memmi retrato do colonizador 1 parte cap. 1 e 2

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Coleção O MUNDO, HOJEvolume 20

Ficha catalográfica

(Preparada pelo Centro de Catalogação-na.-fonte do

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ)

M487rMemmi, A,Ibert.

Retrato do colonizado precedido pelo retrato do coloni-zador; tradução de Roland Corbisier e Mariza PintoCoelho. 2.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

127 p. (O Mundo, hoje, v.20)

Do original em francês: Portrait du colonisé précédé duportrait du colonisateur

I. Colônias 2. Imperialismo I. Título 11. Série

77-0050 CDD - 325.3CDU - 325.46

EDITORA PAZ E TERRAConselho EditorialAntonio CandidoFernando GasparianFernando Henrique Cardoso

ALBERT MEMMI

Retrato do ColonizadoPrecedido Pelo

Retrato do Colonizador

3~ EDIÇÃO

Tradução deROLAND CORBISIER

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MARIZA PINTO COELHO

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@ Copyright by Editions BuchetlChastel, Corrêa 1957

Título do original em francês:

Portrait du Colbnisé précedé du Portrait du Colonisateur

Capa: Mário Roberto Corrêa da Silva

Direitos adquiridos pelaEDITORA PAZ E TERRA SI ARua São José, 90 - 11.° andarCentro - Rio de Janeiro - RJTel.: 221-4066

Rua do Triunfo, 177Santa Ifígênia - São Paulo - SPTel.: 223-6522que se reserva a propriedade desta tradLH;ão

1989

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

Índice

Prefácio -- 1

I -- RETRATODO COLONIZADOR

1 -- Existe o Colonial? -- 212 -- O Colonizador que se reCl1sa -- 333 -- O Colonizador que se Aceita 51

II -- RETRATO DO COLONIZADO

1 -- Retrato Mítico do Colonizado -- 772 -- Situações do Colonizado -- 853 -- As Duas Respostas do Colonizado -- 105

Conclusão-- 121

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Prefácio

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o PORTiAIT du Colonisé, Précédé du Portrait du Colo~

nisateur, cuja tradução brasileira ora entregamos ao nosso pú~blico, não é um livro recente. Editado há alguns anos, nãonos parece, no entanto, ter perdido a atualidade. Tornou-seao contrário, um livro clássico sobre o colonialismo, tendosido objeto, segundo estam os informados, de seminários edebates em universidades européias e norte-americanas.

A esse livro de Albert Memmi, Jean-Paul Sartre dedi-cou um artigo, posteriormente incluído no volume VII deSituations, no qual se acham reunidos vários trabalhos sobrecolonialismo e neocolonialismo. No comentário intitulado

Une Victoire, escrito a propósito do livro de Henri AIleg,Ia Question, Sartre se refere ainda uma vez a Memmi, cujopensamento, de certo modo, procura resumir. Acreditamosque tal patrocínio seja suficiente para nos dar a medida da

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importfmcia deste livro "sóbrio e claro" que, segundo o au-tor de L''Stre et le Néant, se inclui entre as "geometriasapaixonadas" e "cuja calma objetividade não passa da có-lera e do sofrimento superados".1

Ao reler, recentemente, o livro de Memmi, com o pro-pósito de sugerir sua tradução para a nossa língua, o quenos surpreendeu foi precisamente sua atualidade, emboraestejamos vivendo a fase histórica de liquidação, qe "atrozagonia" do colonialismo, ao menos em sua forma tradicional,tal como se configurou após a guerra de 1870, e o partagedu monde entre as grandes potências européias. Sim, por-que o fim desse colonialismo, segredo da prosperidade e daeuforia metropolitana, pano de fundo da joie de vivre novelho continente durante a belle époque, tão bem evocadapor Arnold Toynbee em Civilization on Trial, e cuja essên-cia, feita de leveza, de graça, de elegância, mas de incons-ciência também, se acha expressa exemplarmente na pinturade Toulouse Lautrec e na música de Offenbach, o fim dessecolonialismo, não significa, necessariamente, o fim do colo-nialismo.

Um líder negro, uma das figuras mais representativasdessa nova geração de africanos, forjados nas lutas pelaindependência das antigas colônias, Kwame N'Krumah, aca-ba de publicar um livro cujo título, inspirado na obra clás-sica de Lênin, é precisamente O Neocolonialismo - ÚltimoEstágio do Imperialismo. Há, pois, um novo colonialismoque, embora seja novo, nem por isso deixa de ser substan-tivamente o mesmo. Ora, se o colonialismo perdura, embora"novo", quer dizer, assumindo novas formas, novas moda-lidades, como poderia perder a atualidade e, portanto, o in-teresse, um livro que nos fala do colonialismo, isto é, deuma realidade, de uma situação humana, de um fenômenohistórico que, longe ter desaparecido, permanece, sofrendoapenas superficiais metamorfoses?

Apesar de conquistada a independência política, retira-das as tropas estrangeiras de ocupação, nacionalizado o apa-relho político e administrativo, os serviços públicos, os ban-cos, as empresas agrícolas e as poucas indústrias eventual-mente existentes. terá a antiga colônia conquistado realmente

1 Iean-Paul Sartre, Situations, vol. V, pág. 50.

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a independência e expulso realmente a potência dominante?Não, porque na luta contra o colonizador, ao recuperar-see ao afirmar-se a si mesmo, o colonizado, como escreveMemmi, "continua a definir-se em relação a de, Em plenarevolta. o colonizado continua a pensar, sentir e viver con-tra o colonizador e a colonização e, portanto, em relação aambos"." A descolonização é um processo lento, difícil edoloroso, comparavel à convalescença de uma longa e graveenfermidade.

Não nos devemos iludir, aliás, com a imagem conven-cional e tradicional do colonialismo. Consistindo essencial-mente, como veremos, na dominação e na exploração degrupos .humanos, de classes sociais, ou de povos uns pelosoutros, o colonialismo não só perdura, como acabamos desalientar, nas antigas colônias, hoje convertidas em naçõespolIticamente soberanas, mas permanece também, na formade segregação racial, em países considerados democráticos,como os Estados Unidos da América do Norte (para nãofalar da África do Sul), ou recrudesce, pela marginalizaçãodo povo do processo eleitoral e pela proscrição das lideran-ças populares, nos países da América Latina em que se ins-tauraram ditaduras militares, por exemplo. A situação dosnegros nos Estados Unidos e a dos líderes de esquerda, ba-nidos pelas ditaduras latino-americanas, não será, em mui-tos aspectos, comparavel à situação dos colonizados, nasantigas colônias?

A insurreição, a revolta dos povos submetidos - pro-tetorados, domínios, colônias, propriamente ditas, e povoshoje chamados subdesenvolvidos, característica do tempoem que vivemos - provoca o surgimento de novas formasde imperialismo, menos ostensivas, menos visíveis, mas nempor isso, menos eficazes. O controle da economia, dos meiosde comunicação, da publicidade, do dispositivo militar inter-no, pode fazer-se sem lesão aparente da soberania nacional.A criação dos mitos, dos esteriótipos, das neuroses e obses-sões coletivas, como o anticomunismo nas áreas dominadaspelos Estados Unidos, por exemplo, completa o processode ocupação, convertendo o país suposta ou aparentemente

~. Albert Memmi, Portrait du Colollisé Précédé du Portmil du Colo-Illsateur, pág. 180. '

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independente em satélite econômico e ideológico do centrodominante.

Mereceria, aliás, um estudo especial o que poderíamoschamar de colonialismo tecnológico, quer dizer, a dependên~cia, do ponto de vista do know how e da formação de espe~cialistas, em que se encontram os países atrasados em rela~ção às nações altamente desenvolvidas. Já se assinalou queo desenvolvimento se processa em progressão geométrica,tanto mais se desenvolvendo um país quanto mais desenvol~vido fôr. E também já se chamou a atenção para o fato déque o desequilíbrio ou o contraste entre a riqueza dos paí~ses ricos e desenvolvidos e a pobreza dos países atrasados,longe de reduzir~se com o tempo, tem sido, ao contrário,agravado, em virtude da rapidez com que se verifica o pro~gresso tecnológico. Se desenvolvimento é industrialização, opaís que não dispuser de uma tecnologia própria ficará nacompleta dependência dos países tecnicamente adiantados.

Não é, porém, dessa nova forma ou modalidade de co~lonialismo que se ocupa o livro de Albert Memmi. Trata-sede um ensaio sobre o colonialismo clássico, digamos assim,em sua forma extrema, quase caricatura!. Não é, no entan~to, o trabalho de um turista curioso, de um economista ousociólogo remunerado pelas Nações Unidas, que houvesseperambulado pela colônia carregando sua "objetividade" deencomenda, e, em seguida, redigido um informe ou relató~rio, enriquecendo assim seu curricuZum vitae.

O livro de Albert Memmi, apesar de sua clareza, de suasimplicidade, é també~ um testemunho humano, pois o dra-ma do colonialismo ele não o viveu de fora, na qualidadede mero espectador, mas o viveu na própria carne, na con~tradição e no conflito que dilaceram a consciência do colo~nizado que recusa a colonização. A experiência biográfica,interpretada e iluminada por uma ideologia revolucionária,converte a peripécia individual em instrumento de pesquisae de conhecimento sociológico, pois, se "as dilaceraçõe3 daalma" são "puras interiorizações dos conflitos sociais" ......-como diz Sartre "é possível esclarecer os outros falandode si mesmo"."

Não há citações de autores, ou de -"autoridades", nolivro de Memmi, nem tampouco números ou estatísticas.Deixará, por iS90, de refletir a realidade, de nos revelar oque há de essencial nesse mecanismo, nessa engrenageminumana, impiedosa, implacavel, que, depois de desfigurare aviltar o colonizado e corromper S)colonizador, desemboca,inevitavelmente, no terrorismo e na tortura?

Mas, não nos antecipemos; procuremos reconstituir,_mbora em suas linhas gerais, a estrutura e a lógica, ou me~lhor, a dialética do processo colonial.

Para apreender e interpretar adequadamente o colonia~lismo, que categorias, que instrumentos mentais deveremosutilizar? A nosso ver, a apreensão do que há de essencialnesse fenômeno, nesse processo histórico, requer o empregodas categorias de totalidade, contradição, alienação edialética.

O primeiro pressuposto, portanto, que devemos admitir,é o de que a situação colonial é um fenômeno social global.Que é uma colônia, a Tunísia ou a Argélia, por exemplo,até a vitória dos movimentos nacionais de libertação? Umterritório, com determinada estrutura de recursos naturais,certa flora e certa fauna, um equilíbrio ecológico, e uma po~pulação com crenças religiosas, tradições, usos e costumespeculiares, instituições políticas e sociais, formas próprias detrabalho, etc. Nesse contexto, que é uma totalidade orgâni~ca, o conquistador irrompe subitamente, ou ao cabo de umaluta em que sai vitorioso. Pode ocorrer, como se verificounos Estados Unidos da América do Norte, o massacre, o ex~termínio total das populações autóctones, que se rebelamcontra a captura e a domesticação. Em outros casos, como odas colônias européias do Norte da África, ou do Continen~te, de modo geral, a desproporção entre o número de colo~nizadores e o de colonizados é de tal ordem que impede oextermínio dos segundos pelos primeiros. E não só o núme~ro, mas o estágio de desenvolvimento cultural a que chega~ram esses povos.

Invadido o território, a ocupação se estabelece em ter~mos militares, com a presença efetiva de forças armadas querepresentam o poderio incontrastavel da metrópole. O dispo~sitivo militar sustenta a máquina de domínio e de exploração,a estrutura política e administrativa que coloca os recursos~ Jean-Paul Sartre, Ob. cit., pág. 50.

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II

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naturais e a mão~de~obra colonial a serviço da nação colo~nizadora. Embora representem insignificante minoria em re~lação à população do país conquistado, os colonizadorestrazem com eles a superioridade científica e tecnológica, eco~nômica e cultural, que lhes proporciona as condições de do~mínio e controle do país submetido.

Montada a máquina, ou o "sistema" colonial, delineiam~se as figuras que serão os principais protagonistas dessaperipécia histórica, o colonizador e o colonizado. Em fui1~ção desses dois pólos, passa então a estruturar~se a vida dopaís colonizado. Ora, que têm em comum uns e outros? Unssão católicos, outros muçulmanos; uns são árabes, outrosfranceses; uns são portadores de uma cultura mágica, aindano estágio feudal, outros de u:na civilização científica, indus~trial tecnológica, no estágio do capitalismo expansionista. Noque se refere ao estilo arquitetonico das casas, monumentospúblicos e templos religiosos, ao mobiliário, à indumentária,à alimentação, aos usos e costumes, e pormenores da vidaquotidiana, nada há em comum. São dois mundos inteira~mente diversos, totalmente heterogêneos e irredutíveisao outro.

Deverão, no entanto, esses dois mundos, embora hete~rogêneos ê irredutíveis, conviver um com o outro, "coabi~tar" -- como diz Memmi. Desfeita a imagem convencionaldo colonialista -- pioneiro generoso, humanista e filantro~po, missionário da cultura e do progresso, evangelizador do~incrédulos, etc. -- e desmascarado o sentido econômico epredatório da empresa colonial, em que ~rmos se poderáestabelecer essa convivência?

Ao tornar~se colônia, digamos desde logo, o país seconverte em uma nova totalidade que, como vimos, passa aarticular~se em função dos dois pólos que se implicam e, aomesmo tempo, se opõem e excluem reCiprocamente, o colo~nizador e o colonizado. Por que se opõem e se excluem?Apenas porque representam religiões, raças, línguas, cultu~ras e civilizações diferentes, em distintos estágios de desen~volvimento? Não, opõem~se e excluem~se reciprocamenteporque representam interesses antagônicos e irredutíveis.

Quais são os interesses do colonizador? Explorar osrecursos naturais do país e a mão~de~obra nativa pelo maisbaixo preço. Manter a colônia na situação de área produ~

tora de matérias-primas e generos tropicais e importadorade manufaturas, isto é. dos produtos fabricados na metró~pole. Quais são os interesses do colonizado? Converter acolônia em um país independente, desenvolvê~lo econômica~mente, incorporar a ciência e a tecnologia modernas, elevara capacidade aquisitiva e o nível de vida de suas popula~ções, e preservar, tanto quanto possível, a sua fisionomianacional.

Ora, esses interesses são totalmente incompatíveis unscom os outros. Na primeira fase da colonização, as popu~lações autóctones, sem condições de revolta, submetem~seao colonizador, acumpliciam~se e colaboram com a empresade domínio e exploração. Para assegurar o funcionamentoda máquina, porém, não basta ao colonizador a superiorida~de militar e tecnológica, deve, além disso, legitimar ou ten-tar legitimar o empreendimento, aos olhos do colonizado eaos seus próprios olhos. Deve, pois, fabricar a ideologia docolonialismo, tentativa de justificação, a posteriori, em ter~mos racionais, do domínio e da espoliação a que submete opovo conquistado. E, qual poderá ser o conteúdo dessa ideo~logia? Só poderá ser uma superioridade do colonizador, queimplica obviamente, como contrapartida, a inferioridade docolonizado. "Admitindo essa ideologia ', escreve Memmi, as classes dominadas (ou os povos) confirmam, de certomodo, o papel que lhes foi atribuído. O que explica, tam-bém, a relativa estabilidade das sociedades, nas quais aopressão é, bem ou mal, tolerada pelos próprios oprimidos".4

Completa~se ou arremata~se, assim, com a fabricaçãoda ideologia, a nova totalidade em que se converte o paíscolonial. Nada mais poderá escapar à engrenagem que semonta, articulando e configurando a vida econômica, social,política e cultural da colônia. O que não se insere no esque~ma dessas relações, permanece na qualidade de resíduo, cos-tume ou objeto exótico, curiosidade local. tolerada por serirrelevante ou desprezível. As redes do dispositivo de domi~nação se estendem por todo o país, englobando em suas ma~lhas todas as manifestações e formas da vida colonial. Comisso queremos dizer que tudo é colonial na colônia, que tudose estrutura e define em função da empresa colonizadora.

4 Albert Memmi, Ob. cit., pág. 116.

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Inútil exemplificar. Trabalho, ..dministração, burocracia,serviços públicos, educação, vida cultural, etc., tudo estáafetado pelos interesses da metrópole e disposto de acordocom t:sses interesses.

A situação colonial é, pois, como dissemos, um fenôme~no social global, uma totalidade. Essa totalidade, no entan~to, é constituída por interesses antagônicos e inconciliáveis,contraditórios, portanto. Em um primeiro momento, essacontradição permanece latente, mascarada pela aparente eprovisória acomodação do colonizado. Convencido da supe~rioridade do colonizador e por ele fascinado, o colonizado,além de submeter~se, faz do colonizador seu modelo, pro~cura imitá~lo, coincidir, identificar~se com ele, deixar~se porele assimilar. É o momento que poderíamos chamar da alie~nação. Ocupado, invadido, dominado, sem condições parareagir, nem ideológicas nem materiais, não pode evitar queo colonizador o mistifique, inwondo~lhe a imagem de simesmo que corresponde aos interesses da colonização e ajustifica. O colonizado se perde no "outro", se aliena. T en~tará, pois, de acordo com a lógica desse movimento, levara alienação às últimas conseqüências, tornando~se ele pró~prio um colonialista, casando~se entre os representantes dametrópole, por exemplo.

Acontece que e$sa "tentativa malogra, por ser. contradi~tória com a própria estrutura da situação colonial. Se todosos colonizados se tornassem colonizadores, quem coloniza~riam? Se o colonizador implica necessariamente, como termocorrelato, o colonizado, o projeto que acabamos de conside~rar é contraditório e, portanto, absurdo. Mas, admitamosque alguns colonizados conseguissem deixar~se assimilar pe~los colonizadores. Em que o êxito aparente de algumas ten~tativas de assimilação alteraria a situação como totalidade?Ora, mesmo essas tentativas individuais nunca são plena~mente bem sucedidas, pela simples razão de que o coloniza~dor é francês e o colonizado árabe, e o árabe jamais poderádeixar de ser o que é, quer dizer árabe, para tornar~se o quenão é, quer dizer, francês. Os "convertidos" ou "assimila~dos" sofrem um processo que se poderia chamar de pseudo~morfose, isto é, de aquisição de uma falsa nova forma quenão exprime nem representa adequadamente o antigo con~teúdo.

Além disso, ao fabricar a ideologia do colonialismo, aotentar estabelecer a tese da sua superioridade, que é pura~mente circunstancial e histórica, o colonizador desembocainevitavelmente no racismo. Ora, em que consiste o racis~mo? Em converter em "natureza" o que é apenas "cultu~ral", ou, com outras palavras, em converter o fato social emobjeto meta físico, em "essência" intemporaI. Para justificar,para legitimar o domínio e a espoliação, o colonizaçlor pre~cisa estabelecer que o colonizado é por "natureza", ou por"essêQcia", incapaz, preguiçoso, indolente, ingrato, desleal,desonesto, em suma, inferior. Incapaz, por exemplo, de edu~car~se, de assimilar a ciência e á tecnológia modernas, bemcomo de exercer a democracia, de governar~se a si mesmo."Não é uma coincidência - escreve Memmi -, o racismoresume e simboliza a relação fundamental que une colonia~lista e colonizado". 5

Ora, o racismo representa um obstáculo intransponívelà assimilação. Como podem os negros norte~americanos serassimilados pelos brancos, ou os judeus pelos alemãesdolicocéfalos e nazistas, se os norte~americanos brancos sãoracistas e consideram os negros uma raça inferior, sub~hu~mana, e os alemães nazistas julgam os judeus uma raça tam~Ibém inferior e, portanto, indigna de com êles misturar~se?Estabelecida essa insanável discriminação, em termos de"natureza" ou de "essência", o colonialismo passa a ter umfundamento metafísico que o situa além do tempo, fora dahistória, tornando~o imutavel e definitivo.

Apesar do clima e da repugnância que lhe inspiram oscostumes dos colonizados, o colonizador projeta sua exis~tência na colônia em um tempo sem fim, pois nem por l1ipó~tese admite que um dia o colonizado possa sacudir o jugoa que se acha submetido. O colonizador, enquanto tal, é,pois, necessariamente conservador, quer dizer, não podedeixar de querer a conservação do estatuto colonial de queé único beneficiário. Além de ser conservador, e até mesmoreacionário, o colonizador, que pode ter sido democrata ousocialista na metrópole, está sempre exposto à tentação fas~cista, pois - como observa Memmi - para que "possa

li Idem, pág. 94.

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subsistir como colonizador, é necessário que a metrópolepermaneça eternamente uma metrópole".6

A conservação ou a indefinida manutenção da colônia,porém, supõe que suas contradições sejam mantidas em es~tado latente ou virtual, com a aceitação docolonialismo, ede tudo o que implica, por parte dos colonizados. Aconteceque essa totalidade parcial, esse "mundo", que é a colônia,além de incluir as contradições internas que a caracterizam,situa~se ou insere-se em uma totalidade maior, que é o mun~do, por sua vez também contraditório. A observação é im~portante, embora nada nos revele de novo, porque essascontradições mundiais, como veremos, afeta11,do a colônia,poderão criar as condições que permitam a eclosão das suascontradições internas.

Com isso, queremos dizer que a totalidade, em qtie asituação colonial consiste, além de contraditória, é um todoem movimento, cujo processo, por isso mesmo que é contra-ditório, só pode ser apreendido e compreendido dialetica~mente.

Se a assimilação é impossível, tanto pela incorporaçãodos colonizados ao grupo dos colonizadores, quanto peladiluição destes na população autóctone, o estatuto colonial,no que se refere à discriminação de raças, se manterá into~cado, o mesmo desde que a colonização se estabeléceu.

O colonizador, por sua vez, também não pode assumirna colônia uma posição de esquerda. mesmo que tenha sidoou seja de esquerda na metrópole. Ao adotar semelhanteposição. deixa sem dúvida dé coincidir com a de seus com-patriotas. rompe com o grupo colonialista. Passará, por isso,a coincidir com a massa dos colonizados? "É impossível ---escreve Memmi --- que faça coincidir seu destino com o docolQnizado. 'Que é, politicamente? De quem é a expressão,senão de si mesmo, isto é, de uma [0rça desprezível no con~fronto?"7 Instalado em insanável ambigüidade, perde aconfiança dos colonizadores e deixa de representá~los, semcom isso adquirir condições que lhe permitam conquistar aconfiança do colonizado. Será, para os colonizadores, umtrânsfuga, e, para os colonizados. na melhor das hipóteses,

6 Idl?m, pág. 85.7 Idem, pág. 58.

10

um suspeito, que, por isso mesmo. jamais poderá ser um dosseus líderes. Que pretende. afinal? Ser colonizador e negar.ao mesmo tempo, a colonização? Como se vê. a posição écontraditória e insustentável.

Perguntamos, em parágrafo anterior, em que termos sepoderia estabelecer a convivência de colonizadores e decolonizados no complexo cQlonial. Já temos agora algumasrespostas a essa pergunta. A princípio. o conformismo. aaceitação passiva. a tentativa de coincidência com o grupocolonizador. a alienação. Em seguida, a tomada de cons-ciência da impossibilida~e. do malogro da assimilação. Soba pressão das contradições externas, a emergênçia das con-tradições internas. tanto objetivas quanto subjetivas. e a rup~tura com a fase anterior. de inconsciência e submissão.

Qual a ideologia da metrópole? Não ~ o cristianismoea democracia, o desenvolvimento econômico, o bem~estare o progresso social? Mas, não haverá contradição entreessa ideologia. que o colonizador professa na metrópole, e oseu comportamento na colônia. o domínio e a espoliação docolonizqdo, a sua segregação em nome do racismo?

Na colônia. porém. há jornais. revistas. aparelhos derádio e televisão, cinemas. Mal ou bem a situação do mundo,a luta das classes oprimidas, dos povos oprimidos, acabapenetrando a consciência das populações colonizadas. E nãosó isso, mas também as razões pelas quais essa luta é tra-vada, o desequilíbrio. o contraste, entre a riqueza das clas-ses e dos países ricos e a pobreza, a miséria dos países pro-letários.

Por que aceitar eternamente esse desequilíbrio. essacontradição, pO!1 que admitir como natural e justo que obem~estar e a felicidade de alguns tenha como contrapar-tida o mal-estar e a desgraça da imensa maioria? Não lhesdizem, em nome do cristianismo e da democracia, que todossão iguais diante de Deus e diante da Lei e que. por isso.devem ter as mesmas oportunidades de acesso à saúde. àeducação, à cultura, ao conforto. à humanização. em suma?Ou essa ideologia é válida apenas nos limites da metrópole,perdendo significação e eficácia a partir do momento emque. transpondo o mare nostrum, pepetramos as fronteirasdo continente africano? Ora. como justificar, então. o esta-tuto colonial, a não ser em nome tle outra ideologia, o racis-

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mo, por exemplo, ideologia que põe o colonizador em con-tradição com êle mesmo? Sim, porque como conciliar suaposição de cristão e democrata na metrópole com a posiçãode racista na, colônia?

O "efeito de demonstração", quer dizer, o confronto,o paralelo entre as condições de vida das populações colo-nizadas e as do colonizador e das populações metropoli-tanas (que o colonizado fica conhecendo por meio da im-prensa, do cinema etc.) interpretado à luz do cristianismo eda democracia, não pode deixar de fecundar a consciênciado colonizado, abrindo-lhe os olhos para a espoliação de quetem sido vítima. As contradições objetivas existiam, sem dú-vida, e há muito tempo, pois são a própria condição de exis-tência do fato colonial, e, DO entanto, permaneciam latentes,em equilíbrio, sem funcionar, sem operar como fator detransformação da estrutura social. Que é que as traz à tonada consciência, que é que as converte em mola propul~orada revolta e até mesmo da revolução?

Todos os caminhos foram fechados. O colonizador nãopermite nem a assimilação, nem a transformação pacífica dacolônia, mediante a participação dos colonizados na gestãodo próprio destino. O colonizador representa a negação docolonizado e vice-versa, o colonizado representa a negaçãodo colonizador. Os termos da antítese, ou da contradição,não podem ser absorvidos e superados em uma síntese su-perior pela simples razão de que, ao mesmo tempo, se impli-cam e excluem recIprocamente, quer dizer, a negação de umacarretando necessariamente a negação do outro.

A rigor ,- como observa Memmi --- "o esmagamentodo colonizado está incluído entre os valores do colonialis-mo"8 e o colonizador, no segredo de seu coraçãó, sonhamuitas vezes com o extermínio total dos colonizados. Ora,esse desejo é contraditório, pois o extermínio dos coloniza-dos acarretaria inevitavelmente o desaparecimento da colô-nia e, portanto, do próprio colonizador. Destruindo sua antí-tese, pólo oposto dessa relação dialética em que o proce~socolonial consiste, o colonizador destruiria, ao mesmo tempo,o pólo "tético", digamos assim, da relação, quer dizer, sua

R Idem, pág. 159.

12

posição de domínio e de espoliação, pois teria negado e feitodesaparecer o objeto desse domínio e dessa espoliação.

A partir do momento em que, por força das contradi-Ções internas e externas, tanto no plano objetivo, real. quan-to no plano subjetivo, da consciência, as populações coloni-zadas despertam, do longo torpor, do sono em que estavamhá tanto tempo mergulhadas, a partir desse m()mento, a to-talidade contraditória, que é o mundo colonial, é arrancadada estagnação e posta em movimento.

A partir de então, o colonizado, cuja negação implica-va a afirmação (negação como ser humano) do coloniza-dor, isto é, sua antítese na relação dialética, vai empreendera negação da negação, quer dizer a afirmação de si mesmo,pólo tético na relação. Ora, assim como no momento ante-rior, aceitava globalmente o colonizador, recusando-se total-mente a si mesmo, agora passa a recusar globalmente o co-lonizador e a aceitar e afirmar-se totalmente a si mesmo.

Tudo aquilo de que se envergonhava, tudo aquilo queera para ele sinal de sua diferença e motivo de humilhação,as crenças, os valores, os usos e costumes que constituíama tradição, a fisionomia nacional. tudo o que, contrapostoao mundo do colonizador, alimentava seu complexo de infe-rioridade, e era por ele subitamente assumido, em atitudepolêmica, de desafio, como forma e expressão de sua per-sonalidade própria, nacional. "A mesma paixão que o faziaadmirar e absorver a Europa --- escreve Memmi --- o faráafirmar suas diferenças; uma vez que essas diferenças oconstituem, constituem propriamente sua essência". 9

Será nacionalista e não racista, propriamente, mas xe-nófobo, pois" o racismo do colonizado ,- como diz o autor- não é a rigor, nem biológico, nem metafísico, mas sociale histórico" .10 Nacionalismo e xenofobia que se inscrevemne~essariamente no movimento de revolta, pois como nãoodIar os europeus --- e todo europeu é um colonialista em

f,stado potencial, um cúmplice e um benefiéiário do colonia-Ismo --- que durante tanto tempo os oprimiram e explora-ram? Por que deveriam, êles qu~ não são cristãos, retribuir

9 Idem, pág. 172.10 Idem, pág. 171.

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o desprêzo e o desamor dos cristãos com a compreensão, atolerância e a generosidade?

Declarado o inconformismo, desencadeada a revolta, oaparente equilíbrio se rompe, as águas superficialmenteimóveis se agitam e as contradições que permaneciam laten-tes vêm à tona, revelando-se em sua irredutibilidade e pro-pQndo-se em termos de luta. Impossível exigir do colonizadoque, enfim, se revolta, prudência, cautela, senso de medida.De seu ponto de vista, tudo é válido, desde que seja eficaz,na luta contra o colonizador, pois a negatividade total desua conduta implica uma positividade também total, querdizer, a plena recuperação e afirmação do colonizado por simesmo:

Se todas as formas de convívio se revelaram impossí-veis, a unica saída é a ruptura, a revolta, a luta contra ocolonizador até sua derrota definitiva, isto é, até a liquida-ção definitiva do sistema. colonial. Pois o colonialismo, quefabrica simultaneamente o colonizador e o colonizado, reve-lou-se uma doença incuraveL e a situação colonial impossí-vel de aménager porque -- como escreve Memmi -- "tra-zia em si mesma sua própria contradição que, cedo ou tarde,a faria morrer".ll

Todas as formas de luta são válidas, dizíamos, inclusiveo terrorismo, energicamente condenado pelo pensamento deesquerda. O sopro da revolta os arrasta, um desespero, umafúria sagrada os invade, e sua vida não tem outro sentido,outra razão de ser, senão lutar, lutar até a morte, contra osopressores, e a favor dos seus, da liberdade, da libertaçãodos seus, os oprimidos.

Toda a máquina, a poderosa máquina da opressão, éentão mobilizada na repressão implacavel, sem quartel, darevolta dos escravos, maltrapilhos e famintos. As armasmais modernas, os dispositivos tecnológicos mais aperfeiçoa-dos, as tropas de elite, recursos astronômicos, são mobiliza-dos para esmagar a insurreição, o movimento de libertaçãonacional.

O empreendimento colonial, desafiado pelos povos emrevolta, se revela em sua verdadeira fisionomia. A violência,que permanecia latente, implícita na opressão, explode, e o

11 Idem, pág. 184.

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olonialismo, com a assistência e o beneplácito úa metró-cole passa a reprimir sistemática e brutalmente todas as~anifestaç0es de inconformismo e rebelcila. Em nome dequê? Do cristianismo, da democracia, dos direitos humanos?Não, desta vez, depois que as máscaras caíram, em nomeapenas de seus interesses, interesses materiais, e<:onômicos.

A brutalidade da repressão não conhece limites e acaba

por despertar no colonizador o ódio pelo colonizado. Ódioque está na raiz do capítulo mais negro da guerra cbloniaLo capítulo da tortura. "Nesse negócio -- escreve Sartre --os indivíduos não contam; uma espécie de ódio errante, anô-nimo, um ódio radical do homem, se encarniça a um temposobre os carrascos e as vítimas para degradá-Ios juntos, euns pelos outros. A tortura é esse ódio, erigido em sistemae criando seus próprios instrumentos".12

E, quem tortura? São povos "bárbaros", orientais, quenão assimilaram o cristianismo e os valores espirituais dacivilização ocidental. alemães paganizados, enlouquecidospelo racismo nazista e pelo sonho delirante de dominaçãomundial? Não, quem torturou, para nossa tristeza e humi-lhação, foram franceses, sim cristãos franceses, descendentesde Joana d'Arc e de São Luís. Mas, se qualquer homem,seja qual for, se qualquer povo, sejam quais forem suas tra-dições e sua formação, pode converter-se subitamente emcarrasco, em torturador, que significa isso se não -- comodiz Sartre -- que "a tortura não é nem civil nem militar,nem especIficamente francesa, mas uma lepra que devastatõda a nossa época" Y

Há um segredo, há uma confissão, que a minoria ar-mada e opressora precisa arrancar de todos ou de qualquerum, pois todos são cúmplices da mesma conspiração, todossão aliados na mesma luta, todos representam a mesmaameaça, difusa, incontroláveL aos interesses, aos privilégiosdos colonizadores. O sàpro da revolta a todos arrasta, poisa guerra colonial não é apenas a luta de grupos armados con-tra a opressão metropolitana, mas a luta do povo todo e, sendoa guerra dos pobres contra os ricos, dos oprimidos contra

12 Jean-Paul Sartre, Une Victoire, in Situations, vaI. V, pág. 79.13 Idem, pág. 80.

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os opressores, converte a multidão inumerável dos miserá-veis no "inimigo qUotidiano", cujo silêncio, carreg,ado deameaças, inquieta e preocupa tanto as forças de ocupaçãoquanto as incursões noturnas, os ataques às patrulhas avan-çadas, os atentados, as bombas lança das nos quartéis ou osassaltos aos depósitos de munições. Todo árabe é um ini-migo possível, um eventual detentor desse segredo que épreciso arrancar de qualquer maneira, mesmo que seja pelatortura, essa "fúria vã" -- como diz Sartre -- "nascida domedo e pela qual se quer arrancar de uma garganta, entregritos e vomitos de sangue, o segredo de todos".14

Ora, não há segredo, há um incêndio que lavra em todoo território aa colônia, uma chama que arde em todos oscorações, uma invencível esperança e uma indestrutível de-cisão de lutar, mesmo que seja ao preço da própria vida,pela conquista da liberdade. O sistema, porém, funcionaráimplacavelmente, no desesperado esforço de manter-se, em-bora a conservação da colônia, exigindo a presença perma-nente de um exército de ocupação, seja mais onerosa do quea renda auferida com a exploração colonial Impossível, pois,prosseguir no empreendimento, que se tornou absurdo eperdeu qualquer sentido. A sorte do colonialismo está sela-da e, mais cedo ou mais tarde, pouco importa, os povos co-loniais conquistarão a independência. "A recusa do coloni-zado -- escreve Memmi -- só pode ser absoluta, quer di-zer, não apenas revolta, mas superação da revolta, isto é,revolução":15

Sem dúvida, na recusa do colonialismo, na negaçãototal do colonizador e na aceitação total de si mesmo, o co-lonizado, como já vimos, ainda está, em grande parte, de-terminado pelo colonizador. No processo diaIético da eman-cipação, no entanto, esse momento é necessário, pois tornapossível o momehto seguinte, em que da negação da nega-ção, se passa à plena positividade da afirmação de si.

Não só poderá mas deverá, doravante, apropriar-se daciência e da tecnologia dos colonizadores e talvez de algu-mas de suas instituições jurídicas e sociais. Essa apropria-ção, essa utilização, no entanto, se fará livremente, e em

H Idem, pág. 83.

1;; Albert Memmi, Ob. cit., pág. 190.

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função dos intere~se~ e das necessi~ades da nova n?ção ~do seu projeto propno de desenvolvImento. O essencIal fOI,enfim, conquistado. Pouco importa que haja obstáculos eresistências a vencer, provações a enfrentar,. sacrifícios nu-merosOS a fazer. De que não é capaz o ser humano quandoo entusiasmo o arrebata, quando o amor inflama seucoração?

Já não mostraram, já não deram provas de que eramcapazes, não só de atos de coragem, mas até mesmo de he-roísmo? Não lutaram, em total inferioridade de condições,contra um adversário muito mais poderoso, implacavel e ar-mado até os dentes? Já não mostraram que preferem arris-car a vida na luta pela liberdade do que permanecerem vi-vos, na escravidão?

Se foram capazes de enfrentar essa luta, tão mais ár-dua, tão mais difícil, tão mais perigosa, por que não seriamcapazes de enfrentar a outra, a luta pacífica pela constru-ção do país, agora que recuperam a alma e o direito de con-figurar o próprio destino?

As guerras coloniais de independência parecem ter dei-xado claro que uma nação não é propriamente um negócio,que deve assegurar a maior rentabilidade possível, comopretendem os colonialistas e os tecnocratas, mas uma peri-pécia em que os homens empenham o próprio sangue, umdestino enfim, quer dizer, uma tradição e uma vocação.

Rio, 11 de abril de 1967.

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SENTIDO DA VIAGEM COLONIAL

Muitos ainda imaginam o colonizador como um homemde grande estatura, bronzeado pelo sol, calçado com meias~?otas, apoiado em uma pá -- pois não deixa de pôr mãosa obra, fixando seu olhar ao longe, no horizonte de suasterras; nos intervalos de sua luta contra a natureza, dedica~se aos homens, cuida dos doentes e difunde a cultura, umnobre aventureiro, enfim, um pioneiro.

Não sei se essa imagem convencional jamais correspon~deu a alguma realidade ou se às gravuras do dinheiro colo~

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nial se limita. Os motivos econômicos do empreendimentocolonial estão, atualmente, esclarecidos por todos os histo-riadores da colonização; ninguém acredita mais na missãocultural e moral, mesmo original, do colonizador. Em nossosdias, ao menos, a partida para a colônia não é a escolha deuma luta incerta, procurada precisamente por seus perigos,não é a tentação da aventura, mas a da facilidade.

g suficiente, aliás, interrogar o europeu das colônias:que razões o levaram a expatriar-se e, principalmente, a per-sistir em seu exílio? Acontece que ele fala também em aven-tura, em pitoresco e em expatriação. Mas, por que não osprocurou na Arábia, ou simplesmente na Europa Central,onde não se fala sua própria língua, onde não encontra umgrupo importante de compatriotas seus, uma administraçãoque o serve, um exército que o protege? A aventura com-portaria mais imprevisto; essa expatriação, no entanto, maiscerta e de melhor qualidade, teria sido de duvidoso provei-to: a expatriação colonial, se é que há expatriação, deve ser.antes de mais nada, bastante lucrativa. Espontaneamente.melhor que os técnicos da linguagem, nosso viajante nosproporá a melhor definição da colônia: nela ganha-se mais.nela gasta-se menos. Vai-se para a colônia porque nela assituações são garantidas. altos os ordenados, as carreirasmais rápidas e os negócios mais rendosos. Ao jovem diplo-mado oferece-se um posto, ao funcionário uma promoção.ao comerciante reduções substanciais de impostos, ao indus-trial matéria-prima e mão-de-obra a preços irrisórios.

Mas, seja: suponhamos que. exista esse ingênuo. quedesembarque por acaso, como viria a Toulouse ou a Com ar.

Precisaria de muito tempo para descobrir as vantagensde sua nova situação? Pelo fato de ser percebido mais tar-de, o sentido econômico da viagem colonial nem por issodeixa de impor-se. e rapidamente. O europeu das colôniaspode também, é claro, amar essa nova região, apreciar opitoresco dos seus costumes. Mas, mesmo repelido pelo seuclima. mal à vontade no meio de suas multidões estranha-mente vestidas, saudoso do seu país natal, o problema dora-vante é o seguinte: deve aceitar esses aborrecimentos e essemal-estar em troca das vantagens da colônia?

Bem cedo não esconde mais; é freqüente ouvi-lo sonharem voz alta: alguns anos ainda e comprará uma casa na

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metrópole. ., uma espécie de purgatório em suma, um pur-gatório remunerado. Doravante. mesmo farto. enjoado deexotismo. algumas vezes doente, ele se prende: a armadilhafuncionará até a aposentadoria ou mesmo até a morte. Comoretornar à metrópole, onde lhe seria necessário reduzir seupadrão de vida pela metade? Retornar à lentidão viscosa desua carreira metropolitana?

Quando, nestes últimos anos, com a aceleração da his-tória, a vida se tornou difícil. freqüentemente perigo,c;a paraos colonizadores, foi esse cálculo tão simples, porém irres-pondível, que os reteve. Mesmo aqueles que na colônia sãochamados aves de arribação n~o manifestaram excessivapressa em partir. Alguns. considerando a volta.. puseram-sea temer, de forma inesperada, uma nova expatriação: a dese reencontrarem em seu país de origem. Podemos acreditarem parte; deixaram seu país há muito tempo, e nele não têmmais amizades vivas, seus filhos nasceram na colônia e nacolônia enterraram seus mortos. Mas, exageram sua dilace-ração; se organizaram seus hábitos quotidianos na cidadecolonial e, para ela importaram e a ela impuseram os costumesda metrópole, onde passam regularmente suas f~rias, deonde recolhem suas inspirações administrativas. políticas eculturais, é para a metrópole que seus olhos permanecemconstantemente voltados.

Sua expatriação, na verdade, é de base econômica: ado novo-rico que se arrisca a ficar pobre.

Resistirão, pois, o maior tempo possível. porque quantomais passa o tempo mais duram as vantagens, que bem me-recem algumas inquietações e que sempre será cedo demaispara perder. Mas, se um dia o econômico é atingido, se as "si-tuações", como se diz, correm perigos reais, o colonizador sen-te-se então ameaçado e pensa. seriamente, dessa vez, emregressar à metrópole.

No plano coletivo, a questão €; ainda mais clara. Osempreendimentos coloniais nunca tiveram outro sentido con-~es~ado. Quando das negociações franco-tunisinas, alguns

tgen~os se admiraram da relativa boa vontade do governorances, particularmente no domínio cultural, depois daaquiescência, aliás rápida, dos chefes da colônia. É que ascabeças pensantes da burguesia e da colônia tinham com-preendido que o essencial da colonização não era nem o

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prestígio da bandeira, nem a expansão cultural, nem mesmoo controle administrativo e a salvação de um corpo de fun-cionários. Admitiram que se pudesse transigir em tudo, des-de que o principal, quer dizer, as vantagens econômicas,fosse salvo. E, se o Sr. Mendes-France pôde efetuar suafamosa viagem-relâmpago, foi com sua benção e sob a pro-teção de um déles. Foi esse exatamente seu programa e oconteúdo mais importante das convenções.

o INDÍGENAE o PRIVILEGIADO

Tendo descoberto o lucro, por acaso ou porque o haviaprocurado, o colonizador não tomou ainda consciência, ape-sar disso, do papel histórico que deverá desempenhar. Pre-cisa dar mais um passo no conhecimento de sua nova situa-ção: falta-lhe compreender igualmente a origem e a signi-ficação d~sse lucro. A bem dizer, isso não tardará muito.Poderia demorar muito tempo para ver a miséria do colo-nizado e a relação dessa miséria com seu bem-estar? Percebeque esse lucro só é tão fácil porque tirado de outros. Emsuma, faz duas aquisições em uma: descobre a existência docolonizado e ao mesmo tempo seu próprio privilégio.

Sabia, sem dúvida, que a colônia não era povoada uni-camente por colonos ou colonizadores. Tinha mesmo algu-ma idéia dos colonizados graças aos livros de leitura de suainfância; tinba visto no cinema certo documentário sobrealguns de seus costumes, escolhidos de preferência pela suaestranheza. Mas, esses homens, pertenciam precisamenteaos domínios da imaginação, dos livros ou do espetáculo.Não lhe diziam respeito, ou muito pouco, indiretamente, porintermédio de imagens comuns a toda a sua nação, epopéiasmilitares, vagas considerações estratégicas. Inquietavam-no um pouco desde que tinha decidido ir ele mesmo paraa colônia; não mais, porém, do que o clima, talvez desfa-vorável, ou a água que diziam ser por demais calcária. Eeis que esses homens, subitamente, deixam de ser simpleselementos de cenário geográfico ou histórico, e instalam-seem sua vida.

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Nem mesmo pode decidir-se a evitá-Ios:deve viver emrelação constante com eles, pois é essa relação mesma quelhe permite esta vida, que decidiu procurar na colônia; éessa relação rendosa, que cria o privilégio. Encontra-se emum dos pratos de uma balança que carrega, no outro, o co-lonizado. Se seu nível de vida é elevado, é porque o docolonizado é baixo; se pode beneficiar-se de mão-de-obra,de criadagem numerosa e pouco exigente, é porque o colo..nizado é explorável impunemente e não se acha protegidopelas leis da colônia; se obtém tão facilmente postos admi-nistrativos, é porque esses postos lhe são reservados e por-que o colonizado deles está excluído; quanto mais respiraà vontade mais o colonizado sufoca.

Tudo isso, não pode deixar de ser por ele descoberto.Não é ele que correria o risco de ser convencido pelos dis-cursos oficiais, pois eSses discursos são redigidos porêle,ou por seu primo, ou por seu amigo; as leis que estabelecemseus direitos exorbitantes e os deveres dos colonizados, éele que as concebe, e, porque é incumbido de sua aplicação,está necessariamente no segredo das instruções discrimina-tórias, muito pouco discretas, aliás, referentes às classifica-ções nos concursos e à distribuição dos empregos. Se pre-tendesse ficar cego e surdo em relação ao funcionamentode toda a máquina, bastaria que recolhesse os resultados:ora, é ele o beneficiário de todo o empreendimento.

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o USURPADOR

É impossível, finalmente, que não verifique a iZe'gitimi-dade constante de sua situação. Ilegitimidade que, além dis-so, é de certa maneira dupla. Estrangeiro, chegado a umpaís pelos acasos da história, conseguiu não apenas um lu-gar, mas tomar o do habitante, e outorgar-se privilégiossurpreendentes em detrimento dos que a . eles tinham direi-to. E isso, não em virtude das leis locais, que legitimam decerto modo a desigualdade pela tradição, mas ao subverteras normas vigentes, substituindo-as pelas suas.

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Revela-se assim duplamente injusto: é um privilegiadoe um privilegiado não legítimo, quer dizer, um usu.rpador.E, finalmente, não apenas aos olhos do colonizado, mas aosseus próprios olhos. Se objeta algumas vezes que privilegia-dos também existem no meio dos colonizados, feudais, bur-gueses, cuja opulência iguala ou ultrapassa a sua, o faz semconvicção. Não ser o único culpado pode tranqüilizar, masnão absolver. "Reconheceria facilmente que os privilégiosdos privilegiados autóctones são menos escandalosos que osseus. Sabe também que os colonizados mais favorecidos se-rão sempre colonizados, isto é, que certos direitos lhes serãoeternamente recusados, que certas vantagens lhes serão es-tritamente reservadas. Em resumo, a seus olhos como aosolhos de sua vítima, sabe-se usurpador: é preciso que seacomode com esses olhares e com tal situação.

o PEQUENOCOLONIZADOR

Antes de ver como essas três descobertas ~ lucro, pri-vilégio, usurpação ~, esses três progressos da consciênciado colonizador vão modelar sua figura, por meio de que me-canismos vão transformar o candidato colonial em coloni-zador ou em colonialista, é preciso responder a uma objeçãocorrente: a colônia, dizem constantemente, não inclui apenascolonos. Pode-se falar de privilégios em relação a ferroviá-rios, a funcionários médios ou mesmo a pequenos agriCulto-res, que contam o dinheiro para viver tanto quanto seus ho-mólogos metropolitanos?..

Para usar de uma terminologia cômoda, distinguamoso colonial, o colonizador e o colonialista. O colonial seria oeuropeu vivendo na colônia porém sem privilégios, e cujascondições de vida não seriam superiores às do colonizado decategoria econômica e social equivalente. Por temperamentoou convicção ética o colonial seria o europeu benevolente,que não teria em face do colonizado a atitude do coloniza-dor. Muito bem! Digamos desde logo, mal grado o aparenteexagêro da afirmação: o colonial assim definido não existe,pois todos os europeus das colônias são privilegiados.

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Certame::lte todos os europeus das colônias não sãopotentados, não dispõem de milhares de hectares e não con-trolam administrações. Muitos são, eles mesmos, vítimas dossenhores da colonização. São por eles economicamente ex-plorados, politicamente utilizados, a fim de defenderem in-teresses que, freqüentem ente, não coincidem muito com osseus próprios. Mas, as relações sociais quase nunca são uní-vacas. Contrariamente a tudo o que a esse respeito se pre-fere acreditar, aos votos piedosos e aos protestos interessa-dos: o pequeno colonizador é, de fato, geralmente solidáriodos colonos e defensor encarniçado dos privilégios coloniais.Por quê?

Solidariedade do semelhante com o semelhante? Reaçãode defesa, expressão ansiosa de uma minoria vivendo nomeio de uma maioria hostil? Em parte. Mas, nos bons tem-pos da colonização, protegidos pela polícia e pelo exército,por uma aviação sempre pronta a intervir, os europeus dacolônia não tinham medo, nem tanto, em todo caso, que ex-plicasse tal unanimidade. Mistificação? Na maior parte, cer-tamente. É exato que o pequeno colonizador teria, ele mes-mo, um combate a travar, uma libertação a efetuar; se nãofosse tão gravemente enganado pelos seus e cego pela his-tória. Mas, não creio que uma mistificação possa apoiar-seem uma completa ilusão, possa determinar totalmente o com-portamento humano. Se o pequeno colonizador defende osistema com tanto empenho, é porque é mais ou menos seubeneficiário. A mistificação está no fato de que, para defen-der seus interesses muito limitados, defende outros infinita-mente mais importantes, dos quais é, aliás, a vítima. Mas,enganado e vítima, nisso encontra também suas vantagens.

É que o privilégio é um negócio relativo: mais ou me-nos, porém, todo colonizador é privilegiado, pois o é com-p'a~ativamente e em detrimento do colonizado. Se os privi-l~g~o~dos poderosos da colonização são ostensivos, os pri-vlleglOs miúdos do pequeno colonizador, mesmo o menor det~dos, são muito numerosos. Cada gesto de sua via quoti-diana o coloca em relação ao colonizado e por meio de cada~fsto se beneficia de uma vantagem reconhecida. Tem pro-

e~as COmas leis? A polícia e mesmo a justiça ser-Ihe-ãon:als clementes. Tem necessidade de serviços da administra-çao? Ela ser-Ihe-á menos embaraçosa, abreviar-Ihe-á as for~

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malidades, reservar-Ihe-á um guichê, onde com os pedintesmenos numerosos, a espera será menos longa. Procura umemprego? Precisa passar em um concurso? Lugares, postos,ser-Ihe-ão antecipadamente reservados, as provas serão nasua língua. ocasionando dificuldades eliminatórias ao colo-nizado. Será ele, então. tão cego ou tão obnubilado que ja-mais possa ver que, em condições objetivas iguais, classeeconômica, méritos iguais, é sempre favorecido? C~mo nãose voltaria, de vez em quando. a fim de perceber todos oscolonizados, algumas vezes antigos condiscípulos ou confra-des. dos quais tanto se distanciou.

Finalmente, mesmo que nada peça, mesmo que de nadaprecise, basta-lhe aparecer para ser recebido com o precon-ceito favorável de todos aqueles que têm importância na co-lônia; e mesmo dos que não a têm, pois se beneficia do pre-conceito favorável, do respeito do próprio colonizado quelhe concede mais que aos melhores dos seus; que tem, porexemplo, mais confiança na sua palavra do que na palavrados seus. Ê que ele possui, de nascença, uma qualidade in-dependente dos seus méritos pessoais, da sua classe obje-tiva: é membro do grupo dos colonizadores. cujos valoresreinam e dos quais participa. O país é ritmado pelas suasfestas tradicionais, mesmo religiÓsas, e não pelas dos habi-tantes; o feriado semanal é o do seu país de origem, é abandeira de sua nação que flutua sobre os monumentos, ésua língua materna que permite as comunicações sociais;mesmo seu traje. sua pronúncia, suas maneiras acabam porimpor-se à imitação do colonizado. O colonizador participade um mundo superior, do qual não pode deixar de recolherautomaticamente os privilégios.

OUTROS MISTIFICADORES DA COLONIZAÇÃO

E é ainda sua situação concreta. econômica, psicológica,o complexo colonial. em relação aos colonizados de um lado,aos côlonizadores de outro. que explicará a fisionomia dosoutros grupos humanos: - aqueles que não são nem colo-nizadores nem colonizados. Os nacionais de outras potên-

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das (italianos,. malteses da Tunísia), os candidatos à assi-milação (a maioria dos judeus), os assimilados de data re-cente (corsos na Tunísia, espanhóis na Algéria). Podemosacrescentar aqui os representantes da autoridade recrutadosentre os próprios colonizados.

A pobreza dos italianos ou dos mal teses é tal que podeparecer ridículo falar de privilégio a seu respeíto. Todavia,se freqüentem ente são miseráveis, as migalhas que Ihes dis-pensam sem nelas pensar. contribuem para diferenciá-Ios,para separá-Ios nitidamente dos colonizados. Mais ou menosfavorecidos em relação às massas colonizadas, tendem a es-tabelecer com elas relações de estilo colonizador-colonizado.Ao mesmo tempo, não coincidindo com o grupo colonizador,não tendo o mesmo papel no complexo colonial. dele se dis- -

tinguem cada um à sua maneira.Todos esses matizes são facilmente legíveis na análise

de suas relações com o fato colonial. Se os italianos da Tu-nísia sempre invejaram os privilégios jurídicos e adminis-trativos dos franceses, estão de qualquer modo em melhorsituação que os colonizados. São protegidos por leis inter-nacionais e por um consulado mUIto atuante, sob o cons-tante olhar de uma metrópole atenta. Freqüentemente, lon-ge de serem recusados pelo colonizador, são eles que hesi-tam entre a assimilação e a fidelidade a sua pátria. Enfim,mesma origem européia, religião comum, maioria de costu-me~ idênticos os aproximam sentimentalmente do coloniza-dor. De tudo isso resultam algumas vantagens, .que certa-mente o colonizado não possui: emprego mais fácil. menorinsegurança contra a total miséria e a doença, escolarizaçãomenos precária; alguns cuidados enfim da parte do coloni-zador, a dignidade mais ou menos respeitada. Compreende-remos que, por deserdados que sejam no absoluto, terão,frente ao colonizado, várias condutas semelhantes às docolonizador.

Não se beneficiando da colonização, senão por tabela,helo seu parentesco com o colonizador, os italianos estão~emmenos afastados dos colonizados que os franceses. Não

tem Comeles essas relações contrafeitas, formais, esse tom quer:vela sempre o senhor, dirigindo-se ao escravo, do qualn~o se pode desembaraçar totalmente o francês. Ao contrá-!lo dos franceses, os italianos falam, quase todos, a língua

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dos colonizados, contraem com eles amizades duráveis e mes~mo, sinal particularmente revelador, casamentos mistos. Emsuma, não tendo nisso maior interesse, os italianos não mantêmentre eles e os colonizado~ grande distância. A mesma análiseseria válida, com alguns matizes, em relação aos malteses.

A situação dos israelitas eternos candidatos hesitan~tes e recusados à assimilação pode ser encarada de umaperspectiva semelhante. Sua ambição constante, e quão jus~tificada, é a de escapar à sua condição de colonizado, cargasuplementar para um balanço já pesado. Procuram, assim,parecer~se com o colonizador, na esperança confessada deque deixe de reconhecê~los diferentes dele. Daí seus esforçospara esquecer o passado, para mudar de hábitos coletivos,sua adoção entusiasta da língua, da cultura e dos costumesocidentais. Mas, se o colonizador nem sempre desencorajaabertamente esses candidatos à sua semelhança, jamais lhespermitiu também realizá~la. Vivem assim em penosa e cons~tante ambigüidade; recusados pelo colonizador, participamem parte da situação concreta do colonizado, têm com elesolidariedade de fato; por outro lado, recusam os valores docolonizado enquanto pertencentes a um mundo decadente,do qual esperam escapar com o tempo.

Os recém~assimilados situam~se geralmente muito alémdo colonizador médio. Praticam uma supercolonização;ostentam orgulhoso desprêzo pelo colonizado e lembramcom insistência sua nobreza de empréstimo, desmentida fre~qüentemente por uma brutalidade plebéia e pela sofregui~dão. Deslumbrados ainda com seus privilégios, os saboreiame defendem com avidez e inquietação. E, quando a coloniza~ção corre perigo, fornecem~lhe seus defensores mais dinâ-micos, suas tropas de choque, e, algumas vezes, seus agen~tes provocadores.

Os representantes da autoridade, quadros, "caides".policiais, etc., recrutados entre os colonizados, formam umacategoria de colonizados que pretende escapar à sua condi~ção política e social. Mas. tendo escolhido, devido a isso,colocar-se a serviço do colonizador e defender exclusiva~mente seus inte.lcsses, acabam por adotar sua ideologia,mesmo em relação aos seus e a eles próprios.

Todos enfim, mais ou menos mistificados, mais ou me~nos beneficiários, abusados a ponto de aceitar o injusto sis~

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tema (defendendo-oou resignando~sea ele) que mais for~temente pesa sobre o colonizado. Seu desprezo pode ser ape~nas uma compensação de sua miséria, como o anti-semitis~mo europeu é, freqüentemente, um derivativo cômodo. Talé a história da pirâmide dos tiranetes: cada um, socialment~oprimido por outro mais poderoso, encontra sempre um me~noS poderoso em quem apoiar~se, tornando-se por sua vez,tirano. Que desforra e que orgulho para um pequeno mar-ceneiro não colonizado andar em companhia de um mecânicoárabe levando na cabeça uma tábua e alguns pregos! Paratodos, há pelo menos essa profunda satisfação de ser llega~tivamente melhor que o colonizado: jamais são totalmenteconfundidos na abjeção em que os lança o fato colonial.

Do COLONIAL AO COLONIZADOR

O colonial não existe, porque não depende do europeudas col&nias permanecer colonial, mesmo se tivesse tido essaintenção. Quer o tenha expressamente desejado ou não, éacolhido privilegiado pelas instituições, pelos costumes, pe~Ias pessoas. Tão logo desembarcado ou desde seu nasci~mento, encontra~se em uma situação de fato, comum a todoeuropeu que vive na colônia, situação que o transforma emcolonizador. Mas não é nesse nível, na realidad'i'. que sesitua o problema ético fundamental do colonizador: o doengajamento da sua liberdade e portanto da sua responsa~bilidade. Teria podido. certamente, não tentar a aventuracolonial; desde que o empreendimento começou, no entanto,não depende dele recusar suas condições. É preciso aindaacrescentar que podia encontrar~se sujeito a essas condi~ções, independentemente de toda escolha prévia, se nasceuna colônia de pais já colonizadores, ou se realmente igno~rou, quando de sua decisão, o sentido real da colonização.

É em outro nível que se vai apresentar o v~rdadeiroproblema do colonizador: uma vez que descobriu o sentido

~a c~lonização e tomou consciência da sua própria situação,. ~ sItuação do colonizado, e de suas necessárias relações.Ira aceitá-Ias? Irá aceitar~se ou recusar-se como privilegiado.

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e confirmar a miséria do colonizado, correlativo inevitáveJde seus privilégios? aceitar-se-á como usurpador, e confir-mará a opressão e a injustiça em relação ao verdadeiro ha-bitante da colônia, correlativas da sua excessiva liberdadee do seu prestígio? Irá, finalmente, aceitar-se como coloni-zador, essa imagem de si mesmo que espreita, que já sentedesenhar-se sob o hábito nascente do privilégio e da ilegi-timidade, sob o constante olhar do usurpado? Irá acomo-dar-se com essa situação e com esse olhar e com a própriacondenação por si mesmo, cedo inevitável?

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o Colonizador que se Recusa

o COLONIZADOR DE BOA VONTADE...

Se todo colonial está em atitude imediata de coloniza-dor, não é fatal que todo colonizador se torne um colonia-lista. E os melhores a isso se recusam. Mas o fato colonialnão é uma pura idéia: conjunto de situações vividas, recusá-10 é ou subtrair-se fisicamente a essas situações ou perma-necer e lutar a fim de transformá-Ias.

Acontece que o recém-chegado, à procura de empregoOu funcionário de boas intenções --- muito raramente ho-mem de negócios ou representante das autoridades, menos

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aturdidos ou menos ingênuos --- estupefato desde seus pri~meiros contatos com os menores aspectos da colonização, amultidão de mendigos, as crianças que perambulam semi~lluas, o tracoma, etc., contrafeito diante de tão evidente or~ganização da injustiça, revoltado com o cinismo de seuspróprios compatriotas ("Não preste atenção à miséria! V e~rás: nós nos acostumamos a ela rapidamente!"), pensa ime~diatamente em partir. Obrigado a esperar o fim do contrato,corre, com efeito, o risco de acostumar~se à miséria e aoresto. Mas acontece que I::sse, que pretendia ser apenas co~lonial, não se acostuma: partirá, pois.

Acontece também, que, por diversas razões, não regres~sa. Mas, tendo descoberto o escandalo econômico, políticoe moral da colonização, e não sendo capaz de esquece~lo,não pode aceitar tornar~se o que se tornaram seus compa~triotas; decide ficar, comprometendo~se a recusar a colo~nização.

