as viagens de guliver
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As Viagens de Guliver, em pdfTRANSCRIPT
eBookLibris
VIAGENS DE GULLIVER
Jonathan Swift
Viagens de Gulliver(Travels Into Several Remote Nations of the World In Four Parts by Lemuel Gulliver first
a Surgeon, and then a Captain of several Ships London MDCCXXVI)Jonathan Swift
(16671745)Tradução: Cruz Teixeira
Fonte DigitalDigitalização do livro em papelClássicos Jackson vol. XXXI
1950
Traduções de “O Editor ao Leitor” e “Uma Carta do Capitão Gulliver para seu primoSympson” por Teotonio Simões a partir da edição de “Gulliver’s Travels” do Project
GutenbergTranscribed from the 1892 George Bell and Sons edition by David Price
Imagem da capa:Arthur Rackham (18671939)
Fonte digitalwww.artpassions.net
© 2004 — Jonathan Swift
ÍNDICE
O Editor ao Leitor [desta edição]VIAGENS DE GULLIVERO Editor ao Leitor [segundo a edição original]Uma carta do Capitão Gulliver para seu Primo SympsonPRIMEIRA PARTE — Viagem a LiliputeSEGUNDA PARTE — Viagem a BrobdingnagTERCEIRA PARTE — Viagem a Lapúcia, aos Balnibarbos, a Luggnagg, a Glubbdudrib e ao
JapãoQUARTA PARTE — Viagem ao país dos HuyhnhmnsÍndice dos Capítulos
O Editor ao Leitor
[desta edição]
“Se eu tivesse que fazer umalista de seis livros a serem
preservados quando todos osoutros fossem destruídos,
certamentecolocaria Viagens de
Gulliver entre eles.”George Orwell: Politics vs
Literature
Creio que nem seria preciso um aval tãorespeitável quanto o de Orwell, que leu a obra,texto integral, quando tinha oito anos (ou, para sermais exato, um dia antes, porque abriu o presenteantes do dia:), que o leu pelo menos seis vezesdesde então, para dizer da importância desteclássico de Jonathan Swift.
Entretanto, como sempre faço antes de publicaralguma obra, percorri as livrarias online,conferindo a disponibilidade do título, para nãoinfringir nenhum direito autoral, principalmenteno aspecto patrimonial.
Qual não foi minha surpresa ao verificar que o AsViagens de Gulliver está disponível em muitas e
muitas edições... mas em sua maioria “adaptações”para o público infantil, nas quais,indefectivelmente, consta o nome do adaptador(a),claro. Em uma livraria online, inclusive, o livro éatribuído a quem fez a adaptação. O pobreJonathan Swift foi literalmente desprezado!!
E houve tempo em que a obra, texto integral, eralida por garotos de oito anos. Não precisava sernenhum Orwell, nem morar na Inglaterra. Por aquimesmo, na edição da saudosa Editora Globo (a dePorto Alegre), em edição especial do Clube do Livro,na coleção Clássicos Jackson, entre outras.
Mas, já em 1956, ao anunciar a edição especial de“As Viagens de Gulliver” aos associados do Clubedo Livro, por encomenda, ao preço em todo o Brasilde Cr$50,00 (o preço normal de cada livro doClube do Livro era Cr$15,00), na orelha deThingumBob, de Edgar Allan Poe (setembro de 1956),faziase a seguinte ressalva:
“Geralmente, editamse as duas primeirasviagens: ao país dos anões (Liliput) e ao paísdos gigantes (Brobdingnag). Neste volume,encontramse, não só as 2 primeiras viagensjá citadas, mas as 2 subseqüentes, àLapúcia e a Japão e ao país dos cavalos(huyhnhnms), o que torna precioso estelivro, traduzido em todas as línguas como aBíblia. Em
“AS VIAGENS DEGULLIVER”
V. S. encontrará uma das mais terríveis e marcantes sátiras contra a humanidade,
escrita pelo gênio de Jonathan Swift.”
O “elegante volume de 420 páginas, capas emcores, preço para os associados em todo o BrasilCr$50,00”, contudo, estava além das minhasposses. Li, emprestado de biblioteca, em edição daEditora Globo (a de Porto Alegre) e não aos oito,mas aos onze anos.
A que vem esta nota do editor, mais no estiloprefácio, já que não é meu costume prefaciar oslivros editados pela eBooksBrasil.org?
Primeiro, para destacar a importância da ediçãoem eBook deste título, já que tempo houve em queo Clube do Livro fazia dele “edição extra”.
Segundo, para destacar que, hoje, substimase ainfância, com as tais “adaptações para o públicoinfantil”, que me parecem atender mais à economiade papel de certas casas editoras do que qualqueroutra coisa. Mas ainda bem que existem os HarryPorter e os Senhor dos Anéis para provar que ascrianças de hoje não são diferentes das deantanho! Se lhes interessam os títulos, não são ostamanhos dos volumes que as afastam da boaleitura.
Nesta edição, com capa em cores, nas versões deeBooks que cores comportam, o leitor (espero quemuitos em seus oito ou onze anos), encontrará asquatro viagens, em texto (quase)* integral. Trateide incluir dois textos que foram omitidos na ediçãoem papel digitalizada, que constavam da primeiraedição, de acordo com a disponível no ProjectGutenberg: O Editor ao Leitor eUma Carta doCapitão Gulliver para seu Primo Sympson.
Não sei se constavam na edição do Clube do Livro.Nunca tive acesso a ela.
Chamo a atenção, finalmente, para o fato de estaedição ser feita sob um licenciamento CreativeCommons, destacando o aspecto Atribuição: “Vocêdeve dar crédito ao autor original”. E colocar umaquestão, para reflexão do eventual leitor: É corretoalterar o texto do Autor, com omissões ouinserções não autorizadas?
Como contribuição à abertura de discussão arespeito, as reclamações do Capitão Guliver emcarta a seu primo e Editor, Richard Sympson,podem ser um bom começo.
Sem mais, para vocês, crianças de hoje, asfantásticas Viagens de Gulliver.
Preço em todo o Brasil e mundo: o custo de umaligação telefônica local, energia elétrica e adisponibilidade de um computador conectado àinternet.
Observação: leitura permitida para adultos:)
Outono, 2004Teotonio Simões
eBooksBrasil
Jonathan Swift
VIAGENS DEGULLIVER
O Editor ao Leitor
[segundo a edição original]
O autor destas Viagens, Sr. Lemuel Gulliver, é meuantigo e íntimo amigo; há, parece, alguma relaçãoentre nós pelo lado materno. Há cerca de trêsanos, o Sr. Gulliver fartandose do assédio depessoas curiosas que iam procurálo em sua casaem Redriff, comprou um pequeno pedaço de terra,com uma casa aprazível, perto de Newark, emNottinghamshire, sua terra natal; onde agora viveretirado, embora na boa estima entre seusvizinhos.
Embora Mr. Gulliver tenha nascido emNottinghamshire, onde seu pai viveu, eu o ouvidizer que sua família veio de Oxfordshire;confirmando o fato, observei no cemitério da igregaem Bandury, neste condado, diversas tumbas emonumentos dos Gullivers.
Antes de deixar Redriff, confioume a custódia dospapéis que se seguem em minhas mãos, com aliberdade de dispor deles como achasse melhor. Euos percorri cuidadosamente três vezes. O estilo écorreto e simples; e o único defeito que encontrei éque o autor, à maneira dos viajantes, é um poucopor demais detalhista. Há um ar de aparenteverdade no todo; e realmente o autor era tãodistinguido por sua veracidade, que se tornou umaespécie de provérbio entre seus vizinhos emRedriff, quando alguém afirmava algo, dizer, eratão verdade como se o Sr. Gulliver o tivesse dito.
Por conselho de algumas pessoas prestigiosas, àsquais, com a permissão do autor, mostrei estespapéis, agora aventurome a lançálos ao mundo,esperando que possam ser, pelo menos por algumtempo, um entretenimento melhor para nossosjovens nobres, que as garatujas comuns depolíticos e partidos.
Este volume teria sido pelo menos duas vezesmaior, se eu não tivesse forçado a tirarinumeráveis passagens relativas aos ventos eondas, bem como às variações e finalidades nasdiversas viagens, juntamente com as descriçõesminuciosas do manejo do navio em tempestades,no estilo dos marinheiros; bem como a conta delongitudes e latitudes; embora tenha razão detemer que o Sr. Gulliver ficasse um poucoinsatisfeito. Mas resolvi talhar o trabalho tantoquanto possível à capacidade geral dos leitores.Contudo, se minha própria ignorância dosnegócios marítimos me levou a cometer algunserros, só eu sou responsável por eles. E sequalquer viajante tiver a curiosidade de ver otrabalho inteiro, como veio das mãos do autor,estarei à disposição para satisfazêlo.
Para maiores informações a respeito do autor, oleitor satisfarseá nas primeiras páginas do livro.
Richard Sympson.
Uma carta do Capitão Gulliver para seu primo Sympson.
Escrita no ano de 1727.
Espero que você esteja disposto a admitirpublicamente, caso seja intimado a isso, queatravés de sua grande e freqüente pressa você mepersuadiu a publicar um relato muito desconexo enão correto de minhas viagens, com indicaçõespara contratar alguns jovens de qualqueruniversidade para ordenálos, e corrigir o estilo,como meu sobrinho Dampier fez, aconselhado pormim, em seu livro intitulado “Uma Viagem ao redordo mundo”. Mas não me lembro de lhe terconcedido o poder de consentir que qualquer coisapudesse ser omitida, e muito menos que qualquercoisa pudesse ser insertada; por isso, quanto àsinserções, aqui renuncio qualquer coisa desse tipo;particularmente um parágrafo sobre sua majestadeRainha Anne, da mais pia e gloriosa memória;apesar de reverenciála e estimála mais quequalquer um da espécie humana. Mas você, ou seuinterpolador, deve ter considerado que essa nãoera minha inclinação, assim não foi decente louvarqualquer animal de nossa composição perante meumestre Huyhnhnm. E ademais, o fato foi totalmentefalso; pois pelo que sei, estando em Inglaterradurante alguma parte do reinado de suamajestade, ela governou através de um ministrochefe; aliás mesmo por dois sucessivamente, oprimeiro dos quais era o lord de Godolphin, e osegundo o lord de Oxford; assim que você me fezdizer coisa que não era. Da mesma forma no relatoda academia dos projetistas, e em diversaspassagens de minha conversa com meumestre Huyhnhnm, você ou omitiu algumascircunstâncias materiais, ou misturouas ou
mudouas de tal modo, que dificilmente reconheçominha própria obra. Quando anteriormenteapontei algo disso em uma carta, você teve agentileza de responder que tinha medo de ofender;que as pessoas no poder eram muito vigilantessobre a imprensa, e aptas não apenas ainterpretar, mas a punir qualquer coisa queparecesse como uminnuendo (como penso que vocêo chamou). Mas, como, como poderia o que falei hátantos anos atrás, e a cerca de cinco mil léguas dedistância, em outro reino, ser aplicado a qualquerdos Yahus, que agora dizem governar o rebanho;especialmente em um tempo quando pouco pensei,ou temi, a infelicidade de viver sob eles? Não tenhotoda razão de reclamar, quando vejo estesmesmos Yahus levados por Huyhnhnms em umveículo, como se fossem brutos, e aqueles ascriaturas racionais? E na verdade evitar tãomonstruosa e detestável visão foi um dosprincipais motivos de meu retiro para cá.
Esse tanto pensei próprio contar a você em relaçãoa você mesmo, e à confiança que despositei em si.
Lastimo, em segundo lugar, de minha própriagrande vontade de julgamento, ao ser persuadidopelas solicitações e falsos raciocínios de você e dealguns outros, muito contra minha própriaopinião, por conceder que minhas viagens fossempublicadas. Por favor, traga à mente quantas vezesdesejei que você considerasse, quando você insistiuno motivo do bem público, que osYahus eram umaespécie de animais completamente incapazes deemenda por preceitos ou exemplos: e isso foiprovado; em vez de ver um completo fim dado atodos os abusos e corrupções, pelo menos nesta
pequena ilha, como tinha razão de esperar; veja,após seis meses de admoestações, não soube quemeu livro tenha produzido um único efeito acordecom minhas intenções. Desejaria que você mefizesse saber, por uma carta, quando partido oufacção fossem extintos; juízes estudados e corretos;peticionários honestos e modestos, com algumatintura de senso comum, e Smithfield**, refulgindocom pirâmides de livros de leis; a educação dajovem nobreza inteiramente mudada; os médicosbanidos; as fêmeas Yahus abundando em virtude,honra, fidelidade e bom senso; cortes e reuniões degrandes ministros inteiramente sem joio oumácula; juízo, mérito, e aprendizado agraciados;todos depreciadores da imprensa em prosa e versocondenados a comer nada mais que seu própriopapel, e saciar sua sede com sua própria tinta.Estas, e milhares de outras reformas, contavafirmemente por seu encorajamento; como de fatoeram completamente deduzíveis dos preceitosexternados em meu livro. E é preciso confessar,que sete meses eram um tempo suficiente paracorrigir cada vício e loucura às quaisos Yahus estão sujeitos, se suas naturezastivessem sido capazes de mínima disposição àvirtude ou à sabedoria. Já, tão longe você esteve deresponder minha expectativa em qualquer de suascartas; que pelo contrário você está abarrotandonosso correio cada semana com libelos, e chaves, ereflexões, e memórias, e segundas partes; em queme vejo acusado de refletir sobre o povo do grandeestado; de degradar a natureza humana (poisassim têm ainda a confiança de descrevêla), e deabusar do sexo feminino. Descobri igualmente queos escritores destes volumes não estão concordesentre si; pois alguns deles não me consentem ser o
autor de minhas próprias viagens; e outrosfazemme autor de livros dos quais sou totalmenteestranho.
Descobri igualmente que seu impressor foi tãodescuidado a ponto de confundir as épocas, e erraras datas, de minha várias viagens e retornos; querdesignando o verdadeiro ano, nem o verdadeiromês; nem dia do mês: e ouvi que o manuscritooriginal está todo destruído desde a publicação demeu livro; quer tenho qualquer cópiaremanescente: contudo, envieilhe algumascorreções, que pode insertar, caso haja algum diauma segunda edição: e embora não possasustentálas; mas deixarei esta questão para serajustada pelos meus judiciosos e cândidos leitorescomo queiram.
Ouvi alguns de nossos Yahus do mar acharemerros em minha liguagem marítima, como nãoadequada em muitas partes, nem atualmente emuso. Não posso ajudar nisso. Em minhas primeirasviagens, quando jovem, fui instruido pormarinheiros mais velhos, e aprendi a falar comofalavam. Mas desde então descobri queos Yahus do mar são aptos, como os de terra, aficarem na moda em suas palavras, que muda acada ano; tanto que, como recordo a cada retornoà minha própria terra seu velho dialeto estava tãoalterado, que dificilmente podia entender o novo. Eobservo, quando algum Yahu vem de Londresmovido pela curiosidade visitarme em casa,nenhum de nós é capaz de expressar nossasconcepções de maneira intelegível ao outro.
Se a censura dos Yahus pudesse de alguma formame afetar, teria grande razão para reclamar, que
alguns deles são tão brutos a ponto de pensaremmeu livro de viagem uma mera ficção tirada demeu próprio cérebro, e foram tão longe a ponto delançar insinuações, que os Huyhnhnms eos Yahus têm uma existência não maior que oshabitantes de Utopia.
De fato preciso confessar, que referente ao povode Lilipute, Brobdingrag (pois que asssim é que apalavra deveria ter sido soletrada, e nãoerroneamente Brobdingnag), e Lapúcia, não ouvinunca até agora de qualquer Yahu tão presunçosoa ponto de disputar sua existência, ou os fatos querelatei a respeito deles; porque a verdadeimediatamente atinge cada leitor com convicção. Ehá menos probabilidade em meu relatodos Huyhnhnms ou Yahus, quando é manifestoquanto aos últimos, há tantos quantos milharesmesmo neste país, que apenas diferem de seusirmãos brutos na terra dos Huyhnhnm, porqueusam uma espécie de jargão, e não andarem nus?Escrevi para emendálos, e não para suaaprovação. A louvação unânime de toda a raçaseria para mim de menor conseqüência que orelinchar destes dois Huyhnhnms degenerados quemantenho em meu estábulo; porque destes,degenerados como são, eu ainda melhoro emalgumas virtudes sem nenhuma mistura de vício.
Presumem pensar acaso estes miseráveis animaisque sou tão degenerado a ponto de defender minhaveracidade? Yahucomo sou, é bem conhecido portoda a terra dos Huyhnhnm, que, pelas instruçõese exemplos de meu ilustre mestre, fui capaz de noespaço de dois anos (embora confesse com a maiordificuldade) de remover aquele infernal hábito de
mentir, trapacear, enganar, e prevaricar, tãoprofundamente enraizado nas próprias almas detodos da minha espécie; especialmente osEuropeus.
Tenho outras queixas a fazer sobre esta vexatóriaocasião; mas me esquivo de aborrecerme ou avocê por mais tempo. Preciso livremente confessar,que desde meu último retorno, algumascorrupções de minha naturezaYahu reviveram emmim através de minha conversa com uns poucosde sua espécie, e particularmente com os de minhaprópria família, por uma inevitável necessidade; docontrário eu nunca teria tentado um projeto tãoabsurdo como o de reformar a raça Yahu nestereino: Mas acabei com todos tais visionáriosesquemas para sempre.
2 de Abril, 1727
Primeira Parte
VIAGEM A LILIPUTE
CAPÍTULO I
O autor conta de modo sucinto os principais motivos que o levaram a viajar —Naufraga e salvase a nado chegando ao país de Lilipute — Prendemno e
conduzemno para o interior.
MEU pai, cujas propriedades, situadas naprovíncia de Nottingham, eram medíocres, tinhacinco filhos; era eu o terceiro. Mandoume ele parao colégio Emanuel, em Cambridge, aos quatorze
anos. Permaneci aí três anos, que empreguei comutilidade. Como, porém, a minha educação fossemuito dispendiosa, puseramme como aprendiz emcasa do Sr. James Bates, famoso cirurgião deLondres, onde fiquei até aos vinte e um. Meu pai,de tempos a tempos, enviavame algumaspequenas quantias, que empreguei em aprenderpilotagem e outros ramos de matemáticas maisprecisos aos que manifestam o desejo de viajarpelo mar, pois eu supunha ser essa a minha vidafutura.
Deixando a companhia do Sr. Bates, voltei paracasa de meu pai, e, tanto dele como de meu tioJohn e de outros parentes, consegui arranjar aquantia de quarenta libras esterlinas por ano paraa minha subsistência em Leyde. Entregueime eapliqueime ao estudo da medicina durante doisanos e sete meses, convencido de que tal estudo,algum dia, me seria útil nas minhas viagens.
Pouco depois do meu regresso de Leyde, pela boarecomendação do meu excelente professor, o Sr.Bates, consegui emprego de cirurgiãono Andorinha, no qual embarquei por três anos emeio, sob as ordens do comandante AbrahãoPanell. Entrementes, viajei pelo Levante eproximidades.
Quando voltei, resolvi fixar residência em Londres,e o Sr. Bates animoume a tomar essa resolução,recomendandome aos seus clientes. Aluguei partede um palacete situado no bairro OldJewry epouco depois esposei Maria Burton, segunda filhade Eduardo Burton, negociante da rua de Newgate,a qual me trouxe quatrocentas libras esterlinas dedote.
Mas, passados dois anos, o meu querido professor,senhor Bates, faleceu e, faltando o meu protetor, aminha clientela principiou a minguar. A minhaconsciência não me consentia imitar o modo deproceder da maior parte dos cirurgiões, cujaciência é deveras semelhante à dos procuradores:esta a razão por que, consultando minha mulher ealguns dos meus íntimos, resolvi fazer nova viagempor mar.
Fui, depois, cirurgião em dois navios, e muitasoutras viagens que fiz, durante seis anos, às Índiasorientais e ocidentais, aumentaram um pouco aminha fortuna.
Empreguei os meus ócios em ler os melhoresautores antigos e modernos, levando semprecomigo certo número de livros, e, quando vinha àterra, não descurava de notar os usos e costumesdos povos, aprendendo, simultaneamente, a línguado país, o que se me tornava fácil, visto possuirboa memória.
Tendo sido pouco feliz numa das minhas últimasviagens, aborrecime do mar e deliberei metermeem casa com minha mulher e meus filhos. Mudeide residência e fui de OldJewry para a rua deFetterLane e, daí, para Wapping, na esperança depraticar com os marinheiros, mas tal nãoaconteceu.
Depois de, baldadamente, ter esperado três anosque os meus negócios melhorassem, aceiteivantajoso partido, que me foi oferecido pelo capitãoGuilherme Prichard, que ia partir no Antílope, emviagem para o mar do Sul. A 4 de Maio de 1699,embarcámos em Bristol e a nossa viagem foi, a
princípio, muito feliz.
Ocioso se torna maçar o leitor com apormenorização das nossas aventuras por essesmares; basta apenas dizerlhe que, ao passarmospelas Índias orientais, fomos acometidos por umtemporal de tamanha violência que nos lançoupara o noroeste da terra de Van Diemen. Por umaobservação que fiz, notei que estávamos a 30,2 delatitude meridional. Da tripulação haviam morridodoze homens em virtude do exaustivo trabalho e damá alimentação. A 5 de Novembro, que era oprincípio do estio naqueles países, o tempo estavaum pouco escuro, e os marinheiros avistaram umarocha que se achava afastada do navio apenas ocomprimento de um cabo; mas o vento era tãoforte, que fomos impelidos diretamente contra oescolho, onde chocámos num momento. Eu e maiscinco companheiros saltámos para uma lancha e,à força de remar, conseguimos livrarnos do navioe do escolho. Navegámos, assim, perto de trêsléguas, mas por fim o cansaço não nos deixou maisremar; completamente extenuados, deixámonoslevar ao sabor das vagas e em breve uma nortadarija virounos a lancha.
Desconheço qual tivesse sido a sorte dos meuscompanheiros de lancha, nem dos que se salvaramdo escolho, ou ainda dos que ficaram no navio,mas desconfio que pereceram todos; quanto amim, nadei ao acaso e fui levado para terra pelovento e pela maré. De vez em quando estendia aspernas a ver se encontrava fundo; por fim, estandoquase exausto, tomei pé. Por então, o temporalamainara. Como o declive era um tanto insensível,caminhei perto de meia légua pelo mar, antes que
pusesse pé em terra firme. Andei quase um quartode légua sem avistar casa alguma, nem encontrarvestígios de habitantes, embora esse país fossemuito povoado. O cansaço, o calor e o meioquartilho de aguardente que bebera ao deixar onavio, tinhamme dado sono. Deiteime na relva,que era de uma finura extrema, e pouco depoisdormia profundamente. Dormi durante nove horasseguidas. Ao cabo desse tempo, acordei, tenteilevantarme, mas em vão o fiz. Vime deitado decostas, notando também que as pernas e os braçosestavam presos ao chão, assim como os cabelos.Cheguei a observar que muitos cordõesdelgadíssimos me rodeavam o corpo, das axilas àscoxas. Só podia olhar para cima; o sol começava aaquecer e a sua forte claridade feriame a vista.Ouvi um confuso rumor em torno de mim, mas naposição em que me encontrava só podia olhar parao sol. Em breve, porém, senti moverse qualquercoisa em cima da minha perna esquerda, coisa queme avançava suavemente sobre o peito, e me subiaquase ao queixo. Qual não foi o meu espantoquando enxerguei uma figurinha humana quepouco mais teria de seis polegadas, empunhandoum arco e uma flecha, e com uma aljava às costas!Quase ao mesmo tempo os meus olhos viram maisuns quarenta da mesma espécie. Desatei derepente a soltar gritos tão horríveis, que todosaqueles animálculos fugiram aterrorizados, e maistarde soube que alguns caíram de cima do meucorpo, com tal precipitação, que ficaramgravemente feridos. Apesar disso, tornaram daí apouco, e um deles teve o arrojo de chegar tãoperto, que viu a minha cara; levantou as mãos e osolhos com ar de admiração, e, por fim, com vozesganiçada mas nítida, exclamou: Hekinah Degul,
palavras que os outros repetiram muitas vezes,mas cujo sentido me não foi lícito desvendar.
Entretanto, conservavame admirado, inquieto,perturbado, e o leitor ponhase no meu caso e vejase não era de fato uma situação crítica.
Por fim, forcejando em readquirir liberdade, tive asorte de arrancar do chão as estacas que prendiamà terra o meu braço direito, porque,soerguendome um pouco, dera por que me tinhampreso e cativo. Ao mesmo tempo, com um forterepelão, que me causou extrema dor, alarguei umpouco os cordões que prendiam os meus cabelosdo lado direito, (cordões mais finos do que os meuspróprios cabelos) de modo que me encontrei emcondições de dar à cabeça um movimento maislivre.
Então, aqueles insetos humanos puseramse emfuga, soltando agudíssimos gritos. Assim quecessou aquele ruído, ouvi um deles exclamar: Fogofonac, e, em seguida, senti a mão cravada de maisde cem flechas, que me picavam como se fossemagulhas. Deram depois nova descarga para o ar,assim como nós na Europa atiramos bombas, e,ainda que não as visse, é de supor que algumascaíssem parabolicamente sobre o meu corpo esobre minha cara, que eu diligenciava tapar com amão direita. Assim que terminou aquela granizadade flechas, tentei novamente libertarme; mas umaoutra descarga, maior do que a primeira, se fezouvir, enquanto outros tentavam ferirme àslançadas; por felicidade, trazia vestida umaimpenetrável roupa de pele de búfalo. Pensei que omelhor era conservarme quieto e naquela posiçãoaté à noite; nesse instante, libertando o meu braço
esquerdo, poderia pôrme completamente emliberdade, e, com respeito aos habitantes, era comrazão que me supunha de uma força igual aosmais poderosos exércitos que viessem atacarme,desde que seus componentes fossem do tamanhodaqueles que vira até então. Outra, porém, era asorte que me aguardava.
Quando me viram tranqüilo, deixaram de meassediar com flechas; mas, pelo rumor que ouvi,compreendi que o seu número aumentavaconsideravelmente e, perto de duas toesas,defronte do meu ouvido esquerdo, senti um ruídodurante mais de uma hora como de pessoas quetrabalhavam. Por fim, voltando um pouco a cabeçapara esse lado, tanto quanto mo permitiam asestacas e os cordões, vi um tablado erguido palmoe meio do chão, onde quatro desses homenzinhospoderiam caber, e uma escada que lhe davaacesso; daí, um deles, que parecia ser pessoa deimportância, dirigiume um longo discurso, de quenão percebi palavra. Antes de principiar, exclamoutrês vezes: Langro Dehul san. Estas palavras foram,em seguida, repetidas e explicadas por sinais paraque eu as compreendesse. Depois, cinqüentahomens avançaram e cortaram os cordões queseguravam a parte esquerda da minha cabeça, oque deu ensejo a que eu pudesse movêlalivremente para a direita e observar a cara e ogesto daquele que falava. Pareceume ser de meiaidade e, de estatura maior do que os três que oacompanhavam, um dos quais, que tinha oaspecto de pajem, lhe segurava a cauda da beca,enquanto os outros dois permaneciam de pé, aoslados, para o amparar. Pareceume bom orador econjecturei que, segundo as regras da arte,
misturava na sua arenga períodos cheios deameaças e de promessas. Respondi em poucaspalavras, ou, melhor exprimindo, por um pequenonúmero de sinais, mas de um modo cheio desubmissão, erguendo a mão esquerda e os doisolhos ao sol, como que a tomálo por testemunhade que morria de fome, pois já não comia haviaalgum tempo. O meu apetite era, de fato, tãoviolento, que não pude deixar de fazer ver a minhaimpaciência, (talvez contra os preceitos dacivilidade), levando várias vezes a mão à boca paradar a perceber que carecia de alimento.
O Hurgo, (é assim que entre eles se designa umfidalgo, como mais tarde soube), percebeume àsmil maravilhas. Desceu do tablado e deu ordempara que encostassem a mim muitas escadas demão pelas quais subiram mais de cem homens,que se dirigiram para a minha boca, carregados decestos cheios de viandas. Notei que havia carnesde diversos animais, mas não pude distinguilaspelo sabor. Eram quartos parecidos com os decarneiro, e magnificamente preparados, masmenores do que as asas de uma cotovia; enguliosaos dois e aos três com seis pães. Fornecerammetudo isso, dando grandes mostras de assombro ede admiração da minha estatura e do meuprodigioso apetite. Fazendolhes um outro sinalpara lhes dar a entender que me faltava de beber,conjecturaram, pela maneira por que comia, queuma pequena quantidade de bebida me nãosatisfaria; e, como eram um povo interessante,levantaram com muita agilidade um dos maiorestonéis de vinho que possuíam, vieramno rolandoaté a minha mão e destaparamno. Bebio de umtrago e com grande prazer. Trouxeramme outro,
que levou o mesmo caminho, e fizlhes váriossinais para que me trouxessem mais alguns.
Depois de me haverem visto praticar todas aquelasmaravilhas, soltaram gritos de alegria e desatarama dançar, repetindo muitas vezes, como a princípiohaviam feito: Hekinah Degul. Pouco depois ouviuma aclamação geral com freqüentes repetiçõesdas palavras: Peplom Selan, e senti ao ladoesquerdo muita gente alargandome os cordões, detal maneira que me encontrei em estado de mevoltar e de satisfazer o desejo de urinar, funçãoque efetuei com grande admiração do povo que,adivinhando o que ia fazer, fugiu impetuosamentepara a direita e para a esquerda, a fim de evitar odilúvio. Algum tempo antes tinhammecaridosamente untado o rosto e as mãos com umapomada de aroma agradável que, em pouquíssimotempo, me curou das picadas das flechas. Estascircunstâncias, reunidas às bebidas que mederam, predispuseramme para dormir; o sonodurou oito horas seguidas, em virtude doimperador ter ordenado aos médicos que medeitassem drogas soporíficas no vinho.
Enquanto dormia, o imperador de Lilipute, (tal erao nome desse país), ordenou que me conduzissemao lugar em que se encontrava. Esta resoluçãoparecerá talvez arrojada e perigosa, e estou certode que soberano algum da Europa a levaria a bem;no entanto, a meu ver, era um desejo igualmenteprudente e perigoso, porque, no caso em que essepovo tivesse tentado matarme com as suas lançase as suas flechas enquanto dormia, seriaimediatamente despertado à primeira sensação dedor, o que excitaria a minha cólera e aumentaria
as minhas forças a tal ponto, que me encontrariaem estado de quebrar o resto dos cordões e, apósisso, como me não pudessem resistir, seriam todosesmagados por mim.
Fizeram trabalhar à pressa cinco mil carpinteiros eengenheiros para construir um carro: era umaviatura com o tamanho de três polegadas, com setepés de comprimento por quatro de largura, e comvinte e duas rodas. Assim que o deram porconcluído, conduziramno ao lugar em que meencontrava. A principal dificuldade, porém, estavaem levantarme e colocarme naquele carro. Comesse fito, fincaram no chão oitenta varas, tendocada uma dois pés de altura; cada uma delas eramunida, na ponta, de uma roldana pela qualpassavam cordas muito fortes, da grossura de umaguita, com ganchos que iam prenderse em cintosque os operários haviam colocado em volta dopescoço, das mãos, das pernas e de todo o corpo.Novecentos homens dos mais robustos foramempregados a puxar as cordas por meio de umelevado número de polés ligadas às varas, e, poressa forma, em menos de três horas, fui levantado,colocado e ligado à máquina. Sei tudo isso pelanarração que depois me fizeram, porque, enquantodurou aquela manobra, dormia eu profundamente.Quinhentos cavalos, dos maiores que existiam nascavalariças imperiais, tendo cada um a altura dequatro polegadas e meia, foram atrelados ao carro,e arrastaramno na direção da capital, que ficava àdistância de um quarto de légua.
Tinha já quatro horas de caminho, quando fuisubitamente acordado por um acidente deverasridículo. Os condutores haviam parado para
arranjar qualquer coisa, e uns três habitantes dopaís tiveram a curiosidade de examinar o meurosto enquanto dormia; e, avançandocautelosamente até a minha cara, um deles,capitão dos guardas, enfiou a aguda ponta daalabarda na minha venta esquerda, o que me fezcomichão no nariz, acordoume e obrigoume aespirrar três vezes. Caminhámos durante o restodo dia e acampámos à noite, com quinhentosguardas, metade com archotes e metade com arcose flechas, prontos a descarregálas ao primeiromovimento que eu fizesse.
No dia seguinte, ao romper do sol, continuámos anossa rota e chegámos ao meiodia a cem toesasdas portas da cidade. O imperador e toda a cortesaíram para nos ver; mas os oficiais nãoconsentiram que Sua Majestade arriscasse a suapessoa em subir para o meu corpo, como muitosoutros o haviam feito.
No sítio em que o carro parou, havia um antigotemplo, tido como o maior de todo o império, que,segundo o preconceito daquela gente, foraprofanado com um crime de homicídio, e, por essemotivo, era empregado para diversos usos. Ficouresolvido que eu ficaria alojado naquele vastoedifício. A porta grande, que dava para o norte,tinha aproximadamente seis palmos de altura equase três de largura; aos lados, havia umapequena janela de seis polegadas. À da esquerda,os serralheiros do imperador aplicaram noventa euma correntes, parecidas com as que as damas daEuropa costumam usar nos relógios, e quase tãogrossas; e com trinta e seis cadeados meprenderam a perna esquerda. Em frente do templo,
do outro lado da estrada, à distância de vinte pés,havia uma torre que devia ter uns cinco pés dealtura; era aí que o soberano devia subir commuitos dos principais senhores da sua corte para,comodamente, verme à sua vontade. Contase quemais de cem mil habitantes saíram da cidade,atraídos pela curiosidade, e, apesar dos meusguardas, não foram menos de dez mil, suponho eu,os que, por diversas vezes, subiriam com escadasacima do meu corpo, se se não publicasse umdecreto do conselho do Estado proibindo que talcoisa se fizesse.
Não é possível imaginarse o barulho e o espantodo povo, quando me viu de pé e a caminhar: ascorrentes que me prendiam o pé esquerdo tinhampouco mais ou menos seis pés de comprido, edavamme liberdade de ir e vir, descrevendo umsemicírculo.
CAPÍTULO II
O imperador de Lilipute, acompanhado de muitos dos seus cortesãos, veiovisitar o autor na sua prisão — Descrição da personalidade e do trajo de Sua
Majestade — Sábios nomeados para ensinar o idioma do país ao autor —Sãolhe concedidas algumas graças em virtude da sua conduta pacífica — As
algibeiras sãolhe revistadas.
A primeira vez que o imperador, a cavalo, me veiovisitar, ialhe sendo funesta, porque, ao verme, ocavalo, espantado, encabritouse; o príncipe,porém, que é um excelente cavaleiro, firmousebem nos estribos até que a sua comitiva correu elhe segurou o freio ao cavalo. Sua Majestade,depois de pôr o pé em terra, examinoume por
todos os lados com grande admiração,mantendose sempre, contudo, por precaução, forado alcance da minha corrente.
A imperatriz, as princesas e os príncipes desangue, acompanhados de muitas damas,sentaramse a alguma distância em cadeiras debraços.
O imperador é o homem mais alto de toda a suacorte, o que o faz temido de todos os que o olham.As feições do seu rosto são fortes e másculas; lábioaustríaco, nariz aquilino e tez esverdeada; é decorpo bem feito, membros proporcionados; temgraça e majestade em todos os seus movimentos.Tinha já passado a flor da sua mocidade, tendovinte e oito anos e três quartos, e já reinara sete,aproximadamente. Para o contemplar mais àminha vontade, mantinhame deitado de lado, demaneira que o meu rosto estivesse paralelo ao seu,enquanto ele se conservava a toesa e meia longe demim. Depois disso, tiveo muitas vezes à minhamão e por essa circunstância não é fácilenganarme em descrevêlo. O seu trajo erasimples, meio europeu, meio asiático; mascingialhe a cabeça um ligeiro elmo de ouro,ornado de jóias e de um magnífico penacho.Empunhava a espada para se defender, caso euquebrasse as minhas cadeias. Esta espada deviater o tamanho de três polegadas; o punho e abainha eram de ouro e cheios de diamantes. A suavoz era áspera, mas clara e distinta, e podia ouviloà vontade, embora me conservasse de pé. Asdamas e os cortesãos vinham todos soberbamentetrajados, de modo que o lugar ocupado por toda acorte parecia a meus olhos como que uma bela
saia estendida no chão e bordada com figuras deouro e prata. Sua Majestade imperial concedeumea honra de falar comigo muitas vezes: e eu semprelhe respondi, sem que nos entendêssemos um aooutro. Ao cabo de duas horas, a corte retirouse edeixaramme numerosa guarda para impedir aimpertinência e, quiçá, a maldade da populaça,que sentia grande impaciência em amontoarse emtorno de mim, para me ver de perto. Algunstiveram o arrojo e a temeridade de me alvejar comflechas, uma das quais me ia tirando o olhoesquerdo. O coronel, porém, mandou prender osseis mais teimosos desta canalha e não julgoupena mais conveniente para aquele delito do queentregálos às minhas mãos bem amarrados etolhidos. Tomeios, pois, com a mão direita emetios todos cinco na algibeira do gibão; quantoao sexto, fingi querer engulilo vivo. O pobre diabosoltava gritos horríveis, e o coronel, juntamentecom alguns oficiais, estava sobressaltado,principalmente quando viu que eu sacava de umcanivete. Mas depressa lhe fiz cessar todo oespanto porque, com uma calma suave e humana,cortei rapidamente as cordas que o prendiam e ocoloquei no chão com a máxima delicadeza, e elelogo fugiu em desabalada carreira. Tratei os outrospela mesma forma, tirandoos da algibeira, um porum. Notei, com satisfação, que os soldados e opovo tinham ficado muito comovidos com aquelegesto de humanidade, que foi relatado à corte deum modo vantajoso para mim e que me deu honra.
A notícia da chegada de um homemprodigiosamente grande espalharase em todo oimpério e atraíra grande número de pessoasociosas e curiosas, de maneira que as aldeias
ficaram quase despovoadas e o cultivo das terrasficaria abandonado, o que seria uma enormecalamidade para o país, se Sua Majestade imperialnão providenciasse com a publicação de decretos.Decretou, pois, que todos aqueles que já metinham visto, voltassem imediatamente para suascasas e não tornassem a aparecer, senão medianteuma licença especial. Essa medida deu imensoslucros aos empregados das secretarias do Estado.
Entretanto, o imperador convocara diversas vezesos conselhos, para deliberar sobre o partido queera preciso tomar a respeito de mim. Soube maistarde que a corte se tinha visto em sériosembaraços. Receavam que eu quebrasse ascorrentes e me pusesse em liberdade; diziam que omeu sustento, porque causava uma enormedespesa, viria a produzir carestia e escassez devíveres; por vezes eram de opinião que medeixassem morrer de fome ou então que meatravessassem com flechas envenenadas;refletiram, porém, que a infecção de um corpocomo o meu poderia produzir uma epidemia nacapital e em todo o império. Enquantodeliberavam, muitos oficiais do exércitodirigiramse para a porta da antecâmara, onde sereunia o conselho, e logo que dois foramintroduzidos, deram conta do meu comportamentocom respeito aos seis criminosos, a que já mereferi, o que causou uma impressão tão favorávelno espírito de Sua Majestade e de todo o conselho,que uma comissão imperial foi logo enviada paraobrigar todas as aldeias, a quatrocentas ecinqüenta toesas em redor da cidade, a entregartodas as manhãs seis bois, quarenta carneiros eoutros víveres para meu sustento, com uma
quantidade proporcional de pão e de vinho, alémde outras bebidas. Esses gêneros seriam pagoscom letras do tesouro, que Sua Majestademandava entregar. Este príncipe tinha apenas derendimento o das suas terras, e só em ocasiõesmuito especiais é que criava impostos aos seussúditos, que eram obrigados a acompanhálo àguerra à sua própria custa.
Foram designadas seiscentas pessoas para meservirem, as quais tiveram uma gratificaçãoespecial para seu passadio e tendas muitocômodas, levantadas aos lados da minha portapara residirem.
Também foi ordenado que trezentos alfaiates mefizessem uma roupa à moda do país; que seishomens de letras, dos mais notáveis do império,fossem encarregados de me ensinar a língua e,enfim, que os cavalos do imperador e os danobreza, fariam muitas vezes exercícios na minhapresença para se costumarem à minha estatura.Todas estas ordens foram pontualmentecumpridas. Fiz grandes progressos noconhecimento da língua de Lilipute. Entrementes,o imperador deume a honra de freqüentes visitase também quis auxiliar os meus professores a meinstruírem.
As primeiras palavras que aprendi foram para lhedar a perceber que tinha grande vontade de queme concedesse liberdade, o que todos os dias lherepetia de joelhos. A sua resposta foi que erapreciso esperar por algum tempo; que era umassunto que não podia resolver sem ouvir a opiniãodo seu conselho e que, primeiramente, eranecessário que eu prometesse, sob juramento,
observar uma inviolável paz para com ele e com osseus súditos, e que enquanto esperasse, seriatratado com toda a delicadeza possível.Aconselhoume a alcançar, pela minha paciência epelo meu bom comportamento, a sua estima e a doseu povo. Pediume que lhe não ficasse querendomal, se ordenasse a certos oficiais que merevistassem, porque era muito natural que eutrouxesse comigo armas perigosas e prejudiciais àsegurança do Estado. Respondilhe que estavapronto a despir a roupa e a despejar todas asalgibeiras na sua presença. Observoume que,conforme às leis do império, era preciso que fosserevistado por dois comissários; que sabia muitobem que tal ato não se devia executar sem meuconsentimento, porém que formava tão bomconceito da minha generosidade e da minharetidão, que confiaria sem receio aquelesindivíduos nas minhas mãos; que tudo o que se metirasse, me seria restituído fielmente, quandosaísse do país, ou que seria indenizado segundo ovalor que eu próprio desse.
Quando vieram os dois comissários para merevistar, tomei esses dois cavalheiros nas minhasmãos. Metios primeiramente nas algibeiras dogibão, e, depois, em todas as outras. Vinhammunidos de penas, tinta e papel, e de tudo o queviram, fizeram um minucioso inventário; e, assimque concluíram, pediramme que os pusesse nochão para que fossem dar conta ao imperador doque haviam visto.
Este inventário era assim concebido:
“Em primeiro lugar, na algibeira direita do gibão dogrande Homem Montanha (que assim traduzi as
palavras Quimbus Flestrin), após uma minuciosabusca, apenas encontrámos um pouco de fazendagrosseira, demasiado grande para servir de tapetena principal sala de recepção de Vossa Majestade.Na algibeira esquerda, achámos um grande cofrede prata com uma tampa do mesmo metal, quenós, comissários, não pudemos levantar. Pedimosao citado Homem Montanha que o abrisse e,entrando um de nós, enterrouse em pó até aojoelho e esteve a espirrar durante duas horas, eoutro, sete minutos. Na algibeira direita do colete,encontrámos um prodigioso maço com a grossuraaproximada de três homens, amarrado com umcabo muito forte, de substâncias brancas edelgadas, pegadas uma às outras, com grandesfiguras negras, que nos pareceram ser de escrita.Na algibeira direita, havia uma grande máquinachata, armada com dentes muito compridos quepareciam a paliçada que há em volta do palácio deSua Majestade. Na algibeira grande do lado direitodo alçapão, (conforme interpretei a palavra ranfulo,pela qual queriam indicar os meus calções), vimosum grande pilar de ferro, oco, ligado a uma grossapeça de madeira, maior do que o pilar, e de umlado desse pilar havia outras peças de ferro emrelevo, que seguravam uma pedra talhada emcunho; não soubemos o que isso era, e na algibeiradireita havia ainda uma outra máquina do mesmogosto.
“Na algibeirinha do lado direito, havia muitasrodelas de metal vermelho e branco e de umagrossura diferente; algumas das rodelas brancas,que nos pareceram ser de prata, eram de taldiâmetro e peso, que eu e meu colega tivemos certadificuldade em levantálas. Item, dois sabres de
algibeira, cuja lâmina se encaixava em umaranhura do punho e tinha um fio muito cortante;estavam metidos numa grande caixa ou estojo.Havia ainda duas algibeiras a revistar, que eramduas aberturas talhadas no alto doalçapão, masmuito juntas em virtude do seu ventre, que ascomprimia. De fora do bolsinho direito pendia umagrande corrente de prata, com uma maravilhosamáquina na extremidade. Pedimoslhe que tirassepara fora do bolso tudo o que estava preso àcorrente, e pareceunos ser um globo parte deprata e parte de metal transparente. Pelo ladotransparente vimos certas figuras esquisitastraçadas num círculo; julgámos que lhespoderíamos tocar, mas os dedos foram retidos poruma substância luminosa. Aplicámos essamáquina junto aos nossos ouvidos; fazia um ruídocontínuo, semelhante ao de um moinho d’água, econjecturamos que, ou é qualquer animaldesconhecido, ou, então, a divindade que adora; noentanto, inclinamonos mais para esta últimaopinião, porque nos afirmou, (se nós assim ocompreendemos, pois se exprimia muitoimperfeitamente), que raramente fazia qualquercoisa sem que o consultasse; chamavalhe o seuoráculo, e dizia que designava o tempo para todasas ações da sua vida.
“Do bolso esquerdo, tirou uma rede que quasepodia servir para pescador, porém que se abria efechava; encontramoslhe dentro muitas rodelasmaciças de um metal amarelo; se são de ouroverdadeiro, devem ter incalculável valor.
“Assim, tendo, para cumprimento das ordens deVossa Majestade, revistado cuidadosamente todas
as suas algibeiras, notámos um cinto em volta docorpo, fabricado com a pele de algum animalprodigioso, do qual pendia, do lado esquerdo, umaespada do tamanho de seis homens; enquanto dolado direito, havia uma bolsa repartida em doiscompartimentos, podendo cada um conter trêssúditos de Vossa Majestade. Num dessescompartimentos, havia globos ou balas de umoutro metal muito pesado, quase do tamanho danossa cabeça e que exigia uma forte mão para aslevantar; o outro continha uma porção de certosgrãos negros, mas relativamente pequenos e muitoleves, porque pudemos conservar na palma da mãomais de cinqüenta.
“Tal é o inventário exato de tudo o queencontrámos no corpo do Homem Montanha, quenos recebeu magnificamente e com o respeitodevido à incumbência de Vossa Majestade.
“Assinado e selado aos quatro dias da nonagésimalua do feliz império de Vossa Majestade.
Flessen, Frelock, Marsi, Frelock”
Assim que o inventário acima foi lido na presençado imperador, este ordenoume, em termoscorteses, que lhe entregasse todas aquelas coisasuma a uma. Primeiro, pediu o meu sabre: deraordem a três mil homens das suas melhorestropas, que o acompanhavam, que o rodeassem acerta distância com arcos e flechas; eu, porém, nãodei por esse movimento porque os meus olhosestavam fixos em Sua Majestade. Pediume, pois,que desembainhasse o meu sabre, que, embora umpouco enferrujado pela água do mar, estava muito
brilhante. Desembainheio, e, em seguida, todas astropas soltaram grandes gritos. Ordenoume que oembainhasse e que o lançasse para o chão tãosuavemente quanto pudesse, a seis pés dedistância, pouco mais ou menos, das minhascorrentes. A segunda coisa que me pediu foram ascolunas de ferro ocas, referindose às minhaspistolas; apresenteias e, por sua ordem,expliqueilhe, conforme pude, o uso, e,carregandoas só de pólvora, avisei o imperadorpara não se assustar, e dispareias para o ar. Oassombro, por esta ocasião, foi maior do quequando foi visto o sabre; caíram todos de costascomo que fulminados por um raio, e até oimperador, que era valente, só pôde refazerse dosusto passado certo tempo. Entregueilhe as duaspistolas pelo mesmo processo que já tinha usadocom o sabre, com os sacos de chumbo e depólvora, prevenindoo de que não aproximasse dolume o saco de pólvora, se não queria que o seupalácio imperial fosse pelos ares, aviso que deveraso surpreendeu.
Entregueilhe também o meu relógio, que lhedespertou grande curiosidade, e ordenou que doisdos seus maiores guardas o levassem aos ombros,enfiado numa vara, como costumam fazer oscarregadores em Inglaterra aos barris de cerveja.Estava admirado com o contínuo ruído que fazia ecom o movimento do ponteiro que marcava osminutos; podia, muito à vontade, seguilo com osolhos, pois que aquele povo tinha uma vista maispenetrante do que a nossa. Pediu aos seusdoutores que lhe dissessem o que pensavam a esserespeito, o que deu lugar a respostas muitodesencontradas, como o leitor facilmente calculará.
Depois entreguei as moedas de cobre e de prata, abolsa, com umas nove grandes moedas de ouro ealgumas mais pequenas; o pente, a caixa de prata,de rapé, o lenço e o jornal. O sabre, as pistolas, ossacos de pólvora e de chumbo foram transportadospara o arsenal de Sua Majestade; o resto, porém,foi deixado ficar no sítio em que me encontrava.
Numa bolsa à parte, e que não foi revistada,estavam os óculos, de que às vezes me servia, porter a vista fraca, um telescópio, com muitas outrasbagatelas, que supus não serem de grandeimportância, pelo que deixei de mostrar aoscomissários, temendo que, apreendendomas, asperdessem ou estragassem.
CAPÍTULO III
O autor diverte o imperador e os grandes de um e de outro sexo de formadeveras extraordinária — Descrição das diversões da corte de Lilipute — O
autor é posto em liberdade, mediante certas condições.
O imperador quis um dia darme espetaculosadiversão, em que aquele povo vai além de todas asoutras nações que visitei, quer na destreza, querna magnificência, mas nada me divertiu tantocomo ver os dançarinos de corda fazerem volteiossobre finíssimo fio, com o comprimento de dois pése onze polegadas.
As pessoas que executam este trabalho são as queaspiram a grandes empregos e se supõem dignosde se tornarem favoritos da corte; com esse intuitose entregam desde tenra idade a esses nobresexercícios, que convêm principalmente aos
indivíduos de elevada categoria. Quando umimportante cargo está vago, ou pela morte do que odesempenhava ou por ter caído no desagrado doimperador, (o que acontece freqüentemente),apresentam, uns seis pretendentes, umrequerimento para lhes ser concedida licença dedivertirem Sua Majestade e a corte com uma dançana corda, e aquele que saltar a maior altura semcair, é quem conquista o lugar. Acontece muitasvezes que se ordena também aos grandesmagistrados que dancem, para provarem a suahabilidade e para darem a entender ao imperadorque não perderam as suas faculdades. Flimnap,tesoureiromor do império, passa por ter ahabilidade de dar uma cabriola na corda, umapolegada mais alto do que qualquer outro grandeda corte; vio por várias vezes dar o salto mortal, (aque damos o nome de somerset), em umaminúscula tábua presa à corda e que não tem maisgrossura do que uma guia ordinária.
Essas diversões dão muitas vezes lugar a funestosdesastres, a maioria dos quais é registrada nosarquivos imperiais. Eu próprio vi uns trêspretendentes ficarem aleijados; o perigo, porém, émuito maior, quando os próprios ministrosrecebem ordem para mostrar a sua habilidade,porque, fazendo esforços extraordinários, paraserem superiores a si mesmos e para colocaremmal os outros, dão quase sempre perigosasquedas.
Asseguraramme que, um ano antes da minhachegada, Flimnap teria infalivelmente quebrado acabeça, se um dos coxins do imperador o nãotivesse salvado.
Há um outro divertimento; mas esse é apenas parao imperador, a imperatriz e o primeiro ministro. Oimperador coloca em cima de uma mesa três fiosde seda, separados uns dos outros, com ocomprimento de seis polegadas; um é carmesim;outro, amarelo; e o terceiro, branco. Os citados fiosconstituem prêmios para aqueles a quem oimperador quer distinguir com uma singulardemonstração de sua magnificência. A cerimôniarealizase na grande sala de recepção de SuaMajestade, onde os concorrentes são obrigados adar uma prova do seu engenho; e de ordem tal,que nada de semelhante eu vi em qualquer outropaís do velho ou do novo mundo.
O imperador segura um bastão, com as duasextremidades voltadas para o horizonte, enquantoos concorrentes, adiantandose sucessivamente,saltam por cima do bastão. Algumas vezes, oimperador segura uma ponta e o primeiro ministrooutra; e outras vezes só o primeiro ministro é quemsegura.
Aquele que melhor realiza o salto, demonstrandoagilidade e leveza, é recompensado com a sedacarmesim; a amarela é dada ao segundo, e abranca, ao terceiro. Estes fios, de que fazemtalabarte, servemlhes depois de ornamento e,distinguindoos do vulgo, dãolhes grandeprosápia.
Tendo um dia o imperador dado ordem a umaparte do seu exército, instalado na capital e nosarredores, para estar pronta à primeira voz, quisdivertirse de uma forma muito singular.Ordenoume que me conservasse de pé como umcolosso, com os dois pés distanciados um do outro,
quanto possível, porém sem que essa posição meincomodasse; depois mandou ao seu general, velhocapitão muito experimentado, que dispusesse emlinha de batalha as tropas e que as fizesse passarem revista pelo meio das minhas pernas: ainfantaria a vinte e quatro de frente, a cavalaria adezesseis, tambores a rufar, bandeirasdesfraldadas e lanças em continência. O corpo doexército era constituído por três homens de pé emil de cavalo. Sua Majestade fez saber a todos osseus soldados, sob pena de morte, queobservassem, com respeito a mim, durante amarcha, o máximo rigor da ordenança, o que, noentanto, não impediu que alguns oficiaiserguessem a cabeça, olhandome quandopassavam por debaixo. E, para confessar averdade, os meus calções estavam em tal estado,que lhes dei razão para desatarem a rir.
Tinha apresentado ou enviado tantos memoriais erequerimentos para a minha liberdade, que, porfim, Sua Majestade expôs o assunto,primeiramente à mesa do desembargo e depois aoconselho do Estado, onde houve objeção apenaspor parte do ministro Skyresh Bolgolam, que, semrazão alguma, se declarou contra mim; todo o restodo conselho, porém, foime favorável, e oimperador apoiou esta opinião. O citado ministro,que era galbet, como quem diz almirante, mereceraa confiança do seu amo por ser hábil nos negóciospúblicos, mas era de índole áspera e excêntrica.Conseguiu que os artigos respeitantes àscondições, em que devia ser posto em liberdade,seriam redigidos por ele. Esses artigos foramtrazidos pessoalmente por Skyresh Bolgolam,acompanhado de dois subsecretários e de muitas
pessoas de distinção. Disseramme que mecomprometesse, sob juramento, a observálos,juramento feito primeiro à moda do meu país e, emseguida, à maneira decretada pelas suas leis, queconsistia em conservar o artelho do meu pé direitona mão esquerda, em pôr o dedo grande da mãodireita no alto da cabeça e o polegar na ponta daorelha direita. Como, porém, há talvez curiosidadeem conhecer o estilo daquela carta e em saber osartigos preliminares da minha libertação, traduzo,aqui, palavra por palavra, todo o documento.
“GOLBASTO MOMAREN EULAMÉ GURDILOSHEFIN MULLY ULLY GUÉ, mui poderosoimperador de Lilipute, as delícias e o terror douniverso, cujos estados abrangem cincomil blustrugs (ou sejam, aproximadamente, seisléguas em redor) até os confins do globo, soberanode todos os soberanos, mais alto do que os filhosdos homens, cujos pés oprimem a terra até ocentro, cuja cabeça chega ao sol, cujo relance deolhos faz tremer os joelhos dos potentados,carinhoso como a primavera, agradável como overão, abundante como o outono, terrível como oinverno, a todos os nossos fiéis e amados súditos,saúde. Sua Majestade altíssima propõe ao HomemMontanha os seguintes artigos, dos quais, comopreliminar, será obrigado a fazer a ratificação porjuramento solene:
I. O Homem Montanha não sairá dos nossos vastosEstados sem nossa permissão escrita eautenticada com o nosso selo grande.
II. Não terá a liberdade de entrar na nossa capitalsem nossa ordem expressa, a fim de que oshabitantes sejam avisados duas horas antes para
permanecerem encerrados em suas casas.
III. O referido Homem Montanha limitará os seuspasseios às nossas estradas principais, evitandopassear ou deitarse em algum prado ou seara.
IV. Passeando pelas aludidas estradas, terá omáximo cuidado possível em não pisar o corpo dealgum dos nossos fiéis súditos, nem os seuscavalos ou carruagens e não agarrará nenhum dosnossos súditos, sem que ele o consinta.
V. Se for necessário que algum dos correios dogabinete faça qualquer jornada extraordinária,o Homem Montanha é obrigado a levar na algibeirao mencionado correio durante seis dias, uma vezem todas as luas, e trazendoo de novo, são esalvo, à nossa presença imperial, se tal lhe forrequerido.
VI. Será o nosso aliado contra os nossos inimigosda ilha de Blefuscu e fará todo o possível parafazer submergir a esquadra que eles atualmentepreparam contra o nosso território.
VII. O dito Homem Montanha, às horas dedescanso, prestará o seu auxílio aos nossosoperários, ajudandoos a carregar grandes blocosde pedra para se concluírem os muros do nossogrande parque e outras construções imperiais.
VIII. Depois de ter feito o solene juramento deobservar estes artigos, acima decretados, odito Homem Montanha terá uma ração de carnetodos os dias e bebida suficiente para sustento demil e oitocentos e setenta e quatro súditos nossos;terá entrada livre perante a nossa individualidadeimperial e outras demonstrações do nosso
valimento.
“Dado no nosso paço, em Belfaborac, aos doze diasda nonagésima primeira lua do nosso império”.
Prestei o juramento e assinei todos aqueles artigoscom grande alegria, embora alguns não fossem tãohonrosos como eu desejava, mas nisso viase oefeito da malícia do almirante Skyresh Bolgolam.
Tiraramme as correntes e fui posto em liberdade.O imperador deume a honra de assistir à minhalibertação. Agradeci humildemente a mercê queSua Majestade me havia feito, prostrandome aseus pés, mas ele mandou que me levantasse, nostermos mais amáveis possíveis.
O leitor decerto pôde notar que, no último artigo doauto da minha libertação, o imperador secomprometera a darme uma ração de carne ebebida, que poderia bastar para sustento de mil eoitocentos e setenta e quatro Liliputianos. Algumtempo depois, perguntando a um cortesão, meuamigo particular, a razão que determinara aquelealimento, respondeume que os matemáticos deSua Majestade, tomando a altura do meu corpopor meio de um quadrante e calculando a minhagrossura, e, achandoa, em relação à sua, comomil e oitocentos e setenta e quatro estão para um,inferiram da homogeneidade do seu corpo, que eudevia ter um apetite mil e oitocentas e setenta equatro vezes maior do que o deles.
Por esta exposição pode o leitor avaliar o notávelsenso daquele povo e a economia sábia, exata eperspicaz do imperador.
CAPÍTULO IV
Descrição de Mildeno, capital de Lilipute, e do palácio do imperador —Conversa entre o autor e um secretário de Estado relativa aos negócios do
império — Oferecimento que o autor fez ao imperador de servir nas grandesguerras.
O primeiro requerimento que apresentei, depois deter alcançado a minha liberdade, foi para obterlicença de visitar Mildeno, capital do império; oimperador deferiuo, recomendandome que nãocausasse dano algum aos habitantes nem tãopouco às moradias. O povo foi avisado, por umaproclamação, do desejo, de que eu estavapossuído, de visitar a cidade.
A muralha que a circundava era da altura de doispés e meio e da espessura de oito polegadas, pelomenos; de maneira que um carro podia andar porcima e dar a volta à cidade com segurança; eraflanqueada de fortes torres distanciadas umas dasoutras dez pés. Passei por cima da porta ocidentale caminhei vagarosamente e de lado pelas duasruas principais, levando apenas o colete vestido,receando que as abas do gibão fizessem algumestrago nos telhados e beirais das casas. Ia com omáximo cuidado, para que não acontecesse pisaralgumas pessoas que se encontravam pelas ruas,apesar das claras ordens expressas a toda a gente,para que se fechasse em casa enquanto euandasse de passeio. Os balcões, as janelas dosprimeiros, segundos e terceiros andares, as daságuasfurtadas ou trapeiras, e os próprios beiraisestavam tão apinhados de espectadores, que vilogo ser enorme a população. Esta cidade formauma espécie de quadrilátero, tendo cada lanço de
muralha quinhentos pés de comprido. As duasruas maiores têm cinco pés de largura; as ruaspequenas, onde me não foi possível entrar, têm alargura de doze a dezoito polegadas. A cidade podecomportar quinhentas mil almas. As casas têmtrês ou quatro andares. As lojas e os mercados sãobem sortidos. Em outros tempos, havia boa ópera eexcelente comédia; como, porém, a liberalidade dopríncipe não abrangesse os atores, decaíram.
O palácio do imperador, edificado no centro dacidade, onde as duas principais ruas seencontram, é rodeado de uma elevada muralha devinte e três polegadas que está vinte pésdistanciada do edifício.
Sua Majestade derame licença para eu transporde uma pernada aquela muralha, a fim de ver oseu palácio por todos os lados. O átrio exterior éum quadrado de quarenta pés e compreende doisoutros átrios.
É no mais interior que ficam os aposentos de SuaMajestade, que eu tinha grande desejo de ver. Issoera difícil tarefa, visto como as portas maiorestinham apenas dezoito polegadas de alto por setede largo. Demais, as construções do átrio exteriorelevavamse a cinco pés do terreno etornavaseme impossível dar uma pernada porcima delas, sem risco de quebrar a lousa dostelhados, enquanto os muros me não dessemcuidado por serem solidamente construídos compedras de quatro polegadas de espessura. Oimperador, entretanto, tinha grande vontade deque eu visse a magnificência do seu palácio. Só,porém, ao cabo de três dias, é que me encontrei emestado de satisfazêlo, depois de haver cortado com
o meu canivete algumas das maiores árvores doparque imperial, afastado da cidade cinqüentatoesas aproximadamente. Dessas árvores fiz doistamboretes, com três pés de altura cada um e tãofortes que pudessem aguentarme o peso do corpo.Sendo a população novamente prevenida, tornei aatravessar a cidade e dirigime para o palácio,levando na mão os tamboretes. Quando cheguei aum dos lados do átrio exterior, subi para umtamborete e segurei o outro. Passei este por cimados telhados e coloqueio delicadamente no chão,no espaço que havia entre o primeiro e o segundoátrio, que tinha oito pés de largura. Em seguidapassei muito comodamente por cima dasconstruções, servindome dos tamboretes e,quando me encontrei do lado de dentro, tirei comum gancho o tamborete que ficara do lado oposto.Deste modo, consegui chegar até o átrio maisinterior, onde, deitandome de lado, meti a carapor todas as janelas do primeiro andar, quetinham deixado ficar abertas de propósito, e vi osmais magnificentes aposentos que imaginar sepossa. Vi também a imperatriz e as jovensprincesas nos seus quartos, rodeadas da suacomitiva. Sua Alteza imperial dignouse sorrirmegraciosamente e deume, pela janela, a mão paraeu beijar. Não pormenorizarei aqui as curiosidadesque se encerravam nesse palácio; reservo isso paraobra de maior tomo e que está quase pronta aentrar no prelo, contendo uma descrição geraldesse império desde a sua fundação, a história dosseus imperadores durante um longo número deséculos, observações sobre as suas guerras,política, leis, literatura e religião do país, asplantas e os animais que aí se encontram, usos ecostumes dos habitantes, com muitos outros
assuntos prodigiosamente curiosos eexcessivamente úteis. O meu fim agora é, apenas,referir o que me aconteceu durante umapermanência de quase nove meses naquelemaravilhoso império.
Quinze dias depois de haver recuperado aliberdade, recebi a visita de Keldersal, secretário deEstado encarregado das missões particulares, queveio apenas acompanhado de um criado. Deuordem para que o coche o esperasse a certadistância e pediume que lhe concedesse uma horade audiência. Propuslhe deitarme no chão paraque pudesse ficar à altura dos meus ouvidos; ele,porém, preferiu que o tomasse na palma da mãodurante a conversa. Principiou por me felicitar pelaminha liberdade, dizendo que podia gabarse de tercontribuído um pouco para tão feliz resultado. Emseguida acrescentou que, se não fora o interesseque a corte tomara, não seria tão depressa que eua obteria, prosseguindo:
— Embora o nosso Estado pareça florescente aosolhos do estrangeiro, o que é certo é que temosdois grandes males a debelar: de dentro, umapoderosa facção; de fora, a invasão de que estamosameaçados por um formidável inimigo. Comrespeito ao primeiro, preciso é que saiba que hásetenta luas existem dois partidos contrários nesteimpério, sob os nomesde Tramecksan eSlamecksan, termos derivadosde altos e baixos tacões dos seus sapatos, pelosquais se distinguem. Não falta quem seja deopinião, é fato, que os tacões altos são maisconformes à nossa antiga constituição; apesardisso Sua Majestade resolveu servirse apenas dos
tacões baixos na administração do governo e emtodos os cargos que dependem da coroa. Podemesmo verificar que os tacões de Sua Majestadeimperial são, pelo menos, mais baixos um drurr doque os de qualquer outra pessoa da corte. (O drurréaproximadamente a décima quarta parte de umapolegada). O ódio dos dois partidos —continuou Keldersal — estão em tal grau, que nãocomem, não bebem juntos, nem se falam. Temosquase que a certeza de que os Tramecksans outacões altos são em maior número do que nós; aautoridade, porém, está na nossa mão. Contudo,andamos suspeitosos de que sua alteza imperial, opresuntivo herdeiro da coroa, tem algumainclinação para os tacões altos; pelo menostivemos ocasião de ver que um dos tacões é maisalto do que outro, o que o faz coxear um pouco.Ora, no meio destas dissensões intestinas, estamosameaçados de uma invasão pelo lado da ilha deBlefuscu, que é outro grande império do universo,quase tão grande e tão poderoso como este,porque, segundo temos ouvido dizer, há outrosimpérios, reinos e Estados no mundo, habitadospor criaturas humanas tão grandes e tão altascomo vós; os nossos filósofos, porém, põem suasdúvidas e preferem conjecturar que caístes da luaou de alguma estrela, porque o que é fato é quemeia dúzia de mortais do vosso tamanhoconsumiria em pouco tempo toda a fruta e todo ogado dos Estados de Sua Majestade imperial.Demais, os nossos historiógrafos, há seis mil luas,não fazem referência a outras regiões senão aosdois grandes impérios de Lilipute e de Blefuscu.Estas duas poderosas potências têm, como iadizendo, andado empenhadas, durante trinta e seisluas, numa guerra muitíssimo acesa, e motivada
pelo seguinte: toda gente concorda em que amaneira primitiva de partir os ovos antes de seremcomidos, é bater com eles no rebordo de qualquerprato ou copo; mas o avô de Sua Majestadeimperial, em criança, estando para comer um ovo,teve a infelicidade de cortar um dedo, o que deumotivo a que o imperador, seu pai, lavrasse umdecreto, em que ordenava aos seus súditos, sobgraves penas, que partissem os ovos pelaextremidade mais delgada. Este decreto irritoutanto o povo, que consoante narram os nossoscronistas, houve por essa época seis revoltas, emuma das quais um imperador perdeu a coroa.Estas questiúnculas intestinas foram semprefomentadas pelos soberanos de Blefuscu e, quandoas sublevações foram sufocadas, os culpadosrefugiaramse neste império. Pelas estatísticas quese fizeram, onze mil homens, em diversas épocas,preferiram morrer a submeterse ao decreto departir os ovos pela extremidade mais delgada.Foram escritas e publicadas centenas devolumosos livros acerca deste assunto; mas oslivros que defendiam o modo de partir os ovos pelaextremidade mais grossa foram proibidos desdelogo, e todo o seu partido foi declarado incapaz deexercer qualquer função pública. Durante aininterrupta série daqueles motins, os imperadoresde Blefuscu fizeram freqüentes recriminações porintermédio dos seus embaixadores, acusandonosde praticar um crime, violando um preceitofundamental do nosso grande profeta Dustrogg, noquinquagésimo quarto capítulo de Blundecral (queé o seu Corão). Isto, porém, foi considerado comouma simples interpretação do sentido do texto,cujos termos eram: que todos os fiéis quebrarão osovos pela extremidade mais cômoda. Na minha
opinião, deve deixarse à consciência de cada um aresolução de qual seja a extremidade mais cômoda,ou pelo menos, é à autoridade do soberanomagistrado que compete resolver. Ora, ospartidários da extremidade mais grossa, que seencontravam exilados, viram tanta deferência nacorte do imperador de Blefuscu e tanto auxílio eapoio no nosso próprio país, que se seguiu umaguerra sanguinolenta entre os dois impérios,guerra que durou trinta e seis luas, com vário êxitopara cada uma das partes. Nesta guerra perdemosquarenta naus de linha e um grande número denavios com trinta mil dos nossos mais valentesmarinheiros e soldados; dáse como certo que aperda sofrida pelo nosso inimigo não foi inferior.Seja como for, o que é fato é que os de Blefuscupreparam agora uma temível esquadra, paraoperar um desembarque nas costas do nossoimpério. Ora, Sua Majestade imperial, tendo amáxima confiança na vossa coragem, e tendo emaltíssimo apreço a vossa força, pediume que vospormenorizasse todos estes assuntos, a fim desaber quais as vossas disposições a respeito desemelhante assunto.
Respondi ao secretário, limitandome a enviar aoimperador as minhas muito humildes homenagense dandolhe a entender que estava disposto asacrificar a vida para defender a sua sagradapersonalidade e o seu império contra todas asempresas e invasões dos seus inimigos.Despediuse, depois, muito satisfeito com a minharesposta.
CAPÍTULO V
O autor opõese ao desembarque dos inimigos, por meio de um extraordinárioestratagema — O imperador concedelhe um grande titulo honorífico — O
imperador de Blefuscu envia embaixadores a solicitar a paz — Incendeiamseos aposentos da imperatriz — O autor concorre muito para extinguir o
incêndio.
O império de Blefuscu é uma ilha situada aonordeste de Lilipute, e está dele separada apenaspor um canal, que tem quatrocentas toesas. Nuncao vira, e como corria o boato do projetadodesembarque, tomei as máximas cautelas para nãoaparecer desse lado, receoso de que fossedescoberto por algum navio do inimigo.
Dei parte ao imperador de um projeto, queelaborara havia pouco tempo, para me tornarsenhor de toda a frota inimiga que, segundo orelatório daqueles que haviam sido mandados emreconhecimento, estava no porto, pronta a fazersede vela ao primeiro vento favorável. Consultei osmais experimentados marinheiros, para quesoubessem qual a profundidade do canal, edisseramme que ao centro, na maré cheia, tinhade profundidade setenta glumgluffs, (queeqüivalem a seis pés de medida européia, poucomais ou menos) e em outros pontoscinqüenta glumgluffs, o máximo. Encaminheimesecretamente para a costa nordeste, fronteira aBlefuscu e, deitandome detrás de uma colina,assestei o óculo e vi a frota inimiga, que eraconstituída de cinqüenta navios de guerra e umavultado número de transportes. Afastandome emseguida, dei ordem para fabricarem grandequantidade de cabos, o mais fortes possível, combarras de ferro. Os cabos deviam ser pouco mais
ou menos da grossura de um cordel dobrado, e asbarras, do comprimento e grossura de uma agulhade fazer meia. Tripliquei o cabo para o tornar aindamais forte, e, pela mesma razão, torci juntamentetrês barras de ferro e a cada uma delas apliqueium gancho. Voltei à costa nordeste, e, metendodebaixo do gibão os sapatos e as meias, entrei nomar. A princípio entrei pela água com a maiorpresteza possível e depois nadei até o centro umastoesas, de maneira a achar pé. Cheguei junto dafrota em menos de trinta minutos. Os inimigosficaram tão aterrados com a minha presença, quesaltaram todos dos navios como rãs e fugiram paraterra; calculeilhes o número em trinta milhomens, pouco mais ou menos. Tratei, então, desegurar cada nau pela proa com um gancho presoa um cabo. Enquanto andava nesta faina, oinimigo deu uma descarga de milhares de flechas,muitas das quais me atingiram na cara e nas mãose que, além da excessiva dor que me produziram,deveras embaraçaram a minha tarefa. O que medava mais cuidado eram os olhos, que ficariaminfalivelmente perdidos se me não lembrasse logode um expediente: em uma das algibeiras tinhauns óculos; tireios e coloqueios o mais depressaque pude. Armado com este elmo de novo gênero,continuei o meu trabalho, não fazendo caso dacontínua granizada de flechas que caía em cima demim. Colocados todos os ganchos, principiei arebocálos; o trabalho, porém, resultou inútil, vistocomo os navios estavam ancorados. Puxei logo docanivete e cortei todas as amarras; feito isto, numabrir e fechar de olhos fui sirgando muito àvontade cinqüenta dos maiores navios e arrasteioscomigo.
Os Blefuscudianos, que não podiam adivinhar qualfosse o meu propósito, ficaram igualmentesurpreendidos e confusos: não me tinham vistocortar as amarras e julgaram que a minha idéiaera deixálos flutuar ao sabor do vento e da maré,fazendoos se entrechocarem; quando, porém,viram que eu rebocava toda a esquadra, soltaramgritos de raiva e de desespero.
Tendo caminhado por algum tempo e achandomefora do alcance das suas flechas, parei um poucopara tirar todas aquelas que se me tinham cravadono rosto e nas mãos; depois, conduzindo a minhapresa, tratei de me dirigir ao porto imperial deLilipute.
O imperador, com toda a sua corte, estava napraia, aguardando o êxito da minha empresa.
Viam ao longe uma armada que se acercava; como,porém, a água me dava pelo pescoço, não notaramque era eu quem a conduzia até eles.
O imperador julgava que eu tinha perecido e que aesquadra inimiga se aproximava para operar odesembarque; os seus temores, porém, em breveforam dissipados, porque, tendo encontrado pé,viume à frente de todas as naus e ouvirame gritarcom toda a força dos meus pulmões: Viva o muitopoderoso imperador de Lilipute. Assim que chegueià terra, este soberano elogioume infinitamente e,logo em seguida, me fez nardac, que é o maishonroso título honorífico existente entre eles.
Sua Majestade pediume que lhe satisfizesse odesejo de se assenhorear dos outros naviosinimigos e de os conduzir aos seus portos. A
ambição deste príncipe ficava satisfeita com aposse de todo o império de Blefuscu, para o reduzira província do seu império e fazêla governar porum vicerei; mandou matar todos os exiladospartidários da extremidade mais grossa econstranger os seus povos a quebrarem os ovospela extremidade mais delgada, o que o fariachegar à monarquia universal; tratei de dissuadilodessa idéia, baseandome em razões políticas ejusticeiras e negueime energicamente a tornarmeinstrumento para oprimir a liberdade de um povolivre, nobre e corajoso. Quando foi apresentadoeste assunto ao conselho, a parte mais sensataapoiou o meu parecer.
Esta declaração franca e desassombrada era tãooposta aos projetos e à política de Sua Majestadeimperial, que era difícil obter perdão para mim;falaram a este respeito no conselho de uma formamuito artificiosa, e os meus inimigos secretosvaleramse disso para me perder. É bem certo queos mais importantes serviços prestados aossoberanos são depressa esquecidos, quandoseguidos de uma recusa em os auxiliar cegamenteem suas paixões!
Perto de três semanas depois da minha memorávelexpedição, chegou de Blefuscu uma soleneembaixada, trazendo propostas de paz. O tratadoem breve ficou concluído em condições deverasvantajosas para o imperador de Lilipute. Aembaixada era constituída por seis fidalgos, comuma comitiva de quinhentas pessoas, e podedizerse sem exagero que a sua entradacorrespondeu à grandeza de seu amo e àimportância da negociação.
Depois de feito o tratado, Suas Excelências, tendosabido secretamente os bons serviços que prestaraao país pelo modo por que falei ao imperador,fizeramme uma cerimoniosa visita. Principiarampor me fazer os maiores elogios acerca do meuvalor e da minha generosidade, e convidaramme,em nome de seu amo, para ir viver em Blefuscu.Agradecilhes e pedilhes que apresentassem osmeus mais humildes respeitos à Sua Majestadeblefuscudiana, cujas brilhantes virtudes eramuniversalmente conhecidas. Prometi visitar SuaMajestade antes de regressar ao meu país.
Passados alguns dias, pedi licença ao imperadorpara fazer os meus cumprimentos ao grandesoberano de Blefuscu; respondeume, com a maiorfrieza, que fosse quando me apetecesse.
Esquecime de dizer que os embaixadores mehaviam falado por intermédio de um intérprete,visto que as línguas dos dois países são muitodiferentes uma da outra. Qualquer das naçõesgaba a antigüidade, a beleza e a força do seuidioma e despreza o outro.
No entanto, o imperador, orgulhoso da vantagemque obtivera sobre os Blefuscudianos pela tomadada sua esquadra, obrigou os embaixadores aapresentarem as suas credenciais e a fazerem asua alocução em língua liliputiana, e, comoverdade, seja dito que, em virtude do tráfico e docomércio que existem entre os dois países, darecepção mútua dos exilados e do costume em queos Liliputianos estão de mandar a flor de suanobreza a Blefuscu, a fim de se educar e aprenderos seus exercícios, há poucas pessoas de distinçãono império de Lilipute e também pouquíssimos
negociantes ou marinheiros nas praças marítimasque não falem as duas línguas.
Por então, tive ensejo de prestar à Sua Majestadeimperial assinalado serviço.
Fui acordado certa ocasião, — devia ser perto demeianoite — com os gritos de uma multidão, quese juntara à porta de minha casa; ouvifreqüentemente a palavra burgum. Algunscortesãos, abrindo passagem por entre a multidão,imploraramme que, sem detença, me dirigisse aopalácio, e que lavrava incêndio nos aposentos daimperatriz, por descuido de uma das suas aias queadormecera lendo um poema blefuscudiano.Levanteime imediatamente e dirigime ao paláciocom certo custo, para que não pisasse ninguém naminha passagem, o que consegui. Quando cheguei,vi que já se tinham aplicado as escadas às paredesdos quartos e estavam bem fornecidos de baldes; aágua, porém, ficava muito longe. Esses baldesdeviam ter talvez o tamanho de dedais, e o pobrepovo acarretavaos com a máxima solicitude. Oincêndio lavrava já com bastante intensidade eaquele magnífico palácio seria infalivelmentereduzido a cinzas, se, por uma extraordináriapresença de espírito, me não ocorresse de repenteuma idéia. Na noite precedente, tinha bebido emgrande quantidade um certo vinho brancochamado glimigrim, importado de uma província deBlefuscu e que tem grandes propriedadesdiuréticas. Desatei então a urinar em talabundância e dirigi o jato com tanto acerto e tãoapropositadamente que, dentro de três minutos, ofogo estava completamente apagado e o restodaquele soberbo edifício, que custara somas
imensas, ficou preservado de tal incêndio.
Não sabia se o imperador veria com bons olhos oserviço que acabava de prestarlhe, porque,consoante às leis fundamentais da nação, era umcrime capital e digno da pena de morte verteráguas nas proximidades do palácio imperial; fiquei,porém, tranqüilo, quando soube que SuaMajestade dera ordem ao grãojuiz para me enviarcartas de agradecimento; disseramme, depois, quea imperatriz, experimentando um grande terrorpelo ato que praticara, fora transportada para olado mais afastado do átrio e se resolvera a nuncamais habitar os aposentos que eu ousara macularcom ação desonesta e impudente.
CAPÍTULO VI
Os costumes dos habitantes de Lilipute — Sua literatura — Suas leis emaneiras de educar os filhos.
Ainda que eu reserve a descrição deste impériopara um trabalho à parte, julgo um dever, dar,dele, aqui, ao leitor, uma idéia geral. Como aestatura ordinária daquela gente pouco maior é doque seis polegadas, há uma proporção exata emtodos os outros animais, assim como nas árvores.Por exemplo: os cavalos e os bois maiores regulamentre quatro e cinco polegadas, aproximadamente;os patos são quase do tamanho de um pardal;quanto aos insetos, esses eram quase invisíveispara mim; a natureza, porém, soube ajustar a vistados habitantes de Lilipute a todos os objetos quelhes são destinados. Para fazer conhecer bem
quanto o seu olhar é penetrante, com respeito aosobjetos que lhes ficam próximos, basta dizer que viuma vez com prazer um cozinheiro hábildepenando uma cotovia que não era maior do queuma mosca vulgar, e uma rapariga a enfiar um fiode seda invisível numa agulha também invisível.
Servemse de caracteres e de letras, e o seu modode escrever é notável, não o fazendo nem daesquerda para a direita, como na Europa; nem dadireita para a esquerda, como os Árabes; nem decima para baixo, como na China; nem de baixopara cima como os Caucasianos, masobliquamente e de um a outro ângulo do papel,como as senhoras em Inglaterra.
Enterram os mortos de cabeça para baixo, porqueimaginam que, dentro de onze mil luas, todos osmortos devem ressuscitar; que, por essa época, aTerra, que julgam plana, se voltará de baixo paracima e que, por esse meio, no momento daressurreição, seriam encontrados de pé. Os sábios,entretanto, reconhecem o absurdo daquelaopinião, mas permanece o uso antigo, baseado nasidéias do povo.
Têm leis e costumes singularíssimos, que eu talveztentasse justificar, se não fossem contrários aos daminha querida pátria. A primeira, de que fareimenção, diz respeito aos denunciantes. Todos oscrimes contra o Estado são punidos nesse paíscom extremo rigor; se o acusado, porém, provaevidentemente a sua inocência, o acusador é logocondenado a uma ignominiosa morte e todos osseus bens confiscados em prol do inocente. Se oacusador é pobre, o imperador, do seu tesouroparticular, indeniza o acusado de todas as perdas e
danos.
A fraude é considerada como um crime maior doque o roubo; esta a razão por que é sempre punidacom a morte, visto como existe o princípio de que ocuidado e a vigilância, com um espírito vulgar,podem garantir os bens de um indivíduo contra astentativas dos ladrões, mas a probidade não temdefesa contra a astúcia e a má fé.
Embora eu considere os castigos e as grandesrecompensas como os eixos em que gira o governo,ouso dizer que a máxima de castigar erecompensar não é observada na Europa com amesma sensatez como no império de Lilipute. Todoaquele que pode apresentar provas bastantes deque observou fielmente as leis do seu país durantesetenta e três luas, tem o direito de pretendercertas regalias, consoante ao seