sílvia maria azevedo (org.) - assis.unesp.br · cyro dos anjos & drummond”, wander melo...

122
Sílvia Maria Azevedo (Org.) Assis Unesp Câmpus de Assis 2018

Upload: phamdung

Post on 12-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

Sílvia Maria Azevedo(Org.)

Assis UnespCâmpus de Assis

2018

Page 2: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,
Page 3: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

Sílvia Maria Azevedo (Org.)

Acervos de Intelectuais: desafios e perspectivas

Assis Unesp Câmpus de Assis

2018

Page 4: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,
Page 5: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

Conselho Editorial

Sílvia Maria Azevedo (Presidente)

Karin Adriane H. Pobbe Ramos (Vice-presidente)

Álvaro Santos Simões Junior

André Figueiredo Rodrigues

Carlos Camargo Alberts

Carlos Eduardo Mendes Moraes

Cleide Antonia Rapucci

Danilo Saretta Veríssimo

Gustavo Henrique Dionísio

José Luis Bendicho Beired

Lúcia Helena Oliveira Silva

Márcio Roberto Pereira

Maria Luiza Carpi Semeghini

Matheus Nogueira Schwartzmann

Miriam Mendonça M. Andrade

Paulo César Gonçalves

Ronaldo Cardoso Alves

Vânia Aparecida Marques Favato

Secretário

Paulo César de Moraes

Conselho Consultivo

Adilson Odair Citelli (USP)

Antonio Castelo Filho (USP)

Carlos Alberto Gasparetto (UNICAMP)

Durval Muniz Albuquerque Jr (UFRN)

João Ernesto de Carvalho (UNICAMP)

José Luiz Fiorin (USP)

Luiz Cláudio Di Stasi (IBB – UNESP)

Oswaldo Hajime Yamamoto (UFRN)

Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ)

Sandra Margarida Nitrini (USP)

Temístocles Cézar (UFRGS)

FICHA CATALOGRÁFICA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp

“Acervos de Intelectuais: desafios e perspectivas” / Sílvia Maria

Azevedo, org. Assis, 2018.

121 p.

Vários autores

ISBN: 978-85-66060-21-8

1. Acervos de Intelectuais: desafios e perspectivas, 2. Literatura brasileira. I. Azevedo, Sílvia Maria.

CDD 869.909

Page 6: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,
Page 7: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

SUMÁRIO

Apresentação

Sílvia Maria Azevedo .................................................................................................. 8

As cartas não mentem jamais - Correspondência Cyro & Drummond

Wander Melo Miranda ................................................................................................. 11

Delfos – espaço de documentação e memória cultural da PUCRS: a história de um

projeto

Maria Eunice Moreira .................................................................................................. 18

“A vida são as sobras”: a configuração do arquivo Bernardo Élis

Flávia Carneiro Leão................................................................................................... 28

Astrojildo Pereira: Militância e Literatura

Jacy Machado Barletta ............................................................................................... 37

Arquivos pessoais de intelectuais: configurações e potencialidades

Luciana Heymann ....................................................................................................... 46

O Arquivo Nilo Odália do CEDAP: potencialidades de pesquisa

Karina Anhezini ........................................................................................................... 60

Nem anjos, nem demônios: o trabalho com arquivos pessoais de intelectuais

brasileiros no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP

Elisabete Marin Ribas ................................................................................................. 77

A coleção de Florestan Fernandes na UFSCar

Lívia de Lima Reis ...................................................................................................... 88

A Biblioteca de Oliveira Lima e a memória da Primeira Guerra Mundial

Teresa Malatian..........................................................................................................102

Page 8: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

7

Page 9: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

8

APRESENTAÇÃO

O Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Profª. Drª. Anna Maria

Martinez Corrêa (CEDAP) da UNESP – Câmpus de Assis realizou, entre 26 e 28 de

abril de 2016, o VIII Encontro do CEDAP com o tema “Acervos de Intelectuais:

desafios e perspectivas”, que veio ao encontro do crescente interesse de

pesquisadores e arquivistas acerca de métodos e abordagens relativos aos arquivos

pessoais.

Recentemente, os arquivos de intelectuais passaram a atrair a atenção das

ciências brasileiras, em especial as denominadas humanidades, o que conduziu os

papéis pessoais à efetiva condição de fontes de informação para estudos científicos e

acadêmicos. A crescente sedução de pesquisadores pelo universo dos arquivos

pessoais, assim como a pouca referência técnica arquivística no Brasil são fatores que

compõem o atual contexto destes conjuntos documentais no cenário brasileiro: um

campo fértil e pouco explorado.

Nos últimos 40 anos, diversas instituições, criadas com o propósito específico

de recolha, preservação e disponibilização pública dos documentos de figuras públicas

das artes, das ciências e da política, entre outros, têm reafirmado cotidianamente os

valores e as potencialidades dos arquivos pessoais para estudos neles pautados.

Abordar a intelectualidade brasileira por um ângulo que foge à perspectiva

dos documentos oficiais, firmados pela lógica institucionalista e burocrática, é o

caminho que se abre à exploração dos arquivos de personalidades das áreas das

várias áreas do conhecimento. Converter figuras públicas, alçadas pela história, ao

status de verdadeiras instituições sociais, em pessoas com vidas privadas, vivendo

amores e desafetos, alegrias e tristezas, são informações preciosas guardadas em

pastas e gavetas dos titulares de acervos, e que permitem visualizá-los como múltiplos

personagens em uma única vida.

Do mesmo modo, as origens e bases dos pensamentos que conduziram

intelectuais ao reconhecimento coletivo podem ser identificadas, analisadas,

comparadas, tendo em vista as temporalidades em que estão inseridos. Vidas e

identidades múltiplas dentro de uma mesma pessoa, militância política associada à

produção literária e científica, correspondências que originaram projetos,

concretizados ou abortados, rascunhos, produções e (re)produções, revistos e

modificados, são aspectos que espelham as potencialidades dos arquivos pessoais de

intelectuais, alguns dos quais discutidos nas palestras apresentadas no VIII Encontro

do CEDAP.

Page 10: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

9

Na palestra de abertura, “As cartas não mentem jamais. Correspondência

Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da

carta enquanto exercício no qual o missivista lança, o mesmo tempo, um olhar sobre o

destinatário e sobre si mesmo. Destacou ainda a importância da correspondência de

Carlos Drummond de Andrade e Cyro dos Anjos no oferecimento de elementos

significativos no que se refere à recepção crítica da obra dos dois escritores, assim

também como à atuação de ambos no cenário político e cultural brasileiro, entre os

anos de 1930 a 1986.

A mesa redonda “Acervo de escritores” contou com a participação das

pesquisadoras Maria Eunice Moreira, Flávia Carneiro Leão e Jacy Machado Barletta.

Sob o título “DELFOS – Espaço de documentação e memória cultural da PUC/RS: a

história de um projeto”, a Profa. Maria Eunice Moreira traçou a trajetória do DELFOS,

desde os primeiros tempos de sua instalação, os arquivos que estão sob sua guarda,

voltados prioritariamente aos bens culturais e literários do Rio Grande do Sul, como

também os projetos em desenvolvimento. Na palestra “A vida são as sobras: a

configuração do arquivo Bernardo Élis”, Flávia Carneiro Leão apresentou a

constituição e o percurso dos documentos que compõem o arquivo do escritor goiano,

com destaque para o conjunto de textos publicados em periódicos, composto com

apreciações críticas de sua obra, a evidenciar possível intenção de reconhecimento

futuro e a contradizer a proclamada personalidade tímida que Élis dizia ser a linha

mestra de sua personalidade. Jacy Machado Barletta, em “Astrogildo Pereira:

militância e literatura”, recuperou os percalços enfrentados pelo acervo Astrogildo

Pereira, desde a depredação policial, a viagem marítima durante meses para a Itália, a

insegurança da volta ao Brasil, até sua chegada ao CEDEM (Centro de Documentação

e Memória da UNESP), em São Paulo.

Luciana Heymann e Karina Anhezini compuseram a mesa redonda “Pesquisa

em acervos pessoais”, na qual expuseram, respectivamente, as palestras “Arquivos

pessoais de intelectuais: configurações e potencialidades” e “O arquivo Nilo Odália do

CEDAP: potencialidades de pesquisa”. A Profa. Luciana Heymann expos a

personalidade multifacetada do antropólogo, educador, político e romancista Darcy

Ribeiro em cujo acervo, depositado na Universidade de Brasília, é possível identificar o

retrato que Darcy criou para si ao longo da vida, construção memorial que repercute

nos trabalhos de pesquisadores. Por sua vez, Karina Anhezini investigou a

correspondência trocada entre Nilo Odália e José Roberto do Amaral, tendo em vista

as disputas em torno do conceito de historiografia.

Page 11: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

10

Elisabete Ribas e Lívia de Lima se apresentaram na última mesa redonda

“Acervos de intelectuais”, a primeira proferindo a palestra “Nem anjos, nem demônios:

o trabalho com arquivos pessoais de intelectuais brasileiros no Arquivo do Instituto de

Estudos Brasileiros da USP”, em que discorreu acerca dos desafios enfrentados pelo

corpo técnico de acervos no que se refere às operações e critérios envolvendo

arquivos pessoais; a segunda, em “A coleção de Florestan Fernandes da UFSCar”,

destacando as particularidades da coleção Florestan Fernandes, reconhecida pela

UNESCO, em 2009, como um dos conjuntos documentais mais relevantes para a

humanidade.

Na palestra de encerramento, Teresa Malatian, em “A biblioteca de Oliveira

Lima e a memória da Primeira Guerra Mundial”, abordou a formação da Oliveira Lima

Library em Washington d. C. e sua peculiar característica de lugar de memória do

historiador-diplomata. A professora tratou ainda dos diários de Lima, que trazem

informações relevantes acerca de sua vida intelectual, leituras, anotações para obras

de maior fôlego, como também referências ao autoexílio em Recife, à vista da

acusação de germanofilia em pleno desenrolar da Primeira Guerra.

A partir dessa breve apresentação, fica evidente que o VIII Encontro do

CEDAP configurou-se como proveitoso fórum de discussão e debate no qual

estiveram envolvidos renomados pesquisadores da área de arquivos pessoais.

Organizado em mesas redondas, conferências e comunicações temáticas

direcionadas a um público heterogêneo que congregou pesquisadores das áreas de

História, Letras e Literatura, Sociologia, Antropologia e Ciência da Informação, entre

outras, o VIII Encontro do CEDAP mostrou-se como espaço em que foram revisitados

desafios e estabelecidas novas perspectivas que permeiam e integram o recente, e

muito fértil, campo dos arquivos pessoais de intelectuais.

Sílvia Maria Azevedo

Supervisora do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa –

Profa. Dra. Anna Maria Martinez Corrêa

Page 12: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

11

1

As cartas não mentem jamais

Correspondência Cyro & Drummond

Wander Melo Miranda

Universidade Federal de Minas Gerais

A carta é um espaço textual privilegiado, pois, sendo por definição destinada a

outra pessoa, dá lugar também ao exercício do missivista: pelo gesto mesmo da

escrita, age sobre aquele que a envia, bem como age, pela leitura e releitura, sobre

aquele que a recebe. Escrever é mostrar-se, fazer-se ver e fazer aparecer a própria

face diante do outro. É, ao mesmo tempo, um olhar que se lança ao destinatário e uma

maneira de se dar ao seu olhar — “É que sinto a necessidade absoluta de explicar-me

parente você, o amigo a quem mais me sinto ligado na vida”, diz Cyro dos Anjos a

Drummond, em carta de 12 de julho de 1935. A reciprocidade estabelecida pela

correspondência implica uma “introspecção”, entendida como uma abertura que o

emissor oferece ao outro para que ele o enxergue na intimidade.

Enquanto maneira de o missivista apresentar-se a seu correspondente no

desenrolar da vida cotidiana, a carta atesta não a importância de uma atividade, mas a

qualidade de um modo de ser. Para Sêneca, fazer a revista da sua jornada é fazer um

exame de consciência, realizar um exercício mental ligado à memorização e no qual

quem escreve, ao constituir-se como “inspetor de si mesmo”, torna-se apto a aferir as

faltas comuns e a reativar as regras de comportamento que é preciso sempre ter em

mente. Parece que é na relação epistolar, tal como concebida pelo filósofo, que o

exame de consciência se formula como uma narrativa escrita do eu, intencionada a

fazer coincidir o olhar do outro e o olhar que se lança a si mesmo, no momento em

que as relações cotidianas de amizade são medidas por uma técnica de vida.

A organização, a descrição e o estudo da correspondência de Carlos

Drummond de Andrade (1902-1987) e Cyro dos Anjos (1906-1994) permitem

apreender elementos significativos referentes à gênese e à recepção crítica da obra

dos dois escritores, bem como aqueles relativos à atuação que tiveram como

intelectuais no cenário cultural e político brasileiro do século 20. São ao todo 176

cartas, telegramas, radiogramas e cartões dos dois escritores, referentes ao período

de 1930 a 1986, incluindo quatro poemas dedicados pelo poeta ao amigo. A

Page 13: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

12

correspondência de Drummond pertence ao Acervo de Escritores Mineiros da UFMG;

a de Cyro dos Anjos, ao acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.

Em carta do Rio de Janeiro, de 4 de agosto de 1936, Drummond dá bem uma

ideia da técnica de vida que a troca de cartas com o amigo expressa e a liberdade que

vão compartilhar ao longo dos anos.

Suas notícias circunstanciadas da gente mineira vieram satisfazer aquela minha necessidade de ternura que lhe falei na carta anterior. Obrigado, e mande outras. Quero cultivar em mim essa inclinação para o que antigamente eu consideraria uma matéria torpe e em que, afinal, parece que se resolverá a minha vida: uma adesão imediata à superfície sensível das coisas e das criaturas. É verdade que isso custa um pouco o que aquele “demonismo” que Você, amavelmente, observou em mim faz às vezes as suas sortidas imprevistas; mas ainda esse “demonismo” é talvez sede de ternura mal aplacada ou desviada do seu leito. Você sorrirá, quem sabe, dessa ternura alarmante, que não se fartou ainda depois de tantos objetos propostos à sua fruição, ou que, pelo menos, ainda não se considerou realizada. Mas considere que o nosso maior comércio é ainda com os homens, e que estes na sua quase unanimidade nos desapontam ou nos ofendem; daí o deficit sentimental que, em mim, se tenha manifestado em amargura e perversidade intelectual. Mas, repito, a velha Itabira vai fazendo a sua obra...

O tom abertamente confessional que reveste a escrita torna a carta um espelho

que se confunde com um processo de desvendamento contínuo do sujeito cuja

imagem vai se formando e se deformando ao longo do tempo. Os eventos de natureza

íntima — o cotidiano familiar, mas também a melancolia, a depressão, os desejos

frustrados — superpõem-se aos fatos advindos das circunstâncias profissionais e

políticas — as intrigas da vida literária, os meandros do favor no emprego público, as

regras duras do jogo político, ao qual assistem como coadjuvantes ativos. Eventos e

fatos compõem um quadro cuja figura que aí se desenha tem seus traços projetados

para um mais além do tempo e do espaço da mera existência pessoal. “Que grande

colecionador de tempo me tornei!”, exclama Drummond ao agradecer os

cumprimentos do amigo pelo aniversário de 63 anos, em carta de 1º de dezembro de

1965.

Ao longo das décadas que passam, a datação das cartas vai resguardando e,

simultaneamente, assinalando o que não volta mais: as amizades da “Idade de Ouro”

(carta de 1º de junho de 1938) ou, mais intensamente, a ausência/presença do pai e

da mãe, na belíssima carta de 20 de fevereiro de 1954. Vale a pena a citação de um

longo trecho:

Page 14: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

13

Tenho andado numa roda viva de trabalho, e isso explica a relativa escassez de cartas. Além disso, na semana passada fui a Minas cumprir um desejo de minha Mãe, que desejaria ter seus despojos reunidos ao de meu Pai, no cemitério de B. Horizonte. Assisti em Itabira à exumação dos ossos, e ajudei a levá-los até ao Bonfim, onde agora repousam junto aos do velho. Se lhe disser que não fiquei arrasado pela cerimônia, V. talvez se surpreenda; mas é que, nas duas horas e tanto que durou aquela pesquisa e recolhimento de pobres ossos, me visitava o pensamento consolador de que nada mais, nem alma nem corpo, restava de minha Mãe, e ela era pura saudade dentro de mim e de algumas pessoas. Talvez este pensamento não se concilie bem com o que me ocorreu depois, no Bonfim, ao encaixarmos a urna no jazigo: já então, parecia-me que se celebrava uma última boda, dos restos dos restos de um com os restos dos restos de outra, e essa aproximação final dos despojos excluía toda tristeza e constituía uma vitória sobre as limitações do tempo, da natureza e da morte. Tudo isso, é claro, sentido mais do que pensado, e isento de literatura. Não creio que me tivesse deixado penetrar por essas imaginações para não sofrer; o que suponho é que assimilei já de tal modo a morte de meus pais que é como se eles estivessem vivos a meu lado — e realmente estão, pela frequência e intensidade com que os sinto, como algo de incorporado a mim mesmo, ou melhor, a que eu próprio os haja incorporado.

Essa incorporação talvez explique o tom melancólico das cartas dos dois

escritores, ambos funcionários públicos. É como se o missivista apresentasse ao

amigo um repertório de perdas pessoais a que a situação política do país — objeto de

comentários constantes — agregasse um inevitável beco sem saída histórico e social

para o intelectual e o artista que a imagem do escritor traduz fortemente nos anos de

1930 a 1950. Da mesma forma, as referências à literatura, a par do tom irônico com

que são feitas, acirram um sentimento de amargura, que resvala para o embate

intelectual, a exemplo da carta de 4 de agosto de 1936, já citada.

Ainda não pedi notícias do seu romance, que me interessa muito. É da maior necessidade que Você o conclua e publique, contribuindo para que se retifique o conceito atual do romance entre nós. A mim não me satisfaz nem a transcrição imediata e anti-crítica de aspectos de uma vida regional, como fazem os rapazes do norte (entre parênteses: como escrevem mal!), nem essa literatura “restaurada em Cristo” com que nos aporrinham os pequeninos gênios marca Lucio Cardoso. Tudo isso é literariamente bem insignificante e, acredito, não resistirá ao tempo. Mas é preciso ir marcando as diferenças e trabalhando numa direção nova, de que aparentemente não há igual no quadro literário brasileiro do momento. Tenho muita esperança no “Amanuense” e o exorto, civicamente, a pô-lo na rua.

O apelo cívico ao amigo visa abrir um outro caminho para a ficção brasileira,

mas também uma forma nova de participação e esperança. A incitação para que Cyro

termine logo o Amanuense (1937) e, posteriormente, a alegria ao receber o exemplar

Page 15: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

14

de Abdias (1945) expressam um ponto de fuga às inquietações existenciais e literárias

do poeta-missivista e aos constrangimentos políticos a que os escritores estão

submetidos. A linguagem sintetiza, mais do que um empenho político, em rigor fadado

ao desolamento e à decepção, um compromisso ético com o tempo. Na carta de 11 de

novembro de 1945, declara: “De resto, o que mais em interessou em ‘Abdias’ foi a

escrita em si, pois ando preocupado com esse problema, e despreocupado de

quaisquer ‘mensagens’ ou sentidos que a obra possa ter.” Em outro momento,

discorda de Cyro em relação aos poemas do amigo Emílio Moura, em carta de 17 de

novembro de 1986:

Li seu artigo sobre o vate Emilio e teria muita coisa a dizer sobre ele. Mas... um dia conversaremos. Estou convencido de que o poeta não pode se alhear do espetáculo do mundo e que também ele tem uma missão social a cumprir no momento – É a grande objeção que faço ao livro do Emilio: estar fora do tempo.

Apesar da distância de vários anos de uma carta a outra, a contradição do

poeta, ora apelando para a autonomia da arte, ora para seu compromisso histórico,

ressignifica a posteriori as atividades de sua geração e da geração modernista, em

última instância. Percebe-se um desconforto que não cessa de incomodar e a cuja

estridência Mário de Andrade dera forma na célebre conferência “O movimento

modernista”, proferida em 30 de abril de 1942 na biblioteca do Ministério de Relações

Exteriores, no Rio de Janeiro. Após passar em revista o movimento, o escritor volta-se

para sua atuação — “O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do

meu passado.” — e dela extrai a generalização que conclui a aguda reflexão realizada:

“uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o

amilhoramento político-social do homem”.

A “missão social a cumprir” em Drummond assume em 1945 a forma da

militância político-partidária, ao aceitar o convite de Luís Carlos Prestes para ser co-

diretor da Tribuna Popular, função que exerce por alguns meses. É também o ano de

publicação de A rosa do povo, seu livro mais empenhado. Na única carta a Cyro dos

Anjos em 1945, já referida, os acontecimentos políticos relativos à renúncia de Vargas

e ao fim do Estado Novo são apenas aludidos, embora não deixem de mostrar sua

força na formulação que lhe dá o poeta: “Nascemos todos incapazes para a política,

mas fadados a sofrer no lombo suas transformações.”

O ano de 1945 é crucial para Drummond: deixa a chefia do gabinete

Capanema por razões óbvias e aceita o convite de Rodrigo M. F. de Andrade para

Page 16: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

15

trabalhar na diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, onde permanece até

sua aposentadoria do serviço público em 1962. O comentário detalhado do fato

político, que até então aparece de forma oblíqua e indireta nas cartas, torna-se, a

partir de 1945, uma constante da correspondência entre os dois amigos, tornando-a

“muito indiscreta e muito saborosa”, para usar os adjetivos que Drummond emprega

ao referir-se à correspondência de Capistrano de Abreu, em carta de 6 de novembro

de 1954. Na nova situação, a amizade entre os dois amigos permite a confidência

desabrida, os julgamentos ferinos, a franqueza desatada, principalmente da parte do

poeta, que não poupa políticos, escritores ou artistas. O tom e a postura parecem ser

os mesmos que descobre em suas incursões no jornal, conforme carta de 20 de

fevereiro de 1954 a Cyro: “Na colaboração jornalística, estou verificando em mim, com

estupor, a tendência para meter o pau no próximo, quando já a madureza me parecia

soprar auras mais benévolas”.

A “tendência”, é claro, deve-se muito ao conturbado período que começa em

1937 — “Estou pensando numa carta para você, mas o Estado-Novo tem essa grande

semelhança com o Velho: é uma burocracia envolvente” (carta de 25 de novembro de

1937) —, passa por 1945, pelo suicídio de Vargas e mesmo pelo que vem depois,

quando Drummond é convidado para o gabinete de Café Filho e recusa (carta de 22

de setembro de 1954). Tudo isso encontra sua síntese em carta de 9 de agosto de

1955, quando Drummond decide em quem votar, descartando o nome de Juscelino

Kubitschek (“Os obséquios que me prestou o Juscelino impedem-me de fazer críticas

à sua candidatura, mas não me induzem a apoiá-la”, 29 de março de 1955).

Após longo período de enjôo cívico, optei pela candidatura Juarez, como sendo a que menos inconvenientes trará ao país. Entretanto, conservo-me alheio à propaganda, e não alimento esperanças de vitória. Eleitoralmente, a situação continua sendo do Juscelino, e creio que não mudará em favor de outro candidato; a mudança em perspectiva seria no sentido militar, não pró-Juarez, mas pró-Canrobert talvez, a julgar pelo discurso audacioso que este pronunciou há dias, e que não deve ser só fruto de ressentimento pessoal: deve exprimir uma conspiração forte nos bastidores. Enfim, meu caro, uma merda completa, em que nos atolaremos todos, por falta completa de educação política, e desmoralização integral de nossa prezada elite dirigente.

O retrato da vida literária não é diferente, embora tenha nuances que

relativizam sua mediocridade, ressaltando-se que em nenhum momento das cartas os

dois escritores se refiram a Clarice Lispector ou Guimarães Rosa, que estréiam nos

anos de 1940. Em 1953 Cyro está no México, enviado pelo Itamaraty. De lá manda

Page 17: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

16

notícias para Drummond: informa-o da presença de Alfonso Reys, que ambos

admiram fortemente, e de José Vasconcelos, na aula inaugural que o autor do

Amanuense dá na Universidade Autônoma do México, como professor-visitante (carta

de 23 de março de 1953); não reconhece nada de notável na produção literária

mexicana da época, à exceção da obra de Reys; irrita-se com o apego dos escritores

a “assuntos aztecas ou temas nacionalistas” — “Vejo que nosso Brasil, com todos os

seus defeitos, leva grande vantagem: é um país voltado para o mundo” (carta de 1 de

junho de 1953).

Do lado brasileiro, a posição de Drummond é outra. Em 1951, publica Claro

enigma, sua obra-prima, que se abre com a epígrafe de Valéry — “Les événements

m’ennuient” — e com os versos “Escurece, e não me seduz/ tatear sequer uma

lâmpada”. Despede-se de vez do credo modernista, por meio de uma dicção

diferencial em relação a seus contemporâneos e a suas próprias obras anteriores. Em

relação aos pares, mantém posição crítica severa, e mesmo raivosa, como demonstra

em carta de 5 de outubro de 1953, ao colocar Cyro a par dos acontecimentos literários

do ano:

O arraial das Letras anda muito alvoroçado com os últimos produtos do engenho nordestino, que são uma tragédia da Raquel [Lampião], onde os personagens se matam a metralhadora em cena aberta, e o romance do Zé Lins [Cangaceiros], que teve a habilidade de descobrir novos palavrões, ou acepções novas dos antigos, para ornamentar a sua prosa tão límpida (a publicação no Cruzeiro sairá expurgada). O livro da Raquel, pelo menos, tem o mérito de uma linguagem saborosa, mas falta-lhe qualquer resquício de interesse psicológico, pois a alma de Lampião e de seus cabras é tão elementar como a do Zé Lins. Já o livro deste lucraria em arte se fosse escrito pelo próprio Lampião. O que me impressiona verdadeiramente, depois de tantos anos de residência no Rio e de conhecimento da turma, é o entusiasmo causado por qualquer produto daquela região, que faz noticiaristas e críticos avulsos babarem de gozo, enquanto o mais absoluto silêncio envolve uma obra do quilate do Romanceiro da Inconfidência, da Cecília. É exato que, no caso desta, se trata de dama difícil, mas ao menos em homenagem à beleza, que é evidente até para os calhordas, eles deviam cair de queixo diante dela.

No espaço criado entre a escrita privada e o texto dado a público nos romances

e poemas de Cyro ou Drummond, emerge a hiper-subjetivação do comentário político,

que faz da narrativa tramada pelos missivistas algo semelhante à intriga ficcional de

Montanha, roman à clef muito diferente dos anteriores do escritor, publicado em 1956.

A preocupação de Cyro em postergar a publicação do livro, para que não se

reconheça a identidade real das figuras políticas presentes no romance, contradiz a

Page 18: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

17

postura drummondiana nas cartas, onde o poeta não se recusa a dar nome aos atores

da cena política e literária que acompanha com atenção e desgosto.

A essa altura, cabe perguntar, qual o interesse que nós, leitores-voyeurs,

temos diante desse arquivo antes esquecido ou prestes a ser deletado pela sua

própria inatualidade de confidência trocada entre “compadres”, que é como os dois

escritores se tratam nas cartas. O que esse arquivo guarda enquanto traço residual de

um projeto — existencial, político e cultural — levado ao ponto-limite de seu paulatino

desmoronamento? A carta de Drummond a Cyro, na qual critica artigo do amigo,

Drummond encaminha uma possível resposta. Em 17 de novembro, sem marcação de

ano, afirma: “reconhecendo como você a falência da literatura bolchevista, acredito

entretanto na possibilidade de uma mensagem poética que contribua para a solução

dos conflitos humanos da nossa época”.

De qualquer forma, as cartas vão superpondo traços de um ao do outro,

compondo um largo painel intimista, valha o paradoxo, da vida literária e política

brasileira de um período crucial do século 20. As subjetividades em confronto no

decorrer dos anos abrem novas perspectivas de avaliação do trabalho intelectual,

tendo como selo de garantia a maneira muito especial como amizades e livros se

escrevem, abrindo vias de acesso para se pensar ainda hoje uma possível cultura

nacional brasileira em tempos globais. Memória — ou tarefa? — frágil e resistente

como a escrita das cartas confirma na sua textualidade.

Page 19: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

18

2

Delfos – espaço de documentação e memória cultural da PUCRS: a história de

um projeto

Maria Eunice Moreira

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Em um livro publicado no Brasil sob o sugestivo título A biblioteca à noite, seu

autor, Alberto Manguel, atual diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, um misto de

argentino e cidadão canadense, um homem que tem a rara felicidade de escrever

sobre livros e de conviver diariamente com esse artefato mágico, conta, nas páginas

de abertura dessa obra, a história de sua biblioteca. A vida dessa biblioteca começou

em um dia qualquer do século XV, como um celeiro, sobre uma pequena colina do rio

Loire, na França, mas sua história é mais antiga. Registram as fontes que, antes da

era cristã, os romanos erigiram um templo a Dioniso, para louvar o deus da região

vinícola. Doze séculos mais tarde, uma igreja substituiu o templo ao deus pagão.

Tempos depois, os aldeões anexaram a esse novo templo uma casa para alojar o

pároco, acrescentaram alguns pombais, um pomar e um celeiro, até que em 2001,

Manguel viu essa antiga edificação e tomado pelas lendas que cercavam a edificação

restante, adquiriu a propriedade e nela instalou sua fantástica biblioteca.

Gosto de imaginar a Universidade como uma vasta biblioteca e gosto mais

ainda de imaginar essa biblioteca à noite, como sugere o título do livro de Manguel. Já

acomodados nas prateleiras, após um dia de agitação, os livros deixariam seus

lugares consagrados para, numa irrequieta e suspeita conversa, estabelecer relações

entre os diversos saberes. Papeis de escritores sairiam de sua acomodação em caixas

e envelopes, como se preparados para uma tranquila noite de descanso, e

confrontariam ideias e teses, questionando seus autores sobre discussões e

polêmicas que, há algum tempo, provocaram opiniões e ideias divergentes.

No plano da imaginação, talvez esse debate ocorra entre escritores,

historiadores, jornalistas, arquitetos, poetas e prosadores, dramaturgos e críticos, que,

hoje, silenciosamente, compartilham um mesmo espaço – DELFOS – Espaço de

Documentação e Memória Cultural da PUCRS - instalado no sétimo andar do prédio

16, da Biblioteca Central Ir. José Otão, no Campus Universitário de Porto Alegre.

Page 20: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

19

Tal como a história da biblioteca de Manguel, esse espaço de documentação

também tem sua história e narrar os episódios mais importantes dessa aventura é o

objetivo deste trabalho.

1 – Dos primeiros tempos ao DELFOS1

A instalação do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da PUCRS, na

atual Faculdade de Letras, na década de 1970, ao mesmo tempo que visava à

ampliação e à fundamentação dos estudos literários e linguísticos, em níveis mais

aprofundados, objetiva também a consolidação da pesquisa no ambiente da

Universidade. Para o Ir. Elvo Clemente, líder e orientador de professores e alunos,

especialmente na fase inicial da instalação do PPGL, a universidade constitui o “lugar

privilegiado para a pesquisa, pois sua função é gerar ciência e produzir verdade”.2

Antes mesmo da criação do PPGL, a PUCRS já exercitava sua vocação para o

ensino e a pesquisa. Segundo a Professora Alice T. Campos Moreira, essa tendência

se desenvolveu a partir da experiência dos primeiros professores que atuaram na

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que deu origem à Faculdade de Letras. O

grupo de docentes exercia atividades de pesquisa, tendo produzido obras importantes

na área da Linguística e da Literatura, como resultado de suas experimentações

sobretudo em sala de aula. Comprovava-se essa vocação pela fundação da Academia

Literária Rui Barbosa, em 1946, na qual os melhores trabalhos apresentados em aula

encontravam espaço para sua divulgação. Foram as experiências bem sucedidas de

docentes e discentes que resultaram na aglutinação de estudiosos e na formação de

grupos de pesquisa sobre língua falada, língua escrita, produção artística e cultural.

Com uma visão empreendedora, esses grupos criaram os mecanismos para

divulgação dos resultados de pesquisa, como o Boletim de Língua Portuguesa, que

deu origem, em 1967, à revista Letras de Hoje, até hoje em circulação ininterrupta

junto ao PPGL/PUCRS. Segundo ainda a Professora Alice T. Campos Moreira, nesse

mesmo ano de 1967 foram criados o Centro de Estudos de Língua Portuguesa e o

Centro de Linguística Aplicada. Durante a década de 1960 e, posteriormente, na

década de 1970, vários eventos foram realizados na Universidade sobre esses temas,

o que contribuiu para consolidar a proposta de criação do Mestrado em Linguística

1 Para a redação dessa seção, recuperam-se as informações contidas no artigo “DELFOS, um espaço construído pela pesquisa”, de autoria da Professora Alice T. Campos Moreira, publicado na revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45. n. 4, p. 5. 2 Essa citação encontra-se também no texto “DELFOS, um espaço construído pela pesquisa”, de autoria da Professora Alice T. Campos Moreira, publicado na revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45. n. 4, p. 5.

Page 21: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

20

Aplicada, em 1970, do Mestrado em Teoria da Literatura, em 1973 e do Doutorado em

Letras, em 1977.

A trajetória da Faculdade de Letras da PUCRS na instalação do Programa de

Pós-Graduação em Linguística e Letras impulsionou ainda mais a pesquisa, como

base para a concretização de estudos em níveis avançados. Em 1977, foi instituído

pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da PUCRS, junto ao PPGL, o Centro

de Pesquisas Literárias (CPL). Na sua fase inicial, definiu como campos de pesquisa

privilegiados a literatura do Rio Grande do Sul e a Literatura Infantil e Juvenil. Pelo

primeiro, investia na recuperação de obras e autores fundamentais da cultura sulina,

tendências e estéticas que marcaram o passado e sua formação literária e cultural.

Pelo segundo, aprofundava a discussão sobre a produção literária voltada às crianças

e ao público juvenil, visando analisar essa produção, mas também propor estratégias e

metodologias voltadas à sala de aula, com vistas a formar o gosto do público leitor.

Ambas as linhas de pesquisa reuniram pesquisadores experientes e jovens iniciantes

na pesquisa, concretizando através de publicações, dissertações de Mestrado, teses

de Doutorado e constituição de grupos de estudo junto à Anpoll sua atuação marcante

na formação de pesquisadores que atualmente encontram-se em exercício em

instituições de ensino superior do Acre ao Sul do Brasil.

Com o Programa de Pós-Graduação em Letras consolidado e em expansão,

outros grupos de pesquisa foram criados, de modo a atender à demanda de novos

campos de estudo. Em 1993, foi criado o Grupo de Pesquisa de Escritores Sulinos,

dedicado à organização, preservação e divulgação dos acervos literários de escritores

rio-grandenses, que a PUCRS abrigava na Faculdade de Letras. Igualmente, a

formação de um Banco de Textos Raros de Literatura Brasileira passou a subsidiar

novas pesquisas, agora dirigidas à formação dos processos literários brasileiros e

sulinos. Dessa organização, resultou a promoção de eventos de porte, na Faculdade

de Letras, como o Encontro Nacional de Acervos Literários e o Encontro Nacional de

Periódicos Literários, que reuniram pesquisadores do Brasil e do Exterior,

oportunidade em que também foram organizadas exposições sobre os objetos de

estudo em pauta: acervos de escritores e periódicos brasileiros, em parceria com

outras instituições e centros de pesquisa. Em 1995, a realização do I Seminário

Internacional de História da Literatura, com a presença de pesquisadores nacionais e

estrangeiros, representativos desse campo de estudos, alçou também o PPGL como

polo de estudo da renovação dos estudos historiográficos.

Em 2008, com a reestruturação dos organismos de pesquisa, por orientação da

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da PUCRS, o Centro de Pesquisas

Page 22: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

21

Literárias aglutinou as pesquisas realizadas na área da Literatura Sul-Rio-Grandense e

dos acervos literários, que passaram a ser abrigados pelo Centro de Estudos em

Memória Cultural. As investigações sobre acervos literários e periódicos literários

continuaram na pauta de interesses do PPGL, mas foram aglutinados sob essa nova

estrutura. A ampliação desses grupos exigia, porém, a definição de alguns pontos

importantes para a continuidade dos trabalhos. Um deles dizia respeito a espaço

físico, pois a disponibilidade da Faculdade de Letras tornou-se exígua para abrigar um

volume de documentos e papeis que exigiam acondicionamento adequado, maior

segurança e atendimento a pesquisadores, não só vinculados ao próprio PPGL, mas a

instituições externas que procuravam a PUCRS para consulta a fontes primárias de

acervos e coleções. Por outro lado, a Universidade objetivava também definir uma

política para recebimento, guarda e utilização de documentos que, deslocados de seu

ambiente original – as casas das famílias – passavam a constituir coleções

importantes para consulta de pesquisadores de diferentes níveis e de diferentes

lugares, em um ambiente universitário. Na Faculdade de Letras, encontravam-se cerca

de vinte acervos, entre os quais: Celso Pedro Luft, Coleção de Cartilhas Brasileiras,

Cyro Martins, Dyonelio Machado, Eduardo Guimaraens, Francisco Fernandes, Lila

Ripoll, Manoelito de Ornellas, Moacyr Scliar, Moyses Vellinho, Oscar Bertholdo,

Patricia Bins, Paulo Hecker Filho, Pedro Geraldo Escosteguy, Reynaldo Moura e

Zeferino Brasil.3

O número de acervos já era expressivo – vinte até essa data – e a Faculdade

de Letras recebia oferta de doação de novos acervos literários, constantemente, oferta

feita por familiares de escritores e pessoas ligadas à cultura do estado do Rio Grande

do Sul. Apenas para ilustrar, lembro quando Lya Luft entrou em contato com a direção

da Faculdade de Letras para doar o valioso acervo Celso Pedro Luft. Por razões

pessoais da doadora, o material que constitui esse valioso conjunto – livros, papéis,

documentos, originais – necessitava ser transferido para a PUCRS em tempo exíguo,

o que foi feito, buscando os encarregados definir um espaço para o seu recebimento.

Em outra ocasião, nova oferta de doação de acervo foi dirigida à Faculdade de Letras.

Preservados por um amigo do escritor que acabara de falecer, os papeis (era um

acervo composto apenas por papeis), exigia também a retirada imediata do material

do local onde estava armazenado, por absoluta falta de condições. Acondicionados

em sacos de supermercado, esses papeis poderiam sofrer a ação do tempo e perder-

3 Essa relação consta no texto “DELFOS, um espaço construído pela pesquisa”, de autoria da Professora Alice T. Campos Moreira, publicado na revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45. n. 4, p. 7.

Page 23: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

22

se, caso não fossem trazidos para a PUCRS, como era desejo do doador. Situações

emergenciais que impunham também tomadas de decisão urgentes, tendo em vista

que preservar esses acervos era a atitude mais premente. Por outro lado, a restrição

do espaço na Faculdade de Letras tornava-se dia a dia uma questão mais crucial.

Com a intenção de sanar o problema, a Faculdade de Letras buscou a

orientação da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, que constituiu um grupo de

trabalho para analisar a questão do espaço a ser disponibilizado, na Universidade,

para a guarda, preservação e pesquisa desses acervos, com a perspectiva de

recebimento de outros, ao longo dos anos. Ao mesmo tempo, cabia a esse grupo de

trabalho definir as diretrizes legais para a continuidade do trabalho com materiais

oriundos dos doadores. O grupo foi integrado pelas Faculdades de Meio de

Comunicação Social, Filosofia e Ciências Humanas, Arquitetura que, sob a liderança

da Faculdade de Letras, unidades da PUCRS que abrigavam documentos, papeis e

diferentes tipos de acervos, iniciaram os estudos com vistas a apresentar à Pró-

Reitoria a solução para essas questões. A reforma para ampliação do prédio da

Biblioteca Central Ir. José Otão, da PUCRS, que se executava no momento, propiciou

a disponibilização do sétimo andar desse edifício para a instalação de todos os

acervos dispersos na Universidade. Ao mesmo tempo, esse grupo de trabalho definiu

as diretrizes que passavam a institucionalizar o recebimento, a guarda, a preservação

e a pesquisa em acervos.

A etapa seguinte foi direcionada para a denominação do local. Que nome dar a

um lugar que abriga “tesouros” de famílias, papéis de escritores, documentos da

história de um grupo, de uma instituição, de um Estado? Que nome conceder a um

lugar onde pesquisadores da própria Universidade e de outras instituições o

identificassem por apenas um título, uma sigla, uma palavra? Uma palavra que, pela

sua semântica, contivesse o peso da História, sugerisse o valor dos documentos m

preservação e fosse acessível ao público contemporâneo, como uma marca, um sinal.

A palavra sugerida foi DELFOS, em referência ao oráculo de Delfos, situado na

Grécia, na cidade do mesmo nome. O Oráculo de Delfos era um templo consagrado

ao deus Apolo onde as sacerdotisas, conhecidas como pitonisas, profetizavam em

uma espécie de transe. O antigo povo do Mediterrâneo tinha tanta fé em tais profecias

que nenhuma decisão era tomada sem antes consultar o oráculo. No entorno do

oráculo de Delfos estavam pequenas capelas que abrigavam thesaurus (tesouros),

donativos e ex-votos, frequentemente valiosos, como é o caso dos tesouros de

Siracusa, Cirenea, Cnifo, Sifnos, entre outros.

Page 24: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

23

Na PUCRS, o Espaço de Documentação e Memória Cultural também guarda

diversos tesouros, documentos referentes às áreas de Letras, Artes, Jornalismo,

Cinema, História e Arquitetura, abriga raridades, como originais de livros,

correspondências de autores escritas de próprio punho, fotografias, documentos

pessoais, como óculos e vestimentas, livros com anotações particulares, plantas de

arquitetura, jornais antigos, documentos a respeito da imigração alemã no Rio Grande

do Sul, quadros, entre outros.

A proposta apresentada à Pró-Reitoria mereceu aprovação e, pelo Ato

Normativo n. 3/2007, foi criado o DELFOS – Espaço de Documentação e Memória

Cultural da PUCRS. Como órgão institucional, o DELFOS reúne o mais expressivo

conjunto de bens culturais e literários do Estado do Rio Grande do Sul, oriundo de

cada Unidade que lhe deu origem, como segue:

- Na Faculdade de Letras, encontravam-se cerca de vinte acervos, entre os

quais: Celso Pedro Luft, Coleção de Cartilhas Brasileiras, Cyro Martins, Dyonelio

Machado, Eduardo Guimaraens, Francisco Fernandes, Lila Ripoll, Manoelito de

Ornellas, Moacyr Scliar, Moyses Vellinho, Oscar Bertholdo, Patricia Bins, Paulo Hecker

Filho, Pedro Geraldo Escosteguy, Reynaldo Moura e Zeferino Brasil.4

- Da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Departamento de História)

foram agregados o Acervo Benno Mentz, o Acervo Documental do Partido de

Representação Popular (PRP), que congregava muitos adeptos da Ação Integralista

Brasileira (AIB), o Acervo José Honório Rodrigues, os Manuscritos da Coleção De

Angelis e os documentos do Laboratório de História Oral.

- Da Faculdade de Comunicação Social (NUPEC), se agregaram o acervo de

Roberto Eduardo Xavier e de Osvaldo Goidanich.

- Da Faculdade de Arquitetura, os originais de Theo Wiederspahn.

A esses conjuntos, somaram-se três coleções especiais, que se encontram

atualmente no sexto andar da Biblioteca Central Ir. José Otão e que, pelo Ato

Normativo n. 3/2007, passaram a integrar o DELFOS. São os acervos de Paulo

Fontoura Gastal, Henrique Padjem e Julio H. Petersen, esse último, a maior biblioteca

rio-grandina disponível no Estado.

DELFOS: um projeto em desenvolvimento

4 Essa relação consta no texto “DELFOS, um espaço construído pela pesquisa”, de autoria da Professora Alice T. Campos Moreira, publicado na revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45. n. 4, p. 7.

Page 25: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

24

O projeto para criação do DELFOS foi lançado oficialmente pela Reitoria, em

cerimônia realizada no saguão do Salão de Atos da PUCRS, contando com a

presença de autoridades universitária, familiares dos escritores e convidados. A

inauguração oficial do Espaço ocorreu em 9 de dezembro de 2008, ou seja, um ano e

meio depois do início da proposta da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. As

instalações destinadas ao DELFOS - Espaço de Documentação e Memória Cultural da

PUCRS, no sétimo andar da Biblioteca Central Ir. José Otão, respondem às exigências

técnicas para preservação de documentos e papeis. O ambiente com climatização

regulada permite a conservação do material e o sistema de segurança que vigora no

prédio central da Biblioteca é também um item importante para a garantia de que os

bens concedidos à Universidade estão guardados com cuidado e zelo.

Enfim, o projeto DELFOS tomava forma: a sede de 800 metros quadrados do

prédio 16, do Campus Universitário é composta por depósito para abrigar os acervos,

uma ampla sala para consultas e diversas salas de estudo, individuais ou

compartilhadas, uma sala para a secretaria e uma pequena sala para atendimento a

visitas. Todos esses ambientes estão equipados com computadores, ligados à rede de

internet e dispõe também de projetores e telas, além de móveis para exposição,

fechados e com segurança.

Figura 1: Vista atual da entrada do DELFOS – Espaço de Documentação e Memória Cultural

Page 26: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

25

Prédio 16 – Campus Universitário da PUCRS

O apoio da Universidade, já concretizado nessas iniciativas, foi também

materializado na forma de concessão de bolsas para estudantes, na modalidade de

Iniciação Científica (BPA) e Apoio a Projetos de Interesse Institucional. Os alunos de

IC passavam a participar, junto com os professores orientadores, das atividades de

organização, preservação e divulgação dos acervos, armazenados no DELFOS. Para

além da experiência acadêmica, visava a Universidade a formação de recursos

humanos na área das Letras, Ciências Humanas e Comunicação, propiciando aos

jovens alunos a iniciação científica, fundamental para a formação acadêmica de

futuros profissionais.

Após esse período de instalação, outros acervos foram sendo agregados a

esse núcleo original, doados por disposição de familiares e às, vezes, dos próprios

escritores, em vida, como forma de propiciar maior conhecimento de sua obra através

de pesquisas. A Crítica Genética e Crítica Textual abriram possibilidades de estudo

dos processos de criação e os documentos disponíveis tornam-se fontes

imprescindíveis para essas investigações. De 2008 até o momento, o DELFOS

incorporou novos acervos, contando, até o presente com o seguinte patrimônio:

- Coleções: Ação Integralista Brasileira - Partido de Representação Popular;

Coleção de jornais de Antonio Hohlfeldt; Associação Cívico-Cultural Minuano;

Cartilhas e Seletas; Coleção De Angelis; Laboratório de História Oral Coletânea de

depoimentos orais; Qorpo Santo; Coleção de jornais de René Gertz; Revista do

Globo; Acervo fotográfico Livraria do Globo.

- Acervos de escritores, linguistas, dicionaristas, jornalistas, cineastas, arquiteto

e colecionadores: Aníbal Damasceno; Antonio Carlos Trommer de Resende; Benno

Mentz; Caio Fernando Abreu; Carlos Urbim; Celso Pedro Luft; Cyro Martins; Danilo

Ucha; Dyonélio Machado; Eduardo Guimaraens; Francisco Fernandes; Gevaldino

Ferreira; Henrique Padjem; Hugo Ramirez; Ir. Elvo Clemente; João Otávio Nogueira

Leiria; José Honório Rodrigues; Júlio Petersen; Lara de Lemos; Lila Ripoll; Luiz

Antonio de Assis Brasil; Luiz de Miranda; Luiz Pilla Vares; Moacyr Scliar; Manoelito de

Ornellas; Maria Dinorah Luz do Prado; Moysés Vellinho; Nico Fagundes; Oscar

Bertholdo; Oswaldo Goidanich; Patrícia Bins; Paulo Hecker Filho; Paulo Fontoura

Gastal; Pedro Geraldo Escosteguy; René Gertz; Reynaldo Moura; Roberto Eduardo

Xavier; Sinval Medina; Theo Wiederspahn; Vera Karam; Zeferino Brazil.

Page 27: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

26

Outras atividades foram também sendo desenvolvidas, como a elaboração da

página do DELFOS, acessível pelo endereço www.pucrs.br/delfos, atualmente em

nova fase de adaptação, tendo em vista a necessidade de incorporação de

informações atualizadas. Da mesma forma, o layout físico do DELFOS foi reformado,

visando a uma paginação física mais moderna, com painéis alusivos aos escritores,

com fotografias de alguns dos intelectuais cujo espólio encontra-se ali guardado.

Igualmente, deu-se início a um trabalho de digitalização dos acervos, atividade que

demanda tempo e custos, mas que já registra seus primeiros resultados através da

digitalização do acervo do escritor Moacyr Scliar, membro da Academia Brasileira de

Letras. (V. http:// www.pucrs.br/delfos).

O DELFOS, nos últimos dois anos, tem aberto suas portas para cursos e

palestras sobre a criação literária, especialmente ministrados pela nova geração de

escritores, alguns oriundos da Oficina de Criação Literária ministrada pelo escritor Luiz

Antonio de Assis Brasil, desde 1985, no PPGL/PUCRS. A par isso, efemérides e

exposições têm sido realizadas para comemorar datas significativas, das quais reporto

algumas, nos últimos anos: a comemoração dos 40 anos de atividade na PUCRS do

idealizador da Oficina de Criação Literária e, ao mesmo tempo, os 35 anos de

instituição da Oficina, em 2015. As festividades alusivas ao centenário do nascimento

do poeta, contista, crítico e artista plástico, Pedro Geraldo Escosteguy, realizadas em

2016, com evento alusivo e exposição intitulada “Pare, Olhe e Escrute” organizada

com apoio dos alunos de Iniciação Científica. Para abril de 2017, está em preparo um

evento comemorativo aos 40 anos do romance Um quarto de légua em quadro,

lançado em 1976, por Luiz Antonio de Assis Brasil, romance que inaugurou a

perspectiva crítica sobre o mundo rural rio-grandense.

Essa é a história de um projeto chamado DELFOS que reúne peças do espólio

de escritores, jornalistas, historiadores, linguistas, além de um arquiteto e um bibliófilo.

As prateleiras do DELFOS estão repletas de manuscritos, artigos de imprensa,

correspondência, microfilmes, fotografias, obras de arte plástica, originais de obras,

jornais que se colocam ao lado de medalhas, condecorações, condecorações e

objetos pessoais. Essa res varia reconecta tempos e espaços, sujeitos e biografias,

formando um patrimônio cultural e histórico coloca à disposição dos estudiosos da

PUCRS, do Rio Grande do Sul e de toda a comunidade acadêmica nacional e

internacional, interessada em (re)escrever a história de seus antecessores.

Como no caso da biblioteca de Manguel, o DELFOS conta sua história, a

história de cada acervo e escreve as páginas de um Espaço Cultural que abriga a

memória da literatura e da cultura de um Estado. Os acervos ali reunidos, reavivados

Page 28: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

27

pela voz de cada pesquisador, propiciam, certamente, uma conversa profícua capaz

de sustentar uma discussão salutar através da leitura de múltiplos sujeitos, em

diferentes temporalidades.

REFERÊNCIAS:

MOREIRA, Alice T. Campos. DELFOS, um espaço construído pela pesquisa” Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45. n. 4, p. 7, out.-dez. 2010.

http://www.pucrs.br/delfos. Acesso em 02 nov. 2016.

Page 29: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

28

3

“A vida são as sobras”: a configuração do arquivo Bernardo Élis

Flávia Carneiro Leão

Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulalio” – CEDAE/Unicamp

No Seminário Internacional sobre Arquivos Pessoais, organizado pelo CPDOC

e pelo IEB em 1997, o historiador Christophe Prochasson (1998, p. 105) observava

que, a partir da segunda metade do século XX, as práticas historiográficas se voltaram

à história cultural e às histórias de vida de intelectuais, o que ocasionou o interesse

dos historiadores franceses pelas fontes privadas. “Em seus comentários a respeito

das conferências apresentadas nesse Seminário, Ângela de Castro Gomes

relacionava o boom dos arquivos privados à revalorização do indivíduo na história e à

lógica de suas ações” (1998, p. 122). De lá pra cá, podemos dizer que esse interesse

se manteve, fazendo com que a aquisição de arquivos de pessoas por parte de

centros de documentação, de arquivos, de museus e de bibliotecas se ampliasse.

E, se o número de arquivos de escritores, de cientistas, de artistas, de políticos

e de intelectuais existente em instituições públicas e privadas cresceu, a discussão

sobre os pressupostos e conceitos arquivísticos adotados para o tratamento destes

arquivos também se ampliou, do mesmo modo que a reflexão dos profissionais

encarregados pela sua preservação, sobre as suas práticas.

Passados quase vinte anos do Seminário, a atualidade desse interesse e

preocupação é tema deste Encontro do CEDAP que, não por acaso, tem como

subtítulo “desafios e perspectivas”, no plural!

Para refletir sobre alguns desses desafios e, quem sabe, contribuir com as

discussões… A constituição e a trajetória dos documentos que compõem o arquivo do

escritor Bernardo Élis talvez seja um bom ponto de partida.

Se conforme escreveu Bernardo Élis, “A vida são as sobras”5 (1997, p. 16),

podemos dizer que ao analisarmos o seu arquivo, o que observamos são seus rastros,

suas “sobras”, os “restos” daquilo que o escritor produziu e acumulou ao longo de sua

vida, mas, também, podemos perceber aquilo de que se desfez, que se perdeu… ou

que foi desfeito… ou perdido por alguém.

5 “A vida são as sobras”: título dado por Bernardo Élis ao depoimento que concedeu à Giovanni Ricciardi, professor do Istituto di Lingua e Letteratura Spagnola e Portoghese da Facoltà di Lingue e Letteratura Straniere. Bari, Itália.

Page 30: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

29

Um olhar mais aproximado é capaz de demonstrar que, apesar da naturalidade

própria à produção de documentos de arquivo, a configuração adquirida pela

documentação até sua chegada ao centro de documentação não se caracteriza como

um processo de acumulação linear, completo e ideal e, neste sentido, compreender o

que delineou a sua formação, que seleções foram feitas por Bernardo Élis e por

pessoas a ele ligadas, pode contribuir para a compreensão das contingências da

acumulação documental, esclarecendo por vezes aspectos relacionados à

especificidade de tipos documentais, formatos e espécies encontradas, sem falar na

elucidação de seus contextos de produção e de acumulação.

Promovidas pelo titular e por aqueles que tiveram a documentação sob sua

guarda, as intervenções sofridas pelo arquivo ao longo de sua trajetória condicionam o

que será ou não guardado, determinando, por vezes, o que deverá ou não ser

lembrado ou esquecido.

Arquivos de escritores, como o de Bernardo, são formados ao longo de uma

vida e, em princípio, não são constituídos com uma finalidade histórica ou social, mas

certamente são marcados pelas escolhas daqueles que os constituíram.

Subjetivas por natureza, tais escolhas – consciente ou inconscientemente –

privilegiam fatos, opiniões e pontos de vista, delineando a configuração do conjunto

documental e, por conseguinte, podendo ser consideradas como um “critério”

subjacente à decisão de guarda ou descarte de documentos.

Reconhecer essas interferências pode permitir uma maior compreensão sobre

a formação do arquivo e elucidar as vicissitudes que sofreu antes mesmo que

chegasse ao centro de documentação.

Marcada pela subjetividade, a intencionalidade implícita ao processo de

acumulação documental delineia os contornos do arquivo pessoal, do mesmo modo

que as interferências privadas ou institucionais.

Assim, as ações seletivas, operadas pelo titular, por seus herdeiros e por

instituições de custódia, costumam privilegiar parcelas da documentação em

detrimento de outras, valorizando certas espécies e, por conseguinte, mutilando a

integridade do conjunto arquivístico que, por vezes, é destituído de núcleos

documentais que comporiam uma representação mais completa das atividades

desempenhadas pelo seu titular.

Heloísa Bellotto (2004, p. 138), neste sentido, observa que o tratamento dos

arquivos pessoais, assim como o dos institucionais, deve se iniciar, sempre, pela

Page 31: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

30

observância do princípio de “respeito aos fundos”6, o que assegura a integridade dos

conjuntos e o sistema de relações que os documentos mantêm entre si e com o todo.

Ora, se os documentos decorrem das atividades do titular e expressam o

processo de desenvolvimento de suas ações, a manipulação que gera a seleção

documental afeta o seu potencial de comprovação das atividades, processos,

incidentes, eventos e atividades representadas no arquivo.

No caso do arquivo de Bernardo Elis, por exemplo, o conjunto de textos

publicados em periódicos, composto por apreciações críticas de sua obra, notícias dos

eventos de que participou, como o lançamento de um livro ou uma conferência

proferida, foram recortados, colados em folhas brancas e reunidos em um volume

encadernado sob o título de “Fortuna Crítica”.

Se, por um lado, a acumulação deste conjunto sugere uma seleção pautada

pelo simples desejo de reunir o que se escreveu sobre si, por outro, pode ser

compreendida como a ação de quem talvez almejasse o reconhecimento, a

perpetuação de seus feitos, a projeção de sua obra na posteridade, o que nos parece

contraditório, considerando a afirmação do escritor de que “[...] o primeiro traço

definidor de minha personalidade e de meu caráter é a timidez, linha mestra que

sustenta e estrutura o meu EGO.” (ÉLIS, 1997, p. 106).

Neste sentido, a reunião de 1440 textos talvez possa ser compreendida como a

tentativa de uma pessoa tímida de se esquivar do presente e se refugiar no passado

ou então possa ser que a intenção dessa pessoa tenha sido a de se estabelecer no

futuro como alguém digno de ser lembrado pela sua obra e por aquilo que dela

disseram. Hipótese que, no entanto, deve ser deixada de lado pelo arquivista, sendo

assunto para pesquisadores.

Encontrar conjuntos de “recortes” em arquivos de pessoas é algo bastante

comum e, embora eles sejam menosprezados por profissionais da área, que por vezes

se recusam até mesmo a recebê-los, há casos em que seus valores informativos são

tão grandes que se equiparam ao valor de prova que carregam7.

Porém, é frequente observarmos casos em que eles são arranjados por

assunto, por título, pela forma, por autoria ou pela cronologia, passando a formar

séries arranjadas de forma diversa daquela que lhes dá sentido e que é capaz de

6 O princípio do respeito aos fundos é um conceito fundamental da Arquivística, elaborado pelo historiador francês Natalis de Wailly (1805-1886), que basicamente estabelece que o arquivo produzido por uma entidade coletiva, pessoa ou família não deve ser misturado ao de outras entidades produtoras. 7 Neste sentido, o arquivo do artista Flávio de Carvalho é exemplar, já que parte da sua obra subsistiu graças à acumulação dos chamados “recortes” que trazem textos e ensaios de sua autoria cujos originais, no entanto, se perderam.

Page 32: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

31

evidenciar o contexto de sua produção e de lhe conferir o estatuto de documento

arquivístico.

A inadequação deste tipo de tratamento, que é derivado de procedimentos

biblioteconômicos e museológicos, promove o rompimento das relações contextuais

que estes documento têm com a ação que lhes deu origem, obscurecendo, deste

modo, o sentido da sua produção e da sua presença no arquivo.

Ora, se os documentos de uma pessoa são derivados de suas atividades

cotidianas (DUCROT, 1998, p.157), então, não só é possível “identificá-los como

subprodutos derivados das atividades do titular do arquivo, é possível reconhecê-los

também como instrumentos que viabilizaram o exercício de suas atividades, dos

papéis sociais desempenhados e dos relacionamentos por ele mantidos com outras

pessoas ou instituições ao longo de sua vida” (CAMPOS, 2011, p3).

Neste sentido, é preciso compreender que os documentos de uma pessoa

resultam das atividades por elas desempenhadas, das demandas de vida de seu

produtor, e expressam o contexto que lhes deu origem, a relação que mantêm com a

atividade que os gerou, a despeito das informações que seu conteúdo possa trazer e,

portanto, só assim é possível garantir a “impermeabilidade do arquivo em face de seu

uso secundário” (CAMARGO, 2009, p.28).

Então, adotar práticas que privilegiem o conteúdo em detrimento do contexto,

desconsiderando os princípios arquivísticos de respeito aos fundos, de unicidade e de

organicidade, acaba por mutilar as funções e os contextos expressos pelos

documentos, comprometendo o sentido e o significado do arquivo como um todo.

Portanto, tarefa primordial do arquivista é a recuperação da ação que se

materializa nos documentos a título de prova ou de evidência, e da organicidade

existente entre eles, o que demanda não só a investigação da trajetória do titular e de

sua biografia, mas dos eventos e atividades por ele exercidas ao longo do tempo.

Logo, o “conhecimento do processo histórico percorrido pelo titular, ao longo de

sua trajetória, é o melhor instrumental para o arquivista na etapa de identificação dos

documentos, porque permite vislumbrar a lógica de acumulação dos mesmos”

(LISBOA, 2012, p. 16), o que deve ser feito com base nos currículos, memoriais

acadêmicos, nas biografias do titular e também a partir da própria documentação, que

muitas vezes informa sobre eventos e atividades que podem não constar do

instrumental mencionado.

Para tanto, cabe identificar quais foram as funções e as atividades

desempenhadas pelo titular do arquivo ao longo de sua vida, situando-as no tempo e

Page 33: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

32

no espaço, com o objetivo de conhecer “como” e “quando” foram produzidos

(CAMARGO, 1998, p. 170).

Desse modo, a associação dos documentos aos seus respectivos contextos de

produção apontados na cronologia irão constituir as séries tipológicas de forma segura

e estável, o que permitirá o restabelecimento dos relacionamentos existentes entre os

documentos do arquivo, a recuperação do contexto e da proveniência dos documentos

e, por conseguinte, o seu uso como fontes probatórias confiáveis.

Assim, compreender os motivos que geraram a produção e a acumulação dos

documentos, bem como a funcionalidade que tiveram na vida de quem os acumulou, é

tarefa fundamental para o entendimento do sentido original dos arquivos, sendo esta a

tarefa que assegura “a manutenção do vínculo de estreita correspondência entre

documentos e as atividades do organismo produtor, de modo a reforçar e tornar

estável o efeito probatório que decorre dessa relação sui generis.” (CAMARGO, 2009,

p. 34).

No entanto, neste processo é possível identificar eventos e atividades da

cronologia de vida do titular que não possuem documentos e, para analisarmos o

motivo da presença/guarda de certos documentos em detrimento de outros, é preciso

admitir que o significado contido no gesto de seleção e de descarte nem sempre pode

ser associado à intenção de preservar ou de omitir experiências vividas ou aspectos

comprometedores, pois isto seria conferir um significado único a atitudes de seleção

distintas, ocorridas em diferentes momentos, por razões diversas e, muitas vezes, por

pessoas alheias à documentação.

Analisando o arquivo de Bernardo Élis, é possível identificar a ausência de

documentos que nos contem, por exemplo, de sua intimidade, de sua vida familiar, das

pessoas com quem conviveu..., em contraste com a alta incidência daqueles

relacionados à sua produção literária e às pesquisas sobre o linguajar caipira, sobre a

história e a geografia de Goiás, que desenvolveu para a composição de seus

romances.

A prevalência desses documentos, em relação aos documentos possivelmente

reveladores do homem que foi Bernardo Élis, suscita questionamentos a respeito da

intencionalidade subjacente à seleção documental por ele promovida ou, quem sabe,

por terceiros.

Neste sentido, os documentos que atestam os processos relacionados à sua

atividade como escritor – que incluem um grande volume do que pode ser

compreendido como estudos para a composição de suas obras –, ao lado dos

diversos títulos de livros sobre o “dialeto caipira” que integram sua biblioteca, dos

Page 34: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

33

manuscritos de seus contos e romances, nos faz questionar o quanto há de

intencionalidade no conjunto de itens mantidos em seu arquivo e também naqueles

que foram omitidos.

De qualquer modo, se esse conjunto de documentos é revelador da atuação do

escritor, a ausência ou a reduzida ocorrência de documentos sobre seu cotidiano,

suas relações de amizade e familiares são igualmente eloquentes.

Logo, tanto a presença como a ausência de documentos relativos a um

determinado acontecimento, a um aspecto ou fase da vida do titular são passíveis de

análise por parte do pesquisador, estabelecendo, portanto, sentidos e conexões com o

seu passado, assim como com o passado de sua família, de sua comunidade e com a

sociedade em que viveu.

Neste caso, “ainda que inusitado em um instrumento de descrição de arquivo, o

registro da ausência integra a cronologia, ela própria importante instrumental de

pesquisa” (CAMARGO, 1988, p. 24).

Quanto aos originais manuscritos de seus livros, chamam atenção as múltiplas

versões de uma mesma obra produzidas por Bernardo. Estilista contumaz, parece não

se contentar com a simples revisão, geralmente feita de rasuras, supressões,

acréscimos e substituição de palavras. A cada “revisão” reescreve inteiramente seus

textos, como no caso de “O Tronco” e de “Chegou o Governador”, ambos com cinco

versões reescritas.

Entretanto, a visão de que tais documentos possam fornecer informações

sobre a gênese e o desenvolvimento do processo de criação de Élis não justifica a

distinção entre o que pode ser avaliado como extremamente relevante para a pesquisa

– manuscritos originais, no caso de arquivos de escritores - e o que é secundário, a

ponto de ser descartado numa seleção subjetiva, capaz de mutilar um conjunto de

itens que permitiriam a estabilização de uma representação mais completa do arquivo.

As cartas constituem outro núcleo particularmente valorizado na medida em

que podem “informar sobre muitos aspectos da vida de um indivíduo, mas o que elas

comprovam, em primeiro lugar, são as relações e as interações entre o remetente e o

destinatário. Desse modo, o contexto para interpretar a informação que contêm é o

daquela relação, daquela interação, o que demonstra que o valor informativo que

possuem é dependente do seu valor probatório”. (MCKEMMISH, 1996, p. 180).

Portanto, ao contrário da prática corrente, que organiza as cartas como

correspondência enviada, recebida e de terceiros, ou então, por correspondente e, em

algumas ocasiões, por cronologia, é necessário identificar a lógica subjacente à sua

produção, pois só assim será possível compreender as circunstâncias em que foram

Page 35: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

34

escritas e, assim, identificar os seus contextos, reconhecendo, assim, o valor

documental e probatório que possuem.

Embora eu tenha mencionado o número reduzido de documentos a respeito da

intimidade de Bernardo Élis, entre as raras cartas de seus amigos e familiares

(existem apenas 3 cartas de 2 seus 3 filhos) verificamos a existência de cerca de 750

cartas que comprovam sua relação com nomes consagrados da literatura brasileira,

como: Guimarães Rosa, Monteiro Lobato e Mário de Andrade entre outros, o que

parece contradizer a personalidade introvertida e arredia tantas vezes declarada por

Élis.

