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1 ENGENHEIROS ALEMÃES NA CARTOGRAFIA DE MINAS GERAIS DO SÉCULO XIX: ESCHWEGE, WAGNER, HALFELD E HENRIQUE GERBER German Engineers and the Cartography of Minas Gerais during the 19 th Century: Eschwege, Halfeld, Wagner, and Henrique Gerber Friedrich Ewald Renger 1 Maria do Carmo Andrade Gomes 2 1 Universidade Federal de Minas Gerais / UFMG Instituto de Geociências / IGC Departamento de Geologia [email protected] 2 Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte [email protected] RESUMO O artigo apresenta a cronologia das cartas oficiais de Minas Gerais produzidos durante o século XIX sob o auspício da repartição de obras do governo da província. Entre os autores destes mapas destacam-se cartógrafos de origem alemã, tais como o Barão Wilhelm von Eschwege, coronel do Corpo de Engenheiros do exército português, o engenheiro de minas Fernando Halfeld, primeiro engenheiro da província em 1836, Frederico Wagner, um técnico de mineração, desenhista e cartógrafo, e finalmente Henrique Gerber, engenheiro, arquiteto e urbanista. Todos eles elaboraram mapas que representaram marcos da cartografia mineira nas suas respectivas épocas. Na sua maioria, esses mapas eram exemplares de gabinete de uso restrito à própria administração, pois se tratavam de documentos manuscritos. Porém, o primeiro mapa de ampla divulgação é a Carta da Província de Minas Gerais, de Henrique Gerber, datado de 1862, impresso na Alemanha, na escala 1:1.500.000 e distribuído a todas as câmaras municipais e autoridades da província, acompanhada de uma nota explicativa, as Noções geográficas e administrativas da Província de Minas Gerais. A própria administração provincial usou a mesma carta para fins de planejamento de vias de comunicação, tais como construção de estradas, rede dos correios e localização de postos de fiscalização. A Carta tornou-se assim a referência da imagem territorial de Minas Gerais da segunda metade do século XIX. Foi usada inclusive por muitos viajantes na província e ainda foi largamente copiada em outros mapas posteriores com menores correções ou melhoramentos. Palavras chaves: Minas Gerais, cartografia século XIX, Eschwege, Halfeld, Wagner, Gerber ABSTRACT The paper presents the chronology of the official maps of Minas Gerais, produced during the 19 th century by the authority of public works of the province. Between the authors of those maps are many German cartographers: Wilhelm von Eschwege, coronel of the engineer’s corps of the Portuguese Army, the mining engineer Fernando Halfeld who was the first provincial engineer in 1836, Frederico Wagner, a mining technician, draftsman and cartographer and lastly Henrique Gerber, an engineer and architect. All of them produced maps which at their respective time represented highlights of the cartography of the province of Minas Gerais. Most of those maps were of restricted use for administrative use only, since they were only manuscript copies. The first map of large publicity was Gerber’s map of the province, scale 1:1.500.000, printed in Germany, which was delivered to all municipalities in Minas Gerais, as well as to notable authorities. The map was accompanied by an explanatory booklet about geography, geology, botany, fauna, and administrative organization of the province (Notes on geography and administration of the province of Minas Gerais). The map was widely used by the provincial government for planning of roads, the post network, location of tax offices etc. For this reason Gerber’s map turned out to be the reference of the image of the territory of

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ENGENHEIROS ALEMÃES NA CARTOGRAFIA DE MINAS GERAIS DO SÉCULO XIX: ESCHWEGE, WAGNER, HALFELD E HENRIQUE GERBER

German Engineers and the Cartography of Minas Gerais during the 19

th Century:

Eschwege, Halfeld, Wagner, and Henrique Gerber

Friedrich Ewald Renger1

Maria do Carmo Andrade Gomes2

1Universidade Federal de Minas Gerais / UFMG Instituto de Geociências / IGC Departamento de Geologia

[email protected]

2Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte

[email protected]

RESUMO

O artigo apresenta a cronologia das cartas oficiais de Minas Gerais produzidos durante o século XIX sob o auspício da repartição de obras do governo da província. Entre os autores destes mapas destacam-se cartógrafos de origem alemã, tais como o Barão Wilhelm von Eschwege, coronel do Corpo de Engenheiros do exército português, o engenheiro de minas Fernando Halfeld, primeiro engenheiro da província em 1836, Frederico Wagner, um técnico de mineração, desenhista e cartógrafo, e finalmente Henrique Gerber, engenheiro, arquiteto e urbanista. Todos eles elaboraram mapas que representaram marcos da cartografia mineira nas suas respectivas épocas. Na sua maioria, esses mapas eram exemplares de gabinete de uso restrito à própria administração, pois se tratavam de documentos manuscritos. Porém, o primeiro mapa de ampla divulgação é a Carta da Província de Minas Gerais, de Henrique Gerber, datado de 1862, impresso na Alemanha, na escala 1:1.500.000 e distribuído a todas as câmaras municipais e autoridades da província, acompanhada de uma nota explicativa, as Noções geográficas e administrativas da Província de Minas Gerais. A própria administração provincial usou a mesma carta para fins de planejamento de vias de comunicação, tais como construção de estradas, rede dos correios e localização de postos de fiscalização. A Carta tornou-se assim a referência da imagem territorial de Minas Gerais da segunda metade do século XIX. Foi usada inclusive por muitos viajantes na província e ainda foi largamente copiada em outros mapas posteriores com menores correções ou melhoramentos. Palavras chaves: Minas Gerais, cartografia século XIX, Eschwege, Halfeld, Wagner, Gerber

ABSTRACT The paper presents the chronology of the official maps of Minas Gerais, produced during the 19th century by the authority of public works of the province. Between the authors of those maps are many German cartographers: Wilhelm von Eschwege, coronel of the engineer’s corps of the Portuguese Army, the mining engineer Fernando Halfeld who was the first provincial engineer in 1836, Frederico Wagner, a mining technician, draftsman and cartographer and lastly Henrique Gerber, an engineer and architect. All of them produced maps which at their respective time represented highlights of the cartography of the province of Minas Gerais. Most of those maps were of restricted use for administrative use only, since they were only manuscript copies. The first map of large publicity was Gerber’s map of the province, scale 1:1.500.000, printed in Germany, which was delivered to all municipalities in Minas Gerais, as well as to notable authorities. The map was accompanied by an explanatory booklet about geography, geology, botany, fauna, and administrative organization of the province (Notes on geography and administration of the province of Minas Gerais). The map was widely used by the provincial government for planning of roads, the post network, location of tax offices etc. For this reason Gerber’s map turned out to be the reference of the image of the territory of

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Minas Gerais during the second half of the 19th century. The map was also used by travelers visiting the province, as well as by other mapmakers with minor corrections or improvements. Keywords: Minas Gerais, cartography 19th century, Eschwege, Halfeld, Wagner, Gerber 1. Introdução

Devido à posição estratégica de Minas Gerais no quadro do Brasil colonial, em virtude de suas riquezas minerais em ouro e diamantes, essa capitania foi intensamente cartografada durante o século XVIII, apesar das restrições de acesso e da precariedade dos caminhos internos. Com o esgotamento das minas, no decorrer do século XIX, a vocação da província voltou-se mais e mais à agricultura, ainda mantendo a posição da mais populosa do império, precisando de novas vias de transporte para o escoamento de sua produção agrícola. Ao mesmo tempo surgiu a necessidade de uma reorganização administrativa com a criação de novas comarcas e municípios. Para subsidiar o planejamento dessas demandas houve uma constante preocupação por parte do governo provincial com o conhecimento também das regiões mais remotas da província. Assim houve um esforço constante em produzir cartas topográficas cada vez mais precisas e atualizadas. Com esta finalidade foram contratados inicialmente engenheiros estrangeiros, já que na época não existia um curso de engenharia civil no Brasil. Entre estes profissionais destacam-se alguns alemães que deixaram suas marcas na história da cartografia do século XIX em Minas Gerais: Fernando Halfeld (1797 – 1873), o primeiro engenheiro da província, Frederico Wagner (ca. 1795? – 1860), um técnico de mineração, perito em levantamentos topográficos e eminente cartógrafo e ainda Henrique Gerber (1831 – 1920), arquiteto e engenheiro que se tornou engenheiro-chefe da província. Não se pode esquecer de mencionar o Barão Wilhelm von Eschwege (1777 – 1855) como precursor deles, que trabalhou em Minas ainda no período colonial entre 1811 e 1821. Todos eles dão crédito a trabalhos anteriores, sem citar os nomes dos autores das cartas por eles consultadas, mas sempre frisando que usavam também novas observações próprias. 2. UMA GENEALOGIA DA IMAGEM-SÍNTESE DA PROVÍNCIA DE MINAS GERAIS

Alçada à condição de província com o advento da independência em 1822, a capitania de Minas Gerais consistia em um mosaico de regiões alinhavadas pelos caminhos do ouro, dos diamantes e da pecuária extensiva, e por uma rede urbana expressiva para o contexto do interior do país. Caminhos que seguiam o curso dos rios ou dele se desviavam em busca das riquezas do sertão, contornando ou riscando os maciços montanhosos, os campos do cerrado e o mato dentro. Após mais de 100 anos da aventura colonial, seu vasto território permanecia, aos olhos das autoridades da nova província, desconhecido e indomado, com nebulosas fronteiras externas e fronteiras internas perigosas, que abrigavam em seu interior os desclassificados, os quilombolas e os selvagens nativos. 2.1. Wilhelm von Eschwege

Apesar desse quadro instável em termos de configuração territorial, a província possuía, já em 1821, o seu mapa geral, elaborado por uma autoridade de inquestionável legitimidade técnica, o mineralogista e cartógrafo alemão Wilhelm von Eschwege. Seu mapa, intitulado Novo Mapa da Capitania de Minas Gerais (Fig. 1) era uma síntese dos conhecimentos geográficos acumulados desde o período colonial e resultado de suas viagens e estudos pelo território a serviço da Coroa Portuguesa. Entregue ao príncipe regente D. Pedro quando de sua partida para a Europa, o mapa de Eschwege jamais foi impresso integralmente, mas ainda assim serviu de base aos documentos cartográficos que se seguiram. Somente a parte central do mapa foi incluída como prancha na sua famosa obra Pluto brasiliensis (Berlim 1833).

Antes disso, Eschwege disponibilizou em Munique sua carta para o naturalista Carl von Martius, que a usou para produzir um mapa ampliado do Brasil oriental, desde São Paulo (parcial), Rio de Janeiro até Pernambuco. Foi publicado em quatro folhas e incluído no atlas que acompanha a obra de Spix e Martius (volume 4) sob o titulo Karte von Ost-Brasilien (Carte geographique de la partie orientale de l’Empire du Brésil), de autoria de Eschwege e Martius, impresso em 1834 em Munique e dedicado ao imperador D. Pedro I.

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Fig. 1 - Mapa de W. Eschwege, 1821 (Acervo do DSE, Lisboa)

Ao longo de toda a primeira metade do século XIX, uma nova versão dessa carta geral seria objeto de sucessivas iniciativas do governo provincial. O objetivo maior dessas tentativas oficiais era a produção de uma nova representação síntese da província, baseada nos mapeamentos parciais realizados por motivações diversas como reconhecimento de rios, construção de estradas e pontes, litígios de limites, prospecções minerais e roteiros de viagem. Nos relatórios dos presidentes da província, série ordenada dos discursos oficiais, a demanda por um mapa geral da província é recorrente entre os governantes, repetindo na escala regional as mesmas dificuldades enfrentadas pelo governo geral do império na elaboração de sua carta geral. Entende-se por carta geral a representação cartográfica elaborada em tamanho e escala compatíveis com a imediata visualização dos seus elementos considerados mais importantes, como os limites da província, a hierarquia urbana, a rede de caminhos e os acidentes naturais mais relevantes da paisagem. Tratava-se de um instrumento de funções administrativa, geopolítica e, sobretudo, simbólica, pois reunia, integrava e ordenava visualmente um território que na realidade permanecia desagregado e desconhecido.

A primeira dessas iniciativas deu-se ainda em 1825, quando o recém-criado Conselho da Província incumbiu o secretário-geral Luiz Maria da Silva Pinto de traçar um novo quadro administrativo para a província, redimensionando

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as hierarquias civil, eclesiástica e judiciária herdadas da administração colonial. Silva Pinto compilou dados estatísticos e propôs uma nova ordem territorial para a província, expressa visualmente sobre a base cartográfica de Eschwege.

