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Adalberto

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  • A D A L B E R T O M . C A R D O S O ( )

    N O V O S E V E L H O S S I N D I C A L I S T A S ?

    R E V I S I T A N D O O M E R C A D O S I N D I C A L B R A S I L E I R O N A D C A D A P E R D I D A

    Prepared for delivery at the 1998 meeting of the Latin American Studies Association, The PalmerHall Hilton Hotel. Session Brazils New Unionism at Twenty: Institutional Legacies, Strategic

    Adaptation and Dynamics of Politicall Identity

    Chicago, Illinois, September 24-26, 1998

    Doutor em Sociologia pela USP, professor e pesquisador do Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de

    Janeiro - Iuperj

  • Adalberto M. Cardoso

    2

    INTRODUO

    Este trabalho trata do surgimento e da consolidao do sindicalismo pragmtico noBrasil, corrente que se aglutinaria na Fora Sindical em 1991 e introduziria efetiva competio nomercado sindical brasileiro, at ento quase inteiramente estruturado por sua fora maior, aCentral nica dos Trabalhadores. O interesse aqui revisitar os principais temas da literaturapertinente sobre o mercado sindical brasileiro na dcada perdida, para apontar lacunas,equvocos e mitos largamente consolidados e, ao mesmo tempo, oferecer uma verso maiscompreensiva, alternativa e empiricamente embasada, sobre os processos de consolidao deidentidades sindicais concorrentes. Argumentarei: (i) que a fortuna do sindicalismo pragmticodecorreu de uma determinada configurao de interesses na segunda metade da dcada de 1980,que tornava impermeveis as elites em relao aos interesses umas das outras, no sentido de quecapital, trabalho e Estado no se mediam na conjuntura poltica e econmica marcada porprofunda crise de regulao e na conjuntura social caracterizada por ampla crise de hegemonia.Foi esta conjuntura que abriu espaos para uma ao sindical que afirmasse a convergncia deinteresses entre estes mesmos atores, papel jogado de forma por vezes brilhante (sua virt) porLuis Antnio de Medeiros no percurso de consolidao de sua liderana no meio sindical; (ii). queas elites dominantes escolheram Medeiros como interlocutor pelo trabalho, atribuindo-lhe umarepresentatividade que ele no tinha; (iii) e que, entretanto, esta escolha no se podia dar semcontrapartidas do escolhido em termos de poder sindical de base slido o suficiente para conter aexpanso da CUT, central sindical com ntida vocao hegemnica no mercado sindical da dcadade 1980.

    A primeira tarefa, ento, consiste em demonstrar, primeiro, que a CUT tinha estaturasuficiente para manter sua posio de no convergncia com os atores relevantes do processotransitrio, isto , para por em uso seu poder de veto a polticas pblicas que penalizassemunilateralmente os trabalhadores, em especial as polticas salariais, pedra de toque da regulaoestatal da economia na dcada perdida. Em segundo lugar, ser preciso demonstrar que osistema poltico mais amplo era um jogo de soma zero, cujos parmetros eram delimitados nocurtssimo prazo e segundo o interesse geral por autopreservao na crise, o que tornava muitopouco provveis solues negociadas, a menos que um dos atores relevantes do jogo de poderapresentasse disposio inconteste para superar a dinmica predatria da autopreservao. Osubstrato deste jogo era a ampla crise do Estado, axacerbada com a derrocada do Plano Cruzado.Isto ser suficiente, creio, para sustentar a idia de que Medeiros, ao propor-se comorepresentante dos trabalhadores em geral numa arena possvel de negociao de sadas para acrise, credenciava-se ao posto de interlocutor privilegiado no mundo do trabalho. Finalmente, serpreciso demonstrar que Medeiros consolidou um poder alternativo CUT suficiente paracredenci-lo ao posto de empecilho ao crescimento desta central. As duas primeiras tarefas soenfrentadas na seo I, enquanto a ltima objeto da seo II.

  • Novos e velhos sindicalistas?

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    I

    Iniciando pelo poder sindical, o que exatamente se quer dizer com poder de veto daCUT? Perguntando de outra maneira, qual a natureza do poder desta central nos anos 1980?Dizer que a CUT tinha poder de veto vai de encontro a boa parte dos argumentos correntes sobrea representatividade do sindicalismo brasileiro naquela dcada, representatividade tida como frgilpor analistas especializados e grande imprensa. (Martins Rodrigues, 1990; Boito Jr., 1991; e,reiterando o argumento, Pochmann, 1996). Fruto, portanto, da estrutura sindical corporativaconsolidada qua estrutura de prestao de servios, no como mecanismo de organizao eintermediao de interesses. Mas possvel sustentar que o padro de ao coletiva sindicalconsolidado nos anos 1980 suficiente para afirmar como representativo o sindicalismo brasileirode ento, e que a CUT foi a principal (mas decerto no a nica) responsvel pela renovao dohorizonte de ao sindical no pas.

    O CALDO DE CULTURA

    A dcada de 1980 representou, para o sindicalismo dos pases capitalistas avanados,um retrocesso estrondoso por comparao com os anos 1960 e 1970. As taxas de sindicalizaocaram em toda parte, com exceo dos pases escandinavos, da Blgica, do Canad, da Itlia e,em parte, da ento Alemanha Ocidental (Martins Rodrigues, 1997; Visser, 1994). A capacidadede ao coletiva dos trabalhadores organizados medida em termos de homens/dia de trabalhoperdidos por motivo de greve tambm recuou, com exceo uma vez mais dos pasesescandinavos, da Espanha e da Grcia (Visser, 1994). O bordo corrente ao final da dcada era ode que o sindicalismo tal como o conhecamos estava fadado ao desaparecimento: sindicatos demassa, negociando condies muito semelhantes de trabalho e vida para a maioria de seusassociados, essa era a imagem que se tinha do sindicalismo ocidental, uma imagem fortementeassociada ao sindicalismo de base industrial, portanto.

    No vem ao caso, neste trabalho, perscrutar detidamente as razes desta crise. Para oque nos interessa aqui, importa marcar que a abertura generalizada (ainda que diferencial segundoos pases) dos mercados internacionais, concomitante com a enxurrada competitiva japonesa e, jna dcada de 1980, dos novos tigres do sudeste asitico, teriam posto contra a parede o modelode desenvolvimento baseado no keynesianismo de bem estar social sustentado justamente pelomovimento sindical poderoso e de massas assalariadas homogeneizadas pelas condiessimilares de trabalho (Aglietta, 1974; Piore e Sabel, 1984). A regulao estatal da economia e dasrelaes sociais (inclusive de trabalho) estaria minando a capacidade das economias ocidentais semoverem com rapidez para enfrentar os novos competidores. O ritmo do processo histricotornou-se, segundo esta leitura, muito mais frentico do que a capacidade das instituies sociaise seus regulamentos responderem eficazmente a ele. A receita preconizada e de fatooperacionalizada em vrios pases conhecida: desregulamentao dos mercados de produtos,financeiros e principalmente de trabalho, dando flexibilidade e mobilidade ao capital ocidental desorte a permitir as reestruturaes produtiva, financeira, comercial e nos servios (Chesnais,1996). As bases de sustentao do sindicalismo ocidental estavam sob fogo cerrado. No poracaso, entre sindicalistas e analistas os anos 1980 so designados por dcada maldita (Visser,1993; Castells, 1996; Mattoso, 1996; Martins Rodrigues, 1997).

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    Se isso verdade, para o sindicalismo brasileiro aquela dcada representou o oposto,verdadeiro perodo de ouro em termos de eficincia e eficcia da ao organizativa erepresentativa sindical. Depois do renascimento ruidoso no ABC paulista em 1978, o nmero desindicatos cresceu 50% at 1989 e ao final da dcada o pas contava com quase 10 mil entidadesespalhadas por toda a malha produtiva em todas as regies geogrficas; 30% da fora de trabalhoassalariada formal eram filiados a sindicatos e associaes profissionais; quatro centrais sindicaisdisputavam a lealdade das entidades de base e atuavam ruidosamente junto ao sistema poltico(Central nica dos Trabalhadores, Central Geral dos Trabalhadores, Confederao Geral dosTrabalhadores e Unio Sindical Independente, essas trs ltimas sofrendo grande sangria a partirde 1991, quando da fundao da Fora Sindical); e os sindicatos movimentavam anualmente algoem torno de um bilho de dlares na manuteno de atividades de representao de interesses ede prestao de servios assistenciais. Essa estrutura sustentou o maior volume de greves doocidente naquela dcada; foram realizadas perto de 30 mil negociaes coletivas apenas em 1989;mais de 18 milhes de trabalhadores tinham seu destino empregatcio representado em sindicatosligados a uma das quatro centrais sindicais; e as pesquisas de opinio, durante toda a dcada,mostraram que os sindicatos se tinham legitimado como a segunda instituio mais confivel dademocracia em gestao, logo depois da Igreja Catlica (Cardoso, 1997b).

    Um feixe de condicionantes convergiu favoravelmente ao sindicalismo brasileironaqueles anos de transio do autoritarismo. J foi dito (Sader, 1988) que a re-emergncia em1978 a partir do ABC paulista fez do movimento sindical o esturio conjuntural para ondeacorreram as mais variadas formas de contestao ao regime autoritrio, tornando-o elementomomentneo de aglutinao de interesses e de estruturao de projetos alternativos de sociedade.Este sopro inicial foi de grande relevncia para o que se seguiu, porque contribuiu para politizarmuito rapidamente o sindicalismo que nascia. De par com isso, a estrutura sindical corporativagarantiu os recursos materiais, institucionais e logsticos necessrios rpida estruturao, emnvel nacional, de representao centralizada (Martins Rodrigues, 1991). Ademais, num ambienteps-1964 em que os empresrios estavam acostumados ao arbtrio completo na regulao do usodo trabalho e onde imperavam relaes de trabalho francamente autoritrias (Humphrey, 1982;Carvalho, 1993; Cardoso, 1995), boa parte da mobilizao sindical trouxe a marca dademocratizao daquelas relaes, da tentativa de resgate da dignidade da (e na) atividade laboral(Abramo, 1986). Principalmente na indstria, carro chefe do sindicalismo nascente, isso era aindamais agravado pelo fato de que, aos regimes autoritrios de trabalho, somava-se o uso predatrioda mo-de-obra por meio do recurso s mais altas taxas de rotatividade do mundo, pela extensoda jornada de trabalho via horas-extras, pela dilapidao das qualificaes via expulso de grandescontingentes de trabalhadores desse setor produtivo a cada ano, e pela prtica de salriosaviltantes, entre os mais baixos do mundo ocidental (Cardoso, 1995). Estes eram vetorespoderosos de descontentamento passvel de ser canalizado para a ao sindical, vetores inscritosno prprio mercado de trabalho, locus de operao das oportunidades de renda e bem estar e, poristo mesmo, muito sensvel irrupes coletivas. As taxas de greve que analisarei em seguida nodeixam dvidas quanto a isto.

    No plano macroeconmico as coisas no eram menos favorveis. A inflao semprecrescente tornava extremamente racional a ao sindical contestatria, voltada para movimentosgrevistas de massa visando a manuteno do poder de compra dos salrios, quase sempre contrapolticas salariais oficiais (de governos militares ou civis) restritivas (Tavares de Almeida, 1992).

  • Novos e velhos sindicalistas?

