os mitos do ecomuseu entre a representac

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  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

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    ANOV

    II

    2014

    NMERO6

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

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    Nmero6 2014

    Instituto Brasileiro de Museus

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    4Revista MUSAS 2014 N6

    Presidenta da RepblicaDilma Rousse

    Ministra da CulturaMarta Suplicy

    Presidente do Instituto Brasileiro de MuseusAngelo Oswaldo de Araujo Santos

    Diretor do Departamento de Processos MuseaisJoo Luiz Domingues Barbosa

    Diretora do Departamento de Difuso, Fomento e Economiade MuseusEneida Braga Rocha de Lemos

    Diretor Interino do Departamento de Planejamento e GestoInternaMarcelo Helder Maciel Ferreira

    Coordenadora Geral de Sistemas de Informao MusealRose Moreira de Miranda

    Procuradora-chefeEliana Alves de Almeida Sartori

    Coordenador Subsitituto de Pesquisa e Inovao MusealSandro dos Santos Gomes

    Conselho EditorialAngelo Oswaldo de Araujo Santos (presidente), Mrio Chagas,Hugues de Varine, Maria Clia Teixeira Moura Santos, MrioMoutinho, Myriam Seplveda dos Santos, Ulpiano Bezerra deMenezes

    Conselho ConsultivoCristina Bruno, Denise Studart, Francisco Rgis Lopes Ramos,Jos Reginaldo Santos Gonalves, Jos Rui Guimares Mouro,Lucia Hussak van Velthem, Luciana Seplveda Kptcke, MagalyCabral, Marcio Ferreira Rangel, Marcus Granato, Maria ReginaBatista e Silva, Marlia Xavier Cury, Regina Abreu, Rosana Andra-

    de Dias do Nascimento, Telma Lasmar Gonalves, Teresa CristinaScheiner, Thais Velloso Cougo Pimentel, Zita Possamai

    Instituto Brasileiro de Museus - Ibram

    Endereo:Instituto Brasileiro de MuseusSBN, Quadra 2, lote 8, bloco N, Edifcio CNC IIIBraslia/DFCEP: 70040-020

    E-mail:[email protected]

    Pgina da Internet:www.ibram.gov.br

    Os direitos autorais das fotos esto reservados. Todos os esforosforam realizados a m de encontrar seus autores.

    Copyright 2014 Instituto Brasileiro de Museus

    EXPEDIENTE

    Projeto EditorialMario Chagas e Claudia Storino

    Coordenao Editoriallvaro Marins e Sandro dos Santos Gomes

    Assistncia Editorial, Redao e Pesquisa IconogrfcaAndr Amud Botelho, Adriene do Socorro Chagas,Eneida Quadros Queiroz, Ramiro Queiroz Silveira,Vitor Rogerio Oliveira Rocha, Marijara Souza Quei-roz

    RevisoMrcia Regina Lopes e Marielle Costa Gonalves

    Projeto GrfcoMrcia Mattos

    Diagramao e PaginaoIsabela Borsani e Sabrina Castro

    Fotos da Capa e Contra-capa (Museu do Homemdo Nordeste) Andr Amud Botelho

    EstagiriaSabrina Soares Beserra

    MUSAS - Revista Brasileira de Museus e Museologia, n.6, 2014.

    Braslia: Instituto Brasileiro de Museus, 2014

    v. : il.

    Anual.

    ISSN1807-6149

    1. Museologia. 2.Museus. 3.Cultura. 4.Cincias Sociais.

    I. Instituto Brasileiro de Museus.

    CDD-069

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    5Revista MUSAS 2014 N6

    APRESENTAOAngelo Oswaldo de Araujo Santos

    EDITORIAL

    ARTIGOSPor uma experincia da intersubjetividade museal:

    elementos para uma agenda de comunicao e

    museus

    Francisco S Barreto

    Os mitos do ecomuseu: entre a representao e arealidade dos museus comunitrios

    Bruno Brulon

    Liberdade ou Resistncia? As representaes

    institucionais do Memorial da Resistncia de So

    Paulo

    Maria de Ftima Costa de Oliveira e Priscilla Arigoni

    Coelho

    A releitura na arte contempornea

    Fellipe Eloy Teixeira Albuquerque

    Algo familiar: consideraes sobre as doaes emmuseus de arte brasileiros

    Emerson Dionisio Gomes de Oliveira

    Muito alm dos sambaquis: a publicizao da

    Arqueologia na Alameda Brstlein/Joinville SC

    Terezinha Barbosa, Ana Cladia Brhmuller, Priscila

    Gonalves e Flvia C. Antunes de Souza

    Potencialidades de musealizao na Amaznia: stio

    arqueolgico Praa Frei Caetano

    Brando, Belm-PA

    Raiza Gusmo e Fernando Marques

    A perspectiva compartilhada nos desenhos e

    narrativas dos alunos do ensino fundamental de

    Santo Antnio do Salto, Ouro Preto, MG

    Andressa Caires Pinto, Luciane Monteiro Oliveira e

    Ana Paula de Paula Loures de Oliveira

    SUMRIO

    Fios de memria: as primeiras funcionrias do MNBA

    Ana Teles da Silva e Clarice Rodrigues de Carvalho

    A relevncia das prticas avaliativas na rotina do

    museus

    Gabriela Ramos Figurelli

    LITERATURA COISA DE MUSEUMuseus e acervos literrios: a experincia dos papi

    de circunstncia no Museu-Casa de Cora Coralin

    em Gois-GO

    Clovis Carvalho Britto

    ENTREVISTAMeu trabalho um trabalho militante

    Entrevista com Raul Lody

    MUSEU VISITADOMuseu do Homem do Nordeste: olhares mltiplo

    sobre uma regio

    Vitor Rogrio Oliveira Rocha

    Entrevista com Renato Athias e Ciema de Mello

    MUSELNEAOs dilogos entre o Ncleo Educativo do Museu d

    Lngua Portuguesa e os professores

    Rita Braga

    (R)Evoluo no museu

    Simone Flores Monteiro e Lucas Sgorla de Almeida

    RESENHASO Sol do Brasil e os dilemas de um pintor francs no

    trpicos

    Museu e Museologia na perspectiva de Dominiqu

    Poulot

    Museu e Museologia: Dominique Poulot

    6

    5

    182

    164

    146

    8

    210

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    270

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    30Revista MUSAS 2014 N6

    E

    m sua origem, o ecomuseu representou a utopia da

    democratizao da memria, por meio de um mecanismo

    museolgico inclusivo que tinha por objetivo principal o de dar apalavra queles que apenas raramente partilhavam da cena da Histria.

