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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº33 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002 VOLUME III ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA ISSN 1517-5421 lathé biosa 33 MITOS TAL QUAL VÍRUS: ANÁLISE DE UMA NARRATIVA VIRTUAL ARI OTT WALDEMIR MIOTELLO PRIMEIRA VERSÃO

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Volume III do Primeira Versão (Janeiro/Abril de 2002)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº33 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 33

MITOS TAL QUAL VÍRUS: ANÁLISE DE UMA NARRATIVA VIRTUAL

ARI OTT WALDEMIR MIOTELLO

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 2

ARI OTT VALDEMIR MIOTELLO MITOS TAL QUAL VÍRUS:1

Médico, Professor de Antropologia - UFRO Professor de Filosofia - UFRO ANÁLISE DE UMA A NARRATIVA VIRTUAL

[email protected] [email protected]

Nunca escrevemos este artigo que você começou a ler. Ele apenas existe virtualmente. Jamais foi impresso, não foi rascunhado no papel. Ele é resultado da

troca de vários mail's entre seus autores. E trata-se de uma primeira aproximação analítica acerca de um mito (transcrito a seguir) que vem sendo sistematicamente

transmitido na rede mundial de computadores.

A Internet é reconhecida como a mais importante ferramenta de comunicação deste final de século. Utilizada tanto para pesquisas, quanto para negócios, foi

também invadida por todo tipo de mensagens (cookies), campanhas e narrativas. Abriga alguma coisa em torno de quatrocentos milhões de páginas que contemplam

desde empresas transnacionais, até páginas pessoais. Possibilita, com seus instrumentos de busca, que uma palavra chave leve o internauta a ter que escolher entre

centenas de milhares de possibilidades de consulta, sem a menor certeza de qual página terá a informação procurada.

Mais que isso, estabeleceu um correio eletrônico inovador, que dispensa papel, envelope, selos e carteiro. O usuário da rede organiza um catálogo de endereços

eletrônicos e, ao escrever ou receber uma mensagem que considere que deva ser compartilhada por todos, simplesmente clica em um botão que (re)envia a mesma

mensagem para todos os constantes do seu catálogo. Esta função dos programas de correio eletrônico é importante porque faz a mensagem disseminar-se

exponencialmente, atingindo milhares, quiçá milhões de pessoas em algumas horas ou dias.

Que narrador poderoso! Tão poderoso que vê sua mensagem multiplicada praticamente a um número não pronunciável de leitores, tantos podem ser eles. A

facilidade do meio possibilita que se multipliquem as mensagens de todo tipo: apoio ou repúdio às mais variadas causas, histórias, piadas, frases, ditos e brocados dos

mais variados temas e mensagens edificantes. Narrativas míticas também trafegam na Internet.

Denominamos narrativas míticas, ou simplesmente mitos, em acordo com as definições clássicas, os relatos de autor desconhecido, partilhados pelos membros

de uma sociedade, enunciados em uma linguagem alegórica e carregados de significação simbólica. Os mitos foram objeto quase exclusivo de estudo da antropologia

que coletou e analisou mitos de grupos indígenas do mundo inteiro. Posteriormente, reconheceu-se que as narrativas míticas também estavam presentes entre grupos

urbanos. Agora, indicamos que estes mitos mantêm a sua perenidade, ocupando os novos meios de comunicação.

1 Artigo publicado na Revista Brasileira de Literatura, disponível apenas no site: http://www. members.tripod.com/~lfilipe/Indice2.html

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É como narrativa mítica que estamos considerando o e-mail recebido por um dos autores e transcrita no tópico 2. Também neste tópico serão explicitadas as

razões pelas quais o consideramos um mito, especificadas as outras fontes de recebimento do mesmo e as reações das pessoas para quem ele foi enviado. O tópico 3

analisa o papel do narrador nos mitos virtuais. Tentar-se-á responder algumas questões: em se tratando de uma narrativa, transmitida por meio eletrônico, quem é o

narrador? E os que apenas encaminham a narrativa para usuários de seus cadernos de endereços também se constituem em novos narradores, ou são apenas re-

transmissores eletrônicos de uma narrativa narrada por outrem? Quem são os novos narradores (os narradores eletrônicos) hodiernos? São os que têm tempo e dinheiro

para estarem diante de um computador ligado ao mundo por um modem, ou são os que têm prazer e gosto pelo narrar, mesmo fazendo uso de equipamento eletrônico?

Algumas conclusões são apontadas no tópico 4. O trabalho não traz uma bibliografia tradicional, mas sim uma netgrafia comentada no tópico 5, onde estão indicados

os endereços na rede para aprofundamento das informações.

O seguinte fato aconteceu faz só uma semana em Buenos Aires. Um jovem decidiu ir a uma festa numa discoteca de lá "Esta Disco". Estava se divertindo

bastante, bebeu algumas cervejas e conheceu uma garota que parecia gostar dele e que o convidou para outra festa. Logo ele aceitou e decidiu ir com ela. Foram a um

apartamento onde continuaram tomando cerveja. Aparentemente lhe deram droga (não é sabido qual). Depois disso só se lembra de ter acordado nu, numa banheira

cheia de pedras de gelo. Ainda sentindo os efeitos da droga e da cerveja, olhou em volta e estava completamente só. Havia um bilhete colado na parede escrito: "Ligue

para o Pronto Socorro no seguinte número ou morrerá." Viu um telefone por perto e ligou de imediato. Relatou o acontecido explicando que não sabia aonde estava, o

que tinha bebido, e o motivo da sua ligação. A atendente o orientou para sair da banheira e se olhar no espelho. Aparentemente estava normal. Então foi orientado para

revisar as costas. Ai percebeu 2 cortes de 15 cm. cada na parte baixa das costas. A atendente o orientou para entrar de novo na banheira e aguardar até chegar a equipe

de emergência que seria enviada.

Infelizmente tinham ROUBADO OS SEUS RINS e foi levado ao Hospital "Fernández". Cada rim tem um valor de 15,000 a 20,000 dólares no

mercado Negro (ele nem sabia que isso existia). Algumas deduções podem ser feitas: A segunda festa era uma farsa, as pessoas envolvidas tinham

conhecimentos médicos e as drogas que lhe deram não eram para nada divertido. Atualmente, essa pessoa esta no Hospital Fernández, conectado a um

sistema que o mantêm vivo, esperando encontrar um rim compatível. Atualmente estão sendo realizados estudos de compatibilidade para encontrar um

doador. Existe uma nova máfia do crime organizado que tem como alvo pessoas que viajam a trabalho ou estudo. Esta máfia esta bem organizada, financiada

e conta com pessoal altamente especializado. Age em muitas grandes cidades e recentemente está muito ativa em Buenos Aires.

O crime começa quando a pessoa vai ao barzinho, boate ou discoteca. Uma pessoa se aproxima e ao vê-lo sentado só (de preferência) ou com um grupo de

amigos, começa a bater papo. Na próxima cena, a pessoa acorda num quarto de hotel ou num apartamento, submergido em gelo na banheira, e só consegue lembrar da

última bebida que tomou. Há algum bilhete colado na parede para ligar para o Pronto Socorro. Ao ligar, as atendentes, que já conhecem este crime, o orientam para

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checar cuidadosamente e sentir se tem um tubo que sai da parte baixa das costas. Caso a pessoa encontre o tubo e responda positivamente, a atendente pede para ele

não se mexer, e aciona os paramédicos para auxiliar. Ambos os rins foram retirados.

Isto não é uma farsa ou um conto de ficção; é real, tem sido documentado e confirmado. Se você sai só ou conhece alguém que o faz, preste muita atenção.

Existem médicos experientes e inescrupulosos que cometem este tipo de crime. A Polícia Federal tem recebido notícias sobre estes fatos, e está preparando o seu

pessoal. Por favor, comente esta história, conte-a a todas as pessoas que puder.”

Esta versão foi recebida sem comentários do remetente. Aliás, ele é o principal correspondente de um dos autores deste artigo no que se refere ao envio de todo

tipo de história que cai na rede. Alguns dias depois, a mesma versão foi novamente recebida, desta feita enviada por uma correspondente brasileira que mora nos

Estados Unidos. Ela tinha recebido a narrativa e estava enviando (Fwd) a mensagem para todos os seus correspondentes, em atendimento ao pedido de repassar o

alerta, e precedida de alguns comentários: Essa mensagem veio de uma delegacia de polícia de Campinas. Como coisas deste tipo realmente acontecem é melhor

prevenir e passar a estória para o maior número de pessoas possíveis. Por sua vez, a pessoa que originalmente havia mandado a narrativa para ela também fazia alguns

comentários: A história abaixo parece muito esquisita... mas como recebi de uma delegada de polícia, achei melhor seguir o conselho de passá-la adiante! (grifos

nossos).

O envio da narrativa para outras pessoas do catálogo de endereços dos autores provocou algumas reações. Ora de dúvida (...mas alguém sem os dois rins

consegue sobreviver por algum tempo??), ora de estupefação (...a que ponto chegamos!), ora de conformismo (não se pode ficar mais tranqüilo hoje em dia), ora de

ares apocalípticos (...teoria da conspiração, loucura ... recebi este e-mail, não sei se é verdade. Mas por precaução, vamos lê-lo), ora de certeza de ser o Salvador

(...esta eu recebi e achei melhor encaminhar pra ser divulgada e repassada), mas nenhuma de desconfiança, ceticismo ou pronta negação acerca da veracidade da

narrativa. Ou seja, o relato era tomado, a medir pelas reações tanto daqueles que a estavam enviando, quanto daqueles que estavam recebendo e respondendo a

mensagem, como não somente aceitável, mas também como verídica e possível de se repetir em qualquer outro lugar e com qualquer outra pessoa. Daí a urgência

encontrada em todos eles de divulgar esta coisa tão trágica de Buenos Aires...

Não importa, de um ponto de vista objetivo, cirúrgico, se a narrativa é plausível ou inverossímil. O que a transforma em um mito, e não em um relato

jornalístico, é que ela contém os elementos alegóricos e lingüísticos que fazem aflorar os medos milenares, as explicações esdrúxulas, os sonhos retidos por séculos, as

neuroses embutidas, as lições de moral repetidas à exaustão e os arquétipos já atualmente soterrados de explicações racionais. Os personagens arquetípicos de mitos são

conservados, transmitidos e transformados para as gerações seguintes. O Prometeu acorrentado dos gregos teve o fígado arrancado pelos abutres. O Matin-ta-pereira

dos amazônidas e o Mapinguari assustador, um índio envelhecido e endurecido pela falta de água e comida, andam pela floresta para levar embora os que se atrasam à

noite sobre as horas combinadas para estar em casa. O Homem com o saco nas costas vagueia pelas ruas de nossas cidades, carregando as crianças, sumindo com elas,

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levando-as para um lugar escuro, de onde não voltam mais. A Garota da Noite, bela e sedutora por suposto, e o Médico Nefrologista, hábil e inescrupuloso com

certeza, espreitam pelos bares à caça de sadios inocentes.

Para além dos personagens, devem ainda ser considerados dois aspectos: o tempo e o espaço das narrativas míticas. A indeterminação temporal é um elemento

constante das narrativas míticas. Daí as formas próprias que introduzem a narrativa: era uma vez, ou no tempo em que os bichos falavam, ou aconteceu faz só uma

semana e assim por diante. Quanto ao espaço ou ele é indeterminado, a Terra do Nunca, ou é inacessível aos seres humanos, o Olimpo. Esta indeterminação ou

inacessibilidade temporo-espacial possibilita a atualização da narrativa, indicando ao ouvinte que aquilo que ocorreu no pretérito e alhures pode vir a ocorrer

novamente neste tempo e neste lugar. Mas, no caso desta narrativa, se o tempo é melífluo, o lugar está bem estabelecido e acessível: Buenos Aires, acrescentando um

nome de uma discoteca e de um hospital. Se se considerar que a Buenos Aires da narrativa é a capital da Argentina, situada às margens do rio da Prata, com suas

multidões de desempregados, falta de luz por onze dias consecutivos, um sistema previdenciário em frangalhos e um sistema de saúde privatizado, a narrativa perderia

o seu caráter mítico de indeterminação de lugar, e não seria um mito, mas uma narrativa jornalística plausível de mais uma das inúmeras mazelas das cidades

subdesenvolvidas. O leitor é tentado a quase considerar que a discoteca e o hospital existem na realidade cotidiana. Entretanto, se se considerar que a Buenos Aires

relatada é aquela dos cafés e calles floridas, com suas casas de tango e a casa rosada com primeiras damas hollywoodianas, com mulheres lindas e homens elegantes,

parecendo que saíram diretamente das vitrines para os passeios; aquela Buenos Aires que aparece nos cadernos de turismo dos jornais e revistas como o único lugar da

América Latina em que se respira um ar europeu; aquela Buenos Aires em que Gilda viveu sua tórrida paixão, está-se representando uma cidade mítica, inacessível ao

comum dos mortais. Esta cidade, este espaço, este território mítico é o palco representacional do possível e do impossível. Não é por outra razão que o personagem não

é simplesmente raptado e subjugado à força e levado para um esconderijo onde se possa dispor do seu corpo, conforme o gosto dos seus algozes. Ao contrário, o

personagem freqüenta a Buenos Aires noturna com seus encantos. Não há violência no relato; há sedução. Não há constrangimento; há convencimento. Não há dor; há

delícia. Não há urgência; há surpresa.

Como se constitui este narrador e este interlocutor, ao redor de uma narrativa, e levada adiante por meio eletrônico? Narrador é quem narra. Há bons e maus

narradores. Não se nasce com o dom de narrar. Narrar, assim como qualquer ação ou pensamento humano, se aprende, e de fora para dentro. O que parece dom de

contar, de narrar, se aprende a duras penas, narrando, treinando talvez em família, depois enfrentando grupos maiores, expondo-se à crítica alheia, recebendo retorno do

que foi narrado. Quando este treino é feito "voz-ouvido", parece mais rápido o retorno, buscado dentro do olho do interlocutor, na sua posição corporal, nos seus "ais-e-

então?" e no seu interesse vivo. Além disso, a própria platéia vai selecionando, apontando e elegendo seus narradores por conta de suas performances. Mas, como isso

se dá nos meios eletrônicos? Como se elege um bom narrador na rede? Como ele chama a si esta responsabilidade de ocupar este espaço de narrador cibernético?

Não se pretende ter as respostas completas, mas pode-se avançar pouco a pouco na tentativa de, senão explicar, pelo menos alcançar algum entendimento

acerca deste novo fenômeno. O mito nasce na oralidade. Não haveremos de afirmar diferente apenas porque as narrativas míticas do final do século XX começaram a

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navegar na rede de computadores. Trata-se, evidentemente, de um novo meio de comunicação e veiculação, usado ao mesmo tempo pelo locutor e pelo interlocutor,

mas que não desvincula o nascedouro do viveiro. O mito trafega na internet encapsulado em bits, e no entanto ele continua nascendo na oralidade, no contato boca-

ouvido, nos serões noturnos, nas rodas de causos. O relato mítico atual que navega online, teve como manjedoura os arquétipos universais, que vão se modificando e se

adaptando às novas formas de sociabilidade, mas que preservam o projeto-de-dizer original, que mexem com as emoções mais recônditas e subterrâneas da humanidade

do homem. Sua nova vestimenta atual é resultado de novas leituras em cima de novas realidades. Mas o mito, talvez pudéssemos dizer assim, continua o mesmo: a

casa, este território familiar, agora mais do que nunca, oferece segurança, tranqüilidade, aconchego e proteção; na rua, este território inóspito, somente se encontra

perigo, violência, ardis e armadilhas. A narrativa é (re)criada a cada vez que ela é (re)contada. Ou, no dizer popular, "quem conta um conto aumenta um ponto".

Mas como fica esta questão, uma vez que no meio eletrônico a narrativa já vem exibida na tela, e quase sempre é repassada (fwd) sem modificação? Nesse

caso, ela permanece a mesma narrativa, como em um livro impresso em milhares de exemplares? A nossa resposta é não e devem ser considerados três aspectos. O

primeiro aspecto da recriação, diz respeito aos comentários que o narrador (retransmissor) introduz no cabeçalho da mensagem, de caráter absolutamente pessoal. São

neles que o narrador atualiza e interfere na narrativa, imprime suas marcas, aumenta um ponto, apela para argumentos de autoridade, produz o “aggiornamento”, e

assim por diante. Grifamos anteriormente as expressões “delegacia de polícia de Campinas” e “delegada de polícia”, correspondentes aos comentários de dois

narradores. Embora similares, as duas expressões guardam diferenças abissais. Entre uma delegacia de polícia, impessoal, assustadora no imaginário, e uma delegada

de polícia, amiga e conhecedora dos meandros legais, as autoras da retransmissão interferem na narrativa, acrescentam sua própria visão e recriam o mito, mapeando o

“projeto-de-ouvir” do interlocutor. O segundo aspecto da recriação acontece à medida em que o leitor-interlocutor da mensagem re-conta-a para um novo interlocutor,

quando então ela volta para a oralidade, e continua seu caminho, adaptando-se, re-novando-se, re-vestindo-se de novas roupas, míticas e lingüísticas, a partir de cada

realidade em que ela novamente se insere. O que se ganha com o meio eletrônico é em velocidade de difusão, pois que um mesmo narrador pode enviar sua narrativa

para milhares de novos interlocutores. E quando um interlocutor destes se põe a narrar a narrativa que leu, para um público presente e atuante, ele veste cada palavra

com o seu acento apreciativo, com seu tom de voz, procura o melhor ambiente adequado, a melhor hora, o melhor clima, para jogar na corrente sem fim da

comunicação humana uma narrativa que produza os efeitos desejados por ele. Agora a narrativa vai ter o seu tom, vai carregar o seu projeto-de-dizer (se for um médico

ou um dono de bar ou um pai a contar a narrativa de Buenos Aires ela ganha direção e conotação diferenciadas). E, finalmente, o terceiro aspecto é o que permite ao

narrador eletrônico selecionar seus interlocutores, às vezes de uma lista imensa de destinatários disponíveis no seu “caderno de endereços”. Entre seus endereços pode

haver pessoas a quem ele não encaminha determinada mensagem, por não corresponder ao perfil dos que sentiriam prazer de ler tal narrativa. Assim, dependendo da

mensagem, ela é encaminhada a determinada pessoa, ou mesmo a determinado grupo de usuários. Cada narrador eletrônico seleciona seus ‘ouvintes’ e monta sua “roda

de causos” eletrônica.

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O re-transmissor da narrativa passa a ser também um autor. Sendo um elo desta incomensurável cadeia de narradores, recebendo narrativas e selecionando

aquelas que devem ser re-transmitidas, funciona como um fiel depositário dos dados que estão circulando no imaginário de sua sociedade e de sua cultura, de sua

comunidade e de sua família. Ele é quem seleciona e organiza os dados, como se escolhesse o que tirar de um velho baú onde estão as substâncias conjeturais de sua

narrativa. Tanto ao utilizar este depósito narrativo atemporal, quanto ao proceder a uma rigorosa seleção estabelecida por critérios pessoais, ele também re-inventa, re-

cria, re-faz a história, misturando novos elementos, organizando de formas diferentes, e incluindo dados que ainda não estão no baú da cultura, mas que passarão a estar

a partir de sua narração.

Ele é quem introduz na narrativa as marcas de sua individualidade, além de produzir uma narração única e irrepetível. É o ato de fiar a experiência

própria da vida no fio que se perde no tempo e no espaço. Cada nova roda apresenta uma nova ordem, um novo arranjo, que exige novos dotes e novos

esforços da imaginação, e que mobiliza, simultaneamente, tradição e inovação, individualidade e coletividade, o já-dito, o dito-agora e o por-dizer. É a

tecitura infinita das histórias no clicar de um botão. As narrativas, principalmente as narrativas míticas, encontram sua legitimidade e sua historicidade não

só no fato de serem imemoriáveis e serem parte da dimensão ideológica do grupo. Mas, também, por significarem re-apropriação, re-tomada de conteúdo do

imaginário grupal perdido nos desvãos da memória por alguém que vai trabalhar estes dados de forma personalizada, historicizada, demonstrando assim suas

habilidades performáticas e seu trato com as coisas públicas. Dessa forma, a voz que narra revela a dinamicidade da narração e se coloca como contraponto,

re-atualizando o conteúdo.

Ao final, voltamos a Prometeu. Do herói mítico, que roubou o segredo do fogo dos deuses e o entregou aos homens, os abutres retiravam o fígado aos pedaços.

De nosso herói portenho foram retirados os rins inteiros. Ambos sobrevivem à tortura. Prometeu, acorrentado à montanha, porque o fígado regenera-se mesmo com as

bicadas dos abutres, e o nosso herói anônimo, adormecido em uma banheira de gelo, porque a tecnologia interfere a favor dele. Prometeu relaciona-se com os homens,

e esta relação o salva da morte, destino inexorável de todos; o nosso herói relaciona-se com os homens e com as mulheres, acredita neles e nelas, encontra-se com a

morte, mas termina sobrevivendo por interferência de uma máquina. O homem maquínico, eis o resumo do século.

NETGRAFIA COMENTADA a) Faria muito bem ler Walter Benjamim para aprofundar o estudo do narrador. Assume o papel de narrador em uma dada comunidade quem tem ligações amplas

com o mundo circundante (um marinheiro, por exemplo), ou quem está profundamente arraigado em seu próprio meio (como um agricultor). Maiores reflexões podem ser obtidas em http://www.urbi.com.br/users/jlbelas/texto02.htm

b) Um estudioso como Mikhail Bakhtin não pode ficar sem ser lido para aprofundar a questão da relação entre o locutor e o interlocutor, entre o sujeito e o outro. Acha-se excelentes subsídios no Centro Bakhtiniano, localizado na Inglaterra, em http://www.shef.ac.uk/academic/A-C/bakh/bakhtin.html

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c) Sobre mitos e lendas em geral, basta procurar em “Altavista” que milhares de sites serão revelados; e então cabe uma busca com calma. Mas sobre mitos e lendas da Amazônia, o site http://www.mtbrazil.com.br/amazon4.html é um bom começo. Para mitos e lendas brasileiras clique-se http://www.nautilus.com.br/~edilzio/folclore.html

d) Com relação ao imaginário nas formas narrativas orais populares, a Universidade Federal do Pará coletou milhares delas, e colocou à disposição no site http://www.ufpa.br Entre nesta página e logo em seguida clique em pesquisa, e depois procure "O imaginário nas formas narrativas orais populares da Amazônia Paraense". É divertimento na certa.

e) Se tiver curiosidade sobre mitos e musas da mitologia grega, comece sua pesquisa por http://www.geocities.com/Athens/Olympus/7866/musas.html Não pare por aí. Os hackers e anti-hackers também disponibilizam muitas narrativas sobre os mitos pós-modernos que a própria rede produz, como são os que

invadem os mail's falando de milhões de vírus super-perigosos que invadirão e destruirão seu computador em apenas alguns segundos. Para alguma informação inicial vá a http://www.netgate.com.br/~hacker/ahhp/basico/mitos/lendas/main.htm É a criatura assustando o criador. Se não nos enganamos, esta história já está narrada na primeira página da Bíblia. Melhor expulsar o computador de seu paraíso enquanto há tempo... parece que ele comeu do fruto da árvore do conhecimento (só não comeu da árvore da vida porque Eva chegou primeiro).

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº34 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 34

UM POUCO DE HUMOR NA ANÁLISE DO DISCURSO: RESGATANDO A SUBJETIVIDADE DISCURSIVA

NAIR F GURGEL DO AMARAL

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 10

Nair F. Gurgel do Amaral UM POUCO DE HUMOR NA ANÁLISE DO DISCURSO:

Professora de Lingüística – UFRO RESGATANDO A SUBJETIVIDADE DISCURSIVA

[email protected]

Desde o surgimento da Análise do Discurso de linha francesa, no final dos anos 60 por Michel Pêcheux , que essa linha de estudos tem demonstrado ser um

campo de pesquisa muito fértil. A Análise do Discurso surgiu na conjuntura política e intelectual francesa, marcada pela conjunção entre filosofia e prática política, já

como um campo transdisciplinar. Atravessou fronteiras e movimentou o campo das ciências humanas, constituindo-se hoje em uma disciplina transversal.

Os principais estudiosos da Análise do Discurso reuniam reflexões sobre o texto e a história, resultando daí uma análise textual que envolvia a Lingüística, o

Marxismo e a Psicanálise. Saussure-Marx-Freud são as três balizas da proposta de Pêcheux, situando a Análise do Discurso em três regiões do conhecimento: a) na

Lingüística – com a problematização do corte saussureano - teoria lingüística; b) no Materialismo Histórico - por meio da releitura althusseriana de Marx - teoria da

sociedade; c) na Psicanálise – por meio da releitura lacaniana de Freud - teoria do inconsciente. Michel Foucault (França, 1926-1984) filósofo, intelectual e polêmico,

militante das causas das “minorias”, problematiza sobre a ciência histórica, suas descontinuidades, sua dispersão, que resultará na abertura do conceito de formação

discursiva, na discussão entre os saberes e os (micros) poderes, na preocupação com a questão da leitura, da interpretação, da memória discursiva. Foucault abordou o

discurso, principalmente em As palavras e as coisas (1966); Arqueologia do saber (1969) e A ordem do discurso (1972) de onde vêm vários conceitos para a Análise

do Discurso francesa. Somente mais tarde, Mikahil Bakhtin (Rússia, 1895-1975) nos dá a idéia da heterogeneidade, do dialogismo, da inscrição da discursividade em

um conjunto de traços sócio-históricos, em relação ao qual todo sujeito é obrigado a se situar. Bakhtin era teórico da lingüística e da literatura e viveu na Rússia

stalinista, motivo pelo qual sua obra só foi traduzida no Ocidente no final da década de 60 (Marxismo e Filosofia da Linguagem, escrito em 1929). Bakhtin é conhecido

primeiramente na teoria da literatura com a obra Problemas da Poética de Dostoiévsky (1963); Estética e Teoria do romance (1975); Estética da criação verbal

(póstumo 1979). É nesse período que ele influencia os franceses da Análise do Discurso. A Lingüística vai descobrir Bakhtin bem mais tarde, nos anos 90: seus

conceitos de “gênero” e “dialogismo” passam a circular em muitos trabalhos.

Nos anos 80 as propostas de Pêcheux vão-se aproximar de outros fundadores. Nos seus últimos escritos, Pêcheux já acena para várias aberturas, deslocando-se

da primazia sobre o discurso político, sobre a materialidade escrita, para encontrar outras formas materiais, outros regimes de materialidades.

Para o trabalho que proponho desenvolver, destaco Michel de Certeau, (França, 1925 - 1986), considerado um dos melhores teóricos da Nova História. Com

seus livros A invenção do cotidiano: artes de fazer (1990) e A invenção do cotidiano: morar, cozinhar, De Certeau nos brinda com as propostas de análise dos

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discursos do cotidiano, a reflexão sobre a escrita da história e a emergência das resistências. Pensador de inteligência brilhante e não conformista, contribuiu nas áreas

de Filosofia, Letras Clássicas, História e Teologia, pesquisador da história dos textos místicos desde a Renascença até a era clássica, interessa-se não só pelos métodos

da Antropologia e da Lingüística, como também pela Psicanálise. Anticonformista e perspicaz, foi um inconformado com os cânones de uma disciplina rígida e

censurado por colocar em dúvida a forma da escola francesa de História. Sua principal contribuição foi questionar a suposta passividade dos consumidores. Ele acredita

na criatividade das pessoas ordinárias. Uma criatividade oculta num emaranhado de astúcias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa para si mesmo

uma “maneira própria” de caminhar pela floresta dos produtos impostos.

A questão do assujeitamento, colocada pela Análise do Discurso francesa, especialmente em sua primeira fase, através de Michel Pêcheux, sempre me

incomodou. Nessa fase, conforme dito acima, ressalta-se a idéia de inconsciência dos sujeitos envolvidos numa interação discursiva, já que os sujeitos ocupam posições

pré-estabelecidas pela formação social a que pertencem. Nessa situação, os sujeitos produzem um discurso que, na verdade, é um “já dito”, uma vez que ele não é a

origem do discurso. O discurso é produzido sempre em condições dadas, pré-estabelecidas por uma determinada formação discursiva.

Naturalmente que não tenho a pretensão de questionar o assujeitamento ideológico pelo qual todo sujeito é atingido. O que me inquieta é a simplificação que se

faz do sujeito, conferindo a ele um tratamento, no mínimo, reducionista, e o estatuto que se confere ao discurso, de ser fechado, concebido em um lugar no qual o

sujeito não interveio, apesar da heterogeneidade de que esse discurso é constituído.

Entretanto, questionar o tratamento reducionista que a Análise do Discurso dá ao discurso e ao seu sujeito não é, de maneira alguma, questionar o seu valor.

Ela coloca questões de grande importância, como a noção de condições de produção, e o jogo de imagens (Pêcheux,1969). O próprio Pêcheux, em Discurso: Estrutura

ou Acontecimento (1983), procura rever alguns de seus postulados teóricos. Reconhece o tratamento reducionista que vinha dando ao discurso e a seus sujeitos e

procura reconsiderar a particularidade discursiva do enunciado. No entanto, o conceito de assujeitamento não se altera em Pêcheux (1983): “o sujeito continua

‘controlado’, mesmo que seja por ‘acontecimentos’, por efeitos de sentido (um saber não articulável, inacessível, portanto) que foge ao que o autor considera como

parte do pré-concebido. O sujeito, então, não constrói o discurso e nem a história, apenas os organiza!!!. Tudo acontece abstraindo a ‘ação’ desse sujeito, mesmo

porque a equivocidade, a elipse, a falta, que poderiam ser consideradas como brechas para a ação desse sujeito, são consideradas por Pêcheux como fatos estruturais,

como próprias da estrutura da língua (do pré-concebido). É o primado da estrutura sobre o acontecimento.

Com a finalidade de postular um lugar de destaque para o sujeito do discurso, sem, entretanto, deixar de considerar as condições de produção a que está

submetido, seja por questões ideológicas ou sócio-históricas, é que tento encontrar em textos humorísticos vestígios que demonstrem, principalmente através da

linguagem, um trabalho do sujeito estrategista, resgatando-o da passividade e do assujeitamento imposto pela ideologia. Como a minha intenção é evidenciar o papel do

sujeito no discurso e demonstrar que ele, estrategicamente, deixa vestígios nos textos que produz, espero, com o auxílio dos textos humorísticos, deixar claras essas

marcas de subjetividade, ou do não assujeitamento, onde se torna evidente o trabalho do sujeito.

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O meu interesse pelo humor surgiu devido a essas questões colocadas pela Análise do Discurso. Sob essa perspectiva teórica, é possível dizer que as piadas,

sendo discurso, servem à ideologia, e que os sujeitos envolvidos no discurso humorístico são tomados pela inconsciência inerente ao processo de assujeitamento

ideológico pelo qual passam todos os sujeitos do discurso. Dessa forma, os sujeitos têm a ilusão de que dominam o próprio discurso, mas, na verdade, são dominados

por ele. O falante, nessa perspectiva teórica, não passa de um porta-voz de discursos que o antecedem. O ‘eu’ é, nessa versão, dominado, condicionado pelo ‘outro’. O

que procurarei mostrar é que o discurso humorístico possibilita reflexões acerca do processo discursivo. A eficácia (ou não) das estratégias discursivo-argumentativas

utilizadas no discurso humorístico nos permite questionar a plena inconsciência dos sujeitos desse discurso. O sucesso do humor, ou o que faz rir não pode ser

considerado obra do acaso.

O discurso humorístico, por se valer de alguns procedimentos discursivos mais sistematicamente produzido que outros tipos de discurso, abre espaço para que

se realize uma reflexão sobre o funcionamento discursivo que coloca o sujeito sempre e apenas como objeto da própria história e nunca como sujeito. Os exemplos

abaixo mostram textos construídos a partir de modelos muito estereotipados, conhecidos, onde é possível perceber a presença da subjetividade, isto é, o trabalho do

sujeito a partir de outro texto. Ou seja, há o discurso do outro, mas existe também o trabalho do eu. São provérbios reescritos, desmontados.

Quem dá aos pobres ainda tem que pagar o motel. [Quem dá aos pobres, empresta a Deus] - Ideologia Humanista. Quem ama o feio é porque o bonito não lhe aparece. [Quem ama o feio, bonito lhe parece] – Ideologia Conformisa.

Impossível não perceber a presença da heterogeneidade. Sob a forma de jogo, o sujeito deixa marcas que não há como negar sua presença. O verbo ‘dar’ e sua

forma polifônica de aparecer nos discurso, permite uma manobra do autor, desviando totalmente o sentido do texto ao alterar a segunda parte do provérbio. Fenômeno

parecido ocorre no exemplo seguinte: a segunda parte é alterada e a ideologia do provérbio é desmontada.

É relativamente fácil dizer que os exemplos acima são textos construídos a partir do discurso do outro. Isso é inegável. O que considero difícil é eliminar

totalmente a subjetividade. Vejam bem: Se aparecesse primeiro o conhecido provérbio “quem dá aos pobres empresta a Deus”, quem seria capaz de imaginar a

presença desses outros exemplos? No entanto, ao lermos estes enunciados, percebemos, imediatamente, a presença do provérbio. Com base nesses exemplos, posso

afirmar que a presença do outro não é suficiente para apagar a presença do eu, no máximo, mostrar que ele não está só.

Embora já tenham dito que “nada é mais humorístico do que o próprio humor, quando pretende definir-se”, fico com a sabedoria de Monteiro Lobato ao dizer

que o “humor é a maneira imprevisível, certa e filosófica de ver as coisas”. É que em relação ao humor, não faltam argumentos e definições de personalidades a

respeito. Todos ressaltam, de alguma forma, que o humorismo é o único momento sério e, sobretudo sincero da nossa quotidiana mentira. Começo citando a célebre

frase de Aristóteles: O homem é o único ser vivente que ri, seguida de alguns versos do poema de Luís Fernando Veríssimo, intitulado O único animal, onde ele diz,

entre outras coisas, que “o homem é o único animal que ri dos outros”. Na verdade, estou querendo dizer que o riso é tão amplamente difundido nas formas de vida

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social do homem, podendo ser considerado fator primário de seu comportamento, que falar do riso é tentar compreender e interpretar a história do homem. Entretanto,

humor – na literatura e na vida – não é contar piada, fazer gracinhas ou ser óbvio e explícito... Não é ficar rindo à toa.

Millôr Fernandes afirma que fazer humor “É adotar uma forma completamente desinibida e descondicionada de ver as coisas”. Para entender melhor o que

disse Millôr, recorro a outro humorista. Leon Eliachar (que teve a seguinte definição laureada com o primeiro prêmio “Palma de Ouro” na IX Exposição Internacional

de Humorismo realizada na Europa – Bordighera, Itália, 1956) define humor da seguinte forma: “Humorismo é a arte de fazer cócegas no raciocínio dos outros. Há

duas espécies de humorismo: o trágico e cômico. O trágico é o que não consegue fazer rir, o cômico é o que é verdadeiramente trágico para se fazer.” Certo é que o

humor evidencia uma atitude intelectual do autor, que produz o seu texto com uma postura reflexiva e consciente. Além disso, peculiar no humor é que ele chama a

atenção do leitor para uma possível manifestação da linguagem. Os autores que trabalham com o humor valorizam alguns aspectos, entre eles estão a inovação e a

subversão. A inovação pode ser entendida como sendo uma nova forma de perceber velhas coisas; sem preconceitos, sem estereótipos, sem repetir o já sabido. Não

existe o medo de mudar. A subversão é revelada através do inconformismo, do rompimento com as regras, com as normas, feito através de recursos metafóricos e

lingüísticos. Alguns idealistas afirmam que são os desobedientes que movimentam o mundo.

O riso, portanto, é uma das formas de subverter padrões, é, sobretudo, uma crítica social. As possibilidades mais simples de se inventar estórias cômicas nasce

do aproveitamento do erro. Rimos das pessoas que caem porque elas não se comportam segundo a norma humana. Este tipo de “riso de superioridade” está entre as

primeiras formas de riso de que a criança é capaz. (Ver o sucesso da ‘pegadinhas’ e das ‘vídeos cacetadas’).

Um dos mais conhecidos textos humorísticos são as piadas. Geralmente, elas versam sobre temas socialmente controversos, onde é possível constatar

manifestações culturais e ideológicas. A maioria delas veiculam o discurso dominante e são sobre: sexo, política, racismo, loucura, morte, defeitos físicos, instituições

(escola, casamento, igreja, línguas, etc). Alguns teóricos afirmam que o papel do lingüista é explicar, não o porquê do humor, mas o como acontece o humor, ou seja,

os lingüistas trabalham onde os outros se divertem, analisando e descrevendo os fenômenos lingüísticos, envolvidos no processo de criação e interpretação do texto que

provoca o riso. Embora as piadas tenham um forte cunho cultural, social ou ideológico, (fonte de pesquisa para os sociólogos, psicólogos e antropólogos) os analistas

do discurso devem também se preocupar com essas questões, pois consideram em suas análises as condições de produção do discurso, uma vez que todo discurso

pressupõe uma memória, um acontecimento, enfim, um processo. O que veremos agora são alguns exemplos de textos que pressupõem o ‘já dito’, ou seja, o discurso

do ‘outro’, mas que demonstram de alguma forma um trabalho do ‘eu’ sujeito. Outro fator que chama a atenção ao analisarmos as piadas é que elas costumam também

veicular o discurso corrente, e ao fazê-lo utilizam-se de estereótipos. Assim: todo judeu só pensa em dinheiro; todo português é burro; todos os advogados são

corruptos; todas as loiras são burras e só pensam em sexo; todo japonês tem pênis pequeno. Vejamos alguns exemplos:

Por que é que judeu só penteia o cabelo para trás? - Porque judeu não gosta de repartir nada.

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O português passava em frente a um chaveiro quando viu uma placa “Trocam-se segredos”. Parou, entrou na loja, olhou para os lados e cochichou para o balconista:

- Eu sou gay, e você?

- O que o japonês faz quando tem ereção? - Sai de casa pra votar, né?

Se a língua fosse monofônica, os textos acima não seriam humorísticos. O que permitiu o humor foi a presença de um sujeito estrategista que conhece as

nuances da língua e faz incursões nas construções morfossintáticas. O que comprova uma manobra do sujeito é sua astúcia na escolha das palavras e sua conseqüente

articulação. É que o sentido ou o efeito de sentido só pode ser determinado se considerada as condições de produção. A linguagem, polifônica e heterogênea

constitutivamente, possibilita ao sujeito trabalhá-la, com a finalidade, inclusive de enganar o leitor. Daí o efeito de humor: ‘repartir’, ‘trocar segredos’ e ‘ereção’

representam escolhas conscientes por possibilitarem mais de uma leitura. Por exemplo: [dividir/partir ao meio], [trocar confidências/trocar combinação numérica de

cofres], [levantamento/eleição].