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    Ao mesmo tempo, as taxas mdias de desemprego aberto, na dcada, estiveram em patamaraceitvel, no raro abaixo dos 3%, valor considerado suficiente para garantir poder de barganhaao trabalhador individual no mercado de trabalho, favorecendo a disposio para a ao coletiva.Alm disso, a estagnao da economia na dcada, combinada com mercado fechado competioexterna, ditou tmidas polticas de reestruturao econmica na indstria, nos servios e nocomrcio (e mais ainda nos servios pblicos, virtualmente sucateados), polticas de impactolimitado sobre as bases de sustentao do sindicalismo que se consolidava.

    A crise econmica se arrastou por toda a dcada de 1980. Uma crise que se reiteradeixa marcas profundas, em especial nas relaes de trabalho. O horizonte de incertezasimediatiza os confrontos entre os agentes econmicos, que atuam em cada embate como se fossea primeira e ltima batalha, com o que jogam jogos de soma zero a cada vez. Todos queremganhar tudo de uma vez para sempre, porque ningum sabe como estar (e se estar) no prximoencontro. As negociaes coletivas no Brasil da dcada perdida tiveram essa marca (Pastore eZylberstajn, 1987). Mas se o ambiente de crise no favorecia coalizes inter-classes, por outrolado verteu-se em outro vetor convergente explicativo do sucesso do sindicalismo, pois tambmtornava racional o carter contestatrio da ao sindical hegemnica ento e agora, aquela levadaa cabo pelo sindicalismo cutista. As greves foram, certamente, os indicadores mais conspcuosdeste sucesso.

    AS GREVES NA TRANSIO

    sabido que a transio do autoritarismo no pas apresentou como uma de suasconseqncias mais importantes a constituio dos trabalhadores como ator social relevante. Eacabo de aludir s condies favorveis consolidao do poder sindical na dcada de 19801.Segundo uma leitura possvel, estas condies teriam contribudo para uma determinada feio dosindicalismo no pas, crescentemente contestatrio mas politicamente incuo e de aocrescentemente defensiva diante de um poder central capaz de definir unilateralmente as polticasque afetavam diretamente os trabalhadores. Esta viso apresenta problemas que passo a discutir.

    Tavares de Almeida (1988) mostra que o confronto direto no mercado de trabalho porparte do Novo Sindicalismo foi o responsvel pela derrocada das polticas salariais tentadasdesde 1979. Isto, por si s, seria suficiente para demarcar a importncia dos trabalhadoresorganizados no terreno do conflito social. Mas no tudo. Ainda segundo a autora, as grevestiveram impacto inconteste em vrios campos: 1. abriu-se espao para a negociao coletiva nointerior de um sistema que lhe era inteiramente hostil. Ao arrepio das normas legais e daspolticas dos governos autoritrios, ampliaram-se as fronteiras e o escopo da barganha coletivadireta e descentralizada (idem: 338); 2. perderam vigncia instrumentos importantes de controledos trabalhadores (como a lei de greve e o expediente recorrentemente utilizado de intervenonos sindicatos), principalmente aps 1981; 3. no roldo da ao grevista, a questo social ganhou

    1 Ver tambm, dentre outros, Martins Rodrigues (1990) e, antes, Tavares de Almeida (1988).

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    lugar na agenda poltica da transio; 4. os sindicatos foram revitalizados, reassumindo suasfunes de arregimentao, mobilizao e intermediao que o autoritarismo atrofiara.

    O que esta anlise mostra? Do ponto de vista que me interessa, mostra a capacidade deinterveno organizada dos trabalhadores na vida social: as greves foram eficientes, produzindoinclusive resultados para alm do que se propunham no mercado de trabalho (aumentos desalrio, garantia no emprego etc.). Tavares de Almeida est descrevendo o poder sindical em suasconseqncias. O poder sindical se consolidava em seu exerccio e era reafirmado em seuexerccio. Era um poder real, e no posso concordar com a afirmao de que este poder foipoliticamente incuo porque no conseguiu associar-se a partidos polticos e com istouniversalizar conquistas de mercado, como quer Tavares de Almeida. A derrocada de polticassalariais numa situao crtica em que o controle dos salrios esteve sempre na pauta das polticaseconmicas e que, portanto, eram fundamentais para a capacidade de manejo e regulao porparte do Estado, parece-me resultado politicamente bastante relevante, nada incuo. Este aspecto,na verdade, central ao argumento em favor do poder de veto da CUT na transio: osindicalismo cutista no foi apenas capaz de parar o pas algumas vezes. Ele foi tambm eficaz emsua ao grevista2.

    Assim, entre julho de 1983 e maro de 1989 este sindicalismo ao qual muitos teimavamtratar, ou como no-representativo, ou como politicamente incuo, realizou greves gerais cadavez mais inclusivas e que foram reputadas como vitoriosas pela imprensa e pelos empresrios: 5milhes de trabalhadores pararam em 1983, 10 milhes em 1987 e 18 milhes em 1989, comorevelaram Noronha (1994) e Sandoval (1994). Esses mesmos autores mostram como, entre 1983e 1987, o Brasil foi o campeo mundial de jornadas perdidas por motivo de greve, padro que semanteve nos anos seguintes. Compare a mdia anual de jornadas perdidas por mil trabalhadoresno Brasil entre 1983 e 1992 e em alguns pases selecionados (Tabela 1). Em 10 anos, apenas aGrcia apresentou taxa mdia anual mais elevada do que a brasileira.

    2 Este ponto consensual na literatura especializada e parece-me que a anlise de Noronha (1992) definitiva

    no que respeita ao significado social das greves, se bem que problemtica na atribuio de seu significadopoltico. Sandoval (1994), por seu lado, mostra uma correlao positiva mas algo errtica no tempo entregreves e inflao, desqualificando relaes causais imediatas. Na atribuio de causas para a extenso doconflito grevista no pas nos anos 1980, o autor aponta outros elementos importantes, como o grau deorganizao sindical tanto local quanto nacional, a disposio dos lderes do novo sindicalismo emconsolidar um movimento de carter nacional, a crise do Estado e sua incapacidade de dar soluo adequada crise econmica e o descontentamento generalizado da populao em relao ao sistema poltico.

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    Tabela 1:Mdia de jornadas perdidas por mil empregados

    Pases selecionados, 1983-1992

    Grcia (1) (2) 2.033,0Brasil (3) 1.705,5ndia (4) 1.317,5Espanha 409,2Itlia (1) (2) (5) 237,3Reino Unido 211,2Mxico 163,6Sucia 77,6Estados Unidos 72,1Chile 43,8(1) Mdias de Jornadas no trabalhadas (exclui1992)(2) Nmero de empregados em 1991(3) Nmero de empregados de 1990(4) Nmero de empregados de 1989(5) Nmero de jornadas estimadas a partir donum. de horas no trabalhadas (8 hs = 1jornada)Fonte: Noronha (1994)

    Esta representatividade vivida quase como uma guerra no mercado de fora de trabalhofoi, como aludido, extremamente eficaz. Alm dos resultados social e politicamente relevantesapontados por Tavares de Almeida, Noronha mostra que as demandas foram em geral atendidas,com variaes de intensidade e segundo as categorias profissionais, mas na maioria das vezes numpatamar compatvel com a classificao das greves como vitoriosas. Recorde-se, finalmente, daferocidade da reao do governo Sarney s greves em estatais em 1987, debeladas por tropas doexrcito na CSN, nas refinarias de Paulnia e Cubato, em Itaipu e no terminal martimo daPetrobrs (Noronha, 1992), o que traria como conseqncia, ainda no segundo semestre daqueleano, uma nova legislao restritiva delimitando os setores essenciais onde as greves estariamproscritas: compensao bancria, refino e distribuio de petrleo, gerao e distribuio deenergia eltrica, servios porturios, servios de sade, dentre outros setores eminentementeestatais na dcada de 1980.

    Ora, seria possvel argumentar que esses movimentos grevistas (com exceo dasgreves gerais, em especial a de 1989, amplamente inclusiva) no varreram toda a estruturaeconmica brasileira, nem mobilizaram toda a massa de trabalhadores. Isso ser, eventualmente,verdade. Mas, para exercer seu poder de veto, por exemplo, a polticas salariais, o movimentosindical no necessita parar a nao. suficiente ser capaz de parar setores estratgicos, pblicose/ou privados, rompendo assim com a homogeneidade da aplicao da regra regulatria e, comisso, jogando por terra a prpria regra como norma universal. A CUT, ou melhor, os sindicatosfiliados a ela, tinham esse poder. Demonstrao cabal dele foi a ferocidade da reao federal sparedes em empresas estatais em 1987, todas dirigidas por sindicatos da CUT.

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    A RENOVAO DA ESTRUTURA SINDICAL CORPORATIVA

    Outro mito solidamente consolidado a respeito da estrutura sindical corporativa nosanos 1980 rezava (na verdade, ainda reza) que os sindicatos se especializaram como entidadesprestadoras de servios, mais do que de representao de interesses, mais uma razo para suabaixa representatividade. A literatura costuma apresentar duas causas para este quadro. Emprimeiro lugar, durante o regime autoritrio inaugurado em 1964, os sindicatos perderamcrescentemente espao de negociao da contratao coletiva: o Estado assumiu a regulao dossalrios; e a regulao das formas de uso cotidiano da fora de trabalho nas empresas eraencarada como aspecto da gesto do negcio, objeto de arbtrio privado dos empregadores.Poucos sindicatos teriam conseguido se livrar desta marca nos anos 1980 (Martins Rodrigues,1991; Comin, 1995; Pochmann, 1996). Em segundo lugar, a Justia do Trabalho teria limitado opotencial de negociao entre capital e trabalho, ao oferecer um mecanismo eficaz e menosdesgastante de soluo de conflitos na forma da Sentena Normativa (Boito Jr., 1991; Pastore,1994; Pochmann, 1996)3. Vejamos cada um destes argumentos.

    Iniciando pela burocratizao dos sindicatos, uma vista dolhos na Tabela 2 faz saltar ofato de que 20% dos sindicatos existentes em 1988 no empregavam ningum (alm de suadiretoria). Na verdade, a tabela surpreende a cada nova linha: 30% no tinham funcionriosadministrativos, isto , perto de 2.800 sindicatos em 1988 eram geridos, administrados,contabilizados e secretariados pela diretoria efetiva, eleita pelos trabalhadores. Ainda que a tabelano mostre, entre os sindicatos que empregavam nesse item, 77% tinham entre 1 e 5 funcionriosadministrativos. Ou seja, quase um tero no empregava pessoas na administrao, e os que ofaziam, em sua esmagadora maioria contratavam um mnimo necessrio de funcionrios. Isto deum lado.

    De outro lado, 78% dos sindicatos nacionais no tinham mdicos em 1988. Perto de70% no tinham dentistas. Ademais, pela legislao brasileira em vigor (Lei 5.584 de 26/06/70),os sindicatos esto obrigados a prestar assistncia judiciria a filiados e no-filiados, mas apenas25% deles tinham advogados em seu staff. Finalmente, poucos sindicatos empregavamcontadores, e menos ainda tinham assessores sindicais em seus quadros.

    Estes dados sugerem trs coisas. Primeiro, que o sindicalismo nacional era muito poucoprofissionalizado. O argumento de que esses servios poderiam estar sendo prestados porterceiros, sub-contratados pelos sindicatos, vai de encontro ao dado evidente de que as direessindicais eram, na imensa maioria das vezes, o corpo decisrio hegemnico, em muitos casosnico. A onda de subcontratao, recorde-se, muito recente e os dados apresentados referem-se a 1988. Em segundo lugar, parece evidente que sobre o sindicalismo brasileiro na dcada de1980 pode-se afirmar qualquer coisa, menos que se tratava de uma estrutura predominantementeprestadora de servios. Essa afirmao vale para entre 70% e 85% dos sindicatos nacionais queno tinham profissionais de sade ou lazer, ou mesmo advogados. claro que isso no significa

    3 Este diagnstico compartilhado pelo novo Ministro do Trabalho, Edward Amadeo, que em seu discurso de

    posse no dia 7 de abril de 1998 repetiu exatamente o que afirma Pastore (1994) sobre ser a Justia doTrabalho um inibidor da negociao.

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    que esses sindicatos se estavam desempenhando, todos, como representantes de interesses.Poderia estar ocorrendo o oposto: boa parte deles seria, talvez, composta por sindicatosfantasma ou de carimbo, criados em nome e para um grupo de pessoas que se arrogavam emrepresentantes dos trabalhadores por fora da CLT.

    Tabela 2:Proporo dos sindicatos que no empregam alguns tipos de funcionrios:

    Brasil, 1988

    Tipo de funcionrio No tm ofuncionrio

    % sobre total(9.120 sindicatos)

    Nenhum 1.826 20,02Funcionrios Administrativos 2.676 29,34Mdicos 7.086 77,70Dentistas 6.246 68,49Atendentes 7.226 79,23Enfermeiros 8.846 97,00Advogados 6.863 75,25Contadores 7.522 82,48Assessores economistas 8.999 98,67Outros assessores 8.902 97,61Instrutores/professores 9.001 98,70Outros 8.221 90,14Secretrios executivos,superintendentes e gerentes

    8.070 88,49

    Fonte: Pesquisa Sindical IBGE

    Esta ltima frase nos lana ao escrutnio da segunda parte dos argumentos queasseguram ser os sindicatos entidades burocratizadas e prestadoras de servios, isto , o queafirma sua dependncia em relao Justia do Trabalho. O mito, em sua verso mais sofisticada,encontra em Pastore e Zylberstajn (1987) sustentao emprica aparentemente irrefutvel. Combase no acompanhamento de negociaes coletivas arquivadas na Justia do Trabalho, os autoressugerem que os trabalhadores estariam cientes da seguinte seqncia tima de ao para aconquista de aumentos reais de salrios: iniciar a negociao com forte presso; partir para agreve; e entrar com dissdio na JT. Os empregadores, por seu lado, tambm bem informadossobre a JT, fariam ofertas baixas na negociao, porque estariam conscientes de que teriam queaument-las durante litgio judicial ou aps o julgamento do dissdio. A Justia do Trabalho, pois,estaria estruturando inteiramente as relaes de classe o Brasil. Nas palavras de Pastore:

    Pode-se dizer que o sistema brasileiro de resoluo de conflito d um prmio (e no umapenalidade) para quem promove o impasse e recorre Justia do Trabalho (Cavalcanti, 19894).So poucos os riscos e custos de ir a dissdio. Isso tem o efeito de congelar a negociao. A

    4 Ophir Cavalcanti Jr. a soluo judicial a mais indicada para a dirimncia dos conflitos coletivos do

    trabalho? Revista Ltr, 53-184.

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    facilidade do dissdio exerce um verdadeiro efeito narctico para as partes (Pastore, 1994:179).

    Ora, no se pode negar que a JT joga um papel importante, mas estvamos longe deuma situao em que esse papel fosse preponderante nas negociaes coletivas; de que suaatuao tivesse efeito narcotizante sobre a negociao; e de que fossem poucos os riscos de ir adissdio. De fato, os dados disponveis e alguma lgica obrigam-me a afirmar exatamente ocontrrio.

    Tomemos, primeiramente, os sindicatos urbanos representados na Tabela 3, que trazinformaes relevantes para 1988, ano da fortuna do sindicalismo pragmtico. Vemos que aparticipao dos dissdios coletivos no total das negociaes empreendidas entre sindicatos detrabalhadores urbanos foi de apenas 13%. Mais importante do que isso, as sentenas normativasrepresentaram no mais do que 8,5% dos resultados totais, e apenas 9% entre os empregadosurbanos. Nada menos que 80% de todos os encontros entre capital e trabalho ocorridos nascidades resultaram em acordo entre as partes. Acrescente-se a isto o fato efetivamente relevantede que 84,1% dos sindicatos de empregados urbanos realizaram negociaes coletivas em 1988.Isto est em franca contradio com o que poderia fazer supor um argumento em favor daineficcia da representao sindical, que v os sindicatos primordialmente como balces deservio, no como organismos de intermediao de interesses5.

    Tabela 3:Resultado das negociaes coletivas realizadas em 1988 - Brasil

    Negociaes realizadas por:Tipo de negociao Todos os

    sindicatos(inclui rurais)

    Sindicatos deempregados

    urbanosEntre sindicato patronal e deempregados

    25,7 30,5

    Entre sind. de empregados e empresas 64,7 67,2Negociaes que resultaram em acordo 74,9 79,6Proporo que foi a dissdio 11,4 13,1 Destas, quais resultaram em sentena 74,7 68,5Proporo de sentenas sobre o total 8,5 9,0Negociaes no concludas 6,9 6,7Sem declarao 9,6 4,7Total de sindicatos que realizaram neg. 3210 2217N 28031 19081Fonte: Pesquisa sindical IBGE, 1988

    5 Discusso aprofundada deste ponto, tratando de dados mais recentes que mostram que a taxa de dissdios

    desceu a pouco mais de 5% de 1988 at 1992, pode ser encontrada em Cardoso (1997c).

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    Se considerarmos que, em termos gerais, as negociaes coletivas se referem aoconflito de interesse entre capital e trabalho (basicamente contratao, remunerao, normas deuso do trabalho e demisso), o que esses dados mostram que a Justia do Trabalho no Brasil,ainda que se ocupasse de questes de interesse, o fazia de forma marginal nos anos 1980. Suaatuao era, preponderantemente, voltada para as questes de direito, para o atendimento daspendncias individuais. Ademais, se a imensa maioria dos conflitos que iam a dissdio eramresolvidos por acordo e no por sentena normativa, parece claro que a JT estava jogando o papelde mediador, mais do que de rbitro com poderes de obrigar as partes. Difcil sustentar, pois, aidia de que tinha efeito narcotizante sobre as relaes de classe, ou que inibisse a negociaocoletiva. A taxa de negociao era, na verdade, muito alta, superior a 90% dos encontros entrecapital e trabalho.

    Poder-se-ia objetar6 que a simples presena da Justia do Trabalho no horizonte danegociao coletiva daria o tom dos encontros entre capital e trabalho, ainda que os agentesrecorressem pouco quela justia ou o fizessem em busca de mediao, mais do que arbitragem.Segundo esta objeo, os dois lados da negociao saberiam que, no caso de um impasse, haveriaa possibilidade do recurso ao agente externo com poderes normativos. Logo, a possibilidademesma desse recurso balizaria a negociao, entrando como um ex ante dos encontros que, nessamedida, no poderiam ser ditos autnomos, democrticos ou mutuamente determinados. Se hnegociao, ainda assim ela seria heternoma. O Estado era agente presente, constitutivo mesmodesses encontros. Essa objeo merece alguns comentrios.

    O que, exatamente, se quer dizer com instrumento normativo atuando como ex ante?Para no nos perdermos em discusses filosficas, atenhamo-nos aos encontros entre capital etrabalho. Nesse caso, em primeiro lugar, incontestvel que a legislao d forma aos agentes. Ocapital existe, do ponto de vista da negociao coletiva normatizada (mas no dos conflitosindividuais no cotidiano de trabalho), como empresa individual ou como sindicato patronal. Otrabalho existe apenas como sindicato, representante de um coletivo. nessa forma que alegislao os reconhece. Em segundo lugar, a legislao fornece os procedimentos negociao(durao, direitos e deveres das partes, resultados possveis etc.). Durante o regime autoritrio, alegislao estabelecia tambm limites quanto ao contedo do que se negociava, proibindo disputasem torno da legislao salarial, por exemplo. claro que tudo isso so parmetros bastanteslidos a regular os encontros entre capital e trabalho e so constitutivos ex ante dessesencontros. Mas colocar no mesmo patamar os resultados possveis da negociao segundo essasregras como um pressuposto da negociao parece-me um passo sem fundamento. essa a lgicado argumento de Pastore (1994), tambm subjacente objeo sintetizada no pargrafo anterior.Ora, o recurso JT no um ex ante da negociao, mas um recurso ou meio disponvel spartes, recurso ou meio que ser mobilizado na dependncia do interesse de cada uma e de acordocom um clculo estratgico a respeito da eficcia ou no desse recurso na obteno do objetivovisado na negociao.

    6 Como o fizeram Juarez Rubens Brando Lopes e Jorge Jatob em seminrio no Ministrio do Trabalho em

    1996.

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    De fato, para aceitar o argumento de que a JT um ex ante pelos resultados quepossibilita, tenho que aceitar que os atores jogam com a expectativa de que obtero resultadosfavorveis numa proporo maior do que a de resultados desfavorveis, nos vrios encontros quese do entre capital e trabalho. No limite, um ou ambos devem imaginar que ganharo sempre.Nenhuma coisa nem outra possvel. De um lado, se ambos os agentes apresentam reivindicaesmaximalistas, o dissdio ser de soma zero porque: 1. um deles perder tudo se a sentenanormativa acatar inteiramente a reivindicao da outra parte; ou 2. ambos perdero se a sentenacontemplar alguma espcie de meio termo. As chances de sucesso so bastante reduzidas. Deoutro lado, se as demandas no so maximalistas (sendo, portanto, negociveis), o recurso JTno ocorre de imediato, mas no correr de negociaes em que se chega a um impasse em torno demnimos inegociveis. Nesse ponto, chega-se uma vez mais soma zero e as conseqncias 1 e 2se aplicam. Logo, em qualquer caso a orientao da ao pelo resultado do dissdio irracional, amenos que uma das partes tenha garantias irrefutveis de que ganhar7.

    Entretanto, uma simples vista dolhos nas sentenas normativas da Justia do Trabalhoem momentos cruciais da transio poltica brasileira revelar a extrema incerteza a que os atorescapital e trabalho esto submetidos ao darem preponderncia arbitragem judicial. Tomando-seapenas a poltica salarial, as sentenas foram desfavorveis aos trabalhadores em consonncia comesforos de governo por estabilizao da economia, e favorveis a eles diante de fracassos dessesmesmos esforos: o Cruzado e seu fracasso, Bresser e sua dbcle, Plano de vero e planosCollor I e II so apenas alguns exemplos de apogeu e crise de polticas econmicas acompanhadasde julgamentos contra reposio de perdas salariais no incio, e reposio do perdido aps aderrocada de cada um deles. Do lado empresarial, os riscos do recurso arbitragem no somenores, principalmente em momentos de crescimento econmico e de derrocada de planos deestabilizao. Esses fatos no so exclusivos do Brasil. O mesmo Pastore (1994, alm de Romita,1993) mostra que a Justia do Trabalho, onde existe, no consolida jurisprudncias sobre pontossujeitos influncia dos ciclos econmicos. Logo, no h como concordar com o prprio Pastorequando ele afirma que so poucos os riscos e custos de ir a dissdio (op. cit).

    a existncia desses riscos para ambas as partes que os dados apresentados antesparecem estar respaldando, frontalmente contra o argumento segundo o qual a existncia da JTfavorecia a emergncia de demandas maximalistas e estimulava o conflito, no a negociao8. Ossindicatos brasileiros, em especial os sindicatos de empregados urbanos, no eram burocratizados,negociavam regularmente e no dependiam da Justia do Trabalho para resolver os conflitos deinteresse com os sindicatos de empregadores ou com os prprios empregadores. A estruturasindical corporativa, contra todos os argumentos em contrrio, j se tinha renovadoprofundamente em 1988, e isto estar contribuindo para explicar a grande capacidade demobilizao apresentada por este sindicalismo naquela dcada. Para isto, contribuiu decisivamenteo poder organizativo e expressivo da CUT.