Fig. 2 - Mapa de Luiz Maria da Silva Pinto, 1826. (Acervo Fundação Biblioteca Nacional)

O mapa, denominado Mapa da Província de Minas Gerais, levantado pelo coronel Barão d’ Eschwege em 1821, aumentado com a costa de leste, limites das dioceses, comarcas eclesiásticas, termos, julgados, freguesias, e

distritos, e comparativo da atual com uma nova organização civil, era dotado de tabelas explicativas e de um encarte contendo a representação da nova comarca criada em 1823, a Comarca do Rio de São Francisco. Além disso, apresentava enfim a configuração geral do território de Minas Gerais, com a incorporação dos Julgados de Araxá e Desemboque (região do chamado Triângulo Mineiro), incorporados desde 1816 à comarca de Paracatu (Fig. 2).

2.2. Fernando Halfeld e Frederico Wagner

Na década de 1830, sob o impacto das sedições e rebeliões que ameaçaram a unidade da província, autoridades governamentais buscaram implementar uma primeira política pública voltada diretamente para a questão territorial e a representação cartográfica de Minas Gerais ao determinar em lei que fosse levantada [...] a carta geográfica e topográfica da província (Lei n.18, de 2 de abril de 1835). Estudiosos apontam esse período como de aumento do poder provincial em detrimento das forças locais, o que certamente concorreria para a necessidade de afirmação da unidade territorial da província.

O governo criou uma comissão de geografia, composta pelo secretário Herculano Ferreira Pena e o ex-secretário Luiz Maria da Silva Pinto, ambos liderados pelo engenheiro e geógrafo alemão recém-contratado, Fernando Halfeld. No ano seguinte seria contratado como auxiliar um outro engenheiro alemão, Frederico Wagner. Envolvidos em muitas outras tarefas como engenheiros da província, Halfeld e Wagner elaboraram a nova carta com base na compilação lenta e gradual de diferentes mapeamentos, produzidos em seus trabalhos de campo ou de outros cartógrafos. As informações colhidas eram continuamente incorporadas à base manuscrita, e por mais de vinte anos essa seria a metodologia empregada.

Em 1855 o mapa elaborado por Halfeld e Wagner é concluído, mas alguns anos ainda se passaram até que ganhasse sua primeira publicação, aliás, duas publicações diferentes: uma em Gotha, na Alemanha, em 1862, assinada por Fernando Halfeld e Frederico Wagner (Fig. 3); outra em 1863, litografada no Arquivo Militar no Rio de Janeiro, assinada por Frederico Wagner (Fig. 4). O mapa publicado na Alemanha era graficamente superior, mas continha uma particularidade que dificultava sua apreensão visual como representação da província: a região do triângulo mineiro foi apresentada em encarte. Já a carta assinada por Frederico Wagner continha a imagem como um todo e pode ser considerada como a primeira a apresentar a imagem – até hoje – característica do território de Minas Gerais.

Sublinhe-se que as diferenças aqui ressaltadas entre as duas cartas dizem respeito ao resultado final alcançado pela imagem cartográfica, ou seja, ao processo de produção da imagem. É importante apontar, por outro lado, para as

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semelhanças dos processos de mapeamentoautoria exclusiva em qualquer dos mapas. Os procmapeamentos ou dados primários colhidos em atividades de campo pontuais, fragmentadas e dispersas no tempo e no espaço, configuram uma cartografia de gabinete, ou seja, fundada na atividade inteldas informações sobre um canevas e uma escala definidos para abranger uma totalidade visual apreensível ao olhar e tamanho manipulável. As dificuldades orçamentárias, a precariedade dos instrumentos e a constante falta deram fortes obstáculos à produção de um mapa baseado no mapeamento de campo, sem contar a vastidão do território a ser palmilhado.

Fig.3 - Carta de

Fig. 4 - Carta Corográfica da Província de Minas Gerais

processos de mapeamento, tão semelhantes e imbricados que é difícil e polêmico apontar para uma autoria exclusiva em qualquer dos mapas. Os processos cumulativos de dados secundários, compilados de outros mapeamentos ou dados primários colhidos em atividades de campo pontuais, fragmentadas e dispersas no tempo e no espaço, configuram uma cartografia de gabinete, ou seja, fundada na atividade intelectual de reunião e reinterpretação das informações sobre um canevas e uma escala definidos para abranger uma totalidade visual apreensível ao olhar e tamanho manipulável. As dificuldades orçamentárias, a precariedade dos instrumentos e a constante falta deram fortes obstáculos à produção de um mapa baseado no mapeamento de campo, sem contar a vastidão do território a