Na última piada, existe a evidente intencionalidade do autor em desviar a interpretação do leitor: japonês tem pênis pequeno = ereção. Análise lingüística: na

pronúncia dos japoneses residentes no Brasil, ou seus descendentes, existe uma substituição do L pelo R. Ex.: “do lado de lá” = /do rado de rá/, diferentemente da

pronúncia das crianças brasileiras que, até os cinco anos de idade, mais ou menos, trocam o R pelo L (ver Cebolinha da Turma da Mônica). Ex.: “para fora” /pala fola/.

Como é possível falar em assujeitamento, quando o sujeito conhece e usa normas da linguagem, burlando estrategicamente as regras da interpretação previsível

e levando o leitor a uma resposta contrária à esperada pela “pegadinha”. Logo, “ereção” é diferente de “elevação do pênis” e igual a “eleição”, que por sua vez

pressupõe “votar”. Para De Certeau, o sujeito reinventa o cotidiano. Utiliza o ‘já dito’ para redizer de forma diferente, às vezes, atribuindo-lhe outra ideologia.

Podemos fazer vários tipos de análise em relação aos textos humorísticos. Uma delas é considerar os diversos níveis gramaticais. Por exemplo: fonológico,

morfológico, sintático, lexical, sociolingüístico, etc. O exemplo abaixo mostra uma ‘ pegadinha’ que contempla dois níveis de análise, pelo menos. O discurso do

“outro” é percebido pela possibilidade de diferentes pronúncias (maior ou menor duração, possibilidade de pausa em um discurso e impossibilidade no outro,) e a

conseqüente possibilidade de duas leituras das seqüências é trabalho do sujeito. As diferentes segmentações fazem com que a piada (charada) abaixo seja também

considerada morfológica. E as diferentes segmentações é que permitem dizer que, num caso, temos uma palavra só e, no outro, duas. Os alfabetizadores sabem o

quanto esse fenômeno tem sido problemático nas séries iniciais.

- Você sabe como é que muda pé de café? - Tira o pé de café de um lugar e planta em outro.

Nível Fonológico

1. muda /pede /café [muda/pEdji/kafE] 03 segmentos

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2. muda /pé /de /café [muda/pE/dji/kafE] 04 segmentos

Nível Morfológico

Por analogia aos verbos regulares da 3ª conjugação e considerando a fala, onde “pé de” é igual a “pede”:

1. Resid+ir ela resid+e [rezidji]

2. Med+ir ela med+e [mEdji]

3. Ped+ir ela ped+e [pEdji]

Nível Lexical / Semântico

Presença marcante da polifonia:

1. muda pessoa desprovida da fala (expressão verbal oral). Ex: Fulana é muda; A muda (mulher que não fala) é bonita, etc

2. muda verbo mudar (transferir, trocar, transportar de um lugar para outro, transformar, etc.). Ex: Fulano muda a camisa; Fulano muda de casa,

Fulano muda para São Paulo, Fulano muda a mesa da sala para a cozinha, Como você muda a cada hora..., etc.

Dois políticos famosos se encontraram em Brasília depois de escapar de mais uma CPI: - Antenor, há quanto tempo! Vamos tomar alguma coisa? - Vamos. De quem?

No Nível Sintático, quando o que está em ‘jogo’ são as estruturas sintagmáticas do enunciado, temos outras possibilidades de análise: [tomar] = [beber (algo)] - verbo transitivo direto - objeto direto. [tomar] = [subtrair (algo, de alguém)] - verbo bi-transitivo – objeto direto e indireto (de quem?)

A variação lingüística é um fenômeno apaixonante, rico e, sobretudo, rendoso no que diz respeito a dados lingüísticos. Com a variação podemos detectar

problemas ligados ao preconceito e à discriminação, facilmente observáveis através da pronúncia, do léxico, e da construção sintática principalmente. A dialetologia

mostra que esses fenômenos podem ocorrer no nível espacial (Variação Geográfica), mostrando as diferentes classes sociais (Variação Social), trabalhando com faixas

de idades diferentes (Variação de Idade), estabelecendo diferenças entre a fala da mulher e do homem (Variação de Sexo), entre outras tantas.

Um caipira assiste TV de janela aberta. Passa um vizinho e cumprimenta: - Firme cumpadi? - Não cumpadi, é novela.

A pronúncia diferente - Nível Fonológico - entre o urbano e o caipira (variação geográfica e/ou social) estabelece o “gatilho” da piada: interpretar palavras de

formas diferenciadas. Logo, “firme” não é o que poderia parecer óbvio (legal), mas uma variante de “filme”, existente na fala dos caipiras, ou dos sem escolaridade. No

caso do caipira é relevante demonstrar que sua “inferioridade” social, geralmente demonstrada pela linguagem que usa (padrão/não padrão) é superada pela sua

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esperteza, sua sabedoria. Aí estão incluídos também os nordestinos, que nesse caso, são considerados “machões”, em oposição ao “gaúcho”. São estereótipos como já

vimos anteriormente.

O que procurei mostrar é que o discurso humorístico abre perspectiva para outra reflexão acerca do processo discursivo. A eficácia, ou não, das

estratégias discursivo-argumentativas utilizadas no discurso humorístico nos permitem questionar sobre os sujeitos desse discurso. Depois de tudo que foi

dito ainda é possível acreditar que o sucesso do humor, ou o que faz rir, pode ser considerado obra do acaso? Do assujeitamento? Será que devemos

concordar com a simplificação dada ao sujeito e o estatuto conferido ao discurso, de ser fechado, concebido em um lugar no qual o sujeito não interveio,

apesar da heterogeneidade de que esse discurso é constituído?

Fica, então, um questionamento para reflexão: Será que na nossa prática escolar temos tido propostas diferentes para o ensino de língua, ou será que a

subjetividade atingiu níveis, não de assujeitamento ideológico, mas, perigosamente, de alienação, de submissão, de falta de conscientização no exercício de cidadania?

Naturalmente que prefiro ficar com De Certeau e mostrar que o sujeito pode ser diferente na igualdade, pois “não são meros consumidores, mas usuários que sabem

personalizar o que usam e o que fazem”. É como diz Possenti (1995) “... a história freqüentemente se faz de pequenos fatos, pequenos atos que produzem pequenas

alterações do que há, de usos diversos e eventualmente não previstos das mesmas ciosas...”

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN/VOLOSHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1992. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. Editora da Unicamp, 1992. De CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994. FERREIRA, M. Cristina Leandro (org.) Glossário de Termos do Discurso. Porto Alegre, UFRGS, 2001. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1986. ______. A ordem do discurso. São PAULO: Loyola, 5 ed., 1999. GADET, F & HAK, H. Por uma análise automática do discurso. Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas, Pontes, 1990. GERALDI, J. W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991. GREGOLIN, M. R V. Recitações de mitos: a História na lente da mídia. In Filigranas do discurso: as vozes do discurso. Araraquara, Cultura Acadêmica

Editora, 2000. POSSENTI, S. Discurso,Estilo e Subjetividade. Campinas: Pontes, 1990. ______. Sobre as noções de sentido e de efeito de sentido.In: Cadernos da F.F.C. Análise do Discurso. UNESP/Marília, v 06, n 02, 1997. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas, Pontes, 1994. ______. Termos-chave da Análise do Discurso. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1998. PÊCHEUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, Pontes, 1999.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº35 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 35

A EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA

CÉLIO JOSÉ BORGES

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 18

Célio José Borges A EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA

Professor do Departamento de Educação Física

Educação Física é um segmento da educação que utiliza as atividades físicas, orientadas por processos didáticos e pedagógicos, com a finalidade do desenvolvimento integral do homem, consciente de si mesmo e do mundo que o cerca.

O presente artigo se concretiza a partir da pesquisa por mim realizada para elaboração da dissertação de mestrado, Tecnologia alternativa na escola:

revitalizando o ensino de Educação Física para crianças, onde se buscou refletir a Escola, a Educação Física para crianças e a confecção e o emprego de Tecnologia

Alternativa como recurso didático-pedagógico na escola, bem como apresentar considerações teóricas que fundamentam tanto a elaboração do trabalho que tenho

realizado nas oficinas, quanto a interpretação dos dados obtidos. Ao mesmo tempo procurou compreender a relação entre a atividade física e conteúdos de sala de aula,

numa perspectiva lúdica, possibilitando-se assim compreender também a relação interdisciplinar entre ambas.

Em primeiro lugar, defendo a importância de se procurar formar professores que sejam capazes de refletir sobre sua prática, de direcioná-las segundo as

realidades em que atuam e de conformá-las aos interesses e às necessidades das crianças. Ainda que não se trate de formar o chamado “professor reflexivo”, penso ser

viável considerar a possibilidade de se preparar professores dotados de uma “postura investigativa” em relação ao trabalho que desenvolvem. Em segundo lugar,

acredito que a atividade física na escola pode ser concebida com base na nova visão de esporte proposta por Tubino (1992), que destaca sua dimensão social e o associa

a educação, a participação e a desempenho. Em terceiro lugar, apoiando-me em Ferreira (1984), proponho que o desenvolvimento da Educação Física na escola se

organize segundo a perspectiva de transformação defendida pela autora, em contraposição à tendência comum de centrar as atividades físicas no esporte competitivo,

configurando o que ela denomina de prática voltada para a reprodução. Tais pressupostos conformam a base teórica que sustenta o estudo.

Reflexões sobre a escola e a prática docente

Julgo que ainda não se refletiu suficientemente sobre o trabalho docente que se realiza na escola. Os sujeitos que nela atuam tendem mais a ações isoladas que a

um esforço de reflexão conjunto que propicie melhoras individuais e coletivas. Penso também ser indispensável a reflexão sobre o papel do professor formador de

professores, o que me afeta particularmente por ser professor de Educação Física infantil em cursos que preparam docentes para os diferentes graus de ensino. Defendo

a necessidade de se buscar formar um profissional capaz de refletir na e sobre a prática desenvolvida na escola. Em síntese, sustento a importância da reflexão-na-ação.

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Gómez, (citado por Nóvoa, 1997), afirma: A sociedade ocidental tem-se mostrado preocupada com os resultados insatisfatórios de longos e custosos processos de

escolarização: nas sociedades industrializadas, a escola conseguiu chegar aos lugares mais inacessíveis e às camadas sociais mais desfavorecidas. Não obstante, nem a

preparação científico-técnica, nem a formação cultural e humana, nem sequer a desejada formação compensatória alcançaram o grau de satisfação prometido.(p.95).

O autor considera ainda que: São familiares as metáforas do professor como modelo de comportamento, como transmissor de conhecimentos, como técnico,

como executor de rotinas, como planificador, como sujeito que toma decisões ou resolve problemas, etc.(Ibid: 96)

Relacionadas a essas imagens encontram-se nos estudos e nas teorias que determinaram e que têm determinado o pensamento pedagógico, concepções de

escola, de ensino, conhecimento e de aprendizagem, bem como concepções das relações existentes entre teoria e prática, ou seja, entre investigação e ação.

Para refletir sobre o trabalho pedagógico desenvolvido na escola das séries iniciais do ensino fundamental, entendo ser necessário compreender como se

estruturam as escolas de educação infantil e suas práticas. Apoiando-me nas conclusões de Silva (1999: 59-60), considero que a escola infantil tem pautado suas ações

na intenção, quase que exclusiva, de preparar criança para o ensino fundamental. Nesse sentido, utiliza como estratégia dominante a repetição de exercícios de

prontidão, nos quais se emprega a brincadeira ora como recurso didático, ora como instrumento de sedução e controle. Entendo que essa estratégia não se compatibiliza

com as características da atividade lúdica da criança, que requer liberdade para explorar sua criatividade.

Nessa linha de raciocínio, pode-se afirmar que o brincar como prática social infantil não tem sido compatível com a função que a escola vem cumprindo. Nela,

deixam de ser valorizadas as iniciativas tímidas das crianças, que refletem características de aleatoriedade e indeterminação, com as quais a escola não sabe trabalhar e

nem lidar. A conseqüência é que o professor acaba mais controlando os passos e as respostas das crianças diante das tarefas (atividades) propostas do que as

incentivando a produzirem algo interessante e de fato educativo.

Tal situação reitera a importância de se refletir sobre a prática docente na escola, de se adotar uma atitude investigativa em relação a essa prática e, ainda, de se

pesquisar alternativas para aperfeiçoá-la. Segundo Schön (1997):

Quando um professor tenta ouvir os seus alunos e refletir-na-ação sobre o que aprende, entra inevitavelmente em conflito com a burocracia da escola.

Nesta perspectiva, o desenvolvimento de uma prática reflexiva eficaz tem que integrar o contexto institucional. O professor tem de se tornar um navegador

atento à burocracia. E os responsáveis escolares que queiram encorajar os professores a tornarem-se profissionais reflexivos devem tentar criar espaços de

liberdade tranqüila onde a reflexão-na-ação seja possível. Estes dois lados da questão - aprender a ouvir os alunos e aprender a fazer da escola um lugar no

qual seja possível ouvir os alunos - devem ser olhados como inseparáveis.(p.87).

Para Makiguti (1994), erra-se quando se deixa a cargo de determinados profissionais, que não têm formação em educação ou que estão fora das escolas e das

salas de aula, as decisões relacionadas aos objetivos e às metas educacionais. O autor considera essencial que se redirecionem os estudos pedagógicos de modo a

relacioná-los com situações reais de ensino.

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O processo de teorização deve se basear nisto. Em vez de permitir aos acadêmicos ‘lá de cima’ pronunciamentos sobre o que acontece ‘embaixo’, nas escolas,

perturbando a estratosfera com esta ou aquela teoria, para depois modificá-la de acordo com as tendências do momento, os profissionais que atuam na educação,

embasados em suas experiências diárias, devem abstrair indutivamente princípios e reaplicá-los em suas práticas na forma de melhorias concretas.

Nessa mesma linha, argumenta que os objetivos devem ter origem nas necessidades e no dia-a-dia dos alunos. Os professores deveriam valorizar o que as

crianças consideram importante, o que nelas desperta interesse durante o seu processo de formação, ao invés de pensarem apenas nas necessidades dos adultos. Devem,

assim, evitar sobrecarregar seus alunos com informações que sejam sem sentido para as suas vidas, ou que sejam exageradamente abstratas. Makiguti (1994) compara a

apreensão de tais conteúdos a uma indigestão, propondo combatê-la da seguinte forma:

[...] Infelizmente, os efeitos da intoxicação psicológica nas crianças, causada pela aprendizagem forçada de conteúdos incompreensíveis, não são

percebidos de imediato. Por isto, as conseqüências perniciosas desse processo ... não são reconhecidas. A situação é séria, mas, ao pesquisarmos as causas do

problema, defrontamo-nos com um paradoxo: professores e pais acreditam estarem colaborando com o futuro bem-estar das crianças, apesar de as tornarem

infelizes durante o processo. ... a escola que sacrifica a felicidade presente da criança e faz da felicidade futura seu objetivo violenta a personalidade infantil

e o processo de aprendizagem propriamente ditos. (p:39).

Considerando-se que é na escola que o licenciando estagia e trabalha quando formado, cabe desenvolver no mesmo a consciência da importância de uma

postura investigativa em relação à sua prática. Tal postura deve envolver tanto os momentos de construção como de utilização de recursos pedagógicos. Tal postura

deve incluir também a consciência da necessidade de valorização dos interesses e das necessidades da criança.

O desenvolvimento dessa atitude durante o curso de formação é facilitado pela presença de um professor que atue como orientador e procure contribuir para a

promoção de novas aprendizagens, para o aperfeiçoamento do desempenho, para o estabelecimento do diálogo e para a prática de uma avaliação continuada. Em

síntese, defendo a importância de se buscar, durante o período de formação e de estágios do futuro professor, propiciar oportunidades de reflexão sobre a prática

desenvolvida junto com os alunos. Para isso, porém, o professor formador também precisa refletir continuamente sobre sua atuação profissional.

Do esporte Institucionalizado à Educação Física escolar

Recorro a Tubino (1992) para discutir a influência do esporte na Educação Física escolar. O autor aponta como se modificaram as concepções referentes ao

esporte. Considero que as dimensões propostas pelo autor também se aplicam à Educação Física escolar, que de certa forma sofre os reflexos e as influências do esporte

e que, da mesma forma que este, vem sofrendo modificações no modo como é concebida. Tais mudanças possibilitam admitir, na Educação Física escolar, mudanças

de conceito e de concepção quanto a suas relações sociais na escola, permitindo assim, que se pense em formas alternativas de desenvolvimento da disciplina, que a

tornem menos formal e mais prazerosa para as crianças.

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Tubino (1992) refere-se a um “esporte da Antiguidade”, assim como destaca o surgimento do chamado “Esporte Moderno” no século passado, em uma

perspectiva pedagógica, sem restringir os aspectos de disputas das competições. Entretanto, o ideário olímpico do esporte foi sendo abalado pela busca de

profissionalismo no esporte, gerando com isso, conflito entre o amadorismo e o profissionalismo. Como não se admitia em hipótese alguma o profissionalismo nas

competições, os casos identificados eram passíveis de severas punições. A perspectiva padagógica inicial do esporte moderno desaparecia gradativamente e mantinha-

se ainda o preconceito em relação à prática desportiva feminina, por muito tempo mantido.

Busco refletir sobre a Educação Física escolar, considerando os aspectos negativos da supervalorização do esporte competitivo (Tubino, 1992), bem como as

tendências e correntes da Educação Física brasileira (Ghiraldelli Jr., 1988), em especial as tendências militarista (1930 -1945), pedagogicista (1945 - 1964) e

Competitivista (1964 - 1985 aproximadamente). Minha intenção é estabelecer relações com a formação do professor de Educação Física e compreender as influências

históricas nas características da Educação Física escolar. Para Ghiraldelli Jr., é necessário que a periodicidade das tendências seja entendida com cautela, já que as

mesmas, embora só se explicitem em uma dada época, já estão latentes em épocas anteriores e, além disso, tendências que aparentemente desapareceram são

incorporadas por outras. Ressalte-se ainda a distância entre a teoria e o que de fato ocorre na prática, ou seja, nas aulas. Para Ghiraldelli (1988): “O problema também é

complexo quando desejamos entender a organização mental dos professores de Educação Física. Todas essas tendências são mais ou menos incorporadas, e estão vivas

nas cabeças dos professores atuais. Eles são absorvidos em forma de amálgama e, não raro, levam a um ecletismo pouco produtivo.” (p.16)

Não é fácil, então, compreender as influências no processo de formação dos professores de Educação Física. Nos anos 70 e 80, período da Tendência

Competitivista, houve uma forte influência da prática do desporto escolar competitivo, marcado pela realização dos Jogos Escolares Brasileiros - JEBs,

descaracterizando-se quase que totalmente a Educação Física escolar, tanto nas séries em que se recomendava a iniciação desportiva, ou seja, de 5ª a 8ª série do

primeiro grau, como na prática do desporto nas séries do segundo grau. Secundarizou-se, então, o caráter formativo e pedagógico da Educação Física, praticamente

restrito às primeiras séries do primeiro grau, cujo ensino, no entanto, foi deixado quase que totalmente a cargo de professores sem a devida qualificação, com formação

apenas em magistério de segundo grau.

Ainda que muitos sejam os autores que contestem os benefícios de um esporte voltado unicamente para os resultados, na escola, as aulas de Educação Física

também instituíram os resultados de forma muito arraigada. Contudo, a reação dos intelectuais da área não deixou de provocar uma revisão conceitual do esporte,

influenciando também a revisão de conceitos e posturas na prática da Educação Física escolar. Tal perspectiva pode ser constatada, na década de oitenta e na virada da

de noventa, por parte de muitos autores - professores e pesquisadores que se posicionaram em defesa da valorização de uma Educação Física mais humanista e mais

educativa.

A partir dos anos noventa, o esporte adquire importância social mais expressiva. O movimento esportivo mundial cresceu e expandiu-se, com o conseqüente

aumento de sua relevância social. Valorizam-se, inevitavelmente, as práticas de atividades físicas, inclusive as escolares. O esporte é revisto nos ambientes escolares,

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admitindo-se, em meados da década, a idéia de se implantar um esporte participação. Essa iniciativa provocou forte reação por parte de muitos professores/treinadores

de Educação Física, ou seja, dos que se tornaram muito mais técnicos do que professores/educadores de Educação Física. Tais profissionais continuam, especialmente

quando se trata de competições, a defender regras duras e exigentes, buscando assegurar a seletividade necessária para se chegar à vitória.

Tubino (1992) refere-se à Carta Internacional de Educação Física e Desportos (UNESCO, 1978) como um documento que veio consolidar a discussão

internacional desenvolvida na época sobre o esporte e que apontou para um novo conceito do mesmo. Destaca, ainda, que se abre a perspectiva do direito à prática

esportiva, aumentando-se significativamente a dimensão social de um esporte reconceituado. Na escola, esse direito pode ser interpretado como um direito à prática da

atividade física de maneira geral, reivindicada para todos os níveis escolares.

Após o redimensionamento conceitual, o esporte é considerado como problema humano e social. Seu significado social passou a abranger manifestações

comprometidas com a educação, a participação e a performance, sendo visto por Tubino como “um campo sociocultural de estruturas e conteúdos de grande

complexidade, que se apresenta com grande fascínio para todos os atores ativos e passivos, propiciando oportunidades únicas para a convivência humana”.

Aplicando essa concepção à escola e apoiando-me também em outros autores que defendem a prática de uma Educação Física escolar democratizada, considero

como direito de toda a criança praticar Educação Física e ter acesso ao brinquedo e ao jogo na escola. Julgo ainda que atividades bem desenvolvidas, com materiais

adequados, podem desenvolver fascínio nas crianças, integrando-as entre si, bem como com seus professores e com os alunos-mestres. Dessa forma recorrendo ainda a

Tubino (1992) para sustentar minha defesa quanto à necessidade de tornar a Educação Física escolar, para crianças, mais agradável e participativa, destaco suas

palavras: “O esporte, com o seu conceito compromissado com as suas perspectivas na educação, na participação das pessoas comuns e também no rendimento, em

situações específicas, inclusive quanto às finalidades, e visto como direito de todos, passou a merecer novas abordagens e estudos para que sua dimensão social seja

realmente entendida” (p. 13).

Penso que essa dimensão social ampliada da atividade física precisa nortear novas possibilidades para a prática da Educação Física escolar para crianças. O

trabalho por mim desenvolvido insere-se nessa perspectiva.

Da reprodução à perspectiva de transformação

Neste item procuro apresentar uma perspectiva humanista e transformadora da Educação Física que tenha como referência o aluno, em especial a criança.

Recorro a Ferreira (1984), que defende uma Educação Física em uma perspectiva de transformação, contraposta ao modelo tecnicista da reprodução, propondo

um redimensionamento do sentido da Educação Física no processo educativo, criando a expectativa de as crianças virem a ter a oportunidade de participar de uma ação

educativa mais efetiva e adequada. A visão estereotipada de que a Educação Física oferecida nas escolas era de má qualidade e o professor um profissional de segunda

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categoria era bastante comum e que ainda sofre resquícios atualmente desse estigma. Essa fama, aliada ao uso abusivo do esporte nas aulas, terminou por levar a

disciplina a uma crise de identidade, já identificada na década de 70, em plena vigência da tendência competitivista da Educação Física. Segundo Dufour (citado por

Ferreira, 1984:19):

“A Educação Física praticada nas escolas parece estar sofrendo uma crise de identidade. Esta crise se revela pela existência de conflitos entre o status da Educação Física em relação aos outros ramos de Educação e em relação ao desporto. O primeiro tipo de conflito aparece quando se situa a Educação Física no quadro geral da Educação. Os autores assumem posições contraditórias, ora caracterizando a Educação Física como “uma atividade natural, corporal, puramente instintiva, muitas vezes inconsciente, obedecendo às leis de uma mística do eugenismo” e ora como “uma atividade intelectual, que, embora partindo da praxis, dela se destaca, ultrapassa o concreto e conduz a ginásticas intelectuais muito complicadas, até mesmo sofisticadas”. O segundo tipo, da Educação Física identificada com o desporto “reduz-se e concretiza-se na competição, nos recordes, no ultrapassar-se a si próprio, o que implica uma entrega total do ser à conquista dos cumes”. O sentido de auto-competição e de auto-superação parece não ter sido incorporado pela escola. As qualidades lúdicas, tais como espontaneidade e capacidade de desenvolver satisfação pessoal com desempenho e iniciativa, características do esporte educativo, não estão sendo enfatizadas pelas atividades de Educação Física. Em contrapartida, estas atividades têm se caracterizado por uma prática essencialmente mecânica.”

Dois fatos marcantes parecem ter determinado, nessa ocasião, os rumos da Educação Física: a retomada da realização dos Jogos Olímpicos após a Segunda

Guerra Mundial e a apresentação do “Projeto de Doutrina de Educação Física Desportiva” pelo Instituto Nacional de Esportes da França, em 1945, que deu origem à

Educação Física Desportiva Generalizada, influenciando diretamente a prática da Educação Física na escola. Iniciou-se um movimento voltado para a formação de

equipes desportivas, reproduzindo-se o modelo dos Jogos e de suas deformações, tais como: “cientificismo exagerado, propaganda política e supervalorização da

tecnologia” (Lisboa, citado por Ferreira, 1984 : 20). O fenômeno do esporte-espetáculo pode ter levado a escola a incorporar valores contrários aos ideais próprios à

educação. As atividades físicas desempenhariam papel complementar nesse processo de educação geral (Brasil, MEC, 1976; 1981 / FIEP, 1976 / UNESCO, 1977; 1978

). Para Ferreira (1984 : 20-21):

“A identificação com o esporte-espetáculo a que parece estar submetida a Educação Física na instituição escolar constitui uma ameaça aos propósitos últimos da educação.Ela absorve e passa a utilizar, em seu processo de ensino uma concepção autoritária. O papel do professor apresenta-se apenas como disciplinador, servindo-se de metodologias que controlam a participação do aluno, impedindo-lhe o crescimento pessoal e social. A escola, como instituição, parece não ter absorvido a Educação Física e o esporte em seus objetivos de formação de um homem livre, que se conhece, se experimenta, se vence, se respeita o direito dos outros e se mantém consciente de seus deveres e responsabilidades. A escola parece estar se prestando ao desenvolvimento de uma ideologia de reprodução, acrítica, identificando-se mais com a instituição desportiva cujos valores são: desempenho máximo, vitória a qualquer preço, glória, vantagens de ser campeão, submissão do homem, disciplina autoritária e possibilidade, no mais das vezes ilusória, de ascensão social. Parece que a escola, ... acredita no fato de um campeão ser necessário para estimular a prática do esporte por um grande número de pessoas.”

Assim, constata-se que a Educação Física vista apenas pelo plano da reprodução do movimento, de caráter seletivo, em que se valoriza o desempenho dos

alunos bem dotados, ignorando-se os menos aptos, reduz sua abrangência e seu potencial, negando seus objetivos, somente alcançáveis se desenvolvidos de modo que

o aluno tenha a oportunidade e a possibilidade de participação no processo educacional da Educação Física, cujas atividades apresentam um caráter global que não

pode ser esquecido.

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Como superar a tendência de identificação da Educação Física escolar com o esporte-espetáculo? Como pensar uma outra Educação Física?

Penso, com Ferreira (1984), que estas questões estão relacionadas ao nível de conscientização dessa crise de identificação, por parte do professor, o que o

levará a dar maior importância à avaliação formativa do aluno, ao invés da avaliação somativa, aquela em que o aluno é aprovado-reprovado por nota ou conceito em

Educação Física. Considero a questão da avaliação em Educação Física um assunto complexo, passível de muitas interpretações e dúvidas. Talvez não se saiba

ainda como avaliar uma Educação Física centrada no desenvolvimento do aluno. Para Ferreira (1984):

“O modelo de reprodução em Educação Física é caracterizado pela atitude acrítica tanto da realidade interna quanto da externa. Nele se tem o esporte como referência ideal de educação, reproduzindo, portanto, os padrões sociais da classe dominante, no qual seus objetivos educacionais servem para conservar e reforçar as diferenças entre as classes sociais.” (p.53 ; 57) Por outro lado,

“A perspectiva de transformação se caracteriza pela atitude de reflexão da realidade, modificando a percepção que o indivíduo tem de suas experiências e do mundo que o cerca. Nela, a Educação Física é sempre processo, realimentado pela prática consciente dos sujeitos sobre a realidade esportiva, numa concepção dialética, favorecendo a aprendizagem e avaliação dos resultados. Utiliza-se em sua prática um esporte em que as regras, materiais, e locais são adaptados à realidade dos seus integrantes, ou seja, as habilidades, capacidades e possibilidades dos alunos, valorizando-se o caráter lúdico, a espontaneidade e a iniciativa. Possibilita a participação de todos os interessados independente de suas habilidades, sendo possível inclusive modificar as regras por decisão e interesse de seus participantes. Nessa perspectiva, o aluno é o sujeito do processo, como o principal agente de mudança, ou seja, a realidade se transforma à medida que se modificam as percepções que o aluno tem de suas experiências.” (P. 53; 56).

Ferreira(1984) apresenta variáveis que identificam e distinguem esses enfoques acima, estabelecendo um paralelo de contraposição entre os mesmos. Destaca-

se inicialmente, o Professor e a Metodologia de ensino, por entender a autora que é na metodologia de ensino que se pode verificar a concepção e postura do professor.

Se o mesmo é aquele que atua como um controlador da ação dos alunos, treinador, técnico, como domesticador, no modelo de reprodução, ou, se apresenta

características de orientador, utilizando-se de procedimentos indiretos de ensino, em que se vive, de maneira integrada com o aluno as experiências de seu crescimento,

como agente facilitador da conscientização, na perspectiva de transformação. Nesta perspectiva dialética, o professor se educa educando. É na prática de educação que

o educador se educa. Ele se educa com cada educando.

Seguindo-se ainda esse paralelo, a concepção de Aluno e de Atividade Física, por um lado no modelo de reprodução o mesmo é tido como um atleta em

potencial, como o objeto do treinamento. Tem todo o seu potencial reprimido, manipulado em função de interesses externos às suas necessidades, e a atividade física

identificada com o esporte institucionalizado. Por outro lado, na perspectiva de transformação o aluno é visto como centro do processo ensino-aprendizagem, como o

objetivo da educação, o elemento alvo, gerador de todos os questionamentos relativos à transformação. Porém, Ferreira (1984), não o coloca como sujeito por

concordar com Gadotti de que ninguém se educa a si mesmo. A atividade física surge inventada, modificada, como um sistema natural e espontâneo de movimentos;

ajusta-se às possibilidades e interesses do educando. “Nessa perspectiva predominam a reflexão e a crítica, como forma de levar o aluno a ter consciência de sua

responsabilidade pessoal que tem pelo próprio comportamento e pela participação no processo educacional” (Freire, 1980, citado por Ferreira, 1984 : 63).

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Por fim, quanto ao enfoque da avaliação, entende-se ser esse um elemento que também esclarece o sentido político da ação pedagógica, dependendo do

enfoque que se dá a essa ação, tanto o ideológico, quanto o dialético, apresentam critérios bem distintos, de acordo com suas características.

Reunindo as contribuições

Penso, com Taffarel (1991), que a Educação Física deve possibilitar o acesso da criança à cultura corporal e à compreensão de sua realidade, já que

“a criança traz para a escola um acervo cultural sobre as questões da corporeidade. O professor precisa respeitar essa experiência e ajudar o aluno a

organizar, sistematizar e ampliar o seu conhecimento” (p.21). Deve-se, em outras palavras, favorecer à criança o acesso ao conhecimento elaborado no

campo da cultura corporal. Essa interação com a corporeidade precisa ser prazerosa, com ênfase no caráter lúdico. Não cabe à escola a responsabilidade de

desenvolver talentos para o desporto competitivo de alto rendimento. Se hoje se redimensiona a concepção do esporte como prática social, há que se

redimensionar o sentido das atividades físicas na escola. Somente assim será possível uma Educação Física voltada para a transformação e para a educação.

Para sua materialização, deve-se buscar formar professores que sistematicamente reflitam sobre suas práticas e que bem empreguem recursos alternativos,

visando a aperfeiçoá-las e torná-las prazerosas para a criança, pode ser um passo importante.

BIBLIOGRÁFICAS

FERREIRA, Vera Lúcia da Costa. Prática de Educação Física no 1º grau: modelo de reprodução ou perspectiva de transformação ?. São Paulo, IBRASA, 1984. NÓVOA, Antônio (coord.) Os professores e sua formação. Lisboa, Dom Quixote, 1997. TUBINO, Manoel José Gomes. Em busca de uma tecnologia educacional para as escolas de Educação Física. São Paulo, IBRASA, 1980. ________ Tecnologia Educacional : das máquinas de aprendizagem à programação funcional por objetivos. São Paulo : IBRASA, 1984. ________ Terminologia aplicada à Educação Física: uma introdução. São Paulo : IBRASA, 1985. ________ As Dimensões Sociais do esporte. São Paulo : Cortez : Autores Associados, 1992. SILVA, Laeth Souza da. Atividade Lúdica como facilitadora da aprendizagem na Educação Infantil. Porto Velho, Universidade Federal de Rondônia, mimeo,

1999. MAKIGUTI, Tsunessaburo. Educação para uma vida criativa: idéias e propostas de Tsunessaburo Makiguti. Rio de Janeiro, Record,1994.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº36 - JANEIRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 36

VOZES BAKHTINIANAS: BREVE DIÁLOGO

MARIA CELESTE SAID MARQUES

PRIMEIRA VERSÃO

Page 27: Volume III

ISSN 1517 - 5421 27

Maria Celeste Said Marques VOZES BAKHTINIANAS:

Professora de Análise do Discurso BREVE DIÁLOGO

[email protected]

Neste artigo, meu procedimento será fazer uma breve e concisa introdução ao pensamento de Mikhail Bakhtin. Para isso analisarei alguns conceitos e

categorias. Interessam-me suas concepções relacionadas à linguagem, principalmente à interação verbal, ao dialogismo, à repetição e à criação. Com efeito, centro-me

em sua abordagem dialética a partir de suas considerações sobre o caráter ideológico do signo lingüístico e da natureza eminentemente semiótica (e ideológica) da

consciência.

Bakhtin é um dos maiores pensadores do século XX e um teórico fundamental da língua. Em Marxismo e filosofia da linguagem está sua teoria da linguagem e

do dialogismo. Bakhtin enfatizou a heterogeneidade concreta da parole, ou seja, a complexidade multiforme das manifestações de linguagem em situações sociais

concretas, diferentemente de Saussure e dos estruturalistas, que privilegiam a langue, isto é, o sistema abstrato da língua, com suas características formais passíveis de

serem repetidas. Bakhtin concebe a linguagem não só como um sistema abstrato, mas também como uma criação coletiva, integrante de um diálogo cumulativo entre o

“eu” e o “outro”, entre muitos “eus” e muitos “outros”.

A linguagem constitui a centralidade da obra de Bakhtin. Ao delimitar a linguagem como objeto de estudo específico, há, na filosofia da linguagem e nas

divisões correspondentes da lingüística geral, duas orientações principais. À primeira, ele chama de subjetivismo idealista e, à segunda, de objetivismo abstrato.

A crítica epistemológica de Bakhtin/Voloshinov considera que o subjetivismo idealista, ao reduzir a linguagem à enunciação monológica isolada, e o

objetivismo abstrato, ao reduzir a linguagem a um sistema abstrato de formas, constituem um obstáculo a uma apreensão totalizante da linguagem. Para

Bakhtin/Voloshinov, a compreensão ampla da natureza da linguagem não está no meio dessas duas orientações; ela está além. Para superar, dialeticamente, essas

posições dicotômicas, propôs a interação verbal por ser uma idêntica recusa tanto da tese como da antítese, e constituir uma síntese dialética.

Interação Verbal

O caráter interativo da linguagem é a base do arcabouço teórico bakhiniano. A linguagem é compreendida a partir de sua natureza sócio-histórica. A propósito,

é significativa a seguinte afirmação de Bakhtin/Voloshinov (1992a:41): “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas

as relações sociais em todos os domínios”.

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Para Bakhtin/Voloshinov, o ato de fala, ou exatamente, o seu produto, a enunciação, não pode ser considerado levando-se somente em consideração as

condições psicofisiológicas do sujeito falante - apesar de não poder delas prescindir. A enunciação é de natureza social e para compreendê-la é necessário entender que

ela acontece sempre numa interação. A verdadeira substância da língua é constituída, para Bakhtin, “pelo fenômeno social da interação verbal, realizada por meio da

enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua” (1992a:123).

A enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados. A palavra dirige-se a um interlocutor real e variará em função desse: em

relação ao grupo social a que ele pertence, aos laços sociais, etc. Não pode haver interlocutor abstrato, pois não teríamos linguagem com tal interlocutor, mesmo no

sentido figurado.

Uma das formas mais importantes da interação verbal é o diálogo, caracterizado não apenas como comunicação em voz alta, de pessoas face a face, mas toda

comunicação verbal, de todo tipo. Qualquer enunciação constitui apenas uma fração da corrente da comunicação verbal ininterrupta (relativa à vida cotidiana, à

literatura, ao conhecimento, à política, etc). Por sua vez a comunicação verbal ininterrupta constitui apenas um momento na evolução contínua e em todas as direções

de um grupo social determinado.

Conforme Bakhtin/Voloshinov (1992a:124), a língua vive e evolui historicamente na comunicação social concreta. Dessa forma, para ele, a língua é vista a

partir de uma perspectiva de totalidade, integrada à vida humana. A lingüística não pode dar conta de explicar um objeto multifacetado. Para explicar a dialogicidade, o

aspecto lingüístico não é suficiente. Por isso, ele acrescenta o contextual e propõe assim uma disciplina, a metalingüística ou translingüística, para estudar o enunciado.

A abordagem que Bakhtin/Voloshinov propõe para o discurso - que ultrapassa os limites da lingüística - é a do estudo da própria enunciação. A estrutura da

enunciação concreta é determinada inteiramente pelas relações sociais, ou seja, pela situação social mais imediata e pelo meio social mais amplo.

Para Bakhtin/Voloshinov, a enunciação é produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este

pode ser substituído por um representante ideal, mas que “não pode ultrapassar as fronteiras de uma classe e de uma época bem definidas” (1992a:112).

A palavra se orienta em função do interlocutor. Na realidade, a palavra comporta duas faces: procede de alguém e se dirige para alguém. Ela é o

produto da interação do locutor e do interlocutor; ela serve de expressão a um em relação ao outro, em relação à coletividade. “A palavra é uma espécie de

ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra se apóia sobre o meu interlocutor. A palavra é o território

comum do locutor e do interlocutor” (Bakhtin/Voloshinov,1992a:113).

É a partir da concepção de linguagem de Bakhtin que nasce uma das categorias básicas de seu pensamento, que é o dialogismo. É a partir dela que ele estuda o

discurso interior, o monólogo, a comunicação diária, os vários gêneros de discurso, a literatura e outras manifestações culturais. Ele aborda o dito dentro e como réplica

do já-dito.

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Dialogismo

Olhar o mundo de um ponto de vista para melhor captar o movimento dos fenômenos em sua pluralidade e diversidade não é apenas a postura filosófica de

Bakhtin, mas também, e principalmente, a orientação de seu sistema teórico fundado no dialogismo. Para Bakhtin, a atividade do diálogo e da criação do personagem

no interior da literatura é modelar para o diálogo e a criação em todos domínios da vida. O autor da obra literária, assim como o eu concebido por Bakhtin é uma

entidade dinâmica em interação com outros eus e personagens.

As idéias de Bakhtin sobre o homem e a vida são caracterizadas pelo princípio dialógico. A alteridade marca o ser humano, pois o outro é imprescindível para

sua constituição. Como afirma Bakhtin, a vida é dialógica por natureza. Assim, a dialogia é o confronto das entoações e dos sistemas de valores que posicionam as

mais variadas visões de mundo dentro de um campo de visão: “na vida agimos assim, julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando compreender, levar em conta

o que é transcendente à nossa própria consciência: assim levamos em conta o valor conferido ao nosso aspecto em função da impressão que ele pode causar em outrem

[...]” (Bakhtin/Voloshinov, 1992a:35-36).

Neste artigo, por questões de ordem metodológica, foram separadas as duas noções de dialogismo que permeiam os escritos de Bakhtin: diálogo entre

interlocutores e diálogo entre discursos.

A interação entre interlocutores é o princípio fundador da linguagem. É na relação entre sujeitos, ou seja, na produção e na interpretação dos textos que se

constroem o sentido do texto, a significação das palavras e os próprios sujeitos. Com efeito, pode-se dizer que a intersubjetividade é anterior à subjetividade. Esta é o

resultado da polifonia das muitas vozes sociais que cada indivíduo recebe, mas que tem a condição de reelaborar, pois como ensina Bakhtin/Voloshinov, “o ser,

refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata” (1992a:46).

Esses aspectos do dialogismo interacional de Bakhtin, assinalados acima, contribuem para a compreensão, dentre outras características do discurso, os

simulacros e as avaliações entre os sujeitos. Destaque-se que a construção de tais características não são individuais, mas assentadas naquilo que Bakhtin denomina

horizonte ideológico, ou seja, na relação entre sujeitos (entre interlocutores que interagem) e a dos sujeitos com a sociedade.

Bakhtin argumenta que cada um de nós ocupa um lugar e um tempo específicos no mundo, e que cada um de nós é responsável ou “respondível” por nossas

atividades. Estas ocorrem nas fronteiras entre o eu e o outro, e, portanto, a comunicação entre as pessoas tem uma importância fundamental.

Enfatizei que Bakhtin considera o dialogismo como o princípio constitutivo da linguagem e como a condição do sentido do discurso. Dessa forma, o discurso

não é individual tanto pelo fato de que ele se constrói entre, pelo menos, dois interlocutores que, por sua vez, são seres sociais; como pelo fato de que ele se constrói

como um diálogo entre discursos, isto é, mantém relações com outros discursos. O discurso, para Bakhtin, é uma “construção híbrida”, (in) acabada por vozes em

concorrência e sentidos em conflito.

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O dialogismo é o permanente diálogo entre os diversos discursos que configuram uma sociedade, uma comunidade, uma cultura. A linguagem é, portanto,

essencialmente dialógica e complexa, pois nela se imprimem historicamente e pelo uso as relações dialógicas dos discursos. A palavra é sempre perpassada pela

palavra do outro. Isso significa que o enunciador, ao construir seu discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está sempre presente no seu.

É nesse quadro, portanto, que me interessam mais de perto as relações dialógicas que tomam forma e sentido nos textos. O objetivo do analista é analisar as

vozes que estão impregnadas nos discursos, ou seja, os discursos que estão interagindo, mesmo que tal interação não esteja, algumas vezes, tão evidente ou explícita e

que, no entanto, a partir dela, os sujeitos se constituem e mostram sua inventividade.

Repetição e criação

O enunciado verbal não é simples reflexo ou expressão de algo que lhe pré-existe; que está fora dele, dado e pronto. Para Bakhtin (1992b:348), “o enunciado

sempre cria algo que, antes dele, não existira, algo novo e irreproduzível, algo que está sempre relacionado com um valor (a verdade, o bem, a beleza, etc.). Entretanto,

qualquer coisa criada se cria sempre a partir de uma coisa que é dada (a língua, o fenômeno observado na realidade, o sentimento vivido, o próprio sujeito falante, o

que é já concluído em sua visão do mundo, etc.). O dado se transfigura no criado”.

Para Bakhtin, é mais fácil estudar, no criado, o que é o dado, como, por exemplo, os elementos de conjunto de uma visão do mundo, os fenômenos refletidos

da realidade, etc., do que estudar o criado. Ele diz: “toda análise científica se resume, no mais das vezes, a descobrir o que já estava dado, já presente e pronto antes da

obra [...]. É como se todo o dado se reconstruísse de novo no criado, se transfigurasse nele” (Baktin,1992b:349). Dessa forma, tudo é reduzido ao dado prévio, ao já

pronto. Na verdade, “o objeto vai edificando-se durante o processo criador, e o poeta também se cria, assim como sua visão do mundo e seus meios de expressão”

(Bakhtin,1992b:349).

As possibilidades e as perspectivas que estão presentes nas palavras e nas formas concebidas como abreviaturas ou representante de um enunciado, de uma

visão do mundo, de um ponto de vista, etc. reais ou virtuais são infinitas, segundo Bakhtin. Como se pode perceber, essa posição de Bakhtin é o oposto do

posicionamento de Althusser e Pêcheux sobre a categoria sujeito. Com efeito, a categoria criação do Bakhtin se opõe a categoria do sujeito assujeitado, do lacano-

althusserianismo, de Pêcheux.

BIBLIOGRAFIA

AUTHIER-REVUZ, J. (1982). “Hétérogénéité monttrée et hétérogénéité constitutive: élements pour une approche de l’autre dans le discours”. In: DRLAV, N° 26, Paris, Centre de recherche de l’Université de Paris VIII, pp.91-51.

_____ (1990). “Heterogeneidade (s) enunciativa(s)”. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos, N° 19, Campinas-SP, Unicamp-Iel. pp.25-42 . BAKHTIN, M. (Voloshinov, V.N.-1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1992a. _____ (1979). Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992b.

Page 31: Volume III

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº37 - FEVEREIRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 37

A REVOLUÇÃO “PROHACAPIANA”

WALTERLINA BRASIL

PRIMEIRA VERSÃO

Page 32: Volume III

ISSN 1517 - 5421 32

Walterlina Brasil A REVOLUÇÃO “PROHACAPIANA”

Professora do Curso de Pedagogia - UFRO

[email protected]

Este artigo pretende trazer um primeiro ato do teatro da formação oferecida pela Universidade Federal. Longe de pretender oferecer críticas tacanhas

ao processo de formação universitária, busca assumir um compromisso com uma análise um pouco mais cuidadosa sobre o fenômeno da formação em massa

e seus impactos, cuja oportunidade é possível com o exemplo concreto do atendimento aos professores sem formação de nível superior, conhecido como

PROHACAP, no caso de Rondônia. Em bom nome da harmonia entre as tarefas regulares e os serviços especiais, abrigou-se na UNIR discussões rápidas

sobre aquiescência de rotinas institucionais que comparam o incomparável (por igualdade): o fato de que um Programa Especial não é curso regular. Ou seja,

obriga-se regular porque a maioria dos professores e todos alunos admitidos são da UNIR, mas não há proposta acadêmica que se refira as suas

especificidades e promova estes alunos a uma integração consoante a pensar sobre as políticas públicas e ao papel da Universidade, na formação obtida.

O Programa de Habilitação de Professores Leigos - PROHACAP efetuado pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR, com intermediação da

Fundação Rio Madeira, envolve hoje um pouco mais de 27 municípios, com cerca de 170 turmas, em uma média de 57 alunos por turma, incidindo em 9.690

professores em formação, no estado de Rondônia. A necessidade de formar professores de nível superior está vinculada a exacerbada e duvidosa

interpretação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (1996), quanto a manutenção dos professores que não possuem formação adequada

para o magistério no sistema educacional onde trabalhassem. Não é demais lembrar que a demanda por escolarização entre os próprios professores que atuam

na rede pública na região ultrapassa a casa dos 80 mil professores, segundo os dados do INEP, 1990, e sempre existiu.

Há evidências furtivas, contundentes e importantes quanto ao que trato de alertar aqui, que são observáveis mediante a execução indiscutível do PROHACAP e

que pela forma como este Programa vem se implementando, torna-se mais visível do que quando existiam exclusivamente os cursos de Pós-Graduação pagos. Tais

evidências questionam a consciência e alcance que se tem do problema. Vejamos:

Primeiro: Já mencionei acima: Se há demanda reprimida por acesso ao ensino superior, dentro dos próprios sistemas de ensino, e nestes estão os professores

que atuam na Educação Básica (que “alimentam” a qualidade para a demanda regular ao ensino superior), esta sempre existiu. O acesso, competitivo, somente pôde ser

assegurado quando o poder público, com recursos públicos, “contrata” uma universidade pública, para receber esses recursos públicos, através de um intermediário

(“semi-público” ou de “apoio” ao público, mediante condução privada: as Fundações) e os asseguram no ensino superior e, com isso, mantém o próprio sistema e força

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de trabalho de que necessitam. Esta demanda, então, é uma demanda que deve “estar garantida”. O que isto quer dizer? Quais as conseqüências? Uma primeira

ilustração pode ser dada na execução do Processo Seletivo - uma exigência legal – que parece não precisar ser tão exigente... Ora, se observamos o nível das questões

que são apresentadas aos candidatos que prestam este vestibular especial, compará-las com as empreendidas no vestibular regular (daqueles que não contratam a UNIR

para garantir o acesso) e agregar o fato da “dispensa” da prova de redação... temos um indício importante. Pois bem, chego a pensar que bastaria que os “excluídos” do

ensino superior pudessem formar grandes associações, capitalizarem-se e daí comprar uma vaga na UNIR (Pagar, todos pagam, uma vez que o vestibular não é gratuito

e nenhum serviço o é). E esta fórmula, ao que parece, valeria para qualquer um.

Segundo: O regime acadêmico, para os que contratam a UNIR, é perfeito. O calendário não é alterado: é aperfeiçoado visando o bom atendimento dos

contratantes, segundo a conveniência e interesses administrativos da parte interessada. Acertado junto a empresa contratada (que apóia a UNIR), os prestadores de

serviço (professores e dirigentes da UNIR), devem ser convenientemente acionados a cumprir sua rotina, por colegas de trabalho que possuem, em um Programa

Especial, funções também especiais, mas com a maior força política, do que, por exemplo, um Coordenador de Pólo (no caso do PROHACAP), gerencia da mesma

forma que um Diretor de Núcleo e os Chefes de Departamento juntos (no caso regular), ainda que os primeiros insistam que buscam estar em sintonia com os

segundos, algumas vezes estes últimos somente sabem da criação de novas turmas por telefone ou após os contratos firmados. O serviço, melhor remunerado do que o

regular merece até que ocorram algumas gentilezas nada recomendáveis entre professores (em público!). Nas aulas por sua vez, os professores nunca se atrasam, nunca

faltam, nunca estão em projetos de pesquisa ou em processos de qualificação durante o PROHACAP, não atrasam entregas de notas etcétera e tal, o fato de ser modular

facilita as coisas para todos (!?). Os alunos regulares podem esperar e atrasar o início de suas atividades até que o Campus se reorganize das conseqüências do

programa especial, em regime especial e período especial (hoje, institucionalmente, o sistema modular na UNIR somente é admitido para cursos de Pós-Graduação ou

especiais).Os alunos regulares devem ainda, aguardar que os professores recuperem a voz e o stress das aulas dadas durante as semanas do PROHACAP, cujo regime é

de oito horas diárias, ou mesmo que apareçam na data estabelecida em Calendário. Os alunos regulares recebem o castigo: depois de submetidos a um processo de

seleção bem mais competitivo, devem estar submetidos ao “terrorismo” (Oh!) da condição efetivamente acadêmica: submeter-se ao regime da pesquisa, da extensão, do

debate, do estudo inquietante. Os do PROHACAP são convidados a sentirem-se alunos da UNIR, mas só. E para alguns, com um ensino até mais dedicado do que

aquele oferecido ao aluno regular. Por sua vez, o aluno do Programa Especial – dizem – pergunta, procura, lê, estuda, entrega os trabalhos nos prazos, compra livros, se

interessa... Parecem duas distintas metades comportamentais, cujo fundamento é pouco estudado.

Terceiro: Não presenciamos discussões efetivas entre os interessados sobre qual o perfil institucional destes “clientes”, pelos próprios contratantes. As

Secretarias de Educação (e até mesmo os sindicatos), satisfazem-se com os intermediários fundacionais, adiando a tarefa de discutir ANTES que o programa se instale

quais as bases pedagógicas e acadêmicas em que o serviço está sendo requerido; por sua vez, nosso intermediário (as fundações) não pode perder muito tempo nestas

discussões, afinal, já está tudo tão bem sedimentado (!), ajustado, as condições já estão dadas e sabidas. Já se faz ensino a tanto tempo (!). O “kit” está pronto. Torna-se

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suficiente a formação para a certificação. Deve-se ter os olhos bem abertos, pois o PROHACAP pode ser o maior Programa Especial de formação existente na UNIR,

mas não é o único. Isto quer dizer que a UNIR não possui mais regularidade. Sua clientela efetiva é de programas especiais. Isto quer dizer que a UNIR não possui

mais regularidade. Sua clientela efetiva e majoritária concentra-se nos programas especiais e se somarmos aos cursos de pós-graduação pagos, hoje a UNIR é uma

instituição federal, pública, porém com atendimento privado. A demanda tem sido atendida fora dos padrões regulares, supostamente com um mesmo plano acadêmico,

que, por sinal, não se bem qual é.

Quarto: Não se pode imaginar que a UNIR dobrou sua capacidade de atendimento sem alterar seus padrões de qualidade. O que as Universidades da

região norte vem fazendo é atender a uma condição justificadamente legal, não abrindo mão desta tarefa que lhe tem sido historicamente determinada.

Entretanto não se pode perder de vista o fato de que em paralelo às grandes pressões da política governamental, trata-se de questionar o sentido das

Universidades Federais nesta região, dentro do caráter para o qual se entende pertinente o seu papel. Tentando responder a parte destes questionamentos, a

UNIR vem empenhando-se por gestar ações que impliquem alterações profundas e oportunas sobre a tarefa e o fazer universitário, empreendendo um esforço

enorme sobre a dinâmica da pesquisa, da produção científica, da Pós-graduação; mas submete-se, como uma unidade inquestionável, aos cursos de formação

em massa, chegando a entendê-los como demanda efetiva para sua rotina acadêmica (para não dizer principal) e carro chefe para os padrões de ensino

pretendidos, mesmo sob pena de sonegar qualitativamente seu compromisso com políticas de desenvolvimento.

Por fim, a UNIR ressente-se da sua falta de planejamento e do esgotamento das suas possibilidades internas em rediscutir suas práticas acadêmicas. A

responsabilidade sobre estas deveria estar centrada em um eixo orientado pela ambiência ética fomentada no intercâmbio comunidade acadêmica e sociedade, que vem

sucumbindo dia-após-dia na lentidão (proposital ?) de uma tomada de decisão sobre qual o propósito formativo pretendido para sua clientela, segundo o programa que

acedem, pois, uma vez que não são semelhantes, seus propósitos devem ser abertos e claros, tangíveis e lúcidos. O caráter finito dos Programas não ofusca a revolução

que está gerando ao proporcionar que a UNIR assuma-se um grande Centro Universitário. E só. Os que se julgam proponentes de um pensamento de Universidade que

orientam as ações universitárias sob a visão das conseqüências políticas, decolam nas esquinas da UNIR, contribuindo para que as estruturas institucionais fiquem cada

vez mais fragilizadas.

Pensando seriamente sobre o assunto, é arriscado pretender que a UNIR possa manter práticas acadêmicas associadas com a pesquisa e a extensão dentro de

programas de qualificação em massa, especialmente quando o diálogo entre os “contratantes” e a academia foram colocados à margem do processo. Reduzir o trabalho

da UNIR a contratos e estabelecer plataformas formais de avaliação norteados por freqüência as aulas, cumprimento integral dos horários e conteúdos programáticos

como suficientes para estabelecer o sucesso do trabalho executado é condenar a trajetória do ensino superior em Rondônia a um equívoco histórico, patético,

incontornável e de conseqüências desastrosas para o que está traçado em função das políticas nacionais para o ensino superior na região, confirmando-as.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº38 - FEVEREIRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 38

A ESCOLA SOCIOLÓGICA FRANCESA E SUAS PRESENÇAS NAS TEORIAS DO

IMAGINÁRIO

ARNEIDE CEMIN

PRIMEIRA VERSÃO

Page 36: Volume III

Arneide Cemin A ESCOLA SOCIOLÓGICA FRANCESA

Professora de Antropologia E SUAS PRESENÇAS NAS TEORIAS DO IMAGINÁRIO

[email protected]

Primeiro os esclarecimentos. O imaginário ao qual me refiro não designa um fenômeno esotérico ou que se coloque acima do mundo. Ele é a contextura do

mundo humano. Para diversificar as possibilidades de entendimento, acrescento que falo de um imaginário social próximo daquilo que Foucault define como episteme

ocidental. Um contexto social de saberes que permite a articulação de discursos – palavras, pessoas e coisas - que pondo em contigüidade, fusão e intercruzamentos as

positividades, as empiricidades, construindo-as.

Chamo de “Escola Sociológica Francesa” antes de tudo ao empreendimento intelectual posto pela Escola Francesa de Sociologia, a partir de Durkheim, que é a

questão das representações sociais ou categorias coletivas do entendimento. Ao mesmo tempo, ao localizar o enfrentamento dessa problemática em diferentes autores, a

exemplo de Foucault, particularmente sua obra intitulada “As palavras e as coisas”, Freud de “Totem e Tabu”, Lévi-Straus, Castoriadis de “A instituição imaginária da

sociedade”, Bachelard e Gilbert Durand; o termo Escola Sociológica Francesa passa a designar o meu próprio empreendimento intelectual. Neste artigo abordo apenas

o resultado parcial de minhas leituras e reflexões sobre o pensamento de Durkheim, Mauss, Lévi-Strauss e Durand, acerca da problemática do pensamento social.

ÉMILE DURKHEIM

Durkheim procura compreender a maneira pela qual, nós, os humanos, reunimos “As palavras e as Coisas”. Assim, ele articula a teoria do conhecimento da

realidade social, situando-a no campo simbólico, no espaço das representações sobre o dizer e o fazer social, apreendido pelo tipo de relação que mantemos para com o

totem e o tabu. Além disso, em sua teoria do conhecimento, o autor estabelece a hipótese sociológica de que as categorias da sensibilidade e do entendimento, ao

contrário da afirmação de Kant, não são inatas, e sim, construídas socialmente.

Desse modo, a Escola Sociológica Francesa lega a antropologia uma ferramenta de trabalho importante para o acesso às “representações sociais”, ao

imaginário, que são os pressupostos teóricos e metodológicos para a análise das categorias do entendimento ou representações sociais. Ou seja, as categorias sintéticas,

não enquanto a prior, mas, enquanto historicidades, permanências e metamorfoses.

Ao discutir as “categorias do entendimento”, nas “Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália”, livro no qual Durkeim funda a

sociologia do conhecimento, o autor discorda do pressuposto de kant quanto ao fato de tais categorias serem inatas, e quanto ao aspecto de que o tempo e o espaço

sejam apenas “formas de sensibilidade” e não categorias do entendimento, consideradas igualmente inatas na filosofia kantiana. Assim, em um mesmo movimento,

Durkheim fundamenta essas categorias na hipótese sociológica e alarga a noção de “categorias do entendimento” de modo a designar as “formas da sensibilidade”

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como categoria do entendimento e, portanto, “representação social” porque construída socialmente. Assim, o autor lança, desde então, um percurso metodológico que,

partindo de uma “etnosemântica” (as categorias) chega a uma “etnocognição” (o entendimento), como diríamos hoje.

A análise das “categorias do entendimento”, enquanto categorias verbais permitem a compreensão do modo pelo qual o grupo em questão compreende, e,

consequentemente, representa o mundo, às maneiras de pensar que estão associadas às práticas sociais. Entre os fenômenos que nos permitem acessar as

“representações sociais” das diferentes sociedades, Durkheim destaca os ritos e os símbolos. Em sua análise as condutas sociais não se dirigem para as coisas em si

mesmas, mas para seus símbolos. Quanto aos ritos, ele os classifica em três tipos:

1. Os negativos (tabus) – dizem respeito às interdições, ao distanciamento;

2. Os positivos (totem) – são atos de comunhão (de proximidade e identificação com o totem) – tais como, as refeições rituais.

3. A terceira categoria de rito, os ritos de imitação são ritos miméticos ou representativos, que tendem a imitar a coisa que deseja provocar.

Os ritos teriam por função proporcionar coesão social, suscitar, manter, e renovar o sentimento de participação no grupo, uma vez que a sociedade só é possível

através dos ritos e dos símbolos. Dentre as “categorias do entendimento”, Durkhein analisa as de gênero e de causalidade defendendo a tese segundo a qual

classificamos os seres do universo em grupos, chamados gêneros, porque temos o exemplo das sociedades humanas. Estas são tipos de agrupamentos lógicos

percebidos imediatamente pelos indivíduos. Desse modo, ampliaríamos às coisas da natureza a prática do agrupamento humano, tendo como referência à maneira pela

qual concebemos o mundo social. Assim, de acordo com o autor, é a sociedade humana que fornece o modelo para a apreensão do mundo natural.

As classificações - argumenta Durkheim - são sistemas de noções hierarquizadas e só podem ter origem na sociedade. Assim, é porque os homens estão

repartidos que eles repartem o mundo. Sendo a hierarquia um fenômeno social, sua origem não poderia advir da observação da natureza ou do mecanismo das

associações mentais. Do mesmo modo, nos diz o autor, a noção de igualdade não pode advir da natureza.

Quanto à noção de causalidade, ela também provém da vida coletiva a partir da idéia de força. É a imagem e a experiência social da coletividade de homens

que produz a noção de “força” superior à força dos indivíduos considerados isoladamente. A origem da noção de causalidade é a força coletiva criada pela comunhão

dos homens entre si, em situação de trabalho ou de festa. As situações de trabalho ou de festa são particularmente importantes como geradoras da “efervescência

social”: troca intensa que se estabelece entre os homens reunidos em torno de idéias e crenças em comum.

São as representações coletivas, o imaginário social, que pode permitir ao homem elevar-se acima de si mesmo, ou seja, para além de sua condição de

isolamento, possibilitando-o apreender a “totalidade” construída e representada por seu grupo, sua sociedade. Ao apresentar a hipótese sociológica, Durkheim pretende

superar o empirismo que entende que os conceitos resultam diretamente da experiência sensível; e, o apriorismo de Kant, segundo o qual os conceitos ou categorias

são dados inatos do espírito humano. Para o autor, a origem dessas categorias é a vida coletiva. As categorias são representações impessoais porque são coletivas, se

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impõem porque são coletivas. Elas exprimem a maneira pela qual as sociedades se representam às coisas que lhes dizem respeito e que, portanto, são valorizadas,

protegidas, reproduzidas, sacralizadas ou racionalizadas.

A ciência, por exemplo, diz ele, tem autoridade sobre nós porque a sociedade assim o quer. Se hoje basta mencioná-la para obtermos crédito, é porque temos fé

na ciência. Quanto à verdade, ela é construída socialmente, como todo e qualquer valor. Desse modo, não basta que algo seja verdadeiro para ser aceito como tal, é

preciso, nos diz Durkheim, que se harmonize com o conjunto das representações coletivas vigentes, as arraigadas ou as que estão em ascensão, caso contrário, é como

se não existisse. Tudo na vida social repousa sobre a “opinião”, diz ele, assim, para que haja conformidade de condutas é necessário haver “conformismo lógico”: uma

certa homogeneidade de entendimento, daí o importante trabalho das “categorias do entendimento” na vida social.

Durkheim não opõe, em sua análise, as crenças e a lógica, como era próprio aos intelectuais desde o iluminismo. Com isso, ele permitiu que se percebesse a

lógica própria a cada crença em particular, além de localizar a crença como base das categorias do entendimento de diferentes grupos sociais, independente das suas

características tecnológicas. Ao fazer isto, Durkheim rompe com a perspectiva evolucionista e, ao mesmo tempo, coloca os fundamentos do social e do humano como

sendo de natureza essencialmente simbólica, e o simbólico como tendo origem social, portanto, cultural e histórica.

A antropologia, herdeira das hipóteses teóricas apresentadas nas “Formas Elementares de Vida Religiosa”, pôde, desde então, dedicar-se a estudar à lógica das

crenças, uma vez que Durkheim evidenciou que o conhecimento é construído em função de “razões” sociais. A Escola Sociológica Francesa é racionalista com

Durkheim. Mas, o que é a razão para este autor? Para ele a razão é o conjunto das categorias fundamentais de uma determinada sociedade. A categoria de razão estaria

incluída no conjunto citado, sendo, ela própria, uma construção coletiva.

Durkheim é racionalista ainda, porque, contra o empirismo, ele acredita que o mundo tem um aspecto lógico, que se expressa pelo poder do intelecto de ir

além da experiência imediata. Acredita que os conhecimentos racionais, lógicos, não se reduzem aos dados empíricos, aqueles que a ação direta dos objetos suscita em

nossos espíritos. A sensação empírica é um estado individual explicável pelo psiquismo do indivíduo, diz respeito às representações individuais, ou seja, à construção

pessoal que o indivíduo elaborou a partir de seu meio social. A ele interessa, particularmente, as representações coletivas: àquelas aceitas, preservadas e reproduzidas

pelos grupos que, através delas, se expressam.

Para Durkheim o homem é duplo: individual e coletivo. Apesar de duplo, Durkheim não postula pela oposição entre indivíduo e sociedade. Compreende que

sendo as subjetividades construídas socialmente, é o próprio indivíduo que passa a identificar-se e a desejar o que a sociedade valoriza. Os conhecimentos racionais,

lógicos, e as manifestações afetivas são gerais porque são coletivos (p. 45) Por isso, a razão - que não pode ser considerada universal ou abstrata, porque é sempre

relativa aos grupos - ultrapassa o alcance dos conhecimentos empíricos e se impõe definindo e orientando representações e guiando as condutas, sendo, portanto,

motivadora de ações.

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39

Esse racionalismo durkheimiano será prolongado em Lévi-Strauss, que “herda” essa fundamentação filosófica e essa temática que será desenvolvida por ele,

particularmente nas seguintes obras: “O Totemismo Hoje”, “O Pensamento Selvagem” e a “Eficácia simbólica”.

Antes, porém, de abordarmos as reflexões de Lévi-Strauss, é importante nos determos ainda um instante na primeira geração da Escola Sociológica Francesa,

examinando a contribuição de Marcel Mauss, sobrinho e colaborador de Durkheim, para a discussão dos fundamentos simbólicos das sociedades.

MARCEL MAUSS

Dando continuidade ao programa da escola, Mauss escreve dois artigos importantes intitulados: “A noção de pessoa, a noção de eu” e “Técnicas corporais”

fazendo, segundo ele, a “história social” dessas noções, evidenciando o longo processo pelo qual ela foi sendo construída coletivamente. Evidencia que a pessoa é fato

moral e que todo fato moral é fato de educação, portanto, a própria noção de moral, bem como, as suas diferentes manifestações são adquiridas por aprendizagens. O

autor prossegue afirmando que todo ato educativo é técnica corporal, e que as técnicas corporais são “sistemas de montagens simbólicas”.

Conclui indicando que a noção de pessoa, sendo construída socialmente através de toda uma pedagogia técnica e simbólica que institui o sentido do corpo e de

sua individualidade para o sujeito, é uma das formas fundamentais do pensamento e da ação dos indivíduos, sendo, portanto, uma representação coletiva, uma categoria

do entendimento; e, como toda categoria do entendimento, ela não é inata.

O axioma sociológico elaborado pela escola francesa, apoia-se em dois postulados inter-relacionados: o primeiro, afirma que a origem e o caráter do

pensamento é coletivo, porque o homem pensa interativamente com os outros homens de sua sociedade. Essa interação pode ser da ordem da homogeneidade

(participação) ou da ordem da heterogeneidade (exclusão, demarcação de diferenças, oposições). O segundo postulado, indica que a pesquisa sociológica deve localizar

a parte do social na construção do pensamento, porque essa participação não é evidente por si mesma, uma vez que os processos de “naturalização” do social

obscurecem a origem coletiva dos mesmos, criando o efeito de tornar natural, sempre posto e imutável, àquilo que é social e, portanto, histórico.

Do mesmo modo que o falante de uma língua materna não se dá conta que a sua linguagem é fruto de seu grupo social, tendendo a considerá-la “natural”, o

participante de uma cultura não vê o modo pelo qual a sociedade configura o seu pensamento e sua conduta. Cabe ao sociólogo buscar os significados profundos,

inconscientes da cultura. (A Escola Francesa não distingue a Sociologia da Antropologia)

O programa específico da escola, portanto, era demonstrar o caráter social do pensamento através da análise das “categorias do entendimento”, e, evidenciar a

dimensão “ideal”, simbólica, imaginária, dos “fatos sociais”. A simetria entre o concreto e o simbólico é a tese básica da escola que afirma: todo fato de consciência,

todo pensamento é fato social, logo, todo fato social por mais objetificado, concretizado, instituído que seja, é fato de consciência, é consciência objetificada, sendo,

portanto, da ordem do pensamento. O modo de pensar cria, transforma e destrói e, sendo sociais, as categorias são históricas: surgem, transformam-se e desaparecem.

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CLAUDE LÉVI-STRAUSS

Lévi-Strauss retomará a busca dos fatos profundos, inconscientes que instituem o social, mas não o fará em perspectiva diacrônica, ancorado em uma “história

social”, a exemplo do método histórico preconizado por Mauss. Ele retomará a busca desses fatos do ângulo da sincronicidade, através das “categorias do

entendimento”, enquanto categorias lógicas, sem remetê-las à investigação da historicidade que as constituíram. Enfatizará o plano das articulações lógicas e das

dualidades estruturais: a natureza e a cultura, o sagrado e o profano, o puro e o impuro, o próximo e o distante; remetendo-as, ao nível meta-teórico, à estrutura do

“inconsciente”.

O “inconsciente”, para ele, resulta do funcionamento do cérebro que, desse modo, é visto como um formante, um estruturador que não visa fins práticos ou

utilitários, mas, sistema e ordem. Entretanto, em sua proposta metodológica a identificação da lógica não é buscada arbitrariamente em um suposto mundo arquetípico.

Bem ao contrário, ela deve ser apreendida através de uma etnografia minuciosa, fenomenológica, que visa dois objetivos:

1. Identificar as “representações conscientes”, pois são via de acesso para as “representações inconscientes” que serão identificadas pela análise estruturalista.

2. Perceber de que modo esse conjunto elabora sistema, pois não são automaticamente estruturas, são, antes documentos para ajudar a descobri-las.

As “representações conscientes” são expressas por diferentes objetivações do pensamento social: pela linguagem, pelo comportamento, pelas regras, ritos;

pelas genealogias, planos de aldeias; usos do corpo, códigos alimentares e matrimoniais, enfim, por inúmeros e variados “documentos etnográficos”. A estrutura,

entretanto, não é da ordem do empírico, é da ordem do pensamento, não corresponde diretamente a nenhuma realidade objetiva. A estrutura que a análise estruturalista

desvenda é de ordem lógica. Diz respeito aos sistemas de constância dos elementos e ao caráter de relação que se estabelece entre ele e os demais elementos, bem

como, aos modos de transformação pelos quais eles se configuram.

A obra de Lévi-Strauss constitui importante instrumento de percepção do imaginário social em sua estruturação lógica, permitindo a visibilidade das constantes

estruturais que organizam os universos de sentido.

GILBERT DURAND

A teoria desse autor é um complexo diálogo entre a reflexologia, a fenomenologia estruturalista e a fenomenologia hermenêutica, além do Existencialismo,

entre outras influências. Tomaremos como ponto de partida a definição de imaginário proposta por Durand, para, a partir dela, ancorar uma indagação que funcione

como eixo de nossas reflexões tanto de fundamento quanto de método. O imaginário, segundo Durand (1997), é o conjunto das imagens e das relações entre imagens

que constituem o capital pensado do sapiens, assim, ele remete o imaginário para as imagens e para os nossos procedimentos de produção de imagens. Esta definição

nos impõe uma indagação: o que é a imagem? Ela é representação, esquema, arquétipo?

Para Durand, a estrutura é encontrada ao nível do esquema que, por sua vez, é anterior a imagem. A estrutura é originada nos gestos primordiais do sapiens,

que, seguindo Piaget, ele chama de esquemas de motricidade ou tendência geral dos gestos enquanto intenção, embora inconsciente, que formata as operações lógicas,

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ou seja, os tipos de relação que o sapiens estabelece com o mundo, a partir de sua corporeidade. O esquema leva em conta as afeições e as emoções e faz a junção entre

os gestos inconscientes e as representações. Algumas das ligações lógicas resultantes dos esquemas de motricidade são: separar, típico da estrutura heróica; unir/fundir,

próprios a estrutura mística.

O arquétipo é a representação dos esquemas. Para a subida, por exemplo, temos os arquétipos - chefe e alto. Para o aconchego, os arquétipos mãe, colo e

alimento. Já o símbolo é todo signo concreto, evocando algo ausente ou impossível de ser percebido. O mito é um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e

esquemas que tende a se compor em relato – história, por isso ele já é um início de racionalização. O mito vai transformar em linguagem, em relato, as escolhas

culturais, e, o relato, organiza o mundo, estabelece o modo das relações sociais, e seus personagens vão servir de modelo para a ação cotidiana dos indivíduos.

Em Durkheim e Mauss, a teoria social se afasta da Biologia e compreende o pensamento enquanto construção coletiva. Com Lévi-Strauss e Durand, sem

ignorar o social, voltamos ao biológico. O primeiro retém do biológico apenas o cérebro, entendido como um formante de estruturas binárias, complementares e

opostas, que funcionam como estruturador lógico para as elaborações culturais. Durand considera que toda a corporeidade, bem como, a sociabilidade, participam na

estruturação do pensamento.

Durkheim e Mauss compreendem a realidade humana enquanto construção virtual, dispositivo, “sistemas de montagens simbólicas” na bela e competente

expressão de Mauss. Essa noção pode ser aproximada do “dispositivo maquínico” e do “agenciamento coletivo” de Guattari, para acentuar a atualidade das

formulações da primeira geração da École, que escreveu no início do século.

Lévi-Strauss e Durand vão articular o sócial ao substrato biológico, evidenciando outro aspecto do debate que é o diálogo interdisciplinar. É bem verdade que a

Antropologia é interdisciplinar desde a fundação da “Escola”, Mauss, inclusive, estabelece a noção de “fato social total” para demarcar a necessidade de o antropólogo

considerar todos os aspectos do fenômeno que estuda: econômico, político, biológico, psicológico, religioso, estético. A diferença está na escolha quanto as disciplinas

consideradas no diálogo que os autores desenvolvem.

Lévi-Strauss, por exemplo, não aprofunda o diálogo com a Biologia, sua hipótese encontra argumentos na lingüística de Saussure e na Cibernética; a Biologia

participa como meta-teoria, pois ele acredita que em função da universalidade da lógica binária, inclusive no pensamento selvagem, aquele ainda não informado pela

herança Ocidental, deve haver homologia entre a natureza – o mundo orgânico (sabemos que ele é químico, elétrico, magnético e computacional) e o modo de

funcionamento do cérebro; do contrário, como seria possível o isomorfismo das produções do “espírito” humano, entre nós e os “primitivos” e, entre essas duas

metades da humanidade e a materialidade do mundo?

Durand dialoga com a Reflexologia, com a Epistemologia Genética de Piaget, com o Estruturalismo de Lévi-Strauss, com a Psicanálise (Freud), com a

Cosmovisão de Bachelard e, com a etnografia; construindo um empreendimento complexo, ao qual pretendemos dedicar estudos mais completos.

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42

Se, no início do século, Durkheim ao contribuir decisivamente para o estabelecimento da Sociologia, o faz “heroicamente”, pelo corte, separando-a da

Psicologia Introspectiva e da Filosofia Social, no programa mesmo da Escola, a noção de “fato social total” preconiza a abordagem interdisciplinar para a elucidação do

“fato social”. Mesmo porque, a interrelação entre o “soma” e a “psiquê”, foi objeto de análise de Mauss, em seu artigo sobre o “Efeito físico no indivíduo da idéia de

morte sugerida pela coletividade” para compreender os casos em que o indivíduo se deixa morrer porque acredita que, de acordo com o padrão do grupo, ele, por

transgressão ou ataque psíquico de inimigos, não pode continuar vivo.

É também, Marcel Mauss – fortemente ligado à História Social (ao contrário de seu tio Durkheim que inaugura o funcionalismo-estrutural na França) - e,

também interessado nos aspectos afetivos da sociabilidade, quem retomará o diálogo com a Psicologia, através de um outro artigo que trata das “Relações reais e

práticas entre a Sociologia e a Psicologia”, projeto que será retomado por Roger Bastide em “Sociologia e Psicanálise”. Ou seja, há um intenso e intrincado debate

interdisciplinar em torno da constituição mesma do pensamento humano, entendido enquanto imaginário social, e da relação entre grupo e indivíduo. Esse debate

perpassa a produção da Escola e encontra eco na produção de vários intelectuais franceses contemporâneos

BIBLIOGRAFIA

CEMIN, Arneide Bandeira. Entre o cristal e a fumaça: afinal o que é o imaginário? in Presença. Porto Velho, Universidade Federal de Rondônia, Ano VI, No. 14,

1998.

DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo, Cultrix, 1988.