Seriam essas cartas pistas codificadas a nos revelar a posteriore as relações

que o escritor manteve eclipsadas por anos à espera de reconhecimento?

Ora, se admitimos a constituição de um arquivo pessoal como um processo

dinâmico, que comporta visões que promovem descartes e remanejamentos de itens,

o que se coloca em questão é a distinção a ser feita entre o que o titular pretendeu

com os documentos que preservou e o sentido que esses documentos têm em relação

ao contexto que lhes deu origem. Este ponto de vista, para o arquivista, deve

prevalecer sobre aquele que se volta às intenções subjacentes à guarda promovida

pelo titular e sobre as informações contidas nos documentos.

Enfim, para ampliarmos nossa compreensão sobre os arquivos de pessoas é

preciso concebê-los não só como o efeito natural da trajetória de alguém, mas como o

produto de atividades desempenhadas e de eventos vividos por uma pessoa, que

também faz investimentos e toma decisões, do mesmo modo que aqueles que têm ou

que tiveram a documentação em mãos.

Neste sentido, ainda que a identificação das decisões e das escolhas a que

uma documentação foi submetida possa esclarecer aspectos da constituição de um

arquivo pessoal e ampliar nosso conhecimento sobre ele, ela não deve influenciar o

seu arranjo e a sua descrição, sob a pena de comprometer a manutenção da

qualidade probatória que os documentos possuem em relação às circunstâncias de

sua criação e em relação aos laços que eles mantêm uns com os outros, em outras

palavras, a importância da reflexão sobre a constituição dos arquivos pessoais pode

contribuir para a sua compreensão, mas não deve pautar o seu tratamento, sob pena

de serem destituídos daquilo que lhes deveria ser inerente, ou seja, a sua capacidade

de representação, a sua condição de arquivos.

REFERÊNCIAS

Page 36: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

35

ATHAYDE, Tristão de. Regionalismo Universalista. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17 jun. 1966.

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. São Paulo: FGV editora, 2004.

CAMARGO, Ana Maria de A. Arquivos Pessoais: uma proposta de descrição. Arquivo: boletim histórico e informativo, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 21-24, jan./ jun. 1988.

_______ e GOULART, Silvana. Tempo e circunstância: a abordagem contextual dos arquivos pessoais. São Paulo: IFHC, 2007.

_______. Arquivos pessoais são arquivos. Revista do Arquivo Público Mineiro, v.45, n.2, p. 26-39. Julho-dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/2009-2-A02.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2016.

CAMPOS, José Francisco Guelfi. Um salto no vazio? Considerações iniciais sobre a organização e representação de arquivos pessoais. In: SEMINÁRIO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 4, 2011, Londrina. Anais... Londrina: UEL, 2011. Disponível em: < http://www.uel.br/eventos/cinf/index.php/secin2011/secin2011/paper/view/13>. Acesso em: 12 nov. 2015.

DUCROT, Ariane. Classificação dos arquivos pessoais e familiares. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p 151-168, 1998.

GOMES, Ângela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p 121-127, 1998.

ÉLIS, Bernardo. A vida são as sobras. Remate de Males: Revista do Departamento de Teoria Literária, Campinas, n.17, p. 15-116, 1997. Disponível em: <http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/issue/view/220>. Acesso em: 01 abr. 2016.

HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. Estudos Históricos, Rio de janeiro, v. 10, n. 19, p. 41-66, 1997.

_______. Arquivos pessoais em perspectiva etnográfica. In: TRAVANCAS, Isabel et al (Org.). Arquivos pessoais: reflexões multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 67-76.

LISBOA, Araci Gomes. O livro, a parede e os arquivos pessoais. In: MELLO, Maria Celina Soares de et al (Org.). Arquivos pessoais: história, preservação e memória da ciência. Rio de Janeiro: Associação dos Arquivistas Brasileiros, 2012. p. 11-19.

MCKEMMISH, Sue. Evidence of me. The Australian Library Journal, [s.l.], v. 45, n. 3, p.174-187, jan. 1996. Disponível em <http://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/00049670.1996.10755757>. Acesso em: 22 out. 2015.

PROCHASSON, Christophe. “Atenção: verdade!” arquivos privados e renovação das práticas historiográficas. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.

Page 37: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

36

SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos Modernos: princípios e técnicas. Tradução Nilza Teixeira Soares. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

Page 38: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

37

4

Astrojildo Pereira: Militância e Literatura

Jacy Machado Barletta

Centro de Documentação e Memória - CEDEM/UNESP

Um pouco de sua trajetória

Difícil resumir uma vida como a de Astrojildo Pereira; difícil escolher os

diversos aspectos de uma vida voltada à militância política e social, além de sua

devotada paixão literária, principalmente por Machado de Assis. Portanto, nas

próximas linhas daremos um esboço dessa trajetória. Utilizei para essa empreitada o

artigo do Prof. Marcos Del Roio.

Astrogildo Pereira Duarte Silva nasceu em 8 de outubro de 1890, no distrito de

Rio dos Índios, município de Rio Bonito, Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Em 1908, já

em Niterói, para onde a família havia se transferido, abandonou os estudos formais

ainda na terceira série ginasial, a fim de trabalhar como operário gráfico no Rio de

Janeiro, sendo também admitido como servidor no Ministério da Agricultura.

Alimentava marcada paixão pela literatura e pela crítica política e social, tendo-

se apresentado anonimamente na casa do escritor Machado de Assis, que lhe serviu

sempre de inspiração, quando soube que estava em seu leito de morte. No decorrer

da vida além de assinar seus trabalhos como Astrojildo Pereira usou vários

pseudônimos, tais como Basílio Torresão, Aurelino Corvo, Pedro Sambê, Tristão, Alex

Pavel, Astper e Américo Ledo, entre muitos outros identificados ou ainda

desconhecidos.

Desde 1909 seu ideário do anarquismo já estava presente na sua formação e

colocava com decisão no campo das lutas sociais proletárias que se travavam no Rio

de Janeiro, a capital da República brasileira. Já militante do Centro de Resistência

Operária de Niterói, em 1911 inicia a sua colaboração com a imprensa anarquista.

Na sua militância anarquista, Astrojildo Pereira contribuiu na organização do II

Congresso Operário Brasileiro, realizado em 1913, que teve entre suas decisões a

reativação do periódico "A Voz do Trabalhador". Em 1915 participou ativamente na

publicação de uma revista teórica, de nome "A Vida" e na revista cultural e literária

ABC.

Page 39: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

38

O início da 1ª Guerra Mundial gerou controvérsia no movimento operário, mas

Astrojildo Pereira se manteve firme na postura contrária à guerra imperialista e a COB

– Central Operária Brasileira, assim organizou um Congresso da Paz em outubro de

1915.

Entre 1917 e 1920, o Brasil foi cenário da rebelião universal do trabalho que

perpassou praticamente todo lugar onde as relações sociais capitalistas de produção

tivessem sido inoculadas. A greve dos vários setores produtivos, iniciada em São

Paulo em fevereiro de 1917, se espalhou por outros estados.

Entre 1919 e 1921 ocorre a mudança ideológica de Astrojildo Pereira, em

estreita conexão com o processo de crise estratégica do movimento operário e de

concomitante fundação do Partido Comunista. A fundação da IC – Internacional

Comunista – em março de 1919 repercutiu de imediato no Brasil, com o intento de se

fundar o Partido Comunista.

Ele passou a dirigir o jornal "Spartacus", que sobreviveu de 1919 até janeiro de

1920. Em janeiro de 1922, como iniciativa de Astrojildo Pereira, aparece a revista

"Movimento Comunista", como órgão dos grupos comunistas do Brasil, que indicava a

necessidade da construção do partido operário, mas também da unidade sindical.

Essa revista foi publicada até junho de 1923, contando sempre com seus artigos.

O congresso de fundação do PCB realizou-se em Niterói, Rio de Janeiro, entre

23 e 25 de março de 1922, na casa de uma tia de Astrojildo Pereira. O grupo decidiu

indicar um representante do Rio Grande do Sul, Abílio de Nequete, como secretário,

por conta da proximidade com Uruguai e Argentina, onde os comunistas estavam mais

bem organizados e contavam com alguma assistência da IC. A desistência desta

tarefa por parte de Abílio de Nequete levou Astrojildo Pereira a assumir a função

correta para quem concebera e organizara não só a fundação do partido comunista,

mas uma vertente teórica e ideológica que vinha para durar na história da luta da

classe operária brasileira. No decorrer dos anos 1920, em torno de Astrojildo Pereira,

Octavio Brandão, Paulo de Lacerda e outros, formaram um novo grupo dirigente do

movimento operário.

Em 1927, Astrojildo Pereira foi enviado à Bolívia com a missão de se reunir

com Luiz Carlos Prestes e propor a aliança política, tendo deixado livros e folhetos

com o comandante da “coluna invicta”. Essa iniciativa fazia parte da estratégia que o

PCB desenvolvia de formação de um Bloco Operário, mais tarde chamado de Bloco

Operário Camponês.

Astrojildo Pereira fora para Moscou em julho de 1929 para participar da X

Reunião Plenária do Comitê Executivo da IC, para o qual fora eleito no VI Congresso

Page 40: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

39

Mundial da IC realizado no ano anterior, quando testemunhou a guinada na orientação

política do movimento comunista.

No retorno, foram feitas várias modificações na direção e Astrojildo Pereira foi

afastado da direção e enviado a São Paulo, onde tentou ainda participar da vida

partidária. Contribuiu então nos jornais O Tempo e Homem do Povo, pelo que foi

obrigado a fazer autocrítica humilhante. Seus esforços para continuar a militância

comunista pareciam inúteis na medida em que era sempre responsabilizado pelos

problemas que o Partido enfrentava. Em São Paulo, aproximou-se de Inês Dias, filha

do antigo anarcossindicalista, e agora comunista, Everardo Dias, com quem logo se

casaria. A partir de 1932, tendo o seu nome vulgarmente identificado com epíteto

negativo de “astrojildismo”, seus esforços se mostraram inteiramente inúteis, de modo

que, afastado de vez do PCB, voltou a se estabelecer em Rio Bonito.

Nesse tempo de 'exílio forçado' entrega-se, quase totalmente, à Literatura, sua

antiga paixão, principalmente às obras de Machado de Assis, a quem dedicava uma

enorme admiração. Escreveu o ensaio "Machado de Assis, Romancista do Segundo

Reinado", publicado em 1944 no livro Interpretações.

Em 1945 foi delegado do Estado do Rio de Janeiro ao I Congresso Brasileiro

de Escritores, realizado em São Paulo. Esse Congresso foi caracterizado pela

oposição dos participantes à ditadura de Getúlio Vargas, congregando todas as linhas

de pensamento favoráveis à democracia naquela conjuntura.

Participou em companhia de Carlos Lacerda, Hermes Lima, Caio Prado Junior

e José Augusto Bezerra de Medeiros, da redação da declaração de princípios do

encontro, a qual propunha o retorno à legalidade democrática, o sufrágio universal

direto e secreto e o pleno exercício da soberania popular.

No mesmo ano solicitou seu reingresso no PCB, quando da sua legalização. A

partir daí intensificou sua atividade jornalística. Foi diretor da revista mensal Literatura,

colaborou nos jornais do Partido como Imprensa Popular e Novos Rumos, foi diretor e

redator-chefe de Problemas da Paz e do Socialismo, revista dedicada ao movimento

comunista mundial. Em 1958 dirigiu a revista teórica do PCB, Estudos Sociais. Em

1959 publicou Machado de Assis: ensaios e apontamento avulsos; em 1962,

Formação do PCB: 1922-1928, notas e documentos. Em 1963 lançou Crítica Impura:

autores e problemas.

Ainda na década de 1960, pertenceu à Comissão Machado de Assis,

encarregada pelo Governo Federal da preparação de edições críticas modelares da

obra machadiana. Nesse mesmo período com problemas de saúde se trata na URSS.

Page 41: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

40

Com o movimento militar de 1964 desapareceram os órgãos da imprensa

socialista em que Astrojildo Pereira atuava. Foi indiciado em diversos inquéritos

policial-militares, sendo preso em outubro de 1964. Na prisão seu estado de saúde se

agravou e em janeiro de 1965 por força de um habeas corpus foi libertado, faleceu em

20 de novembro de 1965, se declarando à imprensa "marxista convicto" e conclamou

a luta pelo restabelecimento das liberdades democráticas.

Introdutor do marxismo no Brasil e fundador do partido comunista, além de

crítico cultural de alto quilate; Astrojildo Pereira certamente é desconsiderado ou

ignorado pelas novas gerações.

O acervo exilado

A trajetória do acervo de Astrojildo Pereira é a história de muitas fontes

históricas brasileiras, mas com um final até que feliz. Hoje a maior parte do seu

acervo, aquilo que sobrou de depredação policial, viagem marítima de meses para a

Itália, a insegurança da volta ao Brasil - está muito bem preservada no CEDEM/

UNESP, em material de conservação próprio, higienizada e organizada.

Durante os anos de 1970 a ditadura militar desarticulou várias organizações de

resistência armada, iniciando a repressão às organizações mais tradicionais como: o

Partido Comunista Brasileiro - PCB, e o Partido Comunista do Brasil - PC do B.

Inúmeros dirigentes e militantes dos dois partidos em todo o país são perseguidos,

presos, torturados e mortos, outros conseguem ir para o exterior, os que sobrevivem

no país passam a viver clandestinamente. As estruturas partidárias são

desmanteladas, os militantes perdem seus contatos, suas gráficas são completamente

destruídas.

É nesse panorama que acontece a saga do acervo de Astrojildo Pereira, do

exílio ao resgate no Brasil.

O Arquivo de Astrojildo Pereira estava na gráfica do PCB, em São Paulo,

levado para lá depois do falecimento dele, entregue à Marly Vianna e seu

companheiro José Sales, então militantes do PCB, por Antonio Bonfim responsável

pelo jornal Voz Operária, editado pelo PCB. A missão de ambos era garantir sua

integridade e preservar a memória do partido.

Segundo depoimento de José Sales, o arquivo ficou durante anos em uma

casa na cidade de São Paulo, onde iam regularmente organizá-lo e funcionava uma

oficina mecânica. Mas a policia já tinha informação do local e chegou a abordar, sob

Page 42: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

41

disfarce, os moradores que ingenuamente deram algumas informações. Frente a isso

Marly e José Sales retiram os documentos desse local e os levam para sua casa, em

1974.

A partir daí inicia-se outra operação de transferência do arquivo para o Rio de

Janeiro na casa de Zuleide Faria de Melo. Marly, Zuleide e os filhos de Salomão

Malina durante uma semana vão e voltam de São Paulo ao Rio de Janeiro,

transportando os documentos de Astrojildo Pereira. Durante uma semana eles fizeram

esse trajeto, pois o único veículo disponível, quer dizer legalizado, era o 'fusca' da

Marly.

Devido aos transportes precários e às condições de armazenamento, o arquivo

estava em péssimas condições de conservação, entregue à umidade e à ação de

insetos. Todos estavam muito preocupados com o futuro dos documentos do fundador

do Partido, até mesmo no exterior muitos dirigentes, entre eles Luis Carlos Prestes,

em conversas, discutiam o que fazer com o arquivo.

Nesse ínterim foi decidida e organizada a saída do arquivo de Astrojildo Pereira

do Brasil para Milão. Dora Henrique da Costa, militante do Partido, simula uma

mudança e envia os caixotes de documentos como se fosse sua biblioteca. Eram 47

caixotes (baús) de 1,60m cada.

Para desespero dos militantes, o arquivo chega ao Porto de Genova oito

meses depois de partir do Rio de Janeiro. Finalmente entregue à Fundação Feltrinelli,

inicia-se uma operação de rescaldo ou salvamento, pois os documentos já haviam

sido ‘perseguidos’, pisoteados ou rasgados pela polícia, guardados em porões,

estavam em péssimas condições. Assim, alguns foram perdidos.

Na Feltrinelli foi fundado o ASMOB - Archivio Storico del Movimento Operario

Brasiliano, pelos então militantes brasileiros exilados José Luiz Del Roio e Maurício de

Mello, responsáveis pelo recebimento do acervo de Astrojildo Pereira e de Roberto

Morena, este, grande militante sindical brasileiro reconhecido internacionalmente,

infelizmente não no Brasil.

O ASMOB além desses dois importantes arquivos recolhe, durante o tempo

que permaneceu na Itália, documentos valiosos não só para a história contemporânea

brasileira mas internacional.

Com a Anistia em 1979, a maior parte dos brasileiros retorna, deixando o

ASMOB desfalcado de muitos colaboradores. Além disso, mais tarde, na década de

1990 a Fundação Feltrinelli, por razões financeiras, passa por uma transformação

optando por se tornar uma editora de prestígio, também deixa de colaborar com o

ASMOB.

Page 43: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

42

Assim, estava definida a volta de todo esse acervo ao Brasil. O problema era

para onde iria e quanto isso custaria, já que os documentos lotaram um contêiner e

deveria sair de Amsterdã, que dava mais segurança para o transporte comercial, mas

tinha o custo mais elevado. Esse transporte foi financiado pelo empresário Ricardo

Guedes, ex militante do PCB, sem essa colaboração ficaria inviável essa

transferência, já que os responsáveis pelo ASMOB não tinham recursos financeiros

para isso.

Mas, outro 'drama' estava no caminho desse material. Chegando em Santos,

em 1994, ainda não se tinha definido qual instituição o acolheria. Nesse momento

entram em cena alguns personagens que deram o rumo do Arquivo para a UNESP,

entre eles os Professores Edgar Carone, José Enio Casalegui, Marcos Del Roio e

José Segatto.

O Professor José Enio além de docente da UNESP, nessa época, era Diretor

do Arquivo Público do Estado de São Paulo, portanto, conhecia as possibilidades de

ambas as instituições. É relevante dizer que, nesse período, o Arquivo do Estado

estava passando por sérias dificuldades financeiras, daí pode-se concluir a opção pela

UNESP, que já tinha um centro de documentação instalado em São Paulo, na Praça

da Sé, com especialistas no trabalho de organização de arquivos - o CEDEM. No

momento, quem estava à frente da UNESP, como Reitor, era o Magnífico Professor

Dr. Artur Roquete de Macedo que oportunamente acolheu a ideia. Enfim, neste

mesmo ano, o ASMOB se tornou o primeiro acervo histórico recolhido para e no

CEDEM, mudando, desse modo, o próprio destino e a missão desse Centro.

Esta é a história abreviada da trajetória do acervo de documentos de Astrojildo

Pereira até nossos dias.

Quanto ao seu conteúdo, apesar de muito ainda estar por ser descoberto,

resumidamente pode-se encontrar:

Produção intelectual (política e literatura);

Documentos do PCB (organização interna);

Documentos da Internacional Comunista (reproduções datilografadas);

Produção intelectual de terceiros (possivelmente dele com pseudônimos e de

outros);

Correspondência;

Produção intelectual – anotações e fragmentos;

Congresso Internacional da Paz;

Panfletos;

Page 44: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

43

Cartazes;

Coleção de periódicos;

Coleção de fotografias.

Conteúdo e organização do acervo

O ASMOB foi recebido em 1994, pelo CEDEM quando ele ocupou os três

andares do edifício da Praça da Sé 108. Até aquele momento o Centro só cuidava da

Gestão Documental da Universidade e do Projeto Memória que coletava depoimentos

orais sobre a trajetória da UNESP, coordenado pela sua fundadora Profa. Dra. Anna

Maria Martinez Corrêa.

O acervo pode ser considerado uma das principais fontes sobre o operariado

brasileiro e suas organizações, do movimento anarquista até a fundação do Partido

Comunista Brasileiro. Além de jornais, revistas e documentos iconográficos, fazem

parte documentos dos organismos de base do anarquismo e do comunismo,

conferências de base e decisões do Comitê Central do PCB até 1935.

Os documentos do Fundo Astrojildo Pereira já chegaram ao CEDEM com uma

classificação e notação dada na Itália em quase sua totalidade sejam textuais,

fotográficos, áudio visuais, periódicos e livros. Pelo que se sabe, as pessoas que

organizaram o acervo do ASMOB eram exilados brasileiros, voluntários e leigos nos

procedimentos arquivísticos e biblioteconômicos, havendo somente um momento em

que uma bibliotecária trabalhou como voluntária.

Portanto, as discussões técnicas da equipe do CEDEM se pautavam em

manter ou não essa organização. Com o problema da falta de pessoal, a equipe

contava com apenas quatro técnicos, e o próprio acervo que, já catalogado, não tinha

os mínimos critérios arquivísticos, foi levado em consideração que alguns trabalhos

acadêmicos já tinham utilizado, mesmo na Itália, esses documentos. Portanto mudar a

classificação, além de ser um trabalho hercúleo seria de muita responsabilidade. É

bom salientar o grande esforço da equipe, muito reduzida, em procurar num mínimo

espaço de tempo, disponibilizar os documentos à pesquisa, pois entendia a

importância dessas fontes inéditas aos pesquisadores brasileiros. Há algumas criticas

quanto aos procedimentos do nosso trabalho, por não estar dentro das normas

‘rígidas’ e ‘tradicionais’ da Arquivologia. Há pouquíssimas pessoas que trabalharam

com arquivos de movimentos sociais, grupos políticos, militantes, grupos e partidos

que viveram na maior parte de sua existência na clandestinidade, o problema é que há

Page 45: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

44

mais experiências e produção teórica sobre documentos públicos, que são mais

comuns e mais explorados por arquivistas e pesquisadores.

As características de documentos produzidos pelos grupos acima citados, pela

sua constituição e existência, poucos são datados, assinados e contendo uma

localização. Não podemos esquecer que por estarem, na maior parte do tempo,

clandestinos e ilegais, os militantes usavam diversos pseudônimos, escreviam em

códigos, não podiam ser localizados; é óbvio, usavam siglas indecifráveis, assim as

dificuldades de organizar os documentos dentro de teorias arquivísticas tradicionais se

torna um trabalho insano, cabendo ao profissional escolhas quase individuais, já que

poucos, ou nenhum, são os exemplos na literatura técnica que servem de parâmetro.

Astrojildo Pereira tinha uma personalidade inquieta, vasta cultura e muito senso

de humor, em um de seus escritos responde algumas perguntas, como passatempo,

duas nos chamam a atenção:

- Sua ideia de felicidade: paixão amorosa e paixão política ao mesmo

tempo. Um doce amor de mulher em meio de uma bravia luta política.

- Sua ideia de infelicidade: nem paixão amorosa e nem paixão política.

A paixão política pode ser 'vista' claramente no que foi deixado em seu legado

para a posteridade, ou seja, tudo que escreveu e colecionou durante sua vida, tinha

uma verve futurista, deixar para posteridade uma parte da História Brasileira que

talvez pouco viesse a ser conhecida, já que ele viveu durante dois governos de

exceção, fundou e militou no Partido Comunista Brasileiro – PCB, que a maior parte de

sua trajetória viveu na clandestinidade.

O acervo de Astrojildo Pereira pode ser considerado um Nó Górdio para a

Teoria da Arquivologia, sem falar nos pesquisadores. A maior parte dos documentos

que estão no que consideramos Produção intelectual – Anotações e fragmentos

são o tal Nó Gordio a que nos referimos. São 21 caixas, repletas de documentos,

esperando um Alexandre (O Grande) para desatá-lo. Esses manuscritos estão

anotados em todo tipo de papel: fichas comuns, panfletos, propagandas, calendários,

etc., assim como uma diversidade de tamanhos e gramaturas, anotações no verso,

nas laterais, isso sem contar o universo de assuntos tratados.

Na parte da política, tanto para o arquivista como para o pesquisador, ele deixa

documentos similares a um 'quebra-cabeças', ao usar diversos pseudônimos e até

grafias diferenciadas, podendo confundir tanto um leigo, como um experiente

arquivista ou pesquisador - como aconteceu no inicio da organização do acervo. Ele

Page 46: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

45

chegou a criar personagens que discutiam com ele mesmo, ambos sob pseudônimos.

Na classificação dos documentos muitos escritos dele entraram como: Produção

Intelectual de Terceiros, já que as assinaturas e pseudônimos eram desconhecidos

por quem primeiramente os organizou.

Para que seja organizado esse acervo, teremos que responder ainda a muitas

perguntas:

- quantos personagens e pseudônimos ele criou?

- o que cada um escreveu?

- quais eram as tendências políticas do PCB nas diversas etapas?

- como juntar os fragmentos escritos ou até mesmo compreendê-los?

- quais eram as possíveis datas de cada escrito?

- o que existe dele nos arquivos do DEOPS, São Paulo e Rio de Janeiro?

Portanto, para conclusão no caso do acervo textual de Astrogildo Pereira, será

necessário o auxílio de uma equipe de profissionais de diversas áreas: com

grafólogos, historiadores, literatos, cientistas políticos entre outros.

Em 1947, Otto Maria Carpeaux (1981), escreveu em um folheto para

campanha eleitoral de Astrojildo Pereira, para vereador:

Durante muito tempo não consegui unificar esses três aspectos de Astrojildo Pereira: homem do povo, simples, intensamente humano, quase um santo; intelectual, escritor, literato, comentando com erudição histórica a obra de Machado de Assis e conhecendo as pedras das ruas do Rio de Janeiro; doutrinador político, homem de partido, revolucionário. Não foi fácil assim...

REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em história oral. Editora FGV. Rio de Janeiro, 2004.

DEL ROIO, Marcos. A trajetória de Astrojildo Pereira (1890-1965), fundador do PCB. Revista Praia Vermelha. Rio de Janeiro; v. 22 no 2; p. 19-25; Jan-Jun, 2013. Acesso em 21 ago. 2016: <www.hgfgsdb@sfbdf>.

CARONE, Edgard, et al. Memória & História, nº 1 Astrojildo Pereira. Livraria Editora Ciências Humanas. São Paulo, 1981.

Page 47: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

46

5

Arquivos pessoais de intelectuais: configurações e potencialidades

Luciana Heymann

FGV/CPDOC

Uma mirada sobre os arquivos pessoais

Para discutir especificidades e desafios apresentados por acervos de

intelectuais, tomarei por base minha experiência de pesquisa junto ao arquivo de

Darcy Ribeiro, da qual originou-se minha tese de doutorado em Sociologia,

posteriormente publicada em livro (Heymann, 2012). Darcy foi um intelectual público,

integrando-se à categoria de homens e mulheres que, por meio de seu discurso e de

sua ação, pretende intervir no espaço público em duas direções: “[...] a defesa dos

valores ou causas universais – como justiça, verdade e liberdade – e a transgressão à

ordem vigente.” (Costa, 2016, p. 299). Além de sua atuação acadêmica, junto a

universidades e instituições de pesquisa, assumiu cargos de relevo no cenário político

nacional.8

8 Mineiro de Montes Claros, Darcy Ribeiro nasceu em 26 de outubro de 1922. Formou-se na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1946, com especialização em etnologia. Em 1947 foi contratado como naturalista pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Em 1950 publicou seu primeiro livro, Religião e mitologia kadiwéu, que lhe valeu o Prêmio Fábio Prado. Em 1952 assumiu a direção da Seção de Estudos do SPI e por sua iniciativa foi inaugurado no Rio de Janeiro, no ano seguinte, o Museu do Índio. Em meados dos anos 1950 passou a integrar o corpo docente da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, como responsável por cadeiras de etnologia brasileira. Em 1957, Anísio Teixeira designou-o para dirigir a Divisão de Estudos Sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), vinculado ao Ministério da Educação. Em 1959 foi encarregado, pelo presidente Juscelino Kubitschek, de planejar a Universidade de Brasília (UnB). Em 1961, com a inauguração dessa universidade, foi nomeado seu primeiro reitor. Em agosto de 1962 assumiu a chefia do Ministério da Educação do governo João Goulart, compondo o gabinete chefiado pelo então primeiro-ministro Hermes Lima. Em janeiro de 1963, assumiu a chefia do Gabinete Civil da Presidência da República. Com o golpe que depôs o presidente em 31 de março de 1964, Darcy exilou-se no Uruguai. De 1964 a 1976, seus 12 anos de exílio, estabeleceu residência em quatro países latino-americanos – Uruguai, Venezuela, Chile e Peru –, nos quais lecionou antropologia e participou de reformas dos sistemas universitários. Retorna definitivamente ao Brasil em 1976. Com a Lei de Anistia, de 1979, foi reintegrado ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1980, com a extinção do bipartidarismo, participou da organização do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em 1982, por esse partido, foi lançado candidato a vice-governador do Rio de Janeiro, na chapa de Leonel Brizola. Com a vitória nas urnas, Darcy acumulou o cargo com o de secretário de Ciência e Cultura. Em outubro de 1990 elegeu-se senador pelo estado do Rio de Janeiro na legenda do PDT. No mesmo pleito Leonel Brizola foi eleito, mais uma vez, governador do

Page 48: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

47

Tanto sua atuação como intelectual como suas atividades como político estão

representadas em seu arquivo pessoal, hoje depositado na Universidade de Brasília.

Não terei tempo, aqui, de discutir em detalhes a transferência do arquivo, em 2010, da

Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), no Rio de Janeiro, para Brasília. Vale registrar,

porém, que a Fundar, cuja escritura pública data de janeiro de 1996, foi criada pelo

próprio Darcy para abrigar seu patrimônio (sobretudo sua biblioteca, objeto de atenção

especial do titular) e dar continuidade a seus projetos após a sua morte. Quando

imaginou criar a Fundação, Darcy desejou instalá-la na UnB - que ele chamava de sua

“filha mais querida” - e envidou esforços para negociar com os gestores da

universidade um terreno para esse fim. Não conseguindo chegar a bom termo, à

época, a Fundar teve como primeira sede o apartamento de Darcy, em Copacabana,

sendo transferida posteriormente para uma casa em Santa Teresa, onde continua

funcionando. A ida do arquivo para a UnB só ocorreria muitos anos depois, por

iniciativa do sobrinho de Darcy, Paulo Ribeiro, presidente da Fundar, para quem a

transferência significou o cumprimento do desejo do tio, mas pode ser interpretada,

também, como uma estratégia de valorização do arquivo e da própria Fundação:

depositar o arquivo em um ambiente acadêmico aumentaria sua visibilidade e

potencializaria seus usos, ampliando também as parcerias da Fundar, que mantém a

propriedade do acervo. Para a UnB, por seu lado, o arquivo aportava o capital

simbólico do criador da instituição, associado ao idealismo e à ousadia. 9Essa

transferência ilustra a ideia de que os acervos documentais, assim como as bibliotecas

e coleções, têm, eles próprios, trajetórias. Ao longo dessas trajetórias, que incluem

operações de reunião de documentos, eventuais desmembramentos, perdas e

destruições, transferências de local de armazenamento e mudanças de proprietário, os

acervos se (re)configuram ao mesmo tempo em que alteram as paisagens que

percorrem.

estado. Em setembro de 1991 Darcy licenciou-se de sua cadeira no Senado para assumir a Secretaria Extraordinária de Programas Especiais do governo fluminense. Voltou ao Senado no final de 1992, concentrando suas atividades na elaboração da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sancionada em 1996. Nesse ano, manteve coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo e publicou Diários índios, que recebeu o Prêmio Sérgio Buarque de Hollanda na categoria Ensaio Social. Mesmo uma apresentação sumária da biografia de Darcy Ribeiro tem que registrar sua atividade como literato. Seu primeiro e mais elogiado romance, Maíra, foi lançado em 1976. A ele se seguiram O Mulo, Utopia selvagem e Migo, bem como os seis títulos que compõem os Estudos de Antropologia da Civilização – série encerrada com O povo brasileiro. Darcy morreu em 17 de fevereiro de 1997, em Brasília, aos 74 anos. 9A história da criação da Fundar está descrita no capítulo “O ideal institucional de ser Darcy” (Heymann, 2012, p. 123-169). No site da Fundar há menção à transferência do arquivo para a UnB. Cf. http://www.fundar.org.br/fundacao/abre.php?abre=43. Acesso em 09/01/2017).

Page 49: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

48

O fato de o arquivo de Darcy Ribeiro conter documentos que permitem

acompanhar grande parte de sua vida pública, além de reunir documentos que

remetem a dimensões de sua vida pessoal, não é trivial. Muitos arquivos pessoais

depositados em instituições de memória e/ou de pesquisa não retratam a trajetória do

titular na sua integralidade, ou somente contêm registros de suas atividades públicas,

já que muitas vezes a dimensão privada não é considerada “digna” de

patrimonialização pelo titular ou pelos familiares responsáveis pela transferência do

acervo para uma instituição. Além do julgamento de valor acerca desses registros,

pode ser mais custoso, tanto para o titular como para familiares, desfazerem-se de

documentos afeitos à vida privada, especialmente, fotografias.

No entanto, a ideia de que um arquivo pessoal dá acesso a uma trajetória de

vida deve ser sempre matizada (o mesmo pode ser pensado para os arquivos

institucionais, públicos ou privados, em relação às entidades produtoras desses

conjuntos documentais, ainda que as razões não sejam necessariamente as mesmas).

