moyn, samuel. human rights and the uses of history. london: verso, 2014
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MOYN, Samuel. Human Rights and the Uses of History. London: Verso, 2014.TRANSCRIPT
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A TRAJETRIA DOS DIREITOS HUMANOS NA IGREJA CATLICA NO BRASIL: DO DISCURSO POLTICO AO DISCURSO MORAL
Carlos Alberto Steil1 Rodrigo Toniol2
No ano de 2010, no contexto das eleies para a presidncia da repblica do Brasil,
controvrsias envolvendo questes relativas mudana da legislao sobre o aborto e sobre a unio
civil de pessoas do mesmo sexo adquiriram grande visibilidade na esfera pblica nacional. A
disputa em torno dessas questes no se limitou queles que concorriam ao cargo presidencial, mas
estendeu-se, de modo significativo, a figuras do campo religioso, como padres, bispos catlicos e
lderes evanglicos. O lanamento, no incio de 2010, do Terceiro Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH-3), que continha recomendaes favorveis ampliao dos direitos sexuais e
reprodutivos, foi acompanhado por uma reao imediata da Conferncia Nacional de Bispos do
Brasil (CNBB) que, durante todo aquele ano, emitiu notas contrrias ao PNDH-3 e seus apoiadores.
O presente texto toma as controvrsias envolvendo o PNDH-3, nas eleies presidenciais
brasileiras, apenas em seu potencial evocativo, para que, a partir delas, possamos apresentar certo
trajeto histrico do posicionamento da Igreja Catlica diante de questes envolvendo os Direitos
Humanos. Para tanto, faremos uma retrospectiva histrica dessa relao desde o perodo da ditadura
militar (1964) at os dias hoje, destacando o seu protagonismo nas dcadas de 1970 e 1980 por
meio da Teologia da Libertao, dos pronunciamentos do Conselho Episcopal Latino Americano
CELAM (Puebla, 1979) -, da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), assim como da
atuao das Comunidades Eclesiais de Base e da organizao dos Encontros Nacionais de Direitos
Humanos (1982-1996). Parte de nosso esforo ser o de mostrar o modo pelo qual a alterao das
foras definidoras da matriz discursiva dos Direitos Humanos e, por conseguinte, incluso de novos
atores na sua defesa, implicou na perda do protagonismo da Igreja na promoo desses direitos.
Disputas em torno dos Direitos Humanos Ao traar a trajetria do discurso da Igreja Catlica sobre os Direitos Humanos no Brasil,
procuraremos mostrar como a instituio pouco a pouco se deslocou do campo do poltico, em que
os sujeitos de direito eram os presos polticos e os pobres, para o campo da sexualidade e da lei
natural, em que os direitos do embrio, traduzidos em termos do direito vida, e a defesa da
1 Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Email: [email protected] 2 Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Email: [email protected]
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famlia heterossexual adquiriram centralidade. Esse deslocamento acompanha o processo de
democratizao da sociedade brasileira e a ampliao das demandas dos novos movimentos sociais
que passam a ser incorporadas sob a denominao de Direitos Humanos. Direitos estes que se
expressam especialmente nas linguagens tnica, ambiental e de gnero, que pouco a pouca vo
inscrevendo suas demandas nos projetos e planos nacionais dos governos democrticos e na
formulao de polticas pblicas. Um processo que, ao inscrever os direitos reprodutivos e sexuais
na definio dos Direitos Humanos, cria um dissenso que retira o carter universal desses direitos,
remetendo-os para o campo do particular.
A emergncia e fortalecimento desses movimentos na cena poltica configuram uma nova
correlao de foras entre os grupos envolvidos com os Direitos Humanos. A incorporao das
questes de gnero na agenda do movimento de defesa dos Direitos Humanos no Brasil,
especialmente aquelas que afetam o campo da moral sexual a descriminalizao do aborto e a
unio civil de casais do mesmo sexo acabam produzindo uma dissintonia em relao Igreja
Catlica. Podemos observar, assim, um divisor de guas na sua orientao e alianas polticas na
passagem da ditadura para a democracia. Se no perodo da ditadura militar, a Igreja Catlica esteve
ao lado dos movimentos sociais de contestao ao regime militar na denncia tortura de presos
polticos e s causas estruturais da pobreza, no contexto democrtico, sua posio se define contra
os movimentos que representam as posies a favor da descriminalizao do aborto e do casamento
entre pessoas do mesmo sexo. Na medida em que as causas defendidas por estes novos movimentos
passam a ser inscritas como Direitos Humanos, o uso da linguagem dos Direitos Humanos no
discurso dos catlicos entra em conflito com as orientaes morais da instituio. Enfim, a disputa
entre o direito do embrio, definido como pessoa humana pela Igreja Catlica, e o direito da mulher
de decidir sobre o aborto, assim como o conflito entre os princpios da procriao e do prazer, no
caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, na medida em que se inscrevem no mbito dos
Direitos Humanos, quebram o consenso que havia se estabelecido, antes da Constituio
Democrtica de 1988, entre a Igreja Catlica e os movimentos sociais de contestao ao regime
militar. Ou seja, o discurso dos Direitos Humanos perde sua univocidade e consenso no mbito dos
movimentos sociais, o que vai se refletir em ambiguidades e indefinies tanto nos discursos dos
polticos em tempos de eleio quanto nos planos e nas polticas governamentais.
