mosca, g. a classe política

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From the SelectedWorks of carlos luiz strapazzon September 2007 Eight scientific problems to understand Gaetano Mosca´s theorie of "e political class" : with a portuguese version of the Mosca´s classic text Contact Author Start Your Own SelectedWorks Notify Me of New Work Available at: hp://works.bepress.com/carlos_strapazzon/7

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Gaetano Mosca, A Classe Política

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  • From the SelectedWorks of carlos luizstrapazzon

    September 2007

    Eight scientific problems to understand GaetanoMoscas theorie of "The political class" : with aportuguese version of the Moscas classic text

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    Available at: http://works.bepress.com/carlos_strapazzon/7

  • 1

    Oito problemas cientficos para compreender a teoria d A classe

    poltica, de Gaetano Mosca: com uma traduo indita para o

    portugus

    Eight scientific problems to understand Gaetano Moscas theorie

    of "The political class" : with a portuguese version of the Moscas

    classic text.

    Carlos Luiz Strapazzon1 [email protected]

    Setembro - 2007

    1 Doutorando em Direito Constitucional (UFSC), Mestre em Direito do Estado (UFSC), graduado em Direito (UFPr).

    Prof. Direito Constitucional e Cincia Poltica (Centro Universitrio Curitiba Unicuritiba). Coordenador Geral de Ps-graduao lato sensu. Consultor de Polticas Pblicas.

  • 2

    Resumo: Este paper oferece uma traduo indita para a lngua portuguesa de um texto clssico de Gaetano Mosca denominado A classe poltica. tambm, uma reflexo sobre problemas tericos e pesquisa cientfica. Tem, portanto, um objetivo com a difuso da teoria das elites de Gaetano Mosca e outro de interrogar o texto traduzido a partir de oito problemas tericos fundamentais. Palavras-chave: Teoria das Elites. Metodologia da pesquisa cientfica. Abstract: This paper provides an unpublished version into Portuguese of a classic text by Gaetano Mosca called "The political class. It is also a reflection on theoretical problems and scientific research. It therefore has a goal to spread the theory of the elites of Gaetano Mosca and another to question the text translated based on eight theoretical key problems.

    Keywords: Theory of Elites. Methodology of scientific research.

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    Karl Popper, na conferncia de abertura do Congresso da Sociedade Alem de Sociologia em Tbingen, em 1961, discorreu sobre A lgica das cincias sociais. Sua viso suscitou, posteriormente, uma longa discusso pblica com o filsofo Theodor Adorno. Nessa conferncia Popper apresentou 27 teses sobre a cincia e sobre as cincias sociais. Aqui no se pretende polemizar nenhuma dessas teses. Bem ao contrrio, quer-se, a partir da quarta e quinta teses de Popper, analisar o texto de Gaetano Mosca, e nessa medida, produzir uma reinterpretao do texto de Mosca.

    Em razo da natureza das afirmaes de Popper inscritas nessas duas teses e da

    importncia delas para este estudo, tomo a liberdade de primeiramente transcrev-las, para em seguida discuti-las.

    Quarta tese: Na medida em que se pode dizer em absoluto que a cincia ou o conhecimento comea em algum ponto, ento vlido o seguinte: o conhecimento no se inicia com percepes ou observaes ou com a coleta de dados ou fatos, mas com problemas. No existe conhecimento sem problemas --- mas tampouco problema sem conhecimento. Isto , ele comea com a tenso entre conhecimento e ignorncia. (...) Pois todo problema nasce pela descoberta de que algo no est em ordem em nosso pretenso conhecimento; ou, visto logicamente, pela descoberta de uma contradio interna em nosso pretenso saber, ou de uma contradio entre nosso pretenso saber e os fatos; ou, numa expresso ainda mais certeira, pela descoberta de uma aparente contradio em nosso pretenso saber e os pretensos fatos. (Popper, 2006:94) Quinta tese:

    Como acontece com todas as outras cincias, as cincias sociais tambm so bem-sucedidas ou fracassadas, interessantes ou ocas, frutferas ou estreis, na exata proporo com o significado ou o interesse dos problemas de que tratam; e naturalmente tambm na exata proporo com a honestidade, retido e simplicidade com que esses problemas so atacados. No se trata aqui, de modo algum, apenas de problemas tericos. (...) Mas esses problemas prticos levam reflexo, teorizao e, com isso, a problemas tericos. Em todos os casos, sem exceo, o carter e a qualidade do problema --- junto, obviamente, com a ousadia e a originalidade da soluo sugerida --- que determina o valor ou o desvalor de um feito cientfico. O ponto de partida , sempre, portanto, o problema; e a observao s se torna uma espcie de ponto de partida se ela revela um problema; ou, com outras palavras, se nos surpreende, se nos mostra que algo em nosso conhecimento em nossas expectativas, em nossas teorias --- no est totalmente certo. (...) o que se torna ponto de partida de nosso trabalho cientifico no tanto a observao como tal, mas a observao em seu significado caracterstico --- isto , a observao criadora de problema. (Popper, 2006:94)

    Parece justo dizer que, de acordo com Karl Popper, a cientificidade da teoria social

    depende do significado ou do interesse dos problemas de que trata, pois o conhecimento cientfico no se inicia com percepes ou observaes ou com a coleta de dados ou fatos: o conhecimento se inicia com problemas. No entanto, no existe problema sem conhecimento. Isto quer dizer que o que se torna ponto de partida do trabalho cientfico no a observao como tal, mas a observao em seu significado de observao criadora de problema.

    bem conhecida a seqncia da teoria de Popper, e no cabe aqui prolongar-se

    nela. Apenas menciono que para ele as cincias sociais precisam, como qualquer campo cientifico, solucionar os problemas dos quais parte e que tais solues precisam ser

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    sugeridas e criticadas, j que toda soluo de um problema cientfico precisa estar aberta crtica para ser, justamente, cientfica. A crtica a tentativa de refutao, e o conhecimento sem refutao no crtico, e se no critico, isto , se no refuta e no refutvel, no conhecimento cientfico, dogma ou senso comum.

    Essa formulao, breve, da teoria do conhecimento cientfico de Karl Popper foi

    introduzida pois o que vem a seguir justamente um esforo de mapear os problemas cientficos que o texto de Mosca poderia suscitar.

    Como se poder observar, Gaetano Mosca no apresenta claramente os problemas

    tericos de seu texto antes. Ele sequer formulou hipteses especficas para em seguida apresentar a metodologia adotada para resolv-las e, ento, as solues especificas para cada hiptese.

    Bem ao contrrio, Mosca seguiu firmemente uma metodologia de base

    inteiramente aristotlica, denominada por Popper como naturalista. Ocorre que para Mosca, fiel que era tradio naturalista, a cincia comea no por

    problemas, como sustenta Popper, mas pela observao de muitos fatos; em seguida o conhecimento cientfico dever elaborar uma construo histrica dos objetos estudados a fim de produzir uma cincia totalizante, isto , o conhecimento verdadeiramente cientfico para Mosca deve produzir premissas tericas de um saber universal, estvel e definitivo, numa palavra: leis.

    Essa orientao aristotlica, em boa medida foi seguida tambm por Maquiavel e

    Montesquieu, como o prprio Mosca comenta em muitas passagens de seu livro. A diferena entre estes clssicos anteriores e ele, Gaetano Mosca, , segundo ele mesmo, apenas de grau. Ou seja, o grau de confiabilidade das informaes histricas com que cada um trabalhou at ento.

    Por isso que ele afirma, sobre a observao, o seguinte:

    Uma cincia resulta sempre de um sistema de observaes realizadas sobre uma ordem dada de fenmenos, mediante cuidados especiais, mtodos apropriados e coordenados para chegar ao descobrimento de verdades indiscutveis, que restariam ignoradas para a observao vulgar e comum. (MOSCA, 2004a : 42)

    E depois, sobre o mtodo histrico, o seguinte: Qualquer que seja, no futuro, a eficcia prtica da cincia poltica, indiscutvel que os progressos desta disciplina se fundam todos sobre o estudo dos fatos sociais e que esses fatos no podem ser extrados de outro lugar se no da histria das diversas naes. Em outras palavras, se a cincia poltica deve fundar-se sobre o estudo e a observao dos fatos polticos, preciso que recorra ao antigo mtodo histrico. (MOSCA, 2004a : 81).