Todos os arquivos pessoais, mesmo os mais completos e sistematicamente

produzidos, comportam esquecimentos, lacunas, silêncios, já que o arquivamento, que

decorre da produção ou do recebimento de um documento e da decisão de guardá-lo,

ocorre de maneira seletiva, obedecendo a desígnios pessoais, ainda que uma série de

documentos devam ser, obrigatoriamente, guardados por todo cidadão, e outros tantos

tenham sua guarda presumida, de acordo com o perfil do titular, por registrarem

atividades importantes em sua trajetória. Como afirma Artières, referindo-se à

acumulação documental operada por todos os homens,

Pois, por que arquivamos nossa vida? Para responder a uma injunção social. Temos assim que manter nossas vidas bem organizadas, pôr o preto no branco, sem mentir, sem pular páginas nem deixar lacunas. O anormal é o sem-papéis. (...) Mas não arquivamos nossas vidas, não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens. (ARTIÈRES, 1998, p. 10-11).

Para além das contingências sociais e pessoais - perfis biográficos e visões de

mundo dos titulares - que regem os processos de arquivamento, há outras dimensões

contingentes na construção dos arquivos pessoais que a atenção aos processos

sociais de acumulação e guarda documental pode tornar visíveis. Esses processos,

sobretudo no caso de homens públicos, são operações que envolvem outros agentes,

além do titular, tais como o cônjuge ou algum familiar, secretários e assessores. Tenho

Page 50: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

49

designado essas interferências como as subjetividades que atuam na definição do que

integra um arquivo pessoal, nas quais também se inclui aquela do titular. Mas mesmo

essas subjetividades são contingentes e históricas, como o são as dinâmicas de

produção e acumulação documental. De fato, os padrões de acumulação mudam com

o tempo, segundo uma série de variáveis. Padrões mais sistemáticos se alternam com

outros, mais lacunares, dentro de um mesmo conjunto documental, para não falar nos

efeitos dos espaços de arquivamento na definição do que será guardado no ambiente

doméstico. Assim, sobretudo em trajetórias longevas e multifacetadas, é possível

perceber diferentes temporalidades na configuração de um arquivo pessoal.

Temporalidades e subjetividades determinam o que é arquivado, bem como o que é

valorizado nos sistemas de classificação “nativos”, e o que parece negligenciado ou

esquecido.

De certa maneira, essa pluralidade de agentes, tempos e dinâmicas fica

obscurecida pela designação “arquivo (nome do titular)”, tal como ocorre com as

narrativas biográficas, produtoras de uma ilusão de continuidade e coerência que

obscurece a descontinuidade e os acasos nas histórias de vida (Bourdieu, 1989). Se

imaginarmos a acumulação documental como um processo dotado de uniformidade,

linearidade e exaustividade, coetâneo aos acontecimentos e às atividades

desempenhadas pelo titular, também podemos ser vítimas de “ilusões” de totalidade e

coerência com relação aos arquivos pessoais, com efeitos importantes tanto do ponto

de vista do tratamento dos acervos como de seus usos e interpretações (Heymann,

1997).

O historiador Moacir Palmeira, ao pesquisar o arquivo de Moses Finley,

depositado na seção de manuscritos da biblioteca da Universidade de Cambridge,

atentou para dimensões da construção do arquivo do historiador norte-americano

radicado na Inglaterra. Ao titular se atribui a decisão de constituir um arquivo

relacionado exclusivamente às suas atividades como professor e pesquisador, embora

Palmeira considere impossível determinar “[...] o que do caráter ‘profissional’ do

arquivo se deve também à triagem de seu curador.” (Palmeira, 2013, p. 93). Sobre o

caráter contingente do arquivo, sugere que

A projeção de sua atividade intelectual na materialidade do acervo pessoal teve variações, e é possível imaginar que os documentos em questão tenham passado por diferentes configurações de ordenamento/censuras/inclusões. Caso Finley houvesse morrido em dois momentos críticos de sua saúde (crises de 1969 e 1982) ou sobrevivido ao ataque cardíaco que o vitimou em 1986, talvez tivéssemos acesso a outros arranjos documentais e, por conseguinte, fossemos levados a pensar em outros problemas a partir dos ‘papéis

Page 51: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

50

de Finley’ – que são, no fim das contas, invariáveis apenas no nome. (Idem, p. 94-95).

Recuperar os processos de constituição dos arquivos e sua passagem para a

esfera pública das instituições - seja por meio de doação, venda ou até da criação de

uma instituição para abriga-lo, como foi o caso de Darcy Ribeiro – bem como as

operações técnicas a que são submetidos no ambiente institucional ajuda a entender a

configuração e o perfil de determinado arquivo, além de revelar expectativas

projetadas sobre esses conjuntos documentais, seja por parte do próprio titular, de

seus familiares ou da instituição que o abriga. O levantamento desses dados, por parte

do pesquisador que irá se debruçar sobre um arquivo pessoal, qualifica a fonte

histórica que será pesquisada, restituindo sua historicidade. Com isso, é possível

avaliar e compreender suas possibilidades e limites como fonte de pesquisa,

interpretar suas lacunas e saturações.10

Tendo sublinhado esses pontos, vale a pena discutir, mais especificamente,

que perguntas o arquivo pessoal de um intelectual pode ajudar a responder do ponto

de vista da história intelectual ou, de maneira mais ampla, do ponto de vista de uma

história social da vida intelectual.

Arquivos de intelectuais e suas (des)construções

Creio que ao menos três ordens de questões podem ser respondidas ou ao

menos investigadas de maneira privilegiada por meio da pesquisa em arquivos

pessoais de intelectuais: as condições sociais da pesquisa, da produção e da difusão

de suas obras; os fatores que determinaram ou influenciaram o sucesso ou o fracasso

de determinada ideia ou obra; os fatores que explicam o lugar social ocupado por esse

intelectual em determinado campo acadêmico.

Nas palavras de Palmeira (2013, p. 92),

O interesse na consulta a um arquivo como os Finley Papers não está em mimetizar as imagens que acadêmicos fabricam para si, mas em relativizá-las, em desfazer as prenoções a respeito do ‘autor’ e de sua ‘obra’ – o que implica ler as fontes para além daquilo que elas nos dão a ver de imediato. (...). Esse tipo de material é um terreno

10 A ideia de “saturação” da memória foi desenvolvida por Régine Robin no livro La mémoire saturée, de 2003, e remete à obsessão pela memória que, segundo a autora, alimenta a cacofonia, o ruído e as controvérsias contemporâneas. Aqui, utilizo o termo “saturação” para indicar a ênfase na acumulação documental em determinado período ou acerca de determinado tema. Explicar as saturações documentais dentro de um arquivo implica investir nas condições sociais que determinaram padrões de acumulação.

Page 52: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

51

privilegiado para a observação da produção de conhecimento como processo (algo que a fonte publicada normalmente escamoteia, ocultando as marcas de construção dos produtos intelectuais) e em suas condições efetivas (condições que entrevistas e memoriais de acadêmicos tendem a codificar num discurso normativo a respeito de

sujeitos isolados postos diante de seus objetos prontos).

Em minha pesquisa sobre o legado de Darcy Ribeiro, busquei também

investigar a interpretação que o próprio Darcy produziu para seu lugar como

intelectual, valendo-me, além de seu arquivo pessoal, de livros de memórias.11 Ainda

que esse não fosse o objeto principal de minha pesquisa, voltada para a constituição

do arquivo de Darcy e a instituição criada para preservar sua memória, a Fundar,

dediquei um capítulo à construção da autoimagem de Darcy e à ressonância dessa

autoimagem na interpretação de alguns estudiosos de sua vida e obra. De fato, a

maioria das representações sobre Darcy dialoga com, ou reproduz, o esquema que ele

próprio construiu, baseado em alguns atributos que lhe caracterizariam, sobretudo, a

multiplicidade e a singularidade. A multiplicidade remete não apenas à variedade de

interesses e aptidões, mas à projeção de uma falta de limites para o exercício da sua

ação. Ao longo da vida Darcy operou uma naturalização progressiva desse atributo,

acabando por associá-lo a uma característica inata:

Dotado da liberdade de ser qualquer coisa, de papa a motorneiro, esse foi o capital com que vim ao mundo. Condenado a sê-lo carnalmente da única forma genuína: vivendo, crescendo, mudando. E permanecendo eu mesmo, ao longo de todas as mudanças. Recém-nascido estava eu ali pronto para exercer-me em mil papéis. (Ribeiro, 1997, p. 22)

Darcy forjou para si a imagem do homem em permanente renovação, capaz de

lançar-se em empreendimentos novos, em campos de atuação diferentes, sempre

com a marca da liberdade. Afinal, para esse constante “reinventar-se”, era necessário

não apenas o destemor de colocar-se à prova como o desprezo às regras e fronteiras

institucionais e disciplinares.

O atributo da multiplicidade é utilizado por Darcy também como elemento

legitimador de sua produção intelectual. Ao falar de seu trabalho, especificamente dos

Estudos de Antropologia da Civilização, Darcy destaca três características distintivas

da obra: a postura participante do autor, que “quer entender o Brasil para influir no seu

11 Darcy Ribeiro escreveu dois livros de memórias, Testemunho (1990) e Confissões (1997), este último publicado postumamente, além de um “romance confessional”, Migo (1988), segundo sua própria definição (Ribeiro, 1997, p. 515).

Page 53: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

52

destino”; as circunstâncias em que foram elaboradas as várias versões - revistas e

reescritas em diferentes contextos, incluindo a prisão e o exílio -, e os fatores que

conformaram a sua visão do Brasil. Com relação a esse último aspecto, afirma: “Os

fatores acidentais de singularidade decorrem de minhas experiências pessoais: como

antropólogo profissional, como intelectual da minha geração e como político.” (Ribeiro,

2001 [1990], p. 114). Assim, sua experiência como antropólogo teria lhe facultado uma

visão privilegiada do Brasil, com especial atenção às populações marginalizadas, cujo

drama histórico ele era capaz de interpretar sob uma perspectiva analítica original.

Sua singularidade estaria baseada, fundamentalmente, nessa experiência plural.

O investimento de Darcy Ribeiro na construção de sua autoimagem é tema de

análise de Mattos (2007), cujo trabalho busca exatamente discutir o caráter de

excepcionalidade atribuído a Darcy, sobretudo no que diz respeito à sua atuação como

intelectual, diversas vezes associada à personalidade irreverente, insubordinada e

distante dos padrões de trabalho acadêmico. Segundo o autor, que consultou o

arquivo de Darcy para a elaboração de seu trabalho, diferentemente da

excepcionalidade pretendida, a trajetória de Darcy, se olhada mais de perto,

[...] deixa entrever não só a existência de um antropólogo cuja formação e atuação, particularmente entre o final dos anos 40 e os anos 60 se enquadravam com quase perfeição aos padrões do trabalho intelectual daquele período, como, principalmente, a de um indivíduo que buscou articular-se continuamente com o intuito de inserir-se em espaços sociais que nem sempre franquearam o seu acesso. (Mattos, 2007, p. 5).

De forma resumida, a tese do autor é de que a multiplicidade de papéis

exercidos por Darcy poderia ser vista, de outra perspectiva, como resultado da falta de

espaço para atuar nas áreas nas quais teria desejado e da forma como havia

imaginado. Sobretudo após voltar ao país, em 1976, Darcy teria se deparado com

dificuldades para dar continuidade a algumas linhas de atuação desenvolvidas por ele

antes e durante o exílio, do qual regressava profundamente marcado pela experiência

em países latino-americanos e convencido da tarefa revolucionária que os intelectuais

desses países deveriam assumir.

O autor sugere haver um descompasso entre, por um lado, a imagem

composta por meio das narrativas autobiográficas de Darcy, marcadas pela figura do

intelectual público inconformado com as formalidades institucionais e os padrões

acadêmicos de conduta e, por outro, sua obra etnológica e os documentos de seu

Page 54: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

53

arquivo que retratam sua trajetória intelectual até o ano de 1982, marco da pesquisa

do autor.

O indivíduo multifacetado, em cuja trajetória se haviam combinado os papéis

de antropólogo, educador, político e romancista seria, portanto, menos a expressão de

um caráter irrequieto e não domesticado forjado desde a infância, tal como retratado

em Confissões, e mais o retrato da persona que Darcy criara para si ao longo da vida,

inclusive para lidar com seu fracasso em reinserir-se no campo acadêmico da

antropologia. A partir dessa perspectiva, Mattos propõe uma interpretação não

necessariamente coincidente com a imagem que o próprio Darcy construiu, afastando-

se, também, da perspectiva privilegiada, por exemplo, por Bomeny (2001), em cuja

análise a assunção da imagem de uma personalidade não adaptável às estruturas

institucionais sugere pensar a trajetória de Darcy na chave da paixão e do

voluntarismo messiânico.

Bomeny percorre o caminho sugerido pelo próprio Darcy ao propor a leitura de

sua biografia na chave de uma trajetória ao menos três vezes indisciplinada - como

mineiro, como cientista social e como pedagogo -, enquanto Mattos prefere tomar a

“indisciplina” de Darcy como resultado de um processo de construção memorial no

qual um significado positivo é atribuído às inflexões e aos percalços que ele teria

enfrentado em seu percurso intelectual. Essas perspectivas se traduzem em

interpretações diferentes para determinados aspectos da trajetória de Darcy Ribeiro.

Um exemplo capaz de iluminar as perspectivas distintas adotadas pelos

autores pode ser encontrado na forma como cada um explica a briga que colocou

Darcy em um campo oposto ao dos antropólogos do Museu Nacional, em 1979, após

o seu retorno do exílio e sua incorporação aos quadros do Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais da UFRJ. Essa briga teve como motivação imediata uma entrevista

concedida por Darcy Ribeiro à revista Encontros com a Civilização Brasileira, na qual

acusa os antropólogos do Museu Nacional, entre outras coisas, de serem movidos por

um interesse intelectual indiferente à sorte de seus objetos de estudo, o que provocou

a reação indignada de Roberto da Matta, que escreveu uma carta aberta a Darcy, e de

outros antropólogos.

Bomeny vê nesse episódio o clímax da tensão entre a atitude acadêmica e a

militância, uma tensão que estivera sempre presente, forjando a trajetória de Darcy

desde o início. Por trás dessa tensão, estariam em jogo representações concorrentes

de intelectual: de um lado, a imagem de indivíduos extremamente lúcidos, capazes de

interpretações argutas, mas afastados de objetivos práticos; de outro, a noção

gramsciana do “intelectual orgânico”, aquele que, por estar em situação privilegiada

Page 55: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

54

para analisar a realidade social, coloca-se a serviço da sua transformação. A autora

não deixa de mencionar as posições teóricas que opunham o evolucionismo

materialista de Darcy às posturas dos antropólogos do Museu Nacional, mas, para ela,

estas não seriam suficientes para explicar as características da tomada de posição

pública contra seus colegas, apenas compreensível à luz da personalidade irascível de

Darcy. (Bomeny, 2001, p. 198).

Para Mattos, o conflito com os professores do Museu Nacional resultava de um

mútuo estranhamento e tornava evidente a inadequação de Darcy ao ambiente

acadêmico brasileiro de finais da década de 1970. As ciências sociais no Brasil haviam

passado por um processo de profissionalização que as distanciavam do modelo de

intelectual postulado por Darcy e, além disso, a antropologia a qual ele se filiava -

“culturalista, evolucionista, construída a partir de grandes esquemas explicativos e,

ainda, submetida a uma postura ideológica explícita” - não tinha lugar junto à

comunidade de antropólogos que ocupava, então, os espaços institucionais. (Mattos,

2007, p. 310)

A distância entre as duas interpretações é sutil, mas marca perspectivas

distintas: a primeira reforça o “carisma” do personagem, seu desprezo pelo formalismo

acadêmico, construindo uma análise em que a trajetória de Darcy deve ser entendida

levando-se em consideração o seu estilo e autorepresentação; a segunda explora a

dimensão construída desse personagem, a produção ex post de um estilo que tudo

explicaria, mas que estaria em desacordo com anseios e expectativas anteriores à

consolidação dessa imagem. Para Bomeny, Darcy foi um intelectual que recusou o

rótulo e o ethos de acadêmico; para Mattos, essa recusa expressava simplesmente a

reação por não ter sido reconhecido nos meios acadêmicos da forma como projetara.

Mattos busca desnaturalizar a imagem construída por e sobre Darcy, e mostrar

que ele tanto se situou, como foi colocado, à margem de cânones e instituições

acadêmicos. Para essa interpretação foi essencial o acesso a documentos do arquivo

pessoal de Darcy – que não estavam disponíveis à época da pesquisa de Bomeny -,

sobretudo a correspondência, que demonstra que ele teria buscado inserir-se em

contextos institucionais e acadêmicos, sem sucesso, o que o teria levado a construir

uma explicação a posteriori que reforçava a imagem do intelectual não domesticável

pelas estruturas formais.12

12 Não se trata, aqui, de comparar interpretações, mas de apontar para as potencialidades da pesquisa em arquivos pessoais de intelectuais. Trata-se também de lembrar que nossas pesquisas são dependentes tanto das perguntas que fazemos como das condições de que dispomos para respondê-las.

Page 56: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

55

A interpretação de Mattos ilustra um aspecto interessante da constituição e da

posterior disponibilização dos arquivos pessoais como fonte de pesquisa: ainda que

identificado com o titular e imaginado como forma de acesso à sua trajetória e

personalidade, o arquivo pode “trair” as representações que ele próprio forjou, na

medida em que reflete as múltiplas temporalidades que marcaram a acumulação dos

documentos, distando de outras modalidades de “produtos memoriais”, como as

autobiografias, sempre tributárias do tempo de sua própria escrita.

Nesse sentido, o interesse da pesquisa em arquivos de intelectuais não é,

como propõe Miguel Palmeira no trecho transcrito acima, “mimetizar” as imagens que

esses intelectuais produziram para si; tampouco é desmenti-las. O arquivo pessoal

(como, aliás, qualquer arquivo) não é um repositório de verdades capazes de

“desnudar” seu titular, como algumas vezes são representados. Mais interessante é

percebê-los como instrumentos preciosos para a tarefa de contextualizar suas

experiências de vida. Com efeito, dependendo da sua própria constituição - vale

lembrar mais uma vez -, o arquivo pessoal permite restituir a historicidade da trajetória

do titular; recuperar suas conexões pessoais e institucionais.

A despeito do interesse da pesquisa de Mattos para uma análise dos caminhos

da antropologia brasileira de meados dos anos 1940 a finais dos anos 1970, e para a

reconstituição da trajetória intelectual de Darcy nesse período, me permito alguns

comentários com relação aos pressupostos metodológicos assumidos pelo autor.

Darcy Ribeiro remete à infância a origem da sua iconoclastia, como aponta

Mattos, da mesma forma que localiza no seu nascimento a presença potencial de suas

múltiplas aptidões. Essa interpretação é parte da construção da sua autoimagem que,

no último texto autobiográfico que produz, ganha sua expressão mais acabada. Utilizar

esse texto como baliza de leitura de documentos produzidos e acumulados muito

anteriormente, mostrando que eles “contrariam” a versão de Darcy consolidada em

Confissões, demonstra, apenas, que textos autobiográficos resultam de esforços de

representação. A “ilusão biográfica” é fruto da própria atividade narrativa, ou seja, um

discurso explícita e voluntariamente formulado com o objetivo de, em um momento

posterior e afastado da dinâmica dos acontecimentos, refazer os caminhos percorridos

por uma pessoa até o momento do relato.

Além disso, ao limitar sua análise ao período que vai de 1944 a 1982, Mattos

excluiu os quinze anos da vida de Darcy nos quais ele mais alimentou a imagem que

projetava para si, consolidada em Confissões. Nesse período, Darcy pode exercitar a

sua ambição de intervir na cena pública, e de fazê-lo de forma diretiva e pouco

pautada por limites formais. Ao assumir o cargo de vice-governador do estado, a

Page 57: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

56

Secretaria de Ciência e Cultura e a coordenação do Programa Especial de Educação,

entre 1983 e 1986, com a tarefa de alterar o panorama educacional e cultural do

estado do Rio de Janeiro, Darcy pode exercitar o papel de intelectual engajado que

projetara como modelo para a intelligentsia nacional. A Secretaria Extraordinária de

Programas Especiais, que assumiu no segundo governo Brizola no Rio de Janeiro

(1991-1994) com a incumbência de retomar o programa de implantação dos CIEP’s e

de coordenar a criação da UENF foi mais uma oportunidade de colocar em ação o seu

ideal de intervenção. No período em que ocupou uma cadeira no Senado (1991-1997),

por sua vez, sua atuação teve a marca do intelectual cuja experiência autorizava a

legislar em causas importantes e decisivas para o futuro nacional. A Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional (LDB), cujo formato final partiu de um substitutivo

apresentado por Darcy, sancionada em dezembro de 1996, foi o mais eloquente

exemplo dessa marca pessoal.

Ao excluir de sua pesquisa a documentação que registra esse período de

atuação, ao fazer um recorte que deixou de fora cartas trocadas com autoridades e

colaboradores, ofícios com o registro das decisões tomadas, orçamentos cujos limites

Darcy extrapolou, projetos de lei e toda uma gama de documentos nos quais se

expressou a faceta mais empreendedora do homem público, Mattos abriu mão dos

registros que corroboram – ao invés de contradizer – sua autoimagem. O recorte

cronológico que pautou a pesquisa, justificado pelo interesse nas relações de Darcy

com o campo da Antropologia após voltar do exílio, comprometeu uma visão mais

completa do personagem.

Na narrativa autobiográfica de Darcy é possível perceber que a persona

consolidada ao final da vida serviu de baliza para a interpretação de todas as fases da

sua existência. Mas, se o objetivo era comparar a narrativa autobiográfica composta

em 1997 com os documentos do arquivo, o mais justo, metodologicamente, seria

avançar nos documentos relativos aos últimos anos de vida, pois as condições que

permitiram a Darcy exercer-se segundo sua autorepresentação nos últimos quinze

anos de sua vida alimentaram e deram credibilidade à sua ilusão autobiográfica.

À guisa de conclusão: os intelectuais e seus arquivos

Antes de os historiadores filiados à história cultural ou à nova história política

se interessarem pelos papéis de natureza pessoal, fenômeno que marcou a

historiografia nas últimas décadas, historiadores da literatura e das artes já se

Page 58: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

57

debruçavam sobre os documentos pessoais de literatos e artistas, em busca da “chave

do mistério da criação” (Prochasson, 1989, p. 105). Com isso, muito já se falou sobre a

autoconsciência dos intelectuais acerca do valor de seus arquivos pessoais e da ilusão

de autenticidade dos documentos neles depositados.13

No caso de Darcy Ribeiro, foi interessante perceber, por meio do contato com

os documentos de seu arquivo que tratam da criação da Fundar e de entrevistas que

realizei, que ele não via um “valor em si” para seu arquivo.14 O arquivo não era visto

como um patrimônio que pudesse interessar à posteridade, ao contrário de sua

biblioteca, que aos olhos de Darcy tinha grande importância, tanto pelos títulos que

reunia como pela possibilidade de fornecer a chave para compreendê-lo como

intelectual. Com base em seus 20 mil volumes seria possível reconstituir os caminhos

de sua formação e, com as dedicatórias presentes em muitos livros, tecer a rede de

seus contatos acadêmicos. Essa perspectiva explicaria o desejo de Darcy, várias

vezes declarado, de que a biblioteca não fosse desmembrada após a sua morte. Mais

do que isso: enquanto organizava a Fundar, Darcy providenciou a compra dos

volumes que a completariam.15 No momento em que sua biblioteca pudesse ser

consultada na “sua” Fundação, todos os livros que ele considerava importantes

deveriam estar disponíveis.

O gesto de procurar completar sua biblioteca de modo a fazê-la espelho da

imagem que ele procurava refletir constitui um primeiro elemento de reflexão. Pois se

a ideia de biblioteca pessoal remete, exatamente, ao acúmulo gradual e paulatino de

obras que correspondem a interesses manifestos ao longo da trajetória do indivíduo,

permitindo entrever seu percurso intelectual, aqui se assiste a um esforço de

representação desse mesmo percurso. Esse movimento é coerente com o desejo de

Darcy de ser lembrado por suas ideias e não apenas por suas obras 'edificadas', além

de sugerir uma expectativa de reconhecimento futuro do valor de sua contribuição

intelectual, que ele considerava que lhe havia sido negado.

13 “Existem correspondências que traem uma autoconsciência que não engana ninguém. Existem cartas ou documentos privados cujo autor mal disfarça o desejo, talvez inconsciente, de torná-los, o quanto antes, documentos públicos. A conservação sistemática da correspondência recebida por um intelectual e às vezes mesmo as cópias de algumas de suas próprias cartas (é o caso de Jean-Richard Bloch) sempre me intrigaram.” (Prochasson, 1989, p. 112). 14 A expressão foi usada por ClaúdiaZarvos em entrevista que nos concedeu, em 2008, quando realizávamos a pesquisa. 15 Há duas listagens, no arquivo pessoal de Darcy, com os títulos que deveriam ser adquiridos. Tais listagens incluíam coleções, como a Brasiliana, Documentos Brasileiros e Reconquista do Brasil, e também obras de literatos, como Machado de Assis, José de Alencar e Érico Veríssimo. (Heymann, 2012, p. 129).

Page 59: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

58

Gostaria de chamar atenção, porém, para o lugar secundário que o arquivo

tinha para Darcy, a despeito da centralidade que adquiriu no projeto institucional da

Fundar após a sua morte. 16As relações que os titulares mantêm com seu papelório

variam muito e dependem de uma série de fatores. A autoconsciência dos intelectuais

com relação ao valor de seus arquivos, embora não deva ser desconsiderada, não

deve ser tomada como um dado, mas como uma pergunta de pesquisa. E mesmo que

se comprove que o titular projetou um destino público para seu arquivo, seria um erro

concluir, a priori, que o acervo constitui uma “falsificação”, um retrato pintado com

intenções precisas, ou negar a ele o atributo da autenticidade.

Patrimônios documentais são constructos sociais. As maneiras pelas quais

cada acervo (sejam arquivos, bibliotecas ou coleções) se constituiu, antes de

qualificarem ou desqualificarem tais acervos, devem ser objeto de investigação. Tomá-

los como dados, sem questionar sobre as condições que os tornaram fontes de

pesquisa, constitui uma ingenuidade ou uma incúria que já não se pode desculpar.

REFERÊNCIAS

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998, p. 9-34.

BOMENY, Helena. Darcy Ribeiro:sociologia de um indisciplinado. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 284 p.

BOURDIEU, Pierre. La ilusion biografica, História y Fuente Oral, Barcelona, n.2. 1989, p. 27-33.

COSTA, Adriane Vidal. Intelectuais públicos na América Latina: o debate sobre a função do intelectual na revista Casa de lãs Americas em fins da década de 1960. In: Ana Maria Mauad, Juniele Rabelo de Almeida e Ricardo Santhiago (Organizadores). História pública no Brasil: sentidos e itinerários. Rio de Janeiro, Letra & Voz, 2016.

HEYMANN, Luciana. O lugar do arquivo: a construção do legado de Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro, Contracapa/FAPERJ, 2012.

_______. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 19, 1997, p.41-66.

MATTOS, André Luís Lopes Borges de. Darcy Ribeiro: uma trajetória (1944-1982). Campinas, [s.n.], 2007,341 f. Tese (doutorado). Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Antropologia.

PALMEIRA, Miguel. Arquivos pessoais e história da história: a propósito dos Finley Papers. In: Isabel Travancas, Joëlle Rouchou e Luciana Heymann (Organizadores).

16 Para uma análise dos investimentos feitos no arquivo pessoal de Darcy Ribeiro pelos gestores da Fundar, ver Heymann (2012).

Page 60: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

59

Arquivos pessoais: reflexões multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro, Ed. FGV/FAPERJ, 2013.

PROCHASSON, Christophe. Atenção: verdade! Arquivos privados e a renovação das práticas historiográficas, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1989, p. 105-119.

RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 574 p.

Page 61: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

60

6

O Arquivo Nilo Odália do CEDAP: potencialidades de pesquisa

Karina Anhezini

Unesp/Franca

Em 2013, escrevi uma comunicação de pesquisa intitulada “Diálogos

epistolares entre Nilo Odália e Amaral Lapa” para apresentar no 7º Seminário

Brasileiro de História da Historiografia ocorrido em Mariana, Minas Gerais. Esta seria a

primeira tentativa de adentrar o Arquivo Nilo Odália, o conjunto de documentos que

ensejou a reflexão apresentada nesse texto. Doado em 2012 ao CEDAP (Centro de

Documentação e Apoio à Pesquisa Profª. Drª. Anna Maria Martinez Corrêa) da UNESP

(Universidade Estadual Paulista) – Campus de Assis, esse fundo documental permitiu

a construção de um corpus composto pela correspondência enviada por José Roberto

do Amaral Lapa entre 1975 e 1989 a Nilo Odália.

Após esta primeira aproximação, resolvi aprofundar a análise em torno da

composição deste arquivo pessoal e da principal temática dessas trocas, ou seja, as

disputas em torno do conceito de historiografia, e publiquei no dossiê “Biografias e

arquivos pessoais” da Revista Patrimônio e Memória o artigo “Arautos da História da

historiografia: as disputas por um conceito de historiografia nas cartas de Amaral Lapa

enviadas a Nilo Odália” em 2015.

Em 2016, fui convidada a revisitar este texto para o VIII Encontro do CEDAP

com o tema ‘Acervos de Intelectuais: desafios e perspectivas’17, portanto, a presente

versão tem o objetivo apresentar as potencialidades de pesquisa desse acervo, pois

se trata de um arquivo ainda inexplorado pelos pesquisadores18.

17 Agradeço a Sílvia Maria Azevedo, Supervisora do Cedap, pelo gentil convite. 18 O presente texto teve sua primeira versão apresentada no 7º Seminário Brasileiro de História da Historiografia – Teoria da história e história da historiografia: diálogos Brasil-Alemanha ocorrido em Mariana, Minas Gerais, em 2013. Cf. ANHEZINI, K. Diálogos epistolares entre Nilo Odália e Amaral Lapa: para uma história da historiografia brasileira. In: 7º SNHH - Seminário Brasileiro de História da Historiografia, 2013, Mariana. Anais do 7º SNHH - Seminário Brasileiro de História da Historiografia. Ouro Preto: EDUFOP, 2013. p. 1-10. Além disso, compôs o dossiê “Biografias e arquivos pessoais” da Revista Patrimônio e Memória. ANHEZINI, Karina. Arautos da História da historiografia: as disputas por um conceito de historiografia nas cartas de Amaral Lapa enviadas a Nilo Odália. Patrimônio e Memória. São Paulo, Unesp, v. 11, n.1, p. 4-21, janeiro-junho, 2015.

Page 62: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

61

Adentrando o Arquivo Nilo Odália no CEDAP

O arquivo Nilo Odália nos remete ao encerramento de uma vida e ao encerrar-

se de um material, acumulado ao longo de décadas, em um Centro de Documentação.

Presenças e ausências circunscritas e impressas em um arquivo que podem significar

aberturas para novas pesquisas e compreensões diversas das temáticas ali

abordadas. Em seu ofício, o historiador está bastante familiarizado a tomar o arquivo

nessa acepção e não raro se depara com as questões propostas no instigante ensaio

Mal de Arquivo19 de Jacques Derrida. Nele, o filósofo francês desconstruiu o conceito

de arquivo, colocando em xeque essa condição primeira do ofício do historiador.

Elisabeth Roudinesco refletindo a partir do ensaio de Derrida expõe de maneira clara

essa inquietante relação estabelecida com o arquivo:

Existe em todo historiador, em toda pessoa apaixonada pelo arquivo uma espécie de culto narcísico do arquivo, uma captação especular da narração histórica pelo arquivo, e é preciso se violentar para não ceder a ele. Se tudo está arquivado, se tudo é vigiado, anotado, julgado, a história como criação não é mais possível: é então substituída pelo arquivo transformado em saber absoluto, espelho de si. Mas se nada está arquivado, se tudo está apagado ou destruído, a história tende para a fantasia ou o delírio, para a soberania delirante do eu, ou seja, para um arquivo reinventado que funciona como dogma. (ROUDINESCO, 2006, p. 9).

Roudinesco trata, nesse excerto, dos dois limites ou dos “dois impossíveis” que

cercam o arquivo: o seu poder absoluto e a sua recusa. O arquivo Nilo Odália, como

qualquer outro, merece ser lido “entre” esses limites, como um descontínuo, lacunar,

com uma existência potencial. Por isso, para adentrá-lo, começarei fora dele, com um

texto que não compõe o, assim denominado, Arquivo Nilo Odália.

Pouco mais de três anos antes de falecer, Nilo Odália publicou na revista

Estudos de Sociologia o texto “500 anos depois”. Esse texto é uma oportunidade

ímpar de se defrontar com a análise apurada desse filósofo e historiador a respeito do

país que comemorava cinco séculos e que ainda não era, segundo sua avaliação, uma

verdadeira nação. Ali, num breve ensaio de 12 páginas, Odália mostrou sua atualidade

19 DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. O ensaio de Jacques Derrida, publicado na França em 1995 e traduzido para o português em 2001, insere-se num contexto muito específico marcado pelos debates acerca do holocausto judaico e as desconstruções dos ‘arquivos do mal’. Nesse sentido, faço aqui uma apropriação estendida da problematização realizada pelo autor no intuito de pensar mais amplamente a desconstrução do conceito de arquivo.

Page 63: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

62

ao voltar-se para os autores que anunciavam, naquele fim de século e milênio, a morte

da sociedade e dos valores instaurados no século XVIII. A questão norteadora era

pensar como o Brasil se insere nesse tempo de mudanças, dito de outra forma, qual a

razão de ser do Brasil?