    7 Foi isso que ocorreu durante boa parte do regime autoritrio, onde as negociaes no existiam e a JT

    homologava dissdios preparados pelas empresas ou pelos sindicatos patronais, sem confrontos ou encontroscom sindicatos de trabalhadores. Nesse caso, os empresrios sempre ganhavam e os trabalhadores sempreperdiam. Ver Sader (1988).

    8 Segundo, uma vez mais, Pastore (1994: 179).

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    O PODER DA CUT

    Se o movimento sindical encontrou na crise terreno frtil para prosperar, argumentocorrente (e recorrente) reza que ele no foi capaz de romper inteiramente a dinmica defragmentao da representao de interesses herdada da era Vargas (Tavares de Almeida, 1988;Martins Rodrigues, 1991; Comin, 1995; Pochmann, 1996; Diniz, 1997). Tendo a discordar destediagnstico. O grau de fragmentao da representao centralizada foi, na verdade, muito baixodurante toda a dcada de 1980.

    De fato, a estrutura sindical corporativa, sobrevivente Constituinte de 1987-1988, erapejada de vetores centrfugos, dificultando a centralizao da representao. Em primeiro lugar, etalvez o mais importante, a CLT atribua aos sindicatos o monoplio da representao sindical.Apenas os sindicatos oficiais podiam, legalmente, negociar em nome de sua base. Oreconhecimento das centrais pela Constituio de 1988 foi mera formalidade, na medida em queseu mbito de ao permaneceu restrito em face do instituto da unicidade sindical, mantido nalegislao. Ao assegurar o monoplio da representao a um nico sindicato na mesma baseterritorial, a unicidade obrigava o Ministrio do Trabalho chancela da entidade representativacom direitos cobrana de tributos e de celebrar acordos coletivos. Reiterou-se a situaohodierna na qual a autonomia dos sindicatos era exercida em detrimento de possveis aescoordenadas, de vez que, ao se filiar a uma central qualquer, os sindicalistas no teriam que aabrir mo nem de poder de negociao nem de recursos financeiros, assegurados aos sindicatosnicos na base territorial.

    Dito de outro modo: ao filiar-se a uma central sindical qualquer, o sindicato no abriamo de coordenar campanhas salariais ou quaisquer outras. O sindicato no deixava dearregimentar e mobilizar individualmente sua categoria, mesmo contra preceitos e prticas dacentral de filiao. Tampouco esta ltima dispunha de mecanismos de coero contra sindicatosfiliados que contrariassem preceitos e prticas, a no ser a desfiliao do sindicato ou a disputa,com chapa concorrente, nas prximas eleies sindicais. Como as centrais, com raras excees,no negociavam acordos coletivos por seus sindicatos, no podiam fazer operar a retaliao maisimportante disposio de suas irms em pases como a Alemanha e a Itlia, isto , a excluso dosindicato arredio dos resultados dos acordos coletivos9.

    Em segundo lugar, ainda no campo dos vetores de fragmentao, as centrais sindicaistinham que se digladiar pelos sindicatos efetivamente existentes, dado que dificilmente (at 1988 emesmo desde ento) podiam constituir sindicatos concorrentes na mesma base territorial. O poder

    9 Isto contribui para explicar a atuao eminentemente poltica das centrais sindicais nos anos 1980. Todas as

    greves gerais tentadas ento foram articuladas pela CUT e pela CGT em conjunto. At 1987, em nenhumadelas faltaram bandeiras como Contra o FMI, Pela reforma agrria sob controle dos trabalhadores,Pelo no pagamento da dvida externa, bandeiras ladeadas por outras como Fim do arrocho salarial ouPela retomada do investimento. A partir de 1986, todas as greves gerais foram deflagradas em resposta aplanos de ajuste econmico: contra o Cruzado, o Plano Bresser e o Plano Vero. Em nenhum dos casosesteve em pauta um item sequer de um possvel acordo coletivo em nvel nacional. Foram greves de protestopoltico, no greves sindicais.

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    de base dos sindicatos nicos impediu a convivncia entre correntes ideolgicas no mesmomercado de trabalho, condio para a possvel emergncia de coalizes entre centrais sindicais aolongo do tempo. Os mercados de trabalho, uma vez tomados por sindicatos de uma ou outracentral, estavam fechados a todas as outras. Tinha-se, assim, condio propcia guerra deentidades cujo poder se media, justamente, pela quantidade de sindicatos (e trabalhadores) quediziam representar (e tambm, claro, por sua capacidade de mobiliz-los, se necessrio).

    Somando-se a isto a infra-estrutura prvia representada por sindicatos cuja existnciaestava de antemo financiada, podendo servir de base a aes coordenadas de outras correntesideolgicas ou grupos de interesse, a surpresa est na existncia de apenas 3 centrais sindicaisem 1989 (CUT e as duas CGTs), e no 5 ou 10. O sindicalismo brasileiro no final da dcada eramuito pouco fragmentado na cpula, e esta pequena fragmentao reflete concepes bemmarcadas no mercado sindical brasileiro, algo a que a literatura especializada tem dificuldades emreconhecer quando prefere pr em relevo a fragmentao.

    Ora, divergncias ideolgicas de fundo marcaram a principal diviso do movimentosindical na dcada de 1980, que ops a CUT e a CGT (Martins Rodrigues, 1991). Conquantointernamente divididas, as duas centrais vinham a pblico de forma relativamente unitriadefender, no caso da CUT, a reforma na estrutura sindical, uma ideologia socialista difusa masfrancamente contestatria da ordem vigente, retaliao no mercado de trabalho por meio demovimentos coletivos de toda sorte e liberdade de organizao por locais de trabalho; e no casoda CGT, a manuteno da estrutura sindical, uma ideologia nacionalista inespecfica mas de vervenegociadora, parceria no mercado de trabalho, com greves encaradas como recurso excepcionalde negociao e atitudes contrrias s organizaes por locais de trabalho, tidas como prenhes deoposio s direes sindicais. Estas posies estruturaram o movimento sindical durante toda adcada, conferindo grande estabilidade s expectativas dos agentes relevantes na transio doautoritarismo. Ser sindicato da CUT tinha conseqncias diferentes do que ser sindicato dasCGTs na negociao coletiva, na negociao de pactos sociais ou na realizao de greves10. precisamente neste sentido que o sindicalismo nacional no era fragmentado na cpula. Ele eraapenas dicotmico, dividido em torno de questes programticas. Nesta diviso, a CUT eraamplamente hegemnica.

    Com base nos dados da pesquisa sindical do IBGE, a proporo de sindicatos filiados aalguma central sindical era de 19% em 1988, dos quais 65% declararam-se filiados CUT, 29% CGT, e 5% Unio Sindical Independente (USI)11. Note-se a grande concentrao de sindicatosde trabalhadores rurais e de profissionais liberais que, diante da deciso de filiar-se ou no aalguma central, escolheram a CUT (Tabela 4). Em relao CGT, ela concentrava 34% de todosos sindicatos de assalariados urbanos filiados a centrais e acolhia, de maneira mais ou menoseqitativa, os sindicatos de outras categorias de trabalhadores (profissionais liberais, agentes

    10 Ainda hoje o mercado sindical est estrutura em torno de duas vertentes bem marcadas, CUT e Fora

    Sindical, apesar da mirade de pequenas e inexpressivas organizaes de cpula que reivindicam para si onome de centrais sindicais.

    11 Esta central desapareceu em 1992, quando a Fora Sindical venceu as eleies para a ConfederaoNacional dos Trabalhadores do Comrcio, esteio da USI.

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    autnomos e rurais, todos em torno de 20%). Por outro lado, a quarta coluna da Tabela 4 nosinforma que os sindicatos de assalariados urbanos eram os que apresentavam maiores ndices defiliao a centrais sindicais. Os menores ndices foram encontrados entre os sindicatos detrabalhadores autnomos que, contudo, no passavam de 80 entidades em 1988.

    Se considerarmos que 730 sindicatos declararam-se filiados CUT, 327 CGT e 60 USI, temos que a CUT representava 12,77% dos sindicatos de empregados do pas; a CGTrepresentava 5,72% e a USI, 1,04%. Mesmo em face do pequeno ndice de filiao a centrais, noresta dvidas que a CUT era a central mais representativa, no sentido mais rasteiro do conceitode representatividade, isto , que a expressa em termos do nmero de sindicatos que formalmentedeclinam a preferncia por esta ou aquela central, dentre as trs existentes em 1988.Principalmente, a CUT era opo quase exclusiva dos sindicatos de profissionais liberais urbanos(professores, mdicos, advogados, engenheiros, arquitetos etc., para os quais foram contados 342sindicatos em 1988) que se decidiram pela filiao a alguma central.

    Tabela 4:Sindicatos de trabalhadores filiados a centrais sindicais, segundo tipo de sindicato,

    por central a que se filiavam: 1988 - Brasil

    CENTRAL DE FILIAOTipo de Sindicato Taxa de Total de

    CUT CGT USI Filiao SindicatosEmpregados 56,91(*) 33,92 9,16 24,42(**) 2547Prof.liberais 80,70 19,30 0,00 16,66 342Ag.autnomos 66,67 22,22 11,11 11,25 80Rurais 75,52 24,01 0,47 15,61 2747TOTAL 65,35 29,27 5,37 19,54 5716Fonte: Pesquisa Sindical, IBGE, 1988.(*) Porcentagens sobre o total de sindicatos filiados a centrais.(**) Porcentagens sobre o total de sindicatos de empregados, prof. liberais etc., linha a linha..

    A Tabela 5 apresenta uma simulao da composio das centrais sindicais em 1988, apartir do Censo Sindical do IBGE de 1991. O procedimento adotado consistiu na manipulao dabase bruta de dados de 1991, adquirida junto ao IBGE (a base de 1988 no est disponvel), daqual selecionei apenas os sindicatos fundados at 1988. Os dados foram, ento, lidos como se sereferissem ao censo de 1988, j que apenas sindicatos fundados at esta data foram considerados.Este procedimento subestima a filiao da CGT (que perdeu adeptos no transcurso entre as duaspesquisas) e superestima a filiao da CUT (que ganhou adeptos), por comparao com o CensoSindical efetivo de 1988. Ademais, foi necessrio considerar os que estavam filiados ForaSindical em 1991 como sendo filiados da CGT em 1988. Tal procedimento produz umaaproximao algo grosseira realidade, mas perfeitamente sustentvel, no caso da CGT, selembrarmos que: 1. boa parte dos filiados Fora Sindical tinham participado de algum congressoanterior daquela central, podendo ser considerados seus filiados (Martins Rodrigues e Cardoso,1993); 2. o nmero de filiados CGT permaneceu constante entre 1988 e 1990, mas em 1991,ano de fundao da Fora Sindical, houve uma queda de 60%. muito provvel que estecontingente tenha migrado para a nova central. Por outra parte, no caso da CUT, se estaaproximao aumenta o nmero efetivo de sindicatos filiados a ela em 1988, muito provvel quea distribuio segundo os setores da economia corresponda realidade, j que a CUT espelha,

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    por assim dizer, a populao de sindicatos no Brasil desde pelo menos 1988, quando passa a serpossvel comparar os dados da Central com os do Censo do IBGE (como em Comin, 1995).

