isolamento compulsório de portadores de hanseníase - memórias de isos

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  • 09/11/13 Histria, Cincias, Sade-Manguinhos - The compulsory isolation of Hansen's disease patients: memories of the elderly

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    Histria, Cincias, Sade-ManguinhosPrint version ISSN 0104-5970

    Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.16 no.2 Rio de Janeiro Apr./June 2009

    http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702009000200010

    ANLISE

    Isolamento compulsrio de portadores dehansenase: memria de idosos

    The compulsory isolation of Hansen's disease patients:memories of the elderly

    Selma Munhoz Sanches de CastroI; Helena Akemi Wada WatanabeII

    IAssistente social e ouvidora do Hospital Dr. Francisco RibeiroArantes/Secretaria de Estado da Sade de So Paulo. Rodovia WaldomiroCorrea de Camargo, km 63 13308-905 - Itu - SP - [email protected] IIProfessora do Departamento de Prtica de Sade Pblica/Faculdade deSade Pblica/Universidade de So Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 715 01246-904 -So Paulo - SP - Brasil. [email protected]

    RESUMO

    De 1924 a 1962 o Brasil utilizou a internao compulsria de pacientes de hansenase como controle da doena nacomunidade. Com o final dessa poltica, muitos pacientes continuaram a viver nessas unidades. O AsiloPirapitingui, hoje Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes, a nica retaguarda asilar para internao de portadoresde hansenase por indicao social. Obtivemos o relato da histria de vida de oito de seus remanescentes, queforam gravados e transcritos. A anlise temtica desses relatos permitiu a identificao das seguintes categorias:hansenase; internao; vida cotidiana; a instituio; condies atuais de sade; e permanncia na instituioaps a extino da internao compulsria.

    Palavras-chave: hansenase; isolamento compulsrio; histria oral; memrias; So Paulo (Brasil).

    ABSTRACT

    From 1924 to 1962, Brazil used compulsory internment of Hansen's disease patients as one of the ways ofcontrolling the disease in the community. After this policy ended, many patients continued to live in these units.The former Asilo Pirapitingui, now the Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes, is the only old-style asylum for thesocially determined internment of those suffering from Hansen's disease. Through recorded and transcribedinterviews of eight of those remaining, we sought to learn their history and the meaning of this isolation in theirlives. The thematic analysis of the discourse enabled identification of the following analysis categories: Hansen'sdisease; internment; day-to-day life; the institution; current health conditions; and staying in the institution

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    after the end of compulsory internment.

    Keywords: Hansen's disease; compulsory isolation; oral history; memories; So Paulo (Brazil).

    Nosso interesse pela histria de idosos deve-se ao fato de ela possibilitar a aproximao dos fatos pelaperspectiva dos sujeitos que os vivenciaram, em geral diferente daquela que nos passada pelos documentosoficiais. A institucionalizao de idosos tem sido objeto de nossa ateno h alguns anos. No estudo aquiapresentado, procuramos conhecer a histria de indivduos comuns que, tendo contrado hansenase, foramrecolhidos a instituies na juventude e na condio de residentes ali envelheceram - situao muito diferentedaquela de pessoas que s em idades mais avanadas so internadas, por motivos sociais e/ou de sade, comopobreza, fragilidade, incapacidade, dependncia ou abandono.

    Os indivduos aqui abordados foram internados em razo de sua doena, pois se imaginava que, segregando-os dasociedade 'sadia', a hansenase seria contida. Sendo seres biogrficos, buscamos nos aproximar das histriasdesses idosos que at hoje residem em uma das instituies que abrigava compulsoriamente hansenianos noestado de So Paulo.

    A hansenase doena conhecida h muito tempo, de evoluo prolongada e pode produzir deformidades eincapacidades se no for cuidada adequadamente. No Brasil atual, os doentes so tratados gratuitamente na redepblica. Entretanto ainda hoje, por diversos motivos, h dificuldade para a realizao do diagnstico de grandeparte de portadores da doena e para a adeso deles ao tratamento. Por questes relacionadas a sua prpriahistria, a hansenase ainda estigmatiza. A 'lepra', termo que denominou originariamente a doena, conhecidadesde tempos remotos, sendo citada na Bblia, e seu controle se deu inicialmente com o banimento dos doentesdo convvio social.

    Em So Paulo, a frequncia da hansenase foi grande desde os tempos coloniais (Maurano 1939, p.4), tendoaumentado em meados do sculo XX com o desenvolvimento do estado e o movimento migratrio. No Brasil, apartir de 1924, o governo federal decidiu assumir o controle da hansenase pela internao compulsria, com baseno pressuposto de que, retirando o doente das ruas ou estradas, estaria salvaguardando a sociedade sadia:"Ainda sem um medicamento especfico para a cura, o isolamento foi determinado como essencial, e tornou-semais importante que o prprio tratamento" (Cunha, 2005, p.4). O indivduo com suspeita da doena era caadopela Guarda Sanitria e isolado compulsoriamente em algum hospital-colnia, na poca conhecido como leprosrio(Auvray, 2005).

    De 1928 a 1933 foram construdos cinco asilos ou hospitais-colnia no estado de So Paulo: Santo ngelo, nomunicpio de Mogi das Cruzes; Padre Bento, em Guarulhos; Pirapitingui, em Itu; Cocais, em Casa Branca; eAimors, em Bauru. Neles os pacientes, privados de direitos bsicos de cidadania, eram vigiados, controlados egovernados por leis especficas. J entre 1933 e 1935, durante o governo Vargas, estabeleceu-se o PlanoNacional de Combate Lepra, que adotou o mtodo campanhista j utilizado no combate a vrias doenas Aprofilaxia da hansenase se baseava ento no trip leprosrios/preventrios/dispensrios, com investimentosprincipalmente nos dois primeiros. As trs instituies garantiam, respectivamente, o isolamento compulsrio detodos os casos, o controle dos comunicantes e o cuidado e educao dos filhos sadios de pessoas doentes(Cunha, 2005).

    Em 1940 surgiu a sulfona e nos anos 60, a rifampicina, o que possibilitou novo tratamento ambulatorial, comexames de contato, e a abertura das portas dos servios de sade, decretando-se paralelamente a extino daantiga forma de profilaxia. Os dispensrios ganharam, ento, importncia no controle da doena. Apesar dessesavanos, a internao compulsria s foi legalmente abandonada em 1962, quando cresceu o nmero depacientes ambulatoriais em servios de sade estaduais (Maciel et al. 2003). E em 1967, com o encerramento dainternao compulsria, a direo do Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL) do estado de So Paulo abriu asportas dos antigos asilos-colnia, com o intuito de permitir que o 'asilado' deixasse o hospital e optasse pelotratamento ambulatorial em centro de sade, o que significava seu retorno ao convvio social. Com odesenvolvimento da multidrogaterapia (PQT) na dcada de 1980, instituiu-se a alta por cura. Contudo muitaspessoas optaram por permanecer nos asilos-colnia em virtude de terem perdido vnculos com o mundo externo.Outras chegaram a sair, mas voltaram por motivos diversos.

    Segundo Ecla Bosi (1994), a recriao do passado feita por pessoas simples, testemunhas vivas da histria, diferente da verso oficial que se l nos livros. Conhecer a histria de vida de hansenianos que passaram pelainternao compulsria torna possvel apreender a viso dessas pessoas que foram isoladas da sociedade por umaao coercitiva do Estado. No estudo aqui relatado, buscou-se recolher um relato temtico desses idosos, no queconcerne histria pessoal de cada um deles e s consequncias do isolamento e preconceito sobre suas vidas.

    A pesquisa foi realizada com pacientes da antiga internao compulsria do Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes(HFRA), que ali continuam residindo. Situado no municpio de Itu, o Hospital foi fundado em 7 de outubro de 1932com o nome de Asilo Pirapitingui. Como as demais colnias da poca, equivalia a uma pequena cidade em que sedesenvolviam trabalho em pequenas indstrias, comrcio e atividades agrcolas, alm de outras instalaes.

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    Atualmente dividido em duas reas, a hospitalar e a comunitria, e nele vivem at hoje muitos remanescentesda internao compulsria. Tambm residem hoje, na colnia, famlias de egressos da internao compulsria, eocorre uma ampla discusso sobre a posse das casas e das terras desses hospitais-colnia (Morhan, 2005). OHFRA a nica retaguarda asilar para internao por indicao social em todo estado de So Paulo, conforme

    resoluo SS-130 de 8 de setembro de 2001 (So Paulo, 10 out. 2001).

    Metodologia

    Para conhecer a histria da internao compulsria por aqueles que a vivenciaram, utilizamos a tcnica de histriade vida que, segundo Dezin, citado por Minayo (1993), apresenta a forma como uma pessoa, um grupo, umaorganizao define e interpreta suas experincias. Essa metodologia possibilita o registro da vivncia, dasemoes e as memrias pessoais dos membros dessa comunidade. No estudo, optamos por conhecer a histria devida tpica, que d nfase a determinado aspecto ou etapa da vida pessoal ou de uma organizao (Minayo,1993).

    As entrevistas foram realizadas seguindo um roteiro e no prprio servio, em local e horrio de convenincia paraos idosos. Foram gravadas e transcritas por pessoa especializada. Posteriormente, com a leitura dos discursos,buscaram-se os temas de anlise. Segundo Bardin (1991), uma anlise temtica consiste em descobrir os ncleosde sentido que compem a comunicao e cuja presena e frequncia podem ter significado para o objetivoanaltico escolhido. Foram entrevistadas oito pessoas, que preenchiam os seguintes critrios de incluso: ter sidointernado compulsoriamente, ter sua capacidade cognitiva preservada e concordar em participar da pesquisa.

    O protocolo de pesquisa foi submetido ao Comit de tica em Pesquisa da Faculdade de Sade Pblica - OFCOEP/152/04 - e por ele aprovado. Os idosos foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa, a metodologiada pesquisa e seus direitos. As entrevistas foram realizadas aps a obteno de seu consentimento livre eesclarecido.

    Resultados e discusso

    Foram entrevistados oito idosos entre 59 e 83 anos de idade, internados compulsoriamente quando tinham amdia de 15,3 anos de idade. Como se pode observar no Quadro 1, quase todos eram muito jovens quandoingressaram no Hospital.

    Pela anlise dos relatos, evidenciamos as seguintes categorias:

    - Hansenase: diagnstico da doena; reao da famlia e amigos; representao da doena;

    - Internao: histria; significado do isolamento;

    - Vida cotidiana: vida regulada; travessuras e transgresses; trabalho; famlia; lazer;relacionamentos;

    - A instituio: organizao social; antes e hoje;

    - Condies atuais de sade;

    - Permanncia na instituio aps a extino da internao compulsria.

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    Hansenase

    Nessa categoria agrupamos os discursos que incluam as subcategorias diagnstico da doena, reao defamiliares e amigos diante dela e o que significa ter a doena, como este testemunho: "Comeou com mancha,mas eu sempre tive mancha desde criana, mas no era considerado doena, porque ningum entendia. E eucomecei a me ver com mancha e instantaneamente eu procurei internao" (E8).

    Outro depoimento mostra o conhecimento que a paciente tinha da doena e a procura por profissional de sade:"De repente eu me senti diferente, meu Deus; eu no me senti bem de uma noite para o dia, sem dor e sem nada,mas eu resolvi e fui embora para Campinas, onde eu reencontrei uma amiga, a X ... era ento chefe do Posto deHansenase" (E8).

    Algumas famlias ocultaram o diagnstico da doena para manter os pacientes no convvio familiar, pois a famliapoderia ser penalizada por ter um doente em casa: "Mame achou mancha na minha perna, mas no falou nada.Naquele tempo, se soubessem que tinha algum com a doena, eles denunciavam. Meu pai tinha armazm e tinhafregueses ricos, fazendeiros de caf; no podiam saber que eu era doente" (E3).

    O paciente E4 relata que, aps o diagnstico, perdeu vnculos afetivos e sofreu rejeio por parte dos familiares,que at hoje no o visitam. interessante notar que o entrevistado busca justificar esse fato.

    Sobre a minha famlia, a minha me estava aqui, e o meu pai se separou da minha me porque minhame era doente, e ele tinha muito medo da doena. Mas a minha famlia, todos me querem bem, eeles no vm aqui porque talvez eles achem muito triste isso aqui, entendeu? ...

    A psiquiatria era cheia, tinha gente importante que era largado aqui, e a famlia nunca mais vinhabuscar.

    Outra paciente informa que ocultou o fato de ser hanseniana durante um tempo, que se internou e sua famlia noa procurou. Note-se que sua famlia a recebia, desde que no ficasse em definitivo com ela: "Eles nuncasouberam, nunca procuraram e tambm nunca contei. Aps muito tempo que eu estava aqui, uns anos, eu resolviprocurar a minha me, a eu fui visit-los. Eu fui bem recebida, mas desde que no fosse ficar com certeza. Metrataram direito, mas visitar aqui a mim, nunca vieram, mas eu ia visit-los" (E8).

    Visitas tanto de familiares quanto de amigos no foram relatadas, apesar de haver referncias a envio de roupase ao fato de os amigos ficarem 'sentidos':

    Minha me me mandava vestidos e pedia para eu repartir com minhas amigas. Adorava ficar bonita(E3).

    Os amigos todos ficaram sentidos, porque eles eram muito bons pra mim, como eu era bom pra elestambm (E2).

    A hansenase era doena temida e, por ser contagiosa, a famlia separava ou at se desfazia de objetos dosdoentes, desinfetando tudo e, assim, demonstrando o desconhecimento e o preconceito: "Mame tinha umaempregada que no podia saber da minha doena, ento ela separava tudo rosa, prato, copo talheres para mim efalava que era porque eu chamava Rosa. Papai mandou queimar tudo que pertencia minha irm e meu irmo,mandou fazer uma limpeza geral e desinfetar at o quintal com criolina" (E3).

    Os pacientes escondiam sua condio de doentes:

    Eu sempre trabalhei, chegava num posto de gasolina e trabalhava, mas eu no podia ser registrado,porque eu no queria me identificar como hanseniano ... (E4).

    Bem l embaixo eu a vejo [uma amiga, que profissional de sade] e eu fingi que eu no a conheci.Eu estava com vergonha, meu cabelo no estava penteado, eu tinha tranas, eu estava cansada,aquele p inchado, e eu atravessei por uma rua, e eu falei: 'agora eu subo pela outra calada edesapareo' (E8).

    O medo de contgio levava ao isolamento social da famlia do doente e ao extermnio de animais que sassem dacolnia:

    L fora o preconceito era muito grande, quando aparecia a doena em algum, amigos e vizinhos nochegavam perto da famlia. Meu pai no podia entrar nem em armazm. Era horrvel e muito triste.Toda [a] famlia era malvista e precisava fazer exames de cinco em cinco meses (E7).

    Porque naquele tempo eles no queriam que ningum sasse. Ah, tinha uma coisa: quando entravaalgum cachorro ou gato, eles atiravam no cachorro ou no gato, porque eles falavam que levavadoena l fora (E8).

    A internao

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    Na categoria Internao foram includos os discursos que abordam, alm do histrico, o significado que essainternao teve para os pacientes.

    Em relao histria da internao, verifica-se que alguns ficaram com suas famlias at que a necessidade detratamento os obrigaram internao. Outros procuraram o servio de sade por conta prpria, pois, com acentralizao do tratamento no DPL, a nica forma de os pacientes serem tratados era recorrendo ao rgooficial (Monteiro, 2003): "Eu fiquei em casa at sete anos, mas descobriram com quatro anos ... Com sete, papaime levou na Inspetoria, porque comeou a aumentar; me levou para fazer exames. Descobriram que era mesmo,os exames deram positivos. Me deram remdio por via oral. Tinha um remdio chamado leo de chamogra. Fiquei[em casa] at os dez anos" (E3).

    O paciente E1 relata ter sido obrigado e ludibriado. A internao algo to marcante, que passados quasesetenta anos, ele ainda se lembra da data exata da ocorrncia:

    Eu tinha 12 anos. Quando fui internado neste hospital era 27 de outubro de 1938. Eu vim para cporque era obrigado. Eles caavam a gente, e no tinha tamanho. Se os doentes fugissem, elespunham os guardas atrs. ...

    O dr. X falava que em seis meses eles curavam a gente. A chegava aqui, naqueles seis primeirosmeses se atirava no tratamento com f e coragem. Chegava seis meses, mais seis meses, at que osujeito chegava concluso que daqui no saa mais. E no saa mesmo.

    No depoimento seguinte, a paciente relata com detalhes o processo de sua internao.

    Aquele hospital onde abrigava pessoas que estavam com tifo e bexiga, uma doena muito grave,muito contagiosa. E dormi em Campinas, no necrotrio; colocaram uma cama l, colocaram umcaixote, uma vela e uma caixa de fsforo, para eu poder acender noite, mas eu no acendia, eufiquei na escurido. E banho no ... nem banho, nem mictrio, nem nada, era s mato ainda ... . A euesperei no dia seguinte o dia todo, e neste dia eu jantei, arroz, feijo, bife, salada de alface e umpozinho; comi, comi que s vendo, de tanta fome ... . No dia seguinte foram me buscar. Naqueletempo tinham uns carres pretos, feios, mas para mim foi um automvel com diviso, motorista eajudante para frente e eu l para trs, para no ter contato; foi onde que eu cheguei em Pira noite(E8).

    Ser deixada em um necrotrio sem luz, banho e sanitrio, a aguardar a viatura que a levaria para o hospital,mostra como a doena era temida e os doentes eram desconsiderados em sua dignidade. Insinua tambm oprocesso de desligamento da pessoa doente da sociedade, tal qual ocorria na Idade Mdia, com a 'missa dosleprosos', em que era declarada sua morte civil (Cunha, 2005).

    Para alguns, como Auvray (2005, p.42), "a instituio era uma bno que os livrava do desprezo, dadiscriminao e do abandono" e possibilitava o acesso a alguns servios pblicos que lhes eram negados, bemcomo socializao e constituio de famlia:

    E eu internei no Santo ngelo. E l fiquei, gostei de l, porque eu no podia ir na escola porque eradoente. Quando eu internei, eu podia ir na escola, tinha bastante menina, e ento eu me conformeilogo com a separao da famlia, porque l [fora da instituio] vivia muito reprimida ... . No hospital,eu ia na missa de manh ... Tinha reza, escola, toda a meninada junta. Dormiam quarenta meninas,todas em um quarto: meninas de oito, de 12 anos, todas em um dormitrio s. Eu fui crescendo, fizteatro, costura e vim pro Pira, trabalhar em uma pea de teatro ... o Pira parecia uma cidade; sempreeu tive vontade de morar numa cidade, porque eu sempre morei no interior, na zona rural ... (E3).

    Eu estudei, fiz at o quarto ano aqui dentro. Era para mim fazer depois em Itu, mas eu no pude ir.Ento fiquei s com o quarto ano. Mas foi bom para mim esse estudo ... (E2).

    Aqui ramos considerados gente, com direitos de escolas, lazer. Tinha professor de francs, o doutorOscar, que era maravilhoso. O doutor Danilo Cunha, quando terminava as consultas, tocava pianopara ns no prdio do cassino (E7).

    e agora, depois que eu casei, eu fiquei aqui e estou at agora aqui. Isso aqui, para mim, sempre foibom, sabe, eu no tenho reclamao de nada aqui. Para voc ver: eu tenho tudo aqui dentro, tenhoum emprego. O que voc quer mais? (E4).

    Mas tambm representou dificuldades, sofrimento, cerceamento da liberdade:

    Agora, para sair, at o clube, tinha sempre um guarda acompanhando ns. O cinema, a mesma coisa.Ento, foi uma vida muito difcil para ns aqui, at melhorar mais. Sofremos bastante. A minha vidaera muito boa [antes da internao]. Viajei bastante. A fiquei preso aqui dentro. Ah, eu sofri! Sofribastante por causa disso. ...

    E era uma ocasio muito difcil, aqui no hospital, antigamente era muito difcil. Era tudo preso. A genteno podia sair. Ficava para fazer um servicinho assim, os guardas ficavam junto com a gente. E para... sair no tinha licena; eles pegavam um jipe e levavam at a estao de trem, para ver a gente

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    (E2).

    A internao representou tambm o encerramento de projetos e sonhos:

    Eu tinha uma casinha que eu tinha montado, que eu pretendia me casar, e eu desmanchei e venditudo, e acabou tudo (E8).

    Eu tinha muita vontade, como meu pai tinha uma fazenda, de ter sido fazendeiro (E2).

    Minha paixo agricultura. Se eu fosse de sade, eu teria formado em agricultura (E1).

    Vida cotidiana

    Na categoria Vida cotidiana, temos os discursos relacionados ao dia-a-dia dos residentes, regulao e aocontrole exercido pela instituio, as travessuras e 'transgresses' que alguns praticavam e suas consequncias,o trabalho, a constituio de famlia, o afastamento dos filhos e as atividades de lazer e cultura.

    De acordo com Goffman (2005), em uma instituio total, qualquer que seja a atividade desenvolvida por umindivduo, ela acompanhada por outras pessoas, que so tratadas de igual maneira e incentivadas a realizar,juntas, as mesmas coisas. Assim, as pessoas so foradas a viver em constante coletivo.

    Os idosos informam que a vida cotidiana no HFRA tinha normas, como em toda instituio fechada. No interior dacolnia havia uma guarda e uma delegacia, que controlavam o cumprimento das normas, e uma cadeia, paraaqueles que as transgredissem.

    Outra coisa: a gente tinha que apagar as luzes s nove horas ... Se eu quisesse conversar com acolega, eu tinha que falar com o guarda. ...

    Eles eram severos; era poca da ditadura1 ainda, e a gente no podia namorar. A, como que fazia?A gente ia l na delegacia, dava o nome do namorado; se desistisse do namoro, ia na polcia dar [o]nome (E8).

    Tinha o Parlatrio, que eram trs muros que separavam o doente da visita. O guarda ficava passandono meio para ouvir a conversa (E3).

    Tendo ingressado muito jovens na colnia, alguns ainda faziam travessuras, como esta: "Quando abria a sirene[do horrio do almoo], os urubus vinham tudo, enchia de urubu ali, e tinha uma molecadinha... a gente eramenor ... pegava o urubu e pintava ele de branco para ver o que fazia ele, soltava ele com uma fita vermelha, eratudo mansinho ..." (E4).

