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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA SETOR DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE POS-GRADUACAO EM FILOSOFIA – MESTRADO AREA DE CONCENTRACAO: HISTORIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORANEA DISSERTAÇÃO Da Natureza Naturante à Natureza Naturada: considerações sobre os fundamentos ontológicos do finito na filosofia de Espinosa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA

SETOR DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE POS-GRADUACAO EM FILOSOFIA MESTRADO

AREA DE CONCENTRACAO: HISTORIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORANEA

DISSERTAO

Da Natureza Naturante Natureza Naturada: consideraes sobre os fundamentos ontolgicos do finito na filosofia de EspinosaCleiton Zia Mnchow

Curitiba

2010Cleiton Zia Mnchow

Da Natureza Naturante Natureza Naturada: consideraes sobre os fundamentos ontolgicos do finito na filosofia de Espinosa

CURITIBA

2010

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA

SETOR DE CIENCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE POS-GRADUACAO EM FILOSOFIA MESTRADO

AREA DE CONCENTRACAO: HISTORIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORANEA

Cleiton Zia MnchowDa Natureza Naturante Natureza Naturada: consideraes sobre os fundamentos ontolgicos do finito na filosofia de EspinosaDissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre do Curso de Mestrado em Filosofia do Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paran. Orientador: Prof. Dr. Paulo Vieira Neto

Curitiba 2010Da Natureza Naturante Natureza Naturada: consideraes sobre os fundamentos ontolgicos do finito na filosofia de Espinosa

CLEITON ZIA MNCHOW

Dissertao apresentada ao curso de Mestrado em Filosofia do Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paran (UFPR) e aprovada em sua forma final pelos professores abaixo relacionados:

Prof. Dr. Paulo Vieira Neto (UFPR)

___________________________________

ORIENTADOR

Prof. Dr. Homero Silveira Santiago (USP)

___________________________________

EXAMINADOR

Profa. Dra. Maria Isabel Limongi (UFPR)

___________________________________

EXAMINADOR

CURITIBA

2009 Agradecimentos

A palavra escrita costuma causar a sensao de pensamento acabado, definitivo. Trata-se de uma iluso quase sempre inevitvel, pois a palavra escrita encobre todas as hesitaes, afetos, relaes, situaes que estiveram presentes no processo de escritura. Destes afetos e situaes nasce o texto, o que no significa o fim dos fluxos geradores da escritura. Os afetos se alteram e com eles se alteram nossas relaes com o mundo, de tal maneira que um texto, muito mais do que expressar um ponto final sobre seu contedo, expressa uma relao afetivo-situacional do autor com a questo por ele tratada. A ideia de autoria costuma ser associada a uma unidade definida como indivduo. Mas onde comea e onde termina um indivduo? Se nosso corpo no fosse afetado por outro corpo, nos diz Espinosa, no teramos conscincia dele. Ou seja, toda vez que enunciamos eu, no podemos ignorar que esse eu s existe em relao a outros, portanto, no limite, se trata sempre de um ns. Neste sentindo, o texto que segue o produto de um indivduo que se produziu e se produz, se constituiu e constitui a partir de/e nos outros. Cada palavra, aqui escrita, reflete outras tantas palavras lidas, escritas, ouvidas, pensadas, sentidas. Esta dissertao de mestrado, portanto, no produto s meu, mas o produto das relaes afetivas de uma trajetria. Nesta trajetria algumas pessoas desempenharam papis essenciais para realizao deste trabalho, a elas dedico meus agradecimentos. Agradeo ao Porf. Dr. Paulo Vieira Neto pela pacincia, pelas lies sobre Espinosa e, sobretudo, por saber usar de afetos alegres para mobilizar meu trabalho. Agradeo a Profa. Dr. Maria Isabel Limongi por ter participado das minhas diversas bancas, da seleo do mestrado defesa deste trabalho, e por ter, em todas as ocasies, realizado uma leitura atenta e amiga. Agradeo ao Prof. Homero Santiago pelas preciosas consideraes realizadas durante a defesa deste trabalho. Deixo sinceros agradecimentos aos professores e professoras do Programa de Ps-graduao em Filosofia da UFPR, secretria Aurea Junglos pela eficincia e gentileza com que sempre atendeu aos meus pedidos.

Agradeo aos meus amigos que, de maneiras diferentes, contriburam para que esse trabalho se efetivasse. Agradeo, em especial, a Marcos Aurlio, Gustavo Bordin e Emanuelle Vittorino por terem me apresentado novas possibilidades de existncia e pela dedicao que tiveram comigo nas horas mais difceis no percurso de realizao deste trabalho. Agradeo minha me, Elizabeth, e s minhas duas irms, Viviane e Lara, pelo apoio e por todo afeto que tm dedicado a mim durante toda minha vida. Por fim, agradeo Capes, Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior, que apoiou financeiramente esta pesquisa.

Dedico este trabalho a Marcos Roberto Alves de Carvalho, sem o qual este trabalho, certamente, no teria alcanado sua concretude.

ResumoMNCHOW, Cleiton Z. Da Natureza Naturante Natureza Naturada: consideraes sobre os fundamentos ontolgicos do finito na filosofia de Espinosa. 2009. Dissertao (Mestrado) - Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paran (UFPR), 2009.A investigao que se empreende neste trabalho versa sobre a possibilidade da deduo do finito a partir do infinito na tica de Espinosa. Toma-se como ponto de partida as questes que Tschirnhaus dirige a Espinosa na correspondncia que com ele mantm. Por tais questes se referirem possibilidade da deduo dos corpos a partir do conceito de extenso, circunscreve-se o mbito da anlise a esse caso especfico. Uma vez estabelecido o alcance das objees do correspondente de Espinosa, passa-se a averiguar a possibilidade de rebat-las na tica. Palavras-chave: Infinito, finito, extenso, causalidade, Espinosa.Abstract

The investigation that is done on this work is about the possibility of deduction of the finite from the infinity on Ethics by Spinoza. The starting point of that are the questions that Tschirnhaus directs to Spinoza on the letter that they change to each other. Due to such concepts refer to the possibility of deduction of the bodies from the concept of extension, the analysis is limited to this specific case. Once it has been established the achievement of Spinozas correspondent objections, the next step is investigating the possibility of refute them on Ethics. Key-words: Infinity, finite, extension, causality, Spinoza.

NDICEINTRODUO ...........................................................................................................p.91. Da Distino Real Distino Verbal ..................................................................p.172. Da Verdadeira Definio de Movimento ou Sobre a Origem dos Corpos .......p.29 As Etapas da Correspondncia ..............................................................................p.29 Da Fsica Ontologia: As Questes de Tschirnaus ..............................................p.32 A Carta 59 e a Origem da Questo ..................................................................... p.32 Antecedentes das Questes Sobre Mtodo, Fsica e Movimento ........................ p.35 Sobre a Natureza do Deus da qual Decorre uma Infinidade de Modos ................p.37 A Resposta de Espinosa .......................................................................................p.53 Rumo Carta 12 ...................................................................................................p.593. A Carta 12 ............................................................................................................. p.68

O Infinito e a Finitude na Carta 12 ............................................................................. p.764. A tica e o Finito no Infinito ..............................................................................p.89Os Sentidos em que se Diz que Deus a Causa...........................................................p.91A Substncia e os Modos: Diferena e Identidade ......................................................p.94Causa Sui: O Si Mesmo Como Outro .........................................................................p.98O Outro Como Causa da Finitude .............................................................................p.1035. Bibliografia ...........................................................................................................p.112Nota Bibliogrfica

As obras de Espinosa foram designadas pelas seguintes abreviaes:

KV Breve Tratado sobre Deus, o homem e sua felicidade ( Korte Vehandeling,

van God, de Mensch, em ds zelfs Welstand)

TIE Tratado da Correo do Intelecto (Tractatus De Intellectus Emendatione)PPC Princpios da Filosofia de Descartes (Renati Descartes Principiorum

Philosophi Pars I ET II More Geomtrico Demonstrat)CM Pensamentos Metafsicos (Cogitata Metaphysica)TTP Tratado Teolgico-Poltico (Tractatus Theologico-Politicus)

TP Tratado Poltico (Tractatus Poltiicus)

E tica demonstrada segundo a ordem geomtrica (Ethica Ordine Geomtrico

Demonstrata)

Outras abreviaes:

Axioma A

Definio D

Definio dos Afetos DA

Definio geral dos Afetos DGA

Demonstrao d

Corolrio c

Esclio esc.Explicao expl.Proposio PPostulado Post.INTRODUO

A passagem do absolutamente infinito ao finito sempre pareceu obscura para muitos comentadores e filsofos que se defrontaram com o sistema de Espinosa. Em resposta aos problemas suscitados por essa passagem, temos diversos posicionamentos, os quais vo da acusao de que Espinosa no d conta de instituir a finitude em seu sistema mera indicao de que se trata de um ponto obscuro na filosofia do mesmo. Vidal Pea, por exemplo, que traduziu a Ethique, nos diz, em nota proposio 28 do De Deo, que h um hiato entre natura naturans e natura naturada, pois, de acordo com ele, o enunciado da proposio 28 mostra claramente como, no mundo das coisas singulares, a cadeia causal remete sempre a outras coisas singulares, no a Deus tomado absolutamente como substncia .

Bennett, por sua vez, foi incisivo ao afirmar que a distino, nem sempre aguda, entre Deus desde cima e Deus desde baixo imprecisa. Alm disso, o intrprete afirmou que a distino terminolgica entre Natureza Naturante e Naturada, tem atrado os leitores de Espinosa, os quais tm concedido a essa distino uma importncia que ela no tem, pois Espinosa s se utiliza dessa terminologia porque lhe agrada capturar, em seus prprios termos, tanto quando possa as filosofias rivais .

Com uma interpretao que pende ao misticismo e procura aproximar a filosofia de Espinosa ao Zen budismo, Paul Wienpahl interpretou a diferena entre as duas expresses aqui referidas para distinguir os entes entre Deus e modos ou, como prefere o comentador, entre Deus ou Ser e os modos de ser-[ente] , de maneira a anular os segundos em prol do primeiro. Depois de sugerir que a intuio de Espinosa acerca da unidade , com efeito, uma petio para que vejamos nossa gramtica de um modo distinto, e com ela nossa experincia , o comentador nos informa que no devemos mais ler o verbo ser como se esse fosse uma cpula. Desse ponto de vista, no deveramos mais falar, quando nos expressamos a partir do entendimento, com uma linguagem que substancializa as coisas; em nosso discurso deveramos sempre levar em conta que tudo o que , Ser e modo ser. Seguindo as prescries de Wienpahl, no deveramos, por exemplo, falar rvore e sim em ser arbreo ou arborescente, com essa reformulao do uso da gramtica, passaramos a sentir todas as coisas unidas umas as outras. A correspondncia de Espinosa com Tschirnaus, consoante a essa interpretao, extraordinria para que compreendamos essa modificao operada por meio daquilo que o comentador chamou de intuio de Espinosa. A questo, por trs da pergunta que Tschirnaus faz a Espinosa, seria a seguinte podemos entender o movimento em termos de extenso? Essa questo permite que Espinosa oferea uma resposta extraordinria, na qual ele afirmar que sim, pois a extenso vista como se estendendo eternamente. De todas essas consideraes, Wienpahl extra a idia de que relativamente ao indivduo humano, a intuio de SP de que no h substncias equivalente a dos budistas que sustentam ser o ego uma iluso .

Gueroult, por seu turno, em dois momentos de seu Spinoza, refere-se dificuldade que h entre esses conceitos que procuram estabelecer a distino entre Natureza Naturante e Natureza Naturada. De acordo com o comentador, Espinosa tencionando apresentar uma fundao a partir de uma diviso de coisas e no a partir de uma distino de palavras, faz uso de uma terminologia muito simplificadora que acaba por levar a crases de concepto , ou seja, a uma mistura conceitual. O problema apontado por Gueroult no est ligado terminologia Natura Naturante e Natura Naturada, mas ao que essas distines representam. Como vimos, na proposio 16 do De Deo comea a teoria da causalidade em Deus. Nessa proposio teramos o aparecimento da dificuldade fundamental do espinosismo, pois apresenta as coisas finitas, que resultam de Deus, do mesmo modo como de uma definio dada o intelecto conclui vrias propriedades, que efetivamente so seqncia necessria da mesma definio . Exemplo disso, encontra-se no esclio de EIP17, onde podemos ler que:

(.) do sumo poder de Deus, ou, por outras palavras, da sua natureza infinita, dimana necessariamente, ou resulta sempre com a mesma necessidade, uma infinidade de coisas numa infinidade de modos, isto , tudo; do mesmo modo que da natureza do tringulo resulta de toda a eternidade e para a eternidade que os seus trs ngulos so iguais a dois retos.

A crase de concepts, de acordo com o comentador, encontra-se entre os conceitos de causa e princpio, de efeito e conseqncia, de efeito e propriedade, de propriedade e coisa, de causa eficiente e causa formal, de causa ativa e causa emanativa . Haveria, portanto, uma necessidade de estabelecer uma diferena entre, por exemplo, ser propriedade e ser efeito, pois uma coisa ser um efeito causado por algo, outra ser a propriedade de algo essa questo pode ser identificada quelas apresentadas por Tschirnaus em suas cartas a Espinosa; mais adiante trataremos dessa troca epistolar.

Nas Lies sobre a histria da filosofia, Hegel apresentar uma crtica filosofia de Espinosa. A crtica hegeliana, no que se refere passagem do absolutamente infinito ao finito, consiste em negar a possibilidade da prpria finitude na filosofia de Espinosa. Para o filsofo alemo, na filosofia de Espinosa todo individual e o particular desaparecem na substncia nica . A filosofia espinosana teria, portanto, como nica realidade Deus, a individualidade nada mais seria do que a simples unio. Macherey, em seu Hegel o Spinoza, procura dar conta da interpretao que Hegel faz de Espinosa, mostrando-nos que a leitura hegeliana, relativamente ao tema da finitude, se d a partir do modo como Hegel leu e traduziu uma frase que aparece na correspondncia do filsofo holands. Trata-se da carta de nmero 50 endereada a Jelles, na qual Espinosa, quando procura dar conta do problema da figura, afirma que determinatio negatio est ao que Hegel, em sua interpretao, acrescenta omnis, lendo a frase do seguinte modo omnis determinatio negatio est.

De acordo com Macherey, a interpretao que Hegel dar da frase assume duas perspectivas: uma negativa e outra positiva. Na perspectiva negativa, a frase lida como o indicativo de uma verdade, mas ao mesmo tempo existe como defeito que deveria ser ultrapassado, assim, a frase tomada pela sua incompletude. Na positiva, o contedo da frase indica que h movimento, produo de ser na filosofia de Espinosa. As determinaes, entendidas como negaes, seriam aquilo que produziria a existncia, pois nos retiraria da identidade absoluta e da pura indeterminao que nada produz.

Em seu lado negativo, a frmula omnis determinatio negatio est aparece, do ponto de vista hegeliano, sem ser compreendida por Espinosa; pois ainda mantm-se uma ciso, uma dissociao entre o positivo e o negativo que pertenceriam, para Hegel, a duas ordens separadas: o absoluto, que no tem determinao e de onde toda determinao deve ser expulsa e o finito, que o reino das determinaes e que por natureza exterior a substncia infinita . A frase acaba por adquirir sentido restritivo e negativo, pois se a negao se d somente no reino do finito, essa ser tomada somente como algo negativo:

Para Espinosa, tal como o interpreta Hegel, a determinao um movimento regressivo, no como retorno em si do que , mas ao contrrio, como sua decomposio, sua degradao, sua decadncia. O determinado o que pode ser captado somente pelo defeito, segundo seu prprio defeito, a falta de ser, a negatividade que o determina: o inefetivo que se mantm a distncia da substncia e impotente para represent-la se no uma imagem inversa .

Ao conceber o negativo e o positivo de modo abstrato, torna-se possvel pensar a passagem de um ao outro: o positivo ser sempre positivo e o negativo sempre negativo. Assim, no se poder compreender o movimento do conceito e sua racionalidade intrnseca, dado que o absoluto um imediato, no h nada fora dele, ou melhor, fora dele no h mais que entes que s podem ser medidos negativamente a partir do nada, do defeito da substncia que os compem e que causa de sua facticidade.

Conforme Hegel, a substncia de Espinosa elimina da sua ordem prpria toda determinao e por esse motivo garante sua identidade absoluta, porque ao eliminar toda determinao de si, tudo aquilo que determinado passa a ser pensado como pertencente ao reino da finitude, inclusive os atributos. Assim, a filosofia de Espinosa acaba por entrar em contradio com a sua proclamada afirmao da plenitude do positivo , no fundo, pensa Hegel, ela um negativismo, onde os modos passaro a ser vistos como graus numa hierarquia descendente de ser.

A substncia acaba se vendo invadida pela negatividade, ela ser vista como potncia universal negativa, porque vazia, imvel e morta; dela se diz tudo isso por no comportar negaes que produziriam seres. Essa potncia negativa que a corrompe e invade o nada. Sendo assim, ao apresentar o absoluto como positividade pura, Espinosa, na perspectiva hegeliana, conduz ao triunfo do negativo que acaba por ser seu fim.

Com relao ao que parecia no comeo, as posies esto, portanto, exatamente invertidas: ao reivindicar exclusivamente o positivo, Espinosa elege de fato o negativo, ou ao menos se abandonou ao negativo, enquanto Hegel, ao dar certa realidade ao negativo, faz dele o instrumento ou o auxiliar do positivo cujo triunfo, sem o saber, assegura: a astcia da razo. Isso significa que no negativo, condio de ser considerado racional, h algo que tende ao positivo, e isto que escapa necessariamente ao entendimento abstrato, para o qual, positivo e negativo so definitivamente exteriores um ao outro, e so, tambm, irreconciliveis opostos.

O erro de Espinosa, de acordo com Hegel, teria sido permanecer no pensamento abstrato e no ter percebido, como Hegel percebeu, que o negativo tem uma tendncia ao positivo; que do movimento da negao que se volta contra si mesma e se nega, que surge a afirmao. Por no perceber o sentido positivo da negatividade, Espinosa no teria conseguido avanar e sair do puro indeterminado, ou absolutamente infinito, em direo ao determinado, ou finito.

Na primeira parte de nosso texto procuraremos mostrar que a distino nominal naturante e naturada utilizada por Espinosa para designar a diferena entre substncia e seus modos posterior, para usar aqui as palavras de Gueroult, a distino entre as coisas. Disso resulta a seguinte hiptese: o problema da causalidade do finito j est resolvido antes do aparecimento de tal terminologia, isso nos leva a afirmar que no h um corte entre a primeira parte do KV e a segunda, bem como no h descontinuidade entre a primeira parte da tica e a segunda. Em decorrncia disso, pensamos poder a firmar que o vnculo entre o absolutamente infinito e o finito deve ser buscado na primeira parte de ambas as obras.

Na segunda parte procuramos situar a questo sobre o vnculo entre Natureza naturante e naturada a partir dos problemas posto na correspondncia entre Tschirnaus e Espinosa. Utilizamos essa correspondncia para circunscrever o problema a um caso especfico, e porque ela nos remete ao lugar em que, de acordo com Gueroult, Espinosa trata da questo da divisibilidade do infinito no plano modal: a Carta 12.

Na terceira parte, na qual analisamos a Carta 12, tentaremos mostrar que o finito afirmao e no uma negao do absolutamente infinito. Alm disso, temos o escopo de encontrar alguns critrios para leitura do De Deo sob a perspectiva do problema da relao entre absolutamente infinito e finito, para demonstrar que j na primeira parte da tica possvel uma espcie de deduo da finitude. 1Da Distino Real Distino VerbalNatureza Naturante (Natura Naturans) e Natureza Naturada (Natura Naturada) so expresses empregadas por Espinosa para designar a diferena entre os entes. Essas expresses, tambm utilizadas pelos tomistas, so expressamente aduzidas nos captulos 8 e 9 da primeira parte do Korte Verhandeling e nas proposies 29 e 31 do De Deo. Sua utilizao, por parte de Espinosa, parece ter como funo o estabelecimento de certa unidade verbal entre Deus (Natura Naturada) e os modos (Natura Naturante), ao mesmo tempo em que estabelece uma diferenciao entre ambos. Expressar a relao de identidade e diferena, por meio das expresses referidas, entre Deus, entendido como causa imanente, e os modos, entendidos como efeitos imanentes capazes de atuarem como causas de outros efeitos tambm imanentes, significa romper com uma tradio que pensava Deus como causa inteligente e intencional, e que se utilizava das mesmas expresses para designar uma distino entre Deus, substncia imaterial, e o mundo, substncia material . A escolha de Natureza naturante e Natureza naturada para designar, respectivamente, a substncia e os modos a escolha de um iconoclasta.

A primeira ocorrncia dessas expresses implcita e aparece sob o signo da diviso, estamos nos referindo ao 9 do stimo captulo da primeira parte do KV. No captulo em questo, Espinosa trata dos atributos que no pertencem a Deus inserindo-se na discusso sobre a possibilidade, a natureza e os limites do discurso sobre Deus, discusso tradicionalmente conhecida como o problema dos nomes divinos. A adoo do vocabulrio medieval surge como conseqncia e afirmao da tomada de posio no debate que havia em torno desse problema; o captulo stimo estratgico para a compreenso do posicionamento de Espinosa, nele, depois de realizar a demolio de cada tese contrria a idia de que possvel conhecer Deus, o filsofo abre caminho para assumir o vocabulrio medieval em bases que subvertem totalmente seu uso original.

De acordo com Fleck, possvel distinguir duas atitudes teolgicas fundamentais frente ao problema dos nomes divinos : uma que sustenta ser extrnseco todo discurso sobre Deus, outra cr na possibilidade de um discurso intrnseco sobre Deus. A primeira dessas atitudes desdobra-se em duas vias: a negativa e a da causalidade. Da via negativa resulta a impossibilidade de se falar sobre Deus. A via da causalidade, por sua vez, admite como possvel uma causalidade equvoca no sentido pleno da expresso, isto , uma causalidade em que nada haja de comum entre o efeito e a causa, e que, portanto, no permite inferir do efeito nenhuma caracterstica da causa . Da segunda das atitudes, por seu turno, decorre que podemos falar de modo intrnseco, afirmativo e verdadeiro sobre Deus, mas no nos permite saber o que Deus . Espinosa se contrape a todas elas, prova disso encontra-se, por exemplo, no segundo captulo da primeira parte do KV, onde, depois de mostrar que Deus existe, Espinosa nos mostra o que Deus.

Essas atitudes aparecem indicadas no captulo sobre os atributos que no pertencem a Deus. A estratgia de Espinosa consistir em mostrar que o insucesso das tentativas de se definir Deus reside em se atribuir a Ele atributos que no lhe pertencem realmente. Feito isso, o filsofo apresenta quais so as leis da verdadeira definio e mostra ser possvel, a partir dessas leis, chegar ao conhecimento de Deus. No se trata da descontrao de uma imagem vulgar, mas da desconstruo de um imaginrio teolgico que se apresenta sob a capa da filosofia. Por esse motivo, o filsofo nos adverte que investigar to somente o que os filsofos sabem nos dizer sobre Deus, sem se referir s imagens que os homens comumente tm sobre Deus .

O exame acerca do que os filsofos definem por Deus parte de uma investigao sobre aquilo que os mesmos concedem sobre a possibilidade de defini-lo. Espinosa apresenta cada uma das atitudes frente ao problema dos nomes divinos: (a) cr no ser possvel dar uma definio legitima de Deus, pois toda definio se d pelo gnero e pela diferena e Ele no uma espcie de gnero; (b) afirma que toda definio deve apresentar a coisa livre e positivamente, e como nada se sabe de Deus de forma positiva, mas somente negativa, no se pode defini-lo; (c) pensa que no se pode apresentar uma demonstrao a priori de Deus, a no ser de modo provvel ou pelos seus efeitos, posto que Ele no tem nenhuma causa. Tudo isso tem como propsito mostrar que os prprios filsofos reconhecem ter de Deus um conhecimento muito exguo e insignificante . Isso, de certa forma, j pe em xeque as definies de Deus ofertadas pela escola.

O erro encontrado em todas essas atitudes, diante do problema dos nomes divinos, est em se tentar definir Deus a partir dos prprios e no dos atributos que realmente pertencem a Ele. Os prprios so propriedades extrnsecas das coisas que nada ou pouco revelam sobre o modo de constituio delas, so simples adjetivos que no podem ser entendidos sem seus substantivos , por esse motivo, no indicam nada de substancial . Tentar definir Deus a partir de seus prprios inverter a relao que deve ser observada em uma boa definio; como vimos, aqueles so como adjetivos que exigem os substantivos para ser compreendidos. Esse tipo de definio nada revela, pois os adjetivos precisam de seus substantivos para ser compreendidos. Por articularem suas definies a partir de prprios, os filsofos no revelaram nada alm de ignorncia a respeito de Deus e dos Seus atributos e acabaram por cair numa espcie de crculo em que, para conhecer Deus (substantivo), preciso conhecer Seus prprios (adjetivos), mas estes s podem ser conhecidos mediante aquele, e como o conhecimento que temos de Deus se d a partir dos prprios, ficamos sem conhecer coisa alguma.

A definio de Deus oferecida pelos filsofos constituda por uma lista de atributos, os quais, de acordo com Espinosa, so, na verdade, prprios. Esta lista contm os seguintes atributos: um ser que existe por si mesmo, causa de todas as coisas, onisciente, onipotente, onipresente, eterno, simples, infinito, sumo bem, de infinita misericrdia, etc. . Espinosa no negar que estes pertencem a Deus, sua objeo est em que no esclarecem o que Ele . O processo de desconstruo da imagem de Deus passa por uma srie de etapas que se inicia com a prova da existncia de Deus, passa pelo estabelecimento do que Ele vem a ser, retira o status de atributo daquilo que tradicionalmente era entendido como tal e, por fim, mostra a possibilidade da definio de Deus. De momento nos deteremos nesta ltima etapa, das outras trataremos mais adiante.

Espinosa, no 9, rebate as teses contrrias definio de Deus, anteriormente indicadas como atitudes (a), (b) e (c). Contra a posio (a), Espinosa argumenta mostrando que dela surge a impossibilidade de todo e qualquer conhecimento, o argumento o seguinte: se admitirmos que toda definio se d por meio de gnero e diferena e se, antes de tudo, devemos conhecer a coisa mediante a definio que consta de gnero e diferena, nunca poderemos conhecer nada, pois no conhecemos o gnero supremo que a causa de todo conhecimento. Espinosa, depois de mostrar o absurdo em que se cai ao se assumir a argumentao de (a), nos diz no estar comprometido com as teses daqueles que defendem essa posio e que, por isso, apresentar as leis da definio que so conformes a verdadeira Lgica, ou seja, segundo a diviso da natureza que ns fazemos . A diviso a que se refere o filsofo aquela que ser apresentada no captulo oito e nove da primeira parte do KV, no qual Espinosa escreve: dividiremos agora brevemente toda a natureza, a saber, em natureza naturante e natureza naturada . Essa diviso, que no captulo sete ainda no recebeu a nomenclatura referida, o que torna possvel apresentar leis da definio que dem conta do conhecimento do real. Isso pode ser claramente percebido se atentarmos para organizao do 10: Espinosa parte de uma recapitulao em que indica j ter mostrado que os atributos so coisas ou seres que existem por si mesmo e que, portanto, se do a conhecer por si mesmos e se demonstram por si; as outras coisas, por sua vez, no so nada alm de modos dos atributos e que sem eles no podem existir nem ser concebidas . Como conseqncia disso, Espinosa nos adverte que as definies devero ser de duas classes ou dois gneros:

1. Dos atributos de um ser que existe por si mesmo, e estes no exigem nenhum gnero ou algo pelo qual possam ser mais bem entendidos ou explicados, porque como so atributos de um ser que existe por si mesmo, tambm eles devem ser conhecidos por si mesmos.

2. Das coisas que no existem por si mesmas, mas to somente pelos atributos, dos quais so modos e pelos quais, como se fossem seus gneros, devem ser entendidas

Segue-se a essa exposio das classes de definies o combate a (b) e (c). No que se refere ao primeiro, Espinosa se limita a indicar como contra-argumento a resposta oferecida por Descartes em suas objees relativas a este ponto. Ao posicionamento (c), temos como resposta que podemos, sim, demonstrar Deus a priori. O que justifica essa demonstrao que, diferentemente daqueles que pensam Deus como um ser que existe per se, Espinosa tambm o apresenta como causa sui, procedimento efetuado nos dois primeiros captulos do KV. O erro, portanto, residia em se considerar Deus como algo sem causa, se assim fosse, certamente Espinosa concordaria e concluiria a favor da impossibilidade de sua demonstrao a priori, entretanto, de acordo com a teoria espinosana, Ele causa de si, logo pode ser demonstrado no s com provas a posteriori, mas tambm com uma prova a priori.

Toda essa argumentao, por parte de Espinosa, estratgica. Tambm estratgica a indicao de uma diviso da natureza. As posies (a), (b) e (c) que foram rebatidas nessa mesma ordem por Espinosa, na verdade deveriam receber uma ordem inversa: Deus s pode ter uma definio legtima, s pode ser apresentado positivamente, s pode ser demonstrado a priori, porque causa de si mesmo. a partir da, do entendimento de Deus como causa sui, que surge todo desdobramento da filosofia de Espinosa, inclusive a instituio da diviso da natureza em naturante e naturada. Distino que receber seu coroamento no captulo oito e que retoma a diviso, apresentada no captulo sete, entre existir por si e existir como modo disso que existe por si.

A natureza naturante entendida por Espinosa como um ser que captamos clara e distintamente por si mesmo e sem ter que aduzir a algo distinto dele, como todos os atributos que descrevemos at aqui, e esse ser Deus . A natureza naturada, por sua vez, deve ser dividida em duas: universal e particular. A universal consta de todos os modos que dependem imediatamente de Deus e a particular consta de todas as coisas que so causadas pelos modos universais. Dos modos que dependem imediatamente de Deus, ou seja, relativos natureza naturada universal, s conhecemos dois: o movimento na matria e o entendimento na coisa pensante. Ambos existem desde toda a eternidade e permanecem imutveis por toda a eternidade.

No esclio da proposio 29 da primeira parte da tica, como apontamos acima, Espinosa apresentar a mesma diviso da natureza, mas agora com algumas modificaes:

(...) deve entender-se por Natureza Naturante o que existe em si e concebido por si, ou, por outras palavras, aqueles atributos da substncia que exprimem uma essncia eterna e infinita, isto (pelo corolrio 1 da proposio 14 e corolrio 2 da proposio 17), Deus, enquanto considerado causa livre. Por Natureza Naturada, porm, entendo tudo aquilo que resulta da necessidade da natureza de Deus, ou, por outras palavras, de qualquer dos atributos de Deus, isto , todos os modos dos atributos de Deus, enquanto so considerados como coisas que existem em Deus e no podem existir nem ser concebidas sem Deus.

Da mesma forma que no KV na tica, essa nomenclatura aparece somente depois de longo percurso. No KV, por exemplo, a distino entre naturante e naturada aparecer de modo explcito somente ao final da primeira parte; depois de apresentar essas distino nos captulo 8 e 9, Espinosa escreve apenas mais um captulo, no qual busca esclarecer o que o bem e o que o mal. Feito isso, passa a tratar, na segunda parte, especificamente, das coisas particulares ou natureza naturada particular. No De Deo, a diferenciao terminolgica surge, de acordo com Gueroult, numa proposio que tem por funo estabelecer concluses relativas Natureza Naturada, ou seja, relativas ao conjunto dos efeitos de Deus. Ainda conforme o comentador, o esclio da proposio 28 extrai das proposies que o antecedem, a contar a partir da proposio 21, concluses relativas Natureza Naturante, por outras palavras, relativas a Deus enquanto causa de seus modos, pois nele se deduz duas novas propriedades de sua causalidade (Deus posto como causa absolutamente prxima de seus modos infinitos e causa prxima em seu gnero dos seus modos finitos).

