moyn, samuel. human rights and the uses of history. london: verso, 2014

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A TRAJETÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS NA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL: DO DISCURSO POLÍTICO AO DISCURSO MORAL Carlos Alberto Steil 1 Rodrigo Toniol 2 No ano de 2010, no contexto das eleições para a presidência da república do Brasil, controvérsias envolvendo questões relativas à mudança da legislação sobre o aborto e sobre a união civil de pessoas do mesmo sexo adquiriram grande visibilidade na esfera pública nacional. A disputa em torno dessas questões não se limitou àqueles que concorriam ao cargo presidencial, mas estendeu-se, de modo significativo, a figuras do campo religioso, como padres, bispos católicos e líderes evangélicos. O lançamento, no início de 2010, do Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), que continha recomendações favoráveis à ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos, foi acompanhado por uma reação imediata da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) que, durante todo aquele ano, emitiu notas contrárias ao PNDH-3 e seus apoiadores. O presente texto toma as controvérsias envolvendo o PNDH-3, nas eleições presidenciais brasileiras, apenas em seu potencial evocativo, para que, a partir delas, possamos apresentar certo trajeto histórico do posicionamento da Igreja Católica diante de questões envolvendo os Direitos Humanos. Para tanto, faremos uma retrospectiva histórica dessa relação desde o período da ditadura militar (1964) até os dias hoje, destacando o seu protagonismo nas décadas de 1970 e 1980 por meio da Teologia da Libertação, dos pronunciamentos do Conselho Episcopal Latino Americano – CELAM (Puebla, 1979) -, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), assim como da atuação das Comunidades Eclesiais de Base e da organização dos Encontros Nacionais de Direitos Humanos (1982-1996). Parte de nosso esforço será o de mostrar o modo pelo qual a alteração das forças definidoras da matriz discursiva dos Direitos Humanos e, por conseguinte, inclusão de novos atores na sua defesa, implicou na perda do protagonismo da Igreja na promoção desses direitos. Disputas em torno dos Direitos Humanos Ao traçar a trajetória do discurso da Igreja Católica sobre os Direitos Humanos no Brasil, procuraremos mostrar como a instituição pouco a pouco se deslocou do campo do político, em que os sujeitos de direito eram os presos políticos e os pobres, para o campo da sexualidade e da lei natural, em que os direitos do embrião, traduzidos em termos do direito à vida, e a defesa da 1 Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email: [email protected] 2 Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Univer- sidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email: [email protected]

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MOYN, Samuel. Human Rights and the Uses of History. London: Verso, 2014.

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  • A TRAJETRIA DOS DIREITOS HUMANOS NA IGREJA CATLICA NO BRASIL: DO DISCURSO POLTICO AO DISCURSO MORAL

    Carlos Alberto Steil1 Rodrigo Toniol2

    No ano de 2010, no contexto das eleies para a presidncia da repblica do Brasil,

    controvrsias envolvendo questes relativas mudana da legislao sobre o aborto e sobre a unio

    civil de pessoas do mesmo sexo adquiriram grande visibilidade na esfera pblica nacional. A

    disputa em torno dessas questes no se limitou queles que concorriam ao cargo presidencial, mas

    estendeu-se, de modo significativo, a figuras do campo religioso, como padres, bispos catlicos e

    lderes evanglicos. O lanamento, no incio de 2010, do Terceiro Programa Nacional de Direitos

    Humanos (PNDH-3), que continha recomendaes favorveis ampliao dos direitos sexuais e

    reprodutivos, foi acompanhado por uma reao imediata da Conferncia Nacional de Bispos do

    Brasil (CNBB) que, durante todo aquele ano, emitiu notas contrrias ao PNDH-3 e seus apoiadores.

    O presente texto toma as controvrsias envolvendo o PNDH-3, nas eleies presidenciais

    brasileiras, apenas em seu potencial evocativo, para que, a partir delas, possamos apresentar certo

    trajeto histrico do posicionamento da Igreja Catlica diante de questes envolvendo os Direitos

    Humanos. Para tanto, faremos uma retrospectiva histrica dessa relao desde o perodo da ditadura

    militar (1964) at os dias hoje, destacando o seu protagonismo nas dcadas de 1970 e 1980 por

    meio da Teologia da Libertao, dos pronunciamentos do Conselho Episcopal Latino Americano

    CELAM (Puebla, 1979) -, da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), assim como da

    atuao das Comunidades Eclesiais de Base e da organizao dos Encontros Nacionais de Direitos

    Humanos (1982-1996). Parte de nosso esforo ser o de mostrar o modo pelo qual a alterao das

    foras definidoras da matriz discursiva dos Direitos Humanos e, por conseguinte, incluso de novos

    atores na sua defesa, implicou na perda do protagonismo da Igreja na promoo desses direitos.

    Disputas em torno dos Direitos Humanos Ao traar a trajetria do discurso da Igreja Catlica sobre os Direitos Humanos no Brasil,

    procuraremos mostrar como a instituio pouco a pouco se deslocou do campo do poltico, em que

    os sujeitos de direito eram os presos polticos e os pobres, para o campo da sexualidade e da lei

    natural, em que os direitos do embrio, traduzidos em termos do direito vida, e a defesa da

    1 Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Email: [email protected] 2 Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Email: [email protected]

  • famlia heterossexual adquiriram centralidade. Esse deslocamento acompanha o processo de

    democratizao da sociedade brasileira e a ampliao das demandas dos novos movimentos sociais

    que passam a ser incorporadas sob a denominao de Direitos Humanos. Direitos estes que se

    expressam especialmente nas linguagens tnica, ambiental e de gnero, que pouco a pouca vo

    inscrevendo suas demandas nos projetos e planos nacionais dos governos democrticos e na

    formulao de polticas pblicas. Um processo que, ao inscrever os direitos reprodutivos e sexuais

    na definio dos Direitos Humanos, cria um dissenso que retira o carter universal desses direitos,

    remetendo-os para o campo do particular.