    Todas as colnias tinham um poder policial e puniam os residentes que trangredissem suas normas internas.Qualquer desobedincia s regras era punida, e a falta mais grave era a tentativa de fuga (Monteiro, 2003).

    Ento, na nossa sada daqui para fora, ns amos na troca de guarda. Na hora que eles iam trocar, agente saa e s ... voltava no outro dia, na troca de guarda novamente; a gente entrava por debaixoda cerca (E4).

    Os guardas me pegaram, a eu no quis fugir mais no. Porque eu podia ser preso, e a priso aqui eraduro. Caa na cadeia e no saa to fcil no. Era judiado dos guardas (E2).

    A cadeia, eles matavam, no judiavam. Matavam a paulada, a bordoada. Fizesse o que fizesse. Se[se] rebelasse contra eles, pronto (E1).

    Na cadeia tambm tinha mulheres. Elas fugiam porque tinham saudade da famlia (E3).

    Um problema da poca era o consumo e contrabando de bebidas alcolicas, proibidas nas dependncias dacolnia.

    Beber ento, no podia nada. Nem entrava bebida aqui (E2).

    Pinga naquele tempo seria como se fosse hoje droga ... . Porque a pinga nunca fez bem, n? Eu iabuscar pinga com ele [colega], mas eu ia com medo, e se fizesse alguma coisa a gente ia preso ... .

    Tinha um lugar que chamava... deram o nome Sombra do Boi ... tinha cada eucalipto enorme ... entoos caras ficavam ali com as garrafas de pinga... . Hoje as drogas, mas naquele tempo era s pinga.E dormiam por ali mesmo, e tinha uns que vinham buscar almoo e outros que vinham buscar pinga.Ento tinha uma estradinha que chamava assim, Bar da Alice, e Bar do Z Guarda, s o Z Guardaque tinha, tinha dois bares s, ento a gente pulava para aquele, e era um bananal aqui, tinha muitacoisa, que nem as minas de gua (E4).

    Considerado atividade importante para os pacientes, o trabalho representava fonte de renda para eles - as

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    chamadas etapas -, fonte de alimentos para os residentes da colnia e estratgia para cobrir a falta defuncionrios na instituio.

    Fui trabalhar no almoxarifado da Caixa [Beneficente]. Virei escriturrio. Escrevia, tinha mo boa.Trabalhava no escritrio (E1).

    E esses tijolos aqui, foi tudo feito na olaria pela mo dos hansenianos. Como era trabalhador o pessoaldaquele tempo, n? As ruas no eram asfaltadas, era tudo pedregulho, mas no tinha uma sujeirinhana rua ... Tem at uma pessoa, que est viva at hoje, ... ele gostava de varrer a rua, ele fazia umavassoura de bambu com o cabo comprido, ele jogava para l e para c, o lixo ficava sempre nalateral; e depois vinha outro com a carroa e com cavalo (E4).

    Trabalhei com trator - que minha profisso -, caminho, ambulncia. Porque naquele tempo notinha o pessoal para trabalhar; eram os doentes. Naquele tempo, aqui era uma fazenda. Tinha gado,tinha horta, plantao, canavial. Tinha uma fbrica de ladrilho. E eram os prprios pacientes quetrabalhavam. Mas eu ajudava aqui na fazenda com gado, tirava o leite, criava porco. ...

    Ento, eu tomava meu medicamento e ia para o servio. Trabalhar tambm, porque naquele tempoquem podia trabalhar tinha que trabalhar. Porque no tinha funcionria de sade aqui dentro. Quemno podia, no trabalhava. Mas tinha uns que no podiam trabalhar mesmo, eles eram estragados dadoena. Ento ficavam na enfermaria, presos l. Agora, quem podia trabalhar, trabalhava. ...

    Tomei conta da psiquiatria, trabalhei de enfermeiro, ajudei muito os mdicos tambm. Antigamenteeles precisavam, os pacientes precisavam tambm (E2).

    Todas as verduras que ns consumamos no refeitrio, era tudo produzido aqui mesmo; ns, oshansenianos mesmo que faziam (E1).

    Na subcategoria Famlia, inclumos os discursos relativos constituio de famlia por casamento e nascimento defilhos. O casamento possibilitava a mudana para uma das casas e um pouco mais de privacidade. Entretanto aoenviuvar, a pessoa voltava a viver nos dormitrios:

    Quando casei pude ir para uma casa. Todas as casas tinham jardim bonito, pomar. A minha tinhaflores lindas e uma parreira de uvas farta (E7).

    Quando casei fui morar na olaria; meu marido trabalhava l. A gente depois construiu uma casinhafora da olaria, mas meu marido morreu. Precisei entregar tudo e voltei a morar com a mulherada outravez, s eu e a roupa do corpo (E8).

    A relao com os filhos era muito distante. Ao nascer uma criana na colnia, o Departamento de Profilaxia daLepra (DPL) era comunicado e a criana, levada para outras instituies. Os menores infectados como os adultoseram internados nas instituies asilares. Os filhos sadios eram levados para espaos que tinham papelpreventivo, os preventrios. L a criana deveria ser examinada periodicamente, pois tivera contato com adoena, por ser filho de um doente. Houve um grande nmero de menores abandonados pelos parentes, devido aoestigma e ao medo do contgio.

    Uma paciente informou que voltou a encontrar a filha dois anos aps o parto, em uma visita curta esupervisionada. As visitas, ilustram os discursos, eram de fato muito poucas e breves. Apenas uma dasentrevistadas informa ter mantido o vnculo com as filhas, que foram levadas recm-nascidas para o educandrio.

    Se nascesse alguma criana aqui, j era levada embora e no via mais. Aconteceu com bastantegente aqui (E2).

    Tinha uma, a Bernadete, com sete e a Maria Luiza, com oito, ento eu pedi que fossem as duasjunto. Dependendo do departamento, ia para Jacare, em outro educandrio, e [de] l, com 13 anos,ia para outro lar, em Jacare mesmo (E8).

    Depois que casei fui morar num cmodo e tive duas meninas aqui no hospital. Quando nasciam osfilhos, eles levavam para a creche. Era triste... eu tinha pesadelos todas as noites, que estavamlevando elas embora. Uma foi para Santa Terezinha, a outra para Jacare. Eu lutei muito para deixaras duas juntas e consegui (E6).

    A vida na colnia possibilitava a participao em atividades culturais e de lazer:

    Festas religiosas, tudo que se diz de festa, como se diz, shows, tinha o doutor Ribeiro Arantes e aesposa dele. Ento eles organizavam shows, convidavam os artistas; durante o dia podia deixar oservio para assistir show (E8).

    Eu jogava futebol, tinha corrida de bicicleta, jogo de bocha, de malha; tinha quatro dias de carnaval,podia danar vontade, s que com muito respeito (E2).

    Aqui tinha concurso da rainha da primavera, da festa junina, do carnaval. Dia primeiro de maio era

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    muito comemorado (E7).

    interessante notar que os prprios residentes tambm faziam apresentaes de teatro e de msica:

    Eu fui crescendo, fiz teatro, costura e vim pro Pira, trabalhar em uma pea de teatro (E3).

    Eu era bom no violo tambm, entendeu, ento ns tnhamos esse conjunto. A doutora Z gostavamuito de festa. Ento eu estava na enfermaria, e ela falava: "Voc tem que tocar", E eu fui de pijamatocar. Quando abriu o cenrio, que abriu as cortinas, eu de pijama, manja... . Mas era assim mesmo,ns ramos tudo internos mesmo, ento no tinha problema (E4).

    A instituio

    Pelos discursos podemos verificar que inicialmente a organizao social da instituio repetia em parte a dasociedade em geral. As diferenas de classe social se mantiveram na colnia, com alocao de pacientes empavilhes diferentes segundo esse critrio. Podemos verificar tambm que os doentes perderam outros direitos decidadania, alm da liberdade de ir e vir:

    E no abriam a porta [do cassino] enquanto no vinha o pessoal considerado gr-fino, moas lindasmoravam aqui nos pavilhes, e bem de vida. E os casais que moravam nas colnias, tudo cheio denove-horas, tudo gr-fino... Ento, quando ns chegvamos no abriam a porta. Quando vim para c,eu tinha s um vestido no corpo e outro embrulhado. A me falaram que tinha dois pavilhes: um rosae outro azul, que eram de mulheres ricas. Elas davam roupas, eu fui pedir. Me deram dois vestidos.Tinha lugar que ficavam os bem doentes, cheiravam mal, era chamado de ferro-velho e arca de No....

    Eu vim para c no tempo em que doente no votava porque no era considerado cidado. Depois,sim, deram aposentadoria e direito de voto (E8).

    Na categoria Antes e hoje, inserimos as falas em que os residentes informam, com certo saudosismo, como acolnia era poca de sua juventude - estrutura, servios existentes, tratamento de sade - e a fartura, emcontraste com os dias de hoje.

    Naquele tempo o hospital era uma cidade. Era lindo! Tinha lojas, vendas, farmcias. Ns comprvamostecidos para fazer vestidos e roupas. Levava na costureira. Quem no tinha dinheiro, a costureira doHospital fazia. Para ir aos bailes eu mandava fazer os vestidos longos. E no carnaval costumava fazerfantasia (E3).

    O prdio do cassino tinha uma escadaria de mrmore. O salo da biblioteca tinha trs paredes dearmrios com livros e uma mesa quase do tamanho do salo, cheia de jornais e revistas para ospacientes. O tapete era enorme, um espelho, uma saleta para as senhoras esperarem o filme. Tinhauma estao de rdio, e no poro do prdio era a imprensa. A sorveteria tinha muitas mesinhas e nabombonire, caf, leite e salgadinhos. Esse prdio em que ficava o cassino, o cinema, o teatro, que hoje a lavanderia, era todo rodeado de flores, a maioria rosas; era encantador. Mais tardeconstruram um salo de festas ao lado do cassino, todo de madeira colorido. Foi meu marido quempintou. Os abajures eram de peneira de taquara colorida (E8).

    Tinha tanta fartura que eles faziam cerca com bacalhau; a cerca que no tinha como ir para a rua...bacalhau seco. Ento, era a fartura que ns tnhamos (E4).

    Eu gostava de ir no leilo, eles leiloavam porcos, galinhas, roscas. Eu ajudava a fazer as roscas. ONatal era farto. Eles mandavam bandejas de tudo. Enfeitavam por todo o lado (E5).

    Condies atuais de sade

    Os residentes informam tambm sobre as mudanas fsicas ocorridas na instituio: o fechamento de todas asfbricas que existiam no local, a demolio de prdios e a modernizao de outros: "Chegou uma poca aqui, eulembro, que comeou a derrubar essas casas a. Eu fiquei at muito aborrecido, que eu morava ali embaixo, narua... travessa Rio Claro. O centro cirrgico que ... est desativado h muitos anos, aquele prdio do meio, de umlado era das mulheres, do outro lado era dos homens e no meio era o centro cirrgico, e eu fui operado vriasvezes" (E4).