A diferenciao aparece j na prpria proposio, mas de modo implcito. Na proposio 29, Espinosa escreve: Na Natureza nada existe de contingente; antes, tudo determinado pela necessidade da natureza divina a existir e a agir de modo certo. A palavra Narutreza, tal como ocorre em EIP29, designa a Natureza Naturada, isso pode ser facilmente percebido se atentarmos para a diviso que se instaura entre Natureza e Natureza Divina, a primeira retira sua necessidade da segunda, uma necessria pela causa e a outra o pela sua prpria natureza. Receber a necessidade da causa equivale a ser determinada pela causa, encontramo-nos aqui com a distino entre agir e operar, entre ser livre e ser determinado. Espinosa, na stima definio do De Deo, diz ser livre aquele que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e por si s determinado a agir; e dir-se- necessrio, ou mais propriamente, coagido, o que determinado por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira. Encontramo-nos tambm diante da distino ontolgica operada no primeiro axioma entre existir em si e existir em outro, e com o axioma 4, onde se estabelece o critrio epistmico de que o conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e envolve-o.

Quando, no esclio da proposio 29, Espinosa apresenta a distino entre Natureza Naturante e Natureza Naturada, no est, como havamos mostrado em relao a KV, forjando novos conceitos, pois estes j esto, desde as definies, em operao. Na tica, a nomenclatura correspondente diviso da natureza desempenha a mesma funo que havia cumprido no KV, embora existam diferenas entre as duas obras. Em ambas as obras, antes de oferecer tal nomenclatura, Espinosa j havia estabelecido a distino entre Deus e seus efeitos e o modo como o primeiro causa de tudo. No captulo 3 da primeira parte do KV, por exemplo, o filsofo nos oferece uma lista que contm oito maneiras pelas quais podemos considerar Deus como causa: (1) Causa emanativa ou produtiva de suas obras, que em relao a operao que se est realizando uma causa ativa ou eficiente; (2) Causa imanente e no transitiva; (3) Causa livre; (4) Causa per se e no por accidens; (5) Causa principal das obras que criou imediatamente e causa menos principal das coisas particulares; (6) Causa primeira ou inicial; (7) Causa universal; (8) Causa prxima das coisas que foram criadas imediatamente por ele, mas em certo sentido causa ltima (laaste) de todas as coisas particulares.

No texto da tica, por sua vez, encontramos alguns tpicos da lista dos sentidos em que se diz que Deus causa, mas no apresentados na forma de uma lista, os sentidos em que podemos dizer que Deus causa encontram-se espelhados pelas proposies, corolrios e esclios da tica. Depois de mostrar na proposio 15 que tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido, d-se inicio, na proposio 16, teoria da causalidade em Deus. Na proposio 16, Espinosa afirma que da necessidade da natureza divina devem resultar coisas infinitas em um nmero infinito de modos, isto , tudo o que pode cair sob um intelecto infinito, desta proposio resultam os corolrios I, II e III, nos quais podemos ler, respectivamente, que Deus causa eficiente de todas as coisas, causa per se e no per accidens e que absolutamente causa primeira. Seguindo a trilha dos sentidos em que se pode dizer que Deus causa, encontramos nos dois corolrios de EIP17 que no existe causa alguma, extrnseca ou intrnseca a Deus, que o incite a agir, alm da perfeio da sua prpria natureza, e que s Deus causa livre. Na proposio 18 da mesma parte, Espinosa afirma e demonstra que Deus causa imanente de todas as coisas, e no causa transitiva. No corolrio de EIP24, o filsofo escreve que Deus causa de ser das coisas, e, na proposio 25, Espinosa completa afirmando que Deus causa eficiente da essncia e da existncia das coisas. Por fim, a lista se completa nos esclio de EIP28, no qual podemos ler que Deus causa prxima, absolutamente, das coisas produzidas imediatamente por ele e que se no pode dizer com propriedade que Deus causa remota das coisas singulares, a no ser, porventura, para fazer distino entre elas e as que ele produziu imediatamente, ou, para melhor dizer, que resultam de sua natureza absoluta.

A exposio dos sentidos em que podemos dizer que Deus causa se d, nas duas obras, antes que se instaure a nomenclatura que procura dar conta dos conceitos de Deus entendido como causa de si e dos efeitos de que ele causa. Isso prova que Espinosa, nas duas obras, estava preocupado em estabelecer uma espcie de estatuto da causalidade divina sobre os modos, sejam eles infinitos imediatos, infinitos mediatos e finitos, antes mesmo de tratar de modos finitos especficos na parte dois do KV e na segunda parte da tica. , portanto, na primeira parte dessas duas obras que Espinosa resolve o problema referente gnese do finito; na segunda parte, trata-se de mostrar, antes de tudo, como os modos finitos se engendram a partir da prpria finitude, toda referncia a Deus remeter sempre primeira parte das duas obras.

Nossa anlise, centrando-se na leitura da tica, constitui-se como tentativa de mostrar como surge a finitude no De Deo. Trata-se de questo central, pois sem resolv-la, a coerncia do sistema fica abalada, uma vez que todas as teses da filosofia de Espinosa esto vinculadas quela de que s h uma nica substncia da qual tudo mais modo. Ao retirar do campo da finitude a substancialidade, ao apresent-la sempre sobre o signo da modalidade que afeco da substncia, Espinosa fica obrigado a mostrar, de modo coerente, como se d o surgimento da finitude em seu sistema.

2Da Verdadeira Definio de Movimento ou Sobre a Origem dos Corpos

As Etapas da Correspondncia

A leitura da correspondncia partilhada por Tschirnhaus e Espinosa, de acordo com Chaui, se atenta, nos revela a existncia de trs etapas que variam no s quanto ao assunto abordado, mas quanto ao tom do discurso nelas proferido. Estas trs etapas, ainda conforme a comentadora, so as seguintes: as cartas de 1674, que constituem a primeira etapa, tm por tema o livre-arbtrio; a segunda, que compreende as cartas de 1675, tem como objeto o problema do mtodo e da fsica; a terceira etapa, que inclui as quatro cartas de 1676 e as duas ltimas de 1675, refere-se prioritariamente ontologia .

Para cada uma destas etapas h, conforme a comentadora, uma variao correspondente ao tom do discurso. Respectivamente s etapas, as mudanas quanto ao tom so as seguintes: 1) o missivista se apresenta a Espinosa como um cartesiano que faz objees a outro cartesiano; 2) depois de terem estreitado os laos de amizade e tendo Tschirnhaus lido o Tratado da Emenda do Intelecto e a primeira parte da tica, o tom um misto de consulente e aprendiz; por fim, 3) o tom agora o de um pensador que apresenta objees a outro em quem confia e cujas idias pretende adotar.

Tudo isso nos levaria a pensar, num primeiro momento, que se trata de um movimento de formao, estaramos diante de troca epistolar de um jovem que comea cartesiano e acaba espinosano, sem, no entanto, abandonar as restries e objees que julga pertinentes. Essa mudana de tom, s primeira vista, representa a passagem de um cartesiano que acaba por se transformar em espinosano. Segundo a comentadora, haveria algo de estranho na mudana operada nas duas ltimas cartas:

De fato, as duas ltimas cartas de Tschirnhaus so quase as de um opositor que cobra demonstraes, critica obscuridades, confronta Espinosa e Descartes, e isso nos leva a conjecturar que essa mudana se deve ao fato de que as ltimas cartas de Tschirnhaus so, na verdade, a apresentao de questes postas por Leibniz a Espinosa. E que Espinosa sabe disso.

Os indcios apresentados pela comentadora, para sustentar a hiptese de que Leibniz o correspondente oculto, so os seguintes:

i) ao contrrio das primeiras cartas, nas quais Espinosa oferecia grandes explicaes e muitos exemplos a Tschirnhaus, nas ltimas h excessivo laconismo;

ii) o filsofo afirma ao missivista que, h muito tempo, j havia considerado os princpios e as regras do movimento propostos por Descartes no s inteis, mas absurdos. Isso seria um indicio, na medida em que, Espinosa nas demais cartas s rejeita a sexta lei cartesiana:

ora, se Espinosa faz essa afirmao brutal sobre a fsica de Descartes e no a acompanha de nenhuma explicao no s porque essa discusso j foi feita com Leibniz (...), mas tambm porque pretende deixar claro em que se distancia de Descartes.

iii) por ltimo, Espinosa, no final da carta, sem nenhuma razo aparente, (...), indaga a Tschirnhaus se este tem notcia sobre alguma descoberta recente sobre a refrao, assunto que fora central na primeira e talvez na nica troca epistolar com Leibniz .

No por um simples acaso que a pergunta sobre a possibilidade de se demonstrar a priori, a partir do conceito de extenso, a existncia dos corpos que tm movimentos e figuras distintas, bem como o colocar em questo a proposio 16 do De Deo, que aparecem nas cartas de Tschirnhaus a Espinosa, apaream tambm nas cartas de Leibniz a Tschirnhaus. Este ltimo foi,insistentemente, solicitado pelo primeiro a se dar conta de que:

Espinosa erra com Descartes, pois, por defeito da definio, teria considerado o entendimento e a extenso noes primitivas de que tudo poderia ser deduzido (a variedade das idias e dos corpos), alm de se enganar por manter a extenso no seu sentido puramente cartesiano de extenso geomtrica.

Podemos, portanto, considerar Leibniz o destinatrio visado por Espinosa em suas respostas a Tschirnhaus. Foi a partir de exigncias leibnizianas que se entrecruzaram as questes postas nas ltimas cartas com aquelas suscitadas pela Carta 12.

Procuraremos mostrar como, nas cartas a Tschirnhaus: (a) foram formuladas questes sobre as coisas que se seguem da natureza divina; (b) como a carta 12 acabou por ser utilizada nesta discusso; feito isso, (c) procuraremos fornecer respostas, formuladas a partir da carta sobre o infinito, s questes suscitadas nas cartas que tm Leibniz como destinatrio oculto. Esse procedimento nos interessa de perto por permitir que percebamos qual o tipo de relao existente entre a Carta sobre o infinito e o De Deo, pois a proposio 16 entra em jogo, na correspondncia com Tschirnhaus, quando se trata de formular o problema da infinidade de coisas que seguem da pura e simples definio de Deus. Nossa investigao, antes de passar Carta 12, demorar-se- na segunda e terceira etapa da correspondncia entre Espinosa e Tschirnhaus, ou seja, analisaremos as duas ltimas cartas de 1675 e as quatro cartas de 1676, esse perodo, conforme apontado acima, abarca questes de fsica e ontologia. Assim, pretendemos apresentar uma ordem investigativa que nos permita perguntar em termos claros sobre o finito na Carta 12.