. . . E SUAS DIFICULDADES

Oh! não se trata necessariamente de uma recusa vio~lenta. Essa indignação nem sempre é acompanhada por umainclinação pela política militante. É mais uma posição deprincípio, com algumas afirmações que não assustariam umcongresso de moderados, ao menos na metrópole. Um pro~testo, uma assinatura de vez em quando, talvez chegue atéà adesão a um grupo não sistematicamente hostil ao colo~nizado. Isso basta para que perceba rapidamente que nãofez senão substituir dificuldades e apuros. Não é tão fácilfugir, pelo espírito, de uma situação concreta, recusar suaideologia continuando a viver em suas relações objetivas.Sua vida se encontra doravante sob o signo de uma contra~dição que lhe surge a cada passo, e que lhe tirará toda coe~rência e toda tranqüilidade.

Que recusa, com efeito, senão uma parte de si mesmo,aquilo que ele se torna lentamente desde que aceitar viverna colônia? Pois participa e desfruta d,;sses privilégios quedenuncia a meia voz. Recebe ordenado menor que o de seus

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compatriotas? Não aproveita as mesmas facilidades paraviajar? Como não calcularia, distraidamente, que breve po~derá comprar um automóvel, uma geladeira, talvez umacasa? Como poderia desembaraçar~se desse prestígio que oaureola e com o qual pretende escandalizar~se?

Chegaria a esbater um pouco sua contradição, a orga~nizar~se nesse desconforto, que seus compatriotas se encar~regariam de sacudi~lo. A princípio com irônica indu)gência;conheceram, conhecem essa inquietação u..n tanto ingênuado recém~chegado; passará com a experiência da vida colo~nial, sob uma multidão de pequenos e agradáveis compro~missos .

Deve passar, insistem, pois o romantismo humanitaristaé considerado na colônia uma doença grave, o pior dos pe~rigos: trata~se, nada mais nada menos, que da passagempara o campo do inimigo.

Se obstinar-se, compreenderá que entra em inconfessa~vel conflito com os seus, conflito esse que permanecerá sem~pre aberto, que jamais acabará a não ser pela sua derrotaou pelo seu retorno ao berço colonizador. Surpreendemo~noscom a violência dos colonizadores contra aquele que, dentreêles, põe em perigo a colonização. Está claro que não podemconsiderá-Io senão como um traidor. Põe em risco os seus nasua própria existência, ameaça toda a pátria metropolitana,que pretendem representar. e que em definitivo representamna colônia. A incoerência não está de seu lado. Qual seria,a rigor, o resultado lógico da atitude do colonizador querecusasse a colonização, senão desejar seu desaparecimento,quer dizer o desaparecimento dos colonizadores enquantotais? Como não se defenderiam com aspereza, contra umaatitude que resultaria na sua imolação, no altar da justiça,talvez, mas de qualquer modo em seu sacrifício? E se aomenos reconhecessem inteiramente a injustiça de suas posi-ções. Mas. precisamente as aceitaram, acomodaram-se aelas, graças a meios que veremos. Se não pode superar esseinsuportável moralismo que o impede de viver, se nele crêtão fortemente, que comece por partir: dará a prova da se~riedade de seus sentimentos e resolverá seus problemas...~ ~eixará de criar problemas para seus compatriotas. Senão,e lllútil supor que possa continuar a perturbá-Ios impune-mente. Passarão ao ataque e lhe devolverão golpe por gol~

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pe; seus camaradas tornar~se~ão intratáveis, seus superioreso ameaçarão; até sua mulher interferirá e chorará -- as mu~lheres têm menos preocupação da humanidade abstrata --e confessa, os colonizados nada significam para ela e só sesente à vontade entre os europeus.

Não lhe restará, então, outra saída a não ser a submissãcno seio da coletividade colonial ou a partida? Sim, restaainda uma. Já que sua rebelião lhe fechou as portas da co~lonização e o isolou no meio do deserto colonial. por quenão bateria à porta do colonizado, que ele defende, e quecertamente, lhe abriria os braços, reconhecido? Descobriuque um dos campos era o da injustiça, o outro é, então, odo direito. Que dê um passo a mais, que vá até o fim de suarevolta, a colônia não se limita aos europeus! Recusando oscolonizadores, condenado por eles, que adote os colonizadose por eles se faça Çldotar: que se torne trânsfuga.

Na verdade, tão pouco numerosos são os colonizadores,mesmo com muito boa vontade, dispostos a enfrentar essecaminho, que o problema é antes teórico; é decisivo, no en~tanto, para a inteligência do fato colonial. Recusar a colo~nização é uma coisa, adotar o colonizado e fazer-se por deadotar, são coisas diferentes, que de modo algum estão li~gadas.

Para conseguir esta segunda conversão, teria sido ne-cessário, segundo parece, que nosso homem fosse um heróimoral; e muito antes disso, a vertigem dele se apodera; arigor, já dissemos, seria necessário que rompesse econômicae administrativamente com o campo dos opressores. Seria aúnica maneira de tapar~lhes a boca. Que demonstração deci~siva, renunciar à quarta parte do ordenado ou desprezar osfavores da administração! Deixemos isso, contudo; admite~se perfeitamente hoje em dia que se possa ser, esperando arevolução, revolucionário e explorador. Descobre que, se oscolonizados têm a justiça em seu favor, se pode ir até aoponto de levar-Ihes sua aprovação e mesmo sua ajuda, suasolidariedade pára aí: ele não é dos seus e não tem vontadealguma de sê~lo. Entrevê vagamente o dia de sua libertação,a reconquista dos seus direitos, não pensa seriamente emparticipar de sua existência mesmo liberta.

Traço de racismo? Talvez, sem que disso se dê muitaconta. Quem pode evitá~lo completamente em um país onde

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todo mundo é por ele atingido, inclusive as vítimas? Serátão natural assumir, mesmo em pensamento, sem ser obri~gado a isso, um destino sobre o qual pesa tão grande des~prêzo? Como procederia, aliás, para atrair sobre si esse des~prêzo que se cola à pessoa do colonizado? E como lhe ocor-reria a idéia de participar de uma eventual libertação, se jáé livre? Tudo isso realmente, não passa de um exercíciomental.

E depois, não, não é necessariamente racismo! Apenasteve tempo de perceber que a colônia não é um prolonga-mento da metrópole, que nela não. está em sua casa ~ Issonão é contraditório com suas questões de princípio. Ao con~trário, porque descobriu o colonizado, sua originalidadeexistencial. porque subitamente o colonizado deixou de serelemento de um sonho exótico para tornar-se humanidadeviva e sofredora, o colonizador se recusa a participar do seuesmagamento, decide a vir em seu socorro, Mas, ao mesmotempo, compreende que não fez senão mudar de departa-mento: tem diante de si uma outra civilização, costumes di~ferentes dos seus. homens cujas reações freqüentem ente osurpreendem, com os quais não possui afinidades profundas,

E. já que chegamos a esse ponto. é necessário que con~fesse a si mesmo -- embora se recuse a fazê-lo com os colo-nialistas -- não pode impedir-se de julgar essa civilizaçãoe esse povo. Como negar que sua técnica é gravemente re-tardatária, seus costumes estranhamente imobilizados, suacultura caduca? Oh! apressa-se em responder: essas carên~das não são atribuíveis aos colonizados, mas a decenios decolonização, que cloroformizaram sua história. Alguns argu~mentos dos colonialistas às vezes os perturbam, por exem~pIo: antes da colonização. os colonizados já não estavamatrasados? Se deixaram-se colonizar. foi precisamente por-que não tinham envergadura para lutar, nem militar nemtecnicamente. Certamente. sua insuficiência passada nadasignifica em relação ao seu futuro, nenhuma dúvida de quese a liberdade lhes fosse dada, recuperariam esse atraso:confiam plenamente no genio dos povos, de todos os povos.Acontece. porém, que admite uma diferença fundamentalentre o colonizado e de mesmo. O fato colonial é um fatohistórico específico, a situação e o estado do colonizado.

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atuais bem entendido, são, no entanto, particulares. Admitetambém que essa não é nem sua realidade, nem sua situa-ção, nem seu estado atual.

Certamente, mais do que os grandes movimentos inte-lectuais, os pequenos desgastes da vida quotidiana o confir-marão nessa descoberta decisiva. Comeu cuscus a princípiopor curiosidade, agora o prova de vez em quando por pcli-dez, acha que "isso empanturra, empanzina e não nutre, é,diz brincando, o "abafa-cristão". Ou, se gosta do cuscusnão pode suportar essa "música de feira" que o assalta eo abo,rrece cada vez que passa diante de um café; "por quetão alto? como fazem para ouvir-se?". Sofre com esse cheirode velha gordura de carneiro que empesta a casa, desde odesvão sob a escada, onde mora o guarda colonizado. Mui-tos dos traços do colonizado o chocam ou irritam; tem re-pulsas que não chega a esconder e as manifesta em obser-vações que lembram curiosamente as dos colonialistas. Emverdade, está longe, o momento em que estava convencido,a priori, da identidade da natureza humana em tudas as la-titudes. Sem dúvida, ainda acredita nessa identidade, mas,como em uma universalidade abstrata ou em um ideal situa-do no futuro da história.

IJes longe demais, dirão, vosso colonizador de boa von-tade não o é mais tanto assim: evoluiu lentamente, já nãoé um colonialista? De modo algum; a acusação seria, a maiorparte das vezes, precipitada e injusta. Simplesmente não sepode viver, e a vida toda, naquilo que permanece para nóscomo pitoresco, quer dizer em um grau mais ou menos in-tenso de expatriação. É possível interessar-se pelo pitorescocomo turista, apaixonar-se por ele durante algum tempo,acaba por fartar-se dêle, por defender-se dêle. Para viversem angústia, é preciso viver distraído de si mesmo e domundo; é preciso reconstituir em torno de si os odores e osruídos da infância, que são os únicos econômicos pois nãorequerem senão gestos e atitudes mentais espontaneas. Seriatão absurdo exigir tal sintonia por parte do colonizador deboa vontade quanto pedir aos intelectuais de esquerda queimitassem os operários, como foi moda em certo momento.Após ter-se obstinado por algum tempo em parecer desar-rumado, em usar indefinidamente as mesmas camisas, emusar sapatos com pregos, foi preciso reconhecer a estupidez

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da empresa. Aqui, no entanto, a língua, a maneira de cozi-nhar são as mesmas, os Jazeres incidem nos mesmos temase as mulheres seguem o mesmo ritmo da moda. O coloniza-dor não tem outra coisa a f~zer senão renunciar a qualqueridentificação :::om o colonizado.

, Por que não usar um turbante nos países árabes enão pintar a cara de preto nos países negros? retorquiu-meum dia com irritação um instrutor.

Não é indiferente acrescentar que esse instrutor eracomunista.

A POLÍTICA E O COLONIZADOR DE BOA VONTADE

Dito isto, admito de bom grado seja necessário evitarum excessivo romantismo da diferença. Pode-se pensar queas dificuldades de adaptação do colonizador de boa vontadenão têm maior importância, que o essencial é a firmeza daatitude ideológica, a condenação da colonização. A não ser,evidentemente, que essas dificuldades acabem por perturbara retidão do julgamento ético. Ser da esquerda ou da direi-ta não é apenas uma mapeira de pensar, mas também (prin-cipalmente. talvez) uma maneira de sentir e de viver. Note-mos apenas que raros são os colonizadores que não se dei-xam invadir por essas repulsas e essas dúvidas, e, aJémdisso, que esses matizes devem ser tomados em considera-ção para compreender suas relações com o colonizado e ofato colonial.

Suponhamos pois que nosso colonizador de boa vonta-de tenha conseguido por entre parêntesis, ao mesmo tempo,o problema de seus próprios privilégios. e o de suas dificul-dades afetivas. Não nos resta com efeito senão considerarSUa atitude ideológica e política.

Era comunista ou socialista, de qualquer matiz, ou ape-nas democrata; e assim continuou na colônia. Decidiu, fos-~em quais fossem os avatares de sua própria sensibilidadeIndividual ou nacional, continuar a sê-Ia; melhor ainda, aagir como comunista, socialista ou democrata, quer dizer atrabalhar pela igualdade econômica e pela liberdade social,

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o que se deve traduzir na colônia pela luta em favor dalibertação do colonizado e da igualdade entre colonizadorese colonizados.

o NACIONALISMO E A ESQUERDA

Abordamos agora um dos capítulos mais curiosos dahistória da esquerda contemporânea (se tivessem ousadoescrevê~lo) e que se poderia intitular o nacionalismo e a es~quer~a. A atitude política do homem de esquerda a respeitodo problema colonial seria um dos seus parágrafos; as rela~ções humanas vividas pelo colonizador de esquerda, a ma~neira pela qual recusa e vive a -colonização, formariamoutro.