    Atualmente as condies de vida e tratamento contrastam com o vivenciado antes . Esses remanescentes dacompulsria esperam do Estado a continuidade dos 'benefcios' que recebiam: alimento, material de construoetc.: "O tratamento aqui est bom. S tem uma coisa que est errada aqui, que a gente no acha que estcerto. s vezes precisa de um medicamento e no tem, tem que comprar. Eles davam aqui muita coisa, agoraest faltando. At alimento eles no do mais. s vezes voc vai no mdico e aquele mdico no vem, tem quemarcar outro dia; de maneira que est um pouco difcil aqui" (E2).

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    As condies atuais de sade esto relacionadas incapacidade e dependncia. Vrios estudos tm demonstradoque a noo de sade e de doena para os idosos est associada, principalmente, a sua capacidade funcionalpara o desempenho das atividades cotidianas (Gordilho et al., 2000). A esse respeito, cabe lembrar que ascomplicaes neurolgicas e circulatrias da hansenase so muito incapacitantes.

    Agora no vou mais missa, no d; minhas mo no empurram mais a cadeira de rodas. Antigamenteeu escrevia palavras cruzadas, agora isso no d mais para eu fazer. A gente vai ficando cada vezmais velho, mais baqueado (E1).

    Ento eu tenho defeito fsico na mo, sem ter positivo. Agora [estou] com a perna amputada (E8).

    Uma idosa que teve uma perna amputada, ao ser indagada se seria uma sequela da doena, informa que a causada amputao foi um cncer e no a hansenase: "Estava me dando cncer, tinha um mal no p e estava criandocncer, da no tinha circulao, no tinha nada" (E8).

    Permanncia na instituio

    A categoria Permanncia na instituio aps o fim da internao compulsria revela algumas justificativas para aopo de continuar vivendo na antiga colnia: a pobreza, a perda de laos familiares, a falta de perspectivasquanto a "o que fazer l fora" e o sentimento de pertencimento quele lugar. Alguns chegaram a viver fora dainstituio por alguns anos, mas na velhice voltaram a procur-la devido pobreza e falta de apoio dos familiaresem momento de necessidade: "Eu no tinha condies mais de ir para fora. No tinha mais famlia; eu sou s eu(E1).

    Os filhos no do apoio, como muitos sinalizam: "Eu tenho uma filha, um neto com trinta que mora junto na casaque eu constru. Tem outro que trabalha numa concessionria e mora com a esposa. Eu tenho uma netinha. Masningum se prope a falar 'venha' quando eu falo 'nossa, eu estou to cansada!'. 'A senhora no gostaria de vir?'.Eu falo: 'No tem lugar para mim'. A gente percebe que se no fosse seria melhor, n?'' (E8).

    O fato de terem crescido e vivido muitos anos na dependncia do Estado, com poucas perspectivas de empregoalm dos existentes na instituio, a incapacidade e a pobreza, entre outros motivos, no incentivaram a sadade alguns entrevistados.

    Ah! Eu tinha a nossa casa, enxergava muito pouco. Ia fazer o qu l fora? Ento ficamos [eu e meumarido] por aqui mesmo, a gente era feliz aqui (E3).

    No tenho nada l fora, tudo o que eu fiz eu fiz aqui dentro, eu no tenho bem nenhum, s tenhoessa Braslia [automvel], que minha e do Jos Carlos, e s (E4).

    A identificao com o lugar costuma ser tanta, que um dos residentes informa que at j mandou preparar seutmulo no cemitrio da colnia: "Quando eu queria ir embora, no me deram alta; agora tambm no vou mais,vou ficar aqui mesmo; meu tmulo j est pronto aqui dentro do cemitrio" (E2).

    Dificuldades financeiras para se manter constituem outro fator de permanncia: "Mas agora estou passando avida muito apurado. Porque s vezes o dinheiro no d para fazer o que a gente quer. No d para arrumarservio. Foi minha vida inteira aqui dentro" (E2).

    Viver na instituio considerado direito adquirido. No estado de So Paulo, desde 1954 vrias leis concedemdireitos a egressos dos asilos-colnia, mostrando o reconhecimento do Estado de sua dvida social para com

    eles2: "E o mdico disse: 'Voc est com gangrena, voc vai tratar com o mdico de vasos' ... . Mas eu no fui;eu falei, no,... eu tenho os meus direitos. Eu vou pegar uma carta no Palcio de Sade, onde eu tenho a minhaficha at hoje, e pedir uma internao para mim, porque eu fiquei (anteriormente na colnia). A fui fazeravaliao, pela data eu fiquei com o direito de morar aqui at o fim dos meus dias, entendeu? Fosse antes eu nopoderia" (E8).

    Comentrios finais

    Envelhecimento resultado de toda uma vida social, biolgica e psicolgica, e no sinnimo de incapacidade edependncia. As pessoas entrevistadas cresceram e envelheceram, em termos biolgicos, convivendo com umadoena e suas complicaes, que podem ser muito incapacitantes. Em termos sociais e psicolgicos, foramalijadas do convvio familiar e de seu ncleo social original por ser portadores de doena estigmatizante queexigia, como forma de profilaxia, seu confinamento.

    Ao considerarmos o trip do 'envelhecimento bem-sucedido' (Rowe, Kahn, 1998) - controle das doenas,engajamento na vida e manuteno das funes fsicas e cognitivas -, verificamos que os entrevistados forammuito prejudicados: primeiramente, pelo longo intervalo de tempo entre a realizao do diagnstico e adescoberta e aplicao da quimioterapia, o que dificultou o controle da doena, a preveno de incapacidades ea manuteno das funes fsicas; em segundo lugar, pela segregao, com consequncias psicolgicas e sociais

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    no que diz respeito manuteno de laos familiares e de amizade, bem como de suas perspectivas de vida,posto que foram impossibilitados de realizar seus sonhos (casar, estudar, escolher seu ramo de trabalho etc.).

    Em nossa prtica, verificamos que muitos idosos, ao se tornar dependentes, tm dificuldades de se manter nacomunidade por falta de apoio da rede social e familiar e por dificuldades financeiras para garantir a manutenoda casa, a aquisio de medicamentos, a contratao de cuidadores, entre outros. No perodo da internaocompulsria, o Estado e a sociedade proviam a instituio e a mantinham, a fim de que os que ali viviam sesentissem bem. Apesar da vida regulada, a comida era farta, havia festas, shows, os prdios eram bem cuidadose havia ocupao para os residentes 'com sade', isto , sem incapacidades. Nesse sentido, os discursosdemonstram saudades 'dos bons tempos'.

    O Estado extinguiu a internao compulsria e deu 'privilgios' aos ex-residentes, a exemplo da renda mensalvitalcia, que entretanto no suficiente para a manuteno da vida fora do hospital-colnia - do mesmo modocomo acontece com a maioria dos idosos do pas, ao serem aposentados. Alguns chegaram a sair do asilo-colnia,viveram muitos anos fora, mas, com o envelhecimento, voltar para o hospital representou a soluo para seuproblema social. Voltaram, portanto, no por causa da doena, mas porque a instituio soluo para seudesamparo econmico e, principalmente, supre a ausncia do apoio de rede social e familiar.

    Estudos sobre idosos mantidos em instituies tm mostrado que estar em condies econmicas desfavorveis esem rede familiar e social de apoio so as caractersticas mais frequentes desses indivduos (Cortelleti, Casara,Herdia, 2004; Davim et al., 2004, Santos, s.d.). O mesmo ocorre com os entrevistados no nosso estudo, quecontudo apresentam um atributo especfico: essa perda da rede de apoio, sobretudo a familiar, est relacionadaao isolamento compulsrio, que os privou do convvio e da possibilidade de criao de laos de intimidade e trocasafetivas. Mazza (2002) verificou, em pesquisa com cuidadores familiares de idosos, que um dos fatores quelevavam essas pessoas a cuidar de seus pais era a retribuio do cuidado recebido na infncia e na juventude.

    NOTAS

    1 Refere-se ao regime interno da instituio e no ao Estado Novo.

    2 Na pgina da Assemblia Legislativa do Estado de So Paulo (http://www.al.sp.gov.br) possvel levantartodas as leis e decretos-lei elaborados para esse fim.

    REFERNCIAS

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    Recebido para publicao em dezembro de 2007. Aprovado para publicao em maro de 2009.

    Entrevistas com pacientes da internao compulsria do Hospital Dr. Francisco RibeiroArantes, da antiga Colnia Pirapitingui

    Entrevistado: (E1) - 77 anos (sexo M) - enfermaria asilar Data de nascimento: 6.12.26 Data da entrevista: 14.11.2003

    Quantos anos o senhor tinha quando foi detectada a doena?

    Eu tinha 12 anos. Quando fui internado neste hospital era 27 de outubro de 1938. Eu vim para c porque eraobrigado. Eles caavam a gente, e no tinha tamanho. Se os doentes daqui fugissem, eles punham os guardasatrs.

    Aqui tinha cerca no canto do refeitrio com uma distncia de uns quatro ou cinco metros. Distante uma cerca daoutra. E l no canto do refeitrio subia e ia at a estrada. O doente no podia passar l.

    Tinha cadeia; para a gente ir na cadeia tinha que dar volta por trs do refeitrio e l pela rua Indaiatuba, l pelofundo.

    Com a internao compulsria, fui obrigado a vir, pois fui fazer o exame que constatou que eu era doente. Eu eramenino, ainda estudava, era menino.

    Depois que vinha aqui no via mais a famlia.

    O doutor Nelson de Souza Campos falava que em seis meses eles curavam a gente. A chegava aqui, que nem eucheguei e os outros, naquela iluso... Naqueles seis primeiros meses se atirava no tratamento com f e coragem.Chegava seis meses, mais seis meses, at que o sujeito chegava concluso que daqui no saa mais. E no saamesmo.

    Tinha cinema, tinha teatro dos prprios doentes, que Jesus Gonalves fazia...! Teatro.

    O professor Nelson fazia muito teatro infantil, cinema, baile. Tinha banda de msica, tinha jazz.

    Agora, o medicamento no valia nada... quando entrou a sulfa, a sim, foi melhorando. Tanto que, quando foi em1948 e 1949, bagunou tudo. J no queriam internar mais ningum, j comeou a segurar. E isso veio parar noque aqui hoje.

    Fale sobre sua famlia e seus amigos perante a doena.

    Eu era doente e vim para c, no podia ficar no meio dos outros com sade.

    Aqui no hospital no tive famlia, os filhos que nasciam aqui iam para a creche. Cresciam bandidos l fora,sozinho; a maioria ficavam perdidos.

    Eu entrei na escola, fui trabalhar no escritrio do almoxarifado da Caixa. Virei escriturrio. Escrevia, tinha moboa. Agora no tenho mais no. Trabalhava no escritrio.

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    Nunca fui preso; preso no! A cadeia eles matavam, no judiavam. Matavam a paulada, a bordoada. Fizesse oque fizesse. Se rebelasse contra eles, pronto.

    Eu nunca tentei fugir do hospital por causa de minhas pernas. Em 1943 comeou a explodir lceras nas minhaspernas. Fazia curativo. No tinha tratamento. Aquilo fedia, a gente fedia. Isso aqui, esse ar do Pira [HFRA] tinhamau cheiro. Porque no tinha medicao; isso acabou quando veio a sulfa. O PQT de agora, pouco tempo. OPQT deu bom resultado, timo resultado.

