retratado adiante. Daí

    nasce uma nova realidade, em que o sertanejo se depara com linguagens novas,

    ressignificando sua vida no espaço do sertão.

    O município de Ouro Branco, ainda na atualidade, tem como uma das principais

    atividades econômicas a pecuária. A valorização do patrimônio arqueológico existente na

    comunidade Pedra Lavrada pode, assim, significar também o surgimento de uma nova

    perspectiva socioeconômica para a comunidade, a exemplo do ocorrido no município de São

    Raimundo Nonato, no Piauí, onde a arqueóloga Niède Guidón descobriu vestígios

    arqueológicos, cuja descoberta desencadeou a criação do Parque Nacional Serra da Capivara,

    e deu importante contribuição para a compreensão acerca do aparecimento do homem

    americano (IPHAN, 2007). A atividade turística, consequente dessa revalorização, se torna

    fundamental também para a comunidade:

    Pela turistificação, atribui-se um valor aos lugares que quase ou nenhum

    valor possuíam antes; ou então, como no caso das cidades, agrega-lhe um

    valor complementar. Até a invenção do turismo, para que um lugar fosse

    cobiçado ou desejável, ele deveria possuir principalmente homem e sua produção, cidades, elementos naturais propícios para serem apropriados e

    valorizados, jazidas ou minas de minerais. (RIBEIRO apud ALMEIDA,

    2015, p. 58).

  • 39

    Há que se condicionar, assim, que a atividade turística se torne possível, como forma

    de valorização desse patrimônio sertanejo, que carrega traços da identidade de um povo,

    fazendo com que este se autoafirme, se conheça, com o que lhe é peculiar, ou seja, seus

    valores, símbolos, crenças, perante outras culturas ou povos. O papel da comunidade que vive

    no entorno do sítio arqueológico Pedra Lavrada é fundamental, eis que

    A história de um lugar turístico está associada às possibilidades de atividades

    que ele oferece. O turista pode querer frequentar tal ou tal espaço porque ele aí encontra um interesse, uma motivação. Todavia, sem o consentimento de,

    pelo menos, uma parte da sociedade local, nada é possível [...] O turismo não

    tem existência própria e sua dinâmica depende do jogo de atores – Estado,

    iniciativa privada, comunidade local e turista - que o inventam em um lugar escolhido para tal (SILVA; LIMA e ELIAS, 2006, p. 117).

    O patrimônio arqueológico, assim, deve ser antes de tudo compreendido pela

    comunidade, num processo em que a identidade vai se construindo a partir de então, e o

    arqueoturismo, com foco na valorização desse patrimônio sertanejo, aliado ao ecoturismo,

    vislumbram o desenvolvimento não somente econômico, mas sobretudo social e sustentável,

    [...] uma forma de lazer fundamentada na paisagem natural, no patrimônio

    cultural e no desenvolvimento social das regiões interioranas do Brasil. Tem como principal objetivo promover a compreensão integrada do meio

    ambiente em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo os aspectos

    naturais, socioeconômicos, culturais e éticos. De maneira bastante sintética,

    pode-se dizer que o Turismo Sertanejo se insere na categoria de turismo exótico, um misto de agroecoturismo, com ênfase na valorização da

    identidade cultural regional e na melhoria das condições de vida da

    comunidade local. (SEABRA, 2001, p. 113).

    Dessa forma, se mantém o patrimônio, fortalecendo a identidade da população, que

    vive no espaço que se convencionou chamar de sertão, no qual ambiente natural e sociedade

    concorrem para formatar esse tecido que fortificará a atividade de reconhecimento e

    valorização do seu patrimônio.

    3.2 SOCIALIZAÇÃO DO CONHECIMENTO

    Tem se observado que a Arqueologia vem ultrapassando o tempo histórico, deixando

    de certo modo o “estudo de antiguidades” para assumir o espaço e o tempo histórico em sua

    completude, alcançando a contemporaneidade (JORGE, 2000, p. 11). Nesse cenário, o modo

  • 40

    de ver do arqueólogo sobre o patrimônio cultural visa de modo preponderante a sua proteção

    perante ameaças, de grandes obras, por exemplo, ou, no caso do sítio Arqueológico Pedra

    Lavrada, que está localizado na zona rural do município de Ouro Branco-RN, do extrativismo

    vegetal e mineral que é feito de modo predatório e não sustentável, atentando contra sua

    própria integridade.

    Diante disso, antes que se inicie a discussão a qual objetiva o presente capítulo,

    necessário se faz chamar a atenção para a distinção dos conceitos de preservação e

    conservação, cujas conceituações interessam à proteção ao patrimônio arqueológico:

    Preservar um patrimônio significa proteger, resguardar, evitar que alguma coisa seja atingida por outra que lhe possa ocasionar dano [...]; preservar o

    patrimônio implica mantê-lo estático, intocado; conservar significa “manter,

    guardar para que haja uma permanência no tempo, [...] integrá-lo no dinamismo do processo cultural”. (BARRETO, 2000, p. 15).

    Como se pode apreender, o termo Preservar relaciona-se à manutenção do

    patrimônio em seu estado original, de forma a garantir que não haja alterações, ao passo que

    conservar significa sua manutenção no decorrer do tempo, por meio da qual pode se usar seus

    recursos de modo racional. Sendo assim, o que mais se mostra adequado no tocante ao objeto

    do presente trabalho é este último, visto que se vislumbra um patrimônio tangível àqueles que

    desejam estuda-lo, visita-lo, sendo necessário, para tanto, que se desenvolvam determinadas

    atividades, como o turismo, por exemplo.

    Importante refletir, também, que o que caracteriza um patrimônio arqueológico é a

    sua dispersão no espaço, sua possível ocultação ou aparecimento “inesperado”, o que mostra o

    quão complexo é tratar o que se vê no Sítio Arqueológico Pedra Lavrada como inventário

    arqueológico completo, isso considerando ainda o fato de ainda não se ter empreendido

    nenhum estudo mais aprofundado sobre o sítio. E aí reside a importância de sua conservação,

    para que a Arqueologia, um dia, possa fazer o seu trabalho de trazer a tona informações das

    materialidades ali contidas. Essa ação se faz como uma arqueologia preventiva, utilizando-se

    de métodos que possibilitem a identificação também daquilo que não esteja visível, os

    vestígios que possam ser analisados, registrados, e por fim protegidos, para que a própria

    memória seja preservada.

    A observação do inventário arqueológico ali existente deve ser feita em consonância

    com os aspectos ecológicos, no sentido de integrar a realidade e a comunidade envolta,

    levando-se em conta tal relação histórica, como potencial interpretativo, para que assim se

  • 41

    possa oferecer um entendimento dos processos de determinada manifestação cultural que

    advém dessa complexidade de fatores, que por seu turno oferecem múltiplos sentidos,

    decorrentes do meio ambiente, da heterogeneidade dos registros, das materialidades, enfim. A

    partir disso, se poderão comparar os processos evolutivos com outras regiões do planeta, nos

    diversos tempos históricos.

    Para além da ideia de que a Arqueologia estuda uma história local, um pequeno sítio,

    esta explica, em grande medida, a paisagem em seu conjunto. Nesse sentido, convém se falar

    no conceito de “patrimônios”, visto sua multiplicidade de sentidos, seja como patrimônio

    cultural, nacional, local, etc. Além disso, considere-se sua relação com a ideia de identidade,

    valores e memória dos indivíduos ou dos grupos.

    A ideia de patrimônio está ligada à ideia de herança, que pressupõe conservação,

    valorização e transmissão de certos bens, e se constrói a partir do olhar que sobre ele é

    lançado, dando-se assim a sua criação. O seu conceito é plural, e sendo ligado à identidade,

    deve ser acessado pelo conjunto das pessoas, estando a sua compreensão em consonância com

    a realidade ao redor, como já referido. Assim se poderão elaborar estratégias de futuro, a

    partir daquilo que foi deixado pelos ancestrais daquela comunidade.

    Cabe então lançar olhar sobre esse patrimônio sertanejo, que é o sítio arqueológico

    Pedra Lavrada, e toda a sua bagagem simbólica, e isso será possível a partir de uma ação

    interdisciplinar capitaneada pela Arqueologia, que caminha para sua mundialização. Tal

    ciência

    [...] recorreu cada vez mais a métodos de outras ciências (por exemplo, os

    métodos de datação absoluta passaram a ser utilizados de modo frequente);

    às preocupações estratigráficas, até então dominantes na escavação,

    sucederam-se perspectivas “antropológicas”, que levaram à escavação em área e à decapagem das superfícies em que, supostamente, as pessoas

    viveram no passado. (JORGE, 2000, p. 15).

    Assim, a Arqueologia torna-se um serviço público, com profissionais que a

    promovem com tecnicidade de um modo sem precedentes, ao mesmo tempo em que se

    evidencia não mais como um saber de exclusão, feito por poucos para um público limitado de

    pessoas, o que não se coaduna quando se fala em gestão da cultura, no momento em que se

    questiona para quem e com que objetivos seu trabalho é feito.

    Nessa perspectiva, entende-se que há que se alargar o leque de consumidores desses

    conhecimentos, não obstante o fato de se saber que existem distinções, que insistem por

    manter os instrumentos conceituais com uma minoria, que define, elabora os parâmetros dos

  • 42

    demais. Tratar-se-ia, assim, de uma economia de cultura em que diminui as possibilidades de

    alcance do grande público em detrimento da minoria, incorporando um papel de ator principal

    na observação, quando, na verdade, sendo a cultura uma expressão da sociedade, esta tem o

    direito de entende-la.

    As múltiplas manifestações culturais existentes devem se portar como propiciadores

    da cidadania, considerando-se o fato de muitos dos estudantes ou os cidadãos em geral não

    disporem de um processo educativo tal que viabilizassem a aquisição de competências para a

    sua plena inserção social. A cultura se adquire, assim, na mudança de atitude que busca o

    acesso à cultura, postura que carrega em si certa complexidade, pois exige também uma

    mudança de vida, processo que perpassa questões ambientais, sociais e econômicas ligadas ao

    território.

    Essa dinâmica se dá dentro da comunidade, que

    [...] só existe propriamente quando, sobre a base desse sentimento (da situação comum), a ação está reciprocamente referida – não bastando a ação

    de todos e de cada um deles frente à mesma circunstância – e na medida em

    que esta referência traduz o sentimento de formar um todo. (WEBER, 1973, p. 142).

    Assim, na comunidade Pedra Lavrada, bem como em suas adjacências, vive um

    grupo de pessoas, que residem numa área geográfica específica, e compartilham de costumes,

    tradições, modo vida, legado cultural e histórico, expressando, dessa forma, certa unidade. Ao

    se falar em qualquer ação que signifique desenvolvimento da comunidade, há que se

    considerar a realidade local, sua sustentabilidade, o desenvolvimento social da comunidade.

    O patrimônio arqueológico contido no sítio arqueológico Pedra Lavrada precisa ser

    estudado, identificado o seu conteúdo, antes que seja atingido por qualquer alteração

    proveniente da ação extrativista já operada em suas adjacências, pois caso contrário, apesar

    dos esforços que possam se empreender em torná-lo um lugar de memória, não se perfaz nem

    mesmo um recurso rico que é.

    Há, assim, que se promover um trabalho em que os indivíduos participem

    ativamente, expressando que compreensão tem do seu passado e da importância que este tem

    para si; do meio que os rodeia, e como tudo isso contribui para a organização da memória

    individual e coletiva. Só assim se conseguirá recuperar a variedade da experiência humana

    contida no sítio arqueológico em estudo, e os muitos aspectos da vida cultural, cujo

    conhecimento não parece mais próximo quando se espera pela ação do Estado.

  • 43

    A partir da participação dos próprios cidadãos, pode se propiciar o deslocamento de

    um profissional especializado em arqueologia para se fazer um trabalho mínimo, seja para

    transmitir conhecimentos acerca daquele patrimônio, ou mesmo para se promover o início de

    um levantamento dos bens arqueológicos ali contidos. Cabe a tal ciência, com as suas técnicas

    e formas de abordagens próprias, assim, revelar na maior integridade a história daquele lugar,

    bem como contribuir para a compreensão de como se constituiu a paisagem, produto histórico

    que é.

    É preciso que se atribuam significados ao espaço onde está inserido o sítio

    arqueológico objeto do presente estudo, uma consciência formada nos próprios indivíduos em

    relação àquele espaço