Conselho Episcopal Latino-Americano na promoo dos Direitos Humanos A incorporao dos Direitos Humanos como um paradigma de orientao para a ao moral
e poltica dos indivduos e governos aparece nas encclicas e documentos oficiais da Igreja Catlica
nos anos de 1960, no pontificado do Papa Joo XXIII, coincidindo com o perodo do Conclio
Vaticano II, que deu origem a um perodo de aggiornamento e abertura da instituio para a
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modernidade. O telogo Paulo Fernando Carneiro de Andrade, no seu artigo intitulado Democracia
e Doutrina Social da Igreja (2010) identifica no texto da encclica Pacem in Terris, de Joo XXIII
(1963), a primeira referncia da recepo catlica da linguagem dos Direitos Humanos na sua
doutrina social. Como podemos ver na citao destacada por Andrade, o Papa fundamenta os
Direitos Humanos na natureza da pessoa humana, como um princpio que transcende e subordina a
dimenso poltica dos contextos locais:
Em uma convivncia humana bem constituda e eficiente, fundamental o princpio de que cada ser humano pessoa; isto , natureza dotada de inteligncia e vontade livre. Por essa razo, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua prpria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, inviolveis, e inalienveis (apud Andrade, 2011:183).
A anlise de Andrade chama a ateno para o avano da encclica em relao aos Direitos
Humanos propostos pela Declarao Universal dos Direitos Humanos das Naes Unidas, em 1948,
na medida em que os direitos aqui referidos desdobram-se em quatro dimenses: direitos polticos,
civis, econmicos e sociais, com destaque para direito existncia, integridade fsica e aos
recursos correspondentes a um digno padro de vida (Andrade, 2010:184). Essa posio do
Vaticano, reiterada noutros pronunciamentos que vo na mesma direo, vai estabelecer o quadro
doutrinrio e pastoral no qual a Igreja Catlica vai pautar sua ao poltica na sociedade brasileira
justamente no momento em que a violao da integridade fsica de presos polticos pelo regime
ditatorial se torna recorrente e o agravamento da situao social e econmica expe a maioria de
sua populao abaixo da linha de dignidade da pobreza. Esse contexto internacional da Igreja
Catlica autoriza, de certa forma, os seus agentes a se engajarem na defesa dos Direitos Humanos
em contextos nacionais de represso poltica e de pobreza econmica. Ao mesmo tempo, d a esses
agentes a conscincia de que a sua compreenso dos Direitos Humanos diferente e mais
abrangente do que aquela proposta pelo discurso poltico liberal internacional, estabelecido a partir
da Segunda Guerra Mundial.
Ao contexto internacional, somam-se dois movimentos intraeclesiais que impulsionam a
Igreja Catlica na defesa e promoo dos Direitos Humanos. O primeiro o fortalecimento e o
prestgio social que a Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e, em nvel latino-
americano, o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) adquirem junto opinio pblica e
aos movimentos sociais. O segundo a emergncia da Teologia da Libertao como uma reflexo
que tem como horizonte o compromisso evanglico e poltico da Igreja Catlica com os pobres e
como base de sustentao as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as pastorais sociais,
especialmente aquelas voltadas para questes agrrias, como a Comisso Pastoral da Terra (CPT), e
indgenas, como o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI).
O CELAM realizou, no perodo, duas conferncias que tiveram grande repercusso na
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atuao da Igreja Catlica: a Segunda Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano, que se
realizou em Medelln, na Colmbia, em 1968 e a Terceira Conferncia Geral do Episcopado Latino-
Americano, em Puebla, no Mxico, em 1979. Os documentos produzidos por essas conferncias
balizaram em grande medida a ao da Igreja Catlica no continente e legitimaram o discurso e a
ao em defesa dos Direitos Humanos tanto na sua vertente poltica quanto social. Em sintonia com
o Conclio Vaticano II, na Conferncia de Medellin assumiu-se o compromisso com o ser humano e
com a justia como o eixo principal de sua proposio. Suas concluses permitiram que os Direitos
Humanos adquirissem um estatuto de legitimidade para a ao poltica eclesistica e pastoral (Steil,
1996: 253). J a Conferncia de Puebla, deixou como sua principal orientao para a ao da Igreja
Catlica a opo pelos pobres e a criao e fortalecimento das CEBs como estruturas eclesiais,
orientadas para a ao na sociedade civil, em articulao com os movimentos sociais. Entre esses
movimentos A luta em prol dos Direitos Humanos significa um imperativo original desta hora de
Deus em nosso continente (...). A promoo e defesa dos Direitos Humanos implica principalmente
a promoo e defesa dos direitos dos pobres (Puebla, 1979). Essa subordinao da dimenso
poltica dos Direitos Humanos sua dimenso social ir repercutir, como veremos a seguir, na
nfase que ser atribuda questo da pobreza nos Encontros Nacionais de Direitos Humanos.
Outra fonte de legitimao do discurso em defesa dos Direitos Humanos no mbito da Igreja
Catlica vem dos documentos e comunicados de bispos, dioceses e organismos da CNBB, que
foram respaldados posteriormente pelas suas Assembleias Gerais. Entre esses, pode-se citar os
seguintes documentos que se tornaram referncias: Eu ouvi os Clamores do Meu Povo, dos Bispos
do Nordeste (1973), Comunicao Pastoral ao Povo de Deus, da Comisso Representativa da
CNBB de 1976 e Exigncias Crists de uma Ordem Poltica, da Assembleia Geral de 1977. Esses
documentos foram acompanhados de aes pessoais e coletivas no mbito das pastorais especficas
como a CPT, o CIMI, a Pastoral dos Trabalhadores e das Comunidades Eclesiais de Base. Essas
aes, como mostra Andrade, foram amplamente respaldadas pelo Vaticano e pelos rgos oficiais
de imprensa da Santa S, a Radio Vaticano e o jornal LOsservatore Romano que denunciaram
abusos cometidos pelo governo militar (Andrade, 2010:195). E conclui que o prprio Papa Paulo
VI manifestou publicamente seu apoio aos Bispos brasileiros, condenando a violao dos Direitos
Humanos no pas.
Como resultado institucional desse contexto eclesial e poltico foram criados em mbito
diocesano os Centros de Defesa de Direitos Humanos e as Comisses de Justia e Paz, que se
constituram em instncias que atuam no campo jurdico, poltico e da mdia na denncia das
violaes dos Direitos Humanos, na proteo dos presos polticos e defesa das vtimas do regime
militar. A sua criao e implementao estiveram muitas vezes dependentes da iniciativa dos
prprios bispos e foram mais atuantes nas dioceses mais expressivas do pas, onde havia a presena
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institucional dos rgos repressores do regime ou naquelas mais distantes dos grandes centros
urbanos, onde a violao se exercia contra as populaes mais pobres, pelo arbtrio das corporaes
policiais. A eficcia da sua ao quase sempre dependeu da articulao do conjunto das pastorais na
diocese e na regio e de sua relao com os movimentos sociais para alm dos limites eclesiais. A
capilaridade do catolicismo na sociedade brasileira e a estrutura centralizada da Igreja Catlica
foram fatores decisivos para que o movimento de defesa dos Direitos Humanos pudesse alcanar
projeo e poder de influncia sobre as conscincias e a opinio pblica no pas.
Os Encontros Nacionais de Direitos Humanos no Brasil
Em 1982, trs anos aps a realizao da III Conferncia do CELAM, ocorreu, no Brasil, o I
Encontro Nacional de Direitos Humanos. Realizado em Petrpolis, Rio de Janeiro, esse encontro
mobilizou dezenas de Centros de Defesa de Direitos Humanos e Comisses de Justia e Paz.
Embora os organizadores pretendessem dar ao encontro um carter no religioso, apresentando-o
como a iniciativa de uma organizao civil, que transcendia os limites eclesiais, a presena
marcante da Igreja Catlica fica evidente na linguagem que utilizada nos documentos de
concluso do Encontro, como se pode ver no pargrafo de abertura do relatrio do encontro:
A atual situao do homem nos mais longnquos pontos do territrio nacional o mais forte clamor de justia. O nmero dos sem vez e sem voz aumenta a cada dia: seus direitos so profundamente violados naquilo que mais essencial dignidade humana. O crescimento galopante de um processo de desumanizao da sociedade exige uma resposta. No se pode ficar indiferente: ou participamos direta ou indiretamente na construo dessa sociedade falida, ou nos posicionamos contra ela, possibilitando o nascimento da civilizao do Amor (Joo Paulo II). No h outra sada. (Relatrio Final I Encontro Nacional de Direitos Humanos, 1982)
A linguagem pastoral e teolgica de que se reveste o documento acima, permeado de
citaes de falas papais e excertos de encclicas, demarcam o protagonismo da Igreja Catlica no
encontro, assim como a expressiva maioria das entidades eclesiais em relao aos demais grupos
laicos. Os eixos da pobreza e da valorizao das bases, que caracterizaram o discurso dos setores
progressistas da Igreja Catlica na poca, foram acionados como os sinais diacrticos comuns que
deveriam ser capazes de aplacar as diferenas e dar unidade heterogeneidade dos grupos que
responderam convocao para o encontro. Como se observa no trecho que citamos em seguida, os
Direitos Humanos aqui identificados so em primeiro lugar os direitos dos pobres e as instituies
legtimas que podem reivindicar o direito de defend-los so aquelas que se formaram pela
iniciativa das bases, de baixo para cima, por meio de um processo de democracia direta. Em primeiro lugar, o objetivo de suas lutas: a defesa dos Direitos Humanos, sobretudo daqueles mais empobrecidos e marginalizados. Em segundo lugar, o como surgiram: nenhum foi criado de cima para baixo, por autoridades institudas. (grifo nosso)
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O ttulo da conferncia de abertura do Encontro, Os direitos dos pobres como direitos de
Deus, proferida por Leonardo Boff, por sua vez, assinalava a associao entre Direitos Humanos,
Igreja Catlica e direito dos mais pobres. O discurso do conferencista se dirige para dois pblicos:
um interno Igreja Catlica e outro externo. Seu argumento para pblico interno consistiu em
identificar os Direitos Humanos com os direitos dos pobres, inscrevendo-os no marco da opo
pelos pobres, definido por Puebla, para em seguida apresent-los como o critrio por excelncia de
autenticidade da ao pastoral dos bispos. Para o pblico externo, o conferencista partiu do
reconhecimento de uma polifonia no conceito, visto que o mesmo est historicamente associado aos
contextos das revolues liberais e burguesas nos Estados Unidos e ordem geopoltica e
econmica que se estabeleceu aps a Segunda Guerra Mundial, com a Declarao Universal dos
Direitos Humanos pela ONU, em 1948. Sua estratgia argumentativa foi a de mostrar a
incompletude e inconsistncia de uma linguagem liberal dos Direitos Humanos, cuja crtica
alcanaria seu sentido pleno na formulao teolgica e poltica engendrada pela reflexo da
Teologia da Libertao e pela incorporao da dimenso social, na perspectiva dos pobres.
Na medida em que a Igreja foi entrando no mundo dos sem-poder, foi sentindo a violncia e a agresso dos Direitos Humanos. (...) Hoje podemos fazer a seguinte verificao: quanto mais uma Igreja se faz popular, entra no continente dos pobres, mais se empenha pelos Direitos Humanos; o contrrio se mostra tambm verdadeiro: quanto menos uma Igreja se empenha pelos direitos, quanto menos declaraes um bispo faz em prol dos direitos violados, tanto mais distante e desencarnada sua atitude e sua pastoral do povo e da realidade social vivida pelos pobres. (...) Ento lutar pelos Direitos Humanos lutar pelos direitos dos pobres, pela dignidade dos oprimidos em primeiro lugar, e a partir deles de todos os homens. (...) Esta a nica postura terica e prtica verdadeira. Caso contrrio, cairemos no jogo dos poderosos que tambm falam de Direitos Humanos, na medida em que querem apresentar uma face humanstica s suas prticas de barbrie, de explorao e violao. (...) Colocar a temtica dos Direitos Humanos em termos de dignidade dos oprimidos encontrar-se com o dado bblico e situar-se no melhor da tradio humanstica que exatamente elaborou os Direitos Humanos (Relatrio Final I Encontro Nacional de Direitos Humanos, 1982).
A concluso do conferencista foi a de que, ao atribuir aos Direitos Humanos o sentido de
direito dos pobres, a Amrica Latina acabaria por impor uma linguagem alternativa capaz de evitar
a instrumentalizao ideolgica da temtica dos Direitos Humanos (Relatrio Final I Encontro
Nacional de Direitos Humanos, 1982). Os demais textos do relatrio parecem confirmar que a
disputa pelos Direitos Humanos nesse momento se dava fundamentalmente no campo poltico,
envolvendo atores que partiam de um consenso sobre as regras do jogo e se posicionavam de acordo
com as possibilidades e alternativas que lhes eram dadas.
O II Encontro Nacional de Direitos Humanos foi realizado em 1983, em Taboo da Serra,
So Paulo. Sua composio foi alterada, incorporando outros atores, como representantes de
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partidos polticos de esquerda e de ONGs, alm daqueles que estiveram no primeiro encontro. Uma
das preocupaes centrais do evento foi traar diretrizes que deveriam estabelecer os marcos
lingusticos do discurso e pautar a atuao em defesa dos Direitos Humanos em todos os nveis da
sociedade. Tendo como tema Trabalho, Terra e Represso, as entidades presentes foram divididas
entre trs grandes eixos temticos com propostas de ao especficas:
Trabalho: Luta organizada em todos os nveis por melhores salrios, contra o desemprego.
Terra: Luta organizada em todos os nveis por terra para morar e trabalhar, para todos.
Formao de uma CPT urbana articulada com a CPT existente.
Represso: Luta organizada em todos os nveis contra todo tipo de represso. Campanha nacional contra a violncia policial (com destaque discriminao racial) em concordncia com a CF/83. Reforo do movimento das mes das vitimas da policia (ROTA, etc.). (Relatrio Final II Encontro Nacional de Direitos Humanos, 1983).
Embora o relatrio do evento ressalte o seu carter social e laico, os eixos temticos, como
vemos no trecho citado acima, mantm o jargo catlico e apresenta propostas forjadas no seio da
prpria Igreja Catlica, que remetem prpria estrutura pastoral da instituio. Configura-se, assim,
uma realidade contraditria de aproximao do movimento social e, ao mesmo tempo, de
institucionalizao das organizaes de defesa dos Direitos Humanos sob o controle da Igreja
Catlica.
O III Encontro Nacional de Direitos Humanos ocorreu em 1984, na cidade de Vitria,
Esprito Santo. A pauta do evento ainda est voltada fundamentalmente para as questes
relacionadas com a terra, o trabalho e a represso. De um universo de 85 memorandos, 41
levantaram questes relativas terra, 13 ao trabalho, 26 represso e 4 da deficincia na assistncia
mdica. H que se observar, contudo, a recorrncia transversal de um tema novo, o da cidadania,
que no aparece nos relatrios anteriores.
O IV Encontro Nacional de Direitos Humanos teve lugar na cidade de Olinda, Pernambuco,
em 1986. Neste encontro foi oficializada a criao do Movimento Nacional de Defesa dos Direitos
Humanos MNDH, confirmando uma tendncia latente no processo de autonomizao das
organizaes de defesa dos Direitos Humanos em relao tutela da Igreja Catlica. Essa busca de
autonomia parece responder a dois fatores. O primeiro est relacionado com processo de abertura
poltica e a relativa liberdade de organizao dos movimentos sociais na sociedade brasileira.
Muitos participantes do encontro trouxeram para o evento uma experincia poltica forjada fora da
pastoral catlica, nas lutas clandestinas no pas e nos contatos que estabeleceram no exlio com os
movimentos sociais nesses pases e as ONGs de cooperao. O segundo diz respeito mudana na
conjuntura eclesial, que se retraiu em relao ao engajamento social que havia assumido no perodo
anterior. O crescimento das religies pentecostais no pas e a perda da hegemonia catlica no campo
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religioso brasileiro, impulsionam uma mudana de rota na atuao da Igreja Catlica na sociedade
brasileira, que a conduz ao controle ideolgico sobre a Teologia da Libertao, ao apoio prioritrio
aos movimentos religiosos no seu interior e afirmao da identidade catlica.
O MNDH se instituiu como uma organizao independente da Igreja Catlica, que visa
pautar sua atuao por uma Carta de Princpios elaborada e promulgada nesse encontro. Seu
objetivo promover a articulao nacional das entidades de defesa dos Direitos Humanos que se
expandiram significativamente em termos das organizaes que se institucionalizaram como ONGs
e da diversificao das questes, das demandas e dos temas que foram incorporados na linguagem
dos Direitos Humanos. Nesse sentido, a Carta de Princpios do MNDH abre o seu primeiro
pargrafo com a seguinte afirmao: A caminhada pelos Direitos Humanos a prpria luta do
nosso povo oprimindo, atravs de um processo histrico que se inicia durante a colonizao e que
continua, hoje, na busca de uma sociedade justa, livre, igualitria, culturalmente diferenciada e sem
classes (Relatrio Final IV Encontro Nacional de Direitos Humanos, 1986). Introduz-se, assim, no
campo discursivo dos Direitos Humanos um novo sentido, de carter cultural, que vai chamar
ateno para o direito diferena. Estava, assim, aberta a janela que permitiria ver a diversidade de
sujeitos e de expectativas que a prpria democracia engendra na medida em que se restabelece na
sociedade brasileira.
O V Encontro Nacional de Direitos Humanos aconteceu em 1988, na cidade de Goinia,
Gois. A sua realizao se deu no contexto poltico da constituinte no Brasil, marcado por uma
intensa mobilizao social. Os debates no decorrer do encontro foram galvanizados pelas demandas
populares a serem incorporadas na Constituio, que chegavam das diversas organizaes dos
movimentos sociais. No relatrio final desse encontro, o discurso do respeito s diferenas, que
havia aparecido pela primeira vez no encontro anterior, passou a figurar como uma das principais
causas das lutas do MNDH.
O MNDH deve lutar por uma sociedade realmente pluralista que respeite e oferea espao para distintas tradies culturais e para diferentes manifestaes de f, tendo como critrio fundamental para essa convivncia igualitria, tudo aquilo que ajuda humanizao de seus membros (carter pessoal) e que favorece as relaes sociais para concreta comunho carter social. (Relatrio Final V Encontro Nacional de Direitos Humanos, 1988)
O VI Encontro Nacional de Direitos Humanos foi realizado em 1990, na cidade de Vargem
Grande, So Paulo, dois anos aps a promulgao da Constituio Brasileira de 1988. O tema foi
Os Direitos Humanos e a Constituio da Nova Sociedade Brasileira. Pela primeira vez, na
histria dos encontros, o nmero de entidades catlicas foi menor do que o de no-catlicas.
Participaram do encontro delegados brasileiros e de outros pases da Amrica Latina, representando
partidos polticos, sindicatos, minorias tnicas e ONG. Nesse encontro, o MNDH deu mais um
passo em busca de sua autonomia, elegendo uma coordenao que deixou de ser majoritariamente
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composta por representes dos movimentos ligados Igreja Catlica. Significativo, ainda, nesse
sentido, foi o fato de o prmio Nacional de Direitos Humanos, que at ento havia sido dado a
telogos da libertao, sindicalistas ou trabalhadores rurais, ligados pastoral da Igreja Catlica, ter
sido outorgado aos ndios Yanomami.
O VII Encontro Nacional dos Direitos Humanos, sediado em Braslia, ocorreu em 1992, e
comemorou os dez anos de fundao do movimento. O texto do relatrio faz referncia a um
nmero de 170 delegados, de diversas entidades nacionais e latino-americanas, que participaram do
evento. O tema foi Luta pela Vida, Contra a Violncia. A ideia de luta pela vida, naquele momento,
apresentava um sentido ambivalente no campo discursivo dos Direitos Humanos. Por um lado, lutar
pela vida remetia ao posicionamento histrico da luta contra a tortura e a morte dos presos polticos,
no contexto da ditadura militar. Por outro, na perspectiva de parte significativa da hierarquia
catlica e de leigos dos movimentos religiosos de carter conservador, a luta pela vida, apresentava-
se como uma maneira de demarcar uma posio contrria descriminalizao do aborto.
Os VIII e IX Encontros Nacionais de Direitos Humanos se realizaram em Braslia,
respectivamente, em 1994 e 1996. Os relatrios confirmam a tendncia autonomia do MNDH em
relao Igreja Catlica e o protagonismo crescente de partidos polticos e das ONGs na
organizao do movimento e conduo dos eventos. H que se destacar que os relatrios produzidos
nestes dois encontros traziam o sinal de @ (gnero) como uma ao afirmativa que visava
enfatizar a simetria entre homens e mulheres como um direito fundamental a ser inscrito na
linguagem universal dos Direitos Humanos: Agradecemos a todos @s companheir@s que mantm viva a esperana de uma sociedade justa, fraterna e solidria. A todos @s militantes que se encontram presos, perseguidos e ameaados de morte por causa da luta por um Brasil fundamentado na justia e na paz .
A pauta do encontro de 1996, que encerrou a srie dos encontros que vimos analisando,
incluiu a discusso do esboo do Primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos PNDH-1. A
elaborao desse Programa era parte de um acordo que o Brasil havia assinado, em 1993, como
participante e signatrio da Conferncia Mundial de Direitos Humanos, promovida pela ONU, em
Viena. Pela primeira vez, nos Encontros Nacionais, a temtica dos Direitos das Mulheres foi
debatida em um grupo de trabalho especfico, cujas deliberaes foram resumidas em nove pontos:
A) Garantia dos Direitos Humanos das mulheres; B) Eliminao de todas as formas de discriminao; C) Adoo de medidas positivas para garantir a paz e o desarmamento; D) Combate pobreza e apoio igualdade; E) Acesso sade e garantia dos direitos reprodutivos e sexuais; F) Acesso educao no discriminatria; G) Participao poltica nos processo de tomada de deciso; H) Eliminao da violncia e da explorao sexual;
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I) Eliminao das discriminaes de raa, idade, origem tnica, cultural, religio ou incapacidade;
emblemtico que, justamente no momento em que o PNDH-I e as questes relativas aos
direitos das mulheres so incorporados nos debates dos Encontros, esses encerram seu ciclo. Nesse
novo contexto democrtico, h que se observar um deslocamento da polarizao entre sociedade
civil e Estado para disputas que passam a ocorrer no campo dos movimentos sociais. Entre essas
diferenas, como j nos referimos anteriormente, as questes de gnero ganham especial
importncia na definio dos Direitos Humanos e o protagonismo dos pobres, como sujeitos
privilegiados dos Direitos Humanos, d lugar ao das mulheres e dos gays. como se, na disputa
contra a burguesia pelo sentido dos Direitos Humanos, a Teologia da Libertao, como porta-voz da
Igreja Catlica, tivesse sido vencida por um aliado do seu prprio crculo. Os Direitos Humanos
como direitos dos grupos mais vulnerveis e discriminados da sociedade parece impor-se tanto
sobre o sentido universal da Declarao da ONU, de 1948, quanto dos pobres na atuao da Igreja
Catlica nas dcadas de 1970 e 1980.
Observamos, portanto, uma mudana de nfase na linguagem dos Direitos Humanos dos
direitos sociais dos pobres para os direitos sexuais das mulheres e dos gays a dois fatores centrais. O
primeiro refere-se ao fortalecimento dos movimentos de gnero na sociedade e sua capacidade de
articulao em nvel nacional e internacional. A sociedade atual se tornou mais tolerante na
convivncia com as diferenas e com a diversidade de estilos de vida e arranjos matrimoniais. O
outro decorre da retirada, a que nos referimos acima, do apoio do Vaticano Teologia da Libertao
e pastoral popular. A opo pelos pobres, pedra fundamental da ao pastoral e poltica da Igreja
Catlica no continente latino-americano, perde sua urgncia e importncia no longo pontificado de
Joo Paulo II. Assim, se as encclicas de Joo XXIII e Paulo VI, como vimos acima, incorporaram a
linguagem dos Direitos Humanos e manifestavam compromisso com a defesa dos direitos polticos
das vtimas dos regimes autoritrios e dos direitos sociais dos pobres, as de Joo Paulo II vo
enfatizar, sobretudo, as questes morais relativas reproduo humana e famlia. Destacamos,
mais uma vez, um breve trecho do artigo de Andrade (2010,190) , no qual ele cita a encclica
Centisimus Annus, de Joo Paulo II, publicada em 1991. Ao associar a democracia com os Direitos
Humanos, o papa afirma que necessrio que os povos, que esto reformando os seus regimes, deem democracia um autntico e slido fundamento mediante o reconhecimento explcito dos referidos direitos. Entre os principais, recordem-se: o direito vida, do qual parte integrante o direito a crescer sombra do corao da me depois de ser gerado; o direito a viver numa famlia unida e num ambiente moral favorvel ao desenvolvimento da prpria personalidade (Joo Paulo II, 1991).
Estamos, portanto, distantes da perspectiva poltica e social que predominou nos anos de 1970 e
1980 em relao aos Direitos Humanos. O direito vida, definido pelo papa como direito a crescer
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sombra do corao da me depois de ser gerado, desloca os Direitos Humanos para o campo
discursivo da moral sexual, no qual a Igreja Catlica se considera autorizada a legislar enquanto
intrprete legtima da lei natural. Dessa forma, a Igreja Catlica coloca-se acima das disputas que
acontecem no campo da poltica, ao mesmo tempo em que procura demarcar um espao reservado
de direitos sobre o qual reivindica exclusividade. como se a mesma Igreja Catlica que foi a voz
dos que no tinham voz, porque silenciados pela represso dos governos autoritrios, emprestasse,
agora, a sua voz para aqueles que no podem falar por se encontrarem sombra do corao das
mes, no silncio dos seus teros, pelo fato de ainda no terem nascido. O sujeito dos Direitos
Humanos j no se define pelas suas experincias sociais e culturais concretas, vivenciadas como
contingentes, mas por uma moral que atribui ao embrio humano no tero materno a condio plena
de pessoa, antes mesmo de adentrar no mundo social.
Essa posio da Igreja Catlica, embora seja definida doutrinariamente como parte de sua
ortodoxia, encontra algumas poucas vozes dissonantes no interior do catolicismo brasileiro. Uma
dessas vozes adquiriu expresso pblica por meio da ONG Catlicas pelo Direito de Decidir.
Constituda por um grupo militante de mulheres que, sem negar sua identidade catlica, esta ONG
vem assumindo uma posio contrria condenao moral do aborto pela instituio, fora de
qualquer processo poltico e pessoal de autonomia das mulheres de decidirem sobre esta questo.
No mbito dos movimentos gays, a presena catlica apresenta-se ainda mais invisibilizada. As
iniciativas dos catlicos de alinhamento com os movimentos gays e em propor uma pastoral
inclusiva tendem a ser rechaadas com base numa moral natural. Assim, se a Igreja Catlica pode
lidar no perodo militar com o dissenso poltico, incluindo em seu rebanho torturados e torturadores,
parece no conseguir hoje lidar com o dissenso moral, excluindo da comunidade catlica tanto os
defensores da descriminalizao do aborto quanto os gays.
A Igreja nas Conferncias Nacionais de Direitos Humanos A retirada da Igreja Catlica da liderana do MNDH abriu um espao institucional no
campo dos Direitos Humanos que foi ocupado pelos organismos governamentais que se
institucionalizaram na estrutura do Estado. Essa institucionalizao, como veremos em seguida, se
imps num movimento de fora para dentro do governo, impulsionado tanto pelas conferncias
multilaterais, promovidas pela ONU, das quais o Estado brasileiro foi signatrio, quanto pelas
organizaes da sociedade civil que, no final dos anos de 1990, passam a atuar em parceira com o
Estado na formulao e promoo dos Direitos Humanos. Observa-se, assim, um processo que, ao
mesmo tempo em que incorpora demandas relativas aos Direitos Humanos nos programas dos
governos democrticos, tambm traz para o mbito do Estado lideranas forjadas nos movimentos
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sociais que terminam ocupando funes burocrticas e gestoras nas estruturas governamentais.
A incluso e institucionalizao dos Direitos Humanos no aparato do Estado tem uma longa
trajetria no Brasil. O primeiro organismo estatal foi criado no mbito do Ministrio da Justia, em
1977, ainda no perodo do regime militar, e funcionou como um instrumento de controle social e
ideolgico, articulado com o sistema repressivo do regime. Com a democratizao, a partir de 1988,
a questo dos Direitos Humanos no mbito governamental incorporou a linguagem e as demandas
apresentadas pelos movimentos sociais e pelas conferncias multilaterais internacionais. A primeira
Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (SNDH) foi criada somente em 1997, ainda como parte
da estrutura do Ministrio da Justia. Em 1999, foi transformada em Secretaria de Estado dos
Direitos Humanos (SEDH), com assento nas reunies ministeriais do governo. Em 2003, a SEDH
foi transformada num rgo da Presidncia da Repblica e passou a se chamar de Secretaria
Especial dos Direitos Humanos. Em 2010, passou a ser denominada de Secretaria de Direitos
Humanos da Presidncia da Repblica, com status de ministrio.
As principais atribuies elencadas como misso dessas secretarias so:
Propor polticas e diretrizes que orientem a promoo dos Direitos Humanos, criando ou apoiando projetos, programas e aes com tal finalidade;
Articular parcerias com os poderes Legislativo e Judicirio, com os estados e municpios, com a sociedade civil e com organizaes internacionais para trabalho de promoo e defesa dos Direitos Humanos;
Coordenar a Poltica Nacional de Direitos Humanos segundo as diretrizes do Programa Nacional de Direitos Humanos;
Receber e encaminhar informaes e denncias de violaes de direitos da criana e do adolescente, da pessoa com deficincia, da populao de Lsbicas, Gays, Bissexuais e Travestis e Transexuais e de todos os grupos sociais vulnerveis;
A SDH/PR atua como Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos
Como se pode perceber, se por um lado no h meno questo da pobreza nessa
apresentao da misso da Secretaria central para o discurso catlico, no contexto dos Encontros
Nacionais por outro, so mencionados os direitos dos grupos vulnerveis da sociedade, no qual
so includos aqueles que so vtimas de descriminao sexual. Cabe secretaria o papel de
coordenao das polticas de Direitos Humanos no pas e de articulao dos rgos de Estado,
agentes governamentais e da sociedade civil. O seu objetivo imediato o de estabelecer diretrizes
para a poltica do governo e elaborar um programa nacional de Direitos Humanos. O caminho para
cumprir sua misso, a convocao e organizao de conferncias nacionais que congreguem os
rgos governamentais e as organizaes da sociedade civil, representativas da luta pelos Direitos
Humanos no pas, para recolher e sistematizar as suas demandas num documento de abrangncia
nacional que dever pautar a ao do Estado. na esteira deste processo poltico que acontece, em
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1996, a Primeira Conferncia Nacional de Direitos Humanos que, embora tenha sido oficialmente
convocada pelo MNDH, foi o governo que forneceu os recursos e a chancela institucional para que
o evento pudesse se realizar, exercendo, em certa medida, o papel que a Igreja Catlica
desempenhou no perodo anterior por meio dos encontros nacionais de Direitos Humanos.
Sintomtico de uma continuidade, mas, ao mesmo tempo, demarcador de uma ruptura na
trajetria da poltica dos Direitos Humanos no Brasil, o fato que, em 1996, ocorreu tanto o ltimo
Encontro Nacional de Direitos Humanos, ainda sob a chancela da Igreja Catlica e o predomnio
dos movimentos sociais, quanto a primeira Conferncia Nacional de Direitos Humanos, que reuniu
diferentes representantes da sociedade civil e de organismo governamentais. Entre estes, se fizeram
presentes representantes da Comisso de Direitos Humanos da Cmara dos Deputados e do Frum
das Comisses Legislativas de Direitos Humanos. Das entidades da sociedade civil, que se
destacaram pela defesa dos Direitos Humanos no regime militar, participaram representantes da
Comisso de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, da CNBB, do Movimento
Nacional de Direitos Humanos e da Federao Nacional de Jornalistas - FENAJ. As ONGs
convocadas para a Conferncia e que aparecem no elenco das representaes so: Instituto de
Estudos Socioeconmicos - INESC, Servio de Paz e Justia - SERPAJ e CIMI.
Ao serem incorporados como poltica de Estado, os Direitos Humanos deslocam-se da tutela
da Igreja Catlica para a do governo. Nesse deslocamento, a Igreja Catlica passa a ocupar um
lugar ao lado das demais entidades, fazendo-se representar por meio da CNBB. Impe-se, assim,
uma relao mais simtrica entre os agentes governamentais, no governamentais e eclesiais dentro
de um campo discursivo de disputa pelos significados e pelas concepes que os Direitos Humanos
iro incorporar no contexto democrtico. Ao mesmo tempo, produz-se uma clivagem entre as
posies da CNBB e das demais entidades envolvidas no jogo poltico e na disputa semntica sobre
os Direitos Humanos. J na I Conferncia Nacional observa-se a defesa ferrenha da CNBB pela
incluso no relatrio final do direito vida como destaque entre os Direitos Humanos (Brasil, 1996).
Essa proposio contrapunha-se demanda pela descriminalizao do aborto, proposta pelos
representantes governamentais e das organizaes civis, que tambm foi incorporada ao relatrio
como reconhecimento dos direitos reprodutivos enquanto Direitos Humanos e a implementao
efetiva do Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher (PAISM) e do atendimento do
aborto legal no Servio nico de Sade (SUS) (Brasil, 1996). Ainda, na esteira dessa disputa, o
MNDH identificou como uma importante vitria a incluso, no mesmo relatrio, dos direitos de
segmentos vulnerveis da sociedade, tais como: mulheres, negros, homossexuais, indgenas e
migrantes (Brasil, 1996). Como resultado final, temos um relatrio compsito que procura
conciliar discursos e posies contraditrias que estavam presentes na conjuntura poltica, social e
cultural da sociedade brasileira naquele momento.
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Convocadas com a finalidade precpua de recolher e sistematizar as propostas e demandas
da sociedade civil para a elaborao dos programas nacional de Direitos Humanos em suas trs
verses: PNDH-1, PNDH-2 e PNDH-3, as conferncias se constituram, em suas 11 edies, at
2008, o principal instrumento de dilogo do governo com a sociedade civil sobre os Direitos
Humanos no Brasil. Nesta trajetria, vamos observar a diversificao das parcerias que a SEDH,
enquanto entidade promotora, estabelece com os demais atores do prprio estado e da sociedade
civil. O ltimo evento, por exemplo, foi organizado de forma tripartite pela Secretaria Especial de
Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, pela Comisso de Direitos Humanos e Minorias da
Cmara dos Deputados e pelo Frum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos, manifestando
um enquadramento dos Direitos Humanos numa viso que se organiza sobre trs pilares: governo,
congresso nacional e sociedade civil.
Diversificam-se tambm as entidades convocadas para as conferncias, apontando para uma
presena cada vez mais intensa das ONGs, ao mesmo tempo em que a representao dos
movimentos sociais se faz por meio de fruns que congregam conjuntos de organizaes,
articuladas em torno de subtemas dos Direitos Humanos. As conferncias se tornam, assim, o canal
privilegiado pelo o qual as demandas das crianas e adolescentes, das mulheres, dos homossexuais,
dos ndios e afro-descentes e do prprio planeta, por meio das entidades ambientalistas, cheguem ao
Estado e possam ser incorporadas como polticas pblicas. Esses subtemas, como mostra a anlise
dos relatrios das conferncias so agregados aos primeiros, relacionados com questes sociais e
poltico-ideolgicas, alargando cada vez mais o campo semntico dos Direitos Humanos. E, esta
diversidade crescente de demandas, temas, questes e propostas que integra o contedo dos
programas nacionais de Direitos Humanos. Esses, por sua vez, tornam-se um instrumento de
legitimao para o governo democrtico, de indexao de valor s demandas que se expressam no
seu texto e de reconhecimento para os rgos do Estado e as organizaes da sociedade civil que
participam das conferncias.
Para os governos democrticos, que se elegeram a partir da Constituio de 1988, a
ampliao dos sentidos, dos temas e dos sujeitos dos Direitos Humanos num programa nacional,
tornou-se um importante instrumento de legitimao e alargamento de suas bases de apoio na
sociedade civil. Para operacionalizar esse processo e manter o seu controle, a estratgia priorizada
pelo governo, num primeiro momento, foi a criao e o fortalecimento institucional de uma
secretaria de Estado diretamente ligada presidncia da repblica. Num segundo momento, as
aes da Secretaria se voltaram mais para a expanso e replicao de estruturas governamentais de
Direitos Humanos nos demais poderes e nveis de governo. A Secretaria Presidencial, por sua vez,
chama para sua responsabilidade a integrao das aes voltadas para a defesa dos Direitos
Humanos realizadas no congresso nacional, nos estados e nos municpios e a articulao dessas
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aes com as entidades da sociedade civil. Nesse sentido, a proposta discutida e encaminhada nas
ltimas conferncias apontou para a criao de um sistema nacional de Direitos Humanos. Esse
processo de estruturao dos Direitos Humanos no aparato do Estado se reflete nas trs verses do
programa de Direitos Humanos no sentido de uma diversificao cada vez maior das demandas
especficas e locais que foram includas no seu texto.
Ao lado desse esforo de fortalecimento da SEDH e articulao no mbito nacional,
observa-se, ainda, um movimento que vai em direo ao compromisso dos governos democrticos
brasileiros com a implementao e o cumprimento dos acordos internacionais definidos nos fruns
internacionais dos quais o Brasil signatrio. Promovidas pela ONU, podemos lembrar aqui uma
sequncia de conferncias mundiais que produziram uma agenda global de defesa dos Direitos
Humanos. Em 1993 a Conferncia de Viena sobre Direitos Humanos; em 1994 a do Cairo sobre
populao; em 1995 a de Pequim sobre as mulheres e em favor da igualdade; em 2001 a de Durban
contra o racismo, a xenofobia e a intolerncia. Essas temticas, ainda que possam ser identificadas
como demandas formuladas internamente por movimentos presentes na sociedade brasileira, sua
urgncia e gravidade reforada na medida em que passam a contar com mecanismos
internacionais de proteo dos Direitos Humanos.
Como vimos apresentando neste texto, a produo desse novo contexto discursivo no qual
os Direitos Humanos passaram a operar, especialmente, a partir da dcada de 1990, produziu outra
correlao de foras entre os grupos atuantes em sua defesa. Nesse sentido, as controvrsias e
polmicas envolvendo o PNDH-3 esto relacionadas com uma disputa pelas categorias semnticas
legtimas na definio do que seja Direitos Humanos no Brasil. A incorporao, nas ltimas duas
dcadas, de demandas relativas aos direitos sexuais e reprodutivos deslocou o protagonismo na
defesa desses direitos da Igreja Catlica para as ONGs e para o prprio Estado. Todavia, o referido
deslocamento no significou que as discusses acerca dos Direitos Humanos no Brasil tenham se
laicizado, mas, antes disso, que a Igreja Catlica passou a ocupar outra posio na disputa pelos
sentidos dos Direitos Humanos sem que isso tenha implicado a perda de sua capacidade em pautar
debates pblicos sobre o tema.
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