    A emergncia e fortalecimento desses movimentos na cena poltica configuram uma nova

    correlao de foras entre os grupos envolvidos com os Direitos Humanos. A incorporao das

    questes de gnero na agenda do movimento de defesa dos Direitos Humanos no Brasil,

    especialmente aquelas que afetam o campo da moral sexual a descriminalizao do aborto e a

    unio civil de casais do mesmo sexo acabam produzindo uma dissintonia em relao Igreja

    Catlica. Podemos observar, assim, um divisor de guas na sua orientao e alianas polticas na

    passagem da ditadura para a democracia. Se no perodo da ditadura militar, a Igreja Catlica esteve

    ao lado dos movimentos sociais de contestao ao regime militar na denncia tortura de presos

    polticos e s causas estruturais da pobreza, no contexto democrtico, sua posio se define contra

    os movimentos que representam as posies a favor da descriminalizao do aborto e do casamento

    entre pessoas do mesmo sexo. Na medida em que as causas defendidas por estes novos movimentos

    passam a ser inscritas como Direitos Humanos, o uso da linguagem dos Direitos Humanos no

    discurso dos catlicos entra em conflito com as orientaes morais da instituio. Enfim, a disputa

    entre o direito do embrio, definido como pessoa humana pela Igreja Catlica, e o direito da mulher

    de decidir sobre o aborto, assim como o conflito entre os princpios da procriao e do prazer, no

    caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, na medida em que se inscrevem no mbito dos

    Direitos Humanos, quebram o consenso que havia se estabelecido, antes da Constituio

    Democrtica de 1988, entre a Igreja Catlica e os movimentos sociais de contestao ao regime

    militar. Ou seja, o discurso dos Direitos Humanos perde sua univocidade e consenso no mbito dos

    movimentos sociais, o que vai se refletir em ambiguidades e indefinies tanto nos discursos dos

    polticos em tempos de eleio quanto nos planos e nas polticas governamentais.

    Conselho Episcopal Latino-Americano na promoo dos Direitos Humanos A incorporao dos Direitos Humanos como um paradigma de orientao para a ao moral

    e poltica dos indivduos e governos aparece nas encclicas e documentos oficiais da Igreja Catlica

    nos anos de 1960, no pontificado do Papa Joo XXIII, coincidindo com o perodo do Conclio

    Vaticano II, que deu origem a um perodo de aggiornamento e abertura da instituio para a

  • modernidade. O telogo Paulo Fernando Carneiro de Andrade, no seu artigo intitulado Democracia

    e Doutrina Social da Igreja (2010) identifica no texto da encclica Pacem in Terris, de Joo XXIII

    (1963), a primeira referncia da recepo catlica da linguagem dos Direitos Humanos na sua

    doutrina social. Como podemos ver na citao destacada por Andrade, o Papa fundamenta os

    Direitos Humanos na natureza da pessoa humana, como um princpio que transcende e subordina a

    dimenso poltica dos contextos locais:

    Em uma convivncia humana bem constituda e eficiente, fundamental o princpio de que cada ser humano pessoa; isto , natureza dotada de inteligncia e vontade livre. Por essa razo, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua prpria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, inviolveis, e inalienveis (apud Andrade, 2011:183).

    A anlise de Andrade chama a ateno para o avano da encclica em relao aos Direitos

    Humanos propostos pela Declarao Universal dos Direitos Humanos das Naes Unidas, em 1948,

    na medida em que os direitos aqui referidos desdobram-se em quatro dimenses: direitos polticos,

    civis, econmicos e sociais, com destaque para direito existncia, integridade fsica e aos

    recursos correspondentes a um digno padro de vida (Andrade, 2010:184). Essa posio do

    Vaticano, reiterada noutros pronunciamentos que vo na mesma direo, vai estabelecer o quadro

    doutrinrio e pastoral no qual a Igreja Catlica vai pautar sua ao poltica na sociedade brasileira

    justamente no momento em que a violao da integridade fsica de presos polticos pelo regime

    ditatorial se torna recorrente e o agravamento da situao social e econmica expe a maioria de

    sua populao abaixo da linha de dignidade da pobreza. Esse contexto internacional da Igreja

    Catlica autoriza, de certa forma, os seus agentes a se engajarem na defesa dos Direitos Humanos

    em contextos nacionais de represso poltica e de pobreza econmica. Ao mesmo tempo, d a esses

    agentes a conscincia de que a sua compreenso dos Direitos Humanos diferente e mais

    abrangente do que aquela proposta pelo discurso poltico liberal internacional, estabelecido a partir

    da Segunda Guerra Mundial.

    Ao contexto internacional, somam-se dois movimentos intraeclesiais que impulsionam a

    Igreja Catlica na defesa e promoo dos Direitos Humanos. O primeiro o fortalecimento e o

    prestgio social que a Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e, em nvel latino-

    americano, o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) adquirem junto opinio pblica e

    aos movimentos sociais. O segundo a emergncia da Teologia da Libertao como uma reflexo

    que tem como horizonte o compromisso evanglico e poltico da Igreja Catlica com os pobres e

    como base de sustentao as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as pastorais sociais,

    especialmente aquelas voltadas para questes agrrias, como a Comisso Pastoral da Terra (CPT), e

    indgenas, como o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI).

    O CELAM realizou, no perodo, duas conferncias que tiveram grande repercusso na

  • atuao da Igreja Catlica: a Segunda Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano, que se

    realizou em Medelln, na Colmbia, em 1968 e a Terceira Conferncia Geral do Episcopado Latino-

    Americano, em Puebla, no Mxico, em 1979. Os documentos produzidos por essas conferncias

    balizaram em grande medida a ao da Igreja Catlica no continente e legitimaram o discurso e a

    ao em defesa dos Direitos Humanos tanto na sua vertente poltica quanto social. Em sintonia com

    o Conclio Vaticano II, na Conferncia de Medellin assumiu-se o compromisso com o ser humano e

    com a justia como o eixo principal de sua proposio. Suas concluses permitiram que os Direitos

    Humanos adquirissem um estatuto de legitimidade para a ao poltica eclesistica e pastoral (Steil,

    1996: 253). J a Conferncia de Puebla, deixou como sua principal orientao para a ao da Igreja

    Catlica a opo pelos pobres e a criao e fortalecimento das CEBs como estruturas eclesiais,

    orientadas para a ao na sociedade civil, em articulao com os movimentos sociais. Entre esses

    movimentos A luta em prol dos Direitos Humanos significa um imperativo original desta hora de

    Deus em nosso continente (...). A promoo e defesa dos Direitos Humanos implica principalmente

    a promoo e defesa dos direitos dos pobres (Puebla, 1979). Essa subordinao da dimenso

    poltica dos Direitos Humanos sua dimenso social ir repercutir, como veremos a seguir, na

    nfase que ser atribuda questo da pobreza nos Encontros Nacionais de Direitos Humanos.