    Esse museu de vanguarda, nas dcadas de 1970 e 1980, se voltava

    para aquelas que haviam sido consideradas at ento as culturas dos

    outros, culturas silenciadas e deixadas margem de qualquer tipo de

    musealizao. O ecomuseu nasce no momento em que um novo discurso

    sobre a ideia antropolgica de cultura formulado, o momento da

    disseminao de uma contracultura, e da emancipao da cultura popular

    na Europa e no exterior. Em regies do dito terceiro-mundo como a

    Amrica Latina, novas expresses de museus que rompiam com o modelo

    clssico importado pelo sistema colonial comeam a ganhar nfase e a

    interrogar a museologia tradicional1. Esse novo modelo de museu,

    ento, foi fundado nos preceitos de uma nova museologia, cujos pilares

    ideolgicos precisariam ser provados na prtica museal que estava por vir.

    O movimento da nova museologia nasceu na Frana, entre 26 de

    fevereiro de 1982, quando uma assembleia da Associao Geral dos

    Conservadores Franceses provocava uma reao de desconforto nos mais

    progressistas, e consolidou-se no mesmo dia do ms de agosto de 1982,

    quando um grupo de conservadores, apresentou, em Marselha, o estatuto

    de uma nova associao que receberia o nome de Musologie nouvelle

    et exprimentation sociale2(MNES). Esta, por sua vez, pouco lembrada

    OS MITOS DO ECOMUSEU:

    entre a representao e a realidade dosmuseus comunitrios

    BRUNO BRULON

    1. o caso, por exemplo, ainda no incio dos

    anos 1960, da iniciativa do Museu Nacional

    de Antropologia do Mxico, aclamado como

    uma das mais consideradas instituies de

    seu tempo, que adotou a lgica da aber-

    tura do museu em direo s escolas. Suavasta construo, de arquitetura suntuosa,

    inspirada nas tradies do Mxico antigo,

    foi inteiramente consagrada difuso da

    cultura meso-americana. Uma outra inicia-

    tiva mexicana que ganharia o nome de Casa

    del Museo teve seu projeto experimental

    lanado na mesma dcada, focando-se em

    reas populares de forma descentralizada,

    e mobilizando diferentes pblicos a se con-

    frontarem com os costumes dos habitantes

    da poca pr-hispnica. MAIRESSE, Franois.

    Le muse temple spetaculaire. Paris: Presses

    Universitaires de Lyon, 2002. p.105.

    2. Museologia nova e experimentao so-

    cial. A MNES seria a verdadeira antecedente

    do Movimento Internacional por uma Nova

    Museolgia (MINOM), movimento que seria

    ocializado em 1985, no II Atelier da Nova

    Museologia, em Lisboa.

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    31Revista MUSAS 2014 N6

    na historiograa do movimento, se baseava em ideias j disseminadas

    por alguns crticos da museologia francesa na poca, e sobretudo no

    pensamento de Georges Henri Rivire e Hugues de Varine. Estes ltimos

    se voltavam, na dcada de 1980, para o projeto desaador de produzir a

    noo de ecomuseu primeiro na teoria e depois na prtica e para isso

    tinham incontestavelmente um fundamento e objetivos sociais.

    Assim, as novas ideias que sustentavam o modelo do ecomuseu

    provinham, por um lado, da insatisfao de alguns pensadores franceses

    em relao museologia tradicional, que comearam a colocar em prtica

    museus com uma nalidade descentralizadora, e, por outro, da inuncia

    de certas experincias de museus inortodoxos ou de vanguarda nas

    ex-colnias. Em meio a este contexto de rupturas, um dos objetivos do

    projeto ecomuseolgico era o de permitir que a memria recolhida

    pelos etnlogos fosse restituda ao conjunto do grupo atravs de

    diversos instrumentos, sendo a exposio de objetos materiais apenas

    uma das expresses possveis3. Se mantendo como uma escola viva de

    contestao, a nova museologia se tornou, particularmente na Frana,

    como apontou Andr Desvalles, um movimento de resistncia contra

    certos desvios de sentido daquilo que poderia ser a museologia e

    a museograa4. Um dos objetivos daqueles que decidiram organizar

    as novas ideias que se faziam perceber em museus no mundo todo,

    formando uma ideologia prpria, era o de operar uma mudana profundadas mentalidades dos prossionais de museus, o que reetiria na prtica

    museolgica.

    O termo ecomuseu foi cunhado por Hugues de Varine, durante um

    almoo em 1971, na avenue de Sgur, em Paris, onde estavam reunidos

    alm dele, Georges Henri Rivire, como consultor permanente do ICOM,

    e Serge Antoine, conselheiro do ministro do meio ambiente, Robert

    Poujade, para discutirem alguns aspectos da organizao da Conferncia

    do ICOM daquele ano, quando se falaria pela primeira vez no ecomuseu.

    Varine e Rivire desejavam que em uma conferncia internacional de tal

    importncia um homem poltico do primeiro plano ligasse publicamente

    o museu ao meio ambiente5. Sendo assim, aps experimentar diversas

    combinaes silbicas entre as palavras ecologia e museu, Varine

    O ecomuseu

    nasce no mo-

    mento em queum novo discur-

    so sobre a ideia

    antropolgica de

    cultura formu-

    lado, o momento

    da disseminao

    de umacontracultura, e

    da emancipao

    da cultura popu-

    lar na Europa e

    no exterior.

    3. CHAUMIER, Serge. comuses: entreculture populaire et culture savante .POUR. Dossier Mmoires partages, mmoire

    vivante, no181, mar. 2004, p. 66.

    4. DESVALLES, Andr. Prsentation.In : DESVALLES, Andr ; DE B ARRY,

    Marie Odile & WASSERMAN, Franoise

    (coord.). Vagues: une antologie de la Nouvelle

    Musologie(vol. 1). Collection Museologia.