Existe um incontestável mal~estar da esquerda européiaem face do nacionalismo. O socialismo pretendeu ter voca~ção internacionalista durante tanto tempo que essa tradiçãopareceu ligar~se definitivamente à sua doutrina, e inc1uir~seentre as seus princípios fundamentais. Nos homens de es~querda da minha geração, a palavra nacionalista ainda pro~voca uma reação de desconfiança senão de hostilidade. Des~de que a URSS, "pátria internacional" do socialismo, co~locou~se como nação - por motivos que seria longo exami~1}ar aqui -, suas razões não pareceram de 'modo algumconvincentes a muitos de seus admiradores mais devotados.Ultimamente, disso nos lembramos, os governos dos povosameaçados pelo nazismo apelaram, após breve hesitação,para as respostas nacionais, um pouco esquecidas. Destavez, os partidos operários, preparados pelo exemplo russo,na iminência do perigo, tendo descoberto que o sentimentonacional permanecia poderoso no seio de suas tropas; res-ponderam a esse apelo e com ele colaboraram. O partidocomunista francês chegou a retomá-Io por conta própria,reivindicaI'do~se como "partido nacional", reabilitando abandeira tricolor e a Marselhesa. E foi ainda essa tática -ou essa renovação - que prevaleceu após a guerra contraa invasão dessas velhas nações pela jovem América. Em lu~gar de bater~se em nome da ideologia socialista contra um

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perigo capitalista, os partidos comunistas e grande parte daesquerda, preferiram opor uma entidade nacional a outraentidade nacional, assimilando deploravelmente americanose capitalistas. De tudo isso, resultou certa confusão na ati~tude socialista a respeito do nacionalismo, uma hesitação naideologia dos partidos operários. A reserva dos jornalistase ensaistas de esquerda diante desse problema é muito sig~nificativa. Enfrentam~no o menos possível, não ousam nemcondená~lo nem aprová-Io. não sabem nem mesmo se que~rem integtá~lo, inc1uí~lo na sua compreensão do futuro his~tórico. Em uma palavra, a esquerda atual está desorientadadiante do nacionalismo.

Ora, por múltiplas razões, históricas, sociológicas e psi~cológicas, a luta dos colonizados pela sua libertação assu~miu acentuado aspecto nacional e nacionalista. Se a esquer~da européia não pode senão aprovar, encorajar e sustentaresta luta, como toda e qualquer esperança de liberdade,sente profunda hesitaçãb, real inquietação diante da formanacionalista dessas tentativas de libertação. Há mais: a re~novação nacionalista dos partidos operários é principalmen~te uma foC'm~ para um mesmo conteúdo socialista. Tudo sepassa como se a libertação social, que permanece a finali~dade última, constituísse um avatar da forma nacional maisou IItenos &rável; apenas as Internacionais tinham enter~rado'" cedo demais as nações. Ora, o homem de esquerdanem sempre percebe. com suficiente evidência, o conteúdosocial imediato da luta dos colonizados nacionalistas. Emsuma, o homem de esquerda não encontra na luta do colo~nizado, que sustenta a priori, nem os métodos tradicionaisnem as finalidades últimas dessa esquerda da qual faz parte.E, bem entendido. essa inquiétação. essa desambientaçãosão singularmente agravadas no colonizador de esquerda.quer dizer no homem de esquerda que vive na colônia econvive diariamente com o nacionalismo.

Tomemos um exemplo entre os meios utilizados nessaluta: o terrorismo. Sabemos que a tradição da esquerda con~dena o terrorismo e o assassinato político. Desde que os

fol~nizados passaram a empr.egá~los.a perplexidade do co~o111zadorde esquerda se tornou muito grave. Esforça~se

~~r separá~los da ação voluntária do colonizado, por fazereles um epifenômeno de sua luta: são, assegura ele. explo~

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sões espontâneas de massas oprimidas durante muito tem~po. Ou melhor, ações de elementos instáveis, duvidosos, di~flcilmente controláveis pela cúpula do movimento. Muito ra~ros foram 0.<;que, mesmo na Europa, perceberam e admiti-ram, ousaram dizer que o esmagamento do colonizado eratal, tal era a desproporção de forças, que foi compelido,moralmente com ou sem razão, a utilizar voluntariam.enteésses meios. O colonizador de esquerda em vão se esforça-va, certos atos lhe parecer~m incompreensíveis, escandalosose polIticamente absurdos; como, por exemplo, a morte decrianças ou de estrangeiros na luta, ou mesmo de coloniza-dos que, no fundo de acordo, desaprovavam este ou aqu~lepormenor da empresa. A princípio ficoú tão perplexo quenão achava outra saída senão negar tais atos; não podiamencontrar lugar algum, com efeito, na sua perspectiva doproblema. Que a crueldade da opressão explicasse a ceguei-ra da reação, não lhe pareceu um argumento satisfatório:não pode aprovar no colonizado o que combate na coloniza-ção, justamente porque condena a colonização.

Em seguida, desconfiando sempre que as notícias fos~sem falsas, diz, em desespero de causa, que tais ações sãoerros, isto é, não d.everiam fazer parte da essência do movi-mento. Os chefes certamente as desaprovam, afirma cora-josamente. Um jornalista que sempre defendeu a causa doscolonizados, cansado de esperar pelas condenações que nãovinham, acabou um dia intimando publicamente certos che-fes a tomarem posição contra os atentados. Não recebeu, éclaro, resposta alguma, nem teve também a ingenuidade deinsistir.

Diante desse silêncio, que restava fazer? Interpretar.Pôs-se a explicar o fenômeno, a explicá-Io aos outros, comoseu mal~estar permitia: mas nunca, observemos, a justificá-10. Os chefes, acrescenta agora, não podem falar, não fala~rão, mas nem por isso deixam de pensar no assunto. Teriaaceito com alívio, com alegria, o menor sinal de entendi~mento. E, como esses sinais não podem vir, encontra-se di~ante de terrível alternativa: ou, assimilando a situação colo~nial a qualquer outra, deve aplicar-lhe os mesmos esquemas,julgá-Ia e julgar o colonizado segundo seus valores tradicio-nais, ou considerar a conjuntura colonial como original e re~nunciar aos seus hábitos de pensamento político, aos seus

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valores, quer dizer, precisamente àquilo que o levou a to-mar partido. Em suma, ou não reconhece mais o colonizadoou não se reconhece mais. Todavia, não podendo decidir-sea escolher um desses caminhos, permanece na encruzilhadae fica no ar: atribui a uns e outros, de acurdo com sua con-veniência, intenções inconfessáveis, reconstrói um colonizadosegundo seus desejos; em suma, entrega-se à fabulação.

Nem por isso está menos preocupado com o futuro des-.ta libertação, ao menos com o seu futuro próximo. É fre-qüente que a futura nação que se adivinha, que já se afirmaalém da luta. se queira religiosa, por exemplo. ou não revelepreocupação alguma de liberdade. Ainda aí não há outrasaída s~não a de atribuir-lhe um pensamento oculto, maisousado e mais generoso: no fundo de seus corações, todosos combatentes lúcidos e responsáveis não são ap'Z'na,,-teo-cratas, têm o gosto e a veneração da liberdade. É a conjun-tura que os obriga a disfarçar seus verdadeiros sentimentos;sendo a fé ainda muito viva nas massas colonizadas, devemlevá~la em conta. Não manifestam preocupações democrá-ticas? Obrigados a aceitar todas as colaborações, evitamassim chocar os proprietários, burgueses e feudais.

Contudo, os fatos, rebeldes, quase nunca chegam a co-locar~se nos lugares indicados pelas suas hipóteses; e o mal-estar do colonizador de esquerdét permanece vivo, semprerenascente. Os chefes colonizados não podem condenar ossentimentos religiosos de suas tropas, ele o reconhece, masdar a se servirem desses sentimentos! Essas proclamaçõesem nome de Deus, o conceito de guerra santa, por exemplo,o confunde, o apavora. Será, realmente, pura tática? Comonão verificar que a maior parte das nações ex-colonizadasse apressam, tão logo livres, a inscrever a religião na suaconstituição? Que suas polícias, suas estruturas jurídicasnascentes em nada correspondem às premissas da liberdadee da democracia que o colonizador da esquerda esperava?

Então, temendo no fundo de si mesmo enganar-se ain-da uma vez, recuará um passo, apostará em um futuro umpouco mais longínquo: Mais tarde, certamente, surgirão doseio desse:;; povos, guias que exprimirão suas necessidadesnão mistificadas, que defenderão seus verdadeiros intere§;ses, de acordo com os imperativos morais (e socialistas) dahistória. Era inevitável que só os burgueses e os feudais,

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que puderam fazer alguns estudos, fornecessem quadros eimprimissem essa cadência ao movimento. Mais tarde: os co-lonizados livrar-se-ão da xenofobia e das tentações racistas,que o colonizador de esquerda discerne com inquietação.Reação inevitável ao racismo e à xenofobia do colonizador;é preciso esperar que desapareçam o colonialismo e as cha-gas que deixou na carne dos colonizados. Mais tarde, po-derão desembaraçar-se do obscurantismo religioso...

Mas, enquanto espera, o colonizador de esquerda nãopode deixar de permanecer dividido em relação ao sentidoda luta imediata. Ser de esquerda, para ele, não significaapenas aceitar e ajudar a libertação nacional dos povos, mastambém a democracia política e a liberdade, a democraciaeconômica e a justiça, a recusa da xenofobia racista e a uni-versalidade, o progresso material e espiritual. E se todaesquerda verdadeira deve querer e ajudar a promoção na-cional dos povos', é também, para não dizer principalmente,porque essa promoção significa tudo isso. Se o colonizadorde esquerda recusa a colonização e se recusa a si mesmocomo colonizador, é em nome desse ideal. Ora, descobreque não há ligação entre a libertação dos colonizados e aaplicação de um programa de esquerda. Melhor ainda, quetalvez ajude o nascimento de uma ordem social onde não hálugar para um homem de esquerda enquanto tal, ao menosem futuro próximo.

Acontece mesmo que, por diversas razões .- para con-ciliar a simpatia das forças reacionárias, realizar uma uniãonacional ou por convicção - os movimentos de libertaçãoafastam desde logo a ideologia de esquerda e recusam sis-tematicamente -sua ajuda, colocando-a assim em insuportávelembaraço, condenando-a à esterilidade. Assim, enquantomilitante de esquerda, o colonizador encontra-se pratica-mente excluído do movimento de libertação colonial.

O TRÂNSFUGA

Suas próprias dificuldade's, aliás, essa hesitação que,vista de fora, assemelha-se, curiosamente, ao arrependimento,ainda mais o excluem, o tornam suspeito, não apenas aos

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olhos do colonizado mas também junto às pessoas da es-querda metropolitana; e é isso que mais o faz sofrer. Rom-.peu com os europeus da colônia, mas assim o quis, desprezasuas injúrias, delas até se orgulha. Mas as pessoas de es-querda são verdadeiramente suas, os juízes que se atribui,diante dos quais faz questão de justificar sua vida na colô-nia. Ora, seus pares e seus juízes não o compreendem; amenor de suas tímidas reservas não desperta senão Clescon-fiança e indignação. E então, lhe dizem, um povo espera,suportando fome, doença e desprezo, uma criança em cadaquatro morre sem completar um ano, e lhe pede garantiasquanto aos meios e o fim! E quantas condições exige paracolaborar! Trata-se realmente, nessa questão. de ética e deideologia! A única tarefa no momento é a de libertar eSsepovo. Quanto ao futuro, terá sempre tempo de ocupar-sedele quando se !ornar presente. No entanto, insiste ele, jápodemos prever a fisionomia do após-libertação... Farãoque se cale com um argumento decisivo .- na medida quese trata de uma recusa pura e simples de encarar esse futu-ro .- mostrando-lhe que o destino do colonizado não lhediz respeito, que aquilo que o colonizado fizer de sua liber-dade não concerne senão ao próprio cólonizado.

Então, nada mais compreende. Se quer ajudar o colo-nizado, é justamente porque seu destino lhe diz respeito,porque seus destinos se cruzam, referem-se um ao outro,porque espera continuar a viver na colônia. Não se podeimpedir de pensar com amargura que a atitude das pessoasde esquerda na metrópole é bastante abstrata. Certamente,na época da resistência contra os nazistas, a única tarefaque se impunha e que unia todos os combatentes era a li-bertação. Mas todos lutavam também por determinado fu-turo político. Se tivessem assegurado aos grupos de esquer-da, por exemplo, que o futuro regime seria tcocrático e auto-ritário, ou, aos grupos de direita, que seria comunista, se ti-vessem compreendido que, por motivos sociológicos imperio--sos, seriam esmagados após a luta, teriam, uns e outros,continuado a combater? Talvez; mas, teríamos julgado suashesitações, suas inquietações tão chocantes? O colonizadorde esquerda pergunta a si mesmo se não pecou por orgulho,acreditando que o socialismo fosse exportave1 e o marxismo

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universal. Nessa questão, confessa, julgava~se no direito dedefender sua concepção do mundo, de acordo com a qualesperava orientar sua vida.