    Com a extino da internao compulsria, o que fez o senhor continuar no hospital at hoje?

    Eu no tinha condies mais de ir para fora. Eu no tenho mais famlia, eu sou s eu.

    As caravanas que vm aqui tem dia que vm encher o saco! Principalmente os crente, vem querendo que eumude de religio. Ah! V! Eu sou catlico apostlico romano, fervoroso, adepto de Nossa Senhora de Aparecida.Eu assisto missa na televiso todos os dias. Eu sou catlico e no abro mo. E palmeirense!

    Tem uma foto muito bonita aqui!

    Ah! Eu tinha 15 anos.

    Tem alguma coisa que o senhor gostaria de ter feito e no fez?

    Ah! Eu gostaria de ter feito, s que no me deixaram... [ficou triste]. Minha paixo agricultura, se eu fosse desade eu teria me formado em agricultura. Porque eu fiz jardim. Fiz jardim da igreja no tempo do falecido freiAlpio. Fiz jardim l que todo mundo vinha buscar flor. Vinha gente de Sorocaba aqui encher o saco! Pedir flor.Agora l no tem mais nada. O que eu plantei no tem mais. Tinha 280 ps de rosa, tinha cravo, de tudo. Amulher que arrumava a igreja, ela punha quarta e sbado 32 vasos de flores na igreja. Entrava na igreja e punharosas...

    Agora, no vou mais na missa, no d; minhas mos no empurram mais a cadeira de rodas. No tenhocondies. No aguento ficar de p. Para mim levantar, tomar banho, precisa a enfermeira dar banho em mim, nosaio mais daqui. Tem geladeira, televiso aqui no quarto. E umas coisas... No vou nem na T.O. [terapiaocupacional].

    Antigamente, eu escrevia palavras cruzadas, eu comprava palavras cruzadas e escrevia a. Mas agora nem issono d mais para eu fazer. Minha mo piorou mais, e a gente vai ficando cada vez mais velho, mais baqueado...

    Muito obrigada pela colaborao.

    Desejo que d certo para vocs, porque o problema no mole no.

    E um abrao para dona Helena! Tchau!

    Entrevistado: (E2) - 74 anos (sexo M) - rea comunitria Data de nascimento: 5.9.1929 Data da entrevista: 14.11.2003

    Oi, boa tarde!

    Boa tarde!

    Quantos anos o senhor tinha quando foi detectada a doena?

    Estava com 19 anos.

    E quando foi que o senhor foi internado neste hospital? Como foi? Conta para ns.

    Eu internei aqui em 1951. Dia 14 de dezembro de 51. Porque foi descoberta minha doena, porque eu sentia dornas juntas, nas pernas, nos braos. Eu lutava boxe. Ento, no deu para mim lutar mais. Eu sentia muita dor; euia fazer o quarto ano. Ento o mdico descobriu que eu tinha essa doena. A, ele indicou eu para procurar umhospital. Ento vim a esse hospital e fui internado aqui.

    E o senhor morava com sua famlia? Como foi a reao da famlia e dos amigos?

    Os amigos todos ficaram sentidos, porque eles eram muito bom para mim, como eu era bom para eles tambm. Eumorava com uma famlia japonesa. Ento, eu viajava muito, sempre viajei muito; ficaram sentido porque perderamum grande amigo, como eu fiquei sentido deles! Eu precisei internar... [suspiro].

    A, eu vim aqui e fiquei aqui. E era uma ocasio muito difcil, aqui no hospital, antigamente era muito difcil. Eratudo preso. A gente no podia sair. Ficava para fazer um servicinho assim, os guardas ficavam junto com agente. E para a gente sair no tinha licena, eles pegavam um jipe e levavam at a estao de trem, para ver agente.

    Fale sobre o perodo da internao compulsria. Como foi?

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    A vida aqui dentro foi uma vida muito difcil, porque eu no podia festejar, ir em festa de famlia. Porque elesficavam junto com a gente.

    Agora, eu no fiz muita coisa, porque eu cheguei aqui e logo comecei a trabalhar. Trabalhei demais aqui. Trabalheicom trator, que minha profisso, caminho, ambulncia. Porque naquele tempo, no tinha o pessoal paratrabalhar. Era os doentes. Ento, minha vida era sempre trabalhando.

    Agora, para sair at o clube, tinha sempre um guarda acompanhando com ns. O cinema, a mesma coisa. Ento,foi uma vida muito difcil para ns aqui, at melhorar mais.

    Sofremos bastante, agora trabalhar eu sempre trabalhei, era acostumado a trabalhar. Tomei conta da psiquiatria,trabalhei de enfermeiro, ajudei muito os mdicos tambm. Antigamente, eles precisavam; os pacientes precisavamtambm. Os mdicos cuidavam bem da gente. Mas sempre era uma coisa mais rgida. Acompanhado sempre comguarda.

    A gente tinha que ir no mdico, tinha que tirar a roupa em pele. O mdico examinava o corpo inteiro. E omedicamento era todo o dia. Voc tinha que tomar o medicamento, no podia faltar no medicamento. Ento, eutomava meu medicamento e ia para o servio. Trabalhar tambm, porque naquele tempo quem podia trabalhar,tinha que trabalhar. Porque no tinha funcionria de sade aqui dentro. Quem no podia no trabalhava. Mastinha uns que no podiam trabalhar mesmo, eles eram estragados da doena. Ento ficavam na enfermaria,presos l. Agora, quem podia trabalhar trabalhava.

    Eu estudei, fiz at o quarto ano aqui dentro. Era para mim fazer depois em Itu, mas eu no pude ir; ento fiqueis com o quarto ano. Mas foi bom para mim esse estudo ... . De maneira que do hospital eu no tenho de que mequeixar, porque depois eu acostumei aqui e no quis sair mais. Pedi alta, no davam alta para mim, para ningum.Eu tentei fugir duas vezes, mas os guardas me pegaram, a eu no quis fugir mais no. Porque eu podia ser preso,e a priso aqui era duro. Caa na cadeia e no saa to fcil no. Era judiado dos guardas.

    Beber ento, no podia nada. Nem entrava bebida aqui. Ento, de maneira que a vida aqui foi meio dura, pesadano comeo. Depois foi passando o tempo, e eu fui me acostumando tambm. A daqui uns tempo eles quiseramdar alta para mim, e eu no quis a alta tambm. A fiquei morando aqui, estou at hoje.

    Eu tenho um menino, mas aquele tempo no podia nem namorar, o guarda ficava em cima. O meu menino tem 14anos. Mas naquele tempo nem pensar.

    Eu jogava futebol, tinha corrida de bicicleta, jogo de bocha, de malha, divertir podia divertir. Tinha um clubemuito bom tambm. Tinha quatro dias de carnaval, podia danar vontade, s que com muito respeito. Podia teruma namorada, mas no podia fazer o que faz agora. Voc no podia dar um beijo, nada; era danar e srio.

    De maneira que ns tanto sofremos aqui. Agora mudou muito, no ? Conforme foi aparecendo medicao, asulfa, foi melhorando. Tinha aquele Promim americano, que era um remdio muito bom. Mas o mdico aqui semprefazia exame para ver como a gente estava.

    Ento de maneira que a gente aguentou bastante aqui, mas muita gente morreu. Eu mesmo posso contar, o queeu achei [de] gente morto. Trabalhava at nove horas e vi gente morto aqui dentro do Pira mesmo. L na olariatambm.

    Naquele tempo, aqui era uma fazenda, tinha gado, tinha horta, plantao. Todas as coisas era daqui. Nada elescompravam, quase nada. Canavial. Tinha uma fbrica de ladrilho. E eram os prprios pacientes que trabalhavam.Eram os prprios pacientes que faziam. Tinha sapataria, era muito bom nesse ponto. Mas no outro ponto tudo eramais difcil ...

    Toda rapaziada queria ter uma namorada, passear e no podia. Para ir no cinema, ia com o guarda, para sair docinema e levar a namorada, os guardas tinham que ir junto tambm. Se nascesse alguma criana aqui, j eralevada embora, e no via mais. Aconteceu com bastante gente aqui.

    E com a extino da compulsria, o senhor resolveu continuar nesse hospital?

    Continuei aqui, j estava acostumado; famlia eu tinha, mas no quis ir no. Queriam dar alta para mim, e eu noquis. Quando eu queria ir embora, no me deram alta; agora, tambm no vou mais, vou ficar aqui mesmo. Eutenho famlia em Campo Bonito, tenho chcara l at hoje. Minha famlia que cuida dela. Mas que euacostumei aqui e no vou sair to logo. S quando eu morrer. O tratamento aqui est bom.

    S tem uma coisa que est errada aqui. Que a gente no acha que est certo. s vezes precisa de ummedicamento e no tem; tem que comprar. Eles davam aqui muita coisa, agora est faltando. At alimento elesno do mais. s vezes voc vai no mdico, e aquele mdico no vem; tem que marcar outro dia... de maneiraque est um pouco difcil aqui. Quando arrumava uma casa antigamente, ns tnhamos de tudo; agora no domais nada. No do cimento, no do areia, no do nada. A gente tem que gastar o que tem. Eu receboalimentao, mas agora est atrasada. Recebo leite; a minha penso do Estado, eu me aposentei aqui.

    Do tempo que eu trabalhei - eu devia ganhar mais - mas eu s ganho R$290,00. Eu tenho prova; tenho um livroem casa que trabalhei muito. Mas agora estou passando a vida muito apurado. Porque s vezes o dinheiro no d

  • 09/11/13 Histria, Cincias, Sade-Manguinhos - The compulsory isolation of Hansen's disease patients: memories of the elderly

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    para fazer o que a gente quer. No d para arrumar servio. Foi minha vida inteira aqui dentro.

    L fora eu vivia tranquilo. A minha vida era muito boa. Viajei bastante. A fiquei preso aqui dentro. Ah, eu sofri!Sofri bastante por causa disso.

    Eu tinha muita vontade, como meu pai tinha uma fazenda, de ter sido fazendeiro, ficar tomando conta dafazenda. Mas no deu certo, no ? Eu podia ter tocado aquela fazenda, aqui dentro no pude fazer isso. Mas euajudava aqui na fazenda com gado, tirava o leite, criava porco.

    Agora vou ficar aqui at morrer, j mandei at fazer meu tmulo. J est pronto, aqui dentro do cemitrio. Aindaeu podendo ajudar alguma pessoa, at eu ajudo. O que eu posso fazer eu fao. Eu sou querido aqui, eles queremmuito bem eu, e eu no tenho diferena com ningum daqui. E nem com os funcionrios. Porque para mim aqui foio resto de minha vida. De maneira que eu no vou falar que fulano foi ruim, eu no posso no. Para mim tudo sobom. Eu sou catlico, mas se vai algum falar de religio em casa, eu no mando embora, eu respeito a mesmacoisa. De maneira que eu sou muito querido aqui dentro. E quem falar de vocs aqui esto errados, porque vocsso pessoas muito boa. Antigamente eles no eram bom assim como vocs so. No eram, e isso eu provo,porque muita gente aqui conheceu.

    Obrigada por sua ateno e colaborao.

    De nada, se precisar de mim estou s ordens. Vocs sabem onde eu moro. Pode chegar em casa que eu estou l.