________. As estruturas antropológicas do imaginário, São Paulo, Martins Fontes, 1997.

________. O imaginário: ensaios acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro, Difel, 1998.

DURKHEIM, Émile. Sociologia e filosofia. São Paulo, Ícone, 1994.

________. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo, Paulinas, 1989.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa, Edições 70, 1985.

________. Antropologia estrutural. Rio de janeiro, Tempo Brasileiro, 1975. (Vol. I e II).

________. Totemismo hoje. São Paulo, Abril Cultural, 1985.

________. O pensamento selvagem. Campinas, Papirus, 1989.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo, EPU/EDUSP, 1974. (vol. I e II).

Page 43: Volume III

43

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº39 - FEVEREIRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

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EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos entre 3 e 7 laudas, tamanho de folha A4, fonte Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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Page 44: Volume III

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Maria Cristiane Pereira De Souza O CORPO DA PRODUÇÃO

Aluna de História – UFRO

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Que homens e mulheres são diferentes, a gente sabe e sente na pele. Mas há explicações científicas para determinados hábitos masculinos, como esclarecem os especialistas em comportamento Allan e Bárbara Pease, no bem-humorado livro “Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?” (Editora Sextanle). Porque é que ele ... Não escuta o que você diz quando está lendo ou vendo tevê?Por ter menos fibras conectoras entre os hemisférios cerebrais do que nós, o homem usa um lado de cada vez. Já reparou que ele não fala uma frase inteira enquanto faz sexo? Gosta que a gente se vista de prostituta (mas não em público). Como o cérebro masculino precisa de um pouco de variedade, ele engana a si mesmo e finge que têm um harém particular ao ver a sua mulher com diferentes roupas sensuais. (...) Chora menos do que nós como a emoção do homem se posiciona, em geral, no hemisfério direito, e não no dois lados (nosso caso), é mais fácil para ele manejar as palavras, que vêm do hemisfério esquerdo, sem derramar lágrimas. (Joyce Moysés)

O texto apesar de breve retoma o constante dilema da guerra dos sexos que passa da instância do sente na pele ao mecanismo cerebral. Assim o leitor de

Decodificando a Mente Masculina é introduzido em uma realidade intracerebral em que as atitudes humanas escapam ao domínio da razão psicológica e penetram nos

domínios das leis do sistema cerebral.

A sentença que homens e mulheres são diferentes, a gente sabe e sente na pele são primícias de uma verdade básica, incontestável nos moldes do pensamento

ocidental, nas fixações dos papéis homem e mulher. Qual é a prova evocada para tal verdade: o senso comum, a vivência; constituindo o dogma inabalável da divisão

de gêneros como natural, condição determinada pela espécie a qual somos classificados. As formatações homem e mulher neste pensamento mecanicista são funções

irrefutáveis definidos pela condição além-anatômica, como decodificações específicas armazenadas nos cromossomos maquinais da espécie.

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Explicações científicas: A ciência apregoa a concepção do corpo natural adicionando-lhe a intradimensão: profundidade densidade, complexidade, movimento,

circulação, fluxo, direção, tudo isso regido por um maquinismo lógico, de leis verificáveis pelo manuseio do corpo. Desenvolve-se um modo mecânico de existência

substancial.

Esclarecem os especialistas: a indefinição do especialistas de comportamento não traz ao texto e sua leitura qualquer invalidade. A imprecisão é amparada sob

o prestígio da ciência com os métodos científicos que formam um discurso maciço e compacto, não se fazendo necessário à especificação dos agentes do discurso. Não

se questiona a identificação das concepções teóricas que se presta como base a tais estudos do comportamento como fenômeno biológico. O próprio texto de propõe a

ser raso pelo tipo de clientela a que se dedica: “mulher, orientação de como viver num mundo caótico”. É necessário apenas saber-se que o fundamento para as

sentenças que sequem são baseadas e comprovadas pela ciência, logo confiáveis, inquestionáveis e convincente em seus argumentos. A realidade que o corpo adquire

com o estudo especializado científico – intramecânica, instrumento funcional, automático, movimento, natural – equivale à construção de um código de linguagens

onde cada corpo de nossa sociedade é inscrito dando forma existencial ao corpo da produção, o instrumento da força de trabalho, um corpo do “mundo”.

Bem-humorado livro: a severidade e a austeridades, do discurso autoritário - voz unitária e imperativa, sem brechas da ciência é quebrantada e velado num “Bem-

humorado livro”. Porque se fez necessário colocar no início do texto esta ressalva?

Após afirmar a possibilidade de “especialistas” terem desenvolvido a capacidade de decodificar o sistema social (a decodificação é sempre uma forma de

leitura unidimensional pretendida há decifrar os códigos textuais do texto sociedade); inicia-se as sentenças cadenciadas relativizando cada comportamento à área

espacial do cérebro que pré-determina as reações humanas.

Menos fibras conectoras: o cérebro masculino, tem menos ligadura, menos complicação. A simplicidade da estrutura cerebral relaciona-se a um esquema

elementar, claro, límpido fácil de manobrar [não esqueçamos o objetivo da revista: orientar a nova mulher para uma nova vida dando dicas em suas relações] (Orlandi

1996: 56). O manual básico de “como funciona o homem” assegura-o como mecanismo subordinável, como menos complexo, beirando o rústico. O manual confirmar,

como num arquétipo da bela e a fera, ser possível um tipo de mulher basicamente complexa - com mais fibras conectoras (a contraposição das espécies), ser capaz de

subjugar o homem - estrutura cerebral mesmo complexa -, as suas vontades.

Um lado de cada vez: O funcionamento de cada parte por vez numa distribuição coordenada de dados dispostos “em áreas específicas do cérebro, difundidos

em feixe grosso de nervos pelo corpo.” Nesta estrutura simples que se constitui o homem através do discurso sistematizado científico reforça o discurso de poder

exercido pelo gênero masculino nas diversas instâncias da sociedade. Sua precisão e exatidão nas decisões são atribuídas ao pensamento coordenado que separa as

partes: o emocional da razão (também um discurso magno básico do ocidente).

Cérebro masculino precisa: Quem tem precisão? O cérebro. A necessidade de trabalhar, comer, sexo, procriar, educa-los, amar, - todos os discursos que

formam o Humano tornam-se naturalizados, universalizados integrados no cerne do corpo biológico.

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Ele engana a si mesmo: Ao homem ou ao cérebro? O que é o homem no discurso científico? A expressão externa, das estruturas e funções interiorizadas. O

homem não utiliza, é utilizado como imagem e capa de uma máquina magnífica. A estrutura funciona, possuindo uma força inerente que governa as ações do externo –

o homem psicológico, sociológico, histórico, antropológico e todas as outras categorias sistemáticas do conhecimento.

Emoção do homem posicionada (...) no hemisfério direito: o termo posicionada confere a emoção uma localização estagnada. O termo emoção esta relacionada

no código analítico à palavra comoção, lástima, chorar –, (já se vislumbra uma explicação do por quê o choro é em menor quantidade no homem). A localização da

sensibilização, da docilidade, da mansidão, da quase incoerência, impulsividade, sua incidência e descontrole e da instabilidade – em fim, da natureza feminina está

determinada num espaço do cérebro.

Palavras, (...) vêm do hemisfério esquerdo: a linguagem articulada pela voz, no cérebro, receber movimento pois ela, as palavras - instrumento discursivo -

vêm, em oposto a estagnação conferida à emoção. As funções ativadas pelo cérebro cujos sinais tornam-se manifestação exterior do corpo, são os paradigmas do

raciocínio lógico, da razão que formam os arquétipos do comportamento normal, natural, mecânico-fisiológico do homem.

O corpo orgânico, biológico e científico do século XIX/XX é constituído a partir da idéia naturalizante de um corpo histórico. Esta construção textual

realizada a partir de uma linguagem científica fragmentada nas ciências humana: antropologia, arqueologia e a pré-história coligem ao corpo o movimento de

transformação e processos biológicos criando um homem atemporal.

Os movimentos do corpo caracterizam-se pelo movimento rápido: adequação as modificações imposta; e o movimento lento: resistência às

modificações. Um exemplo desses movimentos em ação encontra-se no desenvolvimento da visão do séc. XVIII e XIX de um corpo tratado como realidade

bio-política alvo das políticas de medicalização e paralelo a esta propagação esta a reafirmação do corpo como propriedade do Estado, um corpo romano.

Outra demonstração do movimento lento trata-se do corpo na Idade Média. Sua disposição - direito de vida e morte - ao soberano é condicionada as

situações: quando se senti ameaçado em seus domínios o soberano convoca o povo a fim de defender o Estado e sua monarquia; quando preceitos do

soberano são desrespeitados ele exerce o direito sobre a vida de seu súdito – causar a morte ou deixa viver. Foucault caracteriza tal poder condicionado:O

poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava como o privilégio

de se apoderar da vida para suprimi-la. (Foucault, 1999: 128)

Com a constituição do corpo bio-político este “poder de confisco” é utilizado como potência organizadora dos mecanismos de poder que o capital emprega a

fim de constituir as forças dominadas para a produção de força de trabalho, para “faze-las crescer, ordenadas, dobra-las ou destruí-las” (Foucault, 1999: 128). O

controle e a vigilância exercida sobre o corpo tem a família como núcleo de formação de indivíduos adultos, que alcançando suas melhores condições físicas, atingem

graus elevados no processo de maturidade do ser humano com a aplicação dos cuidados com a higiene e alimentação, amamentação das crianças, vestuários sadios e

adequados, exercícios físicos, vacinação, etc.

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Na perspectiva dada pelo capital ao direito de morte desloca-se atendendo as exigências de um poder que acondicione a vida e se ordene em função dos

indivíduos-cidadãos. Surge o corpo social imbuído do direito de garantir a própria vida, mantê-la ou desenvolvê-la. Esse é um dos fundamentos ideológicos da pena de

morte: o Estado mata o outro para que milhões possam viver. “Assim as guerras em defesa do Estado caracterizam a luta pela existência de todos (pertencentes ao

Estado ou coligados a ele), em detrimento de populações inteiras. Sucede assim a destruição mútua entre povos em nome da necessidade de viver.” (Foucault)

A constituição do corpo biológico afeta o sistema de crenças na Idade Média (corpo a imagem e semelhança de Deus). O discurso científico prepara o corpo

humano para o trabalho tornado-o natural, colocando-o entre os estudos de classificação das espécies animais, concebendo-o primeiro como corpo animal depois como

máquina, autômato que configura espessura, complexidade, movimento intradimensional e na história: um corpo biológico humano. O movimento é um dos estigmas

da ciência: é um componente próprio da linguagem da produção, da cadência que move o mundo da produção, o modo de fabricação e de consumo. A ciência impregna

tudo e todos com seu olhar dilacerador: o olhar do relógio que despolitiza o humano, o desapropria do movimento. O engodo da descoberta de conhecimento veraz

científico esconde a que invenção do movimento, da projeção de objetos e funções: os corpos são concepções pertencentes a linguagem-ciência desenvolvida pelo

mundo burguês que cria o movimento e o pensamento sobre o movimento: que é a história.

A pré-história é um conhecimento constituído para compor o dinamismo histórico - movimento evolutivo - direcionado a estabelecer um corpo (estrutura

anatômica e biológica) numa natureza e numa universalidade. Uma natureza regida por leis orgânicas (Darwin), logo um corpo orgânico componente de uma espécie:

assim o ser encerra a sua separação da criação divina. O homem não é mais imagem e semelhança de Deus: é a imagem e semelhança da produção - é apenas homo

sapiens, componente d“A grande Família dos Homens” (exposição dos Estados Unidos realizada em Paris). A despeito dessa exposição sobre o evolucionismo Barthes

comenta: “Aquilo que na origem, podia passar por uma expressão de ordem zoológica, retendo simplesmente, através da semelhança dos comportamentos, a unidade da

espécie, foi aqui amplamente moralizado, sentimentalizado. Eis-nos imediatamente remetidos ao mito ambíguo da ‘comunidade’ humana, cujo álibi alimenta toda uma

parte de nosso humanismo.” (Barthes 1987: 113)

A pré-história cria uma infinitude de variações da espécie, identificando “a diversidade das peles, dos crânios e dos costumes, complica-se a imagem do mundo

análogo a Babel.” (Barthes 1987: 113). Estabelece a diferença das morfologias humanas para depois unifica-las: o homem nasce, trabalha, ri e morre por toda parte da

mesma maneira, no mesmo sentido científico do termo e se nos seus atos subsiste ainda alguma particularidade étnica, deixa-se entender pelo menos que existe, no

fundo de cada um deles, uma ‘natureza’ idêntica, sendo sua diversidade apenas uma formalidade cultural.

W. Gaiarsa (1986) reportando-se a origem do corpo humano, reproduz o discurso configurado pela linguagem científica do qual a pré-história fará parte,

descreve: 3 bilhões e 500 milhões de anos de existência de vida na Terra; o processo seletivo pelo qual as diferentes espécies passaram onde 99% delas se extinguiram;

das quais o Homo sapiens - 60 mil anos de formação - foi um dos sobreviventes; 10 mil anos de existência da civilização. Numa analogia odisséica, Gaiarsa eleva a

história do corpo a saga das ações heróicas pela qual o homem, mais especificamente seu corpo, percorreu e resistiu a uma faustosa aventura. Advoga assim sobre o

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corpo: “Espero que o leitor esteja percebendo bem o número infinito de provas terríveis que os seres vivos enfrentaram e todas as infinitas transformações que

sofreram, até chegar a produzir esta coisa que chamamos corpo humano.” (Gaiarsa 1986: 30)

A Odisseu que exalta a soberania dos Deuses sobre o destino dos homens; Em Gaiarsa, sucede na odisséia do corpo: a proclamação da supremacia da máquina

perfeita que o corpo expressa na magnitude de sua estrutura e funcionamento. O enaltecimento não encerra: consagra o corpo como o objeto mais valioso de todo o

“universo” por sua engenhosidade como corpo usina química - industria em sua síntese, liberação e utilização de energia. As analogias feitas ao corpo são de tal

maneira objetificadoras que uma sobre a outra vão revelando a estrutura textual científica que proliferado no consenso social tornam-se discursos assumidos e

reproduzidos por indivíduos como primícias verdadeiras, de acordo com sua proveniência científica. Assim em leitura o corpo resumi a formatação “destacado do

mundo, coisificado se tornou independente e pôde se vender e se propor como individualidade e interioridade”.(Caldas 1999: 32) A ruptura do corpo com a força de

trabalho no processo de produção em que a única forma de obter lucro na venda do produto é comprar o produtor, transforma o trabalho em mercadoria. O homem

cientificado, é introduzido no mundo dos autômatos num processo de coisificação.

Numa análise das percepções de corpo constituída pela ciência Caldas especifica o corpo fechado e o corpo aberto. O primeiro é a expressão do corpo não-

público, fechado ao processo de consumo pelo sentido do olhar, transmitindo a imagem da estranheza de um outro ser oco. O segundo são os corpos abertos ao tempo

histórico, corpos dispostos que perpetuam a expressão da essência da vida, eterna imagem corpo devorável. As fotos são instrumentos de apreensão dessas

compreensões: fotos antigas ou de povos atuais que estão isentos do processo de objetificação impetram um olhar vazio, de resistência enquanto fotos comerciais são a

pura veiculação dos corpos consumíveis, a todo o momento que se olhe eles estão disponíveis.

BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. MITOLOGIAS. Difel, São Paulo, 1987.

CALDAS, Alberto Lins. HERMENÊUTICA DO PRESENTE. Caderno de Criação, UFRO/Dep. de História/CEI, n.º 11, ano III, Porto Velho, dezembro, 1996.

__________. ORALIDADE, TEXTO E HISTÓRIA: PARA LER A HISTÓRIA ORAL. Loyola, São Paulo, 1999a.

CODO, Wanderley e ASENNE Wilson. O QUE É CORPO (LATRIA). Brasiliense, Col. Primeiros Passos, n.º 155 , São Paulo, 1985.

FOUCAULT, Michel. HISTÓRIA DA SEXUALIDADE - 1. A Vontade de saber. Graal, Rio de Janeiro, 1985.

FOUCAULT, Michel. HISTÓRIA DA SEXUALIDADE - 3. Cuidado de si. Graal, Rio de Janeiro, 1999.

GAIARSA, W. O QUE É CORPO. Brasiliense, Col. Primeiros Passos, n.º 170 , São Paulo, 1986.

HAJE, Lara. DA SEDUÇÃO – Baudrillard, Jean. www.abordo.com.br/sat/res02_lara.htm. 09/11/2000.

ORLANDI, A LINGUAGEM E SEU FUNCIONAMENTO: AS FORMAS DO DISCURSO. Campinas, Pontes, 1996.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº40 - FEVEREIRO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 40

OS FILHOS DE NINGUÉM

NILZA MENEZES

PRIMEIRA VERSÃO

Page 50: Volume III

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Nilza Menezes OS FILHOS DE NINGUÉM

Centro de Documentação Histórica de Rondônia

[email protected]

Nomes de crianças como Maria e Raymundo, além dos hispânicos como Carmem e americanizados como David são encontrados nas capas dos procedimentos que concediam tutelas às pessoas que figuravam entre a elite política e econômica da região do Guaporé, Mamoré e Alto Madeira, durante as cinco primeiras décadas do século XX.

Reconstruir a vida das crianças que habitaram as margens do complexo fluvial do Guaporé, Mamoré e Madeira nas primeiras décadas do século XX torna-se

possível através da observação dos documentos do Poder Judiciário, onde suas sinas estão nas mãos dos que exerciam funções de justiça, a quem era dado o direito de

decidir sobre a vida dos menores. Quando uma criança encontrava-se órfã ou quando cometia algum delito, era entregue ao Estado que tinha a obrigação de atendê-las

e o direito de decidir sobre suas vidas. Fez parte da cultura popular a expressão até recentemente ouvida que era a de “entregar as crianças ao Juiz”, entendendo-se que

cabia à pessoa do Juiz tomar conta dos órfãos e delinqüentes. Acreditava-se que o Juiz de forma pessoal iria assistir às crianças desprotegidas.

No caso da documentação examinada, essa expressão popular de certa forma é cumprida. O Juiz, tanto nas duas primeiras décadas em Santo Antonio como nas

três décadas seguintes em Guajará Mirim, era a única pessoa realmente responsável pelos “soldadinhos de borracha”, filhos dos trabalhadores da borracha e das

mulheres que exerciam a difícil “vida fácil”, das abandonadas e viúvas que povoavam a grande massa de excluídos da região. Vários são os casos de crianças remetidas

nos barco ou no trem à disposição do juiz de Santo Antonio e depois de Guajará Mirim, juntamente com as panelas e roupas usadas dos pais falecidos.

A observação quanto às condições dos tutores é dada pela característica de também seus nomes figurarem entre os dos seringalistas, comerciantes e

funcionários com cargos relevantes.

Por essa documentação poderíamos acreditar na generosidade, na caridade para com os pobres e infelizes da época, o que cai por terra ao observarmos que no

período aqui analisado, as primeiras cinco décadas do século XX, essa benevolência não era assim tão ampla, em face da cultura e valores do período e em face do que

ocorria no resto do país com relação às crianças.

No início do século XX a mão de obra infantil era explorada nas grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro de maneira abusiva e violenta. Era primado

por uma doutrina mais rígida passando a criança da idade infantil que ia ao máximo até os 08 anos para a idade adulta, sendo sua força de trabalho exigida no cotidiano

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das famílias. Estudos mais recentes pontuam vários ângulos da história das crianças, apresentando-nos a situação dos menores em todo o país, ficando claro que os

mais pobres estavam muito mais expostos. (História das Crianças no Brasil, Organização de Mary Del Priori. Editora Contexto, 1999).

Com a industrialização a mão de obra infantil era utilizada de maneira desumana. Freqüentar escolas e direitos infantis são conquistas muito recentemente

reivindicadas e plasmadas no papel, sabendo-se que daí à prática ainda há um longo caminho.

No caso dos processos analisados, que fazem parte do acervo do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, datados no período de 1912 a 1950, onde a

economia estava ligada estritamente à exploração da borracha, percebe-se uma frouxidão para com os procedimentos. Poucos são os casos onde o Promotor de Justiça

ou Curador se manifesta, demonstrando que os procedimentos pareciam muito mais acertos de compadres. Bastava o pedido de qualquer cidadão, sem nenhuma

comprovação documental, sem que a criança ou qualquer pessoa fosse ouvida e elas eram entregues aos seus “anjos protetores”. Em poucos casos ocorreu a

manifestação da mãe, de qualquer parente próximo ou mesmo da criança ou adolescente, observando-se que na Comarca de Guajará Mirim, pessoas influentes da

sociedade local, obtinham inúmeras tutelas, chegando-se ao caso de um mesmo senhor, comerciante, ter a tutela de 36 crianças, não se especificando as obrigações dos

tutelandos para com seus tutelados. Era absolutamente normal a devolução da criança, o pedido de revogação da tutela sob a alegação de que a criança era rebelde.

Bons tutelados eram os que obedeciam e trabalhavam para seus tutores.

O que se apresenta nos processos nos parece muito mais uma formalidade convencionada que o cumprimento de uma lei. Raros são os casos em que os

procedimentos possuem mais de três folhas. Compõem-se os mesmos da capa, da folha de número dois com um pedido de no máximo 10 linhas onde o interessado

apresenta-se e generosamente oferece-se para dar àquele menor abandonado ou orfão, casa, comida e amor, com o despacho do juiz no mesmo dia no próprio

requerimento. Após alguns carimbos do cartório, na terceira folha o processo é arquivado sem nenhuma observação.

Denúncias de maus tratos aparecem deixando transparecer que a Sociedade de Santo Antonio e Guajará-Mirim muito mais que caridosa era exploradora dessa

mão-de-obra gratuita e mascarada de piedade, obtida com o beneplácito da lei e das autoridades da época.

Não eram filhos, eram agregados, assim entendidos aqueles seres que eram mantidos dentro da casa para serem serviçais dos senhores e dos filhos deles. Essas

tutelas não obrigavam os tutores a nada, nem asseguravam aos tutelados qualquer direito. Tinham alguém “responsável” por eles desde que não fossem rebeldes, o que

seria motivo para a devolução ao juiz que prontamente, sem questionamentos os recebia.

Fonte de Pesquisa: Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia-CDH/TJRO. (Processos de tutela dos anos de 1912 a 1950).

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº41 - MARÇO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

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ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

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Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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O ESTETICISMO SOCRÁTICO DE MATTHEW LIPMAN

GILBERT TALBOT

PRIMEIRA VERSÃO

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Gilbert Talbot O ESTETICISMO SOCRÁTICO DE MATTHEW LIPMAN

Sabemos que Lipman construiu sua abordagem filosófica sobre a teoria de educação própria de John Dewey, não sabem? Mas quem realmente sabia sobre as

circunstâncias dramáticas nas quais suas idéias germinaram. Lipman sozinho poderia nos dizer. Então deixe que ele nos conte sua história:

Eventualmente eu terminei o livro (A Descoberta de Ari dos Teles) apesar da minha virtualmente total falta de familiaridade com as técnicas de escrita ficcional e com

os princípios de educação. Seja o que for que eu conheça do último, eu suponho, veio da minha bolsa carregada, durante a Segunda Guerra Mundial, uma cópia da

Inteligência no Mundo Moderno de Dewey, que contém um número de passagens chaves das suas teorias educacionais. De alguma forma, eu me arrisquei sobre o

livro, mesmo que eu não soubesse nada de filosofia, e de algum modo eu captei, através da obscuridade da prosa de Dewey, um pouco das suas idéias centrais. Eu

posso ainda relembrar lendo o livro atentamente naqueles ocasionais momentos de descanso dos homens da infantaria que trabalhavam o nosso caminho através do

Saara, cruzando o Rhine no Mainz, atravessando a Alemanha para Beirute, e depois descendo para a Áustria. Suponho que as idéias adquiridas por alguém sob

aquelas circunstâncias possam provavelmente para assumir um papel fundamental com respeito ao seu pensamento posterior.

Como pode-se entender, não existe relação de causa/efeito entre a leitura e a guerra, mas antes uma relação do todo/partes. O todo é a guerra e Lipman retraiu-

se contra a experiência trágica, lendo um livro durante seu tempo livre. As idéias Deweyanas gotejam em sua mente, enquando a guerra violentamente se espalha.

Assim, ele não está nos oferecendo aqui uma explanação teórica, mas antes uma pintura expressionista. Quando ele retorna à França, depois da guerra, ele encontrará

uma outra fonte de inspiração:

Contudo eu não posso omitir menção a um outro fator contribuinte. Muitos anos depois da guerra, eu era suficientemente afortunado, para ser capaz de

retornar à França para um período de estudo. Eu estava impressionado que alguns dos escritores franceses sobre os quais eu me tornei interessado, tal como Diderot,

acharam possível discutir-se idéias filosóficas profundas com facilidade e clareza.. Como resultado talvez, as idéias não eram muito monopolizadas por uma elite

minoritária: nem mesmo os poetas consideraram-nas estranhas.

Nesta citação, Lipman assume, pelo menos ironicamente, que além dos estudiosos, os poetas são os juízes derradeiros. Aqui os poetas são aqueles que decidem

o que é e o que não é bom. E o que é bom não são as idéias filosóficas em si, mas o modo como elas são apresentadas através de uma história, isto é, através de uma

produção artística.

O estilo do pensamento de Lipman é primeiramente, estético. Seus primeiros escritos são estudos em estética, os quais ele, mais tarde, espalhou em todos os

programas de filosofia para crianças e, mais especificamente, em Suki, o programa sobre a investigação estética. Ainda, em sua obra-prima teórica, O Pensar na

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Educação , ele argumenta que "o julgamento de excelência cognitiva é mais provável ser o produto de investigação criativa do que crítica". Sem dúvida, Lipman quer

fugir do sentido moderno que se dá à estética hoje, isto é, a apreciação crítica da arte. Ele prefere voltar ao sentido original usado pelos Gregos, que define tanto a

promoção da criação artística quanto a sua apreciação:

Pareceria existir nenhuma razão persuasiva sobre porque o entendimento estético do filósofo não possa promover, mais do que meramente avaliar, as

atividades criativas dos indivíduos e seus resultados.

O admitido propósito que ele busca no programa Suki é usar a novela e o manual para promover e desenvolver as habilidades dos estudantes do ensino médio

para escreverem. É com a poesia que ele comprometerá, primeiro, esta tarefa. Deste modo, ele não está advogando o criticismo Nietzscheano de Platão: ele não está de

novo tornando a poesia uma serva da razão:

Verdadeiramente, Platão tem dado a toda a posteridade o protótipo de uma nova forma de arte, o protótipo da novela: que precisa ser designado como a

fábula de Ésopo, que se evolve infinitamente, na qual a poesia ocupa a mesma posição com referência à filosofia dialética como esta mesma filosofia tinha por muitos

séculos com referência à teologia: nomeadamente a posição de serva.

Lipman, (Eu me refiro aqui ao personagem tendo este nome em Natasha), respondendo cautelosamente ao questionamento estrito de Maxime, admite a relação

aproximada de suas novelas com os diálogos de Platão:

Certamente eu digo cautelosamente, eu utilizei os trabalhos iniciais de Platão como um modelo. Algumas vezes eu tentei parafrasear partes, o modo como

Mickey, [em Suki], parafraseia o último grande discurso de Trasímaco na República. Ou algumas vezes eu tentei entrelaçar a construção de habilidades e a formação

de conceitos, do modo como Sócrates faz ,digamos, no, Eutífron.

Mas é primeiramente a Grécia pré-Socrática que oferecer-lhe-á o modelo de uma sociedade capaz de abstrair o questionamento filosófico da vida diária:

Mas existia um primitivo, e provavelmente menos imperfeito,, exemplo de uma sociedade local com idéias filosóficas - a Grécia dos pré-Socráticos. Quando se pensa

de Anaxágoras e Empédocles, Parmênides e Heráclito, pensa-se nos filósofos confortáveis com os modos de expressão aforístico e poético, como também com a

linguagem ordinária. E então o casamento da filosofia com o drama em Platão já foi anunciado em Sófocles e Eurípedes.

Uma vez que Lipman está avaliando as origens de seu esteticismo: estas emanam diretamente do berço Grego dos primeiros filósofos e poetas. Antes de

Lipman contudo, Nietzche juntou os nomes de Sócrates, Eurípides e Sófocles. Mas, do ponto de vista de Nietzsche estas três pessoas famosas sepultaram a arte

Dionisíaca.

A coisa mais notada, entretanto, é a estreita justaposição dos dois nomes no oráculo de Delfos, que apontou Sócrates como o homem mais sábio, mas que ao

mesmo tempo decidiu que o segundo prêmio na disputa da sabedoria caberia a Eurípides. Sófocles foi designado como o terceiro na posição desta escala; ele que

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deveria orgulhar-se disto, em comparação com Ésquilo, fez o que era certo, e fez isto, demais a mais, porque ele sabia que estava certo. É evidentemente só o grau de

clareza deste conhecimento, que distingue estes três homens em comum como ‘aqueles conhecedores de seu tempo.’

Nietzsche, lidando com este caso do nascimento e morte da tragédia Grega, nos lembra que mito, música e ditirambos eram todos parte da arte Dionisíaca

Grega. Eurípides, Sófocles e Sócrates representaram, não a arte Apolínea, mas uma pálida sombra desta que ele nomeou de Socratismo estético :

Em conformidade, se nós tivéssemos percebido bem isto, que Eurípides não triunfou em estabelecer o drama exclusivamente Apolíneo, mas que antes suas inclinações

não-Dionisíacas desviou-se a uma tendência naturalística e não-artística, nós seremos agora capazes de nos aproximar mais ao caracter do Socratismo estético, a lei

suprema da qual se lê como se segue: ‘´para que todas as coisas sejam bonitas precisam ser inteligíveis’ como o paralelo à proposição Socrática, ‘somente o sábio é

virtuoso’.

Quando percebe-se que o segundo modelo que o Lipman Natashiano reconhece é aquele de Diderot, então pode-se estar inclinado a sustentar que Lipman

também devotou crédito à benevolência da Razão e estar qualificado também para praticar um Socratismo estético. Mas Lipman enfatiza esta sutil diferença entre razão

e razoabilidade: quando o Cartesianismo esclarece o juízo com a única luz da razão, Lipman reverte aquela posição com a razoabilidade: que é a razão temperada pelo

juízo: "Ser razoável, ele escreve ,não significa fazer uso da racionalidade pura; é a racionalidade temperada pelo julgamento".

Como um bom pragmatista, Lipman começa com a experiência e a reconstrói com pensamento crítico, criativo e atento. Logo, as novelas filosóficas para

crianças diferem dos Diálogos de Platão , porquanto, elas são tributárias ao instrumentalismo Deweyano: filosofia aqui não é mais a serva da razão, mas o instrumento

para formar o bom julgamento. Mas esta síntese entre o velho socratismo e o novo pragmatismo trará de volta a fusão estética do Apolonismo e Dionismo sonhado por

Nietzsche e que constituiu, conforme ele, o velho Esteticismo Grego:

Quando os poderes Dionisíacos surgem com tal veemência como nós experimentamos no presente, não pode existir dúvida que, velado numa nuvem Apolo já

desceu para nós; de quem as maiores influências embelezadoras uma geração vindoura talvez, contemplará.

Mas sob quais condições, de acordo com Nietzsche, poderia esta Renascença do esteticismo Grego acontecer?

Se a tragédia antiga foi levada do seu curso pelo desejo dialético para o conhecimento e o otimismo da ciência, pode ser inferido que aqui está um conflito

eterno entre o visão teórica e a trágica das coisas, e somente depois que o espírito da ciência ter sido levado aos seus limites, e sua alegação para a validade

universal ter sido destruída pela evidência destes limites, nós podemos esperar para um re-nascimento da tragédia: para cuja forma de cultura nós devemos ter de

usar o símbolo do praticante musical Sócrates no sentido falado acima.

Na origem da tragédia, de acordo com a visão de Nietzsche, existe esta música Dionisíaca que funde-se com a imagem Apolínea. Não obstante, com Lipman,

na origem do pensamento existe uma imagem, um esquema mental. Poesia é a primeira disciplina mental que alcança esta imagem e transforma-a em palavras. Seria

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este, então, um modo diferente daquele vislumbrado por Nietzsche? Não um socratismo estético, mas um esteticismo socrático, um esteticismo que faz nascer a razão

através de esquemas mentais?

Não é tão surpreendente pensar-se que a razão possa emergir da imaginação, quando já se sabe que a própria filosofia Grega nasceu da poesia: "Quando a

filosofia apareceu primeiramente na Grécia, ela surgiu na forma poética. Os primeiros filósofos – os pré-Socráticos – eram filósofos-poetas, que escreveram num

vívido estilo aforístico". Estes primeiros filósofos foram inspirados pelos grandes mitos escritos pelos poetas como Homero e Hesíodo. Desde este início, a estética tem

sido um importante domínio da filosofia. "A teoria da estética produzida por um filósofo é um teste do sistema que ele constrói para alcançar a natureza da própria

experiência". Escreveu Albert Hofstadter e Richard Kuhns em suas apresentações da estética de John Dewey. Isto parece se aplicar também à estética que Matthew

Lipman usou na filosofia para crianças. Platão já explanou no O Simpósio, o sentido da palavra poesia, através do personagem do Diotima:

Existe poesia, a qual, como você sabe, é complexa e variada. E toda a criação ou passagem do não-ser ao ser é poesia ou fazendo poesia, e os processos de

toda arte são criativos; e os mestres das artes são todos poetas.

Poesia é aqui então sinônimo de criação. As crianças realizarão suas primeiras criações artísticas muito cedo. Esta evidência tem sido enfatizada por V. V.

Davidov, um famoso pedagogo Russo:

O desenvolvimento estético das crianças começa como sabemos, muito antes do início da sua educação formal. Desenho, canto e a música nada tem de novo

para as crianças da primeira série. As crianças menores de dois anos, por exemplo, ocupam-se com atividade representativa, e até os dez anos de idade (e

freqüentemente além disto) há uma fascinação constante para quase toda criança. Pelo fim do período pré-escolar, a criança se torna um artista amador e vai ficando

capaz de expressar em gravuras, modelos, e outros trabalhos manuais sua atitude individual diante do mundo.

Se a educação é, como disse Dewey, "uma constante reorganização e reconstrução da experiência" então ela precisa reconstruir também esta parte essencial

da experiência humana que é a sua parte estética. Para Dewey, a arte é a categoria geral que incorpora todas as ciências:

A história da experiência humana é uma história dos desenvolvimentos das artes. A história da ciência na sua distintiva emergência das artes religiosas,

cerimoniais e poéticas é o registro de uma diferenciação das artes, não um registro da separação com a arte.

Definindo a experiência humana como sendo primeiramente uma experiência estética pode parecer muito surpreendente. Quando pensa-se em outro domínio da

filosofia como a lógica, a ética, a epistemologia ou a metafísica, pode-se pensar que qualquer destes domínios poderia bem ser considerado em primeiro lugar. Assim,

por que a estética deverá ter uma posição preeminente na experiência humana? Para responder esta questão nós temos que investigar nas relações entre as abordagens

de Dewey e Lipman. Em sua tese de doutorado, Lipman observa:

"Minha dívida com Dewey neste trabalho é tão grande na medida em que merece citação em virtualmente toda página ... Suas teorias estéticas tem fornecido

indispensáveis orientações para o meu próprio estudo do processo da arte".

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Assim, Lipman tomou de Dewey não somente seus princípios educacionais, mas também seus princípios estéticos. O que é comum nestas duas disciplinas, é a

rica noção da experiência que Dewey desenvolveu. O que é a experiência de acordo com Dewey? A experiência surge, primeiramente, de toda a interação entre um

indivíduo e seu ambiente: "A primeira grande consideração", escreve Dewey, "é que a vida se desenrola num ambiente; não meramente nele, mas devido a ele,

através da interação com ele." Através destas interações primárias, a energia, sob diferentes formas, flui e produz tensões e ritmos, que criarão novos equilíbrios

efêmeros:

Como as ondas do mar, as ondulações da areia onde as ondas correm para a frente e para atrás, as nuvens firmadas macias e negras. Contraste de vazio e

plenitude, do esforço e da realização, do ajustamento após a irregularidade consumada, do drama no qual a ação, o sentimento e o significado são um. O resultado é

o balanço e o equilíbrio. Estes não são estáticos nem mecânicos. Eles expressam poder que é intenso porque medido através da resistência vencida. Os objetos do

ambiente aproveitam-se entre si e se contrapõem.

A experiência humana é construída através desta interação fundamental, integrando o movimento do balanço e equilíbrio como fazer e sofrer a ação. Por

exemplo, pode-se planejar ir estudar no México; este é a parte do fazer daquela experiência. Mas suponha-se que durante o ano de estudos pegue-se turista: esta é a

parte do sofrer a ação , desde que não se planejou ficar doente. Algumas vezes estes dois movimentos são tão estreitamente ligados que um não pode diferenciar-se do

outro. Por exemplo, quando nós dormimos, nós estamos fazendo algo ou sofrendo a ação de algo? Quando se tem uma idéia, se fez esta idéia ou se sofre a ação dela?

Na maioria do tempo, nossas experiências não são conscientes: nós chamamos estas de hábitos, como digerir, andar, comer, trabalhar, ler, escrever, etc. Alguns hábitos

são fisiológicos, como a digestão, mas outros são intencionais, como o andar e o comer. Somente esta última espécie de hábitos pode tornar-se uma experiência,

quando integrada numa situação:

Uma situação, se aquela de comer uma refeição, de jogar um jogo de xadrez, de levar uma conversação, escrever um livro, ou fazer parte de uma campanha

política, é assim completa que seu fim é a consumação e não a cessação. Tal experiência é um todo e leva com ela sua própria qualidade de individuação e auto-

suficiência. É uma experiência.

Em Suki, Ari pensa que não pode escrever porque não vive nenhuma experiência excitante. Suki e seu professor, Sr. Newberry tentarão tudo na estória para

mostrar-lhe que somente tem de prestar atenção às suas experiências ordinárias, como olhar ao brilho do sol, ouvir a cachoeira ou somente pensar no seu velho par de

sapatos. Prestar atenção a qualquer coisa. No Manual Suki , Lipman dá este exemplo de um poema sobre o silêncio, escrito por uma garota de dez anos:

Se se espera para ouvir Para ouvir ao silêncio Ouvir-se-á um zumbido Um zumbido do silêncio

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Uma lânguida luz mortiça cairá de uma estrela da noite Para iluminar o silêncio Um coelho fará uma pausa Fará uma pausa indeciso Perturbado pela voz majestosa do silêncio Ele procurará a sua toca Sua toca na floresta E na sombra da noite Não a encontrará Um cedro dormirá aconchegado nos seus galhos E numa voz doce O silêncio soará Em louvor ao silêncio

É através da atenção que se pode alcançar a qualidade específica de cada experiência. É esta qualidade que constitui a sua unidade:

Uma experiência tem uma unidade que dá a ela o seu nome, aquela refeição, aquela tempestade, aquela ruptura da amizade. A existência desta unidade é constituída

por uma única qualidade que penetra a experiência inteira apesar da variação de suas partes constitutivas.