Olhamos em torno de nós [...] e o que vemos? Dor e sofrimento, miséria e corrupção; instituições políticas falidas e incapazes de exercerem suas atribuições de gerência da coisa pública. Os corruptos delas se servem como se a corrupção e o enriquecimento ilícito fossem os verdadeiros objetivos de tais instituições. Numa sociedade desprovida de valores autênticos, os valores negativos; a corrupção, por exemplo; são assumidos como algo normal, especialmente quando a eles se acrescenta o mito do fazer. Porém, mais grave do que tudo isso é a não-sintonia entre os vários poderes da administração pública e política do país. [...] Quinhentos anos de história e o gigante esboça um sorriso infantil ao ver espocarem os fogos de artifício de uma festa tão triste e desconsolada quanto as faces dos miseráveis que o habitam. (ODÁLIA, 2001, p. 24-25).

Essa arguta análise a respeito do Brasil que, para muitos, parecerá uma notícia

do jornal do dia, foi produzida por um homem, professor universitário desde 1965, que

acumulou até bem próximo de sua morte, em 2004, grande parte daquilo que compõe

de maneira dispersa as caixas friamente acondicionadas nas estantes da sala de

“Arquivos Pessoais” do CEDAP. Documentação dispersa e organizada. O processo de

arquivamento desse acervo teve início no CEDEM (Centro de Documentação e

Memória) da UNESP que recebeu o material doado pelos familiares de Nilo Odália.

Esse arquivamento se desdobrou em uma série de procedimentos técnicos que visam

guardar adequadamente os objetos recebidos. A documentação ordenada, essa

exterioridade consignada ao Centro de Documentação, é composta por 3025 livros, 63

títulos de periódicos, sendo 278 exemplares, e, segundo o “Relatório de Conservação

e Preservação”, 65 conjuntos documentais organizados em pastas suspensas

parcialmente identificadas de acordo com a ordem original.

Informada apenas da avaliação feita por Nilo Odália a respeito do Brasil na

comemoração dos 500 anos, passei a questionar os motivos da doação desse acervo

ao CEDAP localizado na cidade de Assis. As respostas oferecidas pelo arquivo podem

ser encontradas nas cartas enviadas ao “Ilustríssimo Senhor, Professor Nilo Odália”

para o endereço da “Faculdade de Filosofia de Assis”. Logo, no entanto, fiquei

intrigada ao encontrar outra missiva com uma notícia e várias perguntas: “soube por

Page 64: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

63

uma carta do Ribeiro20 que você se transferiu para Araraquara. Algum motivo especial

o levou a essa decisão? Você aí trabalha com o pessoal de Ciências Sociais?” (Carta

enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 27 de fevereiro de 1978, CEDAP). Quais

seriam as respostas? Elas não estão nas cartas conservadas no Arquivo Nilo Odalia.

O trabalho com cartas21 é esmigalhado, composto de histórias sem conexão que

provocam a sensação de que os assuntos não tiveram fim, de que a conversa não

terminou. Vivendo esse “mal de arquivo” nessa “tensão incessante entre o arquivo e a

arqueologia” (DERRIDA, 2001: 120) e na busca quase sempre voraz por aquilo que o

arquivo perde ou guarda em outros lugares, encontrei as entrevistas. Nelas, nas

entrevistas, esses textos alheios ao arquivo, que se descobrem as motivações para

que esses documentos, depois de organizados pelo CEDEM (Centro de

Documentação e Memória da UNESP), ficassem sob a guarda do CEDAP e porque

Odália pediria transferência para o Campus de Araraquara em 1978.

Nas entrevistas22, concedidas por Nilo Odália em 1992, prevalece o

testemunho de um professor, intelectual e pesquisador a respeito de sua formação, de

sua carreia acadêmica e, por consequência, de parte importante da história da

universidade pública brasileira e da constituição dos Programas de Pós-Graduação,

em particular, das áreas de História e Filosofia.

20 O historiador José Ribeiro Júnior ingressou como docente do Departamento de História em Assis em 1965 e em artigo recentemente publicado relata um pouco de sua convivência com Odalia: “Na mesma data iniciou em Assis o professor Nilo Odalia, com formação básica em filosofia e quem eu já conhecia do Museu Paulista. Ele já escrevia no Estadão, tinha sólida formação intelectual historiográfica, filosófica e literária e vasta experiência no ensino de segundo grau. Também originário de São Paulo (USP), foi selecionado para responder por Introdução aos estudos históricos e depois por Teoria da história. Foi como regente e logo fez seu doutorado. Com Nilo aprendi, entre muitas coisas, o hábito da leitura de grandes literatos, ao lado de historiadores. Essa convivência foi importante para mim e me transmitia autoconfiança. Influenciou na criação do Clube de Cinema da FAFIA, que me forneceu referências inusitadas de aprendizagem”. (RIBEIRO JÚNIOR, 2013, p. 37). 21 Cf. ARTIÈRES, 1998;FRAIZ, 1998; GALVÃO, 1998, 2000; GOMES, 1998, 2004; VENÂNCIO, 2001; MALATIAN, 2009. 22 Os textos que compõem o depoimento publicado nos Cadernos do CEDEM foram extraídos das duas “entrevistas concedidas ao projeto Memória da Universidade, do CEDEM, pelo professor Nilo Odalia. [...] Os dois primeiros [depoimentos], contendo informações sobre Assis, fazem parte do projeto – Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo. 1923 – 1976 - Memória e História. O primeiro depoimento, datado de 17/02/1992, gravado no CEDEM por Anna Maria Martinez Corrêa, tem a duração de 93 minutos, e encontra-se transcrito com 53 páginas. O segundo foi gravado em 14/04/1992, no CEDEM por Anna Maria Martinez Corrêa e conta com 120 minutos de gravação e com 72 páginas transcritas. Um terceiro depoimento [que não consta do texto publicado], como parte do projeto Uma Universidade Multicampi no interior paulista. Memória e História da criação da Unesp e de seus primeiros anos de funcionamento (1976 – 1984). Uma contribuição ao Arquivo de História Oral do CEDEM nos foi concedido em 14/04/2002, tendo sido colhido por Márcia Regina Tosta Dias e Anna Maria Martinez Corrêa com 90 minutos de gravação e com 41 páginas de transcrição”. (CORRÊA; DIAS, 2011: 83).

Page 65: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

64

O testemunho narrado e conduzido como uma biografia intelectual, ou como o

próprio Odália destaca, uma autobiografia que visa recompor sua história intelectual,

inicia-se com o nascimento simbolicamente marcado por um encontro significativo em

sua formação. Nasceu em Osasco em 1929 e foi lá que conheceu Décio Pignatari, o

amigo, poeta, ensaísta com quem atuou em algumas peças teatrais, dirigiu outras e

cujo estímulo resultou em um livro de contos. Criou juntamente com Pignatari a

Revista de Novíssimos onde Décio, Augusto e Haroldo de Campos publicaram, a partir

de 1949, os primeiros poemas e traduções que marcariam a poesia concreta.

Enquanto incursionavam pelo mundo intelectual, Nilo Odália fazia o curso Técnico em

Contabilidade, o que o impediu de ingressar na Faculdade de Direito com Pignatari,

levando-o, por falta de opção, já que a Faculdade de Direito e a de Filosofia não

aceitavam alunos egressos dos cursos técnicos, à Faculdade de Ciências

Econômicas. No terceiro ano, contudo, após quase ser reprovado por Alice

Canabrava23 por entregar um trabalho indevidamente repleto de alusões ao Dom

Quixote de La Mancha que estava lendo, deixou a Economia, que tanto lhe causava

desgosto, e passou a cursar Filosofia.

Esse longo percurso de vida, narrado aqui em apenas um parágrafo, deixa de

lado muitas referências de leituras, professores e situações destacadas nas

entrevistas. As rememorações tratam da época da faculdade e do intenso

envolvimento com o teatro, do trabalho na Caixa Econômica e da fase em que Nilo

Odália trabalhou no Museu Paulista. Foi justamente nessa etapa da vida, enquanto

pesquisava no Museu, que Odália recebeu o convite para trabalhar em Assis.

O ano era 1964 e Nilo Odália fora convidado para lecionar na Faculdade de

Assis, um dos Institutos Isolados do interior paulista que contava naquela época com o

curso de Letras criado em 1959 e com o recém-inaugurado curso de História (1962). A

maior missão de Odália em Assis era criar o curso de Filosofia:

Quando eu cheguei lá, em 1965, felizmente eu caí nas graças do Morejón24, que foi um sujeito muito delicado comigo. E, logo em seguida, pediu que eu fizesse um projeto para ampliar os cursos de lá. É que faltava um curso de Filosofia. Então, eu fiz um projeto para a criação de um curso de Filosofia. Idealizei um curso de Filosofia tal como eu achava que devia ser naquela época, saí um pouco dos

23 Alice Piffer Canabrava (1911-2003) foi a primeira mulher a atingir a condição de catedrática na Universidade de São Paulo com tese apresentada na Cadeira X de História Econômica Geral e do Brasil da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas (FCEA) em 1951tendo se aposentado em 1981. Para um estudo detalhado a respeito da trajetória da autora: ERBERELI JÚNIOR, 2014. 24 O catedrático de Língua e Literatura Espanhola Julio García Morejón era Diretor da Faculdade de Assis em 1965. Cf. (SILVA; FERREIRA, 2012).

Page 66: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

65

padrões do que era o curso da Faculdade de Filosofia de São Paulo. [...] o curso de Filosofia deveria ser muito mais dirigido para os outros cursos do que para a formação de pessoal. Não importava que houvesse dez alunos, dois alunos ou um aluno. O interesse era que se fizesse um curso que, na medida do possível, fosse integrado aos outros cursos, como um centro único, de alto nível e muito bem integrado. [...] A tal ponto que, quando fiz, por exemplo, o currículo de Filosofia com bastante História, a importância era exatamente o contato do curso de História com Filosofia e vice-versa. E fazer com que Filosofia também participasse do curso de História. Quando pusemos algumas disciplinas de Letras, ou pusemos Filosofia em Letras, também foi com essa finalidade. (CORRÊA; DIAS, 2011, p. 92-93).

Com essa proposta que entrelaçava os cursos, Odália estava preocupado com

uma oferta de referências mais amplas aos alunos e não somente com o resultado de

uma formação especializada, por essa razão se dedicou à criação dos cursos de

Psicologia em 1966 e Filosofia em 1967, e à reestruturação dos já existentes, Letras e

História. Essa participação ativa na implantação dos cursos em Assis levou-o a se

opor quando da criação da UNESP em 1976, especialmente porque o curso de

Filosofia foi transferido para Marília, desmontando assim, todos os seus esforços de

reformulação das grades curriculares.

Esse episódio, narrado por Nilo em uma das entrevistas, ganhou um tom de

profundo pesar e uma avaliação bastante pessimista a respeito dos rumos que os

cursos tomariam a partir de então. Além disso, alguns anos depois, Nilo Odália

também se transferiria para Araraquara com um profundo desgosto por não conseguir

desfrutar do espaço acadêmico que ajudou a criar:

Em 1976, eu me envolvi nessa luta contra o projeto de reforma e de criação da UNESP. Tive que parar de escrever. Escrevi muito pouco, mas em 1977/1978 já estava terminada a tese, e ela ficou dois anos na gaveta por um motivo burocrático. Ah, isso eu preciso contar, acho que foi um desaforo que um amigo me fez, um desaforo que precisa estar relatado. Eu cheguei para o João de Almeida, que era o diretor na época, em 1978. Falei: "João, eu estou com a tese de Livre Docência pronta. Eu queria defender a tese de Livre Docência aqui em Assis, porque eu fiz toda minha carreira em Assis. Eu queria defender aqui em Assis.” A resposta do João de Almeida: "Não tenho verba para fazer". Eu me senti tão magoado que no dia seguinte eu fui para Araraquara. Pedi transferência para Araraquara. Em Araraquara, o diretor era o professor Francisco Borba. Fui até lá e disse a ele: "Borba eu estou querendo me transferir para cá”. E o Borba consentiu. E eu coloquei para ele: "Acontece o seguinte, eu estou com minha Livre Docência pronta, só preciso dar um final nela, vou imprimir e quero saber se você garante uma banca para eu fazer a Livre Docência". Ele falou: "Nilo pode vir, é mais um livre docente para nós". Eu não tive dúvida. Uns dias depois, eu já estava com meu pedido de transferência. Foi uma coisa que me deixou profundamente magoado, quer dizer, eu tinha ficado doze, treze anos da minha vida

Page 67: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

66

em Assis. Tinha contribuído, acho que fiz uma contribuição. Para mim, foi uma das maiores humilhações, felizmente resgatada pelo Borba em Araraquara. (CORRÊA; DIAS, 2011, p. 96).

A riqueza do Arquivo Nilo Odália vai se construindo entre ausências e

presenças, entre os “dois impossíveis”, aquele do poder absoluto e da recusa, que

cercam o próprio arquivo. Dentre as narrativas de uma vida e os diversos

entrecruzamentos de temáticas enredadas em diálogos institucionais que perpassam a

UNESP, sobretudo, os campi de Assis e Araraquara, mas também a UNICAMP, a

escolha que fiz nesse texto foi estudar as cartas enviadas por José Roberto do Amaral

Lapa a Odalia e sua temática principal: a História da historiografia brasileira.

Adentrando as trocas epistolares: por um conceito de historiografia

[...] eu tinha um plano, um projeto [...] que era fazer uma História da historiografia brasileira [...] (CORRÊA; DIAS, 2011: 95).

O plano de escrever uma História da historiografia começou a se delinear a

partir de 1974 quando Odália deu início à sua tese de livre-docência no Hotel de La

Sorbonne, onde estava a convite do historiador francês Albert Soboul (1914-1982)25.

Odália narra a decisão de iniciar essa empreitada da seguinte forma: "Bom, se eu

quero fazer isso, eu tenho que começar pelo pai. Então, falei: quem é o pai? O pai é

Varnhagen. Então, essa missão é minha porque eu vou fazê-la servir como um

exemplo do que deve ser feito pelos demais.” (CORRÊA; DIAS, 2011: 95, grifos

nossos).

Com a missão definida, Nilo Odália contou com um interlocutor também

dedicado à semelhante empreitada26: José Roberto do Amaral Lapa, professor do

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP (Universidade Estadual de

Campinas) descreve a aproximação com a historiografia em 1976 como um flerte que

estava se transformando em namoro podendo até virar casamento:

25 Em carta de 07 de julho de 1975 Amaral Lapa faz referência à volta de Nilo Odália de Paris a Assis: “pois é, para nosso bem ou nosso mal, há sempre uma volta. Depois de uma temporada em Paris todo burguês que se preza tem uma Assis à sua espera...” (Carta enviada por Lapa a Odália, 07 de julho de 1975, CEDAP). 26 O pesquisador interessado nos diálogos epistolares entre Nilo Odália e José Roberto do Amaral Lapa encontrará 11 cartas trocadas entre 1975 e 1989. Arquivo Nilo Odália – CEDAP (Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa) – UNESP – Campus de Assis. (http://www.assis.unesp.br/#!/cedap---centro-de-documentacao-e-apoio-a-pesquisa/acervo-do-cedap/arquivo-nilo-odalia/).

Page 68: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

67

Quanto aos trabalhos de historiografia brasileira aguardo-os com interesse, gostaria mesmo, caso isso lhe seja possível, de vê-los até antes de publicados, pois me jogaram um curso de Historiografia Brasileira em nosso mestrado em História, o que está me obrigando a transformar o que era um simples flerte em namoro, que talvez até acabe dando em casamento. Até o mês que vem deverá sair alguma coisa que resultou das minhas reflexões nesse terreno. Mandarei a você, pois me interessam as suas críticas. (Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 17 de agosto de 1976, CEDAP).

Ambos estavam interessados em contribuir para o desenvolvimento de estudos

de historiografia brasileira e construíram em torno desse tema uma amizade crítica e

proveitosa. Amaral Lapa descreve de forma espirituosa essa relação mantida

especialmente por meio das trocas de cartas e textos que geralmente resultaram em

mais cartas e outros textos: “devo dizer-lhe que você faz parte do meu ‘colégio

invisível’ (a expressão é de Solla Price27), isto é, do círculo de caras com os quais

transo intelectualmente”. A explicação veio logo a seguir: “Sempre temos esse colégio

que integramos por amizade, afinidade intelectual, e outras milongas, respeitando

naturalmente todas as divergências e até contradições que possa haver nisso tudo”. A

carta é de 9 de agosto de 1977 e encerra um período de discussões em torno de uma

importante obra, por isso, Lapa conclui: “Trocamos separatas, nos xingamos por

cartas e quando um simpósio qualquer permite então a gente se vê e é aquela festa!”

(Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 09 de agosto de 1977, CEDAP).

Essas trocas e a descrição de Amaral Lapa assumem um significado revelador

quando, nessas idas e vindas da correspondência, surge uma carta enviada por

Amaral Lapa em 18 de outubro de 1976 ao “caro Nilo”. Essa carta se refere a outras

duas enviadas por Odália, uma de 25 de agosto, outra de 22 de setembro de 1976 que

trataram, segundo Amaral Lapa, de uma “série de observações críticas aos meus

trabalhos ou mais especificamente de algumas ideias em torno de uma proposta

conceitual que tive a temeridade de fazer em meu último livrinho”. (Carta enviada

por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 18 de outubro de 1976, CEDAP, grifo nosso).

A fragmentação do arquivo me levou das cartas às obras e lá, na estante que

guarda a biblioteca de Nilo Odália, encontrei o “livrinho” A história em questão:

historiografia brasileira contemporânea (LAPA, 1976). Resultado das pesquisas

desenvolvidas por Amaral Lapa no decorrer da década de 1970 e do curso de

Historiografia Brasileira ministrado em 1975, mencionado na carta acima como um

desafio, o livro objetivava “traduzir” o diagnóstico de crise dos estudos históricos no

27 Derek John Solla Price (1922-1983) físico, professor de História da Ciência na Universidade de Yale.

Page 69: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

68

Brasil por meio uma visada quantitativa28, “empírica e informativa” (LAPA, 1976, p.8)

da Historiografia Brasileira.

O arquivo sempre permeado pela ausência, pelo lacunar da materialidade não

dispõe das cartas enviadas por Odália29, mas as seis páginas da carta de 18 de

outubro, quando cruzadas com as obras desses intelectuais, são suficientes para

indicar as discordâncias e as impertinências do “caro Nilo”.

Amaral Lapa inicia a longa missiva lembrando ao amigo Nilo de que suas

reflexões não advêm de obra de teórico ou filósofo da História: “não sou e nem nunca

fui um teórico ou filósofo da História”. Lapa ressalta que seu intuito era nutrir o debate,

ainda muito carente naqueles tempos, sobre a historiografia. Ambos concordavam a

respeito da necessidade de realização de uma avaliação crítica da produção histórica,

mas o cerne da divergência estava no conceito de Historiografia. Amaral Lapa

defendia a necessidade de uma definição mais precisa do conceito: “o que pretendi

com ela [a proposta conceitual] foi emprestar à Historiografia um ritmo analítico

dinâmico, (p. 17 do meu livro), incorporando-lhe, portanto, uma função crítica, o que

naturalmente lhe conferirá uma dimensão epistemológica”. (Carta enviada por

LAPA a ODÁLIA, Campinas, 18 de outubro de 1976, CEDAP, grifo nosso).

Odália identifica certa ambiguidade ao longo do texto de Amaral Lapa. O

filósofo de Assis não considerava tão natural a atribuição de uma dimensão

epistemológica à análise historiográfica e avaliava que o colega historiador da

UNICAMP não percebia com clareza as diferenças dos conceitos de História,

Conhecimento Histórico e Historiografia. Amaral Lapa justifica que, por ter produzido o

texto no decorrer de muitos anos e não possuir uma atenção voltada para as questões

conceituais desde o início, o texto carregaria usos diversos dos conceitos e reproduzia

a confusão já instaurada no discurso dos historiadores brasileiros:

Em outras palavras você aponta na minha proposta uma criação de ambiguidade para o conceito de Historiografia. Ora, repare bem que não foi a minha proposta que levou a essa ambiguidade, que há muito é evidente no discurso do historiador brasileiro. A proposta que

28 Partilho da avaliação realizada por Manoel Luiz Salgado Guimarães acerca de História e de Historiografia: Brasil pós-64 (1985): “O catálogo minucioso de obras e autores criticado por Amaral Lapa em sua definição de historiografia, parece manter-se como princípio, só que agora confeccionado a partir de indicadores que fornecem ao leitor os rumos da produção historiográfica brasileira” (GUIMARÃES, 2005, p. 41) 29 Tais cartas podem ser consultadas no Centro de Memória-UNICAMP (Amaral Lapa foi um dos fundadores desse Centro de Memória) na Coleção José Roberto do Amaral Lapa que está em fase de organização (http://www.cmu.unicamp.br/arqhist/servicos/pesquisar/index.php?acao=pesquisar&tarefa=visualizar&acervo=).

Page 70: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

69

faço tenta justamente eliminar o uso indiscriminado que os cientistas sociais e os historiadores fazem da palavra e do conceito Historiografia. (Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 18 de outubro de 1976, CEDAP).

Amaral Lapa destaca que tais confusões podiam ser debitadas à sua

“deficiência ou descuido pessoal”, mas em nada desgastariam o conceito proposto,

pois acreditava que havia feito uma “opção semântica e epistemológica” e “com ela”

estava se aproximando “de uma Meta-História, ou seja, de uma visão crítica e

interpretativa do conhecimento elaborado pelos historiadores” (Carta enviada por

LAPA a ODÁLIA, Campinas, 18 de outubro de 1976, CEDAP).

Qual era a definição em debate? Voltei à estante e lá estava a definição na

página do livrinho: “[...] vindo Historiografia a ser a análise crítica desse processo de

produção do conhecimento histórico e desse conhecimento, enquanto conhecimento,

isto é, um conhecimento científico que se perfila pelos métodos, técnicas e leis da

ciência histórica.” (LAPA, 1976, p.15).

Os esclarecimentos prestados pelo historiador parecem não ter convencido o

filósofo. Em carta de 9 de agosto de 1977 as discordâncias voltavam a ser tema:

A carta que fiquei devendo era de agradecimento pela leitura crítica que fez da comunicação que apresentei na Venezuela. Aí vai uma cópia do que lá foi distribuído, por onde você poderá verificar que registrei convenientemente as observações críticas que você me fez. Vou ainda futuramente retomar esse trabalho para tentar deixar mais claras algumas ideias e naturalmente discordar de você em vários pontos. (Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 09 de agosto de 1977, CEDAP).

O Arquivo Nilo Odália guarda as cópias do trabalho “Historiografia latino-

americana contemporânea: problemática de suas tendências” escrito por Amaral Lapa

em setembro de 1976 e remetido a Odália em 6 de novembro daquele ano para que “o

caro Nilo” passasse em seu crivo. Tratava-se de um trabalho que, a partir de um

questionário enviado a diversos historiadores dos países da América Latina,

tencionava traçar um perfil latino-americano com o objetivo de “informar os colegas

brasileiros sobre o que se passa em matéria de estudos históricos em nosso

continente” (Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 08 de novembro de 1976,

CEDAP).

Page 71: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

70

O texto, apresentado por Amaral Lapa no II Encuentro de Historiadores

Latinoamericanos30 que se realizou em Caracas na Universidade Central da

Venezuela entre 20 e 26 de março de 1977, partia da seguinte definição de

historiografia:

[...] análise crítica do conhecimento histórico, enquanto conhecimento, de seu processo de produção e da sua utilização na transformação da realidade. Dessa maneira, procura estudar um circuito que vai da ideia à alteração da realidade concreta, na qual esse conhecimento bem como o seu agente gerador podem influir. (LAPA, Historiografia latino-americana contemporânea: problemática de suas tendências, 1976, Arquivo Nilo Odália, CEDAP)

As definições elaboradas por Amaral Lapa para o conceito de Historiografia

colhidas no Arquivo Nilo Odália conduzem a outras divergências. O livrinho A História

em questão buscava traçar o perfil da historiografia brasileira a partir da reunião de

obras contemporâneas e, na avaliação de Odália, compreendia uma segunda grande

falha. Ao lado da ambiguidade conceitual, da falta de uma definição clara e consistente

de Historiografia, Nilo Odália destacou a sua própria ausência. Ele, que ao narrar o

seu percurso intelectual nas entrevistas, reordenou suas escolhas em torno da missão

de fazer uma História da historiografia, não constava na lista de autores arrolados por

Lapa. Os estudos de Odália não se encaixaram no “recenseamento” dividido em

quatro categorias31 e diversas curvas de produção organizadas por Lapa. Quantificar a

30 “em 1974 um grupo de historiadores pertencentes à Universidade Nacional Autônoma do México (Colégio de História e Centro de Investigações Históricas) realizou naquele país, de 15 a 19 de julho de 1974 o I Encuentro de Historiadores Latinoamericanos que marcou o início de um movimento, ao que tudo indica agora institucionalizado e irreversível. [...] Confirmando a vitalidade do movimento iniciado no México, realizou-se de 20 a 26 de março o II Encuentro de Historiadores Latinoamericanos, promovido desta feita pela Universidade Central da Venezuela (Escola de História da Faculdade de Humanidades e Educação), do qual participaram 210 historiadores, total que se distribui em 44 convidados especiais, 10 delegados latino-americanos, 87 delegados venezuelanos e 69 observadores. Participam também das sessões de estudos 100 estudantes venezuelanos”(LAPA, 1978, 164-165). No Arquivo Nilo Odália há uma carta de 12 de setembro de 1983 de Amaral Lapa noticiando o IV Encuentro de Historiadores Latinoamericanos y del Caribe e a nova diretoria da Seção Brasileira da ADHILAC. Cabe destacar que Amaral Lapa foi presidente da Seção Brasileira da ADHILAC. 31 Cabe aqui reproduzir o quadro: “1) Análises gerais qualitativas da produção e/ou das dificuldades dos estudos históricos {A. P. Canabrava, Francisco Iglésias, Nelson Werneck Sodré}; 2) Análise qualitativas setoriais, por temas ou períodos {Caio Prado Júnior, Cecília M. Westphalen, Charles R. Boxer, E. Bradford Burns, Giselda Mota, J. R. Amaral Lapa, Luís Lisanti, Odilon Nogueira de matos, Otávio Tarquínio de Souza, Pedro Moacir Campos, Sérgio Buarque de Holanda, Stanley j. Stein, Thomas Skidmore, Vitorino Magalhães Godinho}; 3) Análise crítica da(s) ideologia(s) da História do Brasil, com propostas de classificação dos historiadores e periodicidade da evolução do pensamento histórico (gerais setoriais){Carlos Guilherme Mota, Emília Viotti da Costa, José Honório Rodrigues, Pedro Alcântara Figueira}; 4) Levantamentos descritivos, gerais ou setoriais, do quadro referencial {Américo Jacobina Lacombe, Eurípedes Simões de Paula, Hélio Vianna}. (LAPA, 1976:22)

Page 72: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

71

historiografia levou Amaral Lapa a excluir o próprio Odália, aquele que almejava

construir uma obra que servisse de modelo para os demais estudos de História da

historiografia.

Solicitado a se explicar, Amaral Lapa justifica a ausência de Odália porque lhe

chamava a atenção naquele momento dois autores que provocariam “um repensar do

quadro historiográfico convencional” (LAPA, 1976, p. 191): Pedro de Alcântara

Figueira com a tese Historiografia brasileira: 1900-1930 (Análise Crítica)32, de 1974, e

Carlos Guilherme Mota com o artigo “A historiografia Brasileira nos últimos quarenta

anos: tentativa de avaliação crítica”33, de 1975.

Esses textos significariam a “ruptura do pacto consensual”, primeiro subtítulo

da quinta parte de A História em questão que apresenta o manifesto: “Para uma

História da Historiografia Brasileira”. Amaral Lapa explica o pacto como uma das

limitações da Historiografia brasileira marcada pelo “caráter repetitivo dos modelos

analíticos, em relação aos perfis e às obras mais significantes, e do arrolamento dos

impedimentos à maior operacionalidade do historiador”. (LAPA, 1976, p. 190)

Os estudos preliminares de Nilo Odália dedicados a Varnhagen até aquele

momento não significaram, para Lapa, a plena ruptura do pacto consensual que

somente seria alcançada a partir de “uma nova proposta teórica substantiva” (LAPA,

1976, p. 191). Os trabalhos de Odália estavam longe dessa avaliação, pois

representavam apenas a necessária “tarefa ingrata” na qual Nilo “se meteu a fazer,

isto é, ir até os monstros sagrados: Varnhagem, Capistrano, Euclides e decifrá-los

(Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 17 de agosto de 1976, CEDAP).

Essa avaliação de Lapa surpreendia Odália. Seu estranhamento diante da

ausência de menção aos seus estudos, conhecidos por Amaral Lapa desde, pelo

menos, 1976, se relacionavam também aos esforços dispensados por ele ao projeto,

partilhado com o colega, de escrever uma História da historiografia por meio da prática

cotidiana de reestruturação de um curso de História em Assis fortemente vinculado à

Filosofia e com a preocupação em formar grupos de alunos de pós-graduação

dedicados a “pensar o fato historiográfico”.

Os esforços de Odália resultaram na tese de Livre-Docência34, As formas do

mesmo, que havia motivado sua transferência de Assis para Araraquara em tempos,

32 FIGUEIRA, Pedro de Alcântara. Historiografia brasileira: 1900-1930. Assis: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, tese de História, 1974, mimeo. 33 MOTTA, Carlos Guilherme. A historiografia brasileira nos últimos quarenta anos: tentativa de avaliação crítica. Debate & Critica, São Paulo, n.5, mar, 1975. 34 Em carta de 07 de agosto de 1979 Amaral Lapa responde que não poderá compor a banca de livre-docência de Odália e expressa sua preocupação com os rumos da universidade:

Page 73: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

72

politicamente descritos por Odália como: “nós de um lado, [...] e do outro lado estava a

ditadura”. Vencido em sua oposição contra a criação da UNESP, Odália participou das

articulações para a criação da Associação dos Docentes da UNESP, da qual foi

presidente entre 1978 e 198035. Sua militância como presidente da Associação visava

evitar as demissões de professores provocadas pela reestruturação dos Institutos

Isolados: “foi um dos trabalhos maiores que eu tive”, relata Odália em uma das

entrevistas. (DIAS; CORRÊA, 2002, p. 17, CEDAP). O trabalho a respeito de

Varnhagen foi finalizado nesse período conturbado em meio a vários enfrentamentos

político-institucionais.

Ao sair das caixas que guardam as cartas e dos arquivos das entrevistas, volto-

me, novamente, para a estante do Arquivo Nilo Odália para encontrar As formas do

mesmo. A tese de Livre-Docência “As formas do mesmo: um estudo de historiografia”,

defendida em 1979, foi publicada somente em 1997, mesmo com um pedido de

Amaral Lapa para editá-la ainda em 1978: “agora falo como editor, gostaria que se

você transformar mesmo em livre-docência, depois que passar pelo torneio,

reservasse o original para a coleção que vou dirigir para a Vozes” (Carta de LAPA a

ODÁLIA, Campinas, 27 de fevereiro de 1978, CEDAP). Esse dado é fundamental para

a compreensão da avaliação dos estudos de historiografia que o livro36 carrega.

Odália considera que os ensaios existentes até o final da década de 1970, época da

conclusão do estudo, apenas afloravam a problemática da história da historiografia,

“deixa-me aproveitar [...] para mandar-lhe esse rápido bilhete. Rápido por que não pretendo contribuir para perturbar ainda mais seus preparativos para a livre-docência. Fui à Consultoria Jurídica, aqui da UNICAMP, e eles me confirmaram o que eu já sabia e havia lhe dito: não posso fazer parte de sua banca. Não sou considerado o equivalente a Professor Titular. Já aconteceu isso anteriormente, pois fui convidado a participar das bancas de livre-docência do Luiz Palacin (Goiás), Carone (aí de Araraquara) e Carlos Guilherme e não foi possível aceitar por esse motivo”. É claro que estas coisas me preocupam, pois como conversamos a partir do Projetão do ano passado começou a haver um achatamento salarial que crescerá evidentemente com o tempo. Não acharia isso errado, se ele não se baseasse num critério único, que é o de privilegiar o título universitário só, estimulando o carreirismo, particularmente num país em que o valor dos concursos acadêmicos é bastante discutível (Carta enviada por LAPA a ODÁLIA, Campinas, 07 de agosto de 1979, CEDAP). 35 “Eu sempre digo três coisas, eu infelizmente conheci meus professores e meus colegas em três níveis: como professor, como presidente da Associação dos Docentes [da UNESP] e como diretor, e esse conhecimento foi horrível. Você conhece as pessoas de forma diversa como colega é uma coisa, como presidente da Associação é outra e como diretor é outra e, especialmente aqui na reitoria. É horrível” (DIAS, Márcia Regina Tosta; CORRÊA, Anna Maria Martinez. Entrevista de Nilo Odália para o Projeto Uma Universidade Multicampi no interior paulista. Memória e História da criação da Unesp e de seus primeiros anos de funcionamento (1976 – 1984). Uma contribuição ao Arquivo de História Oral do CEDEM, 14/04/2002, p. 17, CEDAP). 36 Não analisei de maneira mais detida a obra As formas do mesmo porque privilegiei tratar das cartas disponíveis no Arquivo Nilo Odália. No entanto, saliento a importância de uma análise que cotejasse a tese e o livro e estabelecesse o cruzamento dessas com a biblioteca do autor que também compõe o Arquivo.

Page 74: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

73

mas deixavam de considerar a historiografia brasileira como uma “experiência passível

de ser pensada por si mesma, e não por suas vinculações, estruturais, sem dúvida,

com fenômenos gerais como o capitalismo, o imperialismo etc.” (ODÁLIA, 1997, p. 13).

O que interessava a Odália era demonstrar certa autonomia da historiografia nacional

que decorreria de uma experiência singular e, por esse motivo, a historiografia deveria

ser estudada como um “estilo de pensar o fato brasileiro” (ODÁLIA, 1997, p. 13,

grifo nosso). Para ele, o caminho seria estudar o pensamento historiográfico de

Varnhagen a partir de um método. Saindo da obra e voltando às entrevistas, encontro

longas explicações das escolhas teóricas norteadoras da interpretação que Odália fez

de Varnhagen:

Feita essa escolha (Varnhagen), eu precisava de um método, eu estava procurando um método. "Mas, como é que eu vou fazer?". Há uma coisa que eu sempre desconfiei no marxismo, consciente ou inconsciente: todos os livros de história, do pensamento, no fundo eles eram sempre tautológicos. No fundo eles chegavam sempre aos mesmos pontos. Já se partia de onde se queria chegar para demonstrar o que tinha que ser demonstrado. E isso sempre, de certa maneira, me irritou muito. É que muitas pessoas tomavam Marx de forma muito elementar e achavam que era só aplicar aquilo e ponto final. Veja os próprios livros de Nelson Werneck Sodré, que sempre me irritavam. Eu sempre gostei do Nelson Werneck Sodré. É contraditório isso que eu estou dizendo, mas sempre me irritava porque o linguajar dele, a forma como ele dizia as coisas, descobria ou levantava certas coisas, muito interessantes, mas ele não dava continuidade porque ele estava querendo fazer uma demonstração de uma tese. A Formação Histórica do Brasil é um livro gostoso de se ler, mas se lido com atenção, constata-se que não tem nenhum rigor científico: o uso de expressões como semi-feudal, o semi-não-sei-o-quê e o semi-não-sei-lá, isso não dá para engolir! E depois, é a mesma coisa de você ler o Jorge Amado de Jubiabá. Os comunistas são sempre bonzinhos. É irritante! Eu li o Jorge Amado aos dezessete anos, me irritava ver que o cara era sempre o comunista e era sempre o bonzinho, o cara era sempre ruinzinho, quer dizer, um esquema muito à flor da pele. Nelson Werneck tem isso. Então, isso sempre me irritou. (CORRÊA; DIAS, 2011, p. 96).

Com o objetivo de abandonar essa leitura “simplista” do marxismo, Odália

estudou Varnhagen segundo a chave de leitura proposta pela filosofia crítica de Lucien

Goldmann (1913-1970) buscando escapar do esquema de análises de obras como

reflexo da realidade social.

A minha descoberta de Goldman foi através do Le dieu cachê, que eu ainda considero um grande livro. Para mim foi um livro fundamental. É claro que, no meu caso, o objetivo era Varnhagen que eu tinha como projeto fazer uma história da Historiografia. Eu queria que também, na História da Historiografia, houvesse uma

Page 75: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

74

metodologia única. E eu achava muito conveniente, muito interessante essa metodologia do Goldmann. Então, eu analisei o Varnhagen nesse sentido e, eu acho que fui feliz, dentro das possibilidades de encontrar uma estrutura significativa na obra dele: Estado, nação, povo brasileiro, homem branco brasileiro. (CORRÊA; DIAS, 2011. p. 96).

Para Odália, um estudo de historiografia estava, necessariamente, atrelado ao

desenvolvimento de um método, uma “metodologia única” para a História da

historiografia. Sua ambição de criar um modelo se deu a partir do encontro com o

estruturalismo. Esse encontro iniciado com a leitura de Claude Lévi-Strauss (1908-

2009) e Ferdinand Saussure (1857-1913) levou-o a “verificar que aquelas explicações

[...] eram muito mais satisfatórias sobre as coisas do que as outras” (CORRÊA; DIAS,

2011. p. 94). Esse caminho escolhido por Odália para pensar a historiografia, descrito

apenas nas entrevistas, pode indicar as motivações para as reiteradas discordâncias

acerca do conceito de historiografia de Amaral Lapa.

De um lado, as cartas de Amaral Lapa anunciam a ausência de estudos de

Historiografia e a condição para supri-la, ou seja, a necessária criação de um conceito

de Historiografia para quantificar a produção com o intuito de traçar perfis e

tendências, de outro, Odália anuncia a inconsistência teórica do conceito elaborado

por Lapa e define um plano teórico-metodológico a partir do estruturalismo de

Goldmann para servir de modelo para a História da Historiografia.

Embora em uma visada mais geral, Amaral Lapa e Nilo Odália possam ser

agrupados como autores que se ocuparam nas décadas de 1970 e 1980 com a

História da historiografia (GUIMARÃES, 2005)37, pois ambos enfatizaram a

importância da historiografia como parte da disciplina histórica, a pesquisa no Arquivo

Nilo Odália permite afirmar que esses arautos da História da historiografia não

partilhavam de um mesmo conceito de historiografia e disputavam espaços para

projetos de estudos distintos. Amaral Lapa almejava vê-la como uma área de

especialização que figurasse em suas tabelas e quadros ao lado da História Política,

Social, Econômica e Cultural, enquanto Odália projetava “pensar o fato historiográfico”

brasileiro a partir de um modelo único de análise a fim de compreender a singularidade

desta experiência.

37 Manoel Luís Salgado Guimarães destaca que a “tarefa da historiografia” foi definida pelos autores como aquela capaz de “fornecer subsídios para uma história das ideologias”. Dessa forma, a “chave de leitura” para os textos historiográficos seria identificar neles “um processo de construção de uma ideologia política, como parte de um processo social de dominação” (2005, p. 42).

Page 76: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

75

Em meio a tantas ausências e construções de presença, o Arquivo Nilo Odália

guarda esse intrincado jogo de avaliações e de propostas para a Historiografia e

permanece como um convite a novas pesquisas.

REFERÊNCIAS

ANHEZINI, Karina. Diálogos epistolares entre Nilo Odália e Amaral Lapa: para uma história da historiografia brasileira. In: 7º SNHH - Seminário Brasileiro de História da Historiografia, 2013, Mariana. Anais do 7º SNHH - Seminário Brasileiro de História da Historiografia. Ouro Preto: EDUFOP, 2013. p. 1-10.

ANHEZINI, Karina. Arautos da História da historiografia: as disputas por um conceito de historiografia nas cartas de Amaral Lapa enviadas a Nilo Odália. Patrimônio e Memória. São Paulo, Unesp, v. 11, n.1, p. 4-21, janeiro-junho, 2015.

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, nº 21, p. 9-34,

1998.

CORRÊA, Anna Maria Martinez; DIAS, Márcia Regina Tosta. Entrevista com o professor Nilo Odália, Cadernos CEDEM, v. 2, n. 1, p. 83-97, 2011. Disponível em: http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/cedem/article/view/689. Acesso em: 25 abril 2013.

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

ERBERELI JÚNIOR, Otávio. A escrita da história entre dois mundos: uma análise da produção de Alice Piffer Canabrava (1935-1961). Dissertação de Mestrado em História UNESP, Assis, 2014.

FIGUEIRA, Pedro de Alcântara. Historiografia brasileira: 1900-1930. Assis: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Tese de História, 1974, mimeo.

FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o Arquivo de Gustavo Capanema. Estudos Históricos, nº 21, p. 59-87, 1998.

GALVÃO, Walnice Nogueira. A margem da carta. Manuscrítica: Revista de Crítica Genética, nº 7, p. 47-57, 1998.

_______ e GOTLIB, Nádia Battella. (orgs.). Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

GOMES, Ângela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. Estudos Históricos, nº 21, p. 121-127,1998.

______. (org.) Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

Page 77: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

76

GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e cultura histórica: notas para um debate. Ágora, Santa Cruz do Sul, v. 11, nº. 1, p. 31-47, jan./ jun. 2005. LAPA, José Roberto do Amaral. A história em questão: historiografia brasileira contemporânea. Petrópolis, Vozes, 1976.

LAPA, José Roberto do Amaral. América Latina: o modo de produção do conhecimento histórico, Ciência e Cultura, São Paulo, 30, 12, dez. 1978.

MALATIAN, Teresa. Narrador, registro e arquivo. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 195-222.

MOTTA, Carlos Guilherme. A historiografia brasileira nos últimos quarenta anos: tentativa de avaliação crítica. Debate & Critica, São Paulo, n.5, mar, 1975.

ODÁLIA, Nilo. 500 anos depois. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 6, n. 10, p. 21-32, 2001. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/estudos/article/view/178. Acesso em: 30 abril 2013.

ODÁLIA, N. As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Ed. UNESP, 1997.

ODÁLIA, N. Introdução. In: VARNHAGEN, F. A. de. Varnhagen: história. São Paulo: Ática, 1979.

RIBEIRO JÚNIOR, José. Memórias de um profissional de história. História da historiografia, Ouro Preto, nº. 11, p. 33-44, abril de 2013.

ROUDINESCO, Elisabeth. A análise e o arquivo. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

SILVA, Zélia Lopes; FERREIRA, Sandra Aparecida (org.). A trajetória da Faculdade de Ciências e Letras de Assis nos desafios educacionais do ensino superior: entre o passado e o futuro. Assis: UNESP-Campus de Assis, 2012. Disponível em: http://www2.assis.unesp.br/fcl/livro/#/114/. Acesso em: 09 jun. 2013.

VENÂNCIO, Giselle Martins. Presentes de papel: cultura escrita e sociabilidade na correspondência de Oliveira Vianna. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n 28, p. 23-24, 2001.

Page 78: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

77

7

Nem anjos, nem demônios: o trabalho com arquivos pessoais de intelectuais

brasileiros no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP

Elisabete Marin Ribas

IEB – USP

Introdução

O presente texto deseja trazer à tona, questões que já foram previamente

abordadas por Ana Maria de Almeida Camargo no clássico artigo “Arquivos pessoais

são arquivos”, Angela de Castro Gomes, no texto “Nas malhas do feitiço: o historiador

e os encantos dos arquivos privados” e “ ´Atenção: verdade!´ Arquivos privados e

renovação das práticas historiográficas”, de Christophe Prochasson. Não por acaso,

os dois últimos estudos são publicações oriundas do Seminário Internacional sobre

Arquivos Pessoais38. Cerca de vinte anos depois, o VIII Encontro CEDAP "Acervos de

Intelectuais: Desafios e Perspectivas", novamente reúne especialistas e instituições

para abordarem os mesmos desafios. Os temas permanecem semelhantes e o

presente estudo busca, a partir do diálogo com os referidos textos, trazer exemplos

práticos, considerando os atuais desafios da nossa “era da informação”39.

Em busca da imparcialidade

O título do presente trabalho inspira-se num best-sellers de Dan Brown, Anjos e

Demônios40. No livro, o personagem principal, Robert Langdon, professor de

iconologia religiosa e história da arte na Universidade de Harvard é convocado pelo

Vaticano, para desvendar o roubo de um artefato científico, chamado antimatéria -

denominado como “a partícula de Deus”. Valores conflituosos como ciência versus

38 Evento promovido pelo CPDOC-FGV em parceria com o Instituto de Estudos Brasileiros – IEB / USP em novembro de 1997. 39 Termo utilizado por Manuel Castels (1999): “(...) logo que se propagaram e foram apropriadas por diferentes países, várias culturas, organizações diversas e diferentes objetivos, as novas tecnologias da informação explodiram em todos os tipos de aplicações e usos que, por sua vez, produziram inovação tecnológica, acelerando a velocidade e ampliando o escopo das transformações tecnológicas, bem como diversificando suas fontes. Um exemplo nos ajudará a entender a importância das consequências sociais involuntárias da tecnologia. (...) a Internet (...).” (CASTESL: 1999, p. 44) 40 O livro foi adaptado para o cinema em 2009. O objetivo do presente estudo não é analisar a qualidade da literatura, mas sim, dialogar com a dicotomia do título.

Page 79: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

78

religião passam a gerar uma série de crimes. Inicialmente, o inimigo declarado são os

Illuminati, antiga fraternidade que discordava das ideias da Igreja Católica e do Antigo

Regime. Eles teriam se infiltrado no Vaticano, assassinado o Papa, e estariam

manipulando o novo conclave. O livro faz jus ao gênero romance policial, e durante

todo o enredo o leitor é induzido a desconfiar de cada personagem envolvido, vindo

apenas nas páginas finais saber realmente quem é o “mocinho” e quem é o “bandido”.

A oposição anjos versus demônios repousa em se apresentar padres e cardeais –

teoricamente personagens imbuídos de valores altruístas, praticantes do bem e

seguidores de Deus - como possíveis assassinos. O “mal” traveste-se de “bem” por

meio de personagens alegorizados. E assim, o leitor ou os ama ou os odeia.

Se, na ficção mais simplista, é possível separar o personagem de índole boa

daquele de índole má, na vida real isso não é tão simples assim. Ninguém é bom por

inteiro ou mal por inteiro41; não existem verdades ou mentiras absolutas. Em outras

palavras, não existe apenas um ponto de vista. Eis aqui o ponto que buscamos

abordar no presente trabalho: os titulares de arquivos pessoais não podem ser vítimas

dessa dicotomia, pois são seres humanos como todos, carregando um universo infinito

dentro de si. Acima de tudo, são homens e mulheres com suas alegrias e tristezas,

idiossincrasias, manias, traumas, medos, realizações, ganhos e perdas. Ora, se o ser

humano fosse algo simples de se interpretar, por que teríamos tantas disciplinas

voltadas para seu exame: Antropologia, Sociologia, Psicologia, Filosofia? A lista é

longa, e hoje já se compreende a necessidade da contínua interação entre áreas de

estudo na busca de uma análise imparcial da matéria humana. Leitor, seja bem-vindo:

os arquivos pessoais são um profícuo laboratório para a aplicação dessa empreitada.

Dasafio 1 – Múltiplos personagens em uma única vida

Em uma guerra não se matam milhares de pessoas. Mata-se alguém que adora espaguete, outro que é gay, outro que tem uma namorada. Uma acumulação de pequenas memórias... Cristian Boltanski42

Cristian Boltanski é um artista plástico, fotógrafo e cineasta francês. Foi

escolhido aqui pois seu trabalho, apesar das múltiplas linguagens que usa, tem uma

linha central predominantemente marcada por uma preocupação com o que ele chama

41 Aqui, fazendo-se a devida ressalva da relatividade presente em conceitos de bondade e maldade. Pela complexidade desses conceitos, usamo-los apenas para mostrar dois polos de uma mesma questão, sem analisá-los profundamente, por um viés filosófico como se deveria. 42 Retirado do filme Nós que aqui estamos, por vós esperamos. Documentário brasileiro de Marcelo Masagão. 1999.

Page 80: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

79

de reposicionamento da identidade e da reavaliação do percurso de vida individual

perante momentos históricos de grande impacto civilizacional, como as guerras. A

memória histórica do Holocausto, por exemplo, é um dos temas que mais se

apresenta em suas obras. A título de ilustração, vejamos a instalação Os habitantes do

Hôtel de Saint- Aignan em 1939.

Figura 1: Os habitantes do Hôtel de Saint- Aignan em 1939

Fonte: Museu de Arte e História do Judaísmo, da França.

http://catalogue.mahj.org/collec.php?q=1&o=0, acessado em 25/09/2016.

Page 81: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

80

Figura 2: Detalhe - Os habitantes do Hôtel de Saint- Aignan em 1939

Fonte: Museu de Arte e História do Judaísmo, da França.

http://catalogue.mahj.org/collec.php?q=1&o=0, acessado em 25/09/2016.

A partir do detalhe selecionado, sabemos que os nomes estão

intencionalmente acompanhados das funções e profissões de cada indivíduo ali

representado: Zysman Wenig – alfaiate; Lazare Zolty – estudante; Raymond

Friedmann – relojoeiro; Anna Scheidecker – porteira da propriedade; Mordka

Rosencweig – joalheiro.

Em concordância com a epígrafe selecionada no presente tópico, a obra vem

nos mostrar que, para além de números em uma guerra, cada indivíduo morto traz

uma história própria. Isso nos remete aos arquivos pessoais. Nos acervos

documentais guardados em instituições como o IEB – Instituto de Estudos Brasileiros

da USP -, estão depositados conjuntos de papéis, imagens e objetos que narram uma

vida permeada de múltiplas funções. O mesmo titular de um fundo pessoal pode ser

geógrafo, advogado, pai, esposo, órfão, cidadão, professor, enfermo, sonhador.... a

lista de atributos é infinita.

O que nos cabe, como técnicos que processam as massas documentais, e

como pesquisadores, que acessam os documentos é, como diria Angela de Castro

Gomes, não nos deixarmos cair nas “malhas do feitiço”:

Joalheiro

Page 82: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

81

Se fomos praticamente contemporâneos do movimento de utilização crescente de fontes privadas, também o fomos da tentação de “cair nas malhas do feitiço” dessas verdadeiras encantadoras fontes. [...] [...] Por guardar uma documentação pessoal, produzida com a marca da personalidade e não destinada explicitamente ao espaço público, ele revelaria seu produtor de forma ‘verdadeira”: aí ele se mostraria “de fato”, o que seria atestado pela espontaneidade e pela intimidade que marcam boa parte dos registros. A documentação dos arquivos privados permitiria, finalmente e de forma muito particular, dar vida à história, enchendo-a de homens e não de nomes, como uma histoire événementielle. Homens que têm a sua história de vida, as suas virtudes e defeitos e que os revelam exatamente nesse tipo de material. (GOMES: 1998, p. 125).

E como podemos nos proteger desse envolvimento com a personalidade da

pessoa ali depositada? Afinal, a voz que se desprende dos arquivos pessoais, tal

como o canto da sereia nos ouvidos dos marinheiros inocentes, pode nos levar a

grandes naufrágios. Afinal a imagem da uma vida que lá se esboça impõe-se com

força arrebatadora, no mais das vezes determinando as interpretações. Uma possível

saída deve apoiar-se no rigor do trabalho de organização e no respeito aos princípios

arquivísticos: uma classificação documental dirigida por um quadro de arranjo

funcional e adequada descrição documental. Tudo isso voltada para a abertura plena

da consulta pública.

O técnico que trabalha com os documentos precisa ter ciência de que a voz

ouvida nos documentos de um titular de fundo pessoal é uma dentre muitas. O ponto

de vista de um único personagem, na maioria dos conjuntos ali depositados. Ela deve

ser contextualizada no tempo e no espaço. Além disso, os testemunhos e momentos

de um indivíduo estão inseridos num quadro político, econômico e social mais amplo

que os problematizam.

Desafio 2 – Descrever e não interpretar

Façamos um exercício43: a partir de um único documento retirado de um fundo

pessoal salvaguardado no Arquivo do IEB, seria possível antever as atividades de seu

titular?

Vamos lá! Escolhamos um cartão postal, que estampa a imagem de um ex-

lider político da Alemanha:

43 Na apresentação original realizada no VIII Encontro do CEDAP: Acervos de Intelectuais: desafios e perspectivas (2016) foram realizados exemplos com os arquivos pessoais de Anita Malfatti, Caio Prado Jr. e Mário de Andrade. Aqui, por questões de espaço, o exercício se concentrará em um único fundo, que será explicitado adiante.

Page 83: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

82

Figura 3: Cartão postal com retrato de Adolf Hitler.

Fonte: Arquivo IEB – USP – Fundo Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, código do documento

ACGR-CPO-0208-1.

O cartão encontra-se no Fundo Aracy de Carvalho Guimarães Rosa. Aracy

viveu de 1908 a 2011; ela foi a segunda esposa do escritor João Guimarães Rosa; a

ela foi dedicado Grande sertão: veredas. Rosa e Aracy se conheceram na Alemanha e

retornaram ao Brasil juntos, onde permaneceram casados até a morte do escritor, em

1967.

Tendo residido na Alemanha e preservado um cartão-postal com a imagem de

Hitler, podemos supor que ela era adepta dos valores nazistas; ademais, este não é o

único exemplar do gênero na sua coleção de mais de 1.000 postais. A primeira

pergunta que nos passaria pela cabeça seria: por que alguém guardaria o cartão de

um homem que causou tanto mal? Pergunta ainda mais desconcertante quando

tomamos conhecimento por outras fontes, que a titular não só era contra o regime

nazista, como tornou-se a única brasileira que recebeu até o momento recebeu o título

de Justa, honra atribuída pela comunidade judaica às pessoas que apoiaram a saída

de judeus da Europa durante o holocausto. Entretanto, não há registro algum de sua

posição política ou de suas ações anti-regime nazista em seu arquivo pessoal. Talvez

seja por isso que ela escapou de uma retaliação em solo nazista.

Seu arquivo não reflete a história completa ao visitante ingênuo circunscrito aos

conteúdos e não aos contextos. Christophe Prochesson nos alerta para isso:

Page 84: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

83

Essa pressa em apontar o autêntico na fonte pessoal, como se esta refletisse um desnudamento do humano, faz parte de um discurso ingênuo sobre os arquivos privados. Encontramos vestígios disso, por exemplo, num manual dedicado ao assunto: “Assim os arquivos privados, espelho verdadeiro da vida de seus autores [...]”. (PROCHESSON: 1998, p. 114)

Vemos assim dois erros primários que em geral acometem técnicos e

pesquisadores que trabalham com arquivos: um documento autêntico não traz

necessariamente um conteúdo verdadeiro. Precisamos aguçar esse olhar externo e

parcial. E como fazê-lo? Ana Maria de Almeida Camargo nos alerta:

O foco na informação traz, mais uma vez, a presença forte e equivocada da biblioteconomia na formulação de normas de descrição para arquivos. O primado do conteúdo na elaboração de instrumentos de pesquisa, no entanto, é resquício também de outro equívoco: a suposição de que, na fase permanente, os arquivos perdem suas funções primárias, não havendo justificativa para mantê-los atrelados a uma racionalidade que não é mais praticada. Se no âmbito dos arquivos institucionais a questão parece resolvida há muito, contribuindo para reforçar os conceitos e princípios da área, no caso dos arquivos de pessoas sucede o contrário. (CAMARGO: 2009, p. 31)

Desafio 3 – A classificação nos arquivos pessoais

Submetidos a abordagem bibliográfica, os documentos dos arquivos pessoais são tratados como se desfrutassem de autonomia de significado, razão por que não apenas vêm descritos individualmente como ainda se conformam a regras universais de referência (autor, título, assunto etc.). Ana Maria de Almeida Camargo (2009.p. 30).

Apesar das histórias individuais serem únicas, assim como o estatuto de um

documento de arquivo, a epígrafe nos lembra de mais um dos desafios a superar

quando tratamos de arquivos pessoais. O documento precisa ser contextualizado e

não analisado de forma isolada ou temática. Mesmo de natureza pessoal, o conjunto

documental, seja ele, institucional ou pessoal, deve ser tratado como um arquivo e

seus documentos, segundo as definições clássicas como a arquivologia o

compreende:

Os documentos de arquivo são os produzidos por uma entidade pública ou privada ou por uma família ou pessoa no transcurso das funções que justificam sua existência como tal, guardando esses documentos relações orgânicas entre si. Surgem, pois, por motivos

Page 85: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

84

funcionais administrativos e legais. Tratam sobretudo de provar, de testemunhar alguma coisa. (BELLOTTO: 1996, p. 37)

Assim, lembremos que o estatuto fundamental de um arquivo é salvaguardar

documentos que se originam das atividades de seu produtor, com a função primária de

prova. A complexidade do arquivo pessoal é exatamente o modo de acumulação

sujeito a critérios não claramente definidos pelo seu produtor. A coleção de cartões-

postais de Aracy de Carvalho nos mostra que, para além do conteúdo das imagens

dos cartões-postais, estão imiscuídas ali, nas mensagens dos destinatários, as

relações sociais de uma mulher, que podem tanto representar trocas profissionais,

familiares ou de amizade.

O reduto do indivíduo incluiria, em meio àquelas que o vinculam a instituições sociais de latitude variável (a escola, a igreja, o local de trabalho, o partido político, a família), inúmeras ações juridicamente irrelevantes cujas regras e fórmulas são menos visíveis: relações de amizade e amor, opções intelectuais, obsessões, hobbies e tantas outras. Aquilo que nos arquivos institucionais se evidencia a partir de espécies convencionais bem conhecidas, nos arquivos de pessoas ainda aguarda definição para que sua funcionalidade seja perfeitamente identificada. (CAMARGO: 2009, p. 35).

Tal funcionalidade pode ser estabelecida por meio do quadro de arranjo do

arquivo pessoal, que deve apresentar ao pesquisador as principais atividades

desenvolvidas em vida pelo seu titular. A cada atividade, atrela-se o documento,

buscando mostrar a organicidade da reunião.

Como exemplo, segue a primeira versão do quadro de arranjo do Fundo de

Alice P. Canabrava, também sob a guarda do Arquivo IEB – USP. Vejamos o que é

possível apreender sobre sua titular a partir da classificação que exerceu em vida:

Page 86: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

85

44

44 Quadro de arranjo elaborado por Otávio Erbereli Jr.

AAlliiccee PP.. CCaannaabbrraavvaa

FFOORRMMAAÇÇÃÃOO

IIDDEENNTTIIDDAADDEE CCIIVVIILL

RREELLAAÇÇÕÕEESS SSOOCCIIAAIISS

VVIIDDAA DDOOMMÉÉSSTTIICCAA EE FFAAMMIILLIIAARR

GGIINNÁÁSSIIOO

CCOORRRREESSPPOONNDDÊÊNNCCIIAA

FFIINNAANNÇÇAASS

GGuuiillhheerrmmee AAhhllbbeerrgg

SSAAÚÚDDEE

AA IInnddúússttrriiaa ddoo AAççúúccaarr nnaass IIllhhaass IInngglleessaass ee FFrraanncceessaass ddoo MMaarr

ddaass AAnnttiillhhaass,, 11669977--11775555

OO AAççúúccaarr nnaass AAnnttiillhhaass,, 11669977--11775555

OO CCoomméérrcciioo PPoorrttuugguuêêss nnoo RRiioo ddaa PPrraattaa,, 11558800--11664400

AA GGrraannddee LLaavvoouurraa -- aarrttiiggoo eemm ccoolleettâânneeaa

HHiissttóórriiaa ee EEccoonnoommiiaa -- aarrttiiggoo eemm ppeerriióóddiiccoo

TTeerrrraass ee EEssccrraavvooss -- aarrttiiggoo eemm ccoolleettâânneeaa

RRootteeiirroo BBiibblliiooggrrááffiiccoo ddaa HHiissttóórriiaa ddoo BBrraassiill -- ccoommuunniiccaaççããoo eemm

AAnnaaiiss

AAssssoocciiaaççããoo ddooss GGeeóóggrraaffooss BBrraassiilleeiirrooss -- AAGGBB

FFuunnddaaççããoo IInnssttiittuuttoo ddee PPeessqquuiissaass EEccoonnôômmiiccaass --

FFIIPPEE

FFEEAA -- UUSSPP

Page 87: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

86

Como dito, trata-se de uma primeira versão e muitos dos grupos e subgrupos

apresentados poderão sofrer alterações a partir de novos documentos encontrados45.

Até o momento, a documentação processada apresenta uma intelectual brasileira que

se dedicou principalmente às pesquisas em História Econômica, mas que também

circulou pela Geografia e pela Economia. Pelo pioneirismo de suas pesquisas,

optamos, por ora, por destacar a carreira acadêmica e a produção intelectual como

grupos do mesmo estatuto hierárquico do grupo Formação. Entretanto, sabemos que

logicamente eles poderiam estar inseridos e hierarquizados entre si.46

Além disso, ela tinha contas a pagar, submetia-se a tratamentos médicos e

interagia com pessoas próximas como Guilherme Ahlberg de quem ainda coletamos

maiores informações a fim de delimitar seu papel e atuação junto à titular. Por fim,

apesar de encontrarem-se suas cartas separadas dos demais documentos – em

Correspondência -, elas devem também ser classificadas, segundo sua função. Não

se trata de um trabalho simples, mas no caso do Arquivo do IEB – USP, valemo-nos

de ferramentas informatizadas para a elaboração de nossos instrumentos de pesquisa,

de modo que o cruzamento de dados seja facilitado.47

Considerações finais

Os titulares dos arquivos pessoais não são anjos nem demônios. São pessoas

comuns que, por meio de seu legado documental, nos inspiram a fazer algo diferente

na e pela História Brasileira. Ao mesmo tempo, influenciam em nossos cotidianos,

sejam como mães e pais, admiradores de gatos o cachorro, atletas despretensiosos,

colecionadores, narradores de histórias vivendo as alegrias e tristezas de nosso dia-a-

dia.

45 É importante ressaltar que o quadro de arranjo não apresenta uma pesquisa biográfica. Apesar da pesquisa biográfica ser uma atividade indispensável no trabalho com arquivos pessoais, o quadro de arranjo remete a documentos existentes no arquivo do titular, afinal, não cabe à arquivologia ir em busca de dados faltantes e complementar conjuntos. 46 Talvez esse seja um indício de nossa não neutralidade na classificação. Provavelmente já tenhamos caído no feitiço da vida de Alice P. Canabrava. 47 No caso do Arquivo IEB – USP, foi desenvolvido um sistema denominado como SGA – Sistema de Gerenciamento de Arquivos/Acervos, que tenta, por meio da tecnologia, considerar as especificidades dos arquivos pessoais, mantendo vocabulários controlados de tipos documentais, referências onomásticas, localidades etc. Ele apresenta ferramentas de gestão de etiquetas para unidades de armazenamento e controle de agrupamentos para cada acervo de forma individualizada, mas com buscas inter-relacionais. A experiência de implementação encontra-se registara em RIBAS, E. M. O sistema de gerenciamento de acervos do IEB USP. In: II Seminário Internacional – Arquivos de Museus e pesquisa: tecnologia, informação e acesso. São Paulo: GT – Arquivos de Museus e Pesquisa, 2013.

Page 88: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

87

Não cabe ao corpo técnico, que é responsável pelo tratamento documental

desses arquivos, a aplicação de procedimentos subjetivos. É por uma classificação

documental baseada na metodologia arquivística e mantendo a consciência de que os

arquivos pessoais são, antes de tudo, arquivos, que forneceremos as ferramentas

necessárias ao pesquisador para o acesso e, consequentemente, o desenvolvimento

de pesquisas a partir dessa documentação. Como nos lembra Ana Maria Camargo:

A fim de garantir lastro às diferentes possibilidades de interpretação que a leitura de seu conteúdo pode suscitar ao longo do tempo, os arquivos de pessoas devem ser tratados como arquivos, isto é, devem ficar ancorados ao contexto em que foram produzidos. Quando se subverte essa relação, ou seja, quando o potencial de uso, tomado em sua inesgotável e imponderável magnitude, entra como componente do tratamento dos arquivos, substituindo as ações que justificaram sua produção, os documentos perdem o efeito de representatividade que os singulariza. Em outras palavras, perdem sua função probatória original, abrindo espaço para que, por efeito metonímico, recaiam sobre eles as propriedades de um universo que lhes é absolutamente estranho e com o qual não mantêm relações de reciprocidade. Além de induzir a erro, o uso desse material pelo pesquisador corre, assim, o risco de se converter em ornamento ou, na melhor das hipóteses, em mero exercício especulativo. (CAMARGO: 2009, p. 36-37)

REFERÊNCIAS

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Arquivos Pessoais são Arquivos. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, n. 45, p-26-39, 2009.

CASTELS, Manuel. A sociedade em rede. – A era da informação: economia, sociedade e cultura; vol. 1. São Paulo: Paz e terra, 1999.

GOMES, Angela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 11, nº 21, 1998, p. 121-127.

PROCHASSON, Christophe. “Atenção: verdade!” Arquivos privados e renovação das práticas historiográficas. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 11, nº 21, 1998, p. 105-119.

Page 89: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

88

8

A coleção de Florestan Fernandes na UFSCar

Lívia de Lima Reis

Universidade Federal de São Carlos

Introdução

Este texto foi exposto em forma de palestra ministrada no VIII Encontro do

CEDAP “Acervos de intelectuais: Desafios e Perspectivas” do campus da UNESP em

Assis. Na palestra foi apresentada a coleção de Florestan Fernandes localizada no

Departamento de Coleções de Obras Raras e Especiais (DeCORE) da Biblioteca

Comunitária da UFSCar (BCo). Tal coleção é composta pela biblioteca, museu e

arquivo pessoais de Florestan Fernandes, todos reunidos no DeCORE. Essa

disposição da coleção possibilita ao pesquisador acessar em um mesmo local, por

exemplo, tanto um livro com anotações de Florestan, localizado na sua biblioteca

particular, como também o fichamento realizado para o mesmo livro, localizado em

seu arquivo pessoal.

Quem foi Florestan Fernandes

Florestan foi um dos mais importantes sociólogos brasileiros. Nasceu em São

Paulo, em julho de 1920. De origem humilde, começou a trabalhar aos 6 anos de

idade e aos 8 precisou deixar a escola. Só retornou à educação formal aos 17 anos

quando decidiu fazer o curso de madureza, uma espécie de supletivo. O curso de

madureza possibilitou que Florestan prestasse o exame para entrar no curso de

Ciências Sociais na USP, em 1941, quando começou toda sua trajetória acadêmica.

Formou-se em Ciências Sociais pela USP, mestre em Antropologia pela Escola

Livre de Sociologia e Política e doutor em Sociologia pela USP, onde se tornou

professor. Foi também deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores por dois

mandatos. Teve como tema de pesquisa as relações raciais entre negros e brancos.

Pesquisou em seu mestrado e doutorado sobre a tribo já extinta dos Tupinambás.

Participou da elaboração do texto da Constituinte de 1986 e fez campanha para

defesa da escola pública. Faleceu em 10 de agosto de 1995.

Florestan recebeu muitos prêmios em sua carreira, dentre eles:

Page 90: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

89

• “Prêmio Jabuti de Ciências Sociais”, 1963;

• “Título de Professor Emérito” na Universidade de São Paulo, 1985;

• “Doutor Honoris Causa” na Universidade de Coimbra, 1990;

• Patrono da Escola Nacional “Florestan Fernandes”, do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Aquisição da coleção de Florestan Fernandes pela UFSCar

Florestan reuniu cerca de 12 mil livros em sua biblioteca particular , a qual

mantinha em um apartamento em São Paulo reservado especificamente para este fim.

Após sua morte, a UFSCar o homenageou dando seu nome ao teatro anexo à

biblioteca, o Teatro Florestan Fernandes. Em ocasião da visita para conhecer o teatro,

a família conheceu também a recém-inaugurada Biblioteca Comunitária da UFSCar, a

BCo. Sabendo do interesse da família em dispor-se da biblioteca de Florestan, a

UFSCar, por intermédio do então reitor Newton Lima, iniciou as negociações para a

aquisição de sua coleção.

Transferência da coleção de Florestan Fernandes

Em 1996, a biblioteca de Florestan foi transferida para BCo junto com seu

arquivo pessoal e objetos pessoais. Uma equipe de bibliotecários, juntamente com o

Prof. Dr. João Roberto Martins Filho (do Departamento de Ciências Sociais da

UFSCar) foi até o apartamento onde estava alocada a biblioteca e realizou um estudo

sobre sua organização. O acervo foi fotografado, enumerado e encaixotado de modo

que a reorganização na BCo mantivesse a mesma organização física dos livros

deixada por Florestan. Além das obras foram trazidas também as estantes de madeira

onde estavam os livros.

O Departamento de Coleções de Obras Raras e Especiais

O Departamento de Coleções de Obras Raras e Especiais da Biblioteca

Comunitária da UFSCar (DeCORE) armazena 11 coleções especiais além do Fundo

Florestan Fernandes e o pequeno museu com objetos pessoais de Florestan. As 11

coleções são: Florestan Fernandes, Florestan Fernandes Distrito Federal, Luís

Martins, Revista Ilustração Brasileira, Henrique Luiz Alves, Série Ouro, Ficção

Científica, Rui Barbosa, Brasiliana, João Roberto Martins e Ulysses Fernandes Nunes.

Page 91: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

90

Figura 1: Departamento de Coleções de Obras Raras e Especiais da Biblioteca Comunitária da UFSCar (DeCORE).

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.

A biblioteca particular de Florestan Fernandes

A biblioteca particular de Florestan Fernandes é uma das mais completas na

área de sociologia. O acervo está dividido em 4 salas a fim de manter a mesma lógica

de organização do apartamento onde estava inicialmente alocada:

Sala 1 : Sociologia Geral

• Obras gerais de disciplinas ligadas à Sociologia como: filosofia, economia,

psicologia, entre outras e uma seção destinada ao marxismo clássico.

Sala 2 : Sociologia nas Américas

• Obras sobre índios, imigrantes e personalidades

como Che Guevara e Fidel Castro, entre outros.

Sala 3 : Sociologia no Brasil

• Obras de intelectuais como: Antônio Candido, Octavio Ianni, Fernando

Henrique Cardoso e do próprio Florestan Fernandes, entre outros. Nessa sala

Page 92: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

91

encontram-se também as obras de referência, como dicionários, enciclopédias

e similares.

Sala 4 : Literatura brasileira e estrangeira

• Obras de literatura nacional e estrangeira

Coleções de periódicos

Figura 2: Biblioteca particular de Florestan Fernandes alocada no DeCORE.

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.

Há também a sala 5, composta por obras que se encontravam em Brasília no

gabinete de Florestan quando atuou como Deputado Federal e foi incorporada pela

biblioteca em 2012.

O acesso ao acervo é livre, porém a consulta deve ser feita no local. O

departamento oferece visitas monitoradas que devem ser agendadas previamente.

Também é oferecido serviço de fotocópia com a possibilidade de reprodução de 10%

do total do número de páginas do livro, já que os livros não podem ser emprestados.

A preservação e conservação do acervo se dão pelo uso de filipetas ao invés

de etiquetas nas lombadas dos livros, pela higienização com trincha para remoção de

Page 93: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

92

sujidade e pelo controle de temperatura e umidade feito por aparelhos de ar-

condicionado.

Ordenação na estante

Foi adotado o sistema fixo de localização já que não será incorporada mais

nenhuma obra à coleção. Cada livro contém uma filipeta colocada entre as páginas

onde está o código de localização formado pelo número da sala, estante, prateleira e

número sequencial na prateleira, a fim de se manter a disposição original na estante

feita por Florestan.

Figura 3: Filipeta com a localização física do livro na estante.

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.

As marginálias, grifos, símbolos e remissivas de Florestan Fernandes

A maior parte das obras de sua biblioteca contém anotações nas margens das

páginas (marginálias), grifos e símbolos o que ilustra o intenso trabalho de leitura

realizado por ele e propicia ao pesquisador consultar uma obra comentada. Além das

anotações, Florestan fez extensos fichamentos sistematizados que estão

armazenados no Fundo Florestan Fernandes.

Page 94: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

93

Figura 4: Anotações de Florestan no livro Ideologia y utopia de Karl Mannheim.

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.

Figura 5: Símbolos em O 18 Brumário de Luís Bonaparte de Marx.

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.

Page 95: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

94

Figura 6: Remissiva ao final do livro El capital de Karl Marx.

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.

Figura 7: Marcação na página e trecho indicado na remissiva deixado ao final do livro El

Capital de Karl Marx (ver Figura 6).

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.

Museu Florestan Fernandes

O pequeno museu possui 79 objetos como máquina de datilografar, armários,

cadeiras, óculos, placas de homenagem, esculturas e adornos indígenas, porta-

retratos, tinteiro de prata, beca, quadros, dentre outros.

Page 96: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

95

Figura 8: Objetos do Museu Florestan Fernandes.

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.

Fundo Florestan Fernandes

Em 1996, um ano após a morte de Florestan Fernandes, seu arquivo pessoal

foi doado à BCo onde foi denominado Fundo Florestan Fernandes. Tal arquivo é

composto por um conjunto de documentos guardados por Florestan durante toda sua

vida, tais como: fichas manuscritas, cadernos e cadernetas de pesquisa, trabalhos de

alunos, fotografias, entrevistas concedidas, artigos publicados, prefácios, panfletos de

campanha política, recortes de jornais, correspondências trocadas com seus

correligionários, dentre outros. No acervo há em grande maioria as correspondências

passivas que foram enviadas por familiares, amigos e colegas de trabalho de

Florestan. Mas, encontramos também algumas correspondências escritas por ele, por

exemplo, as correspondências ativas de Florestan doadas pelo o Prof. Dr. Antônio

Candido de Mello e Souza em 2010.

Todos os documentos do Fundo Florestan Fernandes passam pelas seguintes

etapas de processamento técnico: higienização, pequenos reparos, classificação,

tombamento, digitalização, inserção com a descrição do documento na base de dados,

acondicionamento e armazenamento no arquivo deslizante. A descrição dos

documentos é feita com base nas normas ISAAR-CPF (Norma Internacional de

Registro de Autoridade Arquivística para Pessoas Coletivas, Pessoas e Famílias) e

NOBRADE (Norma Brasileira de Descrição Arquivística)

Page 97: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

96

Como medida de conservação e preservação são realizados os seguintes

procedimentos: na higienização é feito o uso de trincha e são retirados os grampos e

outros objetos metálicos; os pequenos reparos são feitos com papel japonês; no

acondicionamento são utilizadas jaquetas de poliéster, pastas poliondas e caixas feitas

de material neutro próprio para arquivo; os documentos passam pelo processo de

digitalização; o controle de temperatura e umidade é feito por meio de aparelhos de ar-

condicionado e termostato.

Figura 9: Grampos, clipes e outros objetos metálicos retirados dos documentos.

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.

O arranjo de classificação dos documentos do Fundo Florestan Fernandes foi

pensado de forma a retratar as diferentes facetas de sua vida (Cóscia: 2012). Deste

modo foi estruturado em seis séries, quais sejam: Vida Pessoal; Vida Acadêmica; Vida

Política; Produção Intelectual; Produção Intelectual de Terceiros e Homenagens

Póstumas. Todas as séries estão subdivididas em subséries, como por exemplo: Série

Vida Pessoal. Subsérie Fotografias; Série Vida Acadêmica. Subsérie Docência; Série

Vida Política. Subsérie Atividades Parlamentares I (1987-1990).

É tamanha a importância da guarda e disponibilização da coleção de Florestan

que em 2009 o Fundo Florestan Fernandes foi nomeado no Registro Nacional do

Page 98: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

97

Programa Memória do Mundo da UNESCO, sendo reconhecido como um dos

conjuntos documentais relevantes para a humanidade. Desta forma, a UNESCO criou

e disponibilizou em 2015 uma logomarca do Fundo Florestan Fernandes. A logomarca

autentica a nominação e importância do Fundo:

Figura 10: Logomarca criada pela UNESCO para o Fundo Florestan Fernandes.

Fonte: UNESCO.

No DeCORE são recebidos pesquisadores brasileiros e estrangeiros

interessados em consultar os documentos e marginálias nos livros que pertenceram a

Florestan. Dentre os temas de pesquisa procurados temos: as correspondências de

Florestan com outras personalidades; a pesquisa financiada pela UNESCO sobre a

integração dos negros na sociedade de classes; o projeto educacional de Florestan;

seus escritos sobre folclore; o tema da Revolução Francesa; seus estudos sobre os

sírios e libaneses em São Paulo.

Florestan era extremamente sistemático em seu trabalho de pesquisa. Além

das anotações feitas nas margens dos livros, ele também fazia fichas manuscritas e as

organizava por temas em um gaveteiro de madeira. No Fundo Florestan Fernandes há

cerca de 11.000 fichas de extremo valor para os pesquisadores já que remetem a

estudos e anotações cuidadosamente organizados em 76 temas por Florestan no

decorrer de sua vida. Alguns dos temas encontrados nos fichamentos de Florestan

são: Durkheim /Mannheim/Marx; Brasil - Colônia/Tupinambá/São Paulo/séc. XVI-XVII;

Conversas Informais (Com Brancos, Negros e Mulatos); Inquérito sobre Noção de

“Raça” e “Cor”; Observação em Massa (Situação Grupal); Reunião com Mulheres

Negras.

Page 99: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

98

Figura 11: Ficha manuscrita de Florestan Fernandes sobre a obra Duas viagens ao Brasil de

Hans Staden.

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.

Em 2010 foi lançada a base de dados do Fundo Florestan Fernandes e assim o

registro que contém a descrição dos documentos foi disponibilizado online aos

pesquisadores. Os documentos na íntegra são digitalizados e podem ser consultados

pessoalmente no DeCORE, em formato pdf, sendo que o documento físico fica

armazenado em um arquivo deslizante onde não é permitido o acesso do público. A

consulta aos documentos exige um agendamento prévio de modo que o pesquisador

informe o tema de sua pesquisa para que o profissional que o irá acompanhar possa

atendê-lo de forma mais eficaz e com qualidade.

Últimas realizações do DeCORE

Em dezembro de 2014 foi realizada uma exposição dos cartões de natal que

fazem parte do acervo do Fundo Florestan Fernandes. O acervo conta com cerca de

1000 cartões de natal, dos quais foram selecionados 300 para a exposição. A

exposição revelou uma parte da riqueza contida neste tipo de correspondência

mantida entre Florestan e seus amigos e correligionários. A exposição, além de

resgatar a tradição dos cartões de natal que vem se perdendo atualmente, procurou

resgatar também a memória do legado deixado por Florestan por meio de fatos

históricos e fatos marcantes da vida do sociólogo, os quais estão mencionados nas

mensagens carinhosas dos cartões de natal.

Page 100: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

99

Figura 12: Exposição dos cartões de natal de Florestan Fernandes realizada em 2014.

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar.

No ano de 2015, ano em que se completou 20 anos da morte de Florestan

Fernandes, foi realizado o projeto de extensão “20 Sem Florestan Fernandes” com o

objetivo de homenageá-lo e de mostrar a importância de seu legado à comunidade

acadêmica e comunidade em geral. Com recursos do projeto foi possível a aquisição

de 12 expositores de vidro e impressão da linha do tempo da trajetória de vida de

Florestan Fernandes, a qual está exposta no DeCORE e abrange desde o seu

nascimento, em 1920, até o ano de 2015, quando a UNESCO criou a logomarca do

Fundo Florestan Fernandes.

Como atividades do projeto foram realizadas as exposições: “As

personalidades presentes no acervo de Florestan Fernandes”, que apresentou livros

com dedicatórias de autores renomados ao ilustre Florestan Fernandes e “Memórias

de Florestan Fernandes: imagens de uma trajetória” com mais de 70 fotos que

retratam momentos de sua vida pessoal, acadêmica e política. Foram realizadas

também duas mesas-redondas em parceria com a XIII Semana das Ciências Sociais:

"A antropologia de Florestan Fernandes" ministrada pela Profa. Dra. Clarice Cohn e

Prof. Dr. Piero de Camargo Leirner (ambos do DCSo e PPGAS) e "Florestan

Fernandes e sua atuação política" ministrada pela Profa. Dra. Lidiane Soares

Rodrigues e pelo Prof. Dr. Pedro José Floriano Ribeiro (ambos do DCSo e PPGPol).

O projeto também rendeu duas publicações que resultaram de uma parceria

entre o DeCORE e o Grupo de Pesquisa Ideias, Intelectuais e Instituições

Page 101: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

100

(CNPq/UFSCar) quais sejam: o capítulo “O acervo de Florestan Fernandes na

Biblioteca Comunitária da UFSCar” no livro "Florestan Fernandes 20 Anos Depois: Um

exercício de memória e o e-book “O intelectual Florestan Fernandes e seus diálogos

intelectuais”. Ambos foram editados em formato de livro eletrônico e podem ser

baixados gratuitamente na página do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas

para o Desenvolvimento e também no site da Biblioteca Comunitária da UFSCar.

Figura 13: Exposição Memórias de Florestan Fernandes: imagens de uma trajetória

Fonte: DeCORE/BCo/UFSCar

Conclusão

O arquivo pessoal de Florestan Fernandes conta com cerca de 25 mil

documentos, dos quais cerca de 10 mil já passaram pelas oito etapas do

processamento técnico e o restante ainda está em fase de tratamento. Todo esse

processo requer recursos humanos que tenham habilidades para o manuseio e

tratamento técnico dos documentos, recursos materiais de qualidade arquivística

adequados para a higienização, reparos e acondicionamento e equipamentos

necessários para manutenção das condições ambientais favoráveis à conservação de

acervos. A obtenção de todos esses recursos necessários é um dos maiores desafios.

Outro desafio está na criação de estratégias para disseminar o conhecimento contido

Page 102: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

101

na coleção de Florestan o que é feito com a divulgação do acervo por meio de

eventos, exposições e publicações.

Como atividades previstas tem-se a continuidade do processamento técnico

dos documentos do Fundo Florestan Fernandes e o projeto de extensão

“Desvendando o Fundo Florestan Fernandes” junto ao grupo de pesquisa “Ideias,

Intelectuais e Instituições” do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da

UFSCar a fim de elaborar publicações com amostras do acervo.

REFERÊNCIAS CÓSCIA, Vera Lúcia. Análise de fotografias: Florestan Fernandes no tempo da ditadura militar. Dissertação, Mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2012.

Page 103: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

102

9

A Biblioteca de Oliveira Lima e a memória da Primeira Guerra Mundial

Teresa MALATIAN

UNESP/Franca

A formação da Oliveira Lima Library como lugar de memória do historiador-

diplomata

A constituição da Oliveira Lima Library, na Catholic University of America - CUA

(Washington, d.C.) atendeu, desde o início, ao que Pierre Nora identifica como

vontade de memória, e a coleção, formada por livros, documentos ditos históricos e

obras de arte, consagrou-se pela atividade memorialística em testemunho de erudição

(MALATIAN, 2001).

Documentos referentes à vida do historiador e diplomata pernambucano (1867-

1928) juntaram-se a esse acervo, tornando seu traço distintivo o hibridismo das

funções e da simbologia, reunindo a intenção de memória à de aparelhamento para a

História, o jornalismo e a diplomacia. Aberto ao público em 1924 e situado no J. K.

Mullen of Denver Memorial Library, o acervo foi incorporado à universidade no

contexto de uma transação iniciada em 1916.

Ali se acumulou a memória de uma vida, com dimensões individual e coletiva

na medida em que a coleção traduz o horizonte do bibliófilo, diplomata e historiador.

Memórias que se entrelaçam, remetendo a visões de mundo, correntes de

pensamento, práticas políticas, práticas historiográficas, demandas que se originam da

sociedade seja como exigências científicas ou pressões culturais. Práticas de um

colecionador, voltado para a aquisição de livros raros e manuscritos; práticas de

conservação e acesso à informação que se sucederam ao longo dos anos posteriores

à instalação da biblioteca na universidade. Sua história ultrapassa o campo individual

para revelar as tramas de um ato que deslocou o acervo inicial de 16 mil itens disperso

em Londres, Bruxelas e Lisboa, para alojá-lo em terras norte-americanas.

Trata-se de um lugar de legitimação erudita inspirado em modelo historiográfico

do século XIX, que impulsionou a criação de arquivos, bibliotecas e museus, além da

publicação de gigantescas coleções de documentos como a Monumenta Germaniae

Historica. Com tais referências, Manoel de Oliveira Lima empenhou-se em reunir livros

Page 104: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

103

e documentos, tarefa para a qual o ofício de diplomata exercido entre 1890 e 1913

trouxe muitas facilidades. Orientava-se pela necessidade de constituir um acervo

privado a partir dos temas de interesse do historiador, de resto obrigado pela profissão

a aparelhar-se para a escrita de livros e artigos. Assim constituiu uma coleção na qual

se destacavam obras adquiridas em livreiros, documentos resgatados aos antiquários,

encadernações preciosas, testemunhos de uma inserção social e de uma prática

corrente nos meios intelectuais da virada do século XIX para o XX.

Com obsessão pelos livros, Oliveira Lima reuniu obras que deveriam

consensualmente fazer parte de uma coleção dessa natureza: relações de viagens,

crônicas, obras sobre política, religião, e em pequena quantidade, história natural e

medicina. Para um membro da burocracia estatal, ligado à classe dominante, a prática

da coleção permitia uma inserção favorável entre os que possuíam livros considerados

adequados ao pertencimento a certos espaços de sociabilidade que os produziam,

utilizavam e legitimavam. Assim a coleção se constituiu como lugar da memória

ocupado por diversas memórias, ancoradas em diversos grupos e deslocado do

espaço próprio de qualquer um deles: historiadores ligados a diversas instituições,

jornalistas, confrarias de acadêmicos, políticos e diplomatas. Essa memória-texto da

erudição completa - se pela memória individual presente nos testemunhos de sua vida:

correspondência, papéis diversos, anotações. Integra ainda o acervo uma coleção de

objetos que tornam o espaço da biblioteca também um museu, com quadros e peças

diversas de mobiliário e ornamentação.

Pelo seu caráter particular de biblioteca-memória, a Oliveira Lima Library

conservou, graças ao arranjo ali realizado, a trajetória intelectual e pessoal de seu

fundador. A Brasiliana constitui a coleção mais importante do acervo, com obras

referentes ao período compreendido entre o século XVI e a atualidade. Diversos são

os temas dessa coleção, todavia dirigem-se preferencialmente para a história da

expansão ultramarina portuguesa e espanhola, o domínio holandês no Brasil e história

diplomática.

A instalação da Oliveira Lima Library na CUA ocorreu no contexto político e

econômico da expansão imperialista dos Estados Unidos na América Latina, inspirada

pelo monroismo e atualizada pelo corolário Roosevelt, o qual motivou desde o final do

século XIX a tendência a incentivarem-se estudos sobre essa região, em grandes

universidades do país, como ocorreu na Universidade do Texas (Austin), a primeira

delas a elaborar um projeto de Instituto de Estudos Latino-Americanos, iniciados ali em

1897 e intensificados nas décadas seguintes.

Page 105: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

104

Com relação ao Brasil, o interesse despertado no campo da história natural em

universidades norte-americanas reportava-se à expedição de Harvard chefiada por

Louis Agassiz (1865-1866); Cornell enviou em 1870 Charles F. Hartt, sucedido por

Orville A. Derby, ambos falecidos no Brasil. Stanford enviou em 1911 a expedição

chefiada por J. Casper Branner, que conhecia a língua portuguesa a ponto de ter

escrito sobre ela uma gramática. Branner estivera em missão científica no Brasil

quando estudante em Cornell, havia participado das expedições de Hartt e Derby,

tendo estudado especialmente a geologia do Nordeste e o arquipélago de Fernando

de Noronha, e ainda doado a Stanford uma Brasiliana de livros raros. Grandes

universidades norte-americanas vinham solicitando palestras de brasileiros, como

ocorrera com Joaquim Nabuco.

Oliveira Lima havia também, em 1912 e 1915, realizado seu périplo em

Stanford, California (Berkeley), Kansas (Lawrence), Wisconsin (Madison), Michigan

(Ann Arbor), Cornell, Johns Hopkins, Columbia, Yale, Harvard, Vassar, Massachussets

(Williamstown) e Brooklyn Graduate School of Economics and Government. Nessas

conferências tivera como tema de palestras a História do Brasil e da América em

perspectiva comparada.

Tal conjuntura deve ter motivado os planos da CUA de fundação de um centro

de pesquisa, servido por uma biblioteca, ambos voltados para estudos "ibero-

americanos". Desde os primeiros contatos que tivera com a CUA, entre 1896 e 1900,

quando ocupara o posto de secretário de legação em Washington, Oliveira Lima

entusiasmara-se com a instituição. Patrocinada pela Igreja Católica, a CUA surgira

ligada à benemerência e atendia à política expansionista da Igreja Católica no campo

do ensino, motivada pela difusão do catolicismo no país em decorrência da imigração

(CARDOSO, 1969, p. 211).

Em 1918 estavam acertadas as condições da transferência dos livros de

Oliveira Lima para Washington, porém a guerra impedira seu transporte e assim

somente em 1920 eles foram finalmente enviados a Washington. A partir daí, a CUA

manteve-se como guardiã da lembrança sobre as origens da biblioteca, pronunciando-

se intermitentemente para os ouvintes católicos, os acadêmicos e os contribuintes do

imposto de renda, no sentido de construir uma imagem de excelência da instituição,

ainda que desconhecida em sua total potencialidade pelos pesquisadores.

Desde o início da instalação da biblioteca, a CUA teve dificuldades em agregá-

la, tanto por desconhecimento de seu real valor, quanto pela falta de pessoal

especializado e/ou de recursos para seu tratamento técnico adequado, pelos

problemas de manutenção da integridade do acervo, da permanência de Oliveira Lima

Page 106: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

105

como seu curador e de sua inserção no ensino universitário. Faltava-lhe ademais o

dinamismo de um centro de estudos conforme previam os planos de sua instalação.

Na década de 1920-30, importantes mudanças vinham ocorrendo na

historiografia nos Estados Unidos. Desde a virada do século expandiam-se a pesquisa

e o apoio institucional para o trabalho profissional do historiador, de modo que

universidades, bibliotecas, sociedades históricas e fundações, além do próprio

governo, concediam patrocínio e investiam na pesquisa histórica. O complexo

institucional ampliou-se em direção à formação de uma intrincada rede de

comunicações que possibilitou o acesso às fontes e multiplicou canais de publicação

acadêmica. A tradição historiográfica norte-americana, apoiada fortemente no

documento escrito, permitia a associação do ofício de historiador à pesquisa

bibliográfica, realizada em bibliotecas especializadas para essa finalidade. Estas,

desde o final do século XIX, vinham crescendo quantitativamente, tendo como

paradigma a Library of Congress, cuja liderança manifestava-se em três

direcionamentos de sua atuação: a distribuição de catálogos impressos a outras

bibliotecas, prática que permitiu a criação de um sistema uniforme de catalogação; a

elaboração de um catálogo nacional unificado de livros localizados em outras

bibliotecas americanas; e o empréstimo entre bibliotecas. Tais procedimentos

consolidaram a atividade de pesquisa em geral e, sobretudo, a pesquisa histórica. As

bibliotecas de pesquisa tornaram-se cada vez mais providas de bibliotecários

profissionais, treinados em escolas especializadas, que elaboravam guias

bibliográficos e índices. Multiplicaram-se os periódicos para publicação de pesquisa

histórica, entre eles a Catholic Historical Review e a The Hispanic American Historical

Review, que expressavam a profissionalização dos historiadores.

No Brasil, a primeira voz especializada a se pronunciar sobre a instalação da

biblioteca foi a de Alcides Bezerra, historiador e diretor do Arquivo Nacional. Em

conferência proferida em 1928 em homenagem a Oliveira Lima, na Escola Politécnica,

identificou-a de várias formas: brasiliana, luso-brasileira e latino-americana.

Provavelmente, nunca esteve na biblioteca, tendo escrito sua avaliação apenas a

partir de catálogos, daí a hesitação quanto à identidade da mesma. A versão

consagrada da doação desinteressada e benemerente pouca ressonância encontrara

no Brasil. Desde a morte de Oliveira Lima, a instalação de sua biblioteca na CUA fora

objeto de contestação, de resistência, para depois cair no aparente esquecimento.

Parecia que a usura do tempo havia recoberto o acervo desterrado. No entanto, a

memória consagradora do exílio da biblioteca já se organizava em meio à comoção

provocada pelo falecimento do historiador-diplomata. Abordando a doação, Bezerra

Page 107: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

106

manifestou-se contra a manifestação nacionalista, que exprimia o debate político do

final da Primeira República, e reuniu argumentos para justificar e absolver Oliveira

Lima, procurando dar um sentido à doação, atribuindo-lhe o papel de fomentar a

difusão cultural e de implantar nos Estados Unidos “um marco de brasilidade, um foco

de cultura brasileira” (BEZERRA, 1929).

O depoimento de Rodrigo Otávio em Minhas memórias dos outros (OCTAVIO,

1936) publicado em 1936, trouxe novos elementos à polêmica. Vice-presidente do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras,

estava bastante informado sobre a transação e confirmou-a como solução conveniente

ao historiador, ressalvando não ter sido ela indício de ressentimento ou ausência de

nacionalismo. Durante o Estado Novo, a permanência de Oswaldo Aranha em

Washington como embaixador incentivou um despertar nacionalista sobre a Brasiliana

ali situada pela vontade do exilado caprichoso. Esse questionamento direcionou-se

para uma proposta de nacionalização da biblioteca, pelo Itamaraty, a qual não teve

maiores consequências.

Em 1949, a Academia Brasileira de Letras ensaiou passos tímidos no sentido

de retirar a Oliveira Lima Library do esquecimento, publicando em sua revista a

tradução de uma nota na qual H. W. Frantz construiu uma versão delirante acerca das

instalações e do funcionamento da biblioteca, apontando-a como um dos maiores

centros, nos Estados Unidos, de pesquisas sobre história portuguesa e brasileira.

Deformada pela desinformação e pelo propósito de exaltar a instituição receptora do

acervo, a versão foi acolhida sem críticas, comentários ou fala direta da Academia

(FRANTZ, s/d).

A comemoração do centenário do nascimento de Oliveira Lima iria provocar no

Brasil a reativação da memória construída sobre ele e sua Brasiliana, despertando

patente mal-estar pela sua localização forânea. A memória carregada de emoções

encontrou um porta-voz, o embaixador pernambucano Joaquim de Souza Leão Filho,

na conferência pronunciada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1967. O

tom memorialístico estruturado em relações pessoais e familiares, acrescidas do

pertencimento à classe dominante pernambucana conferiu grande autoridade ao

discurso que procurou reafirmar seu indiscutível valor. Rompeu-se no Brasil o silêncio

de décadas sobre o evento, reabrindo-se a questão da legitimidade de uma doação

que vinha sendo interpretada como responsável pela situação da livraria exilada. Com

evidentes propósitos reparadores da imagem de Oliveira Lima, Barbosa Lima Sobrinho

apontou a falta de condições para o acolhimento da coleção, tanto no Instituto

Page 108: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

107

Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco quanto na Biblioteca Pública do

Recife ou na Biblioteca Nacional (SOUZA LEÃO, 1968).

A falta de recursos alegada por Souza Leão pode ser entendida de diversas

maneiras, embora ele se referisse explicitamente às péssimas condições materiais de

conservação vigentes nestas instituições, que teriam resultado em danos irreparáveis

a coleções valiosas ou em desprezo para com as mesmas, como acontecera com os

acervos de José Carlos Rodrigues, José Higino, Alfredo de Carvalho e da Imperatriz

Teresa Cristina. Direcionou seus argumentos apaziguadores para explicitar o

montante empregado pelo historiador na aquisição dos livros doados, fazendo um

balanço de sua atividade bibliófila, minucioso em procedência e valor das principais

aquisições, justificando talvez assim o aspecto econômico da questão. Na mesma

direção, Gilberto Freyre realizou por ocasião das comemorações do centenário do

nascimento de Oliveira Lima um trabalho voltado para a justificativa da doação e

apresentou a falta de condições para a preservação do acervo no Brasil. Gestões

possíveis apenas sugeridas, nunca elucidadas, sem identificação de personagens no

cenário cultural e político que cercou Oliveira Lima, foram resumidas na afirmação de

que nem o Rio de Janeiro nem Pernambuco apresentaram condições para abrigar

convenientemente o precioso acervo. Justificou plenamente a instalação dos livros em

Washington, confrontando os pruridos nacionalistas com a dúvida: “Qual teria sido o

destino da Brasiliana de Oliveira Lima, doada à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,

assim mal cuidada, ou a qualquer das bibliotecas decadentes do Recife de então?” No

entanto, a divulgação de cartas inéditas de Oliveira Lima a ele enviadas veio reforçar a

versão de que a solução dada à biblioteca, mais que um ato benemerente, havia sido

uma transação que permitira a Oliveira Lima obter recursos financeiros e manter-se

próximo de seus livros, que continuou a utilizar e a considerar como seus mesmo após

a doação (FREYRE,1968).

As tramas do processo que envolveu também a política cultural do Brasil

seriam reveladas pelo principal biógrafo de Oliveira Lima, Fernando da Cruz Gouvêa.

A partir de documentos inéditos aos quais teve acesso por intermédio de Manuel

Cardozo, reuniu informações que rebateram a versão do “impulso emocional” que

estaria contido no ato da doação, e revelou dificuldades enfrentadas por Oliveira Lima

para conseguir instalar-se com seus livros e papéis na CUA. Foi retomado uma vez

mais o tema da doação, apoiado agora em documentos inéditos, notadamente o diário

íntimo e a correspondência de sua esposa Flora com Max Fleiuss, Mário Mello e

Rodrigo Otávio. A partir desses testemunhos registrou a benemerência e o

reconhecimento do valor da doação por parte da reitoria da CUA, porém desvendou

Page 109: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

108

mais um aspecto da questão: os atritos entre a viúva e a Universidade motivados

pelas questões referentes à administração dos livros. Oliveira Lima temia o

desmembramento da coleção e sua dispersão na biblioteca central da universidade,

receio que se reacendera após o falecimento do doador, tendo a viúva cogitado em

retomar a biblioteca para si, aconselhada por Rodrigo Otávio (GOUVEA 1976).

No Brasil o exercício do mecenato privado não se realizou pela ausência de

contrapartida que garantisse uma renda ao colecionador aposentado. Essas condições

só foram encontradas nos Estados Unidos onde existia uma tradição universitária

suficientemente sólida para garantir um otimismo cultural que sustentava as doações.

Apesar da inserção de Oliveira Lima em importantes instituições brasileiras, como

institutos históricos e academias, os laços de sociabilidade não foram suficientemente

fortes para o exercício desse mecenato privado. Porém a prática do mecenato foi

decisiva para a construção da memória da Oliveira Lima Library e ocultou a transação

nela embutida, edificando assim uma imagem idealizada de seu fundador.

Os documentos "históricos" ali reunidos não parecem ter sofrido alterações em

seu conjunto, mas os documentos pessoais do colecionador tornaram-se lugares da

memória e preservados na medida em que ajudam na tarefa de construção da imagem

de Oliveira Lima , seja a do homem público, seja no que se refere à sua vida privada.

Perderam a utilidade quotidiana e de prova e tendo dilatado seu valor original,

passaram à categoria de fontes históricas.

Os diários de Oliveira Lima

A atividade memorialística de Oliveira Lima sob a forma de diários teve início

em 1885, ano em registrou pela primeira vez suas impressões e recordações. Tinha

então dezoito anos de idade, escrevia em ritmo irregular porém aderia a um hábito que

seria mantido ao longo de sua vida, seguindo os preceitos da escrita de si que norteou

sua formação na Europa vitoriana.

Ao longo da vida, produziu registros memorialísticos com diferentes graus de

elaboração e consistência, para culminar na construção de sua autobiografia,

publicada por sua esposa, Flora Cavalcanti de Albuquerque, dez anos após sua morte:

Memórias - essas minhas reminiscências (LIMA,1986). Na Oliveira Lima Library, em

Washington, DC, encontram-se vinte e nove cadernos, de variáveis extensões e

estilos de anotação, datados de 1885 a 1926, cuja preservação sugere a intenção de

compartilhá-los na posteridade.

Page 110: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

109

Trata-se na maior parte de cadernetas impressas, nas quais o registro a tinta

ou a lápis mesclam-se ao sabor das circunstâncias. Receberam inscrições em

caligrafia dificílima de decifrar, característica que prejudica o acesso ao texto, tão

simplificada e amorfa que, enigmática, desafia o leitor nos dias atuais.

Em alguns diários é possível verificar informações relevantes para sua vida

intelectual, como as leituras feitas, a organização do seu cotidiano e a divisão do

tempo: pela manhã, leituras de jornais e livros, escrita de cartas, artigos e outros

textos. À tarde, saída para correios, compras, visitas e passeios. Por não se tratar de

diários organizados, ocorre com frequência uma miscelânea de registros sumários,

completados por anotações à margem, atalhos e desvios característicos do seu

peculiar estilo transbordante de escrita. O mais antigo diário preservado recebeu o

sugestivo título de Horas de ócio para anotações feitas em 1885, quando Oliveira Lima

ingressou na idade adulta. Contém um propósito diretriz da sua vida e o desejo de

fixar uma identidade a partir de valores éticos do catolicismo voltados para o mundo

do trabalho, como sugere claramente seu título. Neste scrapbook cuja abertura foi

datada em 23 de agosto de 1885, em Lisboa, onde Oliveira Lima residia com a

família, recortes de seus artigos publicados em jornais, além de cartas ao Jornal do

Recife, testemunham o início da atividade jornalística. Nele destaca-se a página

inicial, depositária de intenções e afetos, num estilo de escrita muito elaborado. Revela

também o papel desempenhado na sua formação pelo pai, Luís de Oliveira Lima, em

contraponto à figura materna:

A meu pai são dedicadas todas estas ninharias, que em momentos d’ócio meu espírito se compraz em compor. Se algum merecimento tem, a ele sou devedor, porque o seu zelo fervoroso e a sua incansável perseverança pelo meu constante adiantamento, sempre me incitaram no caminho do estudo e do trabalho. A sua rígida moral fornece-me belos exemplos a seguir e a sua vida honrada e nobre, cheia de afãs e de atos de extraordinária dignidade, constitui para mim a melhor herança que me pode legar. A sua amizade tem sido imensa, intensa como um sol d’agosto. O mais belo apanágio da sua índole virtuosa por excelência é a honestidade – que Deus me ajude a guardá-la sempre intacta, como ele a tem guardado. E que não fique no esquecimento minha mãe. O seu amor acrisolado tem sido o tronco vigoroso, a árvore prenhe de seiva a que se arrimou a minha frágil existência, quando criança, e a que hoje se enroscam as minhas ilusões de adolescente, as minhas esperanças, as minhas ambições. Que longos anos vivam ainda estes protetores devotados e sacros da minha vida! (LIMA, 1885, p.1).

Luís de Oliveira Lima, comerciante português estabelecido no Recife, casara-

se nesta cidade com a pernambucana Maria Benedita de Miranda. Seus filhos

Page 111: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

110

mantiveram laços com a terra pernambucana mesmo depois de os pais fixarem

residência em Portugal em 1873, em movimento de retorno à terra natal paterna, como

ocorreu com muitos emigrados portugueses, após acumularem um pecúlio no Brasil.

Manoel casou-se com Flora Cavalcanti de Albuquerque, da família dos senhores do

engenho Cachoeirinha. A inserção na oligarquia pernambucana pelos laços de

casamento foi indício de posição social distinguida, embora não necessariamente de

fortuna.

Já se revelava nas Horas de Ócio a inserção de Oliveira Lima em redes de

sociabilidades intelectuais no Brasil e em Portugal, na imprensa e em círculos de

historiadores. Ainda muito jovem, exercia atividades jornalísticas em Portugal e no

Brasil, onde se tornou colaborador do Jornal do Recife em 1885, no mesmo ano do

início da escrita deste diário. Estabelecia relações com intelectuais portugueses e

brasileiros, a quem dava grande valor, demonstrado por exemplo ao colar no diário

uma carta do consagrado historiador português Oliveira Martins a ele endereçada.

Às Horas de ócio seguiram-se outros cadernos iniciados e logo abandonados,

entre eles a tentativa mais bem sucedida de 1891, ano de seu casamento, quando

ocupava o cargo de secretário da legação do Brasil em Lisboa. Na sequência, o diário

contém registros de seus deslocamentos como funcionário do Itamaraty nas legações

em Berlim (1892-1896), Washington (1896-1899), Londres (1899-1900) e Tóquio. Em

1900 havia sido designado encarregado de negócios na recém-criada legação do

Brasil no Japão e nela atuou de 1900 a 1902. A experiência do contato com a cultura

japonesa parece ter sido fundamental para esta escrita e sua tentativa de

compreender o país que visitava pela primeira vez. Neste diário encontram-se

apontamentos sobre uma experiência de alteridade radical, muitos deles riscados com

um traço transversal que indica aproveitamento posterior do texto no livro de viagem

intitulado No Japão (LIMA, 1997)48. Das quarenta e três páginas com cartas anexas, a

primeira, datada de oito de agosto de 1891, revela suas disposições no momento da

abertura do diário e a retomada das reflexões registradas nas Horas de Ócio:

Aqui registrarei dia a dia o q. for observando de mais interessante na Legação, na cidade ou em casa. É o meu livrinho de lembranças pa. a velhice, o q. eu folhearei com prazer quando tiver netos e precisar de[...]. Começo cedo a vida pública – aos 23 anos. Tenho diante de mim um futuro bem longo, quanto possa querer olhando p. a minha saúde e pa. a vida regrada q. levo desde q. meu querido Pai faleceu. O q. até aqui tenho sido, conota do livro “ Horas de ócio” e da biografia q. o Brito Aranha vai inserir no Dicionário Bibliográfico. É aquele o repositório um tanto à la diable do q. desde os 15 anos se

Page 112: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

111

há passado comigo, pa.a assim dizer oficialmente (como me vai invadindo a burocracia!). A vida interior desse tempo é pouco interessante pa. ser arquivada – afetos de família sempre a manifestar-se, e isto esconde – se bem p.a se não macularem , amores fáceis q. não deixaram vestígios [...] no coração [… ]a tarefa de ser sempre honrado diante de um mundo de tartufos, e nada mais.” (respeitada a grafia original) (LIMA, 1885, p. 1)

O olhar reflexivo também declara intenções, reafirma valores incorporados pelo

grupo familial e colocados à prova. O diário aparece nesta fase de sua vida como

recurso para a introspecção, depositário de confidências sempre contidas, em

harmonia com a formação para o controle de si.

Nestes dois documentos, como em outros diários, está presente uma estratégia

de escrita onde anotações preliminares para obras de maior fôlego misturam-se a

impressões do cotidiano. Da observação instantânea Oliveira Lima passava à síntese,

que fornecia aos leitores um conjunto articulado a partir da utilização de materiais

aparentemente desconexos e fragmentados. As lembranças retrabalhadas

apresentam-se como um repositório de textos a serem consolidados segundo um

plano de trabalhopré-existente ou conforme solicitações do momento, estratégia que

se relaciona muito claramente com as atividades jornalísticas.

Memórias da Guerra

Entre todos os cadernos preservados, destaca-se um com anotações

datadas de 8/11/1917 a 9/6/1918, cento e dezesseis páginas escritas em estilo muito

peculiar, sem rasuras ou hesitações, apesar de seu autor encontrar-se à época sob

grande emoção e pressão psicológica. Na época, Oliveira Lima residia na cidade do

Recife, em autoexílio motivado pela impossibilidade de retornar à sua residência na

Inglaterra, pois fora acusado de germanofilia em pleno desenrolar da Primeira Guerra

Mundial. As investigações da Scotland Yard sobre suas atividades jornalísticas e

redes de sociabilidade haviam resultado na sua inclusão na black list dos indesejáveis

ao Reino Unido. Desafetos no Itamaraty também haviam contribuído para confirmar as

suspeitas sobre sua opção política pelos Impérios Centrais, especialmente a

Alemanha que os lideravam. Como explicar sua opção? Sem dúvida, inicialmente pela

formação na Faculdade de Letras de Lisboa , que incluiu o contato com obras de

historiadores alemães considerados paradigmáticos na virada do século XIX para o XX

pela historiografia acadêmica, a exemplo de Ranke e Mommsen. Em sua autobiografia

Page 113: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

112

registrou posteriormente a relevância de sua passagem como secretário de legação

em Berlim, que o deslumbrou pela pujança imperial:

A Alemanha de então, sol do sistema planetário europeu, era a grande potência modelada pelo gênio de Bismarck, a cujo octogésimo aniversário assisti em 18193, quando piloto desembarcado da nau do Estado[...]. Os bailes da corte tinham um tom de esplendor; brilhante, embora curta, era a quadra da vida mundana; abundantes os teatros e outras diversões; inesquecível o espetáculo das revistas militares: em tudo força inteligente, disciplina, progresso social e conforto, nenhum outro país se lhe avantajando. Os que não conheceram a Alemanha daquela época não podem hoje avaliar o quanto ela representava de eficiência e grandeza. (LIMA, 1986, p. 104-105).

As informações registradas nesse diário podem ser mais bem compreendidas

se cotejadas com anotações feitas em outro caderno avulso, não datado, bastante

prolixo e destinado a orientar a elaboração de suas memórias. Quando a guerra foi

declarada, ele encontrava-se com a esposa na estação de águas de Carlsbad

(Áustria). De retorno a Londres, presenciou a atmosfera de crescente intolerância,

agravada pelo afundamento do transatlântico Lusitânia pelos alemães. No ambiente

transtornado pelos bombardeios aéreos dos zeppelins passou o primeiro ano da

guerra, mantendo a habitual amizade com grupos de emigrados belgas pró-

germânicos e escrevendo para a imprensa brasileira suas opiniões sobre o conflito.

Não foi sem consequências: às intrigas atribuídas a Fontoura Xavier, ministro do Brasil

em Londres, somaram-se as visitas da Scotland Yard à sua residência em

consequência de denúncias sobre seu posicionamento pró-Alemanha, claramente

expresso na imprensa brasileira e em situações públicas, atitude incauta para alguém

residente em um país que integrava com a França o grupo dos países Aliados,

situados no campo contrário. Pouco a pouco o cerco se fechou ao seu redor tornando

a permanência na Inglaterra insustentável. Manteve porém inabalável convicção

germanófila, ainda que revestida de pacifismo, a despeito do crescente isolamento

motivado pelo afastamento dos amigos aliadófilos, conforme relatou neste registro,

onde anotações quase telegráficas indicam o roteiro da memória da guerra em

construção:

Eu mantive-me firme. José Veríssimo afastou-se (carta dele de março a q. respondi em abril, diz G. Freyre, q. de forma evangélica) . Recusa de falar na Sorbonne em set.[embr.]o (carta de Martinenche) . Fui-me criando reputação de pro-germânico, ajudando portanto a cabala de Fontoura, embora disto tivera consciência. Não hesitei . Vi 1.o ataque de Zepelins em 1.o de set.1915. Parti p[ara] Harvard em fins de set[embro]. Aí encontrei uma atmosfera furiosam.te inglesa

Page 114: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

113

[...]. Quando ia regressar, aviso de Kelsch. Fui p[ara] o Brasil: encontrei atmosfera de desconfiança: boatos de expulsão. Impossível voltar. [...]. Fui ao Rio (pretendia voltar p[ara] Londres e queria cultivar meus estudos históricos). Legação britânica avisa-me de q. não poderia desembarcar. Tinha havido outra denúncia (minha conf[erência] em Clark University sobre neutralidade). Artigos meus explorados p[ara] comprovar minhas opiniões, e rumor de q. tinha ido ao E.U. fazer propaganda germânica. Morgan foi único a tomar minha defesa. Telegrafou a Coolidge49 perguntando se nas minhas lições havia eu tomado atitude unneutral. .(LIMA, ms , s/d).

As negociações diplomáticas não conseguiram evitar que fosse impedido de

regressar à Inglaterra após permanência nos Estados Unidos para ministrar um ciclo

de conferências em Harvard em 1915-1916, embora a distância possibilitasse uma

suspensão da vigilância sobre suas atividades pela Scotland Yard. Mesmo assim,

nunca mais conseguiu permissão para reingressar na Inglaterra, onde ficaram sua

casa e a valiosa biblioteca, igualmente exilada. O processo de autoexílio o levou então

a “estacionar” em Pernambuco, à espera do fim da guerra para tomar novo rumo, o

que acabaria ocorrendo quando conseguiu se estabelecer em Washington, onde

terminou seus dias em 1928.

Por se tratar de um diário especial, com anotações minuciosas, surge a

pergunta: o que motivou Oliveira Lima a “confiar seus pensamentos” a um caderno

datado de 1917-1918, diferenciado dos demais pela forma narrativa e abundância de

detalhes? Às vésperas de completar cinquenta anos de idade, inspiravam suas

páginas o sentimento de melancolia pela vida já passada e a incerteza sobre o futuro.

Sentia necessidade de se defender das acusações de germanofilia e ao mesmo tempo

construir uma versão contrária àquela dominante na imprensa sobre a entrada do

Brasil na guerra.

A narrativa é dominada por um evento perturbador ocorrido à véspera do início

do diário, os ataques às casas comerciais alemãs no Recife, movidos pela onda de

ódio que se seguiu à divulgação da falsa notícia do torpedeamento do navio – escola

brasileiro Benjamin Constant pelos alemães. O navio destinava-se a “prestar serviços

de instrução para guardas-marinha e aspirantes da Escola Naval, assim como para

inferiores que se preparavam na Escola de Suboficiais Marinheiros. Não possuía

poder de combate” (ALMEIDA, 2007, p. 11) e por isso mesmo, a manipulação do

evento provocou grande comoção entre os recifenses.

Em torno desse evento traumático, foi construído o texto memorialístico de um

jornalista impedido de manifestar-se livremente pela imprensa e ávido por estabelecer

49 Vianna Kelsch, secretário da legação do Brasil em Londres; Edwin Morgan, embaixador norte-americano no Brasil; John Calvin Coolidge, presidente do Senado norte-americano.

Page 115: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

114

culpados/responsáveis pelos “atentados” indicativos da “estupidez popular, acesa e

aguçada pela imprensa e pelos meetings”, assim classificou a manifestação

descontrolada de revolta popular movida por nacionalismo exacerbado. Acuado pela

“pecha de germanófilo”, cancelada sua atividade jornalística sobre a guerra no jornal O

Estado de S. Paulo, aposentado desde 1913 do serviço diplomático brasileiro após

diversos conflitos com o Itamaraty, ainda assim Oliveira Lima manteve-se firme em

sua simpatia aos alemães embora desejasse o fim da guerra. Frequentava eventos

promovidos pelas comunidades alemã e austríaca do Recife, proximidade que lhe

rendeu dissabores e problemas.

Novamente o diário não datado fornece importantes pistas sobre sua atividade

naquele jornal e os percalços que enfrentou como colaborador do periódico dirigido

por Júlio Mesquita, declarada e apaixonadamente aliadófilo em seus artigos

denominados Boletins da Guerra. Em campo oposto, Oliveira Lima em seus artigos

intitulados Ecos da Guerra criticou a atuação dos Aliados e não ocultou a adesão à

germanofilia conforme seu testemunho:

Escrevi uma série de artigos, creio q. 30, sobre responsabilidades e consequências da guerra, em q. pouco haveria q. alterar. Eram destinados ao “Estado de S. Paulo” q. não os quis ms. publicar depois do 1.o porq. se vendera à Inglaterra , aceitando do Consulado inglês o suborno de 40.000. O algarismo pode ser exagerado: se não foi tanto, foi quanto.[...]. O “D[iário] de Pern[ambuc]o”, q. me acolheu e sustentou (diz-me Gilberto Freyre q. Carlos Lyra disto se orgulha) teve q. mostrar porq. o B[rasil] entrou na guerra, isto é, tomou o partido dos aliados (LIMA, s/d).

Nesse registro não datado há imprecisões provavelmente causadas pelo recuo

temporal em relação aos acontecimentos. Na verdade foram 65 artigos de novembro

de 1914 a agosto de 1915, escritos como “observador diplomático” a partir de artigos

não censurados da imprensa inglesa, nos quais abordou aspectos econômicos,

sociais e políticos da guerra, porém deles estavam ausentes as operações militares.

Neles não escondia sua admiração pela Alemanha.

Pelo diário de 1917-1918 perpassam as redes de sociabilidade em que Oliveira

Lima se inseria naquele momento: o jornalismo nacional e internacional, sua principal

atividade na época. No entremeio da colaboração principalmente literária e cultural no

Diário de Pernambuco e em O Estado de S. Paulo, ocupava-se da escrita de obras

históricas, que seriam publicadas nos anos seguintes: O movimento da Independência

, as anotações à obra de Muniz Tavares, História da Revolução de Pernambuco em

1817, que concluiu em meio às comemorações do centenário do evento das quais era

Page 116: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

115

um dos organizadores, e a História da Civilização (LIMA, 1921), obra didática escrita

em tempo recorde que teve inúmeras edições.

O texto memorialístico contém informações importantes para a compreensão

do papel da imprensa na propaganda de guerra, sujeita à censura e à autocensura.

Sua construção atendeu ao imperativo da busca da verdade por um jornalista

inconformado com a impossibilidade de externar suas opiniões sobre a guerra na

imprensa, e que com tal intenção mobilizou os contatos entre os colegas de profissão

para clarear o episódio da “vilania” e apurar responsabilidades. Nessa pesquisa

movida pela indignação, ressaltou a indiferença da polícia e das autoridades diante da

multidão enfurecida e fora de controle, conclamada em comício em praça pública a

executar vingança sobre os alemães residentes na cidade do Recife.

Por se tratar de memórias de guerra, as anotações do diário não escaparam a

autocensura, expressa na camuflagem de certos nomes de políticos, sobretudo

autoridades locais. No entanto, Oliveira Lima não teve receio de ali registrar suas

posições contra o governo federal, a entrada do Brasil na guerra e a política estadual,

em desabafo que deu vazão à dissidência em relação à corrente dominante na política

interna e externa brasileira.

Desde a primeira página, Oliveira Lima recusou-se a aceitar a autoria alemã do

torpedeamento do Benjamin Constant, que reputou com determinação tratar-se de

“boato falso para fazer desencadear a chamada ira popular” e seu “apetite de

destruição”. Ao longo do diário procurou desmontar a propaganda destinada a

impulsionar e justificar a entrada do Brasil na guerra, veiculada pela imprensa e nos

comícios populares, movidos por interesses dos Aliados e seus representantes no

Brasil. Com essa premissa acusou a imprensa estadual de incentivar a hostilidade aos

alemães para “levar o povo à guerra de verdade”. Em especial, teriam exercido tal

papel o Jornal da Província , o Jornal Pequeno e o Jornal do Recife, publicados na

cidade. Além disso, criticou a posição do clero pernambucano, que concordava com a

estratégia de “soar a nota guerreira”. Estabelecida a premissa, empreendeu

peregrinação entre jornalistas, autoridades, amigos e alemães vitimados para obter

informações confiáveis. Em destaque, entre os mais próximos dele, o pernambucano

Mário Melo, colaborador do Diário de Pernambuco e Assis Chateaubriand, seu amigo

e correspondente, redator do importante jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro.

O resultado foi um elenco de heróis, mártires e vilões, muitos deles anônimos, a

povoarem a memória épica , em contraponto aos anti-heróis: desertores, espiões,

traidores, aproveitadores. Frequentador de diversas meios, em cada um deles Oliveira

Lima procurava aliados e confrontava opiniões divergentes, aparentemente nos

Page 117: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

116

limites de prudência necessários à sua própria segurança pessoal em um meio onde

os ânimos encontravam-se exacerbados.

Em esforço de contrapropaganda, a guerra naval que se desenrolava no

Atlântico foi seletivamente apagada de sua memória. Escolha sintomática de sua

tentativa de minimizar a responsabilidade do Império Alemão nos ataques, pois a

declaração de guerra do Brasil à Alemanha em 26 de outubro de 1917 e os eventos do

Recife não podem ser dissociados do afundamento de navios mercantes de bandeira

nacional em águas europeias, que levaram à ruptura da neutralidade assumida até

então pelo presidente Wenceslau Braz. A guerra nos mares alcançara o vapor Paraná

na costa ocidental da França em abril de 1917; no mês seguinte, foi a vez do navio

mercante Tijuca, afundado próximo ao porto francês de Brest ; depois naufragou o

Lapa, próximo ao cabo de Trafalgar e finalmente em 18 de outubro houve o

torpedeamento do Macau em águas espanholas. Foi a gota d’água. Atendendo ao

“forte clamor popular”, de elevado teor na cidade do Rio de Janeiro, o governo

brasileiro rompeu relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, ou seja a

neutralidade oficial. O afundamento do Macau foi o único mencionado por Oliveira

Lima, que ao assim proceder selecionou os fatos memoráveis daqueles a serem

relegados ao silêncio.

A manipulação do evento pela imprensa no chamamento do Brasil à guerra e

na formação da opinião pública favorável ao abandono da neutralidade resultou em

violência contra civis alemães e atesta o poder da propaganda de guerra voltada

contra os comerciantes e as casas de comércio alemãs, para grande surpresa de

Oliveira Lima, para quem o território das ações bélicas parecia restrito à Europa e às

aguas territoriais do Velho Continente. Seu diário expressou esforço de

contrapropaganda, destinada a criticar e a desmontar a versão oficial que mobilizou a

opinião pública e justificou a entrada do Brasil na guerra junto aos Aliados contra os

Impérios Centrais (Alemanha, Áustria-Hungria, Turquia e Bulgária).

O eixo da narrativa espiralada são os acontecimentos da noite de sete de

novembro de 1917, quando ocorreram incêndios de casas comerciais, saques e

tentativas de homicídio, cujos detalhes foram apresentados no diário à medida que as

investigações de seu autor avançavam na coleta de informações , algumas de

primeira mão: a casa Alemã dos Dauderlein, a Casa Krauser, uma litografia, além dos

frades alemães do convento de São Francisco em Olinda, acusado de ser um “ninho

de espiões prussianos” e ao mesmo tempo em que colocado sob suspeita, foi objeto

de “proteção policial” armada.

Page 118: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

117

Com essa intenção, passou a relatar conversas com colegas de jornalismo,

políticos, amigos, parentes, junto aos quais colheu depoimentos , cumprindo inclusive,

conforme as normas da sociabilidade, o ritual de visitas às famílias vitimadas. O mais

completo relato em primeira mão transcrito no diário é o da família Dauderlein,

proprietária da Casa Alemã, residente em Olinda, onde parece havido ataques que

beiraram o linchamento:

Contou-me Miss Lily Moser, a sobrinha, que tiveram a “very narrow escape”. Quando a ralé assaltou a casa, o delegado [...] e o capitão de polícia Teofanes (o que prendeu Antônio Silvino), fizeram sair os empregados brasileiros e disseram que voltariam para fazer sair o resto. Nunca mais apareceram, explicando depois que lhes não tinha sido mais possível. O sr. Dauderlein, Fräulein Lily e os outros presos alemães subiram para o sótão e daí, quando já começava a devastação e já se ateara fogo, passaram para o sótão da casa pegada, onde está o Café Majestic e que é propriedade do sr. Dauderlein. Uma porta com cadeado de letras separava as duas casas. Essa porta de comunicação foi feita, disseram-me, para fazer depósito das caixas, etc., no sótão vizinho; já teria talvez sido uma precaução sábia. (13/11/1917).

Nessa tentativa de estabelecimento de uma crônica subjaz seu profundo

desprezo pelos pernambucanos e principalmente às autoridades, por conivência,

descaso e fomento da impunidade. O jornalista Dantas Barreto e o industrial Delmiro

Gouveia, vítimas recentes de violência no Recife, foram chamados a validar a tese

depreciativa sobre os conterrâneos do autor, que se manteve no diário, desde a sua

inicial classificação como manifestação de “populações de raças inferiores” (registros

de 8/11/1917 e 10/11/1917). Porém, incansável investigador dos menores detalhes

dos atentados, Oliveira Lima acabou atribuindo sua autoria ou melhor, a autoria oculta

por trás da imprensa e do movimento popular de hostilidade aos alemães, inicialmente

aos interesses econômicos da companhia inglesa de bondes Pernambuco Tramway,

auxiliada pela Texas Oil, que teria fornecido gasolina para os incêndios.(11/11/1917).

A questão era pois descobrir a quem interessava o vandalismo sobre as propriedades

dos alemães. A resposta encontrada foi o capital europeu dos países Aliados, que

soube mobilizar o povo para a fúria e os saques, enquanto a imprensa assumia

posição de “covardia moral” : “os jornais hoje publicam a medo, quando não atenuam

os fatos para desculpá-los, os vandalismos de ontem” (8/11/1917). Desde a

declaração de guerra à Alemanha, a população fora levada a entender que a

beligerância significava atacar os alemães residentes no Brasil.

Pouco a pouco nas páginas do diário aflorou seu posicionamento contrário à

entrada do Brasil na guerra – “o Brasil foi arrastado à guerra sem querer”, quando

Page 119: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

118

teria bastado a neutralidade , aliás solução adotada pela Argentina, mencionada mas

não explorada no diário. E o quadro complexo das relações entre Brasil e Estados

Unidos vai se desenhando para evidenciar o alinhamento estabelecido a partir da

gestão de Rio Branco no Ministério das Relações Exteriores (1902-1912). A

culpabilização pelos atentados e pela entrada do Brasil na guerra progressivamente foi

deslocada no diário para incluir o papel da aliança com os Estados Unidos. Para

Oliveira Lima, os

[...] americanos [...] estão odiando a Alemanha. Quanto mais sucessos militares e navais esta conta – acaba agora de impor a paz à Rússia em condições extraordinárias, que ninguém pressagiaria no começo da guerra – mais eles se contrariam. Quereriam ser a 1.a nação do mundo em tudo e nenhuma outra para lhes fazer sombra, nem comercialmente, nem economicamente, nem militarmente. Meteram-se na guerra para salvar a Inglaterra, ameaçada de morte e sobretudo para estabelecer sua própria hegemonia sobre o mundo, acusando a Alemanha desse feio pecado. (24/2/1918).

As reiteradas críticas aos Estados Unidos e a ressignificação dos interesses

envolvidos na guerra vão se delineando no diário à medida que se estabelece, com a

ruptura da neutralidade brasileira, um controle da imprensa nacional por um serviço de

censura comandado pelos Estados Unidos. A indignação de Oliveira Lima atingiu

então níveis altos níveis por entender que tal controle arranhava a soberania nacional

e em especial atingia a autonomia do Ministério das Relações Exteriores, cujo titular

na época era o ex-presidente da República Nilo Peçanha. Recebeu porém um

tratamento aparentemente privilegiado, talvez por sua condição de diplomata

aposentado, ao ser visitado pelo cônsul americano no Recife para ser apresentado ao

tenente da marinha americana enviado para exercer a censura sobre os jornais ali

publicados, atitude que considerou humilhante para o governo brasileiro. Mas o recado

estava dado a ele, sem grande sutileza: deveria se precaver, pois a censura se abateu

sobre a imprensa pernambucana enviada ao exterior. Seus escritos e mesmo suas

manifestações verbais estavam ameaçados.

A grande questão que se colocou aos poucos nas páginas do diário em

análise, uma vez passada a emoção causada pelos atentados aos alemães, foi a

possibilidade do envio de tropas aos campos de batalha, que significaria “levar o povo

à guerra de verdade nas trincheiras europeias”. Oliveira Lima assumiu firme postura

contrária publicamente e responsabilizou a Inglaterra por “arrastar os países fracos

para depois deixá-los no tremedal a debaterem-se” (14/11/1917). Ao abordar o tema,

Page 120: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

119

revelou-se particularmente irônico ao duvidar do sucesso do alistamento voluntário de

tropas brasileiras a serem enviadas em auxílio dos Aliados:

Não falta quem pensa que se se tratar de mandar tropas para a Europa, o exército reagirá e o povo se amotinará. O Carlos Lyra recomendou ontem com graça[...] uma boa especulação – a de comprar quanta corda pudermos porque a procura seria muito grande para amarrar voluntários” (grifo original, 17/11/1917).

E mais adiante, ao comentar a formação de unidades bélicas em Pernambuco,

insistiu na ausência de espírito belicista entre os pernambucanos, exceto para a

“beligerância passiva” ou “de uso interno” de ataques a civis desarmados. Na ausência

de voluntários, haveria que se proceder ao sorteio e afinal ao recrutamento de

“involuntários” (27/11/1917). Com isso colocou-se na mira dos ataques do Jornal do

Recife onde foi denunciado como

[...] infenso à causa da Pátria. A causa desses miseráveis é o dinheiro que recebem de quem lhes encomendou os sermões, e também a satisfação dos maus instintos tão abundantes no homem que vai procurar oportunidades de explodir” [...]. Escrevendo esses artigos, o jornal busca açular os desordeiros contra os alemães, germanófilos e tudo quanto for pessoal decente e portanto “indesejável”.(9/12/1917).

E no entanto, já se preparava para ir à Argentina ministrar conferências, a

convite do ministro e político Estanislao Zeballos, nas quais pretendia defender “a paz

no Novo Mundo” . Tinha seus motivos: “O pendor natural do meu espírito, o efeito do

tempo e outras circunstâncias estão fazendo de mim um propagandista da paz, um

apóstolo do pacifismo”. Não mudava no entanto sua admiração pela cultura

germânica, que conhecera de perto quando secretário da legação do Brasil em Berlim.

Logo na sequência desta passagem do diário deixou um trecho enigmático que

complementa a declaração pacifista e sugere convicção íntima inabalável, por

conveniência impossibilitado de externar: trecho não está transcrito

Mas foi nas palavras atribuídas ao embaixador norte- americano no Brasil,

Edwin V. Morgan, que encontrou brecha camuflada para expressar um inequívoco

julgamento sobre os alemães. Atribuiu-lhe a confidência de “reverenciar o caráter

alemão, admirar o povo alemão, prezar a cultura alemã e sabia perfeitamente que não

se tratava de bárbaros como seus inimigos queriam fazer crer” . Com um argumento a

mais, acrescentou: a necessidade que o Brasil tinha “ do concurso do estrangeiro, do

braço estrangeiro, da cultura estrangeira” (13/11/1917).

Contra a propaganda de guerra que exaltava a excelência dos aliados e

execrava a perversidade dos adversários , construiu sua contrapropaganda : em lugar

Page 121: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

120

de defender a participação dos alemães na Guerra, preferiu apontar os interesses

econômicos dos aliados em jogo no conflito. E na teia da interpretação dos atentados

e da participação do Brasil na Guerra, criticou tanto no seu diário como no Diário de

Pernambuco o abandono da posição de neutralidade pelo governo brasileiro. Sua

crítica à política externa do governo Wenceslau Brás atingia também Nilo Peçanha e

Rui Barbosa. Passara da posição de grande admirador e defensor deste durante a

campanha civilista à crítica feroz com que externou no diário íntimo o desencanto pela

influência que o político tivera na defesa da entrada do Brasil na guerra.

O diário íntimo se encerra em dezesseis de junho de 1918, já bem próximo do

fim da guerra. Com isso se encerrava também sua permanência no Recife e a

“expansão íntima” para consigo mesmo, escrita num momento de “solidão moral”, cujo

último registro acena com um retrato seu feito por uma pintora pernambucana,

expressão zombeteira de vaidade não dissimulada e afirmação de sua identidade.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Francisco Eduardo Alves de. A situação material dos navios de guerra da Armada Nacional ao final de 1917: uma análise crítica. Navigator, Rio de Janeiro, n. 5, 2007, p. 7-19.

BEZERRA, Alcides. A biblioteca de Oliveira Lima. Rio de Janeiro, Publicações do Arquivo Nacional, 1929, v.26, p.45-52.

CARDOZO, M. da Silveira. M. Oliveira Lima and the Catholic University of America. Journal of Inter-American Studies,Coral Gables: University of Miami, v.11, n.2, 1969.

FRANTZ, H.W. A “Biblioteca Oliveira Lima” na Universidade Católica de Washington.

RABL, n.77,1949,p.136-7.

FREYRE, Gilberto. Oliveira Lima e sua Brasiliana. Diário Popular, São Paulo, 13 jun. 1968.

GOUVÊA, Fernando da Cruz. Oliveira Lima, uma biografia. Recife: IAHGP, 1976.

LIMA, Manoel de Oliveira.História da Civilização. São Paulo: Melhoramentos, 1921.

____________. Horas de Ócio, 1885 (ms).

____________. Memórias: estas minhas reminiscências. Recife: Sec. Turismo, Cultura e Esportes, 1986.

MALATIAN,Teresa. Oliveira Lima e a construção da nacionalidade. São Paulo: FAPESP; Bauru: EDUSC, 2001.

Page 122: Sílvia Maria Azevedo (Org.) - assis.unesp.br · Cyro dos Anjos & Drummond”, Wander Melo Miranda explorou as potencialidades da carta enquanto exercício no qual o missivista lança,

121

OCTÁVIO, Rodrigo. (Langgaard de Menezes). Minhas memórias dos outros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936.

SOUZA LEÃO FILHO, J. “Oliveira Lima, o colecionador”. In: MRE. O Centenário de Oliveira Lima. Brasília, 1968, p.51-63.