    Entrevistada: (E3) - 83 anos (sexo F) - enfermaria asilar Data de nascimento: 7.6.1920 Data da entrevista: 14.11.2003

    Boa tarde. Quantos anos a senhora tinha quando foi detectada a doena?

    Boa tarde. Olha, quando descobri a doena eu tinha quatro anos de idade. Porque a minha famlia tinha umafarmacutica parteira. Acontece que antes de eu nascer, minha av, que era parteira, veio ver a minha me. Aela examinou os meus irmos e viu que minha irm de 13 anos tinha uma manchinha na perna. Depois, examinouos outros e viu um irmo de seis anos tambm doente. Ento, ela disse para o meu pai separar esses doisimediatamente, porque fica tudo infectado. No havia hospital do estado ainda. Internou num Hospital da SantaCasa, chamava-se Guapira. A papai mandou queimar tudo que pertencia minha irm e meu irmo, mandou fazeruma limpeza geral e desinfetar at o quintal com criolina. Foi uma coisa! Bom, a depois de alguns dias eu nasci.Bom tudo bem, correu tudo bem. Quatro anos depois, mame achou mancha na minha perna, mas no falou nada.Eu fiquei em casa at sete anos, mas descobriram com quatro anos.

    Mame tinha uma empregada que no podia saber da minha doena; ento ela separava tudo rosa - prato, copo,talheres - para mim, e falava que era porque eu chamava Rosa.

    Como foi a sua separao da famlia e dos amigos?

    Com sete anos, papai me levou na Inspetoria, porque comeou a aumentar, me levou para fazer exames.Descobriram que era mesmo; os exames deram positivo. Me deram remdio por via oral. Tinha um remdio que sechamava leo de chamogra. Fiquei at dez anos. A veio a internao compulsria, e eu internei no Santo ngelo.E l fiquei, gostei de l porque [antes] eu no podia ir na escola porque era doente. E quando eu internei, eupodia ir na escola, tinha bastante menina e ento eu me conformei logo com a separao da famlia. Porque lvivia muito reprimida.

    No hospital eu ia na missa de manh, porque eram freiras que tomavam conta. Tinha reza, escola, toda meninadajunta. Dormiam quanrenta meninas, todas em um quarto. Meninas de oito a 12, todas em um dormitrio s. L eragrande, era enorme.

    E fui crescendo, fiz teatro, costura e vim para o Pira trabalhar numa pea de teatro. A o Jesus Gonalves gostou.Eu tinha um primo que era dentista e tesoureiro da Caixa [Beneficente]. Ele disse para mim ficar aqui. Eu estavagostando porque o Pira parecia uma cidade, sempre eu tive vontade de morar numa cidade, porque eu sempremorei no interior, na zona rural, meu pai tinha armazm. E a eu fiquei; meu primo arrumou para eu ficar aqui. Eufiquei.

    Um dia, vi algum que eu gostei, um rapaz que eu gostei, mas eu vi ele num domingo e ele casou-se no sbado.Fui no casamento dele. Porque aqui quando tinha um casamento, um baile ou aniversrio, o convite era geral.Aqui era o nosso mundo. S entrava os mdicos e o diretor. Mas ele casou e acabou a histria! Nunca mais achei

    graa em rapaz nenhum. No namorei mais. Namorava, mas no para casar; falava: "No; casar no".

    Minha irm casou, depois de dois anos ficou cega. Meu irmozinho de 17 anos ficou cego. Eu com 15 anos fiqueicega de um olho. A lepra naquele tempo era braba, no tinha medicamento bom, no ? A pensei: vou casar? Euno, vou s namorar. Namorar naquele tempo era com respeito, a gente no podia nem pegar na mo do outro,mas era bonito. A gente no conheceu outra vida no ? Gostava...

    Tinha oitenta pares de namorados. Tinha um senhor com oitenta anos e a namorada com oitenta anos. Osguardas passeavam junto com os namorados. Todo dia tinha namoro. Das 18h at s 20:30h.

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    Tinha baile, cinema; todo dia tinha cinema. Passava filme. Tinha teatro, vinha muito teatro de fora. Aqui tambmfazia teatro. Tinha uma pea de teatro preparada para o diretor daqui que fazia aniversrio no dia primeiro denovembro, e a moa que ia fazer o papel principal, o filho dela estava com pneumonia. E, naquele tempo, notinha cura; morria mesmo. Ento ela falou que ia embora. Ela falava: "Vou embora, vou embora; se no deixar, eufujo". A levaram ela para o outro pavimento, e ficou faltando uma pessoa para fazer o artista principal. E era oaniversrio do diretor, tudo pronto... . O Jesus Gonalves veio falar comigo. Perguntou se eu no queria tentar. Aeu disse: "Eu posso tentar".

    Faltavam quatro dias para o aniversrio do diretor. A, enfim, ele me deu o papel. Estudei, estudei o dia inteiro, sparava para comer e tomar caf. Chegou a hora do primeiro ensaio, e pensei: e agora? Mas quando a gente nova tem memria boa, no ? Depois do ensaio ele veio me dar os parabns e disse que estava na cara que euj tinha trabalhado na pea. A eu falei: "No, na verdade eu nem conhecia a pea". Ele falava: "No possvel!".Porque eu tinha ficado o dia inteiro estudando. A deu tudo certo, todos que me encontravam na rua me davamparabns. Eu fiquei toda contente!

    No sa mais do teatro, toda pea que tinha me davam o papel principal. Era mocinha, fiz papel de baronesa... Eutinha retrato de tudo. Dei tudo. Precisava guardar, no ? Depois que a gente d valor. Mas aquele rapaz queeu gostei e fui no casamento, depois de cinco anos de casado a mulher veio a falecer. E a houve umareviravolta. Ele ficou vivo e ficou em frente a minha casa. tudo por Deus... O que tem que passar, passa poraqui.

    Eu tinha uma coleguinha que gostava dele, mas eu no sabia, nem ela sabia que eu tambm gostava. Um dia elafalou:

    - Sabe quem eu encontrei hoje?

    Eu disse:

    - Quem?

    - O Muniz - o nome dele era Muniz.

    - No diga... e como ele est? - perguntei.

    - Ih, voc lembra o moo bonito que ele era? Est um bagao. Ele est to seco, levantou para falar comigo,coitado! Olhos vermelhos, o nariz cheio de caroo, o corpo cheio de caroo, bastante curativo. O brao enfaixadoat o ombro.

    - Ah, mas eu queria ver ele.

    A fomos at a porta, ele estava sentado, e fui conversar com ele. Me cumprimentou. Todo cabeludo. Naqueletempo no usava homem cabeludo. Barbudo, cheio de curativos ... feio, mas feio de verdade; os dois olhosvermelhos, ele estava de culos escuros, mas do lado a gente v, no ?

    Ele disse:

    - Boa tarde! Como vai, pequena?

    Ah, eu fiquei toda contente. A eu falei para ele:

    - Sabe, em Santo ngelo tem um medicamento maravilhoso base de sulfa.

    J no tinha mais ningum com curativo. Era um medicamento novo, a caixa custava Cr$550,00. Era muitodinheiro naquele tempo. O pagamento era Cr$30,00. Os chefes ganhavam Cr$50,00. O dr. Lauro de Souza Lima,que era mdico da ONU, ia de trs em trs meses para buscar o remdio l nos Estados Unidos.

    A ele falou:

    - No me conta uma coisa dessa! Ento vou falar com ele, como a gente faz?

    Expliquei que tinha que ir na portaria e ficar esperando. A eu fui. Esperei ele chegar e perguntei por que o Pirano tinha o medicamento. Ele falou que o diretor no queria, mas ele disse que ia comprar.

    Ele escreveu uma carta e me deu para levar at a Caixa Beneficente do Pira e entregar para o presidente, s queo diretor no podia saber.

    A o remdio veio. Quem precisou tomou. Tomava-se 2cm de uma ampola. A caixa tinha 12 ampolas. Tomavam emsociedade. Quando dava trs meses, os exames j eram negativos. Foi aquela festa. Os caroos sumiram tudo.Aquilo que era remdio. Com oito meses j recebia alta. Foi uma maravilha.

    Logo me casei, vivi com ele quarenta anos felizes, at que ele faleceu. Eu j era cega do olho esquerdo. Depoisme deu glaucoma e fiquei cega tambm do olho direito. Eu tinha uma ferida feia no rosto e dizem que no temmais a marca. Agora, estou esperando uma operao nos olhos.

  • 09/11/13 Histria, Cincias, Sade-Manguinhos - The compulsory isolation of Hansen's disease patients: memories of the elderly

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    Por que a senhora quis ficar aqui no hospital, mesmo com o fim da compulsria?

    Ah! Eu tinha nossa casa, enxergava muito pouco. Ia fazer o que l fora? Ento, ficamos por aqui mesmo, a genteera feliz aqui.

    Os mdicos naquele tempo trabalhavam at aos sbados. Oculistas, tinha trs mil pessoas e poucos mdicos.Fazia fila na oftalmologia. O doutor Milton Tavares era muito bom. Muito bondoso; no fazia milagres, mas atendiatodo mundo. S descansava no domingo, feriados e dias santos. Agora, no trabalham quase nada. Antes era sdoente que trabalhava aqui. Agora o pessoal se queixa tanto. Naquele tempo se trabalhava. Ah!, desculpa se faleibesteira!

    No, foi timo, muito obrigada!

    Tchau! Vo com Deus.

    Entrevistado: (E4) - 59 anos (sexo M) - rea comunitria Data de nascimento: 11.1.1946 Data da entrevista: 17.10.2005

    Quantos anos o senhor tinha quando foi detectada a doena?

    A doena foi detectada em 61 ... eu estava em So Paulo ... l no DPL, e ... me pegaram l e me trouxeram aqui,mas eles no sabiam que eu era... . Eu estava no educandrio.

    Eu fugia muito, sabe, ... e quando eu fugia de l eu vinha para c para ver a minha me, e naquele tempo eu nopodia entrar porque eu era menor. Ento a minha me estava aqui, e ento eu entrava de qualquer jeito, pordebaixo da cerca, qualquer jeito eu entrava. E quando aqui chegava eu ia na enfermaria onde a minha meestava e conversava com ela, e logo os guardas chegavam e j me pegavam; me pegava e j me mandava devolta ou seno j me punha para a rua. E eu ficava naquela vida assim, de vai e volta, porque para o educandrioeu no queria voltar porque eu no gostava do educandrio. Eles queriam que eu fosse coroinha, e eu gostava detrabalhar em fazenda; era ao contrrio.

    E eu ficava nessa vida ... andei muito para o mundo ... . e eu conheo quase ... a regio sul aqui eu conheo, deSantos at Porto Alegre eu conheo. Andando pelo mundo. E eu dormia na rua, e ficava andando, e quando elesdescobriam o lugar que eu tinha. Eu sempre trabalhei, sempre trabalhei e vivia para este mundo assim, masnunca no mundo errado, sempre trabalhando. Chegava num posto de gasolina e trabalhava; ficava por ali, svezes as pessoas gostavam de mim e eu ficava, mas eu no podia ser registrado, porque eu no queria meidentificar como hanseniano ... . E ficava nessa vida assim, e depois voltava para c; eu voltava, eu queria verminha me novamente e eu voltava. E eu fui at preso nessa cadeia aqui eu j fui, nessa cadeia nossa aqui. Mas,como se diz, [eu era] indisciplinado, eu era revoltado ...