Carta de F. Halfeld e F. Wagner, 1862. (in: MARTINS,

Corográfica da Província de Minas Gerais de F. Wagner. 1863. (Acervo Fundação Biblioteca Nacional)

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, tão semelhantes e imbricados que é difícil e polêmico apontar para uma essos cumulativos de dados secundários, compilados de outros

mapeamentos ou dados primários colhidos em atividades de campo pontuais, fragmentadas e dispersas no tempo e no ectual de reunião e reinterpretação

das informações sobre um canevas e uma escala definidos para abranger uma totalidade visual apreensível ao olhar e tamanho manipulável. As dificuldades orçamentárias, a precariedade dos instrumentos e a constante falta de cartógrafos eram fortes obstáculos à produção de um mapa baseado no mapeamento de campo, sem contar a vastidão do território a

MARTINS, 1998)

Fundação Biblioteca Nacional)

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2.3 Henrique Gerber Foi seguindo essa mesma tradição de produção de uma cartografia de gabinete, legitimada pela autoridade

técnica de uma linhagem de cartógrafos alemães, que outro engenheiro de mesma origem, contratado pelo governo provincial, viria a produzir o mapa que cristalizou a imagem síntese de Minas Gerais no século XIX e se tornou o seu documento cartográfico oficial – seu corpo político - até o advento da República: a carta geral de Henrique Gerber (Fig. 5).

Henrique (Heinrich) Gerber nasceu na cidade de Hannover, na Alemanha, em 23 de agosto de 1831 onde cursou a Escola Politécnica entre 1847 e 1851. Depois de participar de projetos arquitetônicos na Alemanha partiu para o exterior e trabalhou em projetos urbanísticos na França e na Espanha antes de viajar para o Brasil. Entrou no serviço da repartição das obras públicas da província em 1857, então com 26 anos de idade, e foi inicialmente encarregado de levantamentos topográficos de projetos de novas estradas em diversas partes da província, além de vários projetos de reforma de prédios públicos. Também foi responsável pelo projeto do balneário de Caxambu, as chamadas Águas Virtuosas de Campanha (Renger, 2013).

Apesar da existência da recém concluída carta da província de Wagner, o inspetor-geral das Obras Públicas, José Rodrigues Duarte, propôs já em 1858 a confecção de uma nova carta, semelhante a um projeto da província limítrofe do Rio de Janeiro, cujo governo havia contratado os serviços dos engenheiros militares Pedro de Alcântara Bellegarde e Conrado Jacob Niemeyer para o levantamento de uma carta corográfica na escala 1:300.000, impressa em quatro folhas entre 1857 e 1861. Para isso deveria ser nomeada uma comissão para o trabalho de campo, incluindo a determinação de posições astronômicas de cidades, vilas, confluências de rios e picos, tudo referenciado ao meridiano do Pão de Açúcar, que serviu também como primeiro meridiano da carta do Rio de Janeiro. Estas cartas de Minas e do Rio de Janeiro deveriam servir como base de uma nova carta geral do império. Mas o inspetor-geral sabia das restrições orçamentárias do governo mineiro e o projeto ficou no papel.

A lei provincial no. 1104 de 16 de outubro de 1861 (lei de orçamento do ano fiscal 1862/63) autorizava o governo da província a contratar com o engenheiro Henrique Gerber a impressão do mapa da província, bem como da Notícia geológica, histórica e corográfica da Província, por ele organizados. O respectivo contrato foi assinado em 17 de dezembro de 1861, pelo qual Gerber se comprometeu a mandar litografar a carta da província na escala de 1:1.500.000, usando não só os dados por ele colhidos como engenheiro da província, mas também coligindo os trabalhos existentes nos arquivos (Fig. 5), e fazendo uso de mapas anteriores. Além disso, Gerber deveria mandar imprimir as Noções geográficas e estatísticas para acompanhar a carta. Tudo estimado em 3.500$000, devendo Gerber entregar 300 exemplares de cada produto para o governo provincial.

Fig. 5 - Carta da Província de Minas Gerais de H. Gerber, 1862. (Acervo Fundação Biblioteca Nacional)

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O mapa foi litografado e impresso na editora de Carl Flemming em Glogau, Silésia (hoje parte da Polônia), com data de 1862, empresa especializada na produção de cartas geográficas e atlas. A nota explicativa sob o título de Noções geográficas e administrativas da Província de Minas Gerais foi impressa na Tipografia de Georges Leuzinger, no Rio de Janeiro, em 1863. Trata-se da primeira obra do gênero referente a Minas Gerais, impressa em língua portuguesa. Traz uma detalhada descrição fisiográfica da província, da geologia, flora, fauna e dos sistemas orográfico e hidrográfico, da rede de comunicações, estatísticas populacionais, bem como uma pormenorizada exposição da divisão administrativa (civil, eclesiástica e jurisdicional) e organização política. Além disso, trata ainda dos indígenas, dos ramos de indústria, da importação e exportação, das finanças da província. Enfim, uma radiografia da província na metade do século XIX. Em outubro de 1863, o contrato com Gerber já estava liquidado e os trezentos exemplares – tanto do mapa quanto das Noções – contratados pelo governo já estavam entregues no arquivo público. Cem exemplares dos mapas eram colados em pano e acondicionados em estojo; são estes exemplares da carta que sobreviveram até hoje em melhor estado de conservação. Como se trata de uma raridade bibliográfica e de difícil acesso, a Fundação João Pinheiro providenciou uma nova edição dessa obra, acompanhada da Carta da Província de Minas Gerais (Gerber, 2013).

O governo provincial distribuiu o mapa e o texto para as câmaras municipais (na época em número de 62 municípios na província) e para as autoridades. Foi o primeiro mapa impresso de Minas Gerais com uma ampla distribuição e acessível a um grande público. Os exemplares de numeração superior a trezentos ficaram com o autor. A administração provincial fez largo uso do mapa para fins de planejamento de vias de comunicações, localização de postos de fiscalização, rede de linhas de correios etc.

Foi o próprio Gerber que apresentou em 1867 ao governo da província um novo plano de viação (Fig. 6), prevendo já uma integração das estradas com a rede ferroviária da Estrada de Ferro D. Pedro II (EFDP), cujos trilhos naquela época nem tinham chegado a Minas. A EFDP deveria formar a espinha dorsal do sistema de vias de comunicação, alimentada pelas estradas de rodagem. Também propôs a interligação com a navegação dos rios maiores.

Fig. 6 - Carta rodoviária da Província de Minas Gerais de H. Gerber, 1867. (in: GERBER, 2013)

Também os viajantes que visitaram Minas Gerais usaram o mapa de Gerber, como o explorador inglês Richard

Burton ou o geólogo americano Frederick Hartt. Burton, no seu livro Explorations of the Highlands of the Brazil fez alguns comentários e críticas referentes ao mapa, no qual, por exemplo, identifica uma troca dos nomes da Serra do Curral e da Piedade. Por outro lado, achou o texto das Noções merecedor de uma tradução para o inglês, a qual Burton publicou em dois artigos de revistas inglesas.

Assim, o mapa de Gerber teve ampla divulgação e tornou-se a referência cartográfica par excellence da geografia de Minas Gerais durante três décadas, até o surgimento de novos mapas na década dos 1890. Foi muito copiado por outros autores, às vezes ampliado com inclusão de áreas limítrofes e algumas correções e melhoramentos. – O mapa teve uma segunda impressão, dessa vez pelo Instituto Litográfico de Berlim, incluindo nessa edição um encarte da planta de Ouro Preto, também da autoria de Gerber (Fig. 7). Esta planta aparece também como frontispício no livro das Noções, que foram re-impressas numa editora de Hannover em 1874. Naquela época, Gerber já tinha retornado

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definitivamente para Alemanha onde se tornou chefe do departamento de obras da cidade de Göttingen. Ali se aposentou em 1901 e faleceu em 1920.