    Outra fonte de legitimao do discurso em defesa dos Direitos Humanos no mbito da Igreja

    Catlica vem dos documentos e comunicados de bispos, dioceses e organismos da CNBB, que

    foram respaldados posteriormente pelas suas Assembleias Gerais. Entre esses, pode-se citar os

    seguintes documentos que se tornaram referncias: Eu ouvi os Clamores do Meu Povo, dos Bispos

    do Nordeste (1973), Comunicao Pastoral ao Povo de Deus, da Comisso Representativa da

    CNBB de 1976 e Exigncias Crists de uma Ordem Poltica, da Assembleia Geral de 1977. Esses

    documentos foram acompanhados de aes pessoais e coletivas no mbito das pastorais especficas

    como a CPT, o CIMI, a Pastoral dos Trabalhadores e das Comunidades Eclesiais de Base. Essas

    aes, como mostra Andrade, foram amplamente respaldadas pelo Vaticano e pelos rgos oficiais

    de imprensa da Santa S, a Radio Vaticano e o jornal LOsservatore Romano que denunciaram

    abusos cometidos pelo governo militar (Andrade, 2010:195). E conclui que o prprio Papa Paulo

    VI manifestou publicamente seu apoio aos Bispos brasileiros, condenando a violao dos Direitos

    Humanos no pas.

    Como resultado institucional desse contexto eclesial e poltico foram criados em mbito

    diocesano os Centros de Defesa de Direitos Humanos e as Comisses de Justia e Paz, que se

    constituram em instncias que atuam no campo jurdico, poltico e da mdia na denncia das

    violaes dos Direitos Humanos, na proteo dos presos polticos e defesa das vtimas do regime

    militar. A sua criao e implementao estiveram muitas vezes dependentes da iniciativa dos

    prprios bispos e foram mais atuantes nas dioceses mais expressivas do pas, onde havia a presena

  • institucional dos rgos repressores do regime ou naquelas mais distantes dos grandes centros

    urbanos, onde a violao se exercia contra as populaes mais pobres, pelo arbtrio das corporaes

    policiais. A eficcia da sua ao quase sempre dependeu da articulao do conjunto das pastorais na

    diocese e na regio e de sua relao com os movimentos sociais para alm dos limites eclesiais. A

    capilaridade do catolicismo na sociedade brasileira e a estrutura centralizada da Igreja Catlica

    foram fatores decisivos para que o movimento de defesa dos Direitos Humanos pudesse alcanar

    projeo e poder de influncia sobre as conscincias e a opinio pblica no pas.

    Os Encontros Nacionais de Direitos Humanos no Brasil

    Em 1982, trs anos aps a realizao da III Conferncia do CELAM, ocorreu, no Brasil, o I

    Encontro Nacional de Direitos Humanos. Realizado em Petrpolis, Rio de Janeiro, esse encontro

    mobilizou dezenas de Centros de Defesa de Direitos Humanos e Comisses de Justia e Paz.

    Embora os organizadores pretendessem dar ao encontro um carter no religioso, apresentando-o

    como a iniciativa de uma organizao civil, que transcendia os limites eclesiais, a presena

    marcante da Igreja Catlica fica evidente na linguagem que utilizada nos documentos de

    concluso do Encontro, como se pode ver no pargrafo de abertura do relatrio do encontro:

    A atual situao do homem nos mais longnquos pontos do territrio nacional o mais forte clamor de justia. O nmero dos sem vez e sem voz aumenta a cada dia: seus direitos so profundamente violados naquilo que mais essencial dignidade humana. O crescimento galopante de um processo de desumanizao da sociedade exige uma resposta. No se pode ficar indiferente: ou participamos direta ou indiretamente na construo dessa sociedade falida, ou nos posicionamos contra ela, possibilitando o nascimento da civilizao do Amor (Joo Paulo II). No h outra sada. (Relatrio Final I Encontro Nacional de Direitos Humanos, 1982)

    A linguagem pastoral e teolgica de que se reveste o documento acima, permeado de

    citaes de falas papais e excertos de encclicas, demarcam o protagonismo da Igreja Catlica no

    encontro, assim como a expressiva maioria das entidades eclesiais em relao aos demais grupos

    laicos. Os eixos da pobreza e da valorizao das bases, que caracterizaram o discurso dos setores

    progressistas da Igreja Catlica na poca, foram acionados como os sinais diacrticos comuns que

    deveriam ser capazes de aplacar as diferenas e dar unidade heterogeneidade dos grupos que

    responderam convocao para o encontro. Como se observa no trecho que citamos em seguida, os

    Direitos Humanos aqui identificados so em primeiro lugar os direitos dos pobres e as instituies

    legtimas que podem reivindicar o direito de defend-los so aquelas que se formaram pela

    iniciativa das bases, de baixo para cima, por meio de um processo de democracia direta. Em primeiro lugar, o objetivo de suas lutas: a defesa dos Direitos Humanos, sobretudo daqueles mais empobrecidos e marginalizados. Em segundo lugar, o como surgiram: nenhum foi criado de cima para baixo, por autoridades institudas. (grifo nosso)

  • O ttulo da conferncia de abertura do Encontro, Os direitos dos pobres como direitos de

    Deus, proferida por Leonardo Boff, por sua vez, assinalava a associao entre Direitos Humanos,

    Igreja Catlica e direito dos mais pobres. O discurso do conferencista se dirige para dois pblicos:

    um interno Igreja Catlica e outro externo. Seu argumento para pblico interno consistiu em

    identificar os Direitos Humanos com os direitos dos pobres, inscrevendo-os no marco da opo

    pelos pobres, definido por Puebla, para em seguida apresent-los como o critrio por excelncia de

    autenticidade da ao pastoral dos bispos. Para o pblico externo, o conferencista partiu do

    reconhecimento de uma polifonia no conceito, visto que o mesmo est historicamente associado aos

    contextos das revolues liberais e burguesas nos Estados Unidos e ordem geopoltica e

    econmica que se estabeleceu aps a Segunda Guerra Mundial, com a Declarao Universal dos

    Direitos Humanos pela ONU, em 1948. Sua estratgia argumentativa foi a de mostrar a

    incompletude e inconsistncia de uma linguagem liberal dos Direitos Humanos, cuja crtica

    alcanaria seu sentido pleno na formulao teolgica e poltica engendrada pela reflexo da

    Teologia da Libertao e pela incorporao da dimenso social, na perspectiva dos pobres.