    Ressalvadas estas consideraes, os dados confirmam o carter nacional da CUT em1988, consolidada que estava em todas as regies do pas em propores equivalentes distribuio dos sindicatos pelo territrio nacional (compare a coluna CUT com a colunaTotal). O mesmo vale para os ramos da economia, representados na CUT na mesma proporodo total de sindicatos de empregados existentes. J a CGT era muito concentrada no centro-sul ecomposta sobretudo por sindicatos de trabalhadores industriais: perto da metade de seus quase300 filiados representavam trabalhadores neste setor da economia.

    Tabela 5:Composio das centrais sindicais em 1988, segundo o Censo do IBGE de 1991 (apenas sindicatos de

    empregados)

    Ramo Central de filiaodo sindicato Nenhuma CUT CGT Total NIndstria 21,5 25,2 48,0 23,7 1316Comrcio 10,6 9,2 21,7 10,9 602Servios 6,7 7,9 12,8 7,3 405Finanas 3,0 5,0 2,8 3,5 193Ensino 1,6 4,1 0,7 2,1 118Func. Pblicos 2,1 2,7 1,1 2,2 121Rurais 54,3 45,8 12,8 50,3 2794Outros 0,1 0,2 0,1 6RegioNorte 3,3 9,4 13,2 5,2 289Nordeste 30,7 30,8 14,9 29,9 1662Sudeste 30,7 30,2 47,3 31,4 1746Sul 28,8 21,6 16,7 26,5 1474Centro-Oeste 6,5 8,0 7,8 6,9 384N 4018 1256 281 5555Total 72,3 22,6 5,1 100,0Fonte: Pesquisa sindical IBGE - 1991 (Tabulao especial)

    O percentual relativamente baixo de filiao formal de sindicatos s centrais sindicaisdetectado pela pesquisa IBGE (19% em 1988) esconde um fato crucial: na segunda metade dosanos 1980, a CUT, ou melhor, os sindicatos filiados a ela, detinham o poder nada irreal de parar opas. Dentre os 12% de sindicatos que se declararam filiados a ela em 1988 (no censo original,no na simulao acima), encontravam-se os principais sindicatos de trabalhadores no setorfinanceiro (bancrios de So Paulo, do Rio de Janeiro e de Braslia), da indstria de base (CSN,Cosipa, Usiminas), petroleiro (Paulnia, Cubato, Mataripe, Alberto Pasqualini), de transportesnas principais metrpoles brasileiras (So Paulo, Salvador, Recife e Rio de Janeiro), e parte deenergia eltrica (Furnas, responsvel pelo fornecimento de energia para o sudeste brasileiro), semcontar as associaes de funcionrios pblicos federais e estaduais no setor de sade, educao eprevidncia (estas ilegais at a Constituio de 1988 mas que, no obstante, realizaram as mais

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    extensas greves no pas entre 1985 e 198812). Mais do que isso, esses setores apresentavam asmaiores taxas individuais de sindicalizao do pas, segundo a PNAD-88 (tabulao prpria apartir do banco de dados). Entre os trabalhadores metalrgicos, mais de 37% eram sindicalizados,taxa que subia a mais de 50% entre os metalrgicos do estado de So Paulo. Na indstriapetrolfera os sindicalizados eram 60%, nos servios de distribuio de energia eltrica eram 70%,50% nos servios de abastecimento de gua, mais de 50% no setor financeiro privado e quase70% no setor financeiro estatal. Enfim, as taxas de sindicalizao nos setores dominados pelaCUT eram muito superiores mdia nacional de 27%.

    H um ltimo ponto no menos central a ser ressaltado. A mesma pesquisa sindical doIBGE revela que o nmero de sindicatos que se declararam filiados CGT permaneceu estvelem torno de 300 entidades entre 1988 e 1990, enquanto o de filiados CUT cresceuexponencialmente. Em 1988 eram 1,58 sindicatos mais do que em 1986 e, em 1990, nada menosdo que 2,48 mais do que em 1988 (Comin, 1995). E perto de 1/3 de todos os sindicatos detrabalhadores urbanos criados entre 1983 (ano de fundao da CUT) e 1988 tiveram o patrocniodireto desta central (Cardoso, 1997c). Por outras palavras, a CGT no foi capaz de constituir-seem alternativa real de poder no meio sindical, no sentido de que no apenas no impediu ocrescimento da CUT, como ainda viu congelada sua afiliao. Quando o sindicalismo pragmticoirrompe na cena sindical brasileira, a CUT j crescia e se consolidava como a nica entidadesindical centralizada de alguma relevncia, assentada sobre uma base altamente diversificadaespalhada por todo o pas, alm de economica e politicamente estratgica. Uma base que lhegarantia poder de veto nos termos em que venho discutindo neste trabalho, isto , poder deretaliar, no mercado de trabalho, contra polticas estatais visando solues da crise quedistribussem os custos do ajuste apenas (ou mesmo primordialmente) entre os trabalhadores. E aestagnao da CGT fazia prever para breve o monoplio da CUT no mercado sindicalbrasileiro.

    A FORTUNA: CRISE NOS ANOS 1980

    Espero ter demonstrado que a CUT galvanizou o sucesso inconteste do sindicalismo nadcada de 1980, sucesso decorrente da convergncia de muitos condicionantes favorveis constituio de identidades coletivas sindicais. Embora dividisse espaos com a CGT, central maisfrgil mas representativa de uma vertente claramente identificvel no cenrio ideolgico e prticoda transio, a CUT estruturou concepes e formas de ao que atraram adeptos de formaintensa, a ponto de sua afiliao quadruplicar no curto espao de tempo de 1988 a 1990, de sorteque se tornou quase hegemnica entre os sindicatos com alguma disposio para participar decentrais sindicais. O sucesso do sindicalismo nos anos 1980 foi, deste ponto de vista,principalmente o sucesso da CUT, diretamente responsvel por 1/3 de todos os sindicatos detrabalhadores urbanos criados desde sua fundao, em agosto de 1983, at 1988 (Cardoso,1997c).

    12 Agradeo ao Desep/CUT a cesso dos dados sobre os sindicatos filiados CUT em 1988. Para as greves do

    funcionalismo, ver Noronha (1992). A consolidao de parte destas informaes pode ser encontrada emComin (1995).

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    E espero ter demonstrado tambm que, na segunda metade dos anos 1980, omovimento sindical consolidara substancial poder de veto a medidas que visassem atribuir apenasaos trabalhadores os custos de sadas da crise econmica que varreu toda a dcada13. Se isto podeser sustentado, vejamos o que se pode dizer sobre a impermeabilidade das elites em relao aosinteresses umas das outras em face da crise.

    A crise dos anos 1980 tem feies mltiplas, dificilmente apreensveis em curto espaocomo o que disponho. Trarei tona apenas alguns aspectos salientes, necessrios compreensodo ambiente em que Medeiros pde exercer sua virt e angariar espao de ao ao sindicalismopragmtico, abrindo as portas para uma nova central sindical.

    Uma leitura certamente plausvel sustenta ter a crise decorrido da combinao de pelomenos dois vetores centrfugos importantes. De um lado, a dbcle do pacto desenvolvimentistaque articulou interesses privados nacionais e internacionais com interesses estatais em torno deum projeto de superao do lugar do Brasil na diviso internacional do trabalho, perifrico edependente, cuja expresso mxima seria o II PND (Fiori, 1989; Sallum Jr., 1994 e 1996). Naorigem da dbcle, na verdade no centro do furaco, estava a crise fiscal do Estado, legado maisconspcuo do autoritarismo cum desenvolvimentismo. De outro lado, em estreita associao comisto, a crise de hegemonia ou de projeto, no sentido de que nenhuma fora social relevante,sozinha ou em conjunto com outras, habilitou-se ao posto de ncleo de uma coalizo de podersuficientemente abrangente para implementar um programa de ao capaz de sacar o pas docrculo de ferro da inflao com estagnao econmica (Sola, 1988; Singer, 1988; Diniz, 1997).Isso no quer dizer que agentes isolados no tivessem poder para impor uma direo aacontecimentos tambm isolados segundo seu interesse mais imediato. Na verdade, no foi outraa atitude dos grandes grupos econmicos e polticos em relao ao Estado em crise: pred-lo emsua agonia por meio do acirramento da balcanizao de suas agncias, na tentativa de maximizarganhos de curtssimo prazo no mundo sem horizontes da crise prolongada (Lessa, 1988;ODonnell, 1992). O que se quer dizer que esta predao era, ela mesma, conseqncia da crisede hegemonia.

    Inicio pela crise do Estado. O desenvolvimentismo sob os militares, em especial noperodo Mdici/Geisel, teve algumas caractersticas marcantes que merecem meno ligeira.Primeiro, tomando por referncia a presidncia da repblica, esvaziaram-se quaisquer centrosalternativos de poder de Estado. Congresso nacional, judicirio e mesmo as agncias burocrticasministeriais, encarregadas da execuo das polticas pblicas centralmente formuladas, foramtransformados em apndices da vontade soberana do ncleo orgnico do regime. A Federaotransformou-se em letra morta via nomeao de governadores e prefeitos de capitais e reas desegurana nacional, centralizao da arrecadao fiscal na Unio e controle dos gastosestaduais e municipais. Centros alternativos de constituio de interesses autnomos em relaoao interesse nacional pelo desenvolvimento, interesse tornado Razo de Estado, vale dizer,

    13 No custa lembrar, de passagem, que a democracia emergente em breve lanaria as agncias polticas, em

    especial a presidncia da repblica, ao escrutnio das urnas, motivando clculos de sobrevivncia antesdesnecessrios. O poder do voto, porm, no pode ser confundido com o poder de veto de atoresorganizados.

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    organizaes da sociedade civil como os sindicatos de trabalhadores, de empresrios ou a mdia,tiveram sua ao cerceada por intensa represso e censura. A distenso a partir de 1974 lanarianovos atores cena pblica, mas a capacidade de coordenao do desenvolvimento por parte doEstado se manteve relativamente intacta at a segunda crise do petrleo, em 1979. Em suma, umExecutivo forte, com grande capacidade para isolar o dissenso e constituir-se efetivamente numcentro de constituio e implementao de um projeto nacional de desenvolvimento com grandelegitimidade em seu aspecto puramente econmico, por sua vez momento primordial do xito doregime autoritrio no Brasil, eis o ncleo garantidor da hegemonia desenvolvimentista.

    A segunda caracterstica, j neste plano econmico e de conseqncias que sedesdobraram intensamente pelos anos 1980, foi a resposta (claramente desenvolvimentista) dogoverno Geisel ao primeiro choque do petrleo, de 1974. Enquanto o mundo ocidental se retraaem face das restries impostas pelo choque, o Brasil optou por um salto adiante ou, nas palavrasde Fiori (1989), pela fuga para frente, isto , pelo aprofundamento do investimento pblicofinanciado pelo endividamento externo das empresas estatais, e do investimento privado,financiado pelo endividamento pblico. Na verdade, o padro de endividamento inaugurado e, emalguns casos, aprofundado por Geisel revelar-se-ia uma bomba de efeito retardado, que explodiriaem 1979 e continuaria produzindo efeitos colaterais duradouros nos anos 1980: o crescimentoacelerado da dvida desatou a crise fiscal do Estado. preciso escrutinar, ainda quesumariamente, este padro de endividamento, responsvel pela perda de capacidade de manejo daeconomia por parte do Executivo, componente central (se bem que nem de longe nico) da crisede hegemonia da segunda metade dos anos 1980.