Fig. 7 - Planta topográfica de Ouro Preto de H. Gerber, 1863 (in: GERBER, 1863)

O próprio Gerber percebeu a imperfeição de sua carta da província, Já em 1866, propôs a compilação de todos os estudos e levantamentos para estradas ou navegação de rios e outros trabalhos geodésicos da província na escala 1:250.000 como base de uma carta aperfeiçoada (Renger, 2013). Para a obtenção de uma carta topográfica perfeita, Gerber estimou o emprego de trinta engenheiros, durante um período de cinco anos, ao custo de 800 contos de réis, um valor fora das possibilidades do orçamento da província. Evidentemente o projeto ficou no papel. Na década de 1890, foi criada a Comissão Geográfica Geológica de Minas Gerais, para a elaboração de uma nova carta detalhada do estado. Analisando os trabalhos existentes, os engenheiros da Comissão Geográfica Belarmino Menezes e Luis Lombard fizeram uma avaliação criteriosa da carta de Gerber. Dizem eles: O sistema orográfico é apenas esboçado pelas direções das serras principais e a indicação dos picos mais elevados, e nem se compreende de

outro modo, não tendo sido feito uma triangulação retangular. Entretanto, quem conhece o interior de Minas fica

admirado da aproximação relativa das indicações fornecidas pelo mapa. [...] Concluindo, eles afirmam: Os serviços prestados pela carta de Gerber à pública administração, ao comercio e à indústria não podem ser postos em dúvida;

basta lembrar que durante um período de trinta anos, de 1862 a 1892, ela pode satisfazer as necessidades

administrativas que a criaram. [...] (Menezes e Lombard, 1894. A carta de Gerber só seria ultrapassada pela carta do engenheiro João Chrockatt de Sá Pereira, diretor da Repartição de Obras Públicas da província na década de 1880, que elaborou um novo documento na escala de 1:1.000.000, impresso em 1893. Mas na opinião do eminente geógrafo Nelson de Senna, ele é a muitos respeitos uma ampliação da carta de Gerber ... [que] é ainda hoje a maior e mais ampliada das cartas geográficas de Minas (Senna, 1926).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E CARTOGRÁFICAS

CARTA corográfica da província de Minas Gerais, coordenada e desenhada em vista dos mapas corográficos antigos e das observações mais recentes de vários engenheiros, por ordem do Ilmo. e Exmo. Sr. Doutor Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos, presidente desta província, por Frederico Wagner. Ouro Preto, 1855. Rio de Janeiro: Arquivo Militar, 1863. CARTA da província de Minas Gerais coordenada por ordem do Exmo. Sr. Conselheiro José Bento da Cunha Figueiredo, presidente da província, segundo os dados oficiais existentes e muitas próprias observações, por Henrique Gerber, engenheiro da mesma província. [Glogau: C. Fleming], 1862. KARTE der brasilianischen Provinz Minas Gerais, aufgenommen auf Befehl der Provinzialregierung in den Jahren 1836-1855, mit Benutzung älterer Karten u. neuerer Vermessungen u. Beobachtungen, unter specieller Leitung des

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Civil-Ingenieurs H. G. F. Halfeld entworfen u. gezeichnet von Friedrich Wagner. Gotha: Justus Perthes, Lit. Anstalt C. Hellfarth, 1862. MAPA da Província de Minas Gerais, levantado pelo coronel Barão d’ Eschwege em 1821, aumentado com a costa de leste, limites das dioceses, comarcas eclesiásticas, termos, julgados, freguesias, e distritos, e comparativo da atual com uma nova organização civil, por Luiz Maria da Silva Pinto em 1826. [Ouro Preto]: s.n., 1826. NOVO MAPA da capitania de Minas Gerais levantado por Guilherme, Barão de Eschwege, tenente-coronel do Real Corpo de Engenheiros. 1821. Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar, Lisboa. ESCHWEGE, W. L. von. Pluto brasiliensis. Berlim: Reimer, 1833. GERBER, Henrique. Noções geográficas e administrativas da Província de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Coleção Mineiriana, 2013. (re-edição da edição original de 1863; organização e estudo crítico de F.E. Renger). GOMES, Maria do Carmo Andrade. Mapas e mapeamentos, dimensões históricas; políticas cartográficas em Minas Gerais. Tese (Doutorado em História) – Fafich/Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. MARTINS, Roberto B. Tschudi, Halfeld, Wagner e a geografia de Minas Gerais no século XIX. In: HALFELD, H.G.F., TSCHUDI, J.J. von. A província brasileira de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1998. MENEZES, Belarmino Martins de; LOMBARD, Luis. A cartografia no Estado de Minas. O Estado de Minas, ano 5, no. 383, 30 de março de 1894. RENGER, Friedrich E. Henrique Gerber, um engenheiro alemão a serviço da província de Minas. In: GERBER, H. Noções geográficas e administrativas da Província de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Coleção Mineiriana, 2013. SENNA, Nelson de. A Terra Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1926.