    Na medida em que a Igreja foi entrando no mundo dos sem-poder, foi sentindo a violncia e a agresso dos Direitos Humanos. (...) Hoje podemos fazer a seguinte verificao: quanto mais uma Igreja se faz popular, entra no continente dos pobres, mais se empenha pelos Direitos Humanos; o contrrio se mostra tambm verdadeiro: quanto menos uma Igreja se empenha pelos direitos, quanto menos declaraes um bispo faz em prol dos direitos violados, tanto mais distante e desencarnada sua atitude e sua pastoral do povo e da realidade social vivida pelos pobres. (...) Ento lutar pelos Direitos Humanos lutar pelos direitos dos pobres, pela dignidade dos oprimidos em primeiro lugar, e a partir deles de todos os homens. (...) Esta a nica postura terica e prtica verdadeira. Caso contrrio, cairemos no jogo dos poderosos que tambm falam de Direitos Humanos, na medida em que querem apresentar uma face humanstica s suas prticas de barbrie, de explorao e violao. (...) Colocar a temtica dos Direitos Humanos em termos de dignidade dos oprimidos encontrar-se com o dado bblico e situar-se no melhor da tradio humanstica que exatamente elaborou os Direitos Humanos (Relatrio Final I Encontro Nacional de Direitos Humanos, 1982).

    A concluso do conferencista foi a de que, ao atribuir aos Direitos Humanos o sentido de

    direito dos pobres, a Amrica Latina acabaria por impor uma linguagem alternativa capaz de evitar

    a instrumentalizao ideolgica da temtica dos Direitos Humanos (Relatrio Final I Encontro

    Nacional de Direitos Humanos, 1982). Os demais textos do relatrio parecem confirmar que a

    disputa pelos Direitos Humanos nesse momento se dava fundamentalmente no campo poltico,

    envolvendo atores que partiam de um consenso sobre as regras do jogo e se posicionavam de acordo

    com as possibilidades e alternativas que lhes eram dadas.

    O II Encontro Nacional de Direitos Humanos foi realizado em 1983, em Taboo da Serra,

    So Paulo. Sua composio foi alterada, incorporando outros atores, como representantes de

  • partidos polticos de esquerda e de ONGs, alm daqueles que estiveram no primeiro encontro. Uma

    das preocupaes centrais do evento foi traar diretrizes que deveriam estabelecer os marcos

    lingusticos do discurso e pautar a atuao em defesa dos Direitos Humanos em todos os nveis da

    sociedade. Tendo como tema Trabalho, Terra e Represso, as entidades presentes foram divididas

    entre trs grandes eixos temticos com propostas de ao especficas:

    Trabalho: Luta organizada em todos os nveis por melhores salrios, contra o desemprego.

    Terra: Luta organizada em todos os nveis por terra para morar e trabalhar, para todos.

    Formao de uma CPT urbana articulada com a CPT existente.

    Represso: Luta organizada em todos os nveis contra todo tipo de represso. Campanha nacional contra a violncia policial (com destaque discriminao racial) em concordncia com a CF/83. Reforo do movimento das mes das vitimas da policia (ROTA, etc.). (Relatrio Final II Encontro Nacional de Direitos Humanos, 1983).

    Embora o relatrio do evento ressalte o seu carter social e laico, os eixos temticos, como

    vemos no trecho citado acima, mantm o jargo catlico e apresenta propostas forjadas no seio da

    prpria Igreja Catlica, que remetem prpria estrutura pastoral da instituio. Configura-se, assim,

    uma realidade contraditria de aproximao do movimento social e, ao mesmo tempo, de

    institucionalizao das organizaes de defesa dos Direitos Humanos sob o controle da Igreja

    Catlica.

    O III Encontro Nacional de Direitos Humanos ocorreu em 1984, na cidade de Vitria,

    Esprito Santo. A pauta do evento ainda est voltada fundamentalmente para as questes

    relacionadas com a terra, o trabalho e a represso. De um universo de 85 memorandos, 41

    levantaram questes relativas terra, 13 ao trabalho, 26 represso e 4 da deficincia na assistncia

    mdica. H que se observar, contudo, a recorrncia transversal de um tema novo, o da cidadania,

    que no aparece nos relatrios anteriores.

    O IV Encontro Nacional de Direitos Humanos teve lugar na cidade de Olinda, Pernambuco,

    em 1986. Neste encontro foi oficializada a criao do Movimento Nacional de Defesa dos Direitos

    Humanos MNDH, confirmando uma tendncia latente no processo de autonomizao das

    organizaes de defesa dos Direitos Humanos em relao tutela da Igreja Catlica. Essa busca de

    autonomia parece responder a dois fatores. O primeiro est relacionado com processo de abertura

    poltica e a relativa liberdade de organizao dos movimentos sociais na sociedade brasileira.

    Muitos participantes do encontro trouxeram para o evento uma experincia poltica forjada fora da

    pastoral catlica, nas lutas clandestinas no pas e nos contatos que estabeleceram no exlio com os

    movimentos sociais nesses pases e as ONGs de cooperao. O segundo diz respeito mudana na

    conjuntura eclesial, que se retraiu em relao ao engajamento social que havia assumido no perodo

    anterior. O crescimento das religies pentecostais no pas e a perda da hegemonia catlica no campo

  • religioso brasileiro, impulsionam uma mudana de rota na atuao da Igreja Catlica na sociedade

    brasileira, que a conduz ao controle ideolgico sobre a Teologia da Libertao, ao apoio prioritrio

    aos movimentos religiosos no seu interior e afirmao da identidade catlica.

    O MNDH se instituiu como uma organizao independente da Igreja Catlica, que visa

    pautar sua atuao por uma Carta de Princpios elaborada e promulgada nesse encontro. Seu

    objetivo promover a articulao nacional das entidades de defesa dos Direitos Humanos que se

    expandiram significativamente em termos das organizaes que se institucionalizaram como ONGs

    e da diversificao das questes, das demandas e dos temas que foram incorporados na linguagem

    dos Direitos Humanos. Nesse sentido, a Carta de Princpios do MNDH abre o seu primeiro

    pargrafo com a seguinte afirmao: A caminhada pelos Direitos Humanos a prpria luta do

    nosso povo oprimindo, atravs de um processo histrico que se inicia durante a colonizao e que

    continua, hoje, na busca de uma sociedade justa, livre, igualitria, culturalmente diferenciada e sem

    classes (Relatrio Final IV Encontro Nacional de Direitos Humanos, 1986). Introduz-se, assim, no

    campo discursivo dos Direitos Humanos um novo sentido, de carter cultural, que vai chamar

    ateno para o direito diferena. Estava, assim, aberta a janela que permitiria ver a diversidade de

    sujeitos e de expectativas que a prpria democracia engendra na medida em que se restabelece na

    sociedade brasileira.

    O V Encontro Nacional de Direitos Humanos aconteceu em 1988, na cidade de Goinia,

    Gois. A sua realizao se deu no contexto poltico da constituinte no Brasil, marcado por uma

    intensa mobilizao social. Os debates no decorrer do encontro foram galvanizados pelas demandas

    populares a serem incorporadas na Constituio, que chegavam das diversas organizaes dos

    movimentos sociais. No relatrio final desse encontro, o discurso do respeito s diferenas, que

    havia aparecido pela primeira vez no encontro anterior, passou a figurar como uma das principais

    causas das lutas do MNDH.

    O MNDH deve lutar por uma sociedade realmente pluralista que respeite e oferea espao para distintas tradies culturais e para diferentes manifestaes de f, tendo como critrio fundamental para essa convivncia igualitria, tudo aquilo que ajuda humanizao de seus membros (carter pessoal) e que favorece as relaes sociais para concreta comunho carter social. (Relatrio Final V Encontro Nacional de Direitos Humanos, 1988)

    O VI Encontro Nacional de Direitos Humanos foi realizado em 1990, na cidade de Vargem

    Grande, So Paulo, dois anos aps a promulgao da Constituio Brasileira de 1988. O tema foi

    Os Direitos Humanos e a Constituio da Nova Sociedade Brasileira. Pela primeira vez, na

    histria dos encontros, o nmero de entidades catlicas foi menor do que o de no-catlicas.

    Participaram do encontro delegados brasileiros e de outros pases da Amrica Latina, representando

    partidos polticos, sindicatos, minorias tnicas e ONG. Nesse encontro, o MNDH deu mais um

    passo em busca de sua autonomia, elegendo uma coordenao que deixou de ser majoritariamente

  • composta por representes dos movimentos ligados Igreja Catlica. Significativo, ainda, nesse

    sentido, foi o fato de o prmio Nacional de Direitos Humanos, que at ento havia sido dado a

    telogos da libertao, sindicalistas ou trabalhadores rurais, ligados pastoral da Igreja Catlica, ter

    sido outorgado aos ndios Yanomami.

    O VII Encontro Nacional dos Direitos Humanos, sediado em Braslia, ocorreu em 1992, e

    comemorou os dez anos de fundao do movimento. O texto do relatrio faz referncia a um

    nmero de 170 delegados, de diversas entidades nacionais e latino-americanas, que participaram do

    evento. O tema foi Luta pela Vida, Contra a Violncia. A ideia de luta pela vida, naquele momento,

    apresentava um sentido ambivalente no campo discursivo dos Direitos Humanos. Por um lado, lutar

    pela vida remetia ao posicionamento histrico da luta contra a tortura e a morte dos presos polticos,

    no contexto da ditadura militar. Por outro, na perspectiva de parte significativa da hierarquia

    catlica e de leigos dos movimentos religiosos de carter conservador, a luta pela vida, apresentava-

    se como uma maneira de demarcar uma posio contrria descriminalizao do aborto.

    Os VIII e IX Encontros Nacionais de Direitos Humanos se realizaram em Braslia,

    respectivamente, em 1994 e 1996. Os relatrios confirmam a tendncia autonomia do MNDH em

    relao Igreja Catlica e o protagonismo crescente de partidos polticos e das ONGs na

    organizao do movimento e conduo dos eventos. H que se destacar que os relatrios produzidos

    nestes dois encontros traziam o sinal de @ (gnero) como uma ao afirmativa que visava

    enfatizar a simetria entre homens e mulheres como um direito fundamental a ser inscrito na

    linguagem universal dos Direitos Humanos: Agradecemos a todos @s companheir@s que mantm viva a esperana de uma sociedade justa, fraterna e solidria. A todos @s militantes que se encontram presos, perseguidos e ameaados de morte por causa da luta por um Brasil fundamentado na justia e na paz .