Esta qualidade unificadora não é intelectual, nem emocional, nem prática, ela é estética. Cada experiência, de acordo com Dewey, tem esta dimensão estética,

porque necessita-se de imaginação para se dar significado a qualquer experiência:

Toda experiência consciente tem necessidade de algum grau de qualidade imaginativa. Por um instante, as raízes de toda experiência são encontradas na

interação das criaturas vivas com seu ambiente, esta experiência torna-se consciente, uma questão de percepção, somente quando os significados que entram nela são

derivadas de experiências anteriores. A imaginação é a única passagem através da qual estes significados podem encontrar o seu caminho na presente interação.

Logo, o significado é dado a uma experiência não somente através da percepção, mas também através da relação que a imaginação estabelece entre esta

experiência e as passadas. E o corolário disto é que para se assimilar qualquer experiência nova, ter-se-á de reconstruir as experiências passadas:

Toda percepção consciente envolve um risco; é uma ventura no desconhecido, pois como ela assimila o presente ao passado ela também efetua alguma reconstrução

daquele passado.

Assim estão trançadas as experiências de uma vida inteira. Lipman escreve sobre esta dimensão estética nesta afirmação da avó de Suki: "O trabalho da

natureza é mudança – tornar sempre uma coisa n’outra, nunca saber ou perguntar por quê. Mas, o nosso trabalho é transformar o mundo em poesia"

No manual de acompanhamento , Lipman sugere que esta idéia de transformar o mundo em poesia pode ser interpretado como tornar o mundo mais bonito.

Mas nós também podemos entendê-la como toda a experiência da vida humana sendo essencialmente uma experiência estética. Existe, como mencionou o Sr.

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Newberry aos seus alunos, "uma arte da experiência que precede a arte da expressão". Desde que a experiência humana pode ser também uma experiência de

pensamento, esta precisa também ser essencialmente estética: "Pensar", escreve Dewey, "é preeminentemente uma arte; conhecimento e proposições que são os

produtos do pensamento, são trabalhos de arte, tanto quanto são a estatuária e as sinfonias". Arte, como mencionada antes, torna-se com Dewey, uma categoria geral

que inclui todas as formas de conhecimento, artístico, moral, religioso ou científico. Dewey não se refere aqui ao conteúdo destes diferentes conhecimentos mas, ao

processo de conhecer:

Todo estágio sucessivo do pensamento é uma conclusão na qual o significado do que a tem produzido é condensado; e não é afirmado mais breve do que é

uma luz radiando outras coisas – a menos que seja uma neblina que as obscurece. Os antecedentes de uma conclusão são tão causais e existenciais como aquelas de

uma construção. Eles não são lógicos ou dialéticos, ou um assunto de idéias. Enquanto uma conclusão segue os antecedentes, ela não segue das ‘premissas’ no

sentido estrito, formal. As premissas são as análises de uma conclusão em suas justificadas bases lógicas; elas não são premissas até que exista uma conclusão.

Conclusão e premissas são alcançadas por um procedimento comparável ao uso de tábuas e prego para fazer uma caixa; ou de tinta e tela para fazer uma figura.

Dewey nega aqui a relação causa/efeito entre premissas e conclusão e a substitui por uma relação todo/partes, que é a relação estética, de acordo com Lipman.

As relações estéticas ocorrem dentro dos contextos ou situações ou num todo. Cada todo é feito de um número de partes. A relação das partes de uma a outra ou das

partes ao todo são relações estéticas.

Consequentemente, Dewey reconheceu somente a indução, como processo intelectual de conhecimento e então, desqualificou a dedução:

O ato de conhecer, quando se refere à inferência ou à demonstração, é sempre indutivo. Existe somente um modo de pensar, o indutivo, quando o pensamento denota

qualquer coisa que realmente acontece. A noção de que existe um outro tipo chamado dedução é uma outra evidência da tendência prevalecente na filosofia para

tratar as funções como operações antecedentes, e para tomar os significados essenciais da existência como se eles fossem um tipo de Ser.

O modo indutivo de pensar move-se do entendimento particular ao universal, assim como o pensamento move-se do percebido aos conceitos. Este proceso intelectual

ocorre dentro de uma experiência e não fora dela, como a Teoria Platônica das Formas inicialmente abstraiu-as. É sobre tal arte da experiência que o Sr. Newberry

estava falando. Esta arte é a capacidade da reconstrução de nossas experiências, através do pensamento, como foi mencionado. É por isso que para Dewey a ciência é

uma parte da arte; "é o seu fator inteligente". É uma meio para alcançar o seu fim. Aqui a relação parte/todo é equivalente à relação meios/fim. E este fim não é final

mas um fim-em-vista de outros fins:

O fim é então um fim-em-vista e está em constante e cumulativa re-determinação a cada estágio de força e movimento. Não é mais um ponto terminal, externo

às condições que o tem conduzido; é o significado das tendências presentes em contínuo desenvolvimento – as mesmas coisas que, assim direcionadas, nós chamamos

de ‘meios’.

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Aqui, existe uma sutil diferença então, entre a visão de Dewey e Lipman considerada subjacentemente. Lipman afirmou que a inteligibilidade na arte era "sua

qualidade terciária mais eminente". Tal posição parece mais com o Nietzscheano Socratismo Estético mencionado antes. Tal Socratismo reduz a beleza à sua dimensão

inteligível: "’toda coisa para ser bela, deve ser inteligível’, como o paralelo à proposição Socrática, ‘somente aquele que é sábio é virtuoso’". É isto também para

Lipman? Vamos investigar um pouco mais adiante. Lipman escreve:

"Uma atividade pode ser considerada inteligente se ela envolve a propositada organização dos meios aos fins, ou das partes ao todo. Por qualquer critério, a

arte qualifica-se como uma espécie de inteligência humana".

Logo, quando nós lemos a tese de doutorado do jovem Matthew Lipman nós vemos a arte tornando-se uma espécie de inteligência humana, quando, para

Dewey, a ciência era uma espécie de arte. O jovem Lipman estava usando ainda a palavra inteligência, enquanto mais tarde ele usará, ao invés, a palavra pensamento.

Isto faz diferença? Sim, sem dúvida. Pensamento é um ato mental enquanto a inteligência refere-se mais à uma função mental usada pela psicologia cognitiva, como

Piaget fez. Lipman mais maduro fugirá de qualquer das categorias piagetianas. O pensamento não será primariamente uma função informativa nem adaptadora, mas um

processo relacional: "Pensamento é uma relação de descoberta, invenção, conecção e experiência". Lipman não está somente se referindo às relações lógicas, mas a

todas as formas de relações, incluindo aquelas contidas em qualquer produto artístico. Logo, a experiência artística torna-se um modo de pensar, assim, fazendo de

qualquer expressão artística algo compreensível. Tem-se que reconhecer aqui a abordagem Socrática para a experiência artística; mas, ela é um esteticismo? Para

Lipman o significado não é uma forma ontológica, como o Bom ou o Belo ou a Verdade em Platão, nem é o produto de qualquer relação, mas são as próprias relações.

Lipman considera ainda, assim como Dewey, que as relações estéticas sejam as mais importantes? Aqui, novamente nós encontraremos algumas ligeiras diferenças

entre Dewey e Lipman. Lipman afirma que as experiências humanas são usualmente fragmentárias e não constituem totalidades como Dewey pensou. Relações

estéticas são encontradas somente em trabalhos de arte, porque somente os artistas possuem este modo de experiência. Aqui Lipman muda a noção de dimensão de

experiência de Dewey por aquela de modos? Estas duas palavras são sinônimas? Eu não penso que sim. Para Dewey, todo mundo poderia ter acesso às diferentes

dimensões das experiências, mas não para Lipman. Em Suki, Lipman apresenta três modos diferentes de experiências: o modo científico, o estético e o ético. Para

entender as diferenças entre estes três modos, Lisa propôs aquela imagem para a classe:

Suponhamos que haja uma criança que é ator ou atriz e que contrai uma doença fatal. Ok, agora, olhe para o quarto. Lá está um médico vasculhando nos

exames, remédios e instrumentos. Ele devota atenção para todos os detalhes. Ele é metódico, objetivo – científico. Tudo bem, mas suponhamos que um repórter e um

artista foram permitidos entrar no quarto. Um descreve o que há lá com o objetivo de fazer uma boa estória. O outro tenta captar a expressão da criança. Estes são

exemplos do modo estético da experiência. E então há os pais. Mas, como se sente a própria criança? Quem pergunta sobre como é estar deitado numa cama

morrendo? Quem pergunta como se sente uma criança morrendo?

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O modo científico da experiência entende o mundo como a soma das observações científicas. O modo estético focaliza somente o que vale à pena notar para

agarrar a figura completa. O modo ético é aquele que toma o mundo através dos olhos de outros, como os pais aqui olhando o mundo através dos olhos da sua criança

agonizante. Logo, para Lipman um indivíduo não pode agarrar o mundo em todas as suas dimensões. É preciso a comunidade para se entender o significado completo

de nossas diferentes experiências e reconstruí-las sob um destes modos. Este é o papel que Lipman atribuiu à comunidade de investigação no final de A Descoberta de

Ari dos Teles:

"Parece-me", diz Fran, "que Tony e Lisa poderiam estar os dois corretos. Eu não sei totalmente como dizer isto porque eu não pensei nisto antes. Mas, eu

tenho pensado como todos nós estamos aqui neste único quarto. E é o mesmo quarto para todos nós. E então" – Fran parou – "Oh, eu não sei". "Siga em frente Fran",

o Sr. Spence disse gentilmente, "o que você começou a dizer?"

"Parece que eu não posso expressar isto", disse Fran. "Mas, você sabe, aqui estou, sentando no fundo da sala. E o que eu vejo? Você vê rostos. E o que eu

vejo? Eu vejo as nucas das pessoas". "E eu estou sentado no lado da sala", exclamou Anne, " e eu vejo todo mundo do lado onde estou . Eu vejo suas faces em perfil".

"Bem, isto é o que eu quero dizer" disse Fran. "Nós estamos olhando exatamente para a mesma pessoa exatamente no mesmo quarto, e ainda o que nós realmente

vemos são coisas diferentes no conjunto".

"Então o que você está dizendo", disse Anne, "é que cada um de nós mesmo estando no mesmo mundo, vemos coisas muito diferentemente. Oh, eu sei que isto

é muito verdadeiro, porque quando eu e Laura vamos para a aula de arte juntos, e ainda quando nós escolhemos exatamente a mesma natureza morta para fazer, sua

pintura resulta muito diferente da minha. Eu penso que Fran está certo. Eu penso que cada um de nós vive em seu próprio mundo que é diferente do mundo dos outros.

Agora Ari estava acenando loucamente. O Sr. Spencer lhe sinaliza com a cabeça. "Anne", disse Ari, "eu penso que você não interpretou corretamente Fran.

Eu quero dizer, eu não penso que é o que ela estava tentando dizer. Certo, do fundo da sala, ela vê uma sala cheia de pessoas com suas costas viradas para ela,

enquanto o Sr. Spencer vê apenas faces. Mas, o ponto importante é que, se ela fosse para a frente, ela veria somente rostos, e se o Sr. Spencer fosse para o fundo da

sala, ele veria somente as nucas".

"Ari", disse Lisa, "é tudo o que você está tentando dizer que nós devêssemos tentar ver as coisas do ponto de vista dos outros?"

"Eu acho que sim", disse Ari. "nós deveríamos tentar ver as coisas do ponto de vista dos outros". Lisa repetirá esta última afirmação em Suki, para definir o

modo ético da experiência. Mas nesta última citação, nós podemos ver claramente o modo estético nas personagens de Anne e Laura. No entanto, o mais importante

para se notar aqui é que foi depois da afirmação de France é que nós podemos reconstruir uma completa figura dos diferentes pontos de vista expressado na classe. Esta

figura é também estética já que ela constrói uma imagem sobre a relação partes/todo. E é esta primeira captura da relação parte/todo que servirá como base para

construir as outras relações.

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Mais tarde, Matthew Lipman ligará três diferentes estilos de pensamento a estes três modos de experiência: pensamento crítico, pensamento criativo e

pensamento atento. O pensamento crítico é aquela forma de pensamento que usa critério, que é capaz de se auto corrigir e que é sensitivo ao contexto. No entanto, o

pensamento de ordem superior não é, de acordo com Lipman, exatamente um pensamento crítico. Ele é antes uma interconecção entre o pensamento crítico e o

criativo. Em O Pensar na Educação, Lipman afirmou claramente esta forte interconecção "Não existe pensamento crítico sem um pouquinho de julgamento criativo.

Não existe pensamento criativo sem um pouquinho de julgamento crítico." (Thinking in Education, p. 21)

O pensamento criativo possui as mesmas características do pensamento crítico, mas acentua aspectos diferentes. Logo, diz-se que é para ser sensível ao critério

mas, dirigido pelo contexto. Usaria-se antes o critério binário, isto é, aquele que aparece em pares opostos (natureza/cultura, permanência/mudança, um/muitos, etc.) A

tensão dialética existente nestes pares transforma a si mesmo em tensão criativa, a qual unirá a diferente parte de um trabalho de arte. Por outro lado, o pensamento

criativo é dirigido pelo contexto enquanto para o pensamento crítico, os critérios são mais diretivos. Finalmente, Lipman preferirá falar de auto transcendência ao invés

de auto correção para identificar a última característica do pensamento criativo. E ele quer dizer por auto transcendência a superação do indivíduo na produção artística.

Mais recentemente, Lipman tem colocado mais ênfase no pensamento atento, como um terceiro componente do pensamento de ordem superior. Em termos

cognitivos, o pensamento atento seria uma forma de pensar que valoriza aquilo que é importante: "quando nós estamos pensando atentamente, nós atendemos àquilo

que nós tomamos como importante, para aquilo com que nós nos preocupamos, para aquilo que demanda, requer ou precisa que pensemos sobre ele". (LIPMAN em

Inquiry, 15-1)

Esta divisão do processo de pensamento em três ramificações principais é não obstante, somente analítica; não são três diferentes regiões do pensamento, mas

simplesmente três diferentes aspectos do mesmo processo: aquele que pensa criticamente pensa diferentemente aquele que pensa criativamente ou atentamente. No

entanto, estes três aspectos são necessários ao desenvolvimento do bom julgamento. E o desenvolvimento do bom julgamento deveria ser o primeiro objetivo da

educação. A escola poderia melhor atingir este objetivo através da introdução da disciplina, feita na comunidade de investigação, já que a comunidade de investigação

nos permite reconstruir a experiência a partir de diferentes modos de experiências usando diferentes estilos de pensamento. Esta reconstrução é nela mesma uma

reconstrução estética, desde que com ela nós tentamos formar uma comunidade completa vindo de partes individuais.

IAPC, 09 de junho de 2000.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº42 - MARÇO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 42

A ESTÉTICA DA MODERNIZAÇÃO

ROBERT KURZ

PRIMEIRA VERSÃO

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Robert Kurz A ESTÉTICA DA MODERNIZAÇÃO

Sociólogo e ensaísta político, co-editor da revista alemã Krisis

(Artigo publicado em VEREDAS de agosto de 1998)

A cisão entre vida e arte é um tema antigo dos modernos. Todos os artistas que queiram dar verdade à expressão - e que se desgastem existencialmente nas suas

criações - sempre acabam sofrendo com essa separação. Traga ela a beleza ou a estética do feio, exerça a crítica radical ou busque a redescoberta da riqueza de formas

da natureza, seja realista ou fantástica, a arte ficará sempre separada da realidade por uma parede que pode ser cristalina, mas é intransponível.

O que a arte traz é algo que não se observou antes, ou então é visto pelo mundo, desde o início, como morto e museológico. O artista surge como uma

figura da tragédia antiga: assim como a água e as frutas escapavam sempre de Tântalo, da mesma forma a vida lhe escapa; ou então, como o faminto rei

Midas, cujo toque transformava em ouro até a comida, o artista também vive à míngua como ser social, porque seu toque transforma tudo em pura exposição.

Todas as tentativas da arte para romper esse gueto de cristal têm sido inúteis. Artes plásticas montadas em fábrica, tal como as pinturas nas paredes dos

escritórios, são sempre corpos estranhos. Leituras literárias em igrejas ou escolas nunca conseguem ultrapassar seu caráter de obrigatoriedade. Quando os dadaístas

tomaram a dúvida como meio de provocação, colocando canos enferrujados nos salões sagrados da arte, para afrontar a burguesia, todo esse material foi tomado com

candura como objeto estético e catalogado como as esculturas de Michelangelo ou os quadros de Picasso.

A definição tautológica é: arte é tudo aquilo que a sociedade percebe em um reservatório separado denominado "Arte" e que nessa condição pode ser

colecionado, sem se levar em conta o conteúdo, como selos ou escaravelhos secos. Pouco importa o que a arte em si pretenda, ou a forma como o apresenta: tudo se

torna inofensivo. Para as elites capitalistas, o artista já não é o bobo da corte, mas - na melhor das hipóteses - um fornecedor especial, como o de vinhos ou de pães.

Alguém, em suma, de quem não se compraria um carro usado e que não se quer como genro. Este é seu status na modernidade clássica.

A sociedade moderna costuma encarar sua própria maneira de existir e suas categorias como ultra-históricas e genericamente humanas. Há algo de realmente

insuportável nesse sistema: não uma colocação histórica de problemas que se supere pela crítica, e sim a condição inevitável da existência com que a humanidade

lamentavelmente tem de conviver. É pela lente dessa ontologização que a modernidade percebe também o dilema da separação entre arte e vida. Tudo se passa como se

o artista, na Antiguidade clássica, tivesse sido um vendedor de suas possibilidades, ou como se os antigos egípcios exibissem suas obras em galerias, museus e leilões,

com etiquetas de preço.

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Mas o fato é que as civilizações antigas não tinham arte nem cultura, tal como as entendemos hoje. Isso quer dizer que a estrutura moderna, feita de esferas

separadas e independentes, é totalmente estranha às sociedades antigas. Quaisquer que fossem os problemas, as relações sociais de desigualdade ou as deficiências

humanas, sua existência não estava separada em áreas funcionais. A teoria moderna dos sistemas trata isso como uma deficiência de diferenciação, com que se

determina um grau de primitivismo: quanto mais integrada a sociedade, mais primitiva; quanto mais diferenciada, mais desenvolvida e com maior número de

oportunidades. É assim que raciocina o sistema pós-burguês. Como desde o Iluminismo a modernidade coroou a História - embora haja algo de deplorável em ver nela

a mais alta e insuperável conquista da evolução da sociedade -, o homem, funcionalmente reduzido, passou a ser apenas o ponto de intersecção entre as estruturas

sistêmicas.

Na realidade, as sociedades pré-modernas não eram primitivas, mas altamente diferenciadas - apenas de um tipo de diferenciação que não corresponde ao

conceito moderno. Predominantemente agrárias, as sociedades antigas não tinham uma cultura: eram uma cultura. Falamos da cultura do Egito Antigo, da

Mesopotâmia e dos antigos em geral, querendo com isso nos referir ao mesmo tempo tanto a suas representações artísticas (da escultura, pintura ou literatura) quanto

ao conjunto e a estrutura da sociedade. Já quando falamos de cultura moderna, queremos nos referir sempre a um aspecto específico de formas de expressão - nunca ao

sistema global da sociedade. "Sabemos" também, de um modo automático e inconsciente, que a cultura já foi o Todo e não uma esfera funcionalmente separada para a

construção do museu remunerado de domingo.

A verdade é que o sentido da palavra latina cultus, que deu origem ao conceito, está ligado a plantação, agricultura, serviço divino, sociabilidade, formação e

(em determinadas situações) vestimenta. Essa conceituação multiestratificada indica o caráter de integração das antigas sociedades agrárias. Os conteúdos e formas

diferenciados, o "metabolismo com a natureza" (Karl Marx), as relações sociais e a estética são coisas que não se separam, como "subsistemas com lógica própria": a

rigor, eles são sempre a expressão de uma existência cultural única e coerente a que pertencem. Para os antigos, a produção era estética, a estética era religiosa, a

religião era política, a política era cultural, a cultura era social, e assim por diante. Em outras palavras: os atributos sociais - hoje inteiramente distintos para nós - eram

embutidos uns nos outros. Cada área da vida estava, de certa maneira, contida na outra.

Seria falso ceder à tentação de falar de uma constituição religiosa dessa sociedade agrária, onde a religião aparece como o momento de integração mais forte da

"sociedade como cultura". O que se sabe é que não só todos os tipos do artesanato cultural, mas também o teatro e as competições esportivas apareciam de alguma

maneira como acontecimento artístico. Mesmo os dispositivos absolutamente usuais do cotidiano tinham caráter básico de cultura, à qual inclusive o humor e a ironia

estavam ligados. Salientar a religião como o momento sistêmico determinante dessas sociedades seria raciocinar com nosso conceito funcional de esferas separadas.

Mesmo porque a própria religião tinha um sentido diferente do moderno: não era simplesmente crença, nem situação de limitação do pensamento transcendente, nem

situação privada. O religioso era também o Público, a assim chamada política, a forma do debate.

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Não é sem motivo, aliás, que a palavra latina privatus tem um significado negativo e depreciativo, que se torna ainda mais claro para nós pelo conceito grego

correspondente: na Grécia clássica, quem não tomava parte do cotidiano, e portanto da vida oficial, era o idiota. Mas isso também não quer necessariamente dizer que

na religiosidade se encerra e se esgota essa sociedade, como pretende a ideologia apologética da auto-legitimação moderna. Pelo contrário: também se poderia dizer

que tal sociedade-cultura teria muito mais abertura e debate do que o sistema moderno.

Essa nossa cegueira para o caráter das relações pré-modernas produziu outro grande mal-entendido. No centro daquilo que chamamos religião se encontra

basicamente - em todas as culturas - o problema da finitude humana e da morte como processo, resultado e objetivo de vida. Junto com a religião, a modernidade baniu

também a morte para uma esfera funcional, separando-a - como a arte - da vida. Dessa maneira, a moderna secularização da sociedade não permite que se trate a morte

de outra forma ou que se reflita sobre ela: prefere-se reprimi-la e ignorá-la.

Não é então à toa que a modernidade interpreta o grande valor que os egípcios antigos davam a seus túmulos e ao embalsamamento dos corpos simplesmente

como um culto à morte - como se os egípcios não tivessem outra coisa com que se ocupar. Da mesma forma, o homem moderno mostra repugnância pelo hábito da

Idade da Pedra de enterrar as ossadas dos mortos dentro de casa, junto ao fogo. Na realidade, todos esses homens deviam ter uma excepcional disposição para a vida -

como aliás demonstram as ciências que estudam a Antiguidade.

Em uma sociedade como cultura - que tinha que integrar também a morte - a arte passava a ser necessariamente um componente da vida diária e, nesse sentido,

totalmente impensável como expressão de uma esfera esterilizada e morta "atrás de um vidro". Até por isso, ela não era arte como arte, e sim um determinado momento

de uma relação integrada da sociedade. O artista só poderia, portanto, ser reconhecido como tal por sua capacidade técnica, e não como representante social da Arte. O

problema das separações funcionais, que tanto ocupa a modernidade, surgiu com ela - a rigor, nunca havia sido formulado antes. Seria o caso de se perguntar, também,

de onde vem de fato essa diferenciação sistêmica.

O processo da modernização não classifica a sociedade de maneira uniforme, ou com valores uniformes. O que acontece é que um determinado aspecto da

reprodução humana - a assim chamada economia - é separado de todos os outros, e sobretudo da vida. Da mesma forma como acontece com a arte ou a religião, não se

pode falar, no que diz respeito às civilizações agrárias antigas, de uma economia no sentido que damos hoje à palavra, por mais que seu conceito nos venha dos antigos.

Na Grécia Antiga, como em todas as civilizações pré-modernas, a oikonomia era uma condição objetiva e um meio para se atingir finalidades culturais e, por extensão,

sociais ou estéticas, ao passo que na modernidade a economia se desenvolveu como um fim em si mesma e como conteúdo central da sociedade. O dinheiro reage

consigo mesmo como capital, e com isso se torna um "sujeito automático" cego (Karl Marx), que determina de forma fantástica todos os objetivos humanos e culturais.

É a "valorização do valor", de que falava Marx.

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Sob a ditadura da economia tornada independente, a atividade produtiva se transforma em trabalho abstrato: espaço funcional separado da vida e estranho a ela,

que passa a ser regulado subsidiariamente pela esfera - também separada - da política. Nesse sentido, a política moderna e as instituições do Estado e do Direito não

podem ser comparadas com seus equivalentes pré-modernos, que tanto quanto a religião não tinham o caráter de setores funcionais separados.

Quando o conteúdo central e o objetivo da sociedade se tornam um fim em si mesmo, a expressão da vida - para além dessas divisões em esferas funcionais

complementares - fica degradada para o lixo do lazer. Todas as coisas que um dia foram decisivamente importantes para a humanidade, todas as questões existenciais e

formas de expressão estéticas ligadas a elas se transformaram nesse resto sem significado e os seus representantes têm que brigar pelas migalhas da mesa do

monstruoso fim-em-si.

A posição da arte e da estética se torna então particularmente absurda. Embora toda aparição de vida em si contenha sempre um momento estético para o ser

humano, o capitalismo negou esse fato elementar. Para sua mecânica, trabalho e política não são estéticos - só a própria estética o seria, como se ela tivesse uma

existência própria e fantasmagórica, exterior ao resto. Do mesmo modo, a sociabilização dos produtos passa a ter uma existência como forma abstrata do dinheiro

transformada em fim-em-si, e a lógica abstrata formal como "moeda do espírito" (Marx), estabelecida ao lado da lógica concreta, passa a penetrar as relações reais.

A prisão de vidro do artista consiste exatamente nessa divisão estrutural do estético. A arte se movimenta indefesa dentro dessa gaiola, e não é mais a forma

artística de um conteúdo social, mas uma "formalidade" separada - seja a forma sem conteúdo ou o conteúdo como forma simplesmente. A arte deve, portanto,

macaquear o fim-em-si do capital, que gostaria de se emancipar de qualquer conteúdo material na sua forma abstrata e autoreferente (o dinheiro), sem poder jamais

realizar tamanho absurdo. A arte pela arte é simplesmente o clímax da arte como caricatura involuntária do capital, sem poder resolver o dilema da base do sistema

capitalista.

Se a miséria fez da arte um fim-em-si, ilusório e enamorado de si mesmo, ela pode, entretanto, na sua separação contínua, transformar-se em uma hubris da

sociedade. Em vez de se conceituar como produto de um sistema de cisões e mobilizar a crítica radical dessa estrutura destrutiva de finalidades em si, a própria arte

começa a se cindir e a estetizar aquilo que dá à luz. Não é somente seu próprio dilema que se torna sujeito estético, mas toda a gritante esquizofrenia capitalista.

Quando a estrutura capitalista é estetizada - e não criticada - os corpos destruídos por granadas, as mulheres violentadas, as crianças famintas e a obscenidade do poder

passam a ser simplesmente... objetos estéticos.

A estética cindida não retorna aos conteúdos da sociedade: simplesmente os ilumina em uma reflexão cínica. Uma estetização da política dentro do sistema

capitalista não leva à emancipação, e sim diretamente à barbárie. A política esteticamente encenada foi o segredo do sucesso do fascismo, e Hitler foi o protótipo do

artista como político, que não re-integra as esferas separadas, mas apenas estiliza a sua desintegração em um sangrento trabalho de arte total.

A precária situação da arte na estrutura capitalista, baseada na cisão em esferas diferenciadas, não poupa sequer a sexualidade humana. Para que a "economia

desenvolvida" do fim-em-si da sociedade capitalista pudesse se estabelecer e determinar a moderna divisão das esferas, era preciso uma condição prévia elementar:

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tudo o que não coubesse nesse sistema de divisões deveria sofrer uma divisão primária. E assim se fez com todos os momentos da vida que já havia sido culturalmente

integrada, mas que agora são atribuídos à mulher moderna: a família, o trabalho doméstico, o cuidado com os filhos, o amor. Como beleza natural, a mulher enfeita a si

mesma e ao lar com seu amor.

Esse espaço social - que não pode ser totalmente sugado pelas estruturas capitalistas, mas que permanece necessário para a reprodução humana - aparece como

uma privacidade cindida de um tipo novo, contraposta à estrutura total de sociedade do capital e das cisões interiores que ele contém. Surge, assim, uma paradoxal

"cisão do sistema total de cisões" (Roswitha Scholz), que forma a sua "retaguarda escura" com a conotação do feminino, enquanto o sistema oficial como um todo é

ocupado e dominado de forma masculina.

A constatação dessa cisão sexual, elementar e primária, surgida da crítica feminista, aponta para uma relação sexual especial entre o privado e o Público, que

também atinge a esfera estética cindida da arte e da cultura. Nas sociedades pré-modernas culturalmente integradas, havia momentos fortemente patriarcalistas, mas

não na forma diferenciada e aguda da modernidade. A diferenciação culturalmente integrada, para a qual não temos mais conceitos, também não separa o Público do

privado no sentido em que hoje os entendemos. Colocado na conceituação moderna, muito do que consideramos privado era Público, e vice-versa. E, embora o oficial

fosse masculino, havia limites para isso: assistiam-se a manifestações públicas masculinas e femininas simultâneas e paralelas, no contexto cultural.

As formas paradoxais de desintegração sobre a base da economia desenvolvida separaram duplamente o Público e o privado do ponto de vista dos sexos. Por

um lado, existe o espaço íntimo da privacidade, no qual a mulher - o assim chamado belo sexo - também é responsável pelo calor do ninho, pelo conforto do senhor e

pela dedicação amorosa. E, exatamente por isso, é considerada inferior e frágil de espírito. Em contraponto a essa privacidade inferior, aparece todo o sistema do

capitalismo, com a economia desenvolvida na ponta como a esfera masculina do Público burguês e como sociedade real.

Mas também ocorre, dentro dessa estrutura masculina, uma outra divisão interna entre o privado e o Público: aqui aparece, de forma absurda, a atividade como

o objetivo sem sujeito do sistema e a privacidade masculina do sujeito de interesse do capitalismo, o homo economicus e o ganhador de dinheiro, enquanto a também

masculina esfera complementar da política se define como pública. A esfera partida da estética, ou da arte e da cultura, apresenta simplesmente um apêndice desse

Público interno dentro do pseudo-universo masculino capitalista.

Por essa razão, o artista é, em princípio, um ser masculino dentro do Público capitalista, mesmo que em local particularmente precário. É claro que também

existem mulheres artistas - assim como políticas, empresárias ou cientistas. Mas, acima de tudo, elas representam exceções que confirmam a regra sociológica, e

sempre adaptadas às regras do jogo masculino. Além do mais, não se trata aqui de condições biológicas, e sim de anotações sócio-históricas.

Em sua gaiola de vidro da estética cindida, o artista estrutural masculino passa a ser uma criatura especialmente esquizofrênica: de um lado, é cada vez mais

homem capitalista e ganhador de dinheiro, necessitando da mulher para as tarefas menores de retaguarda, como qualquer vendedor de automóveis; de outro, representa

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diante do Público burguês masculino, na formação da estética, um elemento separado feminino, que não pertence ao sistema funcional mas que, apesar disso, é parte do

Público capitalista.

O feminino só pode aparecer no pseudo-universo masculino sob a forma de objeto de arte separado, estéril e museológico. O artista é assim o homem

capitalista que mostra certos lados femininos pessoalmente e que, se for preciso, pode até ser homossexual - mas somente como o caminhante social dos percursos da

estética narcisista e auto-referenciada, roubando da mulher os atributos que lhe foram dados e se transformando em supra-homem, incorporando o feminino de forma

masculina e degradando a mulher como modelo, objeto ou musa a mero objeto da beleza. Ao mesmo tempo, a sociedade burguesa vê sua representação do feminino no

masculino como um defeito e a inferioridade feminina lhe pesa. Por conta disso, passa a ser tratado como um elemento exótico da sociedade por seus colegas

vendedores de carros, não sendo levado totalmente a sério em todos os aspectos.

Essa estrutura das cisões - que cria os seres da modernidade - já é percebida hoje como passado histórico. A dinâmica capitalista explodiu sua própria forma de

sociedade e volta a processá-la desenfreadamente. A cultura de massas e os novos meios parecem aplainar a diferenciação sistêmica: aquilo que há meio século a crítica

denunciava como indústria cultural (Adorno) é hoje festejado pelos pós-modernos como uma reintegração da arte à vida. A colocação na mídia já vale por si como uma

emancipação das restrições da realidade capitalista; o mundo se explica pelo jogo digital. Por toda a parte se fala de chances, no sentido de democratização das mídias.

E, no animado baile de máscaras da sexualidade, o admirável mundo novo pós-moderno pensa ter superado também a divisão entre os sexos. O travesti parece já ter se

tornado um novo sujeito revolucionário.

A RETÓRICA DAS OPORTUNIDADES

Mesmo quando associada ao radicalismo de esquerda, a retórica das oportunidades do otimismo profissional cultural pós-moderno traz lembranças suspeitas da

linguagem à George Orwell dos economistas neoliberais. Na realidade, a arte não volta para a sociedade como cultura democrática de massas: o que ocorre é que o

mercado ultrapassa seus limites e renova o avanço rumo a uma totalidade nunca vista. Depois de a economia capitalista ter separado cultura e vida - e distribuído seus

restos por subsistemas estanques - sua dinâmica não poderia se deter nesse estado de desintegração. Se os setores de arte e cultura, de esporte, religião ou lazer podem

trazer uma determinada lógica própria contra o sistema dominante da economia desenvolvida, eles também deverão ser sucessivamente economificados.

Esses campos eram, a princípio, dependentes e de segunda ordem. Se a relação social da sociedade é determinada pelo fim-em-si, e em separado do dinheiro, o

padre, o atleta e o artista também devem ganhar dinheiro - seja diretamente, como vendedores no mercado, seja indiretamente, através da absorção (pelo Estado) de

dinheiro vindo dos processos do mercado.

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Durante muito tempo, essa relação foi simplesmente externa. Enquanto a arte não absorvesse, em sua produção, as leis econômicas do mercado, não poderia se

tornar uma mercadoria totalmente capitalista - chegando a ser danosa para a circulação. Mas a finalidade capitalista é em si tão faminta quanto insaciável e, nesse

sentido, teria que devorar os últimos restos de vida: a separação entre arte e cultura, o preocupante lazer e a limitada intimidade da família.

A arte só se volta para a vida na medida em que a vida também se dissolve na economia. Já sem existência própria, nem é mais uma esfera de estética separada:

transformou-se em objeto econômico, com fim-em-si, e por isso já coloca sua produção sob os pontos de vista do marketing. Praticamente, todos os objetos da vida e

do mundo deixaram de ter qualquer valor qualitativo no capitalismo sem limites deste final do século 20. A não ser, é claro, seu valor econômico, que lhes confere

adaptabilidade ao mercado.

O que os pós-modernos consideram uma chance emancipadora da arte na cultura de massas capitalista é, na realidade, sua destruição. Quando os "alegres

positivistas" (Michel Foucault) da pós-modernidade querem colocar essa visão profética de Adorno junto a um pessimismo cultural conservador, estão apenas

demonstrando que capitularam incondicionalmente diante do imperativo econômico, e que não são menos afirmativos do que os críticos conservadores.

O pessimismo cultural conservador não critica a destruição da arte pela indústria cultural capitalista apenas do ponto de vista de seu próprio passado: afinal, ele

é contemporâneo da estética como fim-em-si da modernidade clássica. A pós-modernidade, por sua vez, encara a miséria da mídia - no sujeito descentralizado e

atomizado - como a primavera da emancipação. Uns aderiram ao passado capitalista, outros a seu presente: ambos, na verdade, renunciam a uma nova perspectiva de

futuro anticapitalista.

ESTÉTICA DAS MERCADORIAS

Homens, mulheres, artistas e vendedores de carros tornaram-se hoje tão semelhantes como se todos tivessem adotado a mesma identidade vazia do homo

economicus, tornando-se agentes sem vontade do sujeito automático, mais do que eles mesmos. A diferenciação das subjetividades setorialmente separadas é reduzida

pela economia de mercado até transformar a todos em vendedores de automóveis. A crença ingênua na democracia de consumidores da indústria cultural pós-moderna

fica mal colocada sob a ditadura da oferta capitalista. A indústria cultural não é passível de crítica, portanto, por ser cultura de massa, mas por se consumir na forma

alienada da sociedade desenvolvida. A sua estética não é a estética do homem, e sim a das mercadorias.

Na democracia das mercadorias, os seres humanos já não têm nada a dizer enquanto tais. A estética das mercadorias não integra os indivíduos desintegrados:

integra as mercadorias como pseudo-objetos fantasmagóricos. Não é a forma estética de um conteúdo, mas o design da abstração econômica. Esse estágio final da

estética moderna pode ser descrito em diversos planos:

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Em primeiro lugar, trata-se de uma estética do particularismo. Não se consideram contextos e relações: ignora-se que o todo é mais do que a soma das partes - e

também qualitativamente diferente. O design é a estética cintilante das mercadorias abstratas particularizadas para o consumo do indivíduo particularizado abstrato,

enquanto a totalidade da paisagem, das cidades e do espaço social é transformada em lixo malcheiroso.

Em segundo lugar, esse design corresponde a uma estética de qualquer coisa. A forma e o conteúdo deixam de guardar relação entre si, porque o conteúdo é

definido como forma. Para o capital, tanto faz se a valorização se dá pela produção de carne de porco, minerais ou meios de transporte. Da mesma forma, na arte

economificada, é indiferente para o design o que ela produz - desde que seja vendável e passível de encenação na mídia. Isso prejudica qualquer padrão. Em uma

integração cultural determinada, é sempre necessário desenvolver padrões, por mais que se saiba de sua relatividade e da necessidade de alterá-los. Um mundo sem

padrões, que dê a tudo o mesmo valor, só pode trazer consigo um interminável cansaço.

Em terceiro lugar, o design do mundo das mercadorias produz na arte e na cultura uma estética da simulação. O disparate pós-moderno de uma desrealização

da realidade pela mídia (Jean Baudrillard & Cia.) traz consigo a crença prazerosa na aparência do design. A simulação dos meios tenta construir um mundo paralelo,

virtual e desmaterializado, em que o capitalismo já não enfrenta limitações naturais e sociais, e onde o crescimento da economia desenvolvida pode ser interminável.

Os mundos virtuais da mídia correspondem economicamente ao capitalismo de cassino dos últimos 15 anos: os mercados financeiros livres simulam uma acumulação

de capital, que há muito tempo não tem chão econômico firme sob os pés. O capitalismo de certa maneira volta para o ar, depois de ter tocado o fundo.

Nesse meio econômico de "capital fictício" (Karl Marx), de boom de ações, endividamento, jogos de azar e sociologia de risco (Ulrich Beck) desenvolveu-se

um espírito do tempo (Zeitgeist) que tenta superar a insuportabilidade das intransigências do capitalismo com um fazer como se… Na postura de simulação da auto-

estetização pela mídia, os indivíduos agem como se fossem competentes, bem-sucedidos, belos e visíveis - enquanto se rompem suas relações sociais reais.

UMA INTEGRAÇÃO NEGATIVA

O particularismo, a indiferença e a simulação permitem ver que a arte destruída por sua transformação na estética das mercadorias só pode encontrar uma

integração negativa na vida social, já que não existe mais vida aí. O velho problema da separação entre arte e vida não está resolvido: foi apenas desobjetivado. Mas

essa desobjetivação se revela uma simples aparência, em que o sujeito automático de certa maneira tece ilusões sobre si mesmo. A realidade capitalista deve ser

desativada, visto que está sem saída no final absoluto do seu desenvolvimento, sem que os homens sistemicamente condicionados percebam essa crise histórica. Atrás

do puro design da estética das mercadorias, revela-se inadvertidamente sua verdadeira e negativa existência. Não é possível escapar do sofrimento real, mesmo quando

se busca a própria desefetivação.

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A economia desenvolvida só pode se integrar tautologicamente em si mesma, mas o seu anseio de totalização sem atrito fracassa: ela pode tornar negativa a

vida real e sensorial, mas não pode atingir o mundo supra-real das abstrações independentes - tanto quanto não pode abolir a morte. O que foi afastado não volta:

sempre esteve lá. É somente na superfície do design que o sistema de cisões na economização do mundo se resolve. Por trás dessa aparência, no entanto, está o mundo

real, desintegrado e insuportável. Como a separação sexual não desaparece nos travestis, e o "ressurgimento pós-moderno da selvageria do patriarcado" (Roswitha

Scholz) também descarrega primordialmente nas mulheres as cargas da crise social após a destruição da família burguesa, a miséria estética do mundo funcionalmente

orientado também não desaparece no design da estética das mercadorias: simplesmente surge mais forte na desesperança do espaço Público economificado.

Se a crise real já não pode mais ser afastada, a desefetivação pela mídia consegue estetizar a miséria dolorosamente percebida, mesmo quando essa estetização

da crise não tome mais as formas políticas dos anos 30, tornando-se a própria política economificada. No entanto, a divulgação estetizada da pobreza, da opressão e do

embrutecimento das relações entre os sexos deu origem ao fascismo. A estética da desrealização pela mídia e da indiferença sem padrões é a estética da guerra

burguesa e da barbárie, na medida em que liquida, em última instância, os limites civilizatórios.

Uma volta à modernidade clássica é hoje tão pouco provável quanto uma volta às formas agrárias de sociedade culturalmente integrada. A sobrevivência da

desintegração capitalista, no entanto, também é igualmente improvável. A própria arte só pode surgir como positiva quando se tornar, conscientemente, ocasião de um

novo movimento social, que transcenda o velho marxismo dos movimentos dos trabalhadores e ponha a nu as raízes do sistema de cisões e separações funcionais. Uma

integração cultural da sociedade em novos e mais elevados níveis de desenvolvimento só será possível quando o fim-em-si da economia e a cisão de base entre os sexos

tiverem sido quebrados. O estabelecimento de um novo debate emancipatório é hoje a arma necessária contra a economificação capitalista do mundo.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº43 - MARÇO - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 43

OS GREGOS INVENTARAM TUDO

JEAN PIERRE VERNANT

PRIMEIRA VERSÃO

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Jean Pierre Vernant OS GREGOS INVENTARAM TUDO Entrevista concedida à Folha de São Paulo Online – Caderno MAIS! - 31/10/1999 - Páginas: 4 e 5

Com a democracia, a Grécia inventou também a tragédia e a filosofia, tornando-se, nas palavras do historiador Jean-Pierre Vernant, o "mundo de onde viemos".Tudo mudou desde então, o espaço, o tempo, a autoconsciência, a memória, as formas de raciocínio. Mas é o homem grego que está nessa espetacular origem.

Pergunta - É possível falar de um milagre grego, dizer que na Atenas clássica do século 5º ou 4º a.C. todo o Ocidente foi inventado. O senhor concorda com essa idéia?

Jean-Pierre Vernant - Acredito, de fato, que os gregos em grande parte nos inventaram. Sobretudo ao definir um tipo de vida coletiva, um tipo de atitude religiosa e

também uma forma de pensamento, de inteligência, de técnicas intelectuais, de que lhes somos em grande parte devedores. A história do Ocidente começa com eles. E

mais, eles transmitiram seus métodos e seu conteúdo de pensamento, na época helenística, ao Oriente Médio e à Índia. Foi, aliás, por intermédio da cultura árabe que a

Grécia sobreviveu a si mesma na Idade Média, antes de ser redescoberta pela Europa. Como se vê, o caudal do helenismo seguiu todo tipo de meandros, mas ressurgiu,

periodicamente.

Pergunta - Para começar, os gregos inventaram a política e a democracia?

Vernant - Certamente que sim, eles inventaram uma e outra. A partir do século 7º a.C., vemos surgir na Grécia um comportamento social, práticas institucionais que

constituem, na verdade, o que podemos chamar o nascimento da política. Em todas as grandes civilizações que precederam a civilização grega, e de que ela foi

tributária (assírio-babilônica, egípcia, fenícia, cretense), não se tinha visto nada comparável. Os chamados dóricos, isto é, indo-europeus que, na aurora do 2º milênio

a.C., instalaram-se na Grécia continental vindos talvez do Cáucaso, impregnaram-se da cultura de civilizações mais avançadas, em particular a dos cretenses. Eles nos

deixaram toda uma série de inscrições: arquivos palacianos que nos permitem abarcar o que era a Grécia entre 1450 e 1200 a.C., uma Grécia de monarquias que, em

certos aspectos, lembrava os reinos orientais; o rei, "anax", controla o conjunto da vida social, econômica e mesmo religiosa, ao que parece. Nos registros contábeis da

realeza, vê-se que as doações, a hierarquia e organização militares, tudo passa por ele: são necessárias tantas carroças, tantas rodas de carroça, tantos cavalos. Esse

período micênico deu lugar ao que chamamos os séculos obscuros: os reinos desaparecem, a escrita também, os contatos com o Oriente, a densidade demográfica e a

superfície cultivada diminuem. E depois o comércio retorna, lá pelo século 9º a.C. O que aparece então, e dessa vez o sabemos, afora os documentos arqueológicos,

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graças à época homérica, à "Ilíada" e à "Odisséia" (difícil datar, pois se trata de uma tradição oral que remonta talvez a 1250 a.C., mas cujo texto só foi fixado no

século 6º a.C.), é um mundo marcado por uma nova maneira de considerar o poder.

Pergunta - O que ocorre?

Vernant - Pode-se dizer, para resumir as coisas, que nesse mundo mediterrâneo o rei cumpre um papel essencial. Ele tem em si algo de divino, ele é o intermediário

entre os deuses e os homens. O grupo humano se encontra, em relação ao poder, à soberania, numa situação de inferioridade, de submissão e de obediência: a palavra

do rei, sua decisão, os meios militares de que ele dispõe são incomensuráveis ao cotidiano de seus súditos. O que vemos surgir na Grécia, nesse contexto? Algo de

totalmente novo: a idéia de que só existe sociedade humana digna desse nome se essa soberania de valor quase religioso se achar despersonalizada e, para falar como os

gregos, situada no centro, ou seja, se ela se tornar uma coisa comum. Só pode haver vida social se todos os membros de uma comunidade tiverem direitos iguais para

gerir os interesses comuns - o que é também um modo de instaurar uma diferença entre o público e o privado.

Pergunta - O que define o espaço público?

Vernant - O fato, justamente, de não ser submetido à autoridade de nenhum mestre, de não abrir espaço a um poder despótico. Assim, em Homero, a palavra "anax",

que no mundo micênico designava um soberano organizador do universo, uma palavra de acepção absoluta, é banalizada: "anax", em Homero, significa "senhor", e não

tem peso maior que o nosso "senhor" de hoje. Em contrapartida, aparece um termo técnico para designar o rei, "basileus". Ora, esse "basileus" não é mais um absoluto,

é dotado de um relativo e de um superlativo: "basileuteros", mais rei, para dizer, por exemplo, "eu sou mais rei que você", e "basileutatos", rei dos reis, "o mais rei de

todos" _Agamêmnon. Em outras palavras, nesse mundo de aristocracia guerreira, todos os príncipes ostentam o título de "basileus" e já desponta a idéia de que, para as

grandes decisões, a serem tomadas no curso de uma guerra, é preciso reunir o conjunto do exército: o exército faz círculo, e avançam por etapas, empunhando o

"skeptron" _muito menos o signo pessoal de um poder que o signo social que lhe confere o direito de falar_, os "aristoi", os melhores, os chefes, aqueles que mostraram

possuir as qualidades de coragem, de energia, de honra: esses podem dizer tudo o que pensam.

Pergunta - Não demonstram nenhuma deferência ao rei?

Vernant - Aquiles trata Agamêmnon como o último dos últimos, na frente de todo o mundo: "Tu és um covarde, um ordinário, o que eu tenho a ver contigo?". Seria

impensável dirigir-se nesses termos ao rei dos reis assírio ou ao faraó egípcio. Você os imaginaria insultados em praça pública por tipos que os chamam de todos os

nomes? Esse comportamento originará mais tarde o que se chamará "isegoria", o direito igualitário à palavra. É na verdade uma revolução, uma atitude radicalmente

diversa no trato com a realeza, com a "monarchia", o poder de um só. Os "aristoi" consideram que não existe nenhuma instância exterior que possa exercer sobre eles

algum poder.

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Pergunta - E de onde lhes vem a mentalidade "revolucionária"?

Vernant - Vai saber! Na origem, nos povos indo-europeus, o poder real é pensado em moldes pastoris: o rei é o pastor de seu povo. Ele alimenta seu rebanho, mas

também lhes impõe o açoite, a canga. Isso ainda é perceptível na "Teogonia" de Hesíodo, que pertence ao mesmo substrato cultural, em que se pode ler uma tentativa

de justificar teologicamente, eticamente, os poderes excepcionais do rei: se o rei é bom, justo, a terra será fértil, as mulheres terão bons filhos, não haverá guerras. Em

ruptura com essa ideologia, os "aristoi" sustentam, segundo a fórmula que se encontra em todos os textos, que é preciso "depositar o poder no centro".

Pergunta - Isso tem algum significado concreto?

Vernant - Os que estão na periferia se acham todos a igual distância do centro, e, estando o poder localizado no centro, ninguém lhe põe as mãos. Essa idéia abstrata

ganha corpo na arquitetura: desde essa época, a praça pública situa-se nas cidades gregas ao lado da acrópole, onde se erguem os templos _o espaço dos deuses e de

outros espaços comunitários_, como o estádio, a escola, os banhos. Quando os gregos, a partir do século 8º a.C., começam a fundar colônias no exterior, a primeira

coisa que fazem é abrir espaço, no centro, para que se possa construir, não um palácio, não uma simples habitação privada, mas o espaço público. Esta é a invenção da

política.

Pergunta - O que ocorre nesse espaço público? É lá que se debatem os assuntos da cidade, tal como os melhores guerreiros, diante do exército, as decisões a tomar?

Vernant - Sim. Pouco a pouco, todos os assuntos de interesse público e comum são regulados dessa maneira, sob a vista de todos. O que muda são os argumentos e

contra-argumentros. Há um jogo de demonstração, de persuasão, uma arte da palavra que lá se aprende. O poder retórico de convicção torna-se uma das engrenagens

decisivas para o funcionamento da sociedade. Essa é também uma mudança fabulosa: o rei sempre tivera conselheiros com quem discutir, mas isso não tinha nada a ver

com o debate público e contraditório.

E o poder se acha, ao termo desse debate, dessacralizado. Não digo que a religião esteja ausente da discussão; está presente, mas sob outras formas, não se encontra

mais no centro. Não se obedece ao rei porque seja rei, segue-se a "melhor opinião", a mais convincente. No que tange ao futuro da cidade, a decisão de mover guerra ou

declarar paz, o modo de repartição das terras, a escolha de colonizar ou não esta ou aquela terra estrangeira, tudo o que representa o destino do grupo será arbitrado

segundo uma lógica racional.

Pergunta - Tudo isso antes do século 5º a.C.?

Vernant - Sim, mesmo nas constituições arcaicas do século 7º a.C. há uma "boulé", uma assembléia do povo, que delibera sobre o "cratos", o poder, para fazer isso ou

aquilo. Mas não se trata de uma democracia, senão de uma aristocracia guerreira. O que ocorre em seguida? A partir do século 6º a.C., em Atenas, esse grupo restrito

de eleitos que tem o direito à palavra na assembléia amplia-se com as reformas de Sólon e sobretudo as de Clístenes: vemos surgir então a idéia de que todos os que

nasceram atenienses, os cidadãos, têm direitos iguais de participar na coisa política. Daí ser preciso inventar, o que faz Clístenes, meios institucionais para conferir aos

habitantes da Ática o sentimento de que constituem uma comunidade, e que em turnos sucessivos todos os membros dessa comunidade podem em princípio ocupar "o

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centro", a praça e as magistraturas que representam o "cratos". Dali em diante, esse poder soberano é qualificado de "nomos", de regra, de lei. Isso não quer dizer que

não haja desigualdades, que certas famílias não tenham um papel privilegiado; o mesmo movimento que une os cidadãos os desune, porque, se é no centro que tudo se

regula, ao termo de uma votação, haverá necessariamente uma maioria e uma minoria, e a minoria se achará submetida a um "cratos", o da maioria. Na democracia

existe ao mesmo tempo "demos", o conjunto da população, inclusive sua parte mais pobre, e "cratos", poder arbitrário e soberano. A democracia, de uma certa maneira,

é a utilização de um sistema por alguns, os mais numerosos e menos favorecidos, para obter vantagens daqueles que os gregos chamam os melhores, os mais ricos. Na

prática, encontramos mesmo assim um equilíbrio: a reivindicação extrema, a da partilha das terras, não será jamais realizada em Atenas. Contudo, não se deve cair

numa visão idealizada das coisas: a democracia é o perigo permanente da guerra civil. Some-se a isso que as mulheres se acham excluídas da vida comunitária, mais

que antes: o status da mulher parece, na epopéia homérica ou na poesia arcaica, mais favorável que na Atenas democrática. A maior virtude de uma mulher, diz

Péricles, é saber se calar. Numa civilização da palavra, obviamente, isso não é lá muito gratificante. Algumas palavras, enfim, sobre a escravidão: quando fazemos esse

grande progresso que consiste em dizer que só é na verdade homem quem participa dos assuntos comuns, o cidadão livre (em consequência, os persas ou os egípcios,

sejam quais forem suas imensas qualidades, não são na verdade homens no espírito grego; só é na verdade homem o habitante da Grécia, ainda que do mais remoto dos

rincões, onde prevalece o sistema das cidades), estabelece-se ao mesmo tempo que aqueles que são excluídos não são na verdade homens. Os escravos, com isso, são

excluídos da humanidade: Platão ou Aristóteles se perguntam com toda candura sobre sua natureza _em Esparta a coisa é diferente, os hilotas lembram antes o que

chamaríamos de servos, eles estão presos à terra, excluídos do funcionamento político, certo, mas não da humanidade: na hierarquia social, eles ocupam o estágio

inferior, ao passo que, no sistema democrático, nem sequer os vemos, eles estão completamente de fora.

Pergunta - O senhor mencionou Platão, Aristóteles. O que foi inventado no curso desse século 5º ateniense não foi somente a política, mas também uma reflexão sobre

a política: a filosofia, não é verdade?

Vernant - A política se torna, de fato, objeto de reflexão teórica. Qual é a melhor constituição? Por que tal tipo de geografia engendra tal tipo de governo? Por que a

Grécia encarna o melhor regime? Essas são as perguntas que se fazem. Vemos surgir também uma crítica política bastante virulenta _os panfletos aristocráticos contra

a democracia, atribuídos a Xenofonte. E de outro lado as utopias: filósofos como Platão imaginam um sistema diverso, o da cidade ideal, que Aristóteles também

tentará definir. Em suma, a partir do instante em que, na vida comum, o debate e a argumentação se tornam elementos fundamentais, as técnicas de persuasão e a

reflexão sobre a argumentação tornam-se objetos que despertam interesse. Daí surgir na Grécia do século 5º a sofística. Uma prática que consistia em recrutar jovens da

elite intelectual de diferentes cidades e lhes fazer pagar lições de retórica, tendo como pano de fundo um certo relativismo, a idéia de que quem souber persuadir

sempre fará passar sua tese por verdadeira _ou seja, em qualquer problema se podem alinhar duas colunas, os argumentos a favor e os argumentos contra. Em sentido

oposto, no entanto, essa tentação do ceticismo deu origem a um esforço para mostrar que verdade e verossimilhança são coisas diversas: Platão e Aristóteles distinguem

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os raciocínios falsos dos corretos e estabelecem critérios de verdade. Surge assim um tipo de discurso, ou de diálogo, de questionamento, que é a primeira forma do que

se chamará, no Ocidente, de filosofia.

Pergunta - O senhor fala de raciocínio correto e falso, de critérios de verdade. Essas indagações são inspiradas naquilo que se produziu, na mesma época e também na

Grécia, no campo das matemáticas?

Vernant - De fato. Havia as matemáticas egípcias, babilônicas, indianas, e os gregos lhes devem muito. Mas o que lhes é próprio, e que vemos surgir já bem cedo, antes

de Euclides, é um esforço para definir um tipo de raciocínio que se caracteriza por dois aspectos fundamentais. Primeiro, o raciocínio matemático grego não trata de

objetos reais, mas de coisas ideais. Quando falamos da linha, da superfície ou do ponto, pode-se, como fez Platão no "Teeteto", ao explicar a geometria a seu escravo,

desenhar; mas o que se vai dizer não versa sobre o que se desenhou, o que se desenhou visa somente a torná-lo presente ao espírito do ouvinte. A linha, o ponto, a

superfície de que se fala são coisas ideais. Em segundo lugar, a validade desse raciocínio não se prende ao que se verificar na experiência, confrontando a conclusão

com o que temos sob os olhos. Ela se prende à pura coerência, ao rigor da demonstração, a uma cadeia de conclusões, em que tudo decorre daquilo que antes foi dito:

não pode haver nenhuma contradição no interior do raciocínio. É a racionalidade interna, e não a conformidade a um objeto exterior, que define a validade do

pensamento matemático. Aristóteles e Platão sabiam tudo isso. Nossos filósofos ocupavam-se das matemáticas e delas se serviam para constituir um ideal de

pensamento bem diferente daquele que estava em jogo na ágora.

Pergunta - E a filosofia, por sua vez, teve influência decisiva em algum outro domínio do pensamento grego?

Vernant - A medicina, é claro! Praticava-se uma medicina tradicional, fundada na análise dos sonhos, na divinação. Mas também vemos aparecer nessa época uma

medicina de caráter científico, influenciada pela filosofia, uma medicina teórica, que estabelece esquemas fundados nos humores, o seco, o quente, o frio, seu equilíbrio

e desequilíbrio, a doença sendo devida ao predomínio de um elemento sobre o outro. Desde então se concebeu o corpo humano como um organismo, como uma cidade

em miniatura, integrada no cosmos. O que não impediu que se desenvolvesse, de outro lado, uma medicina diversa, empírica, que consistia em acompanhar com

esmero a evolução de cada caso singular, de modo a saber como se desdobra a doença, etapa por etapa; quando o volume de observação é tal que permite deduzir

constantes, pode-se elaborar uma resposta terapêutica adaptada ao momento. Textos desse gênero foram conservados, todos de uma precisão extraordinária: o paciente

tem uma erupção cutânea, sua urina tem cheiro forte ou não, ele evacua ou não, sua pele está amarela. É a invenção do quadro clínico.

Pergunta - Em outras civilizações os médicos não descreviam o caso de que tratavam?

Vernant - Eles podiam descrever o que viam, mas nunca de maneira tão sistemática, e sobretudo libertos de todo a priori. Na Antiguidade, acreditava-se que certas

doenças não eram curáveis porque enviadas pelos deuses, as doenças que se diziam divinas, como a epilepsia. Ora, sabemos de textos gregos cuja hipótese é que não há

doenças divinas, doenças sagradas, que todas se explicam por mecanismos internos do corpo ou pela influência de agentes exteriores, como o clima etc. Trata-se de

uma laicização e de uma racionalização do pensamento médico.

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Pergunta - O gênio grego não tem limites?

Vernant - Pelo contrário! Um dos traços marcantes desse pensamento, quer se trate da filosofia ou das matemáticas, é que ele busca definir o verdadeiro fora-do-mundo

sensível e da experiência: o que há por trás, além. E a filosofia, em grande medida, é a fuga para além do mundo sensível, humano, perecível, rumo ao eterno e

imutável. Assim, no domínio da física, os gregos consideravam como objeto da ciência tudo o que dependia da observação astronômica, do movimento regular dos

astros, "imagem móvel da eternidade imóvel", para retomar sua fórmula. Mas eles não fundaram uma ciência dos fenômenos que se produzem naquilo que chamam de

mundo sublunar, o nosso, fadado à mudança, ao crescimento e à decrepitude, ao imprevisto, ao impreciso, aquilo que Alexandre Koyré denomina o mundo do mais ou

menos. Nesse mundo em que vivemos é preciso, para nele nos orientar, uma certa intuição, coisa de que Ulisses está provido em abundância, o senso do flutuante e do

movente, a capacidade de se arranjar com o que não pode ser objeto de um raciocínio impecável: a arte da política e da guerra, aquilo que produz a inovação técnica, e

na Grécia não há engenheiros, não há física experimental. Não se tem a idéia de que o homem possa, pelo simples exercício de sua inteligência, tornar-se mestre e

possuidor da natureza. O homem está imerso na natureza, mas deve aprender _e essa é a verdadeira sabedoria_ que se pode mudar a si mesmo, não o mundo: por haver

contemplado os astros, por haver refletido sobre a essência das coisas, nasce uma potência interior de aceitação, uma liberdade, que são tudo a que um homem pode

aspirar. Durante muito tempo, a física, a ciência ocidental em seu conjunto, permanecerá escrava desses esquemas de pensamento.

Pergunta - Eles também não inventaram o monoteísmo. Mas eles têm mesmo uma prática e uma cultura religiosas totalmente incompatíveis com essa idéia de um só

deus todo-poderoso?

Vernant - É verdade que o cristianismo parece uma profunda ruptura com a concepção que os gregos tinham da religião. Ainda assim, já se disse muitas vezes, e com

razão, que há dois elementos na origem do cristianismo: o elemento judaico, semítico, e o elemento grego. Certo, a idéia de um deus único, de um deus que não se pode

afigurar, que não se pode nomear, de um deus que é o absoluto, de um deus universal, os gregos não tinham: eles se dispunham, ao contrário, a acolher todos os deuses

que lhes fossem trazidos, de todos os deuses estrangeiros eles se apropriavam, por eles se encantavam, porque pensavam que as divindades estavam por toda a parte, no

ser humano, na fonte que jorra, nas nuvens. Ora, os filósofos haviam aberto o caminho, pois buscavam, apesar de tudo, um princípio explicativo, um só, único, o Uno,

o ser eterno e imutável. É a filosofia grega, assim, que constrói moldes de reflexão que permitirão pensar esse deus absoluto, única verdade. Quando se considera a

teologia cristã, essas querelas em que se indaga como Deus pode ser ao mesmo tempo uno e trino, reencontramos a filosofia grega. Onde menos esperávamos!

Pergunta - Falemos um pouco mais do mundo sensível, do mundo do mais ou menos e do humano. Nesse domínio, devemos ainda aos gregos algo de novo, uma

representação estética particular, de que jamais se vira algo equivalente: o teatro, a tragédia?

Vernant - Sim. Isso é de fato uma invenção. Ela nasce, a tragédia, oriunda tanto da poesia anterior, da mitologia (os temas que os autores trágicos põem em cena são

tradicionais, familiares a todos os gregos, aquilo que já Homero e Hesíodo evocavam: Édipo, Ulisses, Agamêmnon, Clitemnestra, Antígona, todos os gregos os

conhecem, convivem com eles numa verdadeira proximidade intelectual e afetiva, desde os cinco anos de idade), quanto de uma prática política e cívica. Alguém disse

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que a tragédia surgiu, o teatro, assim que o público pôde considerar seus velhos mitos com um olhar novo, o do cidadão. O espetáculo trágico é inventado ao término

do século 6º a.C. pelos tiranos atenienses, Pisístrato e seus filhos, em busca de uma manifestação popular e urbana. Conheciam-se as dionisíacas rurais, festas

religiosas, mascaradas nas quais as pessoas se fantasiavam de sátiros e cantavam; a tragédia não tem nada a ver com isso: ela é uma instituição social homogênea às

outras instituições da cidade. Em datas fixas, reunia-se um júri para recompensar a melhor obra, o qual deliberava pela maioria. São portanto as próprias instituições

que atuam para julgar a tragédia e para arbitrar a vida política. Assim, tudo é novo do ponto de vista da forma: a poesia consistia em narrar histórias em estilo indireto;

você abre Homero e ouve alguém lhe dizer: eis o que ocorreu. No teatro, não são mais Sófocles, Ésquilo, Eurípides que lhe narram uma história, são os próprios

acontecimentos que se desenrolam diante de seus olhos, os personagens, em carne e osso, que os interpela, que vão e vêm num espaço delimitado, um espaço público

aberto, onde se reúne a cidade inteira _ocorrerá mesmo de se pagar aos cidadãos que não têm dinheiro para que compareçam, é realmente um dever cívico, como

apresentar-se na assembléia. Imagine que revolução não terá sido na cabeça das pessoas essa proximidade, repentina, a um espaço fictício, fosse a morada de Édipo ou

a de Agamêmnon, pouco importa! Hoje não nos damos mais conta, mas lembro que, quando eu era criança pequena, faz muito tempo, em Provins, havia aos domingos

uma sessão de cinema, e eu assistia a um espetáculo duplo, tanto na sala quanto na tela: todo o mundo se agitava, tripudiava, gritava no escuro. Quando a heroína

entrava no quarto em que se achasse o malfeitor, pronto para matá-la, toda a sala berrava: "Cuidado, ele está ali!". Existem, de resto, mil relatos do século 18 e 19 em

que atores eram espancados à saída dos teatros, onde haviam representado o papel de malfeitores.

Pergunta - O que se espera desse espetáculo fictício? Que efeito ele deve produzir nos espectadores?

Vernant - A consciência do fictício, em grego, se diz "mimesis", imitação. Aristóteles construiu-lhe a teoria. Para ele, o que move o dramaturgo não é uma exploração

psicológica nem uma intriga cativante; não, o espectador conhece de cor o caráter dos personagens e sabe como termina sua história. Trata-se, antes, de uma simulação.

Esses personagens são seres em geral excepcionais, são os heróis de outrora, e ao mesmo tempo cada um pode reconhecer-se neles; seja como for, são pessoas levadas

a cometer erros, faltas, a equivocar-se, e elas o farão não por baixeza nem por maldade, mas porque são arrastadas a tanto, muitas vezes por suas próprias qualidades ou

por sua situação. De modo que a simulação consiste em mostrar de que forma pessoas em nada odiáveis nem desprezíveis podem ser conduzidas, por uma série de

pseudonecessidades, a fazer escolhas que as levem à destruição, à catástrofe. É do homem que se fala. O homem é trágico. Ele acredita agir pelo melhor e se dará conta

de que fez algo absolutamente diverso do que acreditara, que seus atos lhe escapam, excedem-no, assumem, ao sabor das circunstâncias, um sentido e um valor

contrários aos que acreditara lhes dar. Édipo, salvador da cidade de Tebas, não sabe nem mesmo quem é na realidade - e conhecerá por essa razão um destino atroz. A

tragédia nasce no século 5º a.C., no momento em que os sofistas afirmam que dois discursos contrários se equivalem. O que vemos sobre o palco? Dois discursos

contrários que se opõem na boca dos principais heróis, que se entrechocam, que não podem em hipótese alguma coexistir, e em certos casos são igualmente nefastos

para os indivíduos: Antígona e Creonte serão aniquilados, e seus dois discursos, que representam duas opiniões, duas visões limitadas, anulam-se reciprocamente,

quando, porém, um e outro tinham aparência de razão. A tragédia, a sofística, são talvez uma empresa de demolição das pequenas certezas e vaidades humanas. E,

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aliás, certos filósofos argumentam contra a tragédia como argumentam contra a sofística: Platão proscreve os autores trágicos da cidade ideal. Aristóteles, em

contrapartida, ao fazer a teoria da "catharsis", da purgação das paixões, diz que o espetáculo em que se mostra o som e a fúria do mundo, cujo fim é submergir o

espectador no terror e na piedade, possui um valor intrínseco: terror, piedade, dor, sofrimento, absurdo, tudo isso, que é o cotidiano do mundo, ao se tornar matéria de

uma obra, adquire coerência e beleza.

Pergunta - Ao termo desse panorama impressionante, pode-se falar de um milagre grego?

Vernant - Não! Eu não acredito em milagres, já que sou historiador. Mas houve, como em todos os períodos de ruptura, algo que não estava contido naquilo que existia

antes. Ao mesmo tempo, a ruptura é também uma forma de herança.

Pergunta - Sim, mas uma tal soma de inovações, com uma tal posteridade, disso vemos raros exemplos na história.

Vernant - Claro! Por que acha que eu sou helenista? No século 5º a.C., na Grécia, o homem mudou sua forma de pensar, de se exprimir, de se relacionar consigo

mesmo, com os outros, com o mundo, com a divindade. Para mim a interpretação de documentos, quer se trate de uma estátua, de um tratado, de uma lei inscrita na

face de uma pedra, de uma lápide, sempre foi fácil, porque esse mundo de que eles nos falam é aquele de onde viemos, porque dele somos os herdeiros.

Pergunta - Há realmente tal continuidade? Para o senhor, o mundo deles não é nem um pouco exótico?

Vernant - Há o exotismo também, se não seria menos interessante. Distância e proximidade, isso é o que é apaixonante. Mas, mesmo no que respeita às coisas mais

insólitas na civilização grega, sempre nos comunicamos com elas, é sempre o humano, o familiar. Claro, tudo se alterou, tudo mudou desde então, o espaço, o tempo, a

autoconsciência, a memória, as formas de raciocínio. Mas é o homem grego que está na origem, precisamente, dessa espetacular evolução. Tome o ofício do

historiador. Para compreender aquilo de que falamos, para compreender os outros, sempre é preciso começar por tomar distância, considerá-lo como objeto de

pesquisa. Mas só isso não basta: é preciso saber também adotar seu ponto de vista, sua percepção das coisas, simpatizar com ele. E como chegar a isso, como

interpretar, reconhecer, reconstruir a identidade de outrem, se não conheço a mim mesmo de igual forma, do interior? Inversamente, sempre tenho a impressão de que

aprendo algo sobre mim mesmo quando faço história: estou longe de mim e me reencontro, e é nesse vaivém entre o passado e o presente que o homem se constitui.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº44 - MARÇO - PORTO VELHO, 2002

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 44

TECNOLOGIAS INTELECTUAIS E OS MODOS DE CONHECER: NÓS SOMOS TEXTO

PIERRE LEVY

PRIMEIRA VERSÃO

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PIERRE LÉVY

TECNOLOGIAS INTELECTUAIS E OS MODOS DE CONHECER: NÓS SOMOS TEXTO

O que acontece quando lemos ou escutamos um texto? Em primeiro lugar, o texto é perfurado, ocultado, permeado de brancos. São as palavras, os pedaços de

frases que não ouvimos (não só no sentido perceptivo, mas também intelectual do termo). São os fragmentos de texto os quais não compreendemos, não tomamos

em conjunto, não reunimos uns aos outros, negligenciamos. Paradoxalmente, ler, escutar, é começar por negligenciar, por não ler ou desligar o texto.

Ao mesmo tempo em que rasgamos o texto pela leitura, nós o ferimos. Nós o recolocamos sobre ele mesmo. Nós relacionamos, umas às outras, as passagens

que se correspondem. Os pedaços dispersos sobre a superfície das páginas ou na linearidade do discurso, nós os costuramos em conjunto: ler um texto é reencontrar

os gestos textuais que lhe deram seu nome.

As passagens do texto estabelecem virtualmente uma correspondência, quase uma atividade epistolar que nós, bem ou mal, atualizamos, seguindo ou não,

aliás, as instruções do autor. Produtores do texto, viajamos de um lado a outro do espaço de sentido, apoiando-nos no sistema de referência e de pontos, os quais o

autor, o editor, o tipógrafo balizaram. Podemos, entretanto, desobedecer às instruções, tomar caminhos transversais, produzir dobras interditas, nós de redes

secretos, clandestinos, fazer emergir outras geografias semânticas.

Tal é o trabalho da leitura: a partir de uma linearidade ou de uma superficialidade inicial, rasgar, ferir, entortar, redobrar o texto, para abrir um meio vivo onde

possa desplugar-se o sentido. O espaço do sentido não preexiste à leitura. É percorrendo-a, cartografando-a que nós o fabricamos.

No entanto, enquanto redobramos o texto sobre ele mesmo, produzindo assim sua relação consigo mesmo, sua vida autônoma, sua aura semântica, nós o

reportamos também a outros textos, a outros discursos, a imagens, a sentimentos, a toda a imensa reserva flutuante de desejos e de signos que nos constituem. Aqui,

não é a unidade do texto que está em jogo, mas a construção de nós mesmos, construção sempre a refazer, inacabada. Não é mais o sentido do texto que nos ocupa,

mas a direção e a elaboração de nosso pensamento, a precisão de nossa imagem do mundo, o resultado de nossos projetos, o despertar dos nossos prazeres, o fio de

nossos sonhos. Desta forma, o texto não é mais amarrotado, redobrado em rolo sobre ele mesmo, mas decupado, pulverizado, distribuído, avaliado segundo os

critérios de uma subjetividade nascida de si mesma.

Do texto, logo nada mais resta. Ou melhor, graças a ele retocamos nossos modelos de mundo. Ele nos serviu, talvez, apenas para fazer entrar em ressonância

algumas imagens, algumas palavras que nós já possuíamos. Por vezes, relacionamos um de seus fragmentos, investido de uma intensidade especial, a tal zona de

nossa arquitetura mnemônica, um outro a tal pedaço de nossas redes intelectuais. Ele nos serviu de interface conosco mesmos. Apenas muito raramente nossa

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leitura, nossa escuta, terá como efeito reorganizar dramaticamente, como por um tipo de efeito de limite violento, o bolo misturado de representações e de emoções

que nos constitui.

Escutar, olhar, ler, voltam finalmente a se construir. Na abertura em direção ao esforço de significação que vem de outro, trabalhando, atravessando,

amassando, decupando o texto, incorporando-o a nós, destruindo-o, nós contribuímos para erigir a paisagem de sentido que nos habita. Confiamos, por vezes,

alguns fragmentos do texto aos conjuntos de signos que se movimentam em nós. Estes ensinamentos, estas relíquias, estes fetiches ou esses oráculos não têm nada a

ver com as intenções do autor nem com a unidade semântica viva do texto. Eles, contribuem, porém, para criar e recriar o mundo de significações que nós somos.

Até agora, não pronunciei a palavra hipertexto. No entanto, não se tratou senão disto. As tecnologias intelectuais, quase sempre, exteriorizam e reificam uma

função cognitiva, uma atividade mental. Assim fazendo, elas reorganizam a economia ou a ecologia intelectual em seu conjunto e modificam em retorno a função

cognitiva a qual pressupunha-se somente assistir e reforçar. As relações entre a escritura (tecnologia intelectual) e a memória (função cognitiva) estão aí para

testemunhar.

A chegada à escritura acelerou um processo de artificialização e de exteriorização da memória que sem dúvida começou com a hominização. Seu uso massivo

transformou o rosto de Mnemósina.(1) Acabamos por conceber a lembrança como um registro.

A semi-objetivação da memória no texto sem dúvida permitiu o desenvolvimento de uma tradição crítica. Com efeito, a escrita cruza uma distância entre o

saber e seu sujeito. É talvez porque eu não sou mais o que eu sei que eu posso recolocá-lo em questão. A escritura fez surgir assim um dispositivo de comunicação,

no qual as mensagens são muito freqüentemente separadas no tempo e no espaço de sua fonte de emissão e então recebidas fora do contexto. Do lado da leitura, foi

preciso então refinar as práticas interpretativas. Do lado da redação, devemos imaginar sistemas de enunciados auto-suficientes, independentes do contexto.

Com a escritura, e mais ainda com o alfabeto e a impressão, as formas de conhecimento teóricas e hermenêuticas avançaram sobre os saberes narrativos e

rituais das sociedades orais. A exigência de uma verdade universal, objetiva e crítica, não pôde se impor senão em uma ecologia cognitiva grandemente estruturada

pela escrita.

Sabemos que os primeiros textos alfabéticos não separavam as palavras. Apenas muito lentamente foram sendo inventados os brancos entre os vocábulos, a

pontuação, os parágrafos, as claras divisões em capítulos, os sumários das matérias, os índices, a arte de colocar na página, a rede de remissões de enciclopédias e

dicionários, as notas de pé-de-página – em suma tudo o que facilita a leitura e a consulta de documentos escritos. Contribuindo para dobrar os textos, estruturá-los,

articulá-los para além de sua linearidade, estas tecnologias auxiliares compõem o que nós poderíamos chamar de aparelho de leitura artificial.