Da Fsica Ontologia: As Questes de Tschirnaus

A Carta 59 e a Origem da Questo

Na carta 59, datada de 5 de janeiro de 1675, Tschirnhaus pergunta a Espinosa quando conseguiremos seu mtodo de dirigir retamente a razo para adquirir o conhecimento de verdades desconhecidas, bem como suas noes gerais de fsica. Tschirnaus nos revela ter conhecimento de que Espinosa vinha fazendo grandes progressos nessas reas; quanto s questes sobre mtodo, nos diz o missivista, j o sabia, e quanto s questes relativas fsica, alega que se depreende dos lemas agregados segunda parte de sua tica, com as quais se resolvem mui facilmente muitas questes de fsica . A essas duas questes o correspondente acrescenta uma solicitao:

Se tiveres tempo e oportunidade para isso, lhe rogo humildemente que me apresentes a verdadeira definio de movimento, assim como sua aplicao, e de que maneira podemos deduzir a priori, sendo a extenso, em si mesma considerada, indivisvel, imutvel, etc., que podem surgir tantas e to numerosas variedades e, por conseguinte, a existncia da figura nas partculas de um corpo, a qual, ademais, diferente em cada corpo e distinta das figuras das partes que constituem a forma de outro corpo

A essa solicitao se segue um pedido pela verdadeira definio de idia adequada, verdadeira, fictcia e duvidosa. Sua inteno, contudo, no parece ser a de receber um simples esclarecimento acerca dessa distino, Tschirnhaus parece pretender colocar outra questo a Espinosa.

Depois de pedir a Espinosa que lhe d a verdadeira definio de idia adequada, verdadeira, fictcia e duvidosa, Tschirnhaus apresenta os progressos que j conseguiu obter ao aplicar tais distines. Tomando claramente como ponto de partida o sexto axioma do de De Deo e a quarta definio da segunda parte da tica, o correspondente nos mostra quais procedimentos utilizou para investigar a diferena entre a idia verdadeira e a idia adequada. O processo simples: quando se investiga uma idia, para saber se ela , alm de verdadeira, adequada, basta perguntar-se pela causa dessa idia; uma vez conhecida essa causa preciso se perguntar novamente pela causa da causa, ou seja, pela causa da nova idia. Esse procedimento deve ser realizado at que descubramos uma idia para a qual no possamos descobrir outra que lhe seja causa.

No entanto, ser esse procedimento vlido para aquelas coisas que podem ser expressas de infinitos modos? isso que Tschirnhaus quer saber, e no qual a diferena entre a idia verdadeira e a adequada. O missivista deseja que Espinosa apresente um critrio para escolher qual a melhor idia, dentre as vrias das quais se podem deduzir uma coisa:

Assim, por exemplo, a idia adequada de crculo consiste na igualdade dos raios e consiste tambm em infinitos retngulos, iguais entre si, formados por seguimentos de duas linhas, e assim por diante, pois tm infinitas expresses, cada uma das quais explica a natureza do crculo. E, ainda que de cada uma delas se possam deduzir todas as demais coisas que se pode saber sobre o crculo, isso se obtm muito mais facilmente de uma delas do que de outra.

No de estranhar que uma carta que comeou com questes sobre como, da natureza da extenso, possvel deduzir a priori a existncia da diferena entre os corpos termine com questes referentes distino entre a idia verdadeira e a adequada; sobretudo, com uma questo que versa sobre como escolher a melhor idia para iniciar a deduo no caso de coisas que podem ser expressas de infinitos modos. Pois, ao fim, o que Tschirnhaus deseja saber qual a idia mais fcil para dar incio deduo a priori dos corpos a partir da idia de extenso.

Esclarecimentos sobre o mtodo, sobre as noes gerais de fsica, sobre como se originam os corpos a partir do conceito de extenso e sobre a verdadeira definio de idia adequada, verdadeira, fictcia e duvidosa so todas as exigncias postas por Tschirnaus na Carta 59. Antes de irmos resposta de Espinosa vejamos quais teses da tica, uma vez que ela referida na correspondncia em questo, abrem margem s questes postas por Tschirnaus. Esse procedimento nos permitir mostrar que todas as questes elencadas esto diretamente relacionadas e, alm disso, situar em que termos possvel colocar as mesmas, no a Espinosa, mas em Espinosa.

Antecedentes das Questes Sobre Mtodo, Fsica e Movimento

A solicitao acerca da verdadeira definio de movimento e da possibilidade de se deduzir a priori numerosa variedade de figuras nas partculas de um corpo mantm relao direta com as questes sobre o mtodo e sobre a fsica, pois ambas tm como pano de fundo a proposio 16 da primeira parte da tica e os lemas da segunda parte.

Na proposio 16, Espinosa afirma que da natureza divina devem resultar coisas infinitas em nmero infinito de modos, isto , tudo o que pode cair sob um intelecto infinito, e, na demonstrao da mesma proposio, acrescenta:

esta proposio deve ser evidente a quem quer, se pelo menos atentar nisto: da definio dada de uma coisa qualquer, o intelecto conclui vrias propriedades, que efetivamente so seqncia necessria da mesma definio (isto , da prpria essncia da coisa).

No lema 1, por sua vez, l-se: os corpos distinguem-se uns dos outros em razo do movimento e do repouso, da rapidez e da lentido, e no em razo da substncia. A proposio 16, juntamente com sua demonstrao, desempenha ao mesmo tempo funo metodolgica e ontolgica. Nela temos a identificao entre as operaes do intelecto e a deduo das coisas a partir da natureza divina. A maneira como as coisas resultam da natureza divina idntica ao procedimento por meio do qual o intelecto conclui vrias propriedades de uma definio. Isso nos leva a afirmar que a origem da variedade entre os corpos, abordada por Espinosa no lema 1 de EII, deve ser buscada no resultar da natureza divina.

Pelo que precede, v-se que a origem da diferena entre os corpos no est em que so substncias distintas, mas nas variaes entre as relaes de velocidade que estes assumem. O problema que se pe a partir da e que o missivista aponta para pedir auxlio a Espinosa, caso este tenha tempo e oportunidade, o de saber como surgem, da substncia nica, essas variaes que garantem a distino entre os corpos. A mesma questo aparece novamente nas cartas 80 e 82, respectivamente: (...) com grande dificuldade posso conceber como se demonstra a priori a existncia dos corpos que tm movimentos e figuras, posto que na extenso, considerada por si s, no existe nada disso, desejaria que, nesse assunto, me fizesses um favor indicando como, segundo suas meditaes, se pode explicar a priori, a partir do conceito de extenso, a variedade das coisas.

Ambas as questes so suscitadas pelas proposies que antecedem a proposio 16. O problema no o de decorrer infinitos modos da natureza infinita de Deus, mas o da natureza mesma de Deus da qual decorrem essa infinidade de modos. Investiguemos essa natureza.

Sobre a Natureza do Deus da qual Decorre uma Infinidade de Modos

Na proposio 15 do De Deo, Espinosa afirma que tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido. Ou seja, no h um fora da substncia, como diz Deleuze: o interior somente um exterior selecionado; o exterior, um interior projetado . A demonstrao dessa proposio encontra apoio na proposio 14, nas definies 3 e 5 e no axioma 1. Na proposio 14 estabelece-se que no h, fora Deus, nenhuma substncia. Sendo assim, como nos informa a demonstrao, Deus passa a ser entendido como ente absolutamente infinito do qual no pode se negado nenhum atributo que exprima uma essncia da substncia. Sabemos, pela proposio 11, da qual Espinosa lana mo na demonstrao em questo, que Deus a substncia que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essncia eterna e infinita e existe necessariamente. Tendo definido Deus como substncia, no desconsiderando as implicaes que a palavra substncia recebe no livro I, tendo demonstrado que no h substncia alm dEle, Espinosa extra, nos corolrios 1 e 2 de EI,P14, os seguintes resultados: 1) Deus nico, 2) que a coisa pensante e a coisa extensa so ou atributos de Deus, ou (pelo axioma 1) afeces dos atributos de Deus.

Atentemos para a atribuio, operada na proposio 15, da coisa extensa a Deus. O processo argumentativo pode ser transcrito nos seguintes termos: Sendo Deus uma substncia nica e absolutamente infinita, no podemos negar-lhe nenhum atributo, porquanto ao que somente infinito no seu gnero podem negar-se-lhe infinitos atributos, e, pelo contrrio, ao que absolutamente infinito pertence respectiva essncia tudo o que exprime uma essncia e no envolve qualquer negao (EI, def.6, explicao). Logo, devemos considerar que a extenso um atributo de Deus; por outras palavras, Deus uma coisa extensa (EII, P2).

A atribuio da extenso a Deus leva diretamente ao problema da divisibilidade e corrupo da matria, questo tradicional. Em linhas gerais, pode-se dizer que a tradio filosfica sempre teve uma tendncia a considerar a extenso como algo passivo, corruptvel e divisvel, por esse motivo sempre oscilou, a grosso modo, entre duas opes: a) negar a extenso como algo pertencente a Deus. Essa posio encontra problemas para explicar qual a causa da matria; b) criar dois conceitos de extenso, como far mais tarde Malebranche, um material e outro inteligvel. A partir dessa distino, o filsofo pretende garantir certa racionalidade no mundo, pois isso permite explicar que Deus a causa da extenso com a qual nos relacionamos (a extenso inteligvel), ao mesmo tempo em que torna possvel reservar espao para o mistrio, morada da extenso material, passiva, divisvel, etc.. Desta ltima, somos informados somente pelas sagradas escrituras, s pela palavra divina podemos saber que a extenso material existe de fato.

Espinosa, assim como a tradio, no pode admitir que a extenso seja divisvel, corruptvel, etc., pois Deus uma coisa extensa e tudo que se aplicar a extenso ter que ser aplicado a Deus.

O problema da divisibilidade apresenta, neste momento, pelo menos duas facetas: a da divisibilidade da substncia em atributos e a da divisibilidade do prprio atributo.

A substncia no se divide em atributos, embora cada um dos seus atributos deva ser concebido por si (EI, P10). O atributo deve ser concebido por si, pois, de acordo com a definio 3, ele o que o intelecto percebe da substncia como constituindo a essncia dela. Uma vez que constitui a essncia da substncia, que o que existe em si e por si concebido (EI, def.3), exprime a eternidade da mesma. Dessa maneira, deve-se concluir que os atributos sempre nela existiram simultaneamente (EI, P10,esc.), pois mesmo que dois atributos sejam concebidos como realmente distintos, isto , um sem o contributo do outro, nem por isso se pode concluir que constituam dois entes, isto , duas substncias (Idem, ibidem).

O problema da divisibilidade do prprio atributo o que nos compete, pois est intimamente ligado quele do finito. no atributo que se encontram os modos. Sejam eles infinitos ou finitos, um modo ser sempre modo de um atributo. preciso saber de qual maneira cada modo encontra-se no atributo, esse causa imediata dos modos infinitos imediatos, mas o mesmo no vale para os modos finitos. Aqui surge o problema de se estabelecer qual a relao que esses mantm com os atributos. Isso se constitui como problema na medida em que os modos existem em outro; existir em outro pode tanto se referir existncia num outro modo quanto num atributo. No entanto, mesmo que um modo exista em outro modo e este, por sua vez, em outro, num processo que se estende ao infinito, sempre acabaremos por esbarrar no atributo como fundamento dos modos. A tenso dessa relao entre atributo e modo surge ao se constatar que h divisibilidade modal, mas no h e nem pode existir divisibilidade atributiva: o modo modo de um atributo, no qual existe, age, engendra-se e perece, porm o atributo no suporta nenhuma espcie de diviso. A questo que se coloca saber como ocorre a divisibilidade do modo sem que o atributo venha a se dividir, j que o modo finito individual, particular e existe num atributo que no tem partes e no se divide.

Depois de demonstrar que nada pode existir ou ser concebido fora de Deus, ou seja, que tudo est em Deus, Espinosa se v obrigado a dar conta da presena em Deus da extenso e dos corpos, esse ser o tema do esclio de EIP15. No esclio, Espinosa sustenta as seguintes teses:

(a) Deus no pode ser pensado semelhana do homem. Por esse motivo, um equvoco imagin-lo composto de uma alma e de um corpo e sujeito s paixes;

(b) a substncia extensa no pode ser tomada como sinnimo de corpo, pois a primeira infinita enquanto o segundo no o ;

(c) no h criao, a substncia extensa um dos atributos eternos de Deus;

(d) a substncia extensa no divisvel.

As teses (a), (b) e (c) funcionam como passos para o estabelecimento de (d). Entretanto, isso no significa que (d) no sirva como fundamento, por exemplo, para (a), (b) e (c), pois todas elas esto intimamente articuladas. Dizer que a tese (d) tem por fundamento as anteriores, o mesmo que afirmar que, no esclio, ela que precisa ser apresentada. Isso pode ser observado pela prpria estrutura do texto, cujos passos lgicos sero apresentados nos pargrafos que se seguem.

Em primeiro lugar, Espinosa recusa que Deus possa ser corpreo; essa recusa se d de duas maneiras: recorrendo-se s demonstraes precedentes e levando-se em considerao aquilo que negam todos os que tm considerado, por pouco que seja, a natureza divina, a saber, negam que Deus seja corpreo. O que, de acordo com autor, provam muitssimo bem com o fato de entendermos por corpo qualquer quantidade com comprimento, largura e altura, limitada por uma figura. Em outras palavras, podemos dizer que a recusa da atribuio de corporeidade a Deus reside na incompatibilidade que h entre infinitude de Deus e os limites que um corpo, para ser corpo, deve, por definio, possuir. Tal incompatibilidade de natureza ou definio. Disso resulta a tese (a).

Contudo, os mesmo que admitem (a), e esses so os alvos visados por Espinosa, negam (b) e (c) ao pretenderem, por razes diversas daqueles que usam para sustentar (a), remover totalmente a substncia corprea ou extensa da natureza divina. Os mesmos, observa Espinosa, admitem que a extenso tenha sido criada por Deus, mas ignoram, porm, completamente, por que potncia divina ela poderia ter sido criada, o que mostra claramente que no entendem o que dizem.

Antes de passarmos aos demais passos, importante chamar a ateno para o fato de que Espinosa considera a tese (a) de fcil demonstrao; isso pode ser provado pela seguinte afirmao: todos os que tm considerado, por pouco que seja, a natureza divina, negam que Deus seja corpreo. Alm disso, nos diz que a prova destes que tm considerado muitssimo boa. Disso resulta haver algo em comum entre Espinosa e os adversrios das teses (b), (c) e (d). Esse ponto em comum o entendimento que ambos tm do corpo como qualquer quantidade com comprimento, largura e altura, limitada por alguma figura, e de Deus, entendido como o ente absolutamente infinito. Essa identidade entre o entendimento que Espinosa e os seus adversrios tm em relao ao corpo e a Deus como ente absolutamente infinito, estabelece-se pela presena de entendermos (intelligimus), que indica acordo entre estes conceitos. No devemos, todavia, nos precipitar e concluir que esse acordo pacfico. Na verdade trata-se de uma estratgia, Espinosa est, como diz Bennett, capturando, em seus prprios termos, tanto quanto possa as filosofias rivais . Porm, no se trata simplesmente, como pensa o comentador, de uma questo de gosto. Espinosa captura as filosofias rivais, porque delas nasce o seu contradiscurso: um pensamento que se elabora como crtica interna da Metafsica e da Teologia, de tal modo que as idias espinosanas no se opem s da tradio, mas nascem da negao interna prpria tradio teolgico-metafsica.

Essa negao interna, que se insurge contra a idia de que a substncia extensa no um dos atributos de Deus, como j mostramos, foi efetuada a partir de procedimentos engendrados nas proposies que antecedem a proposio 15. No esclio da mesma, Espinosa nos indica o percurso dessa demonstrao:

Eu, pelo menos, demonstrei (corolrio da proposio 6 e esclio 2 da proposio 8), de modo bastante claro, segundo me quer parecer, que nenhuma substncia pode ser produzida ou criada por outra coisa. Alm disso, mostramos na proposio 14 que fora de Deus no pode haver nem ser concebida nenhuma substncia, donde conclumos que a substncia extensa um dos atributos infinitos de Deus.

Entrementes, mesmo que o percurso demonstrativo j tenha sido realizado, Espinosa se dispe a refutar os argumentos contrrios e a oferecer uma explicao mais completa, na qual pretende mostrar que a substncia indivisvel, no podendo ser dividida em partes sejam elas finitas ou infinitas. Isso essencial para habilitar o uso da palavra infinito aplicada extenso. Feito isso, pode-se assumir a tese polmica de que a substncia extensa um dos atributos de Deus (c). A refutao seguir essa ordem alfabtica, ou seja, vai de (b) (c).

Para dar cabo inteno de refutar a tese de que a extenso no um dos infinitos atributos de Deus, Espinosa estrutura sua argumentao do seguinte modo: apresenta dois argumentos contrrios sua tese, bem como os mesmos so exemplificados por aqueles que os sustentam; logo aps, nos remete mais uma vez s demonstraes e proposies da tica que servem para mostrar o absurdo de se pensar a substncia extensa como finita e divisvel. Passemos a apresentao dos argumentos que Espinosa pretende refutar.

O primeiro argumento utilizado para negar que a substncia extensa um dos atributos infinitos de Deus o seguinte: a substncia corprea, dizem os adversrios, , enquanto substncia, composta de partes; por esse motivo, negam que a substncia possa ser infinita e, conseqentemente, que possa pertencer a Deus. Para fundamentar essa dupla rejeio nos oferecem trs exemplos:

1) Se a substncia corprea for infinita, por ser corprea, deve poder ser dividida, mas pensar sua diviso problemtico. Se, por exemplo, dividirmos a substncia em duas partes, cada parte dever ser finita ou infinita; se finita, dizem, o infinito compor-se-ia de duas partes finitas, o que um absurdo. Caso sejam infinitas as partes da substncia, estaremos novamente diante de um absurdo, visto que seremos obrigados a admitir a existncia de um infinito duplo de um outro infinito. No primeiro caso, o absurdo est em se pensar o infinito como resultado ou agregado que pode ser desmembrado em partes finitas. Resulta disso que poderamos conceber o infinito como se esse pudesse ser constitudo de duas partes determinadas, dessa maneira de uma dupla determinao extrairamos o indeterminado. No segundo, seramos levados a admitir que o produto da diviso seria maior que o dividendo: de um infinito poderamos extrair dois infinitos, da soma desses dois infinitos resultaria um infinito ainda maior. Neste ltimo caso, embora Espinosa no o diga explicitamente, chegaramos a afirmao absurda de que uma coisa pode transmitir aquilo que no tem.

2) Os adversrios dizem que:

se se medir uma quantidade infinita em partes do comprimento de um p, ela dever constar em partes em um nmero infinito, do mesmo modo que se for medida em partes de polegada; por conseqncia, um nmero infinito ser doze vezes maior que outro nmero infinito (EIP15 esc.).

A fora argumentativa desse exemplo est em mostrar que teramos uma variao na quantidade de partes que compem a extenso infinita. Caso medssemos a quantidade infinita de partes em ps, teramos uma quantidade menor de partes e maior em tamanho; se medssemos essa quantidade infinita em polegadas teramos o resultado contrrio. Ou seja, teramos um infinito composto de X ps ou X polegadas, o problema est em que haveria uma variao numrica correspondente a incgnita X, pois, como sabemos, 1 P equivale a 12 polegadas e 1 polegada tem como valor correspondente 25,4mm. Se se medir a extenso em partes de polegadas, cada uma de suas partes ter 25,4 mm, se, ao contrrio, a medirmos em quantidade de Ps, cada uma das partes ter 304.8 mm.

3) Finalmente, nos diz Espinosa, argumentam que se imaginssemos duas linhas, AB e AC, originadas em um ponto de uma quantidade infinita com uma quantidade de distncia inicial determinada e as prolongssemos ao infinito, teramos como resultado que a distncia entre B e C aumentaria progressivamente, de tal modo que a distncia que antes era determinada passaria a ser indeterminvel.

Dessa forma, incorreramos no absurdo de afirmar a existncia de uma determinao indeterminada. A distncia entre B e C, que inicialmente poderia ser descrita por uma quantidade numrica determinada, passa ao campo da indeterminao, no podendo mais ser descrita por nenhuma quantidade determinada, embora, e aqui se encontra a raiz do absurdo, continue a ser uma distncia compreendida entre dois pontos determinados. A conseqncia absurda que teramos de admitir que o infinito seja ao mesmo tempo indeterminado e determinado; por outras palavras, somos levados a afirmar coisas sem sentido tais como: o infinito tem limites, portanto, o infinito finito.

Se o primeiro argumento, cujos exemplos acabamos de apresentar, toma como ponto de apoio a idia de que a substncia extensa consta de partes, o segundo retirado da idia de perfeio divina: Deus , dizem, dado que o ente sumamente perfeito, no pode ser paciente; ora, a substncia corprea, dado que divisvel, pode ser paciente; por conseqncia, no pertence essncia de Deus.

Finda essa exposio, dos argumentos e exemplos utilizados pelos escritores que se esforam por mostrar que a substncia corprea repugna natureza divina e no lhe pode pertencer, Espinosa passa crtica dos mesmos. D-se inicio ao trabalho de desconstruo interna das teses adversrias.

O fundamento de todos esses argumentos encontra-se somente na suposio de que a substncia corprea composta de partes. Essa suposio absurda, pois j foi mostrado, na proposio 12 e no corolrio da proposio 13, respectivamente, que no se pode conceber qualquer atributo da substncia do qual resulte que ela possa ser dividida e que a substncia absolutamente infinita indivisvel. Ao arrolar ambas as proposies que atacam o fundamento dos argumentos a favor da tese de que a substncia corprea composta de partes, Espinosa retira as condies de possibilidade dos mesmos. No h como se pr as questes suscitados por eles se levarmos em conta o que foi demonstrado nas duas proposies elencadas acima. Tais questes, como nos mostrar Espinosa no final do esclio seguindo o mesmo procedimento apresentado na Carta 12, so frutos da confuso que se faz entre os gneros de conhecimento pelos quais podemos conceber a quantidade.