    E um pouco mais adiante, sobre a confiabilidade do mtodo histrico, o seguinte:

    Indiscutivelmente se o estudo das cincias sociais podia antes to somente intuir, agora conta com os meios para observar em grande escala e com instrumentos e materiais para

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    provar. (...) H fatos que se referem ao tipo de organizao social dos distintos povos e pocas, e sobre esses, que so precisamente os que nos interessam com preferncia, os historiadores, espontaneamente e sem tomar partido, dizem, com freqncia, a verdade; e mais do que os historiadores, iluminam-nos os documentos e os monumentos. (MOSCA, 2004a : 83; 84-85)

    E por fim sobre a viso totalizante da cincia: (...) que se evite extrair todas as observaes de um nico grupo de organismos polticos que pertenam ao mesmo perodo histrico, ou apresentem o mesmo ou pouco diferente tipo de civilizao. (...) A verdadeira salvaguarda contra esses erros consiste em saber elevar o critrio prprio acima das crenas e opinies gerais de nossa poca e do tipo social ou nacional de que participamos; e isso se consegue --- para repetir um conceito j assinalado --- estudando muitos fatos sociais, conhecendo bem e cada vez mais a histria, no s de um perodo ou de um povo, mas, se possvel, de toda a humanidade. (MOSCA, 2004a : 86-87)

    Mosca, ento, bem diferente de Karl Popper, no tem dvidas de que a boa

    observao faz a cincia. Mas a boa observao no s aquela ampla e histrica. tambm crtica, pois precisa ser comparada. S assim o pesquisador pode ter um distanciamento seguro de seu objeto, de suas crenas pessoais, de sua cultura e de sua poca.

    A esta altura, e por fora da presena dessa noo na obra de Mosca, preciso recuperar a noo de cincia crtica de Popper.

    Foi dito antes que de acordo com Popper as cincias sociais precisam, como

    qualquer campo cientfico, solucionar os problemas dos quais parte e que tais solues, no podem ser vistas como definitivas, o que era uma pretenso de Mosca em sua cincia poltica. A contrariedade de Popper a esse tipo de cincia de base aristotlica justamente o dogmatismo que pode produzir. Crtica, na tese de Popper, a cincia no dogmtica, isto , a que no tem a pretenso de produzir axiomas derivados da induo (POPPER, 1972: 41). A soluo de um problema cientfico precisa estar aberta critica para ser, justamente, cientfica, pois no h mtodo indutivo certo. A crtica a refutao, e o conhecimento pretensamente no refutvel no crtico, e se no critico, isto , se no refutvel, no conhecimento cientfico.

    Ento, Mosca e Popper esto de acordo quanto ao fato de que a cincia deve ser

    crtica. Entretanto, Mosca satisfaz-se com a noo de que o saber crtico resulta de amplas observaes comparadas, preferencialmente em perspectiva histrica. As regularidades advindas da produzem axiomas. dizer: Mosca aceita sem problemas a lgica da induo na cincia, e aceitaria, assim, que se todos os cisnes observados so brancos, certamente todos os cisnes so brancos.

    Popper, por sua vez, no aceita, na linha da argumentao de David Hume, esse

    tipo de inferncia. E precisamente por que a cincia no pode ser indutiva que ela no pode ter a pretenso de gerar leis universais a partir da observao.

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    Ento, por onde comear? Como iniciar o trabalho cientfico? Resposta de Popper: o ponto de partida , sempre, portanto, o problema; e a observao s se torna uma espcie de ponto de partida se ela revela um problema.

    Minha questo, neste estudo , ento, quais so os problemas que o texto A classe

    poltica de Mosca revela? Proponho, a seguir, que o texto de Mosca d solues para oito importantes

    problemas tericos da cincia poltica. Para compreender os problemas e as respostas sugiro uma releitura do texto de Mosca, a partir dessas perguntas-problema. A apresentao das respostas de Mosca exigiu uma reordenao da seqncia dos argumentos originalmente apresentado no texto traduzido. Algumas dessas perguntas (1, 2, 5, 6, 7) so consideradas por Robert Dahl (DAHL, 1970: 12-13) como perguntas centrais da histria da Cincia Poltica.

    Para facilitar a identificao das passagens abaixo no texto original de Mosca, as referncias sero feitas por pargrafos, j que o texto original est dividido em oito pargrafos devidamente identificados.

    1. Qual lei fundamental da vida poltica?

    Pode-se dizer que toda a histria da humanidade civilizada se resume na luta entre a tendncia que tm os elementos dominantes capazes de monopolizar de forma estvel as foras polticas e de transmitir sua posse aos filhos de forma hereditria; e a tendncia para a mudana destas foras e para a afirmao de foras novas ( 8.)

    Ainda admitindo que o descontentamento das massas chegasse a destronar a classe

    dirigente, apareceria necessariamente no seio dessa massa (...) outra minoria organizada que passaria a desempenhar o oficio da classe anterior ( 1.)

    2. Quantos so e qual o papel dos atores principais da cena poltica histrica?

    Em todas as sociedades (...), existem duas classes de pessoas: a dos governantes e a dos governados. ( 1.)

    A primeira, que sempre a menos numerosa, desempenha todas as funes

    polticas, monopoliza o poder e desfruta das vantagens que esto ligadas a ele. A segunda, mais numerosa, dirigida e regulada pela primeira de uma maneira mais ou menos legal, ou de um modo mais ou menos arbitrrio e violento, e a ela subministra, ao menos aparentemente, os meios materiais de subsistncia e os indispensveis para a vitalidade do organismo poltico. ( 1.)

    3. Quem a classe poltica?

    Nas sociedades primitivas, isto , que esto no primeiro estgio de sua constituio, a qualidade que mais facilmente abre o acesso classe poltica ou dirigente o valor militar ( 4.)

    Nas sociedades onde as crenas religiosas tm muita fora e os ministros do culto

    formam uma classe especial quase sempre se constitui uma aristocracia sacerdotal que detm uma parte relativamente grande da riqueza e do poder poltico ( 6.).

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    Na Europa de hoje e na Amrica, a classe que aplica os conhecimentos da cincia moderna guerra, administrao pblica, s obras e sade pblica, ocupa uma posio social e poltica destacada ( 6.).

    4. Quem, da classe poltica, de fato governa?

    [De um lado] em todo organismo poltico sempre h uma pessoa no topo da hierarquia de toda a classe poltica e que dirige o que se chama de timo do Estado. Esta pessoa nem sempre a que legalmente teria que dispor do poder supremo: muitas vezes ocorre que junto do rei ou ao imperador hereditrio, h um primeiro ministro ou um majordomo de palcio que tem um poder efetivo acima do prprio soberano ( 1.).

    [De outro lado] o homem que chefe de Estado no poderia governar sem o apoio de

    uma classe dirigente ( 1.).

    5. Como a classe poltica mantm o seu domnio? Duas observaes: a primeira que todas as classes tm a tendncia de se tornarem hereditrias, se no de direito, ao menos de fato [isso porque] no desaparecem as vantagens especiais a favor de alguns, que os franceses definem como as vantagens das posies adquiridas ( 7.). A segunda observao a seguinte: quando vemos estabelecida num pas uma casta hereditria que monopoliza o poder poltico, seguramente o estado de direito foi precedido por um estado de fato ( 7.). Em todos os pases do mundo outros meios de influncia social como a notoriedade, a grande cultura, os conhecimentos especializados, os graus elevados na hierarquia eclesistica, administrativo-militar, sempre foram mais facilmente adquiridos pelos ricos do que pelos pobres ( 5.).

    Os que formam parte da classe poltica vo adquirindo o esprito de corpo e de exclusivismo, e aprendem a arte de monopolizar em seu beneficio as qualidades e atitudes necessrias para chegar ao poder e conserv-lo. Enfim, com o tempo, forma-se a fora conservadora por excelncia (...) ( 8.) A prtica na direo da organizao militar e civil da comunidade deu origem e desenvolveu, na frao mais elevada da classe poltica, uma verdadeira arte de governar superior ao crasso empirismo e experincia individual. Assim se constitui uma aristocracia de funcionrios, como o Senado romano ou o veneziano ( 6.)

    6. O que pode mudar a classe poltica dominante?

    O que vemos que, assim que ocorre a mudana das foras polticas, percebe-se a necessidade de que atitudes diferentes se afirmem na direo do Estado; e se as antigas foras no conservam sua importncia, ou se elas se distribuem de outro modo, muda tambm a composio da classe poltica ( 8.).