O hipertexto, a hipermídia ou a multimídia interativa percorrem um processo já antigo de artificialização da leitura. Se ler consiste em selecionar,

esquematizar, construir uma rede de remissões internas ao texto, em associar a outros dados, em integrar as palavras e as imagens para uma memória pessoal em

reconstrução permanente, então os dispositivos hipertextuais constituem uma espécie de reificação, de exteriorização dos processos de leitura. Já o vimos, a leitura

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artificial existe desde muito tempo. Que diferença podemos estabelecer entre o sistema que estava estabilizado sobre as páginas dos livros e dos jornais e aquele

que se inventa hoje sobre as relações digitais? Em relação às técnicas anteriores, a digitalização introduz primeiro uma pequena revolução copernicana: não é mais

o leitor que segue as instruções da leitura e se desloca no texto, mas é, de hoje em diante, um texto móvel, caleidoscópio que apresenta suas facetas, gira, torna e

retorna à vontade diante do leitor.

De outra parte, a escritura e a leitura mudam seus papéis. Aquele que participa na estruturação do hipertexto, no traçado pontilhado das possíveis pregas do

sentido, é já um leitor. Simetricamente, aquele que atualiza um percurso ou manifesta tal ou qual aspecto da reserva documentária contribui para a redação,

encontra momentaneamente uma escrita interminável. As costuras e remissões, os caminhos de sentido originais que o leitor inventa podem ser incorporados à

estrutura mesma dos corpus. A partir do hipertexto, toda leitura é uma escritura potencial. Mas sobretudo os dispositivos hipertextuais e as redes digitais

desterritorializaram o texto. Eles fizeram emergir um texto sem fronteiras próprias, sem interioridade definível. Existe agora o texto, como se diz da água ou da

areia.

O texto é colocado em movimento, tomado em um fluxo, vetorizado, metamórfico. Está assim mais próximo do movimento mesmo do pensamento, ou da

imagem que nós dele fazemos hoje. O texto subsiste sempre, mas a página se oculta. A página, isto é, o pagus latino, o campo, o território situado pelo branco das

margens, lavrada de linhas e semeada pelo autor de letras, caracteres. A página, pesada ainda da argila mesopotâmica, aderindo sempre à terra do neolítico, esta

página muito antiga, se oculta lentamente sob a alta superfície informacional, seus signos desligados vão rejuntar a onda numérica (digital). Tudo se passa como se

a numerização (digitalização) estabelecesse uma espécie de imenso plano semântico, acessível em todo lugar, para o qual cada um poderia contribuir para produzir,

dobrar diversamente, retomar, modificar, redobrar... Há necessidade de o sublinhar?

As formas econômicas e jurídicas herdadas do período precedente impedem hoje o movimento de desterritorialização de ir até seu fim. A interpretação, quer

dizer, a produção de sentido, não remete mais, desde então, à interioridade de uma intenção, nem a hierarquias de significações esotéricas, mas antes à apropriação

sempre singular de um navegador. O sentido emerge de efeitos de pertinências locais, ele surge na intersecção de um plano semiótico desterritorializado e de uma

mira de eficácia ou de prazer. Eu não me interesso mais sobre o que pensou um autor ausente, eu quero que o texto me faça pensar, aqui e agora. Nós chegamos

aqui no limite das noções de texto e de leitura. Para ultrapassar a fronteira, para tentar compreender o que se joga além dela, proponho uma experiência de

pensamento.

Suponhamos que nós não tivéssemos inventado ainda a escritura e que extraterrestres tivessem colocado à nossa disposição todos os medias de comunicação

contemporâneos, aí compreendido o suporte dinâmico, interativo, dotado de memória e de capacidade de cálculo autônomo que constitui a tela do computador. Os

extraterrestres nos sugerem inventar um sistema de signos para nos ajudar a pensar e a registrar nossos pensamentos. Nestas circunstâncias, que gênero de escritura

deveríamos colocar em questão? Seria o alfabeto? Certamente não, uma vez que o alfabeto – vogais e consoantes – é, grosso modo, um sistema de notação de som

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e que nós já dispomos de inúmeros aparelhos para registrar e restituir a voz. De que serviria passar anos a aprender o uso de um sistema de notação visual do som,

uma vez que nós já o podemos gravar, reproduzir e, sobretudo, graças ao endereçamento numérico (digital), navegar na matéria sonora à vontade? O alfabeto foi

inventado em uma época em que o gravador não existia. Na Antigüidade e na Idade Média, utilizavam-se os textos alfabéticos quase como fitas magnéticas, uma

vez que as pessoas deveriam ler em voz alta e então ouvir o som para compreender o sentido. Mas como testemunham os ideogramas chineses, a escritura, para ser

notação do pensamento, não é necessariamente um registro fiel do som das palavras.

Como o mostram as cifras árabes e a notação matemática em geral, uma escritura pode ser independente das línguas. Se nos reportarmos à nossa experiência

imaginária, ficará claro que nossos extraterrestres nos sugerem inventar uma escritura, um sistema de signos, uma tecnologia intelectual que, de um lado, não faça

duplo emprego dos medias fundados sobre a captura imediata da imagem e do som e que, de outro lado, explore todas as possibilidades abertas pelas telas gráficas

interativas, ou seja, através das realidades virtuais multimodais em três dimensões. A maioria dos sistemas de signos conhecidos até hoje – alfabético, ideográfico,

mistos ou outros – foram imaginados quando se dispunha apenas de suportes estáticos fixos. Observamos que os multimedias ou hiperdocumentos contemporâneos

contentam-se, muito freqüentemente, em retomar os signos inventados para outros suportes (escrituras diversas, cartas ou esquemas estáticos, imagens de vídeo,

sons gravados) e colocá-los em rede. Eles promovem uma navegação nova em uma reserva semiótica antiga. Eles desterritorializam o estoque de signos já

disponíveis. Nada de espantoso nisto, uma vez que os novos suportes interativos saíram dos laboratórios e têm existência social efetiva há menos de dez anos. Dez

anos! Quase nada em relação à escala de evolução cultural, muito menos tempo do que foi necessário a uma civilização para inventar uma escritura nova e

remanejar, de um só golpe, seu dispositivo de comunicação, de produção e de transmissão de conhecimentos. No entanto, temos já sob os olhos, nos dois extremos

da hierarquia cultural, as premissas da nova escritura.

Do lado da pesquisa científica, visualizam-se sobre as telas os modelos numéricos (digitais) dos fenômenos. As simulações gráficas interativas impuseram-se

como indispensáveis ferramentas da imaginação auxiliada por computador. Nem experiência nem teoria, a simulação – verdadeira industrialização da experiência

do pensamento – abriu uma terceira via à descoberta e à aprendizagem, desconhecida dos epistemólogos. O modelo numérico (digital) o qual projeta sobre a tela

sua imagem dinâmica releva uma forma de escritura, mas certamente não da notação da palavra. Não se ouve o som, mas o modelo mental. E como modelo mental,

ele é interativo, explorável, móvel, modificável, fortemente articulado sobre mil reservas de dados. Na outra extremidade da escala, os videogames oferecem os

modelos interativos a explorar. Eles simulam terrenos de aventuras, universos imaginários. Certo, trata-se de puro divertimento. Mas como não ser tocado pela

coincidência dos extremos: o pesquisador que faz proliferar os cenários, explorando modelos numéricos (digitais), e a criança que joga um videogame

experimentam, ambos, a escritura do futuro, a linguagem de imagens interativas, a ideografia dinâmica que permitirá simular os mundos.

Antes de condenar os videogames, os humanistas, os pedagogos, os criadores, os autores, deveriam valer-se desta nova escritura e produzir com ela obras

dignas desse nome, inventar novas formas de saber e exploração que lhes correspondam, dar-lhes seus títulos de nobreza. Nada seria pior do que uma situação em

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que as pessoas de cultura se crispassem sobre o território do texto alfabético, enquanto a linguagem do futuro seria deixada aos técnicos e comerciantes. A barbárie

nasceu quase sempre da separação. Existe um conhecimento por simulação, muito diferente dos estilos teóricos e hermenêuticos que se apoiavam sobre a escritura

estática. Esses critérios principais não são sem dúvida mais aqueles da verdade crítica, universal e objetiva, mas antes aqueles da potência de bifurcação e de

variação, da capacidade de mutação, de operatividade, de pertinência local, contextual.

Com efeito, os meios de comunicação contemporâneos instauraram uma ecologia de mensagens muito diferente daquela que prevaleceu até a metade do

século XX. Certo, não nos banhamos jamais duas vezes no mesmo rio informacional, mas a densidade das ligações e a rapidez das circulações são tais que os atores

da comunicação não têm maiores dificuldades em dividir o mesmo contexto. Daí, a pressão de universalidade e objetividade diminuiu. Como o tinha pressentido

Mac Luhan, reencontramos, mas sobre uma outra órbita, a um nível de energia superior, certas condições de comunicação que reinaram nas sociedades orais. A

história cruzada de suportes materiais e da relação ao saber poderia ser esquematicamente representada pelas interferências e os cavalgamentos de quatro ideais-

tipos. Primeiro tipo: nas sociedades anteriores à escritura, o saber prático, mítico e ritual foi encarnado pela comunidade viva. Quando um velho morre, é uma

biblioteca que queima. Segundo tipo: com o advento da escritura, o saber é carregado pelo livro, único, indefinidamente interpretável, transcendente, suposto que

contém tudo: a Bíblia, o Corão, os textos sagrados, os clássicos, Confúcio, Aristóteles... Terceiro tipo – desde a prensa até essa manhã: aquela da enciclopédia.

Aqui, o saber não é mais carregado pelo livro, mas pela biblioteca. Ele é estruturado por uma rede de remissões, perseguida talvez, desde sempre, pelo hipertexto.

A desterritorialização da biblioteca a que assistimos hoje não é talvez senão o prelúdio à aparição de um quarto tipo de relação com o conhecimento.

Por uma espécie de retorno em espiral à oralidade das origens, o saber poderia ser de novo tomado pelas coletividades humanas vivas antes que por suportes

separados. Somente esta vez, o portador direto do saber não seria mais a comunidade física e sua memória carnal, mas o cyberspace, a região dos mundos virtuais

por intermédio da qual esta comunidade conheceria seus objetivos e se conheceria ela mesma como inteligência coletiva. Aqui, não visamos mais o futuro do texto

clássico como na primeira parte de meu discurso, nem a invenção de uma nova escritura como na segunda parte, mas, para terminar, o basculamento em direção a

toda uma outra ecologia da comunicação. A reunião dos documentos numerizados (digitalizados), programas inteligentes, de sistemas à base de conhecimentos, de

suportes de simulação e de multimídias interativos, é já virtualmente realizada pela interconexão mundial de memórias informáticas. As mensagens eletrônicas

construíram uma rede de comunicação internacional na qual se podem trocar e comentar toda sorte de dados. Mas como se orientar neste cyberspace onde correm

mensagens e informações de toda ordem? Como se localizar em um fluxo? É preciso tentar desesperadamente fixar a forma do espaço científico, traçar as fronteiras

das disciplinas? É preciso hierarquizar o essencial e o acessório? Mas, segundo qual critério? Para quem e por quanto tempo? Não é preciso antes se resolver a

considerar o conhecimento como um espaço contínuo e flutuante, o mesmo para todos e diferente para cada um? Por que não projetar uma galáxia de mundos

virtuais, exprimindo a diversidade dos saberes humanos, que não estaria organizado a priori, mas refletiria, ao contrário, os percursos e os usos de seus

exploradores?

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Quase vivas, essas cosmopedias(2) seriam estruturadas e reestruturadas, cartografadas e recartografadas em tempo real pela escritura e a leitura coletivas.

Assim, o cyberspace de uma comunidade se reorganizaria automaticamente em função da relação movente que seus membros estabeleceriam com a massa de

conhecimentos disponíveis. Desde que o indivíduo mergulhasse em uma cosmopedia, todo o espaço do saber reordenar-se-ia em torno dele, segundo sua história,

seus interesses, suas interrogações, suas enunciações anteriores. Tudo o que a ele se referisse estaria próximo, ao alcance da mão. O que lhe importasse pouco

distanciar-se-ia. As distâncias aí seriam subjetivas, as proximidades refletiriam as significações em contexto. As cosmopedias do século XXI não fariam mais as

pessoas girarem em torno do saber, mas o saber em torno das pessoas.

O dispositivo das árvores de conhecimentos(3) doravante tecnicamente disponível é a prefiguração deste projeto. Até agora, visaram-se sobretudo realidades

virtuais que simulavam os espaços físicos. Ora, eu falo aqui de produções de espaços simbólicos, que exprimiriam sob forma de mundos virtuais as significações e

o saberes próprios a uma coletividade. Esses espaços virtuais, com a implicação direta e a componente tátil que a palavra sugere, exprimiriam em tempo real os

conhecimentos, os interesses, os atos de comunicação da coletividade. Na perspectiva dos mundos virtuais de significações divididas, a comunicação não é mais

concebida como difusão de mensagens, troca de informação, mas como emergência continuada de uma inteligência coletiva. Não se deve, evidentemente, concebê-

la como uma fusão de inteligências individuais em uma espécie de magma indistinto, mas, ao contrário, como um processo de crescimento, de diferenciação, de

ramificação e de retomada mutual de singularidades.

Os instrumentos numéricos (digitais) oferecem a possibilidade de uma evolução em direção a uma maior democracia em relação ao saber. Mas nada é

garantido. A hora na qual cada um reconhece que o conhecimento é o fundamento do poder, quando se repete por todos os lugares que a capacidade de aprender e

de inventar sustenta o poder econômico, não há talvez outra via para uma renovação da democracia que não imaginar e colocar em obra formas não-excludentes de

relação com o saber. Com este objetivo, a ideografia dinâmica, a cosmopedia, os mundos virtuais de significação dividida, o cyberspace para a inteligência coletiva

são utopias que proponho à discussão crítica. Se nunca tais possibilidades virem o dia, então o Livro, a biblioteca, o imenso corpus proliferante e louco do saber,

cessariam de nos sobrepor e de nos desenganar. A transcendência do texto começaria a declinar. Nós seríamos, talvez, menos irradiados pelo espetáculo mediático.

A imanência do saber à humanidade que o produz e o utiliza, a imanência do povo ao texto, tornar-se-ía mais visível.

Por intermédio dos espaços virtuais que os exprimiriam, os coletivos humanos se jogariam a uma escritura abundante, a uma leitura inventiva deles mesmos e

de seus mundos. Como certos manifestantes desse fim de século gritaram nas ruas “Nós somos o povo”, poderemos então pronunciar uma frase um pouco bizarra,

mas que ressoará de todo seu sentido quando nossos corpos de saber habitarem o cyberspace: “Nós somos o texto.” E nós seremos um povo tanto mais livre quanto

mais nós formos um texto vivo.

_______________ * Tradução de Celso Cândido. Assistência e consultoria de termos técnicos por João Batista. Edição-de-texto por Cássia Corintha Pinto.

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(1) Personificação mitológica da memória. (2) Cf. A Cosmopedia, uma utopia hipervisual (La Cosmopédie, une utopie hypervisuelle) – em colaboração com Michel Authier, in Culture Technique no. 24, abril 1992, consagrado às “maquinas de comunicação”, pp. 236-244.

(3) Se encontrará a descrição disso no livro de Michel Authier e Pierre Lévy, As Arvores do conhecimento, op. Cit.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº45 - ABRIL - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 45

A PROPRIEDADE DAS IDÉIAS

PETER BURKE

PRIMEIRA VERSÃO

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Peter Burke A PROPRIEDADEDAS IDÉIAS NetEstado – Caderno 2 - 25/06/2001

"Dom Quixote em Seu Estúdio", imagem feita por William Lake Price no início da segunda metade do século 19 A lei de propriedade intelectual, às vezes

conhecida como PI, é uma das áreas jurídicas que crescem mais rapidamente nos Estados Unidos, na União Européia e em outros lugares. Há muitos compêndios sobre

o assunto, que parecem ficar defasados ainda mais depressa que outros manuais, devido às rápidas modificações do sistema. A lei costumava se preocupar

especialmente com o uso sem permissão de invenções patenteadas, com as tentativas de se imitar, digamos, calças jeans ou calçados para tênis de marcas famosas,

quando eram fabricados em outros lugares, ou com o que se conhece como "pirataria" - a publicação de edições não autorizadas de livros, como a Enciclopédia

Britânica. Antes que a Britânica fosse lançada na internet, imprimiam-se cópias em Hong Kong que eram vendidas em todo o mundo por preço muito inferior ao da

edição oficial de Chicago. Mais recentemente, essa preocupação se estendeu à cópia ou imitação de software sem permissão, ao patenteamento de organismos

geneticamente modificados e à proteção de bases de dados (a Diretriz de Bases de Dados da União Européia foi aprovada em 1996).

A história da proteção jurídica começou no século 15 na Itália, durante o Renascimento, quando o arquiteto-engenheiro Filippo Brunelleschi pôde registrar uma

de suas invenções, obtendo proteção legal para a mesma. A Lei de Direitos Autorais britânica de 1710, que protege os autores e seus editores contra a pirataria literária,

foi um modelo imitado em outros países, da França aos Estados Unidos. A próxima etapa foi proteger as imagens impressas.

No início do século 19 desenvolveu-se a noção de "direitos de exibição" para evitar apresentações públicas de peças teatrais, que logo se estenderam à música.

Das peças e da música, a idéia do direito autoral passou para as pinturas e depois fotografias, filmes, gravações e vídeos. Os regulamentos nacionais foram

complementados por acordos internacionais, notadamente a Convenção de Berna (1886), a Convenção Universal de Direitos Autorais (Genebra, 1952) e a Convenção

de Estocolmo, que estabeleceu a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (1967).

Para um historiador cultural como eu, a idéia de propriedade imaterial, especialmente a propriedade de idéias e de informação, é ao mesmo tempo fascinante e

difícil. O conceito de PI é mais antigo que as leis que definem e regulamentam o direito autoral. Ele se desenvolveu da idéia de "plágio". Na Roma Antiga, alguém que

roubasse um escravo era conhecido como "plagiarius", mas o poeta Marcial aplicou o termo aos escritores que imitavam seu trabalho.

Em Atenas, Eurípides e Platão foram acusados de roubar as idéias de outros autores e filósofos. No Renascimento, os dramaturgos eram às vezes acusados de

plágio, incluindo Shakespeare, porque as tramas de "Hamlet" e "Romeu e Julieta", por exemplo, foram tiradas de autores mais antigos. No mundo da ciência, já

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extremamente competitivo no final do século 17, os seguidores de Isaac Newton afirmaram que Leibniz plagiou a descoberta do cálculo de Newton, enquanto um

colega inglês acusou o próprio Newton de plágio.

No mundo das ciências humanas, a nota de rodapé começou a ser usada, também no século 17, para que os estudiosos pudessem indicar com maior facilidade

seu débito às idéias ou descobertas de seus antecessores. Eles nem sempre se lembravam ou se lembram de fazê-lo, especialmente quando o débito é realmente

importante, e não é preciso ser um seguidor de Freud para entender por que isso acontece. De qualquer forma, passou a existir um código de conduta sobre as

referências a outros autores. É com base nesse código que os examinadores reprovam estudantes porque copiam trechos de livros e apresentam como "seu trabalho" -e

que às vezes alunos de graduação acusam os professores de publicar "suas" idéias.

Acredito que esse código de conduta é tão necessário e desejável no mundo do ensino quanto no mundo da literatura, para não falar dos tênis ou do software.

Um dos problemas de hoje é como estendê-lo à internet. Do mesmo modo, devo confessar que acho o conceito de propriedade intelectual, assim como o conceito mais

antigo de "originalidade", um tanto problemático, de duas maneiras em particular. Em primeiro lugar há um conflito, se não exatamente uma contradição, entre duas

opiniões comuns: o plágio é mau, mas o intercâmbio cultural é bom. Em outras palavras, existe o problema de traçar a linha entre diferentes tipos de imitações, mais ou

menos criativas.

A idéia de propriedade intelectual parece depender do mito romântico do gênio individual que trabalha sozinho e tira inspiração de seu íntimo. Na prática,

porém, a inovação intelectual, assim como a inovação técnica, é uma espécie de bricolagem. Exercitamos nossas idéias em reação a outras idéias, sejam elas ouvidas

em conversas, lidas em livros ou descobertas na internet. Começamos a inovar não a partir de uma lousa em branco, e sim de algo que já existe, mas não parece

satisfatório, ajustando-o para servir a novas circunstâncias e combinando os elementos existentes de novas maneiras, até que surja algo reconhecidamente diferente,

embora pertença à mesma família de idéias ou objetos.

Os poetas e romancistas são freqüentemente acusados de se apropriar de palavras de poetas e romancistas precedentes, inserindo-as em seus livros e passando-

as adiante como suas. Às vezes a acusação é justa, porque a imitação é próxima ou "servil", e a intenção é iludir o público. Em outras ocasiões, porém, a imitação é

criativa. É extremamente provável que "Hamlet" de Shakespeare seja uma obra muito melhor que a peça perdida sobre o mesmo tema que aparentemente a inspirou.

Muitas vezes é difícil traçar a linha divisória entre imitação criativa e imitação "servil". É fácil operar com um duplo padrão: quando usamos idéias de outras pessoas

estamos praticando imitação criativa, mas, quando elas usam nossas idéias, estão roubando.

O outro problema que devo levantar sobre a propriedade intelectual é o problema da relatividade cultural. A sensação de possuir uma idéia ou mesmo um

poema é muito menos forte ou aguda em certas sociedades do que em outras. A antiga Atenas, assim como a Itália do Renascimento, era uma cultura intensamente

competitiva em que não surpreende encontrar muitas acusações de plágio, mas na Idade Média essas acusações eram raras. Também há uma ligação entre propriedade

intelectual e tecnologia da informação, entre PI e TI. Em muitas culturas orais, da Grécia homérica às ilhas Trobriand, poemas e histórias não são considerados

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propriedade de criadores individuais. Cada contador de histórias faz suas próprias alterações ou acréscimos a um processo que é melhor descrito como criação coletiva

do que individual.

Nas culturas que têm o hábito da escrita, os textos tornam-se mais fixos. Mesmo assim, uma pessoa que copia um texto pode se sentir livre para não apenas

deixar algumas coisas de fora, mas também acrescentar outras. Nessas culturas -na Idade Média européia, por exemplo: não há distinção clara entre um novo livro que

recorre ao conhecimento tradicional e uma cópia de um livro antigo ao qual se acrescentaram novas informações. O grande pensador medieval Tomás de Aquino não se

considerava um filósofo original, mas um homem que adaptou as idéias de Aristóteles a um ambiente cristão.

Invenção?

A situação mudou após a invenção da imprensa por Gutenberg -se é correto descrevê-la como uma invenção, porque os chineses já imprimiam livros mil anos

antes. Graças à imprensa de Gutenberg -se é que era sua, pois algumas pessoas acreditam que ele foi antecipado por um holandês-, passaram a circular centenas de

cópias idênticas de um texto. Nessas circunstâncias as pessoas começaram a desenvolver um sentido mais preciso de propriedade intelectual e a pensar nos livros como

o trabalho de "autores" individuais, mais que a voz de uma tradição anônima. Os impressores começaram a incluir o retrato dos autores em seus livros, incluindo um

retrato de Shakespeare, como se conhecer a aparência de uma pessoa facilitasse a compreensão do que ela havia escrito. O surgimento de um mercado de livros levou

ao crescimento da pirataria literária, à Lei de Direitos Autorais do século 18 e à idéia de propriedade literária a ela associada.

Quais serão as conseqüências da revolução eletrônica de nossa era para a propriedade intelectual? O surgimento dos computadores é muitas vezes comparado

ao surgimento da imprensa, e há muito a dizer sobre essa comparação. Os leitores do século 16 já se preocupavam com a "sobrecarga de informação" resultante da

"inundação" de livros impressos, e muitos livros ganharam índices para facilitar a "localização de informações". Os computadores tornam o furto intelectual mais fácil

que antes, já que basta copiar alguma coisa e "colá-la" em seu próprio texto. Em outros sentidos, porém, o modo como estamos aprendendo a escrever na era eletrônica

se assemelha mais à criação coletiva da era do manuscrito ou mesmo da era oral do que à individualidade da era da impressão.

Quando visualizamos um livro na tela, em vez de ler um texto impresso, podemos interagir com ele mais facilmente, personalizá-lo de acordo com nossas

necessidades. Podemos acrescentar informação ou mesmo trocar o final feliz de um romance por uma conclusão trágica. Se modificarmos um texto dessa maneira, em

que ponto ele se torna "nosso"? Agora somos todos plagiadores? O termo "plágio" se tornará obsoleto? Dada a complexidade de nossa sociedade, a crescente

importância do mercado de idéias e de informação, e o número de advogados que se especializam em PI, é difícil imaginar grandes mudanças a curto prazo. Em um ou

dois séculos, talvez. Enquanto isso, não roubem minhas idéias!

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº46 - ABRIL - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

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ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

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O TÉDIO MORTAL DA MODERNIDADE

ROBERT KURZ

PRIMEIRA VERSÃO

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Robert Kurz

Sociólogo e ensaísta político, co-editor da revista alemã Krisis

Folha de São Paulo Caderno Mais! - página 10 – 28/11/1999 O TÉDIO MORTAL DA MODERNIDADE

Quem quiser romper o terror da economia deve transgredir também o código cultural do capitalismo

Será que ainda pode haver objetivos culturais para o século 21? Apesar da crise social do globo, ou talvez justamente por causa dela, não se trata mais, nesta

virada do século, da conquista de novos horizontes. O poço de desejos da infindável modernização, é bem verdade, continua a receber suas moedinhas, mas

pouquíssimos são os que ainda lhe dão crédito. Para começar algo novo, necessário seria proceder a um apaixonado debate sobre os projetos sociais a que se aspira.

Mas as paixões sociais, políticas e culturais parecem extintas, os discursos da mídia arrastam-se a custo, pasmacentos. Nem no trato social nem na relação com a

natureza são formulados novos desafios. A idéia de uma grande "tarefa para a humanidade" soa não só antiquada, mas também ingênua e até fora de cabimento.

O que hoje se louva como novo e promissor não é mais um conteúdo ou um fim qualquer, mas a simples forma ou o simples meio, o aparato despido de todo

espírito. A Internet é o melhor exemplo para tanto. Quanto mais rapidamente evolui a tecnologia da comunicação, menos conteúdo há que valha a pena ser transmitido.

Se o meio tecnológico rouba a posição ao conteúdo, a própria "razão instrumental" conduz ao absurdo. No estágio final desse processo, seres humanos munidos de

perfeitos meios de comunicação nada mais terão a dizer.

Essa ilimitada falta de conteúdo e objetivo anuncia o esgotamento intelectual e cultural do sistema social dominante. Tal como o homem só pode se constituir

como indivíduo dentro da sociedade, como indivíduo ele só pode cultivar conteúdos e objetivos sociais. O indivíduo voltado exclusivamente a si mesmo é por força

vazio, incapaz de forjar conteúdos próprios; seus projetos se esvaem na trivialidade fútil. No fim do século 20 a modernidade mergulhou num tédio mortal.

Nesse sentido, no próprio aspecto cultural a microeconomia extremista, a atomização social e a perda de solidariedade já tiraram sua desforra do capitalismo

porque se apartam umas das outras, as mônadas sociais já não logram se impor objetivos comunitários, e porque já não têm uma relação de conteúdo entre si, apartam-

se cada vez mais umas das outras. Uma sociedade incapaz de desafios comuns, todavia, está condenada ao definhamento.

Para poder formular um objetivo, um projeto comunitário, urgente é um "rumo" cultural, uma orientação espaço-temporal da sociedade. Essa orientação não

repousa só na técnica ou na economia, mas também na psique social, na imaginação comunitária, na relação entre os sexos e na "autoconsciência", para não falar na

relação com a história. Claro que o capitalismo moderno possui também um tal rumo simbólico-cultural. Mas, como sistema mundial que chegou a seus limites, agora

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ele já não consegue mais entrever objetivo nenhum e perde assim toda a orientação no espaço e no tempo. A tarefa propagada sem trégua por toda a mídia- de se

conformar ao processo cego do mercado mundial não representa um objetivo substancial de reconfiguração ativa, um "projeto humano" positivo; antes é a mera

apropriação mecânica de uma estrutura que há tempos se fez independente, que a priori converte todo o conteúdo e assim todo o objetivo ou projeto ao status da

indiferença. Seja lá o que for, nada goza de sentido autônomo, antes só fornece pasto ao imutável processo de valorização do capital.

Que a chamada pós-modernidade, nesse ponto decisivo, não haja superado a modernidade nem criado nada de novo já se revela na falta de conteúdo de seu

próprio conceito, que só remete a um "futuro" vazio. A pós-modernidade, além de não fornecer nenhuma orientação cultural, erige a falta de orientação em virtude. O

sistema produtor de mercadorias, petrificado numa pressa sem alvo, tem de sobreviver a seu estado de esgotamento cultural a fim de seguir rodando por inércia,

eternidade afora. A teoria pós-moderna é de certa maneira a caricatura de um guia, na medida em que aponta em todas as direções ao mesmo tempo, sem fixar nenhum

sentido.

É fácil ver que a nova orientação simbólico-cultural e os novos objetivos culturais só podem ser plasmados pela crítica radical da ordem social esgotada; e a

crítica radical é justamente o que a pós-modernidade descarta como impensável. Ora, a crítica socialista da sociedade, com o seu objeto, só se esgotou, de fato, porque

ela própria era a quintessência do capitalismo. Por constituir o capitalismo estatal do Leste um mero subproduto do capitalismo privado do Ocidente, com este também

repartiu a sua imaginação cultural e o seu código simbólico. A crítica social dos séculos 19 e 20 se deteve no limiar do moderno sistema produtor de mercadorias; ela

própria era uma herdeira da "razão instrumental", pela qual acabou sendo presa e engolida.

Se uma nova orientação cultural só há de ser obtida mediante uma crítica radical da sociedade, o inverso é, portanto, igualmente válido: que uma tal crítica da

ordem reinante no século 21 só pode ser formulada a par de uma codificação simbólica essencialmente diversa do sentimento espaço-temporal. Quem quiser romper o

"terror da economia" deve também infringir com plena consciência o código simbólico do capitalismo; a crítica da economia política só pode ser levada a cabo se for

acompanhada de uma crítica da ordem simbólica e do rumo cultural inerente a este sistema, ou seja, se desviar a atenção e as esperanças para outra direção e sobretudo

revolucionar a "imagem do mundo".

Até agora tal problema foi tão pouco tematizado, com fundamento e abrangência, quanto a crítica das categorias econômicas; é por isso que a esquerda se

encontra outra vez na defensiva, embora o esgotamento do mundo capitalista salte à luz com nitidez tanto maior. Em que consiste, enfim, a orientação cultural agora

obsoleta do capitalismo? No eixo temporal, ela é sem dúvida uma dinâmica voltada unilateralmente para o futuro. A modernização é sinônimo de depreciação

permanente do passado, da história. "O novo", a moda, o desenvolvimento econômico infindo, a perpétua mobilidade como um valor em si mesmo vigoram

independentemente de sua qualidade. O conceito moderno de história, tal como a filosofia do iluminismo o forjou, é determinado por esse código, no qual a

humanidade aparece de certo modo como um foguete em vôo que percorre sua órbita num movimento histórico ascendente, mecânico. Nessa inquietude vã, o passado

surge apenas como restos calcinados do presente, e o presente, como restos do futuro.

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A suposta imagem reacionária antagônica, a de uma idealização imaginária do passado, não é mais que a outra face da mesma moeda. Nela não se apreende o

valor próprio das culturas passadas nem o aspecto destrutivo da dinâmica capitalista; antes é sempre mistificada, projetada no passado, a relação capitalista de domínio

impessoal. É seu próprio passado que o capitalismo idealiza nas modernas ideologias conservadoras e reacionárias, com a intenção de banir as consequências

catastróficas de sua dinâmica cega e reprimir seus antagonismos sociais internos. Quanto a essa idealização, trata-se na verdade de um modo diverso de depreciar a

história. Pessimismo cultural reacionário e ideologia liberal progressista representam os dois pólos culturais do mesmo repúdio capitalista à história, que aliás são

intercambiáveis: o pensamento fascista contém ambos os aspectos em igual dosagem.

Na pós-modernidade, essa polaridade de "progresso" e "reação" imanente ao capitalismo caiu por terra, o que de bom grado se festeja como a superação do

antagonismo entre "esquerda" e "direita", mas que, na verdade, ao lado do esgotamento cultural, anuncia também o esgotamento político e ideológico do capitalismo. O

"progresso" burguês caiu num movimento circular, vazio de sentido, com o que se identificou a "reação". A depreciação do passado só ocorre agora de uma única e

mesma maneira, transformando também a história, as culturas, as idéias e as relações passadas em mercadorias que podem ser consumidas -supõe-se- a bel-prazer.

Uma tal contemporaneidade calculada, que embebe todo o espaço da história humana na luz fria do mercado e suprime todas as diferenciações quanto mais se

fala de "diferença", empresta à cultura comercial pós-moderna uma semelhança aflitiva com a ação de macacos que brincassem numa biblioteca e, aos guinchos,

fizessem uma embrulhada com os livros.

Uma nova orientação da cultura, ligada à crítica radical do capitalismo, só pode consistir em dar um basta à permanente depreciação da história, não no sentido

da idealização de um passado qualquer, nem como seu consumo, mas como busca crítica dos rastros que o capitalismo apagou sistematicamente. Trata-se de dar a

conhecer a história do disciplinamento moderno e do adestramento humano, a transformação da vida em repositório de imperativos econômicos, a fim de pôr em xeque

a aparente naturalidade desse modo de vida. Hoje, ao serem questionados sobre os seus deslizes passados e as respectivas causas, qualquer empresário, político ou

jogador de futebol responde sempre com a frase estereotipada: "O que passou, passou". A inversão dessa perspectiva seria, de certa forma, uma "crítica do capitalismo

voltada para trás", uma orientação simbólica com a retrospectiva crítica como norte, uma recusa da lei capitalista do movimento, um "tiro no relógio" (Walter

Benjamin).

Para conquistar um outro futuro, o passado soterrado é paradoxalmente mais importante que o futuro esvaziado. O progresso emancipatório só pode ser salvo

caso o pensamento crítico se emancipe do código simbólico da filosofia iluminista burguesa, isto é, de um conceito de história que implique uma orientação futura

permanente, "automática", guiada pela "mão invisível" da economia. Hoje é progressista estacar o passo e voltar-se para trás, a fim de olhar em retrospecto as ruínas da

modernidade. Trata-se, portanto, de uma nova compreensão da história, uma vira-volta da imagem histórica mundial. A sociedade só pode voltar a si quando nutrir

certa paixão por uma arqueologia radicalmente crítica da modernidade esgotada.

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Uma tal inversão de perspectiva traria também conseqüências para a orientação psíquica. Isso porque a guinada crítico-emancipatória para trás, a fim de

assegurar-se no passado, significa ainda uma mudança na relação simbólico-cultural entre "interior" e "exterior". No capitalismo, o ser humano é "guiado

externamente" pelos critérios do prestígio e da bela aparência, tal como são sugeridos pela publicidade, pelas embalagens, pela autopromoção.

Também nesse particular, entretanto, a inversão do rumo cultural não favoreceria o reverso reacionário da medalha, uma mistificadora "vida íntima" ou uma

"contemplação esotérica" apta a se refugiar num imaginário "eu", ao abrigo das contradições sociais. Ao contrário, a "introspecção" emancipatória consistiria em

revelar a história recalcada e a falsa objetivação das coerções capitalistas também na psique e na linguagem de certa forma, como uma "arqueologia íntima" da

modernização, tanto no plano pessoal quanto no socio-psicológico, a fim de tornar patente o processo da "introspecção" psíquica dessas coerções. A psicanálise, que os

precipitados diziam morta, e a crítica linguística feminista encerram inesgotáveis possibilidades para tal recodificação.

Finalmente, a própria orientação no espaço dessa radical mudança simbólico-cultural de paradigma não pode passar em brancas nuvens. Tal como a dinâmica

capitalista é temporalmente cega ao futuro, espacialmente ela é orientada "para cima". Já na virada do século passado, o poeta futurista Marinetti desejaria que o

automóvel decolasse como um foguete; e poucas décadas mais tarde um homem pousou, de fato, na Lua. Que essa imaginação "alteada" do capitalismo se defina por

padrões masculinos já se revela, tocando as raias do ridículo, no próprio formato do foguete como símbolo do falo. A orientação pelo espaço aéreo e sideral, que não

por acaso se funde com traços militares, contém a imagem de uma sexualidade masculina que de certo modo "alçou vôo".

Mas também esse código simbólico há muito se esgotou. A viagem espacial tornou-se tão monótona quanto o futuro vazio do mercado. Nos planetas em alça

de mira só se acham desertos físico-químicos. E mesmo sua exploração capitalista como fonte de recursos permanece ilusória, pois os custos de transporte sorveriam as

cifras estratosféricas do possível butim. A tecnologia de combustíveis fósseis em que se baseia o modo de produção capitalista é primitiva demais para uma "aurora no

espaço". O cabo Canaveral e Baikonur são hoje ruínas da civilização masculina orientada pela produção de mercadorias, apenas ainda não se deram conta disso.

Uma radical recodificação simbólica da relação com o espaço trará a vista "para baixo" (pois não é só no sentido arqueológico que nossa história se encontra

sob nossos pés), com vistas a desafios e exigências tecnológicas da reprodução social. Além do interior da Terra, boa parte da superfície terrestre ainda resta

inexplorada, sejam o subsolo ou as profundezas oceânicas. Que o dispêndio de recursos e de aptidões para um tal propósito seja mínimo em comparação às viagens

aéreas e espaciais revela a profunda dependência do desenvolvimento técnico-científico por códigos simbólicos obsoletos do capitalismo. Se o ser humano é um ente

cultural, terá ele de buscar uma nova orientação cultural no espaço, no tempo e na psique; e, no século 21, talvez essa guinada revolucione tanto a sociedade quanto a

crise social e econômica

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº47 - ABRIL - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 47

A EMERGÊNCIA DO CYBERSPACE E AS MUTAÇÕES CULTURAIS

PIERRE LEVY

PRIMEIRA VERSÃO

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PIERRE LÉVY A EMERGÊNCIA DO CYBERSPACE E AS MUTAÇÕES

CULTURAIS

Palestra realizada no Festival Usina de Arte e Cultura, promovido pela Prefeitura Municipal de Porto

Alegre, em Outubro, 1994. Tradução Suely Rolnik. Revisão da tradução transcrita João Batista

Francisco e Carmem Oliveira.