    Savigny-le-Temple : ditions W-M.N.E.S.,

    1992. p.15.

    5. VARINE, Hugues de. Lcomuse(1978). In : DESVALLES, Andr ; DEBARRY, Marie Odile & WASSERMAN,

    Franoise (coord.). Vagues: une antologie de

    la Nouvelle Musologie(vol. 1). Collection

    Museologia. Savigny-le-Temple : ditions

    W-M.N.E.S., 1992, p. 449.

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    pronunciou ecomuseu, dando incio tarefa mais difcil que se seguiria, de

    se denir tal conceito em termos prticos. Com a utilizao do neologismo

    por Poujade, em 1971, e com o nascimento da Maison de lHomme et de

    lIndustrie, no mesmo perodo, no ecomuseu Creusot Montceau-les-Mines

    primeiro ecomuseu a levar esse nome ocialmente esse novo tipo

    impreciso de museu viria a se tornar um prottipo6. Rivire se consagraria

    como o principal pensador do termo nos anos seguintes, tendo como

    base, principalmente, esta experincia.

    A primeira denio do ecomuseu, proposta por Jean Blanc,

    apresentada, em 1972, aos participantes do colquio internacional

    organizado pelo ICOM, intitulado Museu e meio ambiente, que

    aconteceu em Bordeaux, Istres e Lourmarin. Tal proposio denia

    o ecomuseu como um museu especco do meio ambiente, que

    funcionava como um elemento de conhecimento de um conjunto de

    relaes no espao atravs do desenvolvimento histrico dessas relaes7.

    Tendo tomado conhecimento das ideias disseminadas por Jean Blanc

    desde o m da dcada de 1960, Rivire apresentava, at ento, uma viso

    mais clssica, sobretudo porque amplamente baseada no modelo dos

    museus a cu aberto do norte da Europa, perfeitamente claros em seus

    princpios. Pouco tempo depois ele assumiria que o modelo dos museus

    do norte, como os escandinavos que ele conhecia bem, no se aplicaria

    ao contexto francs em razo da diversidade existente nas provnciasfrancesas.

    Em outubro de 1973, Rivire publica a sua primeira verso de sua

    denio evolutiva. Nesta, ele caracteriza o ecomuseu como um

    museu ecolgico, um instrumento de informao e de tomada de

    conscincia, j considerando a sua evoluo permanente da qual a

    populao participa8. Na denio de 3 de junho de 1978, ele considera

    o ecomuseu como uma estrutura nova, experimentada e concretizada,

    inicialmente, nos parques naturais franceses, entre 1968 e 1971, mas

    que j se desenvolvia em outros territrios como um laboratrio de

    campo9, que podia tomar formas diversas. Finalmente, em sua verso

    nal e a mais conhecida, atualmente , apresentada no Creusot, e depois

    em Paris, em 1980, Rivire dene o ecomuseu como laboratrio, como

    Um dos obje-

    tivos daqueles

    que decidiram

    organizar as no-vas ideias que se

    faziam perceber

    em museus no

    mundo todo, for-

    mando uma ide-

    ologia prpria,

    era o de operaruma mudana

    profunda das

    mentalidades

    dos profssionais

    de museus, o

    que reetiria na

    prtica

    museolgica.

    6. DESVALLES, Andr. Op. cit., p. 26.

    7. BLANC, Jean. (1972) In: GERBAUD, Michel.

    Aux origines des comuses : les premiers pasde Marqueze. In: Publics & Muses, nos17-18,2000, p. 177-180.

    8. RIVIRE, Georges Henri. Lcomuse, un

    modle volutif (1971-1980). In : DESVAL-

    LES, Andr ; DE BARRY, Marie Odile &WASSERMAN, Franoise (coord.). Vagues:

    une antologie de la Nouvelle Musologie

    (vol. 1). Collection Museologia. Savigny-le-

    Temple : ditions W-M.N.E.S., 1992. p.440..

    9. RIVIRE, Georges Henri. Op. cit., p. 442.

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    33Revista MUSAS 2014 N6

    conservatrioe como escola, e coloca em primeiro plano a diversidadedas

    populaes que fazem dele o seu espelho:

    Ce laboratoire, ce conservatoire, cette cole sinspirent de principes communs.

    La culture dont ils se rclament est entendre en son sens le plus large, et ils

    sattachent en faire connatre la dignit et lexpression artistique, de quelquecouche de la population quen manent les manifestations. La diversit en est sans

    limite, tant les donnes dirent dun chantillon lautre. Ils ne senferment pas

    en eux-mmes, ils reoivent et donnent10.

    A diversidade cultural aqui vista como produto das interaes

    das pessoas entre elas mesmas e com o meio ao qual se ligam por uma

    memria, uma histria e um patrimnio. Como um novo conceito de

    museu, malevel, evolutivo por denio, e baseado em um modo de

    organizao original no qual os poderes locais e os organismos de Estado

    so associados, o ecomuseu previsto como um meio pelo qual as

    populaes podem se tornar, elas mesmas, objetos de sua investigao

    ele , portanto, um instrumento de autoconhecimento, no qual uma

    performance11do grupo produz conhecimento sobre o prprio grupo.

    O objetivo deste artigo o de identicar, na origem dos ecomuseus

    na Frana, alguns dos mitos fundadores dessas instituies, que se

    mantm, atualmente, na base da ideia de museu comunitrio que se

    espalhou pelo mundo, e questionar a sustentao desses mitos pelos

    ecomuseus atuais. Para isso, a partir da investigao de alguns casos de

    ecomuseus conhecidos atualmente na Frana, tais como o ecomuseu

    do Creusot, fundando em 1972 a partir das aes de Marcel vrard na

    comunidade urbana atravs do patrimnio local, e outros que receberam

    tal nomenclatura mais recentemente12, nos voltaremos para a histria

    desses museus, e para a sua realidade atual, considerando como eles

    so percebidos pelo pblico e a partir de que projetos museolgicos eles

    so criados. Logo, podemos apontar cinco mitos centrais, denidores da

    existncia dos ecomuseus no presente, e passveis de serem relativizadose discutidos de maneira crtica se nos debruamos sobre a sua histria.

    10. Esse laboratrio, esse conservatrio,

    essa escola se inspiram em princpios co-

    muns. A cultura da qual eles partem apre-

    endida em seu sentido mais amplo, e eles se

    enfocam em tornar conhecidas a dignidade e

    a expresso artstica, de qualquer camada da

    populao de que emanem tais manifesta-

    es. A diversidade existe sem limite, tanto

    que os dados diferem de uma amostra ou-

    tra. Eles no se fecham em si mesmos, eles

    recebem e do. (traduo nossa). Id. D-

    nition volutive de lcomuse. Museum, vo

    XXXVII, no.4, 1985 (1980), p.183.

    11. Aperformance, na teoria antropolgica,

    vista como um dos principais mediadores

    dos dilogos que estabelecemos socialment

    (ver Turner, 1988 e Goman, 2009). Ela pode

    ser aplicada aos museus na medida em que

    identicamos a musealizao como um ato

    performativo, o que ca particularmente

    evidente no caso dos ecomuseus.

    12. A pesquisa para o presente artigo contou

    com o trabalho de campo no ecomuseu do

    Creusot-Montceau, entre os anos de 2011 e

    2012, e com a pesquisa histrica nos arquivo

    do Ecomuseu, alm da visita e investigao

    de outros museus sociais e ecomuseus

    na Frana. Este artigo resultado de uma

    pesquisa de doutorado realizada graas

    ao Programa de Doutorado Sanduiche no

    Exterior (PDSE), da Capes, sendo parte da

    tese Mscaras guardadas: musealizao e

    descolonizao, desenvolvida na Universida-

    de Federal Fluminense (UFF) e na cole des

    Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS)

    (...) o ecomuseu

    previsto como

    um meio pelo

    qual as popula-es podem se

    tornar, elas

    mesmas, objetos

    de sua investiga-

    o (...).

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

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    34Revista MUSAS 2014 N6

    1. O mito da institucionalizao

    A metfora do espelho, proposta inicialmente por Rivire, e depois

    apropriada por outros autores, disseminou a noo segundo a qual os

    ecomuseus soa realidade e no uma representao institucionalizada do

    real. H uma diferena ontolgica entre a realidade e aquilo que os museus

    re-apresentam. Ainda que constituda a partir do real, a performance

    musealse diferencia da realidade. Os museus oferecem algo a mais para

    os seus pblicos, algo que est alm do mundo das coisas comuns que

    existem fora da cadeia museolgica. Em outras palavras, h algo mais

    na performance museal que no h na vida banal. Sendo assim, a ideia

    de que o ecomuseu apresenta o cotidiano prpria comunidade que o

    vivencia um dos mitos primeiros que foram instaurados pelos tericos

    da ecomuseologia.

    Todo museu, no encontro entre objetos e espectadores, transporta-

    os os primeiros tanto quanto os ltimos a um meio que no o da vida

    real, mas que , ainda assim, real. Pode-se dizer que depois que um objeto

    removido de um contexto anterior e ele adentra o cenrio do museu,

    uma grande parte do seu passado deixada para a imaginao. No caso

    dos ecomuseus, em que os objetos so musealizados in situ, algo precisa

    acontecer para que se instaure a performance de todo o grupo. Com

    este m, objetos so transportados de um lugar para outro, mquinas setornam monumento, residncias viram palco, e a comunidade comea

    a criar um discurso sobre si mesma. Para que a experincia museal

    tenha incio com a performance do grupo, preciso haver algum tipo de

    institucionalizao, isto , um acordo social entre os agentes envolvidos.

    A ideia de institucionalizao, geralmente, no associada aos

    ecomuseus, e nos esquecemos de que a maior parte da histria de

    alguns deles, como foi o caso do ecomuseu do Creusot, se deniu pela

    luta para que se institucionalizassem e fossem reconhecidos entre os

    museus pblicos franceses. O processo de legitimao e normalizao do

    ecomuseu do Creusot, em um primeiro momento de sua existncia, seria

    dicultado pela falta de elementos que o permitiriam ser reconhecido

    como museu pelo Estado francs. Por muito tempo, a luta de seus

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

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    35Revista MUSAS 2014 N6

    idealizadores pela institucionalizao do ecomuseu seria uma de suas

    principais frentes mobilizadoras. Considerando que a Direo dos Museus

    da Frana se recusava a reconhecer um museu que, em seus primeiros

    anos de existncia, no apresentava colees permanentes, o ecomuseu

    teve que recorrer a outros ministrios e buscar outras associaes

    fugindo ainda mais do modelo traado pelos museus tradicionais, e se

    diferenciando mesmo de outros tipos de museus de territrio. , ento,

    se voltando para a noo de ecomuseu como a havia evocado Robert

    Poujade, em Dijon, associando ecomuseu, meio ambiente e ecologia, que

    este se ligaria, ainda na dcada de 1970, ao recm-criado ministrio do

    Meio ambiente13. Utilizado como laboratrio para a nova museologia que

    surgia, o Creusot foi tambm um observatrio social para aqueles que ali

    se dedicavam a compreender a comunidade local e seus problemas e,N M H I,

    um museu tradicional, funciona

    o centro das aes museais doEcomuseu do Creusot.

    13. Em 1976, uma reunio para denir a

    tutela ministerial do ecomuseu envolveria

    inicialmente, os representantes do Ministrio

    da Educao, da Secretaria do Estado dedi-

    cada Cultura, do Ministrio da Qualidade

    de Vida, do Ministrio da Indstria e do

    Ministrio da Agricultura. VRARD, Marcel.

    Lcomuse de la communaut urbaine

    le Creusot-Montceau les Mines. Cracap /

    Informations, no2-3, 1976, p.12.

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

    12/23

    36Revista MUSAS 2014 N6

    P ,

    os colombianos tm encontrado nos

    processos museolgicos da atualidade

    instrumentos de armao de sua

    diversidade. No litoral, rene-se grande parte

    da populao colombiana

    de origens africanas.

    neste sentido, ele era uma instituio.

    Na tentativa de afastar os ecomuseus dos modelos de museus

    precedentes, ditos tradicionais, alguns tericos passaram a opor o

    modelo tradicional do museu-instituio ao novo museu. Tal oposio

    representa a iluso de que o ecomuseu no apresentaria algumas

    das funes tradicionais dos outros museus. Segundo Varine, um dos

    primeiros a desenvolver um pensamento nesse sentido, o estatuto do

    novo museu se distinguia daquele dos museus comuns, pois, entre outras

    coisas, no ecomuseu a noo de coleo permanente desapareceria em

    detrimento da ideia de um patrimnio comunitrio e coletivo, de modo

    que o museu deixa de ter como a sua misso primeira a da aquisio14.

    Aqui vale lembrar que, ainda que o ecomuseu do Creusot no apresentasse

    uma coleo de objetos materiais nos primeiros anos de sua existncia,

    este passaria a adquirir objetos diversos a partir do momento em que se

    institusse. Com o passar do tempo, o ecomuseu abrigaria em seu seio

    Foto:Bruno

    Brulon/ac

    ervo

    pessoal

    U o prdio da

    Comunidade urbana no Creusot.

    14. VARINE, Hugues de. Op. cit., p.451.

    15. Museu do Homem e da Indstria.

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

    13/23

    37Revista MUSAS 2014 N6

    um museu de tipo tradicional, conhecido como Muse de lHomme et

    de lIndustrie15. Este abrigaria as principais exposies do ecomuseu e

    funcionaria como um centro para todas as suas atividades.

    Os ecomuseus, em geral, conjugam, na sua prtica museolgica,

    um conjunto de funes que podem ou no ser anlogas quelas que

    so exercidas pelos museus em seus formatos tradicionais. O que difere

    o ecomuseu dos modelos que o antecederam a preocupao com a

    incluso e a participao do grupo local nessas funes e nas aes do

    museu como um todo participao esta que no pode ser pensada

    sem uma problematizao do seu signicado nas prticas analisadas.

    2. O mito da comunidade

    O segundo ponto fundamental apontado por Varine para distinguir

    o ecomuseu previa que o instrumento essencial de concepo, de

    programao, de controle, de animao e de avaliao do museu seria

    um conselho de associaes composto de representantes que seriam, em

    sua maioria, habitantes da comunidade urbana 16. A especicidade do

    ecomuseu passa, sobretudo, pela denio daquilo que est no corao

    da sua ao e organizao: a comunidade. Para Varine, o ecomuseu ,

    antes de qualquer coisa, uma comunidade e um objetivo 17, e em vez

    de partir de uma coleo pr-concebida de objetos materiais, ele parteda coletividade para estabelecer a sua linha de ao. Mas quem essa

    coletividade? Quem se faz representar nela e para quem o ecomuseu

    feito? Essas foram questes fundamentais colocadas para os pensadores

    do ecomuseu em suas primeiras tentativas de coloc-lo em prtica.

    Segundo Marc Aug, apesar da crena de alguns nos lugares de

    memria como monumentos aos mortos, uma semiologia na

    destes monumentos, elevados pela ao das municipalidades e das

    mltiplas associaes, permite colocar em evidncia que estes tm

    sido essencialmente lugares de culto18 apropriados pelos vivos. Nesta

    perspectiva, os monumentos so, precisamente, os lugares onde

    se encontram os diferentes itinerrios individuais e onde a histria

    singular adquire a conscincia de ir de encontro histria coletiva. A

    16. VARINE, Hugues de. Op. cit., p. 451.

    17. Idem, p. 456.

    18. AUG, Marc. Les lieux de mmoire dupoint de vue de lethnologue.Gradhiva, no6, 1989, p. 11.

    A especifcida-

    de do ecomuseu

    passa, sobretu-

    do, pela defni-

    o daquilo que

    est no corao

    da sua ao e

    organizao: a

    comunidade.

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

    14/23

    38Revista MUSAS 2014 N6

    partir do momento em que se celebra coletivamente a prpria ideia

    de comunidade, a suposta unidade do grupo, como ideia abstrata

    e imaterial, se torna ela mesma monumento e objeto do culto laico

    disseminado pelos ecomuseus. Ao contrrio dos monumentos em praa

    pblica, em que o sentido dos smbolos, como todos os sentidos, nasce

    de uma relao ou de vrias entrecruzadas, a comunidade, por sua vez,

    representa o culto s prprias relaes que mantm o grupo e a unidade

    do grupo enquanto entidade ilusoriamente estvel. Enfatizando a busca

    pela paz e o consenso, rgos de cooperao como a UNESCO19, e mesmo

    o ICOM20, tentam disseminar uma ideia harmnica de comunidade,

    segundo a qual a dissonncia silenciada pelo compartilhamento das

    diferenas.

    Com efeito, o mito da comunidade no deixou de fazer parte do

    acervo de iluses que vem sustentando a ideia do ecomuseu nas

    ltimas dcadas. Ainda que seja impossvel denir comunidade sem

    que este conceito esteja ligado a realidades sociais especcas e a casos

    determinados, a partir do estudo dos ecomuseus somos frequentemente

    confrontados com a necessidade desse culto a um tipo de socialidade

    capaz de manter a coeso no grupo. No caso do ecomuseu do Creusot, o

    que se v, ao longo de sua histria, a construo do culto comunidade

    urbana, inventada como instrumento de referncia coletividade local

    antes mesmo da criao de um museu.A evoluo desse modelo de museu, que transcende as referncias

    materiais para colocar as prprias relaes sociais no centro da instituio,

    teve como consequncia, nos diversos pases em que o ecomuseu foi

    adotado, diversas interpretaes anlogas do sentido da comunidade

    musealizada. Ainda que fossem nomeados de museu social, museu

    local, ecomuseu, alm de outras variaes conhecidas, os museus

    chamados pelos especialistas e, por vezes, tambm pelos prprios

    grupos de comunitrios sempre existiram a partir de um grupo social

    mais ou menos bem delimitado.

    Antes de realizar a musealizao de pessoas ou de coisas, museus

    comunitrios musealizam ideias. a prpria noo de comunidade que

    est em disputa ao se criarem museus desse tipo. E o que a comunidade

    19. Organizao das Naes Unidas para a

    Educao, a Cincia e a Cultura.

    20. Conselho Internacional de Museus.

    Antes de

    realizar a

    musealizao de

    pessoas ou de

    coisas, museus

    comunitrios

    musealizam

    ideias.

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

    15/23

    39Revista MUSAS 2014 N6

    para os idealizadores desses museus, em geral difere de um contexto a

    outro. Um dado relevante para se pensar hoje os museus comunitrios

    que tanto na Paris contempornea quanto no Rio de Janeiro, os museus

    desse tipo existentes esto localizados na periferia, na margem do

    sistema cultural hegemnico. Com base em uma anlise supercial desses

    dois contextos dos museus sociais nas favelas do Rio de Janeiro e dos

    ecomuseus nos banlieuesde Paris possvel armar que o que distingue

    esses ecomuseus dos museus centrais um conjunto de vontades sociais

    diferenciadas.

    3. O mito do pblico

    Se o ecomuseu a comunidade, a questo do pblico, de incio, seria

    descartada da concepo de Varine. Em outras palavras, diferentemente

    do museu tradicional, o ecomuseu no tinha visitantes, ele deveria ter

    atores21. Ainda que possa parecer ilusria a concepo da automuseologia,

    em que uma coletividade atua como gestora do seu prprio patrimnio e

    , ela mesma, o seu pblico, esta concepo estava no centro da proposta

    do ecomuseu em seus primeiros estgios de existncia.

    A ideia de que ecomuseus no so feitos para visitantes, mas para

    a prpria comunidade, ela mesma musealizada, assombrou na prtica

    as diversas aplicaes deste termo em diferentes contextos. De fato,esta acepo no se v enfatizada na denio de Rivire ainda que

    tenha sido um ponto fundamental da teoria desenvolvida por Varine. Ao

    contrrio do que pensava este ltimo, para Rivire a perspectiva de um

    pblico externo real ou imaginado coletivamente pela comunidade

    sempre esteve presente em sua abordagem dos ecomuseus. Ao

    conceber museogracamente a exposio permanente do Chteau de

    la Verrerie, inaugurada no Creusot em 1974, composta de objetos do

    patrimnio comunitrio datando de diversos perodos da histria local,

    Rivire levado a pensar um circuito de visitao que inclua a granja, a

    escola, os ateliers e as minas, circuito este concebido para receber um

    pblico variado, de dentro e de fora da comunidade. De fato, nos anos

    que se seguiriam criao do ecomuseu, a experincia do Creusot iria

    21. VARINE, Hugues de. Op. cit., p. 459.

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

    16/23

    40Revista MUSAS 2014 N6

    atrair um vasto nmero de visitantes externos, incluindo estrangeiros e

    prossionais de outras instituies, e o museu iria se normalizar por meio

    de diversos colquios internacionais e reunies de especialistas com parte

    dos habitantes locais. Com efeito, o olhar externo foi fundamental na

    denio da identidade de grupo, e nos agenciamentos necessrios para

    fazer do ecomuseu um modelo exportvel.

    Alm disso, vale apontar ainda, que a comunidade um conjunto

    complexo de atores que se inventam como gestores, conservadores

    e, ocasionalmente, como pblico do museu. Neste caso a noo de

    ator merece ser mais atentamente explorada, j que ela guarda uma

    importncia reveladora. No teatro, o trabalho do ator se congura

    como uma ao absolutamente coletiva, pois depende completamente

    da resposta de um espectador no momento em que realizada22. Da

    mesma forma, prprio do ator, ser ao mesmo tempo um e mltiplo,

    em um processo constante de metamorfose de si mesmo. E, no entanto,

    a sua atuao deve parecer coerente e unicada23. Assim, podemos

    entender o ator como aquele que est duplamente inserido nos processos

    socioculturais da vida cotidiana, j que fazem parte, simultaneamente, da

    prpria vida social e da representao cultural da vida social. A existncia

    de um pblico, ento, no ecomuseu um pr-requisito para a re-

    apresentao das coisas cotidianas em um universo musealizado. E, neste

    sentido, a prpria comunidade deve se fazer pblico para passar a olhar ascoisas com outros olhos ou com os olhos de outros.

    4. O mito da participao

    A noo pouco precisa de que o ecomuseu envolve a participao

    da comunidade dene o modelo de uma museologia participativa que

    pouco reete sobre quem so, na prtica, os agentes envolvidos nas

    aes do museu, e que leva crena na possibilidade de uma participao

    da base24e em um modelo democrtico e aberto. Tal crena em um

    modelo participativo de museu isto , que envolve a participao ampla

    e indistinta do grupo local sustentada pelos dois ltimos mitos que

    aqui sero levantados.

    22. ROUBINE, Jean-Jacques.A arte do ator.

    Coleo cultura contempornea.Rio de Janei-ro: Jorge Zahar, 1995, p. 7.

    23. TURNER, Victor. Images and reections:

    ritual, drama, carnival, lm, and spectacle in

    cultural performance. In: The anthropology

    of performance. New York: PAJ Publications,

    1988, p. 11.

    24. SUAUD, Charles. Le mythe de la base.

    In :Actes de la recherche en sciences sociales.

    Vol. 52-53, juin 1984, passim.

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

    17/23

    41Revista MUSAS 2014 N6

    O ecomuseu nasce, ento, de uma anlise precisa da comunidade

    em sua estrutura, em suas relaes, em suas necessidades, anlise

    que, supostamente, deve ser feita pelos prprios membros dessa

    comunidade25. Mas qual essa fora que mobiliza a comunidade? Um

    dos grandes mitos do ecomuseu do Creusot, pode-se dizer, o mito da

    participao. Quando em 1974, Mathilde Bellaigue se encarregou de fazer

    o recenseamento da populao local, trabalho que teve a nalidade de

    estabelecer quem estaria disposto a se engajar no projeto do ecomuseu,

    ela constatou que a participao era um desao a ser suplantado

    cotidianamente pelos prossionais envolvidos na organizao e animao

    do Creusot26. Mobilizar a comunidade, engajar as pessoas na sua prpria

    musealizao a ser inventada, se revelaria o calcanhar de Aquiles da

    museologia participativa.

    Enfrentando todas essas diculdades, e outras, o ecomuseu foi criado

    com a inteno de ser um instrumento privilegiado de desenvolvimento

    comunitrio. Ele no visava o conhecimento e a valorizao de um

    patrimnio, nem era um simples auxiliar de um sistema educativo ou

    informativo, nem um meio de progresso cultural e de democratizao

    das obras humanas27. Politicamente ele tinha como objetivo maior o de

    mudar as formas do jogo de poder estabelecido em uma comunidade,

    tornando a totalidade da populao consciente de sua autonomia e de seu

    prprio desenvolvimento. Mas essa seria uma iniciativa de alguns lderes eespecialistas que se dedicariam ao projeto, buscando a mobilizao mais

    ampla no grupo. Assim como a experincia do Creusot estaria, sobretudo,

    nas mos de Marcel vrard, Michele vrard e Mathilde Bellaigue,

    contando ainda com o aporte terico e prtico de Varine e Rivire,

    outras experincias mais recentes mostrariam a mesma tendncia a uma

    centralizao, por vezes negada por aqueles que esto no centro.

    5. O mito da democratizao

    Este modelo, geralmente centralizado, mesmo que se pense como o

    contrrio, est pautado, ainda, nomito da democratizao, que instaura o

    modelo comunitrio como um modelo essencialmente democrtico, mas

    26. Tal trabalho de recenseamento, segundo

    Bellaigue, partiu das associaes j criadas

    na comunidade do Creusot antes da propost

    do museu. Estas associaes, assim como as

    entrevistas com lideranas locais, serviam decanais para apontar quem seriam os atores

    interessados em participar do projeto de

    museu. Bellaigue arma que, por alguma

    razo, a populao do Creusot j apresentav

    uma organizao bastante minuciosa em di-

    versas associaes (associao dos mineiros

    associao dos agricultores, associaes que

    se ocupavam dos animais, associao para

    os ciclistas, foto-clube, etc.). BELLAIGUE,

    Mathilde. Comunicao pessoal. Paris, 2012.

    27. MAIRESSE, Franois. Le muse temple

    spetaculaire.Paris: Presses Universitaires de

    Lyon, 2002, p. 112.

    25. VARINE, Hugues de. Op. cip., p. 458.

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

    18/23

    42Revista MUSAS 2014 N6

    que deixa de se perguntar quem a comunidade? e em nome de que

    interesses ela atua?.

    Buscando a descentralizao atravs do enfoque no patrimnio local,

    o Creusot, rompeu com o paradigma da monumentalidade da cultura

    erudita para se rearmar como suporte de valores da vida banal. Com o

    objetivo de disseminar este patrimnio no interior do grupo, o ecomuseu

    se constitui como uma rede, funcionando atravs de diversas antenas nas

    diferentes comunas espalhadas pelo territrio do Creusot. A ao cultural

    descentralizada, assim, estabelece para o conjunto da comunidade um

    jogo de espelhos reenviando a cada um a imagem daquilo que ele foi ou

    daquilo que ele vai se tornar28, e logo, por meio da reexo coletiva, a

    comunidade por inteiro se torna um campo de estudos, e cada localidade

    possui em si elementos de anlise e ferramentas de conhecimento sobre

    situaes concretas e sobre a histria de todos.

    Contudo, evidente que no se pode deixar enganar pela ideia

    de uma imagem do coletivo que representa a totalidade dos membros

    daquilo que seria a comunidade urbana e que reete como eles se

    veem. Nesse contexto atravessado por uma estrutura de poder em

    transio, inevitvel que a vontade do grupo seja constantemente

    o resultado de negociaes no grupo e no a vontade da maioria, de

    fato. Como apontou Charles Suaud, a ideia da base em si, ou de uma

    comunidade de base base camponesa, base de trabalhadores, etc. formando um grupo real, reparvel, dotado de necessidades reais e de

    uma capacidade autnoma de se exprimir29, , com efeito, uma iluso

    etnogrca e, no caso dos ecomuseus, uma iluso museal. O autor,

    assim, interroga tal noo para questionar o seu uso a partir da ideia de

    que ela est atrelada a uma concepo de autenticidade fundada em

    oposies mais ou menos diretamente conectadas (como as de alto e

    baixo, elite e massa, representantes e povo, etc.). A base, neste sentido,

    estaria simetricamente na extremidade oposta s instncias de poder

    que mobilizam o grupo. Para ser tratada analiticamente, portanto, seria

    preciso situar claramente cada um dos agentes intermedirios nessa

    relao o que no acontece quando utilizado o termo comunidade

    como um conjunto singular e indiferenciado.

    28. VRARD, Marcel. Lcomuse de la

    communaut urbaine le Creusot-Montceau

    les Mines. In : Cracap / Informations, nos2-3,

    1976, p. 10.

    29. SUAUD, Charles. Op. cit., p. 57.

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

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    43Revista MUSAS 2014 N6

    A ideia da democratizao de saberes, prticas e representaes

    no museu permanece implicada nas aes dos ecomuseus e por

    outros museus inuenciados pela Nova Museologia no presente. Essa

    ideia se aproxima, com frequncia, em algumas prticas museais

    contemporneas, noo de incluso. Uma questo permanente para

    os membros do Movimento Internacional por uma Nova Museologia o

    MINOM, fundado em 1985 j colocada desde o incio do movimento, era

    a da representatividade de grupos ou indivduos provenientes de minorias

    tnicas nos novos espaos museais. A valorizao da participao de

    populaes autctones que fazem os seus prprios museus se colocou,

    e ainda vem se colocando, como questo de base para os idealizadores

    da nova museologia. Mas, como querem a UNESCO e o ICOM, estes

    museus podem se fazer como um instrumento para resolver os problemas

    das populaes do mundo em desenvolvimento e das populaes que

    compartilham memrias subterrneas e culturas subordinadas?

    6. Consideraes

    A inveno do ecomuseu envolveu a criao de certos mitos

    fundadores que foram necessrios para se produzir a crena em uma

    mudana de paradigmas na museologia mundial. Todavia, como

    apontaram os primeiros tericos do novo museu, este nunca deixou deser pensado como um modelo experimental.

    Para Desvalles, a questo principal referente ao ecomuseu a

    da interpretao da doutrina e de sua aplicao. Tendo como centro

    axiolgico as relaes entre o Homem e seu Meio de vida 30, os

    ecomuseus, em grande parte, no foram entendidos como espaos de

    representao. Denido em seus primrdios como museu especco do

    meio ambiente31(natural e social), ao ser colocado em prtica, o ecomuseu

    demonstrou que o que estava em seu centro no eram coisas ou pessoas,

    mas as relaes sociais que envolvem coisas e pessoas em todos os seus

    aspectos. Passando, assim, rapidamente, do meio ambiente natural para

    considerar o meio social como uma ordem mais complexa do real, os

    ecomuseus so levados a enfatizar no patrimnio no apenas os objetos

    30. DESVALLES, Andr. Introduction.

    p. 11-31. In: (dir.). Publics et Muses.

    Lcomuse: rve ou ralit. No17-18. Presses

    Universitaires de Lyon, 2000, p. 12.

    31. Idem, p.12-13.

    A ideia da de-

    mocratizao

    de saberes,

    prticas e repre-

    sentaes no

    museu perma-

    nece implicada

    nas aes dos

    ecomuseus e por

    outros museusinuenciados

    pela Nova Muse-

    ologia (...).

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

    20/23

    44Revista MUSAS 2014 N6

    patrimonializveis, mas os atores da patrimonializao.

    Contudo, pensar os ecomuseus como sendo uma realidade vividae no

    uma representao do real, anloga aos outros museus, signica ignorar

    as performances produzidas por estas instituies e, logo, a naturalizao

    das formas de vida e das identidades que eles exibem. Ao considerar o

    mito da crena nas performancesdo ecomuseu, Desvalles lembra que

    nenhum museu espelho e, por isso, a metfora do espelho no deve ser

    abusada para discuti-los e ilustr-los. No caso do ecomuseu, suas vitrines

    so invisveis, mas nem por isso inexistentes. Se por um lado os ecomuseus

    chamaram a ateno para um processo de descentralizao dos museus

    franceses tornando visvel o patrimnio das provncias que no tinha

    visibilidade na capital, por outro estes no romperam com o paradigma

    das representaes nos museus e, mesmo quando eram fundados e

    mantidos pela ampla participao dos grupos sociais locais, eles, ainda

    assim, se mostravam como representaes eperformancesapresentadas

    a uma plateia fosse ela externa ou interna ao grupo.

    E C V,

    antiga residncia da famlia Schneider

    serve agora de antena do museu.

    Foto:Bruno

    Brulon/acervo

    pessoal

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    45Revista MUSAS 2014 N6

    Com efeito, possvel armar que este mito central o mito do

    espelho tenha dado origem a todos os outros. A ideia de ecomuseus,

    em que os atores sociais vivem as suas vidas para si mesmos sem se

    preocupar com aperformancepara um outro, repercutiu em muitas dessas

    experincias, sobretudo no contexto latino-americano, e particularmente

    no Brasil, tendo este sido adotado como o discurso (contraditrio) de

    algumas dessas instituies. Todavia, como se provou na investigao do

    primeiro ecomuseu, na Frana, o Creusot no foi uma experincia voltada

    exclusivamente para os seus moradores. Segundo arma Mathilde

    Bellaigue,

    Le muse tait conu pour la population et avec la population locale (par vrard,

    Rivire et Varine); mais loriginalit de cette entreprise a attir beaucoup de

    visiteurs (franais et trangers dsirant sen inspirer), certains attirs par la

    notorit des artistes venus y travailler ou exposant en liaison avec le muse et lapopulation locale.32

    32. O museu era concebido para a popu-

    lao e com a populao local (por vrard,

    Rivire e Varine); mas a originalidade desse

    empreendimento atraiu muito a ateno dos

    visitantes (franceses e do exterior, desejosos

    de se inspirar), alguns atrados pela notorie-

    dade dos artistas que vinham trabalhar ou

    expor em relao com o museu e a popula-

    o local. (traduo nossa). BELLAIGUE,

    Mathilde. Comunicao por e-mail. 22 de

    julho de 2012.

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    46Revista MUSAS 2014 N6

    No caso do Creusot, o ecomuseu representou a descentralizao

    do poder local e a arguio das estruturas de poder estabelecidas,

    implicando na criao de novas relaes de poder. A partir da observao

    do contexto atual percebemos que diversas experincias de ecomuseus

    j demonstraram que, em grande parte, essas iniciativas so levadas a

    abandonar o ideal original e se mantm predominantemente nas mos

    dos seus gestores, rompendo, de uma maneira ou de outra, com os atores

    locais. Algumas iniciativas se compartimentam, fazendo um discurso

    destoante da ao o discurso fala de escolhas do grupo, a ao mostra

    claramente que apenas alguns decidem. Outras, se autoconsomem, em

    um movimento que a biologia nomeia de fagocitao esgotando suas

    propostas no incessante uxo de debates, votaes e assembleias, que

    paralisam no todo ou em parte a ao33. Muitos destes museus j se

    voltaram para a lgica turstica, de modo que seus prossionais passam

    a trabalhar mais para o pblico externo (com exceo do pblico escolar)

    do que para a comunidade como co naturalizada. Em quase todos

    os casos, em ltima instncia, o museu sobrevive quando predomina a

    vontade de certos atores sejam eles internos ou externos ao grupo local

    cujo interesse na performance garante a manuteno do teatro das

    identidades.

    Bruno Brulon muselogo e historiador. Mestre em Museologia e Patrimnio pela

    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO/MAST) e doutor em Antropologia

    pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor da dissertao Quando o museu abre

    portas e janelas: o reencontro com o humano no museu contemporneo (2008), da tese

    Mscaras guardadas: musealizao e descolonizao(2012) e de diversos outros trabalhos no

    campo da Museologia e do patrimnio.

    33. BRULON, B. C.; SCHEINER, T. C. A

    ascenso dos museus comunitrios e ospatrimnios comuns: um ensaio sobre

    a casa. In: FREIRE, Gustavo Henrique de

    Arajo (org.) E-book do Encontro Nacional da

    Associao Nacional de Pesquisa em Cincia

    da Informao. A responsabilidade social da

    cincia da Informao. Joo Pessoa: Idia/

    Editora, 2009, p. 2.470.

  • 7/24/2019 Os Mitos Do Ecomuseu Entre a Representac

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