    Da em diante, quando passou, eu j era maior ... . Quando eu passei maior eu vim e me internei, me internei aqui.Naquela poca o diretor era o doutor Francisco Ribeiro - acho que era ele -, a fiquei por aqui durante muitotempo e a fiz o tratamento. Eu sempre fui perfeito ... mas eu ficava por aqui. Depois de internado por aqui eufugia daqui tambm, eu fugia que era para eu trabalhar l fora, que eu j era maior e eu podia me registrar, e eusaa daqui e chegava em So Paulo ... . Eu queria trabalhar. Trabalhei na Editora Abril, naquele tempo, em 62, ana Editora Abril eu me acidentei, eu me queimei no oxignio, aquele gs seco, conhece? Ento a me queimei, todaas ndegas, a eles pegaram e eu fui para enfermaria, a que eles descobriram que eu era doente, me mandarampara o Pira novamente. A fiquei, fiz o tratamento novamente, e fui indo, indo e voltando, andando por estemundo a. Depois eu voltei novamente, fiquei um tempo trabalhando na fazenda, na fazenda da Caixa, uns dezanos ... e de l eu sa novamente para fora. A vim conhecer a minha esposa, que hoje a minha esposa, e fiqueium tempo fora daqui, porque eu fui j muito e eles no queriam mais me internar como rebelde ... . Eu fiquei, ame casei em 81 e voltei novamente para c. Em 81 voltei na fazenda novamente, e na fazenda eu voltei aquipara o hospital, eu voltei aqui para cima e fiquei numa casinha meio escondido; escondido porque o pessoal noqueria que eu ficasse aqui, porque eu estava com a minha esposa e ela no hanseniana. A passou um pessoal efalou:

    - Olha, vamos regularizar a sua situao, porque est irregular ...

    - Mas como que a gente vai...?

    - Vamos l na diretoria e tal.

    A eu at levei a minha esposa, at o meu filho era, o meu enteado, na poca ele tinha 11 anos, e eu fui lregularizar. Regularizei tudo l no Same [Servio de Atendimento Mdico] ... . A casei e fiquei aqui, e estou aquiat hoje; agora, se voc contar, precisa sim, eu quero contar a historia daqui.

    T, mas ento quantos anos o senhor tinha mesmo quando descobriu a doena?

    Eu acho que eu nasci j com a doena. Em 61 que eu soube mesmo.

    Ah, s soube em 1961. E hoje o senhor est com quantos anos?

  • 09/11/13 Histria, Cincias, Sade-Manguinhos - The compulsory isolation of Hansen's disease patients: memories of the elderly

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    Cinquenta e nove anos.

    Fale sobre a sua famlia e seus amigos perante a doena.

    Sobre a minha famlia, a minha me estava aqui, e o meu pai se separou da minha me porque minha me eradoente e ele tinha muito medo da doena, o meu pai. Ento a minha me estando aqui e o meu pai estando l,ento eu fiquei mais uma parte com os meus avs. Quando eu era muito pequenininho ... fugia l do educandrioe ficava com a minha av. Ento, com este vai e vem era meio atrapalhado, mas a minha me estava aqui. A,depois a minha me foi embora, a minha me foi para Goinia, e queria levar eu com ela, e eu fui para Goinia comela e depois de Goinia eu vim [para] Itameri, que uma cidade de Gois, foi em 59 isso.

    Por que o senhor disse que nasceu aqui?

    Fui para o Educandrio Santa Terezinha. Ento ... ns viemos de Gois para c, e minha me teve alta ... elarecebeu alta e veio para Sorocaba, aqui em Sorocaba a minha me conheceu o meu padrasto, que j falecido.Conheceu meu padrasto, hanseniano tambm, conheceu aqui dentro do hospital, na poca ... que ela estavainternada e ela conheceu ele aqui. A, foi em 68 ele faleceu, em Sorocaba, a a minha me j ficou liberta ...morando com as minhas irms em So Paulo, at agora pouco, ela faleceu ... . Mas ficou com as minhas irms eeu fiquei aqui para l e para c. A quando foi em 91, em 91 eu vim para o hospital, e o doutor Dcio Verne, odoutor Dcio falou assim: "Olha, eu gosto muito de voc, eu gosto muito do seu trabalho, voc trabalhador,nunca vi voc... eu gosto muito de voc. Voc no quer trabalhar no Hospital?". A eu falei: "Eu quero". A elefalou assim: "Ento eu vou mandar voc, vai ter uma inscrio, de fazer inscrio para trabalho braal". ... Entoeu fiz o teste e passei em tudo, mas mandaram eu fazer exame mdico em Sorocaba, l no Ersa [EscritrioRegional de Sade]. Eu no passei por causa das vistas e eu voltei, e o doutor Dcio me falou: "Voc no passounum exame, mas eu vou mandar voc para o Maria Paula [Departamento do Servio Mdico do Estado], l em SoPaulo, voc vai?". Eu falei: "Vou". Eu fui, ele me deu a passagem, eu fui e fiz o exame e passei. E desde ento,desde 91, 12 de outubro, 18 de outubro de 91, eu cheguei aqui e ele falou: "Quando voc pode trabalhar?". E eufalei: "Ontem". "Ento tudo bem". Ento eu comecei a trabalhar e at hoje eu estou aqui, estou trabalhando j...Quantos anos j faz? Eu vou fazer aniversrio de trabalho dia 18 de outubro.

    Ento, agora eu queria que o senhor falasse sobre a sua internao. Conte-me a sua vida desde a internaocompulsria.

    At hoje? muita coisa, no ? Ento, desde a internao eu fiquei ... morando aqui ... trabalhando na fazenda,muito tempo na fazenda ... Do comeo, em 61 eu vim para c e da eu arranquei todos os meus dentes. Naquelapoca, l em cima ... era otorrino, ento tinha os dentistas e o pessoal que cuidava das vistas. A eu arranqueitodos os meus dentes e fiquei por aqui. Conheci muito aqui; isso aqui era muito lindo, aqui era um carto-postal,essas praas era a coisa mais linda, as flores ... . Tinha prdio de cinema, tinha cinema, tinha fbrica de guaran,tinha sorvete que a gente podia tomar, guaran vontade, tinha pessoal que lavava roupa, as lavanderias -porque no tinha mquina, era tudo na mo ... . At a dona Lourdes foi lavadeira daqui. E tinham os prdios. Aquipara cima era o Tabueiro ... . Quando eu cheguei, que eu me entreguei, o Tabueiro j estava terminando ... .Ento j tinha esses prdios aqui, novinho, e tinha muito arvoredo.

    Era lindo; tinha pomar, tinha mina de gua, a fazenda era linda... todas as verduras que ns consumamos norefeitrio, era tudo produzido aqui mesmo; ns, os hansenianos mesmo, que fazamos ... . Naquele tempo notinha o pessoal que entrava aqui dentro; somente de sade; eram somente os mdicos, mdicos e o diretor, s; orestante era tudo hanseniano, enfermeiro, tudo, tudo ... . E tinha a dona Levina; ela era chefe da enfermagemnesses tempos e ela andava numa charrete, e ela andava para todo o lado e via alguma pessoa que precisava deapoio... . Ela era enfermeira padro e era tambm assistente social, uma coisa assim.

    E naquele tempo tinha baile, tinha o prdio de cinema. Os prdios esto tudo em p, entendeu? Tinha fbrica decolcho; colcho no era de espuma, era de capim. E a minha me sempre falava... . A minha me no gostavada vida aqui porque aquele tempo que ela morava aqui ... . O problema do colcho de capim era que tinha muitopercevejo, barbeiro, essas bicharadas todas ... por isso j tinha o nome de Tabueiro ... . E para eles dormiremeles tinham que pr uma latinha de gua no p da cama, para os percevejos no subir. Se a coberta casse nocho estava tudo perdido, tinha que botar fogo em tudo. Ento era aquele sofrimento; eu no cheguei naqueletempo que era da minha me ... que eu fui para fora e em 61 que eu vim para c, e era tudo muito lindo.

    Tinha campo de bocha ... tinha o futebol - ainda tem at hoje, tem um campo ... , futebol, lazer para ns tinhade tudo. E naquele tempo a nossa etapa... nossa no, eu tinha etapa; depois que eu casei que eu peguei etapa,mas essa quinzena que o pessoal fala era farta, muito farta, e no tempo da minha me - a dona Lourdes devecitar isso para voc um dia - tinha tanta fartura que eles faziam cerca com bacalhau, a cerca que no tinhacomo ir para a rua, bacalhau seco. Ento, era a fartura que ns tnhamos. O que voc quer mais?

    E por que o senhor foi preso?

    Ah, fui preso aqui porque eu era rebelde e eu saa para fora. Eu tinha um amigo aqui que ele - ele no era meuamigo, era meu inimigo, mas eu achava -, ele falava: "Se voc no for eu vou te bater". E essa pessoa, esseamigo, esse rapaz que falava para mim ele era muito forte, forte mesmo, uma coisa. Ele virava a viatura, ele eraum monstro de um homem, e de medo dele eu ia com ele, ns amos buscar pinga ... . A pinga naquele temposeria como se fosse hoje droga ... porque a pinga nunca fez bem, no ? Eu ia buscar pinga com ele, mas eu ia

  • 09/11/13 Histria, Cincias, Sade-Manguinhos - The compulsory isolation of Hansen's disease patients: memories of the elderly

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    com medo e se fizesse alguma coisa a gente ia preso ... . Ento na nossa sada daqui para fora... ns amos natroca de guarda; na hora que eles iam trocar, a gente saa e s ... voltava no outro dia, na troca de guardanovamente. A gente entrava por debaixo da cerca, e tinha uma pessoa l fora, e que ns pegvamos a pinga l equando ns chegvamos aqui dentro, isso foi uma histria, quando a gente chegava aqui dentro a pessoa quevendia pinga para ns telefonava para c e que ns amos trazendo pinga, e eles pegavam ns, ento era tudoaquilo, eu no bebia, eu trazia para ele no bater em mim ... . A um dia eu falei: "Ah, vou largar mo disso a, euvou contar para a polcia". Polcia interna, que eram os guardas aqui de dentro. At o Marco, o Marco daportaria. Voc conhece o Marco, no ? O Marco, ele trabalha at hoje aqui, ele vigilante ... est aqui fazmuito tempo. Mas os vigilantes daquele tempo j acabaram todos ... , no tem mais ningum aqui daquela poca.

    Ento eu fazia essa vida. Depois eu achei de sair daqui de novo e ir embora. Eu no queria ficar preso. Era preso,mas aqui eu tinha de tudo ... , at hoje tem, mas eu queria sair ... eu queria trabalhar registrado, mas eu tinhamedo, porque eu no queria me expor ... seno iam me perguntar a minha vida todinha ...

    Ento eu passei por isso; e agora, depois que eu casei, eu fiquei aqui e estou at agora aqui. Isso aqui para mimsempre foi bom, sabe, eu no tenho reclamao de nada aqui. Para voc ver: eu tenho tudo aqui dentro, tenhoum emprego. O que voc quer mais?