Um golpe ainda, porém: já que todo mundo parece es~tar de acordo, a esquerda metropolitana e o colonizado(concordando curiosamente a esse respeito com o colonia-lista, que afirma a heterogeneidade das mentalidades) Jáque todo mundo lhe acena "boa-tarde, Basile!", submeter-se~á. Defenderá a libertação incondicional dos colonizados,com os meios dos quais se servem, e o futuro que parecemter escolhido. Um jornalista do melhor. semanário da esquer~da francesa acabou por admitir que a condição humana pos-sa significar o Alcorão e a Liga árabe. O Alcorão, admite~se; mas a Liga árabe! A justa causa de um povo deverá im~plicar suas mistificações e seus erros? Para não ser excluídoou tornar~se suspeito, o colonizador de esquerda aceitará,no entanto, todos os temas ideológicos dos colonizados emluta: esquecerá provisoriamente que é de esquerda.

E acabou? Nada é menos certo. Porque, para conseguirtornar~se um trânsfuga, como tinha resolvido afinal, não ésuficiente aceitar totalmente aqueles peIos quais deseja seradotado, é preciso ainda ser adotado por eles.

O primeiro ponto não deixava de envolver dificuldadee contradição grave, pois precisaria abandonar aquilo peloque fazia tantos esforços: seus valores políticos. Nem tam-pouco uma quase utopia cuja possibilidade admitimos. O in-telectual ou o burguês progressista pode desejar que se ate~nue um dia aquilo que o separa dos seus camaradas de luta;são características de classe às quais renunciaria de bomgrado. Mas, não aspira seriamente a mudar de língua, dehábitos, de religião, etc..., mesmo pela paz de sua cons-ciência, mesmo pela sua segurança material.

O segundo ponto não é também muito fácil. Para quese integre realmente no contexto da luta colonial, não é su~ficiente sua total boa vontade, é preciso ainda que sua ado~ção pelo colonizado seja possível: ora, ele desconfia que nãoterá lugar na futura nação. Será a última descoberta, a maisperturbadora para o colonizador de esquerda, aquela que fazfreqüentemente às vésperas da libertação dos colonizados,embora na verdade fosse previsível desde o começo.

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Para compreender esse ponto, é preciso recordar estetraço essencial da natureza do fato colonial: a situação co~lonial é relação de povo com povo. Ora, ele faz parte dopovo opressor e será, queira ou não, condenado a participardo seu destino, como participou de sua fortuna. Se os seus,os colonizadores, devessem um dia ser expulsos da colônia,o colonizado não faria provavelmente exceção em seu favor:se pudesse continuar a viver no meio dos colonizados, comoestrangeiro tolerado, suportaria, com os antigos colonizado~res, o rancor de um povo outrora por eles maltratado; se opoderio da metrópole devesse, ao contrário, permanecer nacolônia, continuaria a recolher sua parte de ódio, mal gradosuas manifestações de boa vontade. A bem dizer, o estilode uma colonização não depende de um ou de alguns indi~víduos generosos ou lúcidos. As relações coloniais não de~pendem da boa vontade ou do gesto individual; existiamantes de sua chegada ou de seu nascimento, quer as aceiteou as recuse não as modificará profundamente; são elas, aocontrário, que, como toda instituição, determinam a prioriseu lugar e o do colonizado e, em definitivo, suas verdadei~ras relações. Em vão, se tranqüilizará: "Sempre fui isso ouaquilo com os colonizados", desconfia, embora não seja demodo algum culpado como indivíduo, que participa de umaresponsabilidade coletiva, enquanto membro de um gruponacional opressor. Oprimidos como grupo, os colonizadosadotam fatalmente uma forma de libertação nacional e étni~ca, da qual de não pode deixar de ser excluído.

Como poderia impedir~se de pensar, uma vez mais, queessa luta não é a sua? Por que lutaria por uma ordem socialna qual compreende, aceita e decide que não haverá lugarpara ele?

IMPOSSIBILIDADE DO COLONIZADOR DE ESQUERDA

Visto mais de perto, o papel do colonizador de esquer~da desaparece. Existem, creio eu, situações históricas im~possíveis, essa é uma delas. Sua vida atual na colônia é -Íi~nalmente inaceitável pela ideologia do colonizador de es~querda, e se essa ideologia triunfasse poria em questão sua

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própria existência. A conseqüência lógica de semelhantetomada de consciência seria o abandono desse papel.

Pode tentar, sem dúvida, um compromisso e toda suavida será uma longa série de acomodações. Os colonizadosno meio dos quais vive não são e jamais serão sua gente.Tudo bem pesado, não pode identificar~se com eles e elesnão podem aceitá~lo. "Estou mais à vontade com os euro-peus colonialistas, confessou~me um colonizador de esquer~da acima de qualquer suspeita, do que com não importa qualdos colonizados." Não considera, se é que algum dia con~siderou, essa assimilação; falta~lhe, aliás, a imaginação ne~cessária a semelhante revolução. Quando lhe acontece so~nhar com um amanhã, com um estado social inteiramentenovo onde o colonizado deixaria de ser um colonizado, nãoconsidera de modo algum. em compensação, uma transfor~mação profunda de sua própria situação e de sua própriapersonalidade. Nesse novo estado, mais harmonioso, conti-nuará a ser aquilo que é, com sua língua preservada e suastradições culturais dominantes. Por uma contradição afetivaque não vê em si mesmo ou que se recusa a ver, espera con~tinuar a ser europeu de direito divino em um país que nãomais seria a coisa da Europa; mas desta vez do direito di-vino do amor e da confiança reencontrada. Não seria maisprotegido e imposto pelo seu exército mas pela fraternidadedos povos. Juridicamente, apenas algumas pequenas mudan-ças administrativas, das quais não adivinha o sabor real eas ~onseqüências. Sem dela ter uma idéia legislativa clara.espera, vagamente, fazer parte da futura jovem nação, masse reserva firmemente o direito de permanecer um cidadãodo seu país de origem. Enfim, aceita que tudo mude, fazvotos pelo fim da colonização, mas recusa-se a admitir queessa revolução possa acarreté'T um transrorno de sua situa~ção e do seu ser. Pois é demais pedir à imaginação que ima~gine seu próprio fim, mesmo que seja para renascer dife~rente; principalmente se, como o colonizador, não se apre-cia muito esse renascimento.

Compree:J.de~se agora um dos traços mais decepcionan~tes do colonizador de esquerda: sua ineficácia política. Está,antes de mais nada, nele próprio. Decorre do caráter parti~cular de sua inserção na conjuntura colonial. Sua reivindi~cação, comparada à do colonizado, ou mesmo à do coloni-

zador de direita, é aérea. Onde já se viu. aliás. uma reivin-dicação política séria - que não seja uma mistificação ouuma fantasia - que não se apóie em sólidas defesas con~cretas, seja a massa ou o poder, o dinheiró ou a força? Ocolonizador de direita é coerente quando exige o statu quocolonial. ou mesmo quando cmicamente reclama ainda maisprivilégios, ainda mais direitos; defende seus interesses e seumodo de vida, pode mobilizar forças imensas para apoiarsuas exigências. A esperança e a vontade do colonizado nãosão menos evidentes e fundadas sobre forças latentes, malreveladas a elas mesmas, suscetíveis, porém, de surpreen~dentes desenvolvimentos. O colonizador de esquerda se re-cusa a fazer parte do grupo de seus compatriotas; ao mesmotempo lhe é impossível fazer coincidir seu destino com o docolonizado. Que é, politicamente? De quem é a expressão anão ser de si mesmo, quer dizer de uma força desprezívelno cômputo geral?

Sua vontade política ressentir~se~á de uma falha pro~funda, a de sua própria contradição. Se tenta fundar um;j"1100político, nele não interessará senão seus semelhantes,que 'j~ são colonizadores de esquerda, ou outros trânsfugas,nem colon.izadores nem colonizados, eles mesmos em situa~ção falsa. Jéimais conseguirá atrair a massa de colonizadores,cujos interesses e sentimentos contraria por demais; nem oscolonizados, pois seu grupo não saiu del~s nem é por elessustentado, como devem ser os partidos de profunda expres~são popular. Que não tente tomar alguma iniciativa, desen~cadear uma greve, por exemplo; verificaria imediatamentesua absoluta impotência, sua exterioridade. Caso se dispu~sesse a oferecer incondicionalmente sua ajuda, nem por isso~staria seguro de ter interferido nos acontecimentos; seu au~xílio é quase sempre recusado e sempre tido como despre~zível. Finalmente, esse ar de gratuidade não faz senão sub-linhar ainda mais sua impotência política.

Bsse hiato entre sua ação e a do colonizado terá con~seqüências imprevisíveis e freqüentem ente intransponíveis.Malgrado seus esforços para alcançar a realidade política dacolônia, estará constantemente deslocado na sua linguageme nas suas manifestações. Ora hesitará ou recusará tal rei~vindicação do colonizado, da qual não compreenderá logoa significação, o que parecerá confirmar sua tibieza. Ora,

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querendo rivalizar com os nacionalistas menos realistas, en~tregar-se~á a uma demagogia verbal, que, pelos própriosexageros, aumentará a desconfiança do colonizado. Proporáexplicações tenebrosas e maquiavélicas dos atos do coloni~zador, onde o simples jogo da mecânica colonizadora seriasuficiente. Ou, para surpresa irritada do colonizador, des~culpará ruidosamente aquilo que este último condena em simesmo. Em suma, recusando o mal, o colonizador de boavontade jamais pode alcançar o bem, pois a única escolhaque lhe é permitida não é entre o bem e o mal, é entre o male o mal~estar.

Não pode, enfim, deixar de interrogar~se sobre o efeitode seus esforços e de sua voz. Seus acessos de furor verbalnão suscitam senão o ódio dos seus compatriotas e deixamo LOlonizado indiferente. Porque não detém o poder, suasafirmações e promessas não têm influência alguma na vidado colonizado. Não pode, além disso, dialogar com o coloni-zado, apresentar~lhe questões ou pedir garantias. Inclui~seentre os opressores e tão logo faz um gesto equívoco, per~mite~se o menor reparo, e crê poder entregar~se à franque'7"que autoriza a benevolência --- e ei-lo suspeito im~;:lata~mente. Admite, além disso, que não deve conf1Ã!1dircomdúvidas, perguntas públicas, o colonizado em lut:!o Em suma,tudo lhe fornece a prova de sua expatriação, de sua solidãoe de sua ineficácia, Descobrirá lentamente que nada maislhe resta senão calar-se. Já estava obrigado a entremear suasdeclarações de silêncios necessários, para não indispor gra-vemente as autoridades da colônia e ser obrigado a deixaro país. Será preciso confessar que esse silêncio com o qualse dá muito bem, não o dilacera tanto assim? Que fazia, aocontrário, esforço para lutar em nome de uma justiça abs-trata por interesses que não são os seus, que freqüentem enteexcluíam mesmo os seus?

Se não pode suportar esse silêncio e fazer de sua vidaum permanente compromisso, se está entre os melhores, podeacabar também por deixar a colônia e seus privilégios. E sesua ética política lhe proíbe o que consiàera algumas vezesum abandono, fará tanta coisa, condenará as autoridades,até que seja "pusto à disposição da metrópole", segundo opudico jargão administrativo. Deixando de ser um coloni-zador, porá fim à sua contradição e ao seu mal-estar.

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o Colonizador Aceitaque se

. . .Ou o COLONIALISTA

O colonizador que recusa o fato colonial não encontrana sua revolta o fim do seu mal-estar. Se não se suprimea si mesmo como colonizador. instala-se na' ambigüidade.Se repele essa medida extrema, concorre para confirmar,para instituir a relação colonial: a relação concreta de suaexistência com a do colonizado. Podemos compreender -quelhe seja mais cômodo aceitar a colonização, percorrer até ofim do caminho que leva do colonial ao colonialista.

O colonialista não é, em suma, senão o colonizador quese aceita como colonizador. Que, em conseqüência, explici~

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