    As classes polticas declinam inexoravelmente quando j no podem exercer as qualidades mediante as quais chegaram ao poder, ou quando no podem prestar mais o servio social que prestavam, ou quando suas qualidades e os servios que prestavam perdem importncia no ambiente social onde vivem ( 8.)

    Se numa sociedade aparece uma nova fonte de riqueza, se aumenta a importncia

    prtica do saber, se a antiga religio declina ou nasce uma nova, se se difunde uma nova corrente de idias, ocorrem, ao mesmo tempo, fortes mudanas na classe dirigente ( 8.).

  • 8

    Pode ocorrer que, (...) surja uma cincia nova, ou se recomece a valorizar os resultados

    da antiga, (...) e que as novas idias e crenas removam os hbitos intelectuais sobre os quais se fundava a obedincia das massas ( 8.).

    A classe poltica pode tambm ser vencida e destruda no todo ou em parte por

    invases estrangeiras, e quando se produzem as circunstncias referidas, pode tambm ser derrubada de sua posio por novos estratos sociais expressos em novas foras polticas ( 8.).

    natural que sobrevenha um perodo de renovao ou, definindo de outro modo, de

    revoluo, durante o qual as energias individuais tm importante participao e alguns (...) podem abrir caminho a partir dos graus inferiores da escala social at os mais elevados ( 8.).

    O exemplo de contemporneos que saem do nada e chegam a posies eminentes estimula novas ambies ( 8.).

    7. Como a classe poltica justifica seu domnio? Toda classe governante tende a justificar seu poder de fato, apoiando-se em um principio moral de ordem geral. No entanto, mais recentemente a mesma pretenso vem se apresentando com o apoio de equipes cientficas: alguns escritores, desenvolvendo e ampliando as teorias de Darwin, acreditam que as classes superiores representam um grau mais elevado da evoluo social ( 7.).

    Frequentemente as aristocracias se orgulham de ter uma origem sobrenatural ou ao menos diferente e superior da classe governada ( 7.). A supremacia da raa, a conquista de um povo dbil por outro belicoso argumento comum para explicar o domnio de uma classe guerreira sobre uma multido pacfica. ( 4.). A coragem guerreira, a energia para o ataque, o estoicismo na resistncia so qualidades que por muito tempo foram vistas como exclusivas das classes superiores ( 7).

    8. O que, de fato, sustenta o domnio poltico de uma classe? fatal o predomnio de uma minoria organizada, que obedece a um nico impulso, sobre a maioria desorganizada ( 3). Apesar da enorme vantagem que provm da organizao, as minorias governantes esto constitudas de uma maneira tal, que os indivduos que as compem se distinguem da massa de governados por certas qualidades que lhes outorgam certa superioridade material e intelectual, e at moral; ou ento so os herdeiros dos que possuam estas qualidades. Em outras palavras, devem possuir algum requisito, verdadeiro ou aparente, que seja altamente apreciado e se valorize muito na sociedade em que vivem ( 3).

    (...) A posio social, as tradies de famlia, os hbitos da classe em que vivemos contribuem para o maior ou menor desenvolvimento dessas qualidades ( 7). Gradualmente, (...) uma classe se habituou ao manejo das armas e aos ordenamentos militares enquanto a outra se dedicou unicamente ao manejo do arado e da enxada, os guerreiros de tornaram nobres e patres enquanto os cidados, de companheiros e irmos que eram, converteram-se em viles e servos ( 4).

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    Porm (...), se outras circunstncias colaboram, pode haver uma transformao social muito importante: a qualidade mais caracterstica da classe dominante, mais que o valor militar, passa a ser a riqueza; os governantes so os ricos mais que os fortes ( 5). Em uma sociedade j bastante madura, (...) se os poderosos so em geral ricos, basta ser rico para converter-se em poderoso ( 5). Nas sociedades onde as crenas religiosas tm muita fora e os ministros do culto formam uma classe especial quase sempre se constitui uma aristocracia sacerdotal que detm uma parte relativamente grande da riqueza e do poder poltico ( 6). As noes especializadas e a verdadeira cultura cientfica despojada de todo carter sagrado e religioso converteram-se numa importante fora poltica s num estgio mais avanado da civilizao; e foi ento que o acesso classe governante foi liberado a quem possusse tais conhecimentos ( 6). O que vemos que, assim que ocorre a mudana das foras polticas, percebe-se a necessidade de que atitudes diferentes se afirmem na direo do Estado; e se as antigas foras no conservam sua importncia, ou se elas se distribuem de outro modo, muda tambm a composio da classe poltica ( 8.)

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    A CLASSE POLTICA, de Gaetano Mosca (trad. indita de Carlos Luiz Strapazzon)

    1. Entre as tendncias e os fatos constantes que se encontram em todos os organismos polticos, aparece um cuja evidncia se impe facilmente a todo observador: em todas as sociedades, a comear pelas medianamente desenvolvidas, que apenas chegaram aos prembulos da civilizao, at as mais cultas e fortes, existem duas classes de pessoas: a dos governantes e a dos governados. A primeira, que sempre a menos numerosa, desempenha todas as funes polticas, monopoliza o poder e desfruta das vantagens que esto ligadas a ele. A segunda, mais numerosa, dirigida e regulada pela primeira de uma maneira mais ou menos legal, ou de um modo mais ou menos arbitrrio e violento, e a ela subministra, ao menos aparentemente, os meios materiais de subsistncia e os indispensveis para a vitalidade do organismo poltico.

    Na vida prtica todos reconhecemos a existncia desta classe dirigente ou classe poltica, como outras vezes a defini2. Sabemos, no entanto, que em nosso pas h uma minoria de pessoas influentes na direo da coisa pblica, para a qual a maioria entrega, de bom ou mau grado a direo, e que o mesmo ocorre nos pases vizinhos; e no poderamos imaginar, na realidade, um mundo organizado de outra maneira, no qual todos fossem submetidos a um s, em p de igualdade e sem nenhuma hierarquia entre eles, ou que todos dirigissem por igual os assuntos polticos. Se em teoria raciocinamos de outra maneira, , em parte, por efeito de hbitos enraizados h muito em nosso pensamento e, em parte, devido excessiva importncia que damos a fatos polticos, que sempre aparentam muito superficialmente a realidade.

    O primeiro desses fatos, de fcil comprovao, que em todo organismo poltico sempre h uma pessoa no topo da hierarquia de toda a classe poltica e que dirige o que se chama de timo do Estado. Esta pessoa nem sempre a que legalmente teria que dispor do poder supremo: muitas vezes ocorre que junto do rei ou ao imperador hereditrio, h um primeiro ministro ou um majordomo de palcio que tem um poder efetivo acima do prprio soberano; ou que, em lugar do presidente eleito, governa o poltico influente que o elegeu. Algumas vezes, por circunstncias especiais, em vez de uma pessoa s, so duas ou trs as que tomam a seu cargo a direo suprema.

    O segundo fato , igualmente, de fcil percepo, porque qualquer que seja o tipo de organizao social, pode-se comprovar que a presso proveniente do descontentamento da massa dos governados, as paixes que a agitam, podem influenciar a direo da classe poltica.

    Mas o homem que chefe de Estado no poderia governar sem o apoio de uma classe dirigente que fizesse cumprir e respeitar suas ordens; e se ele pode fazer sentir o peso de seu poder sobre um ou vrios indivduos particulares que pertencem a esta classe, no pode se colocar contra ela em sua totalidade e destru-la. E isso porque, se tal coisa fosse possvel, constituir-se-ia rapidamente outra classe, sem que sua ao ficasse completamente anulada. E por outra parte, ainda admitindo que o descontentamento das massas chegasse a destronar a classe dirigente, apareceria necessariamente no seio dessa massa como mais adiante demonstraremos outra minoria organizada que passaria a desempenhar o oficio da classe anterior. De outro modo, toda organizao e toda estrutura social seria destruda.

    2 Mosca, Terica dei governi e governo parlamentare, cap. I, Turin, Loescher, 1884.

  • 11

    2. O que constitui a verdadeira superioridade da classe poltica, para fins de

    investigao cientfica, a preponderante importncia que a sua constituio diversificada tem na determinao do tipo poltico, e tambm do grau de civilizao dos diferentes povos. Se nos detivermos ao modo usual de classificar as formas de governo, a Turquia e a Rssia eram, at poucas dcadas, monarquias absolutas, a Inglaterra e a Itlia, monarquias constitucionais, enquanto que a Frana e os Estados Unidos se incluam na categoria de Repblicas. Esta classificao est baseada no fato de que, nos dois primeiros pases, o chefe de Estado era hereditrio e nominalmente onipotente; nos segundos, mesmo sendo hereditrio, tinha faculdades e atribuies limitadas; e nos ltimos era eleito. Mas essa classificao , evidentemente, superficial.

    Est claro que muito pouco tem de comum a maneira como estavam regidas politicamente a Rssia e a Turquia, dado que era muito diferente o grau de civilizao destes pases e o ordenamento de suas classes polticas. E, seguindo o mesmo critrio, encontramos que o regime monrquico da Blgica se parece mais com o da Frana republicana do que com a Inglaterra, igualmente monrquica; e que existem diferenas importantssimas entre o ordenamento poltico dos Estados Unidos e da Frana apesar de ambos serem repblicas.

    Como j assinalamos, estes so velhos hbitos de pensar dos que se opuseram, e se opem, ao progresso cientfico. A classificao assinalada por ns, que divide os governos em monarquias absolutas, moderadas e repblicas, de Montesquieu, a qual substituiu a clssica, proposta por Aristteles, que os dividia em monarquia, aristocracia e politeia3. De Polbio a Montesquieu, muitos autores aperfeioaram a classificao de Aristteles, desenvolvendo-a como teoria dos governos mistos. Depois, a corrente democrtica moderna, que teve seu inicio com Rousseau, fundou-se no conceito de que a maioria dos cidados de um Estado podia, ou melhor, devia participar da vida poltica; e a doutrina da soberania popular se imps a muitssimas mentes, apesar de a cincia moderna deixar cada vez mais clara a coexistncia em todo organismo poltico do princpio democrtico, do monrquico e do aristocrtico4. Ns no a refutaremos diretamente aqui, j que a esta tarefa dedicamos todo o conjunto de nosso trabalho, e porque muito difcil destruir em poucas pginas todo um sistema de idias estabelecido na mente humana; j que, como bem escreveu Las Casas em sua vida de Cristvo Colombo, desacostumar-se em muitos casos mais difcil que acostumar-se.

    3. Cremos ser til responder agora a uma objeo que parece muito fcil de ser

    dirigida a esse nosso modo de pensar. Se claramente admissvel que um s no pode comandar uma massa sem que exista uma minoria que o sustente, mais difcil sustentar como um fato constante e natural que as minorias comandem melhor as maiorias do que o inverso. Mas este um dos pontos, como tantos que se do nas demais cincias, em que a aparncia das coisas contrria a sua verdadeira realidade. Neste caso, fatal o predomnio de uma minoria organizada, que obedece a um nico impulso, sobre a maioria desorganizada. A fora de qualquer minoria

    3 Sabe-se que o que Aristteles denominou democracia no era seno uma aristocracia mais extensa, e o

    prprio Aristteles pde observar que em todos os Estados gregos, aristocrticos ou democrticos, havia sempre uma ou pouqussimas pessoas que detinham influncia preponderante. 4 Entre os autores que admitem esta coexistncia basta citar Spencer.

  • 12

    irresistvel frente a cada indivduo da maioria, que se encontra isolado ante a totalidade da minoria organizada, e ao mesmo tempo se pode dizer que esta se acha organizada precisamente porque minoria. Cem indivduos que atuem sempre concertadamente e em inteligncia entre si, triunfaro sobre mil tomados um a um e que no tenham acordo entre si; e ao mesmo tempo ser mais fcil aos primeiros atuar concertadamente e ter, desta maneira, um entendimento, se so cem e no mil.

    Deste fato se deduz facilmente a conseqncia de que, quanto mais vasta uma comunidade poltica, tanto menor pode ser a proporo da minoria governante com respeito maioria governada, e tanto mais difcil ser para esta organizar-se para atuar contra aquela.

    Apesar da enorme vantagem que provm da organizao, as minorias governantes esto constitudas de uma maneira tal, que os indivduos que as compem se distinguem da massa de governados por certas qualidades que lhes outorgam certa superioridade material e intelectual, e at moral; ou ento so os herdeiros dos que possuam estas qualidades. Em outras palavras, devem possuir algum requisito, verdadeiro ou aparente, que seja altamente apreciado e se valorize muito na sociedade em que vivem.

    4. Nas sociedades primitivas, isto , que esto no primeiro estgio de sua constituio, a qualidade que mais facilmente abre o acesso classe poltica ou dirigente o valor militar. A guerra, que na sociedade de civilizao avanada pode ser considerada como um estado excepcional pode-se ver quase como normal nas sociedades que esto no comeo de seu desenvolvimento; e ento os indivduos que revelam melhores atitudes, adquirem facilmente a supremacia sobre os outros: os mais valentes sero os chefes. O fato constante, mas as modalidades que podem assumir diferem conforme o caso.

    A supremacia da raa, a conquista de um povo dbil por outro belicoso argumento comum para explicar o domnio de uma classe guerreira sobre uma multido pacfica. Algumas vezes, certamente, as coisas ocorrem precisamente assim; e h exemplos disso na ndia depois das invases dos rios, e no imprio romano depois das invases germnicas, e no Mxico depois da conquista asteca; entretanto, em certas condies sociais vemos formar-se uma classe guerreira e dominadora tambm onde a conquista estrangeira no foi somente rastreada. Desde que uma horda viva exclusivamente da caa, todos os seus indivduos podem converter-se facilmente em guerreiros, e prontamente aparecero os chefes que tero naturalmente o predomnio na tribo; mas no surgir uma classe belicosa, que ao mesmo tempo se aproveite e tutele a outra dedicada ao trabalho pacfico. Entretanto, medida que vai deixando para trs o estgio de caadores e comea a entrar no estgio da agricultura e pastoreio, nessa antiga horda pode nascer, junto com o enorme aumento da populao e com a maior estabilidade dos meios de influncia social, a diviso mais ou menos ntida em duas classes: uma consagrada exclusivamente ao trabalho agrcola, a outra guerra. Se isso acontece, inevitvel que a ltima adquira preponderncia, aos poucos, sobre a primeira, e que possa inclusive oprimi-la impunemente.

    A Polnia oferece um exemplo caracterstico desta transformao gradual da classe guerreira em classe absolutamente dominante. Em suas origens, os polacos tinham um ordenamento em comunas rurais que se sobressaam dentre todos os povos eslavos; e no havia distino alguma entre guerreiros e agricultores, ou seja, nobres e campesinos. No entanto, depois que eles se estabeleceram nas grandes regies por onde correm os rios Vstula e Niemen, desenvolveram a agricultura e ao

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    mesmo tempo continuou a necessidade de guerrear contra vizinhos belicosos; e isso fez com que os chefes das tribos ou woiewodi se cercassem de certo nmero de indivduos selecionados, que passaram a ter nas armas uma ocupao especializada. Eles estavam distribudos nas diversas comunidades rurais e ficavam isentos dos trabalhos agrcolas, mas recebiam sua poro de produtos da terra, qual tinham direitos como os demais integrantes da comunidade. Nos primeiros tempos sua posio no era muito ambicionada, mas houve casos de campesinos que no aceitavam a iseno das tarefas agrcolas pelo fato de no haver combates. Entretanto, gradualmente, como esta situao foi-se tornando estvel, e como uma classe se habitou ao manejo das armas e aos ordenamentos militares enquanto a outra se dedicou unicamente ao manejo do arado e da enxada, os guerreiros de tornaram nobres e patres enquanto os cidados, de companheiros e irmos que eram, converteram-se em viles e servos. Pouco a pouco, os belicosos senhores multiplicaram suas exigncias ao ponto de que a parte que tomavam como membros da comunidade foi sendo ampliada at compreender a totalidade do produto da comunidade, menos o que era absolutamente necessrio para a subsistncia dos cultivadores. E quando estes pretendiam fugir eram obrigados, fora, a permanecer ligados terra, assumindo assim a condio caracterstica de uma verdadeira servido a terra5.