    Com o encerramento da internao compulsria, o que fez o senhor continuar no hospital at hoje? Por que osenhor ficou?

    Porque eu gosto deste lugar, minha terra... eu nasci aqui, apesar de quando eu era moleque eu fugia muito. Aeu fui, assim, dar por f que aqui um lugar bom. que eu fiquei aqui at agora e no tem como eu sair. Notenho nada l fora, tudo o que eu fiz eu fiz aqui dentro; eu no tenho bens nenhum, s tenho essa Braslia[automvel], que minha e do Jos Carlos, e s.

    E famlia l fora, o senhor no tem?

    Eu tenho, tenho eles todos. Eu perdi um irmo aqui, e at ele morava no Sul, e sempre quando o meu irmo vinhaaqui ele vinha na minha casa, ficava na minha casa, doente do jeito que ele estava, mas ele no queria internar.Ele estava fazendo um tratamento ... , o PVT, mas ele tomava incorretamente. Aquele tempo ele tomava trscomprimidos: era um de manh, um na hora do almoo e outro noite. Ento o comprimido vinha identificando j:o primeiro, tomar na hora do caf, o segundo, no almoo e o ltimo, que era um pequenininho que a gentetomava na hora da janta para poder dormir. No podia tomar sol ... e o meu irmo sempre na praia, sempre napraia, e ficou doente.

    Vinha para c, a a primeira vez que ele ficou comigo... "Mas precisa internar ele, precisa pr numa enfermaria,porque se ele morrer aqui ele vai morrer dentro do Hospital". A eu levei, a o mdico que era diretor - como queera o nome dele? Doutor Michel, e o... um magrinho... Ento a eu levei ele, e ele falou: "Mas ele doente?". Efalou: "Pode ir". Eu falei: "Vai na diretoria, l que tem todos os papis dele" ... . A ele viu que ele era hansenianoe internou ele l no 9. A ele comeou a fazer tratamento no 9 e ... ficou muito tempo no 9. E depois ele voltou efoi embora para a casa dele. Ele falou: "Olha, eu vou embora" - ele morava em Joinville. "Eu preciso ir paraJoinville, mas eu estou ruim, mas eu tenho que trabalhar". E ele, como no queria se identificar tambm comodoente, porque ele trabalhou toda a vida e trabalhou sempre para gente boa ... . O meu irmo, ele era piloto dehelicptero ... era piloto da lancha do patro, que era Hans, alemo Hans no sei o qu l, dono da Brasilit e daCnsul l em Joinville. E ele falou: "Voc precisa levar eu, voc tem que dirigir para mim". Mas eu falei: "Mas comesse sol quente...". Ele: "Mas ns vamos chegar amanh. Ento vai". Eu peguei e fui. Ele falou: "Eu vou deitar obanco que eu estou ruim". Ele tomou o Enfague. Enfague um comprimido que voc toma ele, voc pode tomarele e duas horas depois voc no tem nada, fica uns 15 dias sem nada. Recolhe tudo, entendeu?

    A eu fui com ele: "Vamos embora". Eu peguei essa BR-116 aqui e sumi. Cheguei no outro dia l, e ele estava ruim,ruim. "O que ns vamos fazer?". Ele falou: "Eu vou tomar outro". Tomou outro, trabalhou l, ficou uns 15 dias evoltou. Quando ele voltou no deu tempo de ele chegar aqui ... ele estava ruim. A ele foi para as Clnicas em SoPaulo, porque ele estava muito, j estava muito adiantado. Sofreu muito para morrer; eu tenho umas fotos,depois eu te mostro, umas fotos dele, parecido comigo, igualzinho. O pessoal falava na rua: ", eu vi o seuirmo". E era eu; ns somos parecidos. A meu irmo morreu, morreu em So Paulo, faz quatro anos.

    Mas na minha famlia todos me querem bem, e eles no vm aqui porque talvez eles achem muito triste isso aqui,entendeu? Porque a minha me no gostava daqui, mas aqui o meu lugar, eu gosto daqui. At o dia que issoaqui acabar em nada eu vou ficar aqui; aqui eu vou ficar, minha terra e eu gosto muito. E eu no tenho assim,preconceito de dizer que eu sou hanseniano. Todo mundo pergunta e eu falo:

    - Eu moro no Pirapitingui

    - Onde? Mas dentro do Hospital?

    - Dentro do Hospital. Eu sou doente.

    Mas o senhor teve alta j, no ?

    , estou de alta, mas eu no posso ... . J estou todo perfeitinho, mas se eu tivesse l fora uma casa... . Eu novou, eu vou ficar aqui mesmo. Aqui, a cozinha que tem aqui em cima, esse refeitrio, era um refeitrio - no tinha

  • 09/11/13 Histria, Cincias, Sade-Manguinhos - The compulsory isolation of Hansen's disease patients: memories of the elderly

    www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702009000200010 19/26

    o salo famlia -, era um refeitrio nosso, e naquele tempo tinha umas trs, quatro mil pessoas, ento tinha umhorrio de almoo das 11 at a uma ... . Tinha muita gente, que saa um pouco e entrava outro ... E tinha acozinha A e tinha a cozinha B, onde hoje a farmcia ... , e onde a fisioterapia era refeitrio. Ento o pessoalvinha tudo almoar, o pessoal dali vinha almoar. Quem podia andar vinha ali no refeitrio, o que no podia andar,tinha um carrinho trmico ... muito bem bonito, tudo de inox, e ia nas enfermarias, no centro cirrgico, que estdesativado h muitos anos. Aquele prdio do meio, de um lado era das mulheres, do outro lado era dos homens eno meio era o centro cirrgico. E eu fui operado vrias vezes ali tambm, no tempo em que era ... era o doutor...- como o nome dele? Esqueci, mas depois eu falo, na hora em que eu lembrar.

    E depois tinha a cozinha C, que seria o Impan; o Impan antigamente era dos doentes de pulmo, onde era apsiquiatria velha l ... . E tinha outra cozinha na outra enfermaria, na outra psiquiatria, em frente ao cemitrio eraoutra cozinha; e depois tinha uma outra cozinha na fazenda. Ento naquele tempo, para chamar o pessoal paraalmoar, abria a sirene; tinha uma sirene, e abria a sirene era hora de almoo. Ento horrio de almoo era tudono mesmo horrio, em todos os lugares juntos abria a sirene. Agora o pessoal pode at no acreditar, mas temalgum que possa, que est vivo que pode confirmar isso: quando abria a sirene os urubus vinham tudo, enchiade urubu ali; e tinha uma molecadinha - a gente era menor -, a gente pegava o urubu e pintava ele de brancopara ver o que fazia, soltava ele com uma fita vermelha; era tudo mansinho ...

    Aquele tempo era assim. A gente ia ao cinema. Deste lado aqui morava as moas - voc soube disso? As moasaqui e os rapazes do lado de c. E o guarda ia na frente, com as moas, e outro guarda atrs, com a rapaziada.A gente no podia nem..., a gente namorava s depois. At tem uma moa l da enfermaria, a N, ela daqueletempo, ela mora ali; tem algumas a. Tem a MB; voc conhece a MB? A MB daquele tempo; s vezes eu no melembro.

    E os prdios na rua Sorocaba era tudo cheio de moradores, sabe, era alegre isso aqui, no ficava devastadoassim que nem hoje. Aqui, nesta rua aqui, tinha muita gente aqui morando. Para baixo aqui era s colnia, opessoal morava, tudo casal. E chegou uma poca aqui, eu no lembro, que comeou a derrubar essas casas a.Eu fiquei at muito aborrecido, que eu morava ali embaixo, na travessa Rio Claro, e eu era vizinho. Tinha umacasa vazia e usava aquela casa para mim guardar... Sempre tive um carrinho velho, tinha uma Panorama ..., euguardava a minha Panorama l. A chegava o pessoal para derrubar as casas, e chegavam e cortavam a cerca ej iam derrubando, e eu ficava triste com aquilo: "Oh, mas vai derrubar?". "Ns temos ordem para derrubar".Vieram e derrubaram todas as casas e quebraram todas as telhas. Dali para c que comeou a ficar ruim o Pira... . Derrubavam casa to boa, que podia restaurar elas... por que que eles derrubavam? Daqui para frente, daquida cadeia at Vila Matilde era s eucalipto, e a gente ia daqui para l, o pessoal que vivia.

    Tinha um lugar que chamava ... Sombra do Boi - nunca ouviu falar? Sombra do Boi, tinha cada eucalipto enorme..., ento os caras ficavam ali com as garrafas de pinga - hoje as drogas, mas naquele tempo era s pinga - edormiam por ali mesmo. E tinha uns que vinham buscar almoo e outros que vinham buscar pinga. Ento tinha umaestradinha que chamava assim: Bar da A e Bar do Z G. S o Z G que tinha, tinha dois bares s, ento a gentepulava para aquele. E era um bananal aqui; tinha muita coisa, que nem as minas de gua. Hoje eu no conheomais nenhuma; acho que acabaram com todas elas. Tinha aqui embaixo, na rua Jaboticabal, que s tem uma casade p.

    E eu morei perto da olaria, na descida da olaria. Eu morava ali, e esses tijolos aqui foi tudo feito na olaria pelamo dos hansenianos. Como era trabalhador o pessoal daquele tempo, no ? As ruas no eram asfaltadas; eratudo pedregulho, mas no tinha uma sujeirinha na rua. Tinha at, tem at uma pessoa, que est viva at hoje -como que o nome dele? -, ele mora ali no Pavilho, no cercado ali, ele gostava de varrer a rua. Ele fazia umavassoura de bambu com o cabo comprido, ele jogava para l e para c, o lixo ficava sempre na lateral, e depoisvinha outro com a carroa e com cavalo. Naquele tempo s tinha uma ambulncia ..., que era s para pegar opessoal l fora; a conduo que tinha aqui era carroa. Tinha muito cavalo, tinha muito burro na cocheira, viravaripa. Tinha um burrinho que chamava Garoto e uma mulinha que chamava Baliza; ela virava pipa, bate-barro, vocno conhece ...

    Hoje em dia tudo moderno, e as casas que foram feitas, que o Estado fez, fez melhor. Essas daqui, que eram doEstado ... j fizeram com cimento, areia e cal, mas as outras casas da rua Sorocaba, aqui para baixo, era tudoassentada com barro. Ento aproveitava tudo os tijolos, entendeu? Na rua Piracicaba ... ficava a fbrica decolcho ... ; hoje s tem duas casas de p, onde mora o Toninho, a casa do fundo. Tinha a fbrica de guaran,a fbrica ... no existe mais ... , ainda existe a prensa. Um dia, se voc quiser ir l, a gente vai; atrs docentro esprita. A casa ainda est de p e a prensa no conseguiram levar porque enorme ... . E a fbrica desabo era ali tambm, e a lavanderia, que eu falei - tinha vrias lavanderias, tinha vrios pontos de lavanderia. Eo teatro.

    E ns tnhamos um conjunto - agora essa parte muito interessante; eu tenho at uma fita gravada, uma fitaque eu passei daquela fita grande; antigamente no tinha esse cassete, era aquela fita grande -, que era o nossoconjunto. O nosso conjunto chamava-se Sao70, e os componentes do conjunto era eu - posso citar o nome daspessoas? Posso, no ? -, e