    A pauta do encontro de 1996, que encerrou a srie dos encontros que vimos analisando,

    incluiu a discusso do esboo do Primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos PNDH-1. A

    elaborao desse Programa era parte de um acordo que o Brasil havia assinado, em 1993, como

    participante e signatrio da Conferncia Mundial de Direitos Humanos, promovida pela ONU, em

    Viena. Pela primeira vez, nos Encontros Nacionais, a temtica dos Direitos das Mulheres foi

    debatida em um grupo de trabalho especfico, cujas deliberaes foram resumidas em nove pontos:

    A) Garantia dos Direitos Humanos das mulheres; B) Eliminao de todas as formas de discriminao; C) Adoo de medidas positivas para garantir a paz e o desarmamento; D) Combate pobreza e apoio igualdade; E) Acesso sade e garantia dos direitos reprodutivos e sexuais; F) Acesso educao no discriminatria; G) Participao poltica nos processo de tomada de deciso; H) Eliminao da violncia e da explorao sexual;

  • I) Eliminao das discriminaes de raa, idade, origem tnica, cultural, religio ou incapacidade;

    emblemtico que, justamente no momento em que o PNDH-I e as questes relativas aos

    direitos das mulheres so incorporados nos debates dos Encontros, esses encerram seu ciclo. Nesse

    novo contexto democrtico, h que se observar um deslocamento da polarizao entre sociedade

    civil e Estado para disputas que passam a ocorrer no campo dos movimentos sociais. Entre essas

    diferenas, como j nos referimos anteriormente, as questes de gnero ganham especial

    importncia na definio dos Direitos Humanos e o protagonismo dos pobres, como sujeitos

    privilegiados dos Direitos Humanos, d lugar ao das mulheres e dos gays. como se, na disputa

    contra a burguesia pelo sentido dos Direitos Humanos, a Teologia da Libertao, como porta-voz da

    Igreja Catlica, tivesse sido vencida por um aliado do seu prprio crculo. Os Direitos Humanos

    como direitos dos grupos mais vulnerveis e discriminados da sociedade parece impor-se tanto

    sobre o sentido universal da Declarao da ONU, de 1948, quanto dos pobres na atuao da Igreja

    Catlica nas dcadas de 1970 e 1980.

    Observamos, portanto, uma mudana de nfase na linguagem dos Direitos Humanos dos

    direitos sociais dos pobres para os direitos sexuais das mulheres e dos gays a dois fatores centrais. O

    primeiro refere-se ao fortalecimento dos movimentos de gnero na sociedade e sua capacidade de

    articulao em nvel nacional e internacional. A sociedade atual se tornou mais tolerante na

    convivncia com as diferenas e com a diversidade de estilos de vida e arranjos matrimoniais. O

    outro decorre da retirada, a que nos referimos acima, do apoio do Vaticano Teologia da Libertao

    e pastoral popular. A opo pelos pobres, pedra fundamental da ao pastoral e poltica da Igreja

    Catlica no continente latino-americano, perde sua urgncia e importncia no longo pontificado de

    Joo Paulo II. Assim, se as encclicas de Joo XXIII e Paulo VI, como vimos acima, incorporaram a

    linguagem dos Direitos Humanos e manifestavam compromisso com a defesa dos direitos polticos

    das vtimas dos regimes autoritrios e dos direitos sociais dos pobres, as de Joo Paulo II vo

    enfatizar, sobretudo, as questes morais relativas reproduo humana e famlia. Destacamos,

    mais uma vez, um breve trecho do artigo de Andrade (2010,190) , no qual ele cita a encclica

    Centisimus Annus, de Joo Paulo II, publicada em 1991. Ao associar a democracia com os Direitos

    Humanos, o papa afirma que necessrio que os povos, que esto reformando os seus regimes, deem democracia um autntico e slido fundamento mediante o reconhecimento explcito dos referidos direitos. Entre os principais, recordem-se: o direito vida, do qual parte integrante o direito a crescer sombra do corao da me depois de ser gerado; o direito a viver numa famlia unida e num ambiente moral favorvel ao desenvolvimento da prpria personalidade (Joo Paulo II, 1991).

    Estamos, portanto, distantes da perspectiva poltica e social que predominou nos anos de 1970 e

    1980 em relao aos Direitos Humanos. O direito vida, definido pelo papa como direito a crescer

  • sombra do corao da me depois de ser gerado, desloca os Direitos Humanos para o campo

    discursivo da moral sexual, no qual a Igreja Catlica se considera autorizada a legislar enquanto

    intrprete legtima da lei natural. Dessa forma, a Igreja Catlica coloca-se acima das disputas que

    acontecem no campo da poltica, ao mesmo tempo em que procura demarcar um espao reservado

    de direitos sobre o qual reivindica exclusividade. como se a mesma Igreja Catlica que foi a voz

    dos que no tinham voz, porque silenciados pela represso dos governos autoritrios, emprestasse,

    agora, a sua voz para aqueles que no podem falar por se encontrarem sombra do corao das

    mes, no silncio dos seus teros, pelo fato de ainda no terem nascido. O sujeito dos Direitos

    Humanos j no se define pelas suas experincias sociais e culturais concretas, vivenciadas como

    contingentes, mas por uma moral que atribui ao embrio humano no tero materno a condio plena

    de pessoa, antes mesmo de adentrar no mundo social.

    Essa posio da Igreja Catlica, embora seja definida doutrinariamente como parte de sua

    ortodoxia, encontra algumas poucas vozes dissonantes no interior do catolicismo brasileiro. Uma

    dessas vozes adquiriu expresso pblica por meio da ONG Catlicas pelo Direito de Decidir.

    Constituda por um grupo militante de mulheres que, sem negar sua identidade catlica, esta ONG

    vem assumindo uma posio contrria condenao moral do aborto pela instituio, fora de

    qualquer processo poltico e pessoal de autonomia das mulheres de decidirem sobre esta questo.

    No mbito dos movimentos gays, a presena catlica apresenta-se ainda mais invisibilizada. As

    iniciativas dos catlicos de alinhamento com os movimentos gays e em propor uma pastoral

    inclusiva tendem a ser rechaadas com base numa moral natural. Assim, se a Igreja Catlica pode

    lidar no perodo militar com o dissenso poltico, incluindo em seu rebanho torturados e torturadores,

    parece no conseguir hoje lidar com o dissenso moral, excluindo da comunidade catlica tanto os

    defensores da descriminalizao do aborto quanto os gays.

    A Igreja nas Conferncias Nacionais de Direitos Humanos A retirada da Igreja Catlica da liderana do MNDH abriu um espao institucional no

    campo dos Direitos Humanos que foi ocupado pelos organismos governamentais que se

    institucionalizaram na estrutura do Estado. Essa institucionalizao, como veremos em seguida, se

    imps num movimento de fora para dentro do governo, impulsionado tanto pelas conferncias

    multilaterais, promovidas pela ONU, das quais o Estado brasileiro foi signatrio, quanto pelas

    organizaes da sociedade civil que, no final dos anos de 1990, passam a atuar em parceira com o

    Estado na formulao e promoo dos Direitos Humanos. Observa-se, assim, um processo que, ao

    mesmo tempo em que incorpora demandas relativas aos Direitos Humanos nos programas dos

    governos democrticos, tambm traz para o mbito do Estado lideranas forjadas nos movimentos

  • sociais que terminam ocupando funes burocrticas e gestoras nas estruturas governamentais.

    A incluso e institucionalizao dos Direitos Humanos no aparato do Estado tem uma longa

    trajetria no Brasil. O primeiro organismo estatal foi criado no mbito do Ministrio da Justia, em

    1977, ainda no perodo do regime militar, e funcionou como um instrumento de controle social e

    ideolgico, articulado com o sistema repressivo do regime. Com a democratizao, a partir de 1988,

    a questo dos Direitos Humanos no mbito governamental incorporou a linguagem e as demandas

    apresentadas pelos movimentos sociais e pelas conferncias multilaterais internacionais. A primeira

    Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (SNDH) foi criada somente em 1997, ainda como parte

    da estrutura do Ministrio da Justia. Em 1999, foi transformada em Secretaria de Estado dos

    Direitos Humanos (SEDH), com assento nas reunies ministeriais do governo. Em 2003, a SEDH

    foi transformada num rgo da Presidncia da Repblica e passou a se chamar de Secretaria

    Especial dos Direitos Humanos. Em 2010, passou a ser denominada de Secretaria de Direitos

    Humanos da Presidncia da Repblica, com status de ministrio.

    As principais atribuies elencadas como misso dessas secretarias so:

    Propor polticas e diretrizes que orientem a promoo dos Direitos Humanos, criando ou apoiando projetos, programas e aes com tal finalidade;

    Articular parcerias com os poderes Legislativo e Judicirio, com os estados e municpios, com a sociedade civil e com organizaes internacionais para trabalho de promoo e defesa dos Direitos Humanos;

    Coordenar a Poltica Nacional de Direitos Humanos segundo as diretrizes do Programa Nacional de Direitos Humanos;

    Receber e encaminhar informaes e denncias de violaes de direitos da criana e do adolescente, da pessoa com deficincia, da populao de Lsbicas, Gays, Bissexuais e Travestis e Transexuais e de todos os grupos sociais vulnerveis;

    A SDH/PR atua como Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos

    Como se pode perceber, se por um lado no h meno questo da pobreza nessa

    apresentao da misso da Secretaria central para o discurso catlico, no contexto dos Encontros

    Nacionais por outro, so mencionados os direitos dos grupos vulnerveis da sociedade, no qual

    so includos aqueles que so vtimas de descriminao sexual. Cabe secretaria o papel de

    coordenao das polticas de Direitos Humanos no pas e de articulao dos rgos de Estado,

    agentes governamentais e da sociedade civil. O seu objetivo imediato o de estabelecer diretrizes

    para a poltica do governo e elaborar um programa nacional de Direitos Humanos. O caminho para

    cumprir sua misso, a convocao e organizao de conferncias nacionais que congreguem os

    rgos governamentais e as organizaes da sociedade civil, representativas da luta pelos Direitos

    Humanos no pas, para recolher e sistematizar as suas demandas num documento de abrangncia

    nacional que dever pautar a ao do Estado. na esteira deste processo poltico que acontece, em

  • 1996, a Primeira Conferncia Nacional de Direitos Humanos que, embora tenha sido oficialmente

    convocada pelo MNDH, foi o governo que forneceu os recursos e a chancela institucional para que

    o evento pudesse se realizar, exercendo, em certa medida, o papel que a Igreja Catlica

    desempenhou no perodo anterior por meio dos encontros nacionais de Direitos Humanos.

    Sintomtico de uma continuidade, mas, ao mesmo tempo, demarcador de uma ruptura na

    trajetria da poltica dos Direitos Humanos no Brasil, o fato que, em 1996, ocorreu tanto o ltimo

    Encontro Nacional de Direitos Humanos, ainda sob a chancela da Igreja Catlica e o predomnio

    dos movimentos sociais, quanto a primeira Conferncia Nacional de Direitos Humanos, que reuniu

    diferentes representantes da sociedade civil e de organismo governamentais. Entre estes, se fizeram

    presentes representantes da Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados e do Frum

    das Comisses Legislativas de Direitos Humanos. Das entidades da sociedade civil, que se

    destacaram pela defesa dos Direitos Humanos no regime militar, participaram representantes da

    Comisso de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, da CNBB, do Movimento

    Nacional de Direitos Humanos e da Federao Nacional de Jornalistas - FENAJ. As ONGs

    convocadas para a Conferncia e que aparecem no elenco das representaes so: Instituto de

    Estudos Socioeconmicos - INESC, Servio de Paz e Justia - SERPAJ e CIMI.

    Ao serem incorporados como poltica de Estado, os Direitos Humanos deslocam-se da tutela

    da Igreja Catlica para a do governo. Nesse deslocamento, a Igreja Catlica passa a ocupar um

    lugar ao lado das demais entidades, fazendo-se representar por meio da CNBB. Impe-se, assim,

    uma relao mais simtrica entre os agentes governamentais, no governamentais e eclesiais dentro

    de um campo discursivo de disputa pelos significados e pelas concepes que os Direitos Humanos

    iro incorporar no contexto democrtico. Ao mesmo tempo, produz-se uma clivagem entre as

    posies da CNBB e das demais entidades envolvidas no jogo poltico e na disputa semntica sobre

    os Direitos Humanos. J na I Conferncia Nacional observa-se a defesa ferrenha da CNBB pela

    incluso no relatrio final do direito vida como destaque entre os Direitos Humanos (Brasil, 1996).

    Essa proposio contrapunha-se demanda pela descriminalizao do aborto, proposta pelos

    representantes governamentais e das organizaes civis, que tambm foi incorporada ao relatrio

    como reconhecimento dos direitos reprodutivos enquanto Direitos Humanos e a implementao

    efetiva do Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher (PAISM) e do atendimento do

    aborto legal no Servio nico de Sade (SUS) (Brasil, 1996). Ainda, na esteira dessa disputa, o

    MNDH identificou como uma importante vitria a incluso, no mesmo relatrio, dos direitos de

    segmentos vulnerveis da sociedade, tais como: mulheres, negros, homossexuais, indgenas e

    migrantes (Brasil, 1996). Como resultado final, temos um relatrio compsito que procura

    conciliar discursos e posies contraditrias que estavam presentes na conjuntura poltica, social e

    cultural da sociedade brasileira naquele momento.

  • Convocadas com a finalidade precpua de recolher e sistematizar as propostas e demandas

    da sociedade civil para a elaborao dos programas nacional de Direitos Humanos em suas trs

    verses: PNDH-1, PNDH-2 e PNDH-3, as conferncias se constituram, em suas 11 edies, at

    2008, o principal instrumento de dilogo do governo com a sociedade civil sobre os Direitos

    Humanos no Brasil. Nesta trajetria, vamos observar a diversificao das parcerias que a SEDH,

    enquanto entidade promotora, estabelece com os demais atores do prprio estado e da sociedade

    civil. O ltimo evento, por exemplo, foi organizado de forma tripartite pela Secretaria Especial de

    Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, pela Comisso de Direitos Humanos e Minorias da

    Cmara dos Deputados e pelo Frum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos, manifestando

    um enquadramento dos Direitos Humanos numa viso que se organiza sobre trs pilares: governo,

    congresso nacional e sociedade civil.

    Diversificam-se tambm as entidades convocadas para as conferncias, apontando para uma

    presena cada vez mais intensa das ONGs, ao mesmo tempo em que a representao dos

    movimentos sociais se faz por meio de fruns que congregam conjuntos de organizaes,

    articuladas em torno de subtemas dos Direitos Humanos. As conferncias se tornam, assim, o canal

    privilegiado pelo o qual as demandas das crianas e adolescentes, das mulheres, dos homossexuais,

    dos ndios e afro-descentes e do prprio planeta, por meio das entidades ambientalistas, cheguem ao

    Estado e possam ser incorporadas como polticas pblicas. Esses subtemas, como mostra a anlise

    dos relatrios das conferncias so agregados aos primeiros, relacionados com questes sociais e

    poltico-ideolgicas, alargando cada vez mais o campo semntico dos Direitos Humanos. E, esta

    diversidade crescente de demandas, temas, questes e propostas que integra o contedo dos

    programas nacionais de Direitos Humanos. Esses, por sua vez, tornam-se um instrumento de

    legitimao para o governo democrtico, de indexao de valor s demandas que se expressam no

    seu texto e de reconhecimento para os rgos do Estado e as organizaes da sociedade civil que

    participam das conferncias.

    Para os governos democrticos, que se elegeram a partir da Constituio de 1988, a

    ampliao dos sentidos, dos temas e dos sujeitos dos Direitos Humanos num programa nacional,

    tornou-se um importante instrumento de legitimao e alargamento de suas bases de apoio na

    sociedade civil. Para operacionalizar esse processo e manter o seu controle, a estratgia priorizada

    pelo governo, num primeiro momento, foi a criao e o fortalecimento institucional de uma

    secretaria de Estado diretamente ligada presidncia da repblica. Num segundo momento, as

    aes da Secretaria se voltaram mais para a expanso e replicao de estruturas governamentais de

    Direitos Humanos nos demais poderes e nveis de governo. A Secretaria Presidencial, por sua vez,

    chama para sua responsabilidade a integrao das aes voltadas para a defesa dos Direitos

    Humanos realizadas no congresso nacional, nos estados e nos municpios e a articulao dessas

  • aes com as entidades da sociedade civil. Nesse sentido, a proposta discutida e encaminhada nas

    ltimas conferncias apontou para a criao de um sistema nacional de Direitos Humanos. Esse

    processo de estruturao dos Direitos Humanos no aparato do Estado se reflete nas trs verses do

    programa de Direitos Humanos no sentido de uma diversificao cada vez maior das demandas

    especficas e locais que foram includas no seu texto.

    Ao lado desse esforo de fortalecimento da SEDH e articulao no mbito nacional,

    observa-se, ainda, um movimento que vai em direo ao compromisso dos governos democrticos

    brasileiros com a implementao e o cumprimento dos acordos internacionais definidos nos fruns

    internacionais dos quais o Brasil signatrio. Promovidas pela ONU, podemos lembrar aqui uma

    sequncia de conferncias mundiais que produziram uma agenda global de defesa dos Direitos

    Humanos. Em 1993 a Conferncia de Viena sobre Direitos Humanos; em 1994 a do Cairo sobre

    populao; em 1995 a de Pequim sobre as mulheres e em favor da igualdade; em 2001 a de Durban

    contra o racismo, a xenofobia e a intolerncia. Essas temticas, ainda que possam ser identificadas

    como demandas formuladas internamente por movimentos presentes na sociedade brasileira, sua

    urgncia e gravidade reforada na medida em que passam a contar com mecanismos

    internacionais de proteo dos Direitos Humanos.

    Como vimos apresentando neste texto, a produo desse novo contexto discursivo no qual

    os Direitos Humanos passaram a operar, especialmente, a partir da dcada de 1990, produziu outra

    correlao de foras entre os grupos atuantes em sua defesa. Nesse sentido, as controvrsias e

    polmicas envolvendo o PNDH-3 esto relacionadas com uma disputa pelas categorias semnticas

    legtimas na definio do que seja Direitos Humanos no Brasil. A incorporao, nas ltimas duas

    dcadas, de demandas relativas aos direitos sexuais e reprodutivos deslocou o protagonismo na

    defesa desses direitos da Igreja Catlica para as ONGs e para o prprio Estado. Todavia, o referido

    deslocamento no significou que as discusses acerca dos Direitos Humanos no Brasil tenham se

    laicizado, mas, antes disso, que a Igreja Catlica passou a ocupar outra posio na disputa pelos

    sentidos dos Direitos Humanos sem que isso tenha implicado a perda de sua capacidade em pautar

    debates pblicos sobre o tema.

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