    Uma evoluo anloga ocorreu na Rssia. Ali, os guerreiros que constituam a droujina, ou seja, o sqito dos antigos kiniaz ou prncipes descendentes de Rrick, obtiveram tambm, para viver, uma parte do produto dos mir, ou comunas rurais de campesinos. Pouco a pouco esta parte cresceu, e como a terra abundava, os braos faltavam e os camponeses pretendiam emigrar, o Czar Boris Godunov, em fins do sculo XVI, outorgou aos nobres o direito de reter pela fora os camponeses em suas terras, dando origem assim servido a terra. Na Rssia, porm, jamais a fora armada esteve constituda exclusivamente de nobres: os mujiks iam guerra como agregados aos membros da droujina, no sculo XVI, Ivan IV, o Terrvel constituiu mediante os strelitzi, um corpo de tropas quase permanente, que durou at que Pedro, o grande, o substituiu por regimentos organizados segundo o tipo europeu ocidental, nos quais os antigos membros da droujina, unidos aos estrangeiros, formaram o corpo de oficiais, e os mujiks forneceram o total dos soldados6.

    Em geral, pois, em todos os povos que entraram recentemente no estgio agrcola e relativamente civilizado, encontramos o fato constante de que a classe militar por excelncia corresponde classe poltica e dominante. Em qualquer parte, o uso das armas ficava reservado exclusivamente a esta classe, como ocorreu na ndia e na Polnia; porm mais comumente sucedeu que tambm os membros da classe governada puderam ser eventualmente envolvidos, mas sempre como agregados e nos postos menos estimados. Assim, na Grcia, na poca das guerras mdicas, os cidados das classes ricas e influentes eram corpos selecionados de cavaleiros e hoplitas,

    5 O rei Casimiro II o grande (1333) tratou em vo de pr um freio a esta prepotncia dos guerreiros, e quando

    os campesinos reclamavam contra os nobres, limitava-se a perguntar se no tinham paus e pedras. Mais tarde, em 1537, a nobreza imps que todos os burgueses da cidade fossem obrigados a vender suas terras, de maneira que a propriedade no pudesse pertencer mais a ningum alm dos nobres; e contemporaneamente faziam presso sobre o rei para que iniciassem em Roma as aes necessrias para que na Polnia no pudessem ser admitidos outros que no nobres nas ordens sagradas, com o que se queria excluir absolutamente os burgueses e campesinos dos cargos honorficos e de toda importncia social. Ver Mickiewicz, Slaves, cap. IV, pp. 376-380; Histoire populaire de Pologne, caps. I e II, Paris, Hetzel, 1875. Rurick foi o fundador da primeira dinastia Russa (862) (N.T)

    6 Anatole Leroy-Beaulieu, LEmpire ds tzar set les Russes, I, pp. 338 ss, Paris, Hachette, 1881-1882.

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    enquanto que os pobres combatiam como lanceiros ou escudeiros, e os escravos, ou seja, a massa de trabalhadores estava quase completamente excluda do manejo das armas. Algo perfeitamente anlogo encontramos na Roma republicana at a primeira guerra pnica e ainda, at Caio Mario, assim como entre os gauleses da poca de Julio Csar7 na Europa latina e germnica da idade mdia, na Rssia antes citada e em muitos outros povos.

    5. Tanto na Rssia e Polnia quanto na ndia e na Europa medieval, as classes

    guerreiras e dominantes praticamente monopolizaram a propriedade de terras, que nos pases no muito civilizados so a fonte principal da produo da riqueza. Porm medida que a civilizao progride, o rendimento destas terras aumenta8, e ento, se outras circunstncias colaboram, pode haver uma transformao social muito importante: a qualidade mais caracterstica da classe dominante, mais que o valor militar, passa a ser a riqueza; os governantes so os ricos mais que os fortes.

    A principal condio necessria para que essa transformao acontea a seguinte: preciso que a organizao social se aperfeioe de maneira que o respaldo da fora pblica resulte mais eficaz que o da fora privada. Em outras palavras, preciso que a propriedade privada seja tutelada suficientemente pela fora prtica e real das leis, de modo a tornar intil a tutela do proprietrio. Isso se obtm mediante uma srie de mudanas graduais no ordenamento social (sobre os quais nos aprofundaremos mais adiante), e que tm resultado na transformao do tipo de organizao poltica que chamaremos de Estado Feudal, em outro tipo, essencialmente diferente, que denominaremos Estado burocrtico. Todavia, desde j podemos dizer que a evoluo a que nos referimos foi muito facilitada pelo progresso dos costumes pacficos e de certas prticas morais que a sociedade adquire com o progresso da civilizao.

    Uma vez consumada a transformao, ocorrer que, assim como o poder poltico produz a riqueza, agora a riqueza produzir o poder. Em uma sociedade j bastante madura, na qual a fora individual est limitada pela coletiva, se os poderosos so em geral ricos, basta ser rico para converter-se em poderoso. E, em verdade, inevitvel, quando est proibida a luta a mo armada e s se permite a luta que se faz pela fora do dinheiro, que os melhores postos sejam conquistados pelos que esto mais endinheirados.

    verdade que existem Estados com civilizao avanadssima, organizados na base de princpios morais de uma ndole tal que parecem excluir esta preponderncia da riqueza. Mas isso um entre tantos casos nos quais os princpios tericos tm uma aplicao bem limitada na realidade das coisas. Nos Estados Unidos da Amrica, por exemplo, todos os poderes emanam direta ou indiretamente das eleies populares, e o sufrgio universal em todos os estados; e tem mais: a democracia no se v s nas instituies, mas tambm nos costumes, e h certa repugnncia dos pobres em eleger

    7 Csar faz notar repetidamente que o nervo dos exrcitos gauleses estava constitudo por cavaleiros recrutados

    entre a nobreza. Os eduos, por exemplo, no puderam resistir mais a Ariovisto quando a maior parte de seus cavaleiros foi morta combatendo. 8 Com o crescimento da populao costuma crescer, ao menos em certas pocas, a renda ricardiana,

    especialmente porque se cria os grandes centros de consumo que foram sempre as metrpoles e as grandes cidades antigas e modernas. Sem dvida uma populao estabelecida e a criao de grandes cidades so condies quase necessrias para uma civilizao avanada.

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    os ricos para os cargos eletivos. 9 Isto no impede, entretanto, que um rico seja sempre muito mais influente que um pobre porque pode pagar aos politiqueiros venais que dispem das administraes pblicas; no impede tampouco que as eleies se faam pela fora de dlares; que parlamentos locais inteiros e numerosas fraes do Congresso sejam sensveis influncia das poderosas companhias ferrovirias e dos grandes senhores das finanas. E h quem assegure que, em vrios estados da Unio, aquele que tem muito mais dinheiro para gastar pode at dar-se ao luxo de matar um homem com boa dose de segurana de que no ser punido. 10

    Tambm na China at pouco tempo atrs o governo, apesar de no haver aceitado o princpio da eleio popular, estava fundado sobre uma base essencialmente igualitria: os graus acadmicos abriam o acesso aos cargos pblicos e estes eram obtidos mediante exame, sem que aparentemente se desse importncia ao nascimento e riqueza.11 Talvez por que a classe possuidora era menos numerosa, menos rica, menos todo-poderosa do que nos Estados Unidos, mas o certo que ela soube atenuar notavelmente a aplicao leal do sistema de exames para obter os postos mais elevados na hierarquia poltico-administrativa. No s era possvel comprar a indulgncia dos examinadores, como tambm o prprio governo vendia por dinheiro diversos graus acadmicos e permitia que pessoas ignorantes chegassem aos empregos, que s vezes eram dos ltimos estratos sociais. 12

    Antes de deixar este tema devemos recordar que em todos os pases do mundo outros meios de influncia social como a notoriedade, a grande cultura, os conhecimentos especializados, os graus elevados na hierarquia eclesistica, administrativo-militar, sempre foram mais facilmente adquiridos pelos ricos do que pelos pobres. Os primeiros a chegar passam sempre por uma via notavelmente mais breve que os segundos, sem contar que o direito de admisso, do qual estavam excetuados os ricos, era o mais spero e difcil caminho.