A substncia corprea no pode ser composta de partes, se assim o fosse, poderamos dividi-la, e as partes em que fosse dividida deveriam conservar ou no conservar a natureza da substncia. Caso a natureza fosse conservada em cada uma das partes, ambas deveriam ser consideradas substncias e, em decorrncia disso, deveramos afirmar delas, obrigatoriamente, tudo aquilo que se afirma da prpria substncia. Porm, no conceito de substncia encontramos predicados que impossibilitam pensar em uma pluralidade substancial. No h analogia nem equivocidade entre substncias, h somente uma nica substncia. Por essa razo, torna-se impossvel, pois contraditrio, conceber a existncia de mais de uma substncia. Supondo que admitssemos a idia de tais partes, argumenta Espinosa, seramos levados a afirmar a existncia necessria de dois entes infinitos que so causa de si mesmos e que constam, cada um deles, de um atributo diferente.

interessante observar que Espinosa, na argumentao que apresentou em EIP12d, inverte a ordem progressiva da apresentao da tica quando, na demonstrao, recorre s proposies 5,6 e 8 para mostrar a impossibilidade de se conceber qualquer atributo da substncia do qual decorra que a mesma possa ser dividida. Isso, talvez, possa ser tomado como uma indicao de que toda estrutura da demonstrao centra-se na noo de infinito como idia reguladora que permite o estabelecimento das demais. Dessa forma, pode-se afirmar a seguinte estrutura: porque toda substncia necessariamente infinita (EIP8) que no podemos admitir que possa ser produzida por outra substncia (EIP6) e, por conseqncia: Na natureza no podem ser dadas duas ou mais substncias com a mesma propriedade ou atributo (EIP5).

A proposio 13 apresenta certa similaridade argumentativa com sua antecedente: novamente supe-se como possvel a diviso da substncia, com o adendo de que agora, em EIP13, entra em jogo o advrbio absolutamente para qualificar o infinito substancial: A substncia absolutamente infinita indivisvel. Assim, argumenta Espinosa, as partes em que a substncia fosse dividida deveriam conter ou no conter a natureza absolutamente infinita da substncia. Caso contivessem, teramos que aceitar aquilo que foi apresentado como impossvel em EIP5: existiriam, na Natureza, duas substncias com a mesma propriedade ou atributo. Isso, como acabamos de afirmar, , de acordo com o estabelecido na proposio 5, impossvel, pois seriam dadas duas substncias com a mesma natureza; Na demonstrao dessa proposio, Espinosa apresenta dois critrios que as substncias deveriam atender para que pudessem ser consideradas distintas uma da outra e no uma nica substncia: se fossem dadas vrias substncias distintas, deveriam distinguir-se entre si ou pela diversidade dos atributos ou pela diversidade das afeces (EIP5d).

Caso a nota distintiva das substncias fosse buscada nas afeces, teramos que admitir que s h uma nica substncia, pois, desde a definio 5 do De Deo, sabemos que as afeces so os modos da substncia e ser modo equivale a existir noutra coisa pela qual tambm se concebido. Ao ser concebido como aquilo que existe in alio, o modo, por definio, apresenta posterioridade lgica e ontolgica em relao substncia entendida como o que existe em si e por si concebido. Dessa maneira, se despojssemos duas hipotticas substncias de seus modos ou afeces, teramos uma mesma substncia. Disso conclui-se que as afeces da substncia no servem como nota distintiva.

Resta-nos ento o caso dos atributos: se supusermos que vrias substncias se distinguem pela diversidade de seus atributos, teremos que conceder, de acordo com Espinosa em EIP5d, que somente dada uma do mesmo atributo. Mais uma vez faz-se necessrio o recurso s definies: o atributo definido como o que o intelecto percebe da substncia como constituindo a essncia dela (EID4). Aquilo que constitui a essncia da substncia constitui tambm sua existncia, pois se os atributos exprimem a essncia da substncia, na medida em que essncia da substncia pertence o existir, exprimem tambm sua existncia. Uma vez que a substncia, como fica claro pela definio real de Deus, absolutamente infinita, ou seja, o ser que no suporta nenhuma espcie de negao (EIP8esc.), no podemos afirmar que algum atributo no lhe pertena. Disso resulta, a necessidade de se conceder que somente dada uma do mesmo atributo, pois se existissem duas substncias, teramos que admitir a existncia de dois seres absolutamente infinitos cujas existncias seriam afirmaes absolutas. Como conseqncia, tem-se a obrigatoriedade de que, por serem absolutamente infinitas, compartilhariam pelo menos algum atributo, caso isso acontecesse teramos uma e no duas substncias, afinal ambas as substncias no poderiam se distinguir por possurem algo em comum. Caso no aceitssemos se tratar de uma e no de duas substncias seramos obrigados a aceitar uma contradio em termos: teramos que admitir a existncia de dois seres absolutamente infinitos os quais possuiriam algo em comum entre si, assim, um envolveria o conceito do outro sem que se limitassem reciprocamente. Em outros termos, estaramos aplicando substncia tudo aquilo que vlido somente para os modos que so afeces dela. Para melhor esclarecer isso, cabe voltar definio de finito no gnero.

Na segunda definio do De Deo, Espinosa nos diz que uma coisa finita no seu gnero quando pode ser limitada por outra de mesma natureza, a essa definio o filsofo acrescenta a seguinte explicao:

Por exemplo: Um corpo diz-se que finito porque sempre podemos conceber outro que lhe seja maior. Do mesmo modo, um pensamento limitado por outro pensamento. Porm um corpo no limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo.

Ser finito no gnero o mesmo que ser limitado por outro de mesma natureza. Suponha-se que o conjunto de todos os pensamentos, ao qual denominaremos conjunto P, seja infinito. Nesse conjunto, poderemos encontrar pensamentos finitos, representados pela letra p e seguidos de uma designao numrica, a mesma coisa ser vlida para o conjunto dos corpos, C. Assim, teremos: P {p1,p2, p3, ...} e C {c1,c2,c3,...}. Ambos os conjuntos so infinitos no gnero, porm seus elementos so finitos no gnero. Desse modo, o conjunto P no limita e nem limitado pelo conjunto C. O limite encontra-se somente no interior de cada um dos conjuntos, pois para que uma coisa limite a outra preciso que tenham a mesma natureza: c1 tem a mesma natureza que c2, por isso ocorre limitao, o mesmo no ocorre entre P e C. Se agora pensarmos em um conjunto absolutamente infinito, S, desse conjunto teremos que afirmar P {p1,p2, p3, ...}, C {c1,c2,c3,...} e todos os outros conjuntos existentes. Isso torna impossvel, por exemplo, afirmar a existncia de um conjunto S2. Se quisermos afirmar de S2 tudo aquilo que afirmamos de S, pois teramos dois conjuntos com os mesmos elementos, seria impossvel distinguir um do outro, de tal maneira que teramos que afirmar se tratar do mesmo conjunto.

Quando Espinosa afirma que somente dada uma do mesmo atributo, est nos dizendo que impossvel existir duas substncias absolutamente infinitas, pois o absolutamente leva, obrigatoriamente, a admisso de pelo menos um atributo comum. Tal admisso, por sua vez, nos obriga a perceber o quo absurdo seria postular a existncia de dois seres absolutamente infinitos. Pois, como sabemos pela explicao dada na definio 6, h uma diferena entre aquilo que absolutamente infinito e aquilo que infinito no gnero: porquanto ao que somente infinito no seu gnero podem negar-se-lhe infinitos atributos, e, pelo contrrio, ao que absolutamente infinito pertence respectiva essncia tudo o que exprime uma essncia e no envolve qualquer negao.

Disso tudo, das proposies 12 e 13 acrescidas s suas respectivas demonstraes, se segue que a substncia e os atributos da substncia s podem ser concebidos como infinitos e indivisveis. Ficam, portanto, excludos os argumentos daqueles que negam ser a extenso um dos infinitos atributos de Deus, pois os absurdos apontados por eles resultam de suporem uma quantidade infinita mensurvel e composta de partes e no, como pensam, de se supor a existncia de uma quantidade infinita. Ao suporem uma quantidade infinita mensurvel, nada mais fazem do que confundir aquilo que da ordem da imaginao com aquilo que , nica e exclusivamente, de ordem intelectual.

De acordo com Espinosa, tal confuso tem como origem o no se saber distinguir o intelecto da imaginao. Aquele que realiza essa distino sabe que a quantidade pode ser concebida tanto por um, quanto por outro: como quantidade abstrata, no caso da imaginao, ou, por meio do intelecto, como substncia. Ao no realizarem as devidas distines, confundem a quantidade que s pode ser concebida como substncia com a quantidade abstrata. Assim, tentam pensar a primeira a partir de conceitos que se referem somente segunda, agindo tal qual aquele que pretende dizer que o crculo no crculo porque no tem as propriedades do quadrado.

Dessa forma, perdem sentido as afirmaes de que a substncia extensa consta de partes e que Deus no poderia ser extenso, uma vez que sua perfeio excluiria da sua natureza qualquer atributo que implique na passividade dEle. Ora, Espinosa nos mostrou que a correta concepo de quantidade infinita permite que se conceba Deus como extenso, pois a extenso, quando adequadamente compreendida, no pode ser mensurvel e nem divisvel. Deus extenso. Em primeiro lugar, extenso, porque o Ser absolutamente infinito ao qual pertence tudo que exprime uma essncia e no envolve qualquer negao (EID6, expl.). Em segundo lugar, Deus extenso, porque a extenso infinita e indivisvel.

Esse percurso nos mostra o que levou Tschirnhaus a perguntar insistentemente pela origem e diferena entre os corpos. Pelos lemas da segunda parte da tica, sabemos que a diferena entre os corpos se d em razo do movimento e repouso, da rapidez e da lentido, e no em razo da substncia (EII, lema I). Tschirnhaus conhecia esse lema e, mesmo assim, coloca a questo acerca da origem do movimento e da diferena entre os corpos. Isso no significa que ele no tenha aceito o lema, mas, sim, que no conseguiu entender como, da substncia extensa, surge o movimento e como ela comunica esse movimentos aos modos finitos.O lema explica qual a origem da diferena entre os corpos, sem explicar qual o lugar de onde se origina esse movimento. Subsiste a questo: como da natureza da extenso, tomada em si mesma, surge a variedade entre os corpos?