O que seria o espaço cibernético? O espaço cibernético é um terreno onde está funcionando a humanidade, hoje. É um novo espaço de interação humana que

já tem uma importância enorme sobretudo no plano econômico e científico e, certamente, essa importância vai ampliar-se e vai estender-se a vários outros campos,

como por exemplo na Pedagogia, Estética, Arte e Política. O espaço cibernético é a instauração de uma rede de todas as memórias informatizadas e de todos os

computadores. Atualmente, temos cada vez mais conservados, sob forma numérica e registrados na memória do computador, textos, imagens e músicas produzidos

por computador. Então, a esfera da comunicação e da informação está se transformando numa esfera informatizada. O interesse é pensar qual o significado cultural

disso. Com o espaço cibernético temos uma ferramenta de comunicação muito diferente da mídia clássica, porque é nesse espaço que todas as mensagens se tornam

interativas, ganham uma plasticidade e têm uma possibilidade de metamorfose imediata. E aí, a partir do momento que se tem o acesso a isso, cada pessoa pode se

tornar uma emissora, o que obviamente não é o caso de uma mídia como a imprensa ou a televisão. Então, daria para a gente fazer uma tipologia rápida dos

dispositivos de comunicação onde há um tipo em que não há interatividade porque tem um centro emissor e uma multiplicidade de receptores. Esse primeiro

dispositivo chama-se Um e Todo.

Uma outra versão é o tipo Um e Um, que não tem uma emergência do coletivo da comunicação, como é o caso do telefone. O espaço cibernético introduz o

terceiro tipo, com um novo tipo de interação que a gente poderia chamar de Todos e Todos, que é a emergência de uma inteligência coletiva. Do interior do espaço

cibernético encontramos uma variedade de ferramentas, de dispositivos, de tecnologias intelectuais. Por exemplo, um aspecto que se desenvolve cada vez mais,

nesse momento, é a inteligência artificial. Há também os hipertextos, os multimídia interativos, simulações, mundos virtuais, dispositivos de tele-presença. É

preciso não esquecer, por outro lado, que a própria mídia hoje está numa hibridação com o espaço cibernético, onde ela se vê obrigada a se abrir para isto... Mas, o

que há de comum entre todas essas tecnologias, entre todas essas formas de mensagens? O que implica uma mensagem numerada e os outros tipos de mensagens?

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101

Uma mensagem numeralizada se caracteriza pelo fato de que se pode controlar essa estrutura de perto e de maneira muito fina. Então, os bits da informática são

como gens na genética, isto é, a microestrutura. Fazem parte de um conjunto de tecnologia e vão em direção a um controle molecular de seu objeto, o que dá uma

fluidez a todas essas mensagens e lhes dá também a possibilidade de uma circulação muito rápida. O que há em comum em todas as bases nos bancos de dados do

espaço cibernético? Não são as mensagens fixas, mas um potencial de mensagens e que, dependendo de quem vai utilizá-los, vai para uma direção ou outra. O que

acontece é que, com isso, se recupera a possibilidade de ligação com um contexto que tinha desaparecido com a escrita e com todos os suportes estáticos de

formação. É possível através disso reencontrar uma comunicação viva da oralidade, só que, evidentemente, de uma maneira infinitamente mais ampliada e

complexificada. Por exemplo, é isto que observamos com o que acontece, hoje, com o hipertexto ou multimídia interativa. O importante é que a informação esteja

sob forma de rede e não tanto a mensagem porque esta já existia numa enciclopédia ou dicionário.

Portanto, a verdadeira mutação se passa noutros aspectos. Em primeiro lugar, não é mais o leitor que vai se deslocar diante do texto, mas é o texto que, como

um caleidoscópio, vai se dobrar e se desdobrar diferentemente diante de cada leitor. O segundo ponto é que tanto a escrita como a leitura vão mudar o seu papel,

porque o próprio leitor vai participar da mensagem na medida em que ele não vai estar apenas ligado a um aspecto. O leitor passa a participar da própria redação do

texto à medida que ele não está mais na posição passiva diante de um texto estático, uma vez que ele tem diante de si não uma mensagem estática, mas um

potencial de mensagem. Então, o espaço cibernético introduz a idéia de que toda leitura é uma escrita em potencial. O terceiro ponto que, sem dúvida, é o mais

importante, é que estamos assistindo uma desterritorialização dos textos, das mensagens, enfim, de tudo o que é documento: tanto o texto como mensagem se

tornam uma matéria.

Assim como se diz “tem areia”, “tem água” se diz “tem textos”, “tem mensagens” pois eles se tornam matérias como se fossem fluxos justamente porque o

suporte deles não é fixo, porque no seio do espaço cibernético qualquer elemento tem a possibilidade de interação com qualquer outro elemento presente. Então,

isso não é uma utopia daqueles que experimentaram, conhecem e participam da Internet. É como se todos os textos fizessem parte de um texto, só que é o

hipertexto, um autor coletivo e que está em transformação permanente. É como se todas as músicas passassem a fazer parte de uma mesma polifonia virtual e

potencial, como se todas as músicas fizessem parte de uma só música, também ela virtual e potencial. Acredito que o texto não vai absolutamente desaparecer com

a informatização. O que vai desaparecer é a noção de página, porque na etimologia a página se refere a um campo e um campo com proprietário, com fronteiras

delimitadas . Esta página com o campo circunscrito está desaparecendo uma vez que os elementos que a compõem navegam nos fluxos.

O espaço cibernético envolve, portanto, dois fenômenos que estão acontecendo ao mesmo tempo: a numerizaqção que implica essa plasticidade de potencial

de todas as mensagens seria o primeiro aspecto e o fato de que as mensagens potenciais são postas em rede e fluxo é o segundo fenômeno.

Desta forma, o espaço cibernético está se tornando um lugar essencial, um futuro próximo de comunicação humana e de pensamento humano. O que isso vai

se tornar em termos culturais e políticos permanece completamente em aberto, mas, com certeza, dá para ver que isso vai ter implicações muito importantes no

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campo da educação, do trabalho, da vida política, das questões dos direitos, como por exemplo, no direito de propriedade. Hoje não se pode ter um projeto técnico

se você não tiver uma visão cultural organizadora desse projeto, assim como não se pode ter um projeto cultural sem incluir a técnica. Por isto, é difícil estar

distinguindo essas dimensões sociais, culturais e técnicas.

O espaço cibernético se encontra também na origem de uma nova arquitetura, de um novo urbanismo. Poderíamos até dizer de uma nova política porque se

trata de uma nova pólis que está se constituindo. É assim que pedagogos, artistas, psicólogos, etc, que geralmente não se interessavam por fenômenos técnicos tem

passado a se preocupar com estes problemas. O novo equipamento coletivo de sensibilidade, de inteligência, de relação social está, de fato, nascendo em silêncio.

Trata-se de um equipamento coletivo de subjetivação. Para falar do critério de escolha em relação a essa questão da técnica, o critério que este novo equipamento

propõe é um critério de escolha ética e política.

O interessante nas possibilidades que se abrem com a emergência de uma nova inteligência a partir disto é que se trata de uma inteligência coletiva, ou seja,

estamos na direção de uma potencialização da sensibilidade, da percepção, do pensamento, da imaginação e isso tudo graças a essas novas formas de cooperação e

coordenação em tempo real. Trata-se de equipamentos que podem ajudar o aprendizado e a aquisição de saberes. Então, o inimigo necessário de ser evitado é o

isolamento, a separação. É preciso pensar em equipamentos de comunicação que, ao invés de fazer uma difusão como a mídia tradicional (difusão de uma

mensagem por toda parte), faz com que esses dispositivos estejam à escuta e restituam toda a diversidade do presente no social. Uma outra coisa que é possível

explorar é o fato de que estes equipamentos favorecem a emergência da autonomia, tanto de indivíduos quanto de grupos, onde o inimigo é a dependência.

É preciso imaginar, então, que a partir desses sistemas de comunicação quanto mais eles sejam utilizados mais eles se aperfeiçoam, se desenvolvem, ficam

melhores. O que acontece hoje é o contrário: as informações vão se degladiando e cada um fica perdido nessa massa de informações. Com as redes, podemos

pensar equipamentos de tecnologia que possam permitir que cada um se beneficie dessa inteligência.

Eu vou colocar alguns exemplos em campos diferentes, como a semiótica, epistemologia, artes e política. Começando pela semiótica eu vou propor um

exercício de pensamento. Suponhamos que a gente dispõe de todos esses equipamentos atuais mas não se tem uma escrita alfabética, por exemplo. Vamos imaginar

que fosse preciso inventar uma escrita não dispondo da escrita alfabética e sim dispondo de todos esses equipamentos. Seria uma escrita alfabética o que

inventaríamos? Eu acho que não, porque a escrita alfabética serve par anotar o som. Hoje, a gente tem infinitos meios de gravar o som e não precisamos mais de

uma escrita alfabética. Mas há também escritas que vão colocar conceitos ou idéias como é o caso dos ideogramas chineses ou as escritas matemáticas.

Quando o alfabeto foi inventado só se dispunha de suportes fixos e, no entanto, agora dispomos de suportes de outro tipo. Eu acho que a gente está longe de

ter explorado o que essa variedade de novos suportes permite. O que se costuma fazer é produzir imagens na multimídia que tem a ver com o suporte estático

anterior. Hoje, por outro lado, se poderia estar inventando o que se chama de ideografia dinâmica, que explora completamente a inteligência e o caráter dinâmicos

desses novos suportes, constituindo-se numa introdução a modelos mentais com toda sua plasticidade e dinamismo. Isso se encontra nos jogos de vídeo, que é o

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começo de uma linguagem animada. Mesmo quando o conteúdo cultural dos jogos de vídeo não seja extraordinário há, sem dúvida, um potencial muito

interessante. A partir desse modelo a gente vê surgir novas formas de conhecimento por simulação que é muito diferente do estilo teórico hermenêutico que se

apóia no estático, na verdade universal e em critérios de objetividade. Os novos critérios têm, ao contrário, a capacidade de mudar em função do contexto local.

Quanto ao aspecto epistemológico algo interessante também acontece. Em linhas gerais, podemos dizer que a humanidade desenvolveu quatro ideais ou tipos de

relação com o saber. Antes da escrita, o saber era ritual, místico e encarnado por uma comunidade viva. Tem um ditado africano que diz que quando um velho

morre é uma biblioteca que pega fogo, que se incendia. Temos um segundo tipo ideal de relação com o saber que é o ligado à escrita, o saber trazido pelo livro. Em

geral é um livro único suposto a conter tudo, como por exemplo, a Bíblia. Aí a figura do conhecimento não é mais o velho, mas o comentador, o intérprete.

Com o advento da imprensa, há um novo tipo ideal que não é mais o livro mas a biblioteca. Como vocês sabem as enciclopédias do século XVIII, na França,

já eram verdadeiras bibliotecas porque eram volumes e mais volumes. Cada palavra, cada tema remetia um a outro e, assim, já era uma espécie de hipertexto, cuja

navegação na biblioteca já era muito diferente do que o livro. Do comentador e intérprete passamos à figura do sábio ou erudito.

Hoje, entretanto, estamos assistindo à desterritorialização da biblioteca. É como se estivéssemos voltando às origens, onde o portador do saber era a

comunidade viva, claro que de uma forma muito mais ampliada e diferenciada. Atualmente, o hipertexto não consegue conter a velocidade com que circula a

informação. Como a informação é fluxo é como se o coletivo novamente fosse portador do conhecimento.

Então, o novo portador do saber no nosso novo horizonte seria a própria humanidade. Estamos falando não da humanidade no sentido genérico mas de uma

humanidade viva enquanto espaço cibernético. O espaço cibernético aqui é entendido como esse espaço virtual onde a comunidade conhece a si mesma e conhece

seu próprio mundo, porque são duas faces da mesma coisa. Não se trata mais de uma enciclopédia mas de uma espécie de plasmopédia, isto é, um espaço de saber

vivo e dinâmico (para quem teve a oportunidade de conhecer o projeto das árvores de conhecimento que eu apresentei ontem, é justamente essa perspectiva que se

encontra aí exemplificada).

Eu vou concluir com algumas observações no campo político. A configuração dominante da esfera política hoje é a mídia com essa estrutura triangular -

mídia, sondagens, eleição - onde cada ponto reforça ao outro. As pesquisas reforçam a mídia, a mídia reforça as pesquisas, que reforça a eleição e por aí vai, numa

estrutura fechada a três. É uma espécie de estrutura em estrêla onde se tem um centro, que parte lá de cima e depois uma periferia na base.

Desta forma, as questões que são colocadas nestas pesquisas para a eleição já chegam prontas e aquele que responde tem a possibilidade de pensar e se

colocar, dizendo sim ou não. O outro elemento do triângulo é o das eleições, onde eu voto como representante, onde cada pessoa que vota participa de uma balança

e o voto vai ajudar a balança a pender para um ou outro lado. O que se faz, nestes casos, é utilizar uma espécie de poder de massa para que uma ou outra pessoa, um

ou outro programa chegue ao poder. Para isto, não se utiliza praticamente nada no sentido de trabalhar a imaginação e a inteligência das pessoas.

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Então, não se tem o majoritário mas, por outro lado, a singularidade é algo que é apagada. Hoje, com a emergência do espaço cibernético podemos imaginar a

emergência da imaginação e da inteligência das pessoas de uma outra forma, onde as pessoas não vão estar separadas entre si e ligadas todas em relação ao centro,

mas onde serão multiplicadas as conexões transversais entre eles. E, nesse espaço de elaboração e decisão política, poderão se constituir maiorias e minorias

diferentes para cada problema: cada problema vai constituir uma maioria e uma minoria. Aí, o pertencimento político não vai remeter a uma categoria massiva, a

priori. Ele vai dizer respeito a uma configuração singular dentro de uma geografia de problemas limitada e construída permanentemente pela própria coletividade.

Temos, portanto os meios de restauração de uma democracia direta e em grande escala, porque, até agora, a democracia direta só podia funcionar em pequena

escala, fazendo com que para milhares de pessoas espalhadas em territórios mais distantes não fossem envolvidas. Com o uso de novos instrumentos técnicos dá para

fazer uma democracia direta distinta do sistema de representação (cuja organização política remete a um centro de decisão e que está completamente obsoleta na

medida em que é tecnicamente obsoleto que as decisões sejam centralizadas).

Page 105: Volume III

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº48 - ABRIL - PORTO VELHO, 2002

VOLUME III

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 48

INDÚSTRIA CULTURAL

NEUSA DOS SANTOS TEZZARI

PRIMEIRA VERSÃO

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Neusa dos Santos Tezzari INDÚSTRIA CULTURAL

Professora de Língua Portuguesa – UFRO

“ ...existe uma imensa esperança, não porém para nós...” (Adorno) Fomos criados para sermos irmãos de nossos irmãos, e mesmo assim olhe lá. Somos irmãos de nossos irmãos e de nossos amigos, os demais são sócios. Indiferentes ou inimigos, competidores. Se eu quiser se irmão de um favelado eu acho que ele me cospe na cara.” (Drummond)

Para Theodor W. Adorno, o ensaio permite a fluição do pensamento e isso pode explicar sua preferência por esta forma de expressão. Sobre o ensaio,

escreveu: “seus conceitos não se constroem a partir de algo primeiro e nem se arredondam em algo terminal”.(1958) Coerente com o seu pensamento e à vontade

com as possibilidades que tal tipo de texto oferece, pretende-se que este artigo se estruture como um ensaio; que reflita sobre as formulações deste pensador

importante do nosso século, a partir da leitura da obra “Educação e emancipação”, relacionando seus escritos com os de outros pensadores contemporâneos, tais

como Marshall McLuhan e Walter Benjamin, enfatizando-se a busca do entendimento do conceito “Indústria Cultural” formulado por ADORNO e HORKHEIMER

e as implicações decorrentes deste entendimento.

Em “Educação e emancipação”, ADORNO denuncia a presença de uma “consciência coisificada” (São características da consciência coisificada, a ausência

de afeto nas relações, o pensamento através de categorias prévias, o uso de literatura secundária como forma de não enfrentamento, a relação com as pessoas como

se elas fossem coisas, clichês,etc.)tanto na escola quanto nos professores e aponta como responsável por tal presença, os conteúdos fragmentários veiculados na

escola que constituem, segundo ele, uma colcha de retalhos de informações desconexas, que são decoradas e que não permitem a reflexão.

Há uma atitude de defesa em relação ao devir presente na consciência coisificada que torna as pessoas indiferentes umas às outras e que as condena à

menoridade, no sentido postulado por Kant. Entre os possíveis caminhos que propiciariam a referida fuga, ADORNO aponta a experiência, não no sentido que tem

nas Ciências Naturais, mas como a auto-reflexão mediada pela relação com o objeto, na qual o sujeito se constitui na sua objetividade; o rompimento com a

educação que apenas se apropria de conteúdos e os retransmite, sem se abrir ao novo, à produção do saber.

A aceitação de que não existem modelos que garantem a formação cultural e de que esta só ocorre a partir do esforço espontâneo e do interesse,

desconectados desta estrutura formal escolar: do cumprimento de horário, da assiduidade do recebimento de um diploma, etc.

Theodor Wiesengrund-Adorno (1903-1969) e Walter Benjamin (1892-1940) fizeram parte de um grupo de pensadores que produziram obras de tal

importância a ponto de constituírem uma corrente de pensamento posteriormente chamada Teoria Crítica da Escola de Frankfurt.

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ISSN 1517 - 5421 107

A fundação do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, em 1924, reuniu autores- entre os quais mereceram destaque, além de ADORNO e BENJAMIN,

Max Horkheimer e Jürgen Habermas, que produziram reflexões críticas sobre a economia, a sociedade e a cultura do seu tempo, a maioria veiculada nas páginas da

Revista de Pesquisa Social- na qual pensadores como Herbert Marcuse e Erich Fromm publicaram também os seus trabalhos.

Desconectado deste contexto, Marshall McLuhan (1921-1980) é contemplado, neste ensaio, em função de ele também refletir sobre a influência da

tecnologia sobre as formas de pensamento, só que em outras bases, o que permite a contraposição das idéias de cada um: de um lado os europeus que consideram

haver, nos meios, aspectos que propiciam a desagregação cultural, que contribuem para a crise social; de outro, o canadense que postula a cultura de massa, no

sentido de ser acessível a todos e que até a idolatra.

Para ADORNO, cultura é aquilo que transcende o que a civilização produz. Mas, neste século, este sentido legítimo é transgredido e a cultura

passa a se subordinar às leis de equivalência, vira produto, regride à civilização que deveria transcender e se torna consumível.

É dentro deste contexto que ele formula o conceito de Indústria Cultural que ocorre, pela primeira vez, em 1947, na obra Dialética do Iluminismo,

escrita em parceria com Horkheimer, na qual defende que o Iluminismo, tido como um esforço consciente de valorização da razão e abandono de

preconceitos tradicionais que almeja o progresso da humanidade, em todos os aspectos e, mais ainda, na liberdade de pensamento, não atingiu seus

objetivos nem se manteve fiel aos seus princípios; ao contrário, contribuiu para o que eles chamaram de “antiiluminismo”: o aparecimento de uma nova

forma de mistificação bancada agora pela ciência e pela tecnologia.

Indústria Cultural é a exploração, com fins comerciais e econômicos, de bens considerados culturais, não só daqueles criados unicamente para os

fins citados, mas também daqueles genuinamente culturais, como por exemplo, a festa dos bois bumbás de Parintins (AM), que se descaracterizou a partir

da exploração econômica que a transformou numa indústria.

A Indústria Cultural é a indústria da cultura, indústria stricto sensu. Nela, há classificação e padronização dos consumidores através das distinções entre

filmes A e B, por exemplo, as quais não estão calcadas na realidade – são artificiais: prevê-se, para todos, um tipo de arte a ser “consumida”, assim, ninguém escapa.

A publicidade é, hoje, um exemplo forte da Indústria Cultural porque ambas estão fundidas. A função de um publicitário é fazer com que o consumidor

compre aquilo que ele não precisa com o dinheiro que ele não tem; ele, de fato, consegue cumpri-la: quando produz uma propaganda, já sabe qual público atingir

porque pesquisou, anteriormente, suas necessidades( que foram construídas por ele próprio). Deste modo, o consumidor é o objeto da Indústria Cultural.

A Indústria Cultural extermina o que é particular, nega a particularização, seja a cor, a composição, a arquitetura.

Page 108: Volume III

ISSN 1517 - 5421 108

Em 1983, era comum encontrar jovens na cidade de Porto Velho- RO, usando superposição de roupas sob o calor escaldante do Agosto nortista,

especialmente jaqueta jeans sobre camiseta– a única explicação plausível era a influência da moda do “sul-maravilha” divulgada na mídia ( lá, em Agosto, o frio

justificava a superposição).

Neste comportamento, é claramente percebido o papel da escola, que tem produzido indivíduos menos resistentes à Indústria Cultural que aqueles que não tiveram

instrução formal, negando-lhes a autonomia (Para Kant, autonomia é agir de tal maneira que se essa maneira se tornar universal, todo mundo sobreviverá, ou seja, é

considerar a implicação que essa ação teria para a sociedade se fosse universalizada; deriva do imperativo categórico: está presente tanto o interesse do individual

quanto o da coletividade

), isto porque ela não consegue romper com o cotidiano, não diferencia o aluno e indiferenciar é dominar.

Com isso, não se permite atenuar a frieza e a violência que se perpetuam no consumo da produção da Indústria Cultural, ao contrário, as acentuam e , tal qual a

Indústria Cultural, a escola só admite a liberdade do sempre igual, por isso ela é medíocre.

Mas, o que marca o ser humano é a quebra da repetição; é no imponderável e no imprevisível que se dá a liberdade humana. Ao negar esta quebra, a

Indústria Cultural infantiliza o ser humano, fortalece o impedimento de ele crescer, pois o homem, para a Indústria Cultural, é substituível, é um exemplar, é um ser

genérico. Sendo assim, a Indústria Cultural nega a essência, pois só há essência na diferença. O outro me revela uma possibilidade de eu ser e vice-versa.

Atualmente, há uma igualdade cada vez maior entre os produtos e não se justifica a incrível diferença entre os preços, pois a mesma não tem nada a ver com

a diferença objetiva, com o significado dos produtos , mas ajuda a manter uma aparência de concorrência e a possibilidade de escolha que, de fato, não existe; se o

indivíduo exerce tal profissão, recebe tal salário, mora em tal lugar, etc, isso o condiciona a consumir tal produto; veja-se os carros fabricados hoje: são todos

praticamente iguais.

Com relação aos filmes e às novelas, é possível até descobrir seus finais antes mesmo de tê-los visto porque seguem uma fórmula padrão; isto é resultado do

empobrecimento do material estético – a identidade é apenas superficial, independentemente do seu enredo. É muito comum nos traillers, a informação “Do mesmo

diretor de...”; é como se dissessem: “É igual ao anterior, venha que você não vai precisar pensar”.

Esta previsibilidade da arte produzida na Indústria Cultural denuncia uma completa ausência de fantasia, de imaginação, de atividade mental que

são atrofiados, desvirtuados, paralisados. Para aqueles que têm uma rotina massacrante, a arte séria é uma farsa – quando descansam do cotidiano, sentem-

se felizes com a arte “leve” (divertimento) que é a má consciência social da arte séria (a verdadeira Arte). A Indústria Cultural concilia a antítese,

inserindo uma à outra.

Page 109: Volume III

ISSN 1517 - 5421 109

Nas novelas e nos filmes é freqüente o remake – a reprodução onde tudo é previsível, onde há a arte teleológica negada por ADORNO. O filme já é a

propaganda subliminar do filme seguinte: Rambo I, Rambo II, etc. Deste modo, a arte passa a ser uma verdade negativa cujo destino é absorvição por igual, é

sobreviver como objeto funcional que não incomoda.

É cada vez mais rara a arte que incomoda; um exemplo, na literatura, foi a Semana de Arte Moderna de 1922 , que não foi previsível nem no nome, pois não

durou uma semana inteira.

Na Indústria Cultural, a lógica da obra de arte não se distingue mais da lógica do sistema social, visto que a técnica destrói esta distinção com a produção em

série; a arte se torna, então, um negócio (não existe mais arte cinematográfica e sim indústria cinematográfica) cujo fim é a aquisição de capital; assim o lucro não é

mais só a intenção, mas o princípio exclusivo, por isso, interessa à Indústria Cultural a constituição de subgrupos, como o dos jovens ou o dos negros, por exemplo,

que ela transforma em objetos lucrativos, além de privilegiar a idolatria, a infantilidade, a euforia generalizada, a platéia.

O que a Indústria Cultural fornece, de fato, é a vida cotidiana, a verdadeira imagem do mundo tal qual ela se apresente; ela promove a resignação

que se quer esquecer nela, estraga o prazer, manipula as distrações, permanece voluntariamente ligada aos clichês ideológicos da cultura em vias de

liquidação, defende e justifica a arte física em confronto com a arte espiritual, não tem substância e despersonaliza o humano contra o mecanismo social.

Ao fundir cultura e diversão, há uma agressão à primeira e uma tentativa vã de supervalorização da segunda. Não é fácil perceber este estado, mas

algumas pessoas dão conta disso: recentemente artistas que receberiam o prêmio Sharp se recusaram a comparecer à cerimônia, alegando que a mesma não

fazia sentido e não acrescentava nada, haja vista o próprio nome do prêmio que já mostra, por si só, uma vinculação da arte com o consumo.

A dificuldade da percepção se dá também porque ocorre, nesta relação, uma diminuição do contato das pessoas com o que é particular, subjetivo – os

consumidores apenas pensam que são sujeitos pensantes. Se a cultura contribui para domar os instintos revolucionários e os costumes bárbaros, a cultura

industrializada vai além, promovendo a tolerância da vida desumana que cada qual vive e banalizando a vida: em alguns best-sellers, por exemplo, há uma redução

da complexidade humana, com a apresentação de personagens lineares, são bons o tempo todo ou vice-versa.

Esta banalização é mais prejudicial porque cria no leitor a expectativa da repetição – quem leu um Sidney Sheldon, leu todos. Quando o escritor Fernando

Sabino escreveu o livro da Zélia Cardoso, uma aluna do Curso de Letras da Unir comentava sua decepção, dizendo que o autor não podia ter feito aquilo, era contra

o que já havia escrito antes, ou seja, ferira a sua expectativa.

A Indústria Cultural veicula e se serve de uma dominação que não é inerente ao homem, falta a ele dominar o seu desejo de dominação (e este seria um

passo importante para a humanidade – mas ele não é simples, nem fácil, e, às vezes, nem desejado, já que ser dominado se torna, muitas vezes, cômodo – não se tem

que assumir responsabilidades). Ela é promotora da barbárie – não permitir a expressão da diversidade é uma barbárie.

Page 110: Volume III

ISSN 1517 - 5421 110

A desbarbarização da humanidade inicia na busca do entendimento dos processos que geram a violência - mesmo aquela não tão facilmente perceptível - e

na tentativa de esvaziá-los.

Com relação à Indústria Cultural, então, inicia-se em questionamentos tais como: Por que se consome tal produto, seja ele um filme ou uma roupa.

Considerando a violência tal qual ADORNO a concebe, chega-se à conclusão de que a Indústria Cultural é violenta na medida em que nega ao indivíduo a

autonomia, sem que ele se dê conta disso, pois o mesmo pensa que escolheu livremente consumir tal produto: ele não percebe também, que na relação de “consumo”

não está presente o interesse da coletividade ( os telespectadores, os leitores,...) mas apenas o individual ( os grupos que produzem as “mercadorias”).

Na Indústria Cultural, as palavras também são violentadas, já que há clichês, chavões que perpetuam estereótipos e que são repetidos à exaustão, sem que se

discuta qual o seu sentido como se fossem palavras de ordem..(novelas, pseudo-programas humorísticos).

A saída se daria, ainda, através da educação, desde que ela implicasse, sempre, auto-reflexão, pois esta traz consigo a relação indivíduo/ cultura e produz o

esclarecimento que é fundamental, ainda que não seja suficiente. ADORNO não está preocupado em buscar soluções, mas em refletir sobre os problemas, ele

reconhece que o ideal não é alcançável e por isso não há soluções para os mesmos – essa é uma entre as várias contradições as quais ele julga que não se pode

ocultar, que se deve acolher, já que elas são um caminho, para não ser vítima da ideologia, até porque , para ele, a reflexão já é o primeiro passo.

Uma escola preocupada com a desbarbarização da humanidade deveria iniciar esse processo de reflexão através da busca de respostas para perguntas tais

quais: porque uma sociedade que já teria condições objetivas para eliminar a miséria, ainda não o fez. Se o que possibilita a Indústria Cultural é a reprodução de uma

sociedade desigual que justifica o esquecimento da realidade possível, uma das formas de superação passaria pela reflexão sobre o que é que possibilita a reprodução

de tal sociedade.

WALTER BENJAMIN, ao tratar da reprodutividade técnica da obra de arte, apresenta postulações que não se contrapõem às idéias de ADORNO, apenas a

ênfase dada é diferente: enquanto este se deteve mais nas transformações sofridas pelo consumidor, no efeito que a Indústria Cultural provoca nele, aquele se detém

na obra de arte em si, refletindo sobre sua autenticidade, aura, e valor, enfim, sobre os efeitos que a reprodução em série causa na obra reproduzida.

Mas, para ADORNO, BENJAMIN tem uma postura otimista em relação à técnica, especialmente a do cinema e, talvez por isso, não contemple, nas suas

teses, as duas dimensões da mesma, enquanto determinada esteticamente pela própria obra de arte e enquanto exterior a ela.

A questão relevante estaria centrada nesta segunda dimensão porque a técnica da reprodução destrói a distinção da obra em si e o sistema social passa a ter

muito poder, já que o mesmo é planejado por aqueles que detêm o poder econômico; desta forma, a racionalidade da técnica passa a ser idêntica à racionalidade do

domínio.

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Neste caso, para ADORNO, esta arte ( na época, ele se referia ao cinema e ao rádio) não merece ser tomada como arte, enquanto BENJAMIN ainda a

denomina arte, mas consciente de que, reproduzida, ela não se mantém a mesma.

BENJAMIN refere-se à politização da arte: sua reprodutibilidade passa a ser uma condição para que ela exista ( os filmes, por exemplo, dependem de

difusão maciça para se pagarem).

Reporta-se, ainda, à ausência do aqui e do agora da obra de arte e afirma que sua existência única é substituída por uma existência serial. Segundo ele, o

objeto reproduzido não é mais uma obra de arte na essência e a reprodução também não, porque mata-se a autenticidade, a tradição e a autoridade da mesma.

Na reprodutibilidade, não há mais a aura da obra de arte (aquilo que caracteriza a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja).

Quando o critério da autenticidade perde o sentido, toda a função social da arte se modifica: não se funda mais no ritual e sim na política- no culto, bastava a

magia da obra de arte; a partir da reprodução em série, interessa que ela seja vista, não numa contemplação livre, pois há uma orientação prévia da recepção.

A reprodutividade possibilita a ausência de contexto, enfatiza um universo fragmentário e modifica a reação da massa com a arte, fazendo com que

a necessidade de possuir o objeto (criada e mediada pela reprodução) lhe seja irresistível; reduz a significação social da obra de arte que se barateia, como

numa liquidação, e também reduz a atitude crítica em relação à atitude de fruição, aumentando a distância entre o recolhimento ( presente no contato com

a obra de arte original) e a distinção (presente no contato com a obra reproduzida).

BENJAMIN denuncia que a recepção através da distração crescente em todos os domínios da arte produz uma transformação nas estruturas perceptivas, -

principalmente na ótica - que, de algum modo se atrofiam, não realizando mais determinadas tarefas e exemplifica com o filme, com seus efeitos de choque de suas

seqüências de imagens.

Quanto às idéias de Marshall McLUHAN, elas se contrapõem, claramente, tanto às de ADORNO quanto às de BENJAMIN. Ao postular que “o meio é a

mensagem”, McLUHAN desconsidera a essência daquilo que é produzido, veiculado pela Indústria Cultural e reproduzido em série.

Tendo sido primeiramente um pensador muito lido e citado (década de 70) e depois- muito contestado, ele considera que todas as artes tradicionais que não

se transformam em nossos meios são restos morimbundos de um mundo desaparecido, que não importa como surgiram as novas tecnologias, que elas chegam

misteriosamente; o ser humano se vê aprisionado por elas, torna-se impotente e só lhe cabe adaptar-se ao inevitável. Para ele, a tecnologia se eleva acima da

sociedade.

Para McLUHAN expor suas idéias da nova era eletrônica de hoje e o brilhante futuro que lhes espera, apóia-se em toda a história da humanidade, com seus

transtornos sociais e diferenças de línguas, técnicas, inventos, artes e ciências, com uma teoria muito confusa: idades e temas muito distantes empunhando-se uns aos

outros como se houvera produzido uma máquina do tempo que voltou louca.

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Ele chamou este tipo de história de “mosaico”, vinculando-se à tecnologia da televisão ( a imagem que se obtém do tubo da televisão é uma rápida sucessão

de pontos que o espectador ordena ativamente em uma imagem simultânea, como se tratasse de um mosaico).Assim, entram as apresentações simultâneas dos

acontecimentos, abandonando a seqüência linear, fora de moda.

A mensagem de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas. O meio

surge e com ele acelera-se e amplia-se a escala das funções humanas anteriores, criando cidades, trabalho, lazer. Enquanto o meio é a mensagem, outros meios vão

surgindo e superando as mensagens anteriores.

Para ele, é irrelevante a preocupação com o baixo nível cultural da televisão, importa analisá-la por outro ângulo, pois existe a transformação dos seres

fragmentados em pessoas completas cujos sentidos trabalham todos ao mesmo tempo; não importa o programa, o meio mesmo é que importa.

As mudanças fazem-no vibrar; para ele, o desemprego e até a guerra são necessários ( a guerra é para McLuhan, uma troca tecnológica acelerada).

Os meios eletrônicos são extensão do nosso sistema nervoso central e o que eles sabem nós também sabemos; deste modo, o conhecimento é desnecessário

ao ser humano- a eletrônica fará por nós.

Há, entre as concepções de ADORNO e de McLUHAN, uma enorme discordância com relação ao conceito Cultura de Massa: Adorno preferiu substituí-lo

por Indústria Cultural, porque o considerava equivocado- enquanto que, para seus defensores (do conceito Cultura de Massa) significava uma cultura originária das

massas, espontânea e natural, para ele, era exatamente o oposto: uma cultura adaptada aos produtos e determinada pelo consumo dos mesmos, num círculo vicioso.

O conceito de Indústria Cultural, formulado há cinqüenta e dois anos por ADORNO, permanece atual e é incrivelmente válido para as relações estabelecidas,

hoje, entre os homens e a cultura. A leitura das suas postulações remete o leitor a exemplos típicos da sociedade deste fim de século: isto faz com que este conceito

pareça fazer mais sentido agora, que quando foi formulado, talvez porque tenham surgido, desde a sua formulação, novas indústrias culturais, a partir do

desenvolvimento tecnológico que possibilitou o surgimento do computadores, da internet, etc.

O homem está cada vez mais subjugado à ciência e à técnica; sua relação com os outros homens e com a natureza continua falsificada pela Indústria

Cultural, que o impede de se tornar um indivíduo autônomo, independente e capaz de julgar e de decidir conscientemente, tal qual ADORNO destacou, com relação

à música, na qual o “gostar de” é confundido com o “reconhecer”.

Se perguntamos a alguém se “gosta” de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar

já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e de não gostar. Ao invés do valor da própria coisa, o critério de

julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo. (ADORNO,1963)

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Esta atualidade do conceito Indústria Cultural significa que os homens não encontraram, ainda, a saída de sua “auto-inculpável menoridade” não por causa da

falta de conhecimernto, mas sim por falta de coragem e decisão de servir-se do entendimento sem o auxílio de outro. Encontraremos, algum dia?

A saída é, neste fim de século, muito mais difícil de ser encontrada que quando Adorno formulou o conceito de Indústria Cultural e esta dificuldade tem nome:

globalização; ironicamente, a Indústria Cultural é um dos fatores que permitiu a globalização.

O melhor sinônimo para Indústria Cultural é, hoje, a globalização: processo de aceleração capitalista que vem ocorrendo desde a Pré-história, mas que só

recentemente ganhou a velocidade da luz; pode criar uma civilização genuinamente transnacional alimentada pela exposição à tecnologia e pelas mesmas fontes de

informação; possui um tremendo potencial para solucionar os problemas do homem contemporâneo e pode criar riquezas num ritmo alucinante; mas, ao mesmo

tempo, pode causar dor, criar uma classe com o mesmo padrão de consumo, aspirações, preconceitos, valores, etc, fortalecendo a cultura da repetição.

A globalização interfere no plano ideológico- é uma revolução e, como tal, transformará a vida humana na terra, partindo da questão econômica mas

atingindo outras áreas e até mesmo aquelas pessoas ou povos que estejam alheios ao fenômeno, porque não será possível se manter à margem, por muito tempo.

A globalização da cultura extrapola limites físicos e é generalizante (se antes, atravessar um país como o Brasil era uma tarefa para bandeirantes que, às vezes,

pagavam a aventura com a própria vida, hoje, a Disneylândia é “caminho da roça” para os novos ricos brasileiros).

Ela transforma as representações culturais ( no Brasil, o 31 de Outubro – dia das bruxas nos Estados Unidos está sendo festejado com festas de

“Halloween”); desestabiliza a realidade econômica (os portugueses reagiram à invasão de dentistas brasileiros, que competiam naquele mercado de trabalho e

ganhavam); e tende a homogeneizar comportamentos (recentemente, divulgou-se, no Brasil, um vídeo norte-americano entre as empresas de turismo brasileiras, que

“ensinava” como nós deveríamos nos comportar em visita àquele país, especialmente grupos de turistas que iriam para Orlando), fato que, aos brasileiros, soou

grosseiro, ofensivo e arrogante.

Como se pode notar, através das exemplificações supracitadas, o processo é complexo; se ele promove intercâmbio, integração entre os povos, também faz

surgir conflitos de natureza territorial, envolvendo questões culturais e religiosas, que parecem buscar uma identidade local ou regional, ou seja, generaliza e,

paradoxalmente, particulariza.

A comunicação é fundamental na globalização: o modo como ela será gerenciada e por quem, a ideologia que ela veicular e o fato de ela ser ou não

consumida serão os definidores dos valores, dos hábitos e costumes do homem do próximo milênio. Mas, como escreveu Oscar Wilde, “é melhor não profetizar,

especialmente sobre o futuro”.

BIBLIOGRAFIA

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ISSN 1517 - 5421 114

ADORNO, Theodor W. EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995. BENJAMIN, ADORNO, HORKHEIMER, HABERMAS. OS PENSADORES. São Paulo, Abril cultural, 1980. FINKELSTEIN, Sidney. O ANTIHUMANISMO DE MCLUHAN. LIMA, Luiz Costa. (org.) TEORIA DA CULTURA DE MASSA. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.

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ISSN 1517 - 5421 115

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