    6. Nas sociedades onde as crenas religiosas tm muita fora e os ministros do

    culto formam uma classe especial quase sempre se constitui uma aristocracia sacerdotal que detm uma parte relativamente grande da riqueza e do poder poltico. H exemplos muito conspcuos deste fato em certas pocas do antigo Egito, na ndia brahmnica e na Europa medieval. Freqentemente os sacerdotes, alm de cumprir com os ofcios religiosos, possuam tambm conhecimentos jurdicos e cientficos e representaram a classe intelectualmente mais elevada. Consciente ou inconscientemente, regularmente as hierarquias sacerdotais manifestaram a tendncia a monopolizar os conhecimentos alcanados e a obstar a difuso dos

    9 Ver Cludio Jannet, Le istituzioni politiche negli Stati Uniti dAmerica, segunda parte, caps. X ss. (Biblioteca

    Poltica, Turim, UTET). O autor cita muitssimos autores e dirios norte-americanos que fazem irrecusvel a sua afirmao. 10

    Jannet, op.cit. e captulos citados (A corrupo privada, Onipotncia do dinheiro, A plutocracia, etc). Os fatos citados, parte de que esto atestados pelo autor com numerosssimos documentos, foram confirmados por escritores norte-americanos de temas polticos, por exemplo Seamen ou George, apesar de que tenham princpios diferentes. Ademais, os que conhecem a literatura norte-americana sabem que esses fatos so admitidos por novelistas comedigrafos e jornalistas como coisa sabida. O socialista George demonstrou suficientemente que o sufrgio universal no basta para impedir a plutocracia quando existem grandes desigualdades de fortuna. sua a afirmao de que nos estados do oeste, um rico pode permitir-se o capricho de matar impunemente um pobre. O mesmo autor, em Protection and free trade (Londres, 1886) assinala continuamente a influncia dos grandes industriais nas decises do Congresso. 11

    Segundo alguns autores, s os barbeiros e certas categorias de barqueiros haviam sido excludos, junto com seus filhos, do direito de aspirar aos vrios graus do mandarinato (Rousset, travers la Chine, Paris, Hachette, 1878) 12

    Sinibaldo de Mas, Chine et puissance chrtienne, pp.332-334 ; HUC, Lempire chinois.

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    mtodos e procedimentos que possibilitavam e facilitavam aprend-los. Em verdade, pode-se suspeitar que a esta tendncia se devesse, ao menos em parte, lentssima difuso que teve no antigo Egito o alfabeto demtico, infinitamente mais simples e fcil que a escritura hieroglfica. Na Glia os druidas, se bem tinham conhecimento do alfabeto grego no permitiam que a sua volumosa literatura sagrada fosse escrita, e obrigavam seus alunos a memoriz-la. mesma finalidade deve-se atribuir o uso tenaz e freqente das lnguas mortas, que encontramos na antiga Caldia, na ndia e na Europa Medieval. Algumas vezes, por fim, como ocorreu na ndia, proibiram formalmente o conhecimento dos livros sagrados s classes inferiores.

    As noes especializadas e a verdadeira cultura cientfica despojada de todo carter sagrado e religioso converteram-se numa importante fora poltica s num estgio mais avanado da civilizao; e foi ento que o acesso classe governante foi liberado a quem possusse tais conhecimentos. Porm, mesmo nesse caso preciso ter em mente que o que tinha valor poltico no era a cincia em si mesma, mas as aplicaes prticas que podiam beneficiar o pblico ou o Estado. Por vezes no se exige mais do que o domnio de procedimentos mecnicos indispensveis para adquirir uma cultura superior, talvez por que seja fcil comprovar e medir a percia do candidato. Assim, em certas pocas do antigo Egito a profisso de escriba abria caminho para cargos pblicos e ao poder, pode ser porque aprender a escritura hieroglfica exigia muitos e pacientes estudos; do mesmo modo, na China moderna o conhecimento dos numerosos caracteres da escritura chinesa formou a base da cultura dos mandarins.13 Na Europa de hoje e na Amrica, a classe que aplica os conhecimentos da cincia moderna guerra, administrao pblica, s obras e sade pblica, ocupa uma posio social e poltica destacada; e nos mesmos pases como na Roma antiga absolutamente privilegiada a condio do jurista, daquele que conhece a complicada legislao comum a todos os povos da antiga civilizao, e sobretudo se ele agrega s suas noes jurdicas o tipo de eloqncia que seduz os seus contemporneos.

    No faltam exemplos de como, a prtica na direo da organizao militar e civil da comunidade deu origem e desenvolveu, na frao mais elevada da classe poltica, uma verdadeira arte de governar superior ao crasso empirismo e experincia individual. Assim se constitui uma aristocracia de funcionrios, como o Senado romano ou o veneziano, e, at certo ponto, mesmo a aristocracia inglesa, que John Stuart Mill tanto admirava e que gerou alguns dos governos mais destacados pela maturidade de seus desgnios, pela constncia e sagacidade em execut-los. Esta arte no certamente a cincia poltica, mas precedeu, sem dvida, alguns de seus postulados. No entanto, assim como essa arte se afirmou de alguma maneira em certa classe de pessoas que detinha desde h muito tempo as funes polticas, seu saber no serviu para incluir os que, por fora de sua posio social14, estavam excludos.

    7. Em certos pases encontramos castas hereditrias: a classe governante se

    encontra definitivamente restrita a um nmero dado de famlias e o nascimento o nico critrio que determina o ingresso dita classe ou a excluso dela. Os exemplos

    13 Ao menos era assim at algumas dcadas, quando os exames dos mandarins versavam unicamente sobre as

    disciplinas literrias e histricas, tal como estas disciplinas eram entendidas pelos chineses. 14

    Parece, alm disso, que esta arte de governar, salvo casos excepcionais, uma qualidade muito difcil de comprovar nos indivduos que no deram provas prticas de possu-la.

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    destas aristocracias hereditrias so muito comuns, e quase no h pas de antiga civilizao no qual a classe dirigente no tenha sido por algum tempo mais ou menos hereditria de fato. Encontraremos uma nobreza hereditria em certos perodos na China e no Egito antigo, na ndia, na Grcia anterior s guerras com os persas, na Roma antiga, entre os eslavos, entre os latinos e germanos da Idade mdia, no Mxico dos tempos do descobrimento da Amrica e no Japo at h poucas dcadas.

    Sobre este ponto formularemos duas observaes. A primeira que todas as classes tm a tendncia de se tornarem hereditrias, se no de direito, ao menos de fato.15 Assim, todas as foras polticas possuem essa qualidade que na fsica se chama fora de inrcia; isto , a tendncia a permanecer no ponto e no estado em que se encontram. O valor militar e a riqueza se conservam facilmente em certas famlias por tradio moral e por efeito de herana. E a experincia dos grandes cargos, o hbito e quase todas as atitudes para tratar de negcios importantes so adquiridos muito mais facilmente quando se tem familiaridade com eles desde a infncia. Mesmo quando os graus acadmicos, a cultura cientfica, as atitudes especiais provadas por meio de exames e concursos abrem as portas aos cargos pblicos, no desaparecem as vantagens especiais a favor de alguns, que os franceses definem como as vantagens das posies adquiridas. E, na realidade, por mais que os exames e concursos estejam abertos - teoricamente - a todos, maioria falta sempre os meios necessrios para arcar com os gastos de uma extensa preparao, e alguns carecem das relaes e parentesco mediante as quais um indivduo se coloca rapidamente no bom caminho, que evita vacilaes e erros inevitveis quando se entra num ambiente desconhecido, onde no h guias nem apoios.16

    A segunda observao a seguinte: quando vemos estabelecida num pas uma casta hereditria que monopoliza o poder poltico, seguramente o estado de direito foi precedido por um estado de fato. Antes de afirmar seu direito exclusivo e hereditrio ao poder, as famlias e as castas poderosas devem ter mantido muito firmemente o basto de comando, devem ter monopolizado absolutamente todas as foras polticas da poca e do povo em que se afirmaram. Se no fosse assim, pretenses deste gnero teriam suscitado protestos e lutas muito exasperadas.

    Vale assinalar tambm que frequentemente as aristocracias se orgulham de ter uma origem sobrenatural ou ao menos diferente e superior da classe governada. Tal pretenso costuma ser explicada por um fato social muito importante do qual teremos de falar amplamente no prximo captulo e que faz com que toda classe governante tenda a justificar seu poder de fato, apoiando-se em um principio moral de ordem geral. No entanto, mais recentemente a mesma pretenso vem se apresentando com o apoio de equipes cientficas: alguns escritores, desenvolvendo e ampliando as teorias de Darwin, acreditam que as classes superiores representam um grau mais elevado da evoluo social, e que, portanto, elas so melhores que as inferiores por causa de sua constituio orgnica. De Gobineau, Gumplowicz e outros

    15 Ver Mosca, Il principio aristocrtico ed il democrtico nel passato e nellavvenire. Extrado de Riforma

    SocialeI, fascs. 3 a 10, vol. XIII, segunda serie, Turim, Roux e Viarengo, 1903. 16

    O principio democrtico da eleio por sufrgio muito amplo parece estar, a primeira vista, em contradio com esta tendncia estabilidade da classe poltica que assinalamos. Mas preciso observar que so eleitos quase sempre os que possuem as foras polticas que enumeramos e que com grande freqncia so hereditrias. Assim, no Parlamento ingls, e tambm no francs, vemos com freqncia, filhos, irmos, sobrinhos e genros de deputados e ex-deputados. Porm, com a fora de inrcia atuam sempre, com maior ou menor energia, outras foras que tendem a renovar os ordenamentos sociais. Como se ver mais adiante no texto, h pocas nas quais prevalece a fora da inrcia e outras em que predominam as foras renovadoras da sociedade [Nota 3. edio].

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    vo mais longe, e sustentam decididamente o conceito de que a diviso dos povos em classes profissionais est fundada, nos pases de civilizao moderna, numa heterogeneidade tnica.17

    So historicamente bem conhecidas, no entanto, as qualidades e os defeitos especiais, uns e outros muito acentuados, daquelas aristocracias que permaneceram fechadas, ou que dificultaram muito o acesso sua classe. As nobrezas inglesa e alem, at mais ou menos meio sculo, proporcionaram muito claramente a idia do tipo de fenmeno que assinalamos. S que, frente a este fato e s teorias que tendem a exagerar seu alcance, pode-se opor sempre a mesma objeo: que os indivduos pertencentes a estas aristocracias deviam suas qualidades especiais no ao sangue que corria em suas veias, mas particularssima educao que receberam e que desenvolveu neles algumas tendncias intelectuais e morais em lugar de outras. 18

    J se disse que isto pode ser suficiente para explicar a superioridade das atitudes puramente intelectuais, mas no as diferenas de carter moral, como seriam a fora de vontade, a coragem, o orgulho, a energia. Mas a verdade que a posio social, as tradies de famlia, os hbitos da classe em que vivemos contribuem para o maior ou menor desenvolvimento dessas qualidades, mais do se pode crer. Se observarmos atentamente os indivduos que mudam de posio social, seja para melhor ou para pior, e que entram, como conseqncia disso, em um ambiente diferente do que estavam acostumados, podemos facilmente comprovar que suas atitudes intelectuais se modificam muito menos sensivelmente que as morais. Se descartarmos a viso ampliada das coisas que o estudo e os conhecimentos conferem a algum que esteja bem de suas faculdades mentais e fsicas, todo indivduo, seja ele um simples secretrio ou um ministro, que alcance o grau de sargento ou ascenda para general, que seja milionrio ou mendigo, ele se manter no mesmo nvel intelectual que a natureza lhe deu. Por outro lado, com a mudana de grau social e de riqueza podemos apreciar como o orgulhoso se transforma em humilde e como o servilismo se converte em arrogncia; como um carter franco e fiel, obrigado pela necessidade, tende a mentir ou, pelo menos, dissimular; e como quem se viu obrigado a muito simular e mentir adotar, talvez, uma aparente franqueza e inflexibilidade de carter. tambm verdade que quem vem descendo do alto, com freqncia adquire fora de resignao, de sacrifcio e de iniciativa; assim, como tambm quem ascende deve dar mais importncia ao sentimento de justia e equidade. Em suma, mude para o bem ou para o mal, o individuo que mudar de posio social tem de estar muito bem precavido para que possa manter seu carter inalterado.19

    A coragem guerreira, a energia para o ataque, o estoicismo na resistncia so qualidades que por muito tempo foram vistas como exclusivas das classes superiores. Certamente, com respeito a esta qualidade, pode ser grande a diferena natural e,

    17 Ver Gumplowiz, Der Rassenkampf, cit. Este conceito se estrai do esprito da obra, mas aparece afirmado

    mais nitidamente no livro II, Cap. XXXIII. 18

    Os filhos de pessoas de mentalidade muito elevada frequentemente possuem um intelecto medocre; mas se o gnio no quase nunca hereditrio, pode-se comprovar um grau maior do que a mdia entre os descendentes das classes mais cultas. Em concluso, as aristocracias hereditrias no se fundam quase nunca na superioridade intelectual, mas no carter e na riqueza. 19

    Escreveu Mirabeau que, para qualquer homem, uma elevao importante na escala social produz uma crise que cura os males que j tem e gera outros novos que antes no tinha. Correspondance entre le comte de Mirabeau et le comte de la marck, II, p 228, Paris, Librairie Le Normant, 1851. 19

    Escreveu Mirabeau que, para qualquer homem, uma elevao importante na escala social produz uma crise que cura os males que j tem e gera outros novos que antes no tinha. Correspondance entre le comte de Mirabeau et le comte de la marck, II, p 228, Paris, Librairie Le Normant, 1851.

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    para dizer assim, inata entre um indivduo e outro; porm para que ela se apresente em alta ou baixa medida em uma categoria numerosa de homens, deve influenciar todas as tradies e costumes do ambiente. Geralmente, vemos que quem se familiariza com o perigo, e melhor ainda, com um perigo determinado, fala dele com indiferena e permanece calmo e imperturbvel na sua presena. Por exemplo, os montanheses, ainda que muitos possam ser tmidos por natureza, afrontam impvidos os abismos; e os marinheiros, os perigos do mar, e de igual modo as populaes e classes acostumadas com a guerra mantm em alto grau as virtudes militares.

    E isso to verdadeiro que mesmo populaes e classes normalmente alheias ao uso de armas, adquirem rapidamente tais virtudes assim que os indivduos provenientes delas se incorporam a certos ncleos onde o valor e o mpeto so tradicionais; e isso porque so perdo pela metfora fundidos em recipientes humanos fortemente embebidos daqueles sentimentos que se quer transmitir. Maom II recrutava seus terrveis Jenzaros entre os meninos retirados principalmente dentre os poucos gregos de Bizncio. O to desprezado fellah egpcio, desacostumado desde muitos sculos com as armas e habituado a receber humilde e submissamente as afrontas de seus opressores, quando se incorporou aos turcos e albaneses de Mohamed Ali se converteu em bom soldado. A nobreza francesa gozou sempre de grande fama por seu brilhante valor, mas at fins do sculo XVIII esta qualidade no se estendia burguesia da Frana. No entanto, as guerras da Repblica e do Imprio demonstraram amplamente que a natureza havia sido igualmente prdiga em outorgar valor a todos os habitantes da Frana, e que a plebe e a burguesia podiam ser portadoras, no s de bons soldados, mas tambm de excelentes oficiais, o que se acreditava ser privilgio exclusivo dos nobres. 20

    8. Por fim, se nos ativermos idia de quem detm a fora exclusiva do

    princpio hereditrio na classe poltica chegaremos a uma concluso similar que j assinalamos no captulo anterior do nosso trabalho: a histria poltica da humanidade deveria ser muito mais simples do que tem sido. Se, verdadeiramente, a classe poltica pertencesse a uma raa diferente, ou se suas qualidades dominantes se transmitissem principalmente por meio da herana orgnica, no se compreenderia por que, uma vez constituda esta classe, ela teria que declinar e perder o poder. Admite-se comumente que as qualidades prprias de uma raa so muito tenazes e, se nos detivermos teoria da evoluo, as atitudes adquiridas pelos pais so inatas nos filhos e, com a sucesso das geraes, vo-se refinando cada vez mais. De tal modo, os descendentes dos dominadores deveriam tornar-se cada vez mais capazes de dominar, e as outras classes deveriam ver cada vez mais distanciadas a possibilidade de se comparar a eles e de substitu-los. No entanto, a mais vulgar experincia basta para assegurarmos que as coisas no ocorrem assim. 21

    20 Para alm disso, a afirmao de Gumplowicz de que a diferenciao das classes sociais depende, em especial,

    das variedades tnicas, teria que provar-se com numerosos exemplos; do contrrio, possvel opor facilmente muitos fatos a tal assero, entre eles o muito bvio de que com grande freqncia distintos ramos de uma mesma famlia pertencem a classes sociais muito diferentes. 21

    Em verdade, segundo De Gobineau e outros escritores, a classe dominante perderia suas atitudes para o comando por causa dos entrecruzamentos e mesclas que se produziram entre seus membros e os das classes dominadas. Mas neste caso, esta decadncia da classe dominante deveria ser mais lenta e menos acentuada; e onde o sistema das castas impede a mescla entre as distintas raas, enquanto que isso no acontece, ocorre antes o contrrio, como vem ocorrendo na ndia [nota da terceira edio].

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    O que vemos que, assim que ocorre a mudana das foras polticas, percebe-se a necessidade de que atitudes diferentes se afirmem na direo do Estado; e se as antigas foras no conservam sua importncia, ou se elas se distribuem de outro modo, muda tambm a composio da classe poltica. Se em uma sociedade aparece uma nova fonte de riqueza, se aumenta a importncia prtica do saber, se a antiga religio declina ou nasce uma nova, se se difunde uma nova corrente de idias, ocorrem, ao mesmo tempo, fortes mudanas na classe dirigente. Assim, pode-se dizer que toda a histria da humanidade civilizada se resume na luta entre a tendncia que tem os elementos dominantes capazes de monopolizar de forma estvel as foras polticas e de transmitir sua posse aos filhos de forma hereditria; e a tendncia para a mudana destas foras e para a afirmao de foras novas, o que produz um contnuo trabalho de endosmose e exosmose entre a classe alta e algumas fraes das baixas. As classes polticas declinam inexoravelmente quando j no podem exercer as qualidades mediante as quais chegaram ao poder, ou quando no podem prestar mais o servio social que prestavam, ou quando suas qualidades e os servios que prestavam perdem importncia no ambiente social onde vivem. Assim, a aristocracia romana declinou quando j no ocupava com exclusividade os altos cargos do exrcito, os administradores da repblica, os governadores das provncias. Assim tambm a aristocracia veneziana decaiu quando seus patrcios no comandavam mais as galeras e no passavam a maior parte de suas vidas navegando, comerciando e combatendo.

    Assim, na ndia vimos estabilizar mais rigorosamente o regime de castas depois que o budismo foi sufocado. Vimos tambm que no antigo Egito os gregos encontraram castas hereditrias, mas sabemos que nos perodos de esplendor e renovao da civilizao egpcia a herana dos ofcios e das condies sociais no existia.22 No entanto, o exemplo mais notvel e talvez o mais importante de uma sociedade que tendeu a se cristalizar ocorreu naquele perodo da histria romana que se denomina de baixo Imprio, no qual, depois de alguns sculos de quase completa inamovibilidade social, a diferena entre duas classes ficou cada vez mais ntida: uma, de grandes proprietrios e funcionrios importantes; a outra, de servos, colonos e plebe; e, o que ainda mais notvel, a herana dos ofcios e das condies sociais estabelecida mais pelo costume do que pela lei, foi-se generalizando rapidamente.23

    Pode ocorrer, porm, o contrrio e s vezes ocorre na histria das naes , que o comrcio com estrangeiros, a necessidade de emigrar, os descobrimentos, as guerras, criam novas pobrezas e novas riquezas, difundem conhecimentos at ento ignorados, promovem o influxo de novas correntes morais, intelectuais e religiosas. Ento, pode ocorrer que, por lenta elaborao interna ou por efeito desses influxos, ou por ambas as causas, surja uma cincia nova, ou se recomece a valorizar os resultados da antiga, que havia sido esquecida, e que as novas idias e crenas removam os

    De acordo com o dicionrio Michaelis da lngua portuguesa, endosmose deriva da biologia e da fsica e

    significa a difuso osmtica de fora para dentro de uma clula ou vaso. Colocando-se, por exemplo, dentro da gua um cilindro de barro cheio de lcool, a gua penetra atravs da parede porosa (endosmose) e o lcool sai do mesmo modo (exosmose). Nas cincias sociais o termo significa a infiltrao ou permeao de um grupo cultural por membros de outro. (N.T.). Ver explicao para Endosmose (N.T)

    22 Cf. obras j citadas de Lenormant, Maspero, Brugsh. Durante o perodo de expulso dos hicsos tivemos o

    relato da carreira de um alto oficial que havia comeado sua trajetria como simples soldado. Eram freqentes tambm os caos em que o mesmo indivduo servia sucessivamente na milcia, na administrao civil e no sacerdcio. 23

    Mommsen e Marquardt, Manuel ds antiquits romaines, trad. Umbert, Paris, Thorin, 1887 ; Fustel de Coulanges, Nouvelles recherces sur quelques problemes dhistoire, Paris, Hachette, 1891

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    hbitos intelectuais sobre os quais se fundava a obedincia das massas. A classe poltica pode tambm ser vencida e destruda no todo ou em parte por invases estrangeiras, e quando se produzem as circunstncias referidas, pode tambm ser derrubada de sua posio por novos estratos sociais expressos em novas foras polticas. natural que sobrevenha um perodo de renovao ou, se definindo de outro modo, de revoluo, durante o qual as energias individuais tm importante participao e alguns dentre os indivduos mais apaixonados, mais ativos, mais audazes e intrpidos, podem abrir caminho a partir dos graus inferiores da escala social at os mais elevados.

    Este movimento, uma vez iniciado, no pode ser interrompido de uma s vez, abruptamente. O exemplo de contemporneos que saem do nada e chegam a posies eminentes estimula novas ambies, novos cdigos, novas energias, e a renovao molecular da classe poltica se mantm ativa at que um longo perodo de estabilidade social comece a acalm-la novamente.24 Ento, cada vez que uma sociedade vai passando do estado febril para o de calma, assim como as tendncias psicolgicas do homem so sempre as mesmas, os que formam parte da classe poltica vo adquirindo o esprito de corpo e de exclusivismo, e aprendem a arte de monopolizar em seu beneficio as qualidades e atitudes necessrias para chegar ao poder e conserv-lo. Enfim, com o tempo, forma-se a fora conservadora por excelncia, a do costume, pela qual muitos de resignam a estar embaixo, e os membros de certas famlias ou classes privilegiadas adquirem a convico de que para eles quase um direito absoluto estar por cima e comandar.

    Caberia perguntar a um filantropo se a humanidade mais feliz, ou se vive menos atribulada, quando vive um perodo de calma e de cristalizao social, no qual cada um permanece quase fatalmente no grau da hierarquia social no qual nasceu, ou, ento, se a sociedade mais feliz quando passa por um perodo oposto, de renovao e revoluo, que permite a todos aspirar a graus superiores e, para muitos, chegar efetivamente a eles. Tal indagao seria difcil de responder e deveria haver muitas condies e excees e talvez sempre seria influenciada pelas preferncias pessoais do observador. Por isso tomaremos muito cuidado ao responder, pois, mesmo quando pudssemos obter um resultado indiscutvel e seguro ainda assim sua utilidade prtica seria rarssima, visto que o que os filsofos e telogos chamam de livre arbtrio, isto , a livre escolha individual, teve at agora, e qui ter sempre, pouqussima ou quase nenhuma influncia para apressar o fim ou o inicio de algum dos perodos histricos assinalados.

    24 No citaremos exemplos de povos que se encontram em perodos de renovao, pois em nossa poca seriam

    desnecessrios. Recordaremos somente que, em pases de colonizao recente, o fenmeno da rpida renovao da classe poltica se apresenta com mais freqncia e de modo muito perceptvel. Da que, quando comea a vida social em ditos pases, no existe uma classe dirigente perfeitamente constituda e, durante o perodo no qual se forma, natural que o ingresso na mesma seja mais facilitado. Por outro lado, o monoplio da terra e de outros meios de produo est, se no totalmente impossvel, est mais difcil que antes. Por isso as colnias gregas ofereceram, at certa poca, um amplo alvio para todos os tipos enrgicos e empreendedores da Helade, e nos Estados Unidos da Amrica, onde a colonizao de novas terras abarcou todo o sculo XIX, e novas industrias surgiram continuamente, os homens que passaram do nada notoriedade e para a riqueza foram mais freqentes que na Europa, o que contribui para manter a iluso de que a democracia uma realidade.

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    Referncias

    DAHL, R. (1970). Certas perguntas so inevitveis. In. A moderna anlise poltica. Rio de Janeiro: Lidador, pp. 12-16. MOSCA, G. (2004). La clase politica. In. La clase politica. Selec. e Introd. de Norberto Bobbio; trad. de Marcos Lara. Mxico: FCE, pp.91-112. (2004a). El mtodo en la ciencia politica. In. La clase politica. Selec. e Introd. de Norberto Bobbio; trad. de Marcos Lara. Mxico: FCE, pp.39-91 POPPER, K. R. (2006). A lgica das cincias sociais. In. Em busca de um mundo melhor. Trad. Milton Camargo Mota. So Paulo: Martins Fontes, pp.92-115

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    From the SelectedWorks of carlos luiz strapazzonSeptember 2007Eight scientific problems to understand Gaetano Moscas theorie of "The political class" : with a portuguese version of the Moscas classic text