A Resposta de Espinosa

A resposta de Espinosa comea pela distino entre a idia verdadeira e a adequada. Sobre essa diferena, o filsofo afirma s reconhecer que enquanto o termo verdadeiro s se refere convenincia da idia com seu objeto (ideatum), o termo adequado se refere natureza da idia em si mesma. A diferena entre uma e outra reside na relao extrnseca: a idia verdadeira dependente de tal relao, para que uma idia seja considerada verdadeira ela deve corresponder ao seu ideato. J no caso da idia adequada, isso no acontece, pois ela no depende de uma relao de convenincia com o seu ideato: no a relao com o ideato que ir garantir que a idia seja adequada, a adequao se refere a uma denominao intrnseca da idia enquanto idia. Nesse sentido, poderemos ler no 71 do TIE: Portanto, a forma do conhecimento verdadeiro deve achar-se no prprio conhecimento, sem relao com outros (conhecimentos), nem conhece o objeto como causa, mas deve depender do prprio poder do intelecto. A idia adequada depende unicamente do poder do intelecto, enquanto a idia verdadeira depende de uma relao com o objeto.

Exposta a diferena entre idia verdadeira e adequada, Espinosa oferece um critrio para que se escolha dentre as vrias idias aquelas que podem servir como ponto de partida no processo definitrio das coisas que podem ser expressas de modos infinitos: que essa idia ou definio da coisa expresse a causa eficiente (Carta 60, p. 342). Como exemplo, Espinosa retoma o caso da idia de crculo, que, segundo ele:

para investigar a natureza do crculo, averiguo se dessa idia de crculo, a saber, que consta de infinitos retngulos, posso deduzir todas as suas propriedades; averiguo, repito, se esta idia inclui a causa eficiente do crculo, e, como no assim, busco outra, a saber, que o crculo um espao descrito por uma linha, com um de seus extremos fixos e outro mvel. E como essa definio j expressa a causa eficiente, sei que posso deduzir dela todas as propriedades do crculo, etc.

Com essa resposta, Espinosa mostra que Tschirnhaus se engana quando pensa existir mais de uma idia que possa servir como causa bastando escolher aquela que permitiria a deduo de maneira mais fcil. De acordo com Espinosa, s possvel realizar a deduo da idia que expresse a causa eficiente. Somente dessa idia possvel extrair todas as propriedades que a mesma comporta. Tschirnhaus erra quando pensa poder deduzir a idia de crculo a partir de diversas idias, pois nenhuma das idias oferecidas por ele expressa a causa eficiente do crculo. Espinosa poderia acrescentar a Tschirnhaus que a idia adequada do crculo no consiste na igualdade dos raios e nem em infinitos retngulos, esses elementos no mximo podem ser considerados prprios do crculo e no a expresso de sua causa eficiente.

Ao exemplo da definio de crculo, Espinosa acrescenta outro: a definio de Deus. Se definirmos Deus como o ser sumamente perfeito, no poderemos extrair dessa definio todas as propriedades de Deus, pois a mesma no expressa a causa eficiente, seja ela interna ou externa. No entanto, se definirmos Deus tal qual na definio 6 da primeira parte da tica, a saber, como o ente absolutamente infinito, isto , uma sustncia que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essncia eterna e infinita, poderemos deduzir tudo aquilo que pode ser deduzido da idia de Deus.

No que se refere quela que pensamos ser a questo principal da carta 59, Espinosa de maneira lacnica diz que deixaria para outra ocasio as questes relativas ao movimento e ao mtodo, dado que, a respeito dessas coisas, ainda no havia redigido nada ordenadamente. Essa resposta parece confirmar o que Bennett afirma sobre a lentido da mente de Espinosa, pois a altura dessa carta o filsofo j havia elaborado todo seu sistema filosfico. Essa resposta causa estranheza aos leitores de Espinosa, sobretudo, se levarmos em considerao a obra que o filsofo j possua na poca. Porm, grande parte dos comentadores de Espinosa, mesmo considerando isso, toma como legtima tal resposta e acredita que o filsofo no chegou a estabelecer os fundamentos ontolgicos de sua fsica por ter morrido antes de completar seu trabalho. O que esses comentadores no percebem que Espinosa indica a soluo para essas questes.

No por acaso que Espinosa oferece, na Carta 60, a definio de Deus, a qual soma-se a afirmao implcita de que dela podemos extrair todas as propriedades possveis. Voltemo-nos mais uma vez definio 6 do De Deo para ver de que forma nela so resolvidas as questes que supostamente foram deixadas para outra ocasio. Antes de tudo, pela Carta 60, sabemos que essa definio apresenta a causa eficiente interna e externa, resta saber o que isso significa. Pelo exemplo do crculo, sabemos ser a definio que expressa a causa eficiente aquela cujo ato de produo da idia inteligido, pois o crculo definido a partir da maneira como concatenado seu engendramento. Uma vez que Espinosa apresenta a definio de Deus como expresso da causa eficiente, devemos esperar dela algo similar ao que aconteceu idia de crculo. Por outras palavras, seu ato de produo deve ser mostrado.

A produo da idia adequada de Deus se d na abertura da tica, nas oito primeiras definies. Espinosa, na correspondncia, indica a sexta definio pelo papel unificador que ela apresenta em relao s demais. Conforme Chaui, essa definio composta de termos que j foram referidos e definidos nas outras definies, ao mesmo tempo em que, pelas distines apresentadas, nos remete s definies que se seguiro. Entretanto, um dos termos mais importantes que compe a definio 6 no possu definio, trata-se do termo infinito. Isso, como bem observou a comentadora, de causar estranheza, ainda mais se nos lembrarmos que, na Carta 12, Espinosa nos adverte que, se h uma idia cuja definio perfeita imprescindvel filosofia, justamente a de infinito.

Essa ausncia polmica, supe a comentadora. Espinosa no apresentou uma definio de infinito, pois no queria ser confundido com a tradio que pensava o finito como oposto ao infinito. No entanto, essa hiptese, ainda conforme a comentadora, mesmo no sendo desprezvel, apresenta os seguintes problemas: externa ao texto e deixa ficar na sombra que a idia de infinito, tal como Espinosa a concebe, est contida na primeira definio.Em outros termos, finito e infinito no so opostos, um no se constitui a partir de uma relao de oposio com o outro. No h oposio entre aquilo que limitado por outro de mesma natureza e o ilimitado: o infinito no o outro do finito, mas outro que o finito. Essa relao de alteridade ser demonstrada no primeiro esclio da oitava proposio do De Deo. Nesse esclio, Espinosa apresenta a diferena entre existncia finita e infinita: a primeira uma negao parcial, a segunda, afirmao absoluta da existncia de alguma coisa, disso resulta, em virtude da proposio 7, que toda substncia deve existir infinita. A idia de infinito, como vimos, confirmando o que havia dito a comentadora, no concebida como oposta a de finito, mas sim como alteridade: o infinito afirmao absoluta da existncia de alguma coisa. preciso lembrar, entretanto, que a existncia infinita da substncia no encontra como fundamento essa distino, mas, sim, a proposio 7. Em virtude da mesma se segue como conseqncia que toda substncia deve existir infinita, isso, por sua vez, ainda de acordo com a comentadora, decorrncia direta e imediata da definio I, 1, isto , a da causa de si. Disso possvel concluir que, se a definio de infinito conseqncia da de causa de si, a definio 1 fundamento da definio 6. O ente absolutamente infinito, isto , uma substncia que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essncia eterna e infinita (EI, D6), s pode ser aquilo cuja essncia envolve a existncia; ou por outras palavras, aquilo cuja natureza no pode ser concebida seno como existente (EI, D1).

A ligao entre as definies evidenciada pelo fato de os atributos da substncia exprimirem uma essncia eterna e infinita; ora, aquilo do qual se exprime uma essncia eterna e infinita s pode ser aquilo cuja natureza no pode ser concebida seno como existente. A definio de causa sui no constituda a partir de outras, ela o fundamento das demais que, por meio da definio seis, pode servir como ponto de partida do filosofar:

na filosofia, a idia de Deus no o equivalente lgico dessas idias [aquelas idias que so construdas pelo gemetra], e sim da idia de quantidade infinita ut absolute, que, na matemtica, no construda a partir de outras, mas nota per se, pois a primeira propriedade da natureza do intelecto conceber idias absolutamente, concebendo dessa maneira aquelas cujo ideado infinito e, portanto, cuja essncia envolve existncia.

Quando Espinosa respondeu a Tschirnhaus que deixaria as questes sobre o movimento e o mtodo para outra ocasio, s fez isso por haver oferecido, na tica, algumas indicaes para resposta. Espinosa, na carta 60, afirmou que a idia adequada expressa a causa eficiente e ofereceu como exemplo a idia de Deus, enunciada na definio 6 da primeira parte da tica. Pelo exposto, deduz-se que a idia de Deus apresenta sua causa eficiente, a saber, depois de enunciada no se pode mais perguntar se esse ser existe ou no existe, pois causa de si. Aps exemplificar e negar-se a responder as questes sobre o mtodo e o movimento, o filsofo encerra a carta retomando e rejeitando o exemplo das tangentes oferecido por Tschirnhaus anteriormente. Essa rejeio se deve ao mesmo motivo pelo qual Espinosa foi levado a recusar a definio de crculo oferecida por seu correspondente, a saber, no revela a causa eficiente.

De certas propriedades de uma coisa, afirma o filsofo, possvel deduzir algumas mais facilmente e outras mais dificilmente, mesmo que todas elas pertenam mesma natureza. Entretanto, se considerarmos aquela idia da qual todas as outras so deduzidas, poderemos fazer essa deduo, mas o grau de dificuldade, nesse encadeamento dedutivo, no ser o mesmo para todas as coisas. Assim, a deduo das primeiras coisas que se seguem dessa idia ser mais fcil, enquanto a deduo das ltimas ser mais difcil.

Rumo Carta 12

Depois de deixar aparentemente de lado, na Carta 60, a questo sobre a origem da variedade de figuras nas partculas de um corpo, Tschirnhaus volta a ela na Carta 80, mas agora a questo no se refere mais a diferena entre as partculas de um corpo. O missivista esta interessado em saber como se demonstra a priori a existncia de corpos que tm movimento e figuras, uma vez que na extenso, considerada em si mesma, no h nada disso [331]. A essa questo soma-se outra que ser acrescida de uma objeo ao que Espinosa escrevera na Carta 12. Tschirnhaus transcreve a passagem da Carta 12 a qual alega no conseguir entender: no concluem, entretanto, que tais coisas superam todo nmero pela multido de suas partes. Transcrita a passagem, objeta afirmando que os matemticos sempre demonstram acerca de tais infinitos, que o nmero de suas partes to elevado que superam todo nmero assinalvel [Idem, ibidem]. Para completar sua objeo tese espinosana de que o infinito no pode ser mensurado numericamente, pois no h nmero que d conta de sua natureza, o missivista se volta para o exemplo do crculo, apresentado por Espinosa na Carta 12. A respeito do exemplo, Tschirnhaus afirma que Espinosa no esclarece com ele o que havia proposto explicar. No exemplo Espinosa to somente teria mostrado que os matemticos no concluem a infinitude das partes por causa de sua multido da excessiva magnitude do espao interposto e nem de que tenhamos seu mximo e seu mnimo, mas no demonstra, como pretendia, que os matemticos no conclue