    Primeiro, o endividamento envolveu todas as instncias da administrao pblica, comestados e municpios contraindo financiamentos junto a organismos internacionais (BID, bancomundial ou agncias governamentais) e empresas estatais sendo obrigadas a se endividar tambmjunto a bancos privados. Em segundo lugar, principalmente a partir de 1974, o aumento das taxasde juros internacionais repercutiu negativamente no balano de contas correntes, que passou aconsumir crescentes fatias do dinheiro de novos emprstimos. A dvida passou a ser financiadacom nova dvida a juros reais crescentes. Em terceiro lugar, como o setor privado buscava reduzirprogressivamente sua participao na contratao de emprstimos externos, a obteno de divisaspara a cobertura do dficit - inclusive a dvida pblica interna - passou a depender cada vez maisdo endividamento pblico externo, num processo de transferncia de dvida externa privada parao Estado. Finalmente, o Banco Central permitiu a liquidao antecipada, junto a si, dos dbitosexternos do setor privado, assumindo, assim, a dvida privada diante dos credores internacionais.Por outras palavras, estatizou-se a dvida externa em ambiente de profundas incertezasinternacionais, assoberbadas pelo segundo choque do petrleo. Entre 1973 e 1979, a fatia pblicada dvida externa pulou de 52% para 68%. Com a elevao das taxas de juros internacionais, arecesso mundial dos anos 1979-1983 e a interrupo dos fluxos de dinheiro novo provocada pelamoratria mexicana, a dvida pblica chegaria a 84% de um total de quase 100 bilhes de dlaresem 1985. O servio da dvida (pagamento de juros) tornou-se, ento, o principal problema dascontas pblicas (v. Castro e Souza, 1985; Appy, 1993).

    Presses internacionais obrigaram o governo a adotar polticas restritivas destinadas gerao de saldos positivos em conta corrente capazes de financiar o servio da dvida, o quelanou o pas na mais profunda crise de sua histria entre 1981 e 1983. Recesso, desemprego e

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    inflao minaram a principal moeda de troca do regime autoritrio, o desempenho econmico. Depar com isto, a abertura poltica iniciada em 1974 j permitira explicitar as novas foras que odesenvolvimentismo produzira mas calara sob o jugo das armas: o movimento sindical renasceracom toda fora em 1978; nas eleies de 1982, as oposies plantaram governadores nos trsprincipais estados da federao, Minas Gerais, Rio de Janeiro e So Paulo, ressuscitando osconflitos regionais como locus de renovao dos projetos polticos; o espectro ideolgicoencontrara novos canais de expresso nos partidos em gestao. Ou seja, ao mesmo tempo emque perdia capacidade de nuclear o desenvolvimento econmico, o Estado em crise se tornavaincapaz, tambm, de controle sobre as foras sociais emergentes, aspecto central da configuraoanterior de poder (Santos, 1985). esta conjuno de fatores que Fiori (1989) denominar criseorgnica do Estado, e que em Sallum Jr. (1996) aparece como crise do pactodesenvolvimentista, certamente elemento decisivo na precipitao da crise do regime autoritrio.

    Neste quadro crtico, a Nova Repblica despontou como a soluo de compromissoentre setores reformistas das elites no poder e a oposio moderada ao regime autoritrio, queimpediu a ruptura definitiva com a ordem anterior, isto , que limitou sobremaneira apermeabilizao do sistema poltico e decisrio aos interesses emergentes e a superao efetiva daherana desenvolvimentista. Marcada pela morte de seu principal artfice e pela ascenso ao poderde um trnsfuga de ltima hora do partido de sustentao ao regime militar, a Nova Repblica jnasceu fragilizada em sua capacidade governativa. A coalizo desenvolvimentista que sustentara oregime em seus estertores no apenas manteve suas prerrogativas na transio, como ainda logrouampli-las consideravelmente no correr do governo Sarney, plasmando-as na carta constitucionalde 1988, caso conspcuo do poder de interveno dos militares para a garantia da ordem(Stepan, 1988), por exemplo, ou da garantia de monoplio s empresas estatais, mecanismo quepermitiu a preservao do poder do grupo poltico ligado ao ex-presidente Geisel (Sallum Jr.,1996).

    Mas do ponto de vista que me interessa aqui, o elemento realmente importante daprimeira fase do governo Sarney, que vai do Cruzado ao fracasso do Plano Bresser, acombinao de completo enclausuramento das tentativas de superao da crise natecnoburocracia estatal, de um lado, com ampliao dos espaos de participao social e polticadecorrentes da democratizao, de outro lado. De fato, como argumenta Sallum Jr. (1996),corroborando Juan Carlos Torre, os choques heterodoxos na Amrica Latina representaramtentativas de recuperao de capacidade de governo por parte de Estados enfraquecidos ousimplesmente incapazes de logr-lo por meio da cooperao. No foi diferente no caso de Sarney,e era de se esperar medidas unilaterais, como na Argentina ou no Mxico, dada a fragilidade debero de sua sustentao poltica. Porm, a gesto tecno-burocrtica daqueles planos deestabilizao replicava o padro histrico de regulao econmica, sem a contrapartida de umexecutivo forte e infenso a presses de agentes externos, caracterstico do autoritarismo militar.Isso quer dizer que os choques heterodoxos foram a demonstrao cabal de que o Estadobrasileiro tinha perdido capacidade de articular, entre os que deram suporte transio egarantiram a posse de Jos Sarney, um projeto majoritrio de superao de sua prpria crise e neste exato sentido que se pode falar em crise de hegemonia. Os choques heterodoxos so aexpresso mais cabal desta crise.

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    A contrapartida no plano social foi que a crise econmica em ambiente de liberdadespolticas de manifestao e organizao, ademais aberto articulao dos interesses privados porfora das agncias estatais, ainda que para pression-las, se redundou em extenso conflitodistributivo alimentador da inflao, por outro lado deu um rosto visvel e cada vez mais ntido aestes interesses, permitindo aos atores emergentes consolidar posies no mercado, de ondepassaram a ditar limites s polticas pblicas de cuja formulao estavam excludos.

    Como lembra Paul Singer, os conflitos distributivos que alimentavam a inflao noBrasil antepunham

    credores externos, o Estado, a burguesia nacional produtiva, o capital bancrio, a pequenaburguesia e os trabalhadores assalariados. Estes conflitos mltiplos, simultneos, parcialmenteinterconectados, no conduzem necessria reestruturao [econmica], porque so mantidos noplano econmico, onde a inflao impede que sejam resolvidos. A dinmica da inflao redefine acada momento a repartio da renda, impedindo que qualquer setor aumente ou diminua suaparcela de modo permanente (Singer, 1988: 89).

    Nos termos em que venho discutindo, a crise de hegemonia expressava aintransparncia dos horizontes de clculo num mundo onde imperava a inflao. Todos queriamuma soluo para a crise, mas ningum estava disposto a abrir mo de ganhos imediatos em trocade ganhos no antecipveis e muito incertos num futuro opaco. Os interesses de sobrevivncia,neste quadro, aparecem como de soma zero, e os atores relevantes do processo histrico simaginam sua sobrevivncia s expensas dos oponentes, se possvel s expensas do Estado emcrise. Os interesses so incomensurveis, irredutveis uns aos outros. Para Singer, a soluo dosconflitos distributivos requeria que fossem guindados ao plano poltico, em que uma possvelcoligao de interesses majoritrios (idem, ibidem) conseguisse superar o jogo de incertezas demercado. Esta coligao jamais conseguiu formar-se no governo Sarney, que a cada novatentativa de superao tecnocrtica da crise sofria retaliaes tanto dos agentes no mercado cujosinteresses no estavam representados nos crculos de poder, quanto dos interesses que tinhamexpresso ali, de forma mais ou menos pblica, isto , com mais ou menos visibilidade do pontode vista da res publica.

    O tempo mostraria, contrariamente ao que imaginou Singer, que os trabalhadorespodiam, sim, perder de forma permanente neste jogo, principalmente em termos de bem estarsocial: o Estado falido permitiu o sucateamento da mquina pblica de prestao de serviosessenciais; e a inflao dilapidou os salrios reais em mais de 50% no correr da dcada. Naausncia de coordenao para a distribuio dos custos da crise, eles recaram sobre o elo maisfrgil no mercado, apesar da referida capacidade da CUT frear a conteno salarial induzida porpolticas pblicas estatais. Esse ponto, alis, essencial. A CUT (e tambm os empresrios,obviamente) tinha poder de veto contra polticas pblicas explicitamente formuladas etentativamente implementadas, de que os planos Cruzado e Bresser so exemplos cabais. Mas notinha capacidade de, individualmente, impedir que as foras cegas do mercado arrancassem dostrabalhadores, via inflao, o que a luta sindical imaginava estar garantindo por meio da aocoletiva: o poder de compra de seus salrios.

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    A RETRICA DA CONVERGNCIA COMO VIRT

    A conjuntura crtica que configuraria a fortuna do sindicalismo pragmtico, pois,opunha foras sociais e polticas incomensurveis, um Estado em decrepitude e crescente perdade qualidade de vida por parte da populao trabalhadora. A virt de lideranas como Medeiros eMagri, expoentes do sindicalismo pragmtico, foi justamente apresentar-se como alternativa depoder no meio sindical e visar explicitamente o rompimento do crculo de ferro daincomensurabilidade dos interesses imediatos que alimentava a crise. O sindicalismo pragmtico,ao contrrio da CUT, nasceu afirmando sua convergncia com as foras no comando (ou nodesmando) da transio. A afirmao, por parte de um dos atores com poder de veto, dedisposio para negociar, talvez fosse, por si s, capaz de forar atitudes solidrias por parte dosoutros dois atores relevantes, capital e Estado. Foi este achado que lanou Medeiros e Magri noroldo da poltica, catapultando-os ao posto de interlocutores pelo trabalho em possveisarticulaes negociadas para a superao da crise. Mas f-lo numa matriz de negao que passo aexplicitar.

    Ora, o sindicalismo que desenvolveu poder de veto no foi o sindicalismo pragmtico,mas o sindicalismo cutista, cuja representatividade era incontestvel. Entretanto, foi o primeiroquem afirmou a convergncia de interesses entre capital, trabalho e Estado e, com ele, apossibilidade de pactao social para o manejo da crise. Medeiros e Magri incorporaram comoseu este elemento mais conspcuo da retrica da agenda transitria, que foi o pacto social, aqui eali vendido como panacia para os males da economia agonizante. Mas aqueles dois sindicalistasno tinham representatividade, ou melhor, enquanto dirigentes sindicais que tambm interferiamnos destinos da CGT, representavam uma parte insignificante do universo trabalhador brasileiro.Porm, e este o ponto central, ao se apresentarem como alternativa de poder portadora deinteresses convergentes com as elites dominantes, credeciavam-se ao investimento destas mesmaselites em sua representatividade. No preciso muito esforo para perceber que a simplesaceitao do sindicalismo pragmtico nas mesas dos pactos sociais era um investimento explcitoem sua representatividade potencial, j que ela era efetivamente inexistente.

    Esta situao configura uma ambigidade discursiva e prtica das elites empresariais eestatais, na qual o sindicalismo pragmtico encontrou terreno frtil ao apresentar-se compretenso de representar de fato os trabalhadores brasileiros, que estavam cansados deideologias que no enchem barriga de ningum, como dizia Medeiros ento (1987-1988), semcontudo ter uma base real de sustentao que alavancasse tal pretenso. Neste sentido, Medeirosfoi investido da posio de alter pelo prprio sistema poltico que o acolhia. Alter, bom que sediga, no deste sistema e sim do sindicalismo poderoso e representativo que negava legitimidades foras ali operantes. Ele foi investido de representatividade, eleito pelas elites no poder porqueinterlocutores eram imprescindveis desde que o sindicalismo era poderoso.

    Tal estrutura discursiva armaria o cenrio para a atuao dos sindicalistas pragmticos,em especial Medeiros, e para a interlocuo que se deu entre este ltimo e as elites dominantes.Medeiros adentrou (sua virt) um jogo em que foi alado a interlocutor numa matriz de negaoda interlocuo pluralista como alternativa real de pactao social. Antes, a matriz de suaincorporao foi eminentemente oligrquica e excludente. Por outras palavras,pragmatismo/oportunismo estiveram juntos no jogo oligrquico de atribuio de

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    representatividade, pelas elites, ao sindicalismo que interessava, posto que professava interessesconvergentes. Este , sem dvida, aspecto essencial do que chamo aqui de impermeabilidade daselites nacionais manifestao autnoma de interesses dos trabalhadores: empresrios e Estadopretenderam-se capazes de atribuir representatividade ao escolhido (Medeiros). Este subscreveu aescolha na esperana de com isto consolidar sua liderana, com o que legitimou a tramaoligrquica mesma.

    A atribuio de representatividade a Medeiros foi, ao mesmo tempo, negao delegitimidade CUT. O jogo era de todo contraditrio, pois o tipo de representatividade requeridado sindicalismo em pactaes sociais, por exemplo, no se pode basear em atribuiesoligrquicas. Dentre outras coisas, porque o pacto supe a capacidade do representante controlaros representados, impedindo aes coletivas sobre sua cabea. Se Estado e empresrios queriamMedeiros, este querer constituiu-se segundo os velhos padres da poltica brasileira, marcadospelo maximalismo das oligarquias segundo o qual o predicado est pressuposto no verboquerer, isto , o resultado encontra-se predeterminado na volio dos agentes, simplesmenteporque eles controlam ex ante o resultado das trocas intra-oligrquicas.

    Mas preciso matizar esse ponto. De fato, no estvamos na Primeira Repblica. Osgrupos dominantes, sobreviventes derrocada do autoritarismo militar, no eram mais capazes dereferenciar por completo o jogo de poder em seus interesses oligrquicos de autopreservao e,portanto, no prprio circuito intra-oligrquico. Tampouco estvamos sob Vargas. No erasuficiente reconhecer a representatividade de um lder sindical a partir de sua posio na divisosocial do trabalho. Na ordem regulada (Santos, 1979) da ditadura getulista, as prioridadessetoriais da poltica desenvolvimentista do Estado conferiam precedncia ora a um setor daeconomia, ora a outro, e a necessidade de controle do operariado emergente em um ou outrofazia do sindicalista ungido pela sorte um interlocutor privilegiado de Vargas. No estvamostambm sob o populismo, varguista ou no, que permitiu que a fortuna daqueles sindicalistas sepudesse expressar como virt, isto , como capacidade de exerccio de poder a partir da posiona diviso social do trabalho e na prpria ordem regulada. Finalmente, no estvamos sob oautoritarismo militar, em que o poder sindical pudesse ser unilateralmente negado.

    De fato, um ganho real da transio do autoritarismo foi a explicitao da concordatada ordem regulada, para nos atermos anlise sempre instigante de Wanderley Guilherme dosSantos (1985). A forte representatividade do sindicalismo ps-autoritrio que acabo de demarcarfoi um dos momentos centrais daquela explicitao. Entretanto, do ponto de vista que interessa ameu argumento, o aspecto apenas concordatrio da ordem regulada (que de modo algumimplicava em sua falncia necessria) se expressava no fato de que o Estado brasileiro no podiamais fazer de conta que o sindicalismo brasileiro no existia, mas no perdera o mpeto decontrol-lo e, com isso, reproduzir os mecanismos de sua incorporao excludente (Cardoso,1998). Reside precisamente neste mpeto a necessidade da busca de um escolhido no meiosindical. E esta demanda era oligrquica no sentido de que seu objetivo era reduzir as presses dasociedade civil organizada sobre a relao persistentemente patrimonialista da polis com o Estadoem crise (Lessa, 1988).

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    I I

    Em suma, o novo sindicalismo estabeleceu um padro competitivo, altamenteprofissional e relativamente autnomo de ao sindical, responsvel por sua rpida consolidao eexpanso na primeira metade dos anos 1980. Isto quer dizer que a transio do autoritarismointroduziu novos requisitos representatividade sindical em que no era mais suficiente o jogooligrquico de nomeao de escolhidos, algo que teve efetividade no pas pr-1964. Aescolha de Medeiros, portanto, se tinha origem oligrquica, necessitava de contrapartidas no-oligrquicas por parte do escolhido para efetivar-se como uma escolha capaz de oferecerobstculos relevantes ao crescimento da CUT, tanto para evitar que essa central monopolizassepor completo a representao sindical no Brasil, quanto para reduzir as presses democratizantessobre o sistema prevalecente de exerccio de poder. Para finalizar este artigo, mostrarei queMedeiros ofereceu estas contrapartidas, e o fez de forma eficaz. Para tanto avalio, de um lado, acapacidade de penetrao do discurso e da prtica pragmticos nas bases de sustentao de sualiderana mxima e, de outro lado, comparo seu padro de ao coletiva com aquele consolidadona principal fora concorrente do sindicalismo pragmtico, o sindicato dos metalrgicos de SoBernardo do Campo.

    AS CONTRAPARTIDAS DO ESCOLHIDO

    O mercado de trabalho representa um limite ao sindical no sentido de conferir-lhealguns parmetros estruturais que, contudo, no determinam inteiramente a ao possvel14.Mercados de trabalho idnticos podem dar origem a ao sindical bem diversa, assim como aconcepes sobre a vida sindical e a participao poltico-sindical entre os trabalhadores tambmmultifacetadas (Duncan, 1978; Humphrey, 1982; Sabel, 1984; Offe, 1989-1991; Sabel, 1982;Abramo, 1990, Leite, 1994). Mas o contedo das demandas sindicais junto s empresas tem nomercado de trabalho um componente importante.

    Assim, para os metalrgicos de So Paulo, o mercado de trabalho operou com toda adinmica perversa que o caracteriza em setores fortemente competitivos no Brasil. Primeiro, aenorme sensibilidade do setor aos ciclos econmicos tornou a fora-de-trabalho refm domovimento de expanso e retrao da oferta de emprego. Do mesmo modo, a melhoria salarial dacategoria metalrgica como um todo no foi constante, embora se tenha chegado em 1989 comsalrios superiores, em termos reais, aos percebidos em 1982. Mais importante do que isto, e emsegundo lugar, ao menos at 1989 a evoluo dos salrios no pode ser atribuda atuaosindical diferenciada de Medeiros e Joaquinzo. Isto porque, mesmo adotando estratgia maisagressiva e mobilizadora de ao sindical, Medeiros jamais conseguiu igualar, por exemplo,percentual de ganho real de salrio conseguido pelos metalrgicos em 1985 (em relao ao anoanterior), isto , ainda na gesto Joaquinzo. A evoluo salarial e do emprego entre os

    14 No que se segue, baseio-me inteiramente em Cardoso (1998).

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    metalrgicos acompanhou, isto sim, os movimentos da economia. neste sentido, e apenas neste,que os metalrgicos esto muito submetidos a condicionamentos alheios a seu controle comocategoria organizada. O mercado de trabalho funciona como tal, tornando-os altamentedependentes da legislao oficial para a determinao de seus salrios, por exemplo. Porconseqncia, suas demandas junto s empresas sempre foram muito abrangentes e extensas. Adiversidade da categoria, porm, tornou letra morta muitos dos itens dos acordos coletivosfirmados, por exemplo, com a FIESP, na medida em que pequenas e micro-empresas no eramcapazes de cumprir clusulas mnimas sobre condies de trabalho, regularizao da situaotrabalhista dos empregados, reajustes salariais e jornada de trabalho de 44 horas semanais,conseguida em 1987 em dissdio coletivo. O resultado mais importante dos limites estruturais ao sindical metalrgica foi, ento, a incapacidade do sindicato universalizar os ganhosconsignados em acordos coletivos para toda a categoria. A disparidade intra-classe umacaracterstica intrnseca a este setor, disparidade no sanada pela ao sindical pragmtica. Naverdade, no aspecto renda essa disparidade se ampliou consideravelmente.

    Mas Medeiros contornou os limites do mercado de trabalho de forma no desprezvelnum aspecto central para o argumento desenvolvido aqui: a consolidao do poder sindical. Ademonstrao desse ponto requer a resposta s seguintes perguntas: qual o impacto de elementoscomo porte das empresas, tempo no emprego e escolaridade sobre a disposio diferencial dosmetalrgicos para a ao coletiva e para o reconhecimento de seu sindicato como representativo?Por outras palavras, se o mercado de trabalho impe limites ao possvel, em que medida adiversidade de mercado foi importante na constituio de atitudes diferenciadas de estratos dacategoria metalrgica em relao ao sindical? Trabalhadores mais ou menos estveis, mais oumenos escolarizados, de empresas maiores ou menores, julgam diferentemente a ao sindicalpragmtica? Essas perguntas podem ser respondidas com base num survey realizado em 1994,coordenado por mim e Alvaro Comin15.

    15 Esse survey foi longamente fermentado em uma srie de reunies no Grupo de Estudos Polticos, ncleo que

    se constituiu no Cebrap sob coordenao de Guillermo ODonnell e Vilmar Faria entre 1987 e 1994.Daquelas reunies tomaram parte, alm dos coordenadores, os professores Fabio Wanderley Reis e AntnioAugusto Prates, da UFMG, que montaram e aplicaram questionrio anlogo junto a pblicos diversos dosanalisados aqui. Participou tambm Jos Ramn Montero, ento professor da Universidad Complutense deMadrid, na qualidade de especialista em surveys em transies do autoritarismo. Nas reunies de grupoestiveram presentes ainda, em maior ou menor intensidade, Sebastio Velasco e Cruz, da Universidade deCampinas, Jorge Avelino Filho, e Carlos A. M. Novaes, Adalberto M. Cardoso e Alvaro A. Comin, doCebrap. Esses trs ltimos pesquisadores foram os responsveis pela forma final assumida pelo questionrio,aplicado entre maio e agosto de 1994 e j sob coordenao de Francisco de Oliveira (Cebrap) e ReginaldoPrandi (LAB/USP). O Datafolha foi o responsvel pelo campo, supervisionado pelos autores desse artigo.Aproveito para agradecer a todos, eximindo-os, obviamente, dos equvocos que aqui por venturapermaneam. Embora o survey tenha sido realizado em 1994, pertinente na medida em que posso mereferir ao sindical pragmtica consolidada (e no em seu nascedouro). Naquele ano, os metalrgicos dacapital paulista estavam por oito anos sob direo sindical de Medeiros ou de seu preposto, Paulo Pereirada Silva. Os metalrgicos entrevistados tm condies de julgar seu sindicato com conhecimento de causa, e possvel esperar que, se Medeiros sanou os constrangimentos de mercado ao sindical no perodo de suagesto, o perfil de participao e julgamento do sindicato no seria muito diferente, por exemplo, entretrabalhadores de pequenas, mdias e grandes empresas.

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    As Tabelas 6 e 7 resumem alguns dados selecionados de participao sindical dosmetalrgicos de So Paulo segundo porte das empresas e escolaridade. De um modo geral, menosda metade dos metalrgicos participam de greves, menos de um quinto comparece a assembliassindicais e pouco mais de um tero sindicalizado. H diferenas na participao segundo o portedas empresas. Os trabalhadores de empresas pequenas (at 50 empregados) participam menos doque todos os demais, e os das empresas mdias e grandes participam de forma quase equivalente:se os trabalhadores de grandes empresas so mais freqentes em assemblias do que os de mdiasempresas, em compensao a taxa de sindicalizao entre esses ltimos superior dosprimeiros. Esse dado sugere focalizao da ao de Medeiros nas mdias empresas, sem que elese tenha descuidado das grandes. Ao mesmo tempo, esto em acordo com o que se aludiu arespeito da dificuldade de acesso s pequenas empresas da capital paulistana em face de suaenorme disperso geogrfica.

    De qualquer maneira, essa dificuldade no se mostra impeditiva. H diferenas entre asempresas segundo o porte, mas essas diferenas no so gritantes. claro que duas vezes maismetalrgicos de grandes empresas participam de assemblias do que os de pequenas empresas.Mas estamos falando de uma taxa baixa de comparecimento (27% no primeiro caso e 13% nosegundo, diferenas significativas no nvel 0,05). Do mesmo modo, 34% dos empregados emempresas pequenas tomam parte nas greves, contra perto de 47% dos trabalhadores em empresasgrandes (sig. 0,05). Finalmente, a taxa de sindicalizao no muito diversa entre esses doisestratos. Por outras palavras, ainda que eu no disponha de dados no tempo, parece claro queMedeiros logrou penetrao nas pequenas empresas num diapaso prximo aos demais estratos.Entrevistas com membros da oposio sindical ou com antigos diretores do SMSP permitemsugerir que essas empresas jamais tinham sido alvo de ao sindical agressiva antes de Medeiros.Ali trabalhava a peozada que passou a ser a principal base de sustentao de Medeiros entre1986 e 1989.

    A se fiar nestas mesmas entrevistas, a penetrao do sindicato nos estratos menosescolarizados dos metalrgicos tem origem anloga, isto , o projeto de incorporao de novosfiliados em novos focos de ao sindical. Ainda que no haja diferena na participao em grevesde trabalhadores em vrios nveis de escolaridade, parece claro que, quanto mais escolarizados,menos os metalrgicos comparecero a assemblias e menos sero sindicalizados. Nesse ltimocaso, a diferena na distribuio dos menos para os mais escolarizados chega prximo a 20%(45% entre os com primrio e 27% entre os com universidade, sig. .01)16. Escolaridade e portedas empresas so variveis correlacionadas. De fato, nas empresas pequenas e mdias queencontraremos a maior participao de trabalhadores com at o ginsio de escolaridade: 38% dostrabalhadores com at primrio estavam em pequenas empresas, e 41% dos com at ginsioestavam nas mdias. Uma vez mais, a peozada. por essa razo que, daqui por diante, analisoapenas aspectos da ao sindical segundo o porte da empresa.

    16 preciso dizer que mais de 50% dos trabalhadores com universidade eram de setores administrativos das

    fbricas, e 38% eram profissionais de nvel mdio trabalhando fora da produo. Apenas 12% eramoperrios. Tradicionalmente, os setores administrativos e de apoio so menos mobilizados do que os setoresoperrios, fato confirmado pelo survey.

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    Tabela 6:Indicadores selecionados de participao sindical segundo o porte das empresas 1994

    Tipo de participao nas grevesPorte daempresa

    No participa Apenas notrabalha

    Part. Assembl Part.piquete Total

    Pequena 66,0 19,8 8,5 5,7 106Mdia 51,9 38,8 4,7 4,7 129Grande 53,4 24,6 17,8 4,2 118Total 56,7 28,3 10,2 4,8 100,0N 200 100 36 17 353

    Freqncia em assembliasFrequent./s vezes Raramente ou nunca Total

    Pequena 13,5 86,5 133Mdia 18,6 81,4 140Grande 27,2 72,8 125Total 19,6 80,4 100,0N 78 320 398

    sindicalizado?Sim No Total

    Pequena 33,8 66,2 133Mdia 42,1 57,9 140Grande 36,2 63,8 127Total 37,5 62,5 100,0N 175 250 400Fonte: Survey Cebrap, 1994

    Tabela 7:Indicadores selecionados de participao sindical por escolaridade 1994

    Tipo de participao nas grevesEscolaridade No participa Apenas

    n.trabalhaPart. assembl. Part.piquete Total

    Primrio 59,7 30,6 8,1 1,6 62Ginsio 52,5 33,6 9,8 4,1 122Colgio 59,8 23,0 11,5 5,7 122Universidade 55,3 25,5 10,6 8,5 47Total 56,7 28,3 10,2 4,8 100,0N 200 100 36 17 353

    Freqncia em assemblias TotalFrequent./s vezes Raramente ou nunca

    Primrio 21,2 78,8 66Ginsio 24,8 75,2 133Colgio 16,4 83,6 140Universidade 13,6 86,4 59Total 19,6 80,4 100,0N 78 320 398

    sindicalizado?Sim No

    Primrio 45,5 54,5 66Ginsio 44,0 56,0 134Colgio 31,9 68,1 141

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    Universidade 27,1 72,9 59Total 37,5 62,5 100,0N 175 250 400Fonte: Survey Cebrap, 1994

    Avaliemos a imagem do sindicato entre essas categorias de trabalhadores. Esta imagem uma medida bastante eficiente da penetrao tanto do iderio quanto da ao sindicais junto sua base. A Tabela 8 traz os dados pertinentes. A estratgia de ao coletiva do sindicato avaliada igualmente por todos, com pouco mais da metade dos metalrgicos considerando-aeficiente. Do mesmo modo, a maioria acha que o sindicato contribui para a soluo dos problemasda categoria, com trabalhadores de empresas mdias e pequenas avaliando um pouco melhor osindicato do que os de empresas grandes. Estes tendem a achar, mais do que os outros, que osindicato no influencia. Do mesmo modo, quanto menor a empresa, mais o sindicato recebernotas iguais ou maiores do que oito, se bem que entre as empresas pequenas que iremosencontrar maior ocorrncia de notas at quatro (23%). Se considerarmos notas iguais ou maioresdo que seis, iremos encontrar 60% dos empregados de pequenas empresas, 70% dos de mdias, e63% dos lotados em empresas de grande porte. Por outros termos, a avaliao do sindicato positiva entre todos os estratos de trabalhadores considerados, e as variaes no so de montaentre eles. O sindicato tem uma imagem bastante homognea entre aqueles que representa e, naverdade, um pouco melhor entre os trabalhadores de empresas menores.

    Tabela 8:Avaliao do sindicato segundo porte da empresa

    TIPO DE PARTICIPAO NAS GREVESEscolaridade No participa Apenas

    n.trabalhaPart. assembl. Part.piquete Total

    Primrio 59,7 30,6 8,1 1,6 93Ginsio 52,5 33,6 9,8 4,1 183Colgio 59,8 23,0 11,5 5,7 183Universidade 55,3 25,5 10,6 8,5 71Total 56,7 28,3 10,2 4,8 100,0N 300 150 54 26 530

    FREQNCIA EM ASSEMBLIAS TotalFrequent./s vezes Raramente ou nunca

    Primrio 21,2 78,8 99Ginsio 24,8 75,2 200Colgio 16,4 83,6 210Universidade 13,6 86,4 89Total 19,6 80,4 100,0N 117 480 597

    SINDICALIZADO?Sim No

    Primrio 45,5 54,5 99Ginsio 44,0 56,0 201Colgio 31,9 68,1 212Universidade 27,1 72,9 89Total 37,5 62,5 100,0N 225 375 600Fonte: Survey Cebrap, 1994

  • Novos e velhos sindicalistas?

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    Finalmente, cumpre ao menos mencionar algumas diferenas encontrveis nadistribuio segundo o tempo no emprego. Parece-me ocioso apresentar todos os dados numanova tabela, e conto com a confiana do leitor em relao acuidade dos resultados que passo adiscutir. O primeiro aspecto a salientar o alto ndice de participao de trabalhadores com atum ano no emprego no total. O survey que analiso encontrou nada menos do que 32% detrabalhadores nessa situao em 1994. Segundo a literatura pertinente, menos provvel quetrabalhadores que temem por seus empregos participem de movimentos coletivos, de sorte queera de se esperar padres bastante distintos de ao sindical e de relao com o sindicato quantomais estvel fosse o vnculo empregatcio (Sabel, 1982). O survey confirma em parte essahiptese. Onde ele no confirma, isto se d numa direo surpreendente.

    Assim, no campo das confirmaes, entre trabalhadores no emprego h um ano oumenos, a taxa de sindicalizao era de 26%, enquanto entre os com 9 anos ou mais no mesmoemprego esta taxa chegava a 58%. Do mesmo modo, os mais antigos eram tambm maisparticipativos nas assemblias (15% contra 29%, respectivamente). Entretanto, empregados com9 anos ou mais no emprego atual eram razoavelmente menos participativos nas greves do que osrecm contratados: 34% e 53%, respectivamente, participavam, uma diferena de quase 20% emfavor dos novos empregados (significativo no nvel 0,01). Por outros termos, ao contrrio do quese poderia esperar, entre os novos empregados que iremos encontrar maior mpeto mobilizador.

    Esse dado exige um tratamento mais fino, no sentido de qualificar, at onde o survey opermite, a trajetria ocupacional dos trabalhadores aqui considerados. Isso permitiria verificar atque ponto se pode dizer que aqueles com at um ano de casa so tambm trabalhadores querodam entre empregos, ou at que ponto se trata de novos contingentes que entraramrecentemente no mercado de fora-de-trabalho. Esse controle pode ser feito, ainda que de formaprecria, cruzando-se o tempo no emprego atual pelo tempo na profisso. isso que mostra aTabela 9. Pelo menos no que se refere aos empregados com at um ano no emprego atual, 39%estavam na profisso tambm h no mais do que 1 ano. No se pode dizer, portanto, queestivessem rodando entre empregos no setor. Sobre os outros 61% sim, possvel esperar quetenham rodado.

    Tabela 9:Tempo no emprego atual segundo o tempo na profisso

    Tempo no Tempo na profissoEmprego H at 1 ano de 2 a 4 anos 5 a 8 anos 9 ou mais TotalH at um ano 39.2 17.7 16.9 26.2 130de 2 a 4 anos -- 57.3 18.0 24.7 89de 5 a 8 anos -- -- 68.3 31.7 1019 anos ou mais -- -- -- 100.0 80Total 12.8 18.5 26.8 42.0 100,0N 51 111 161 252 400Fonte: Survey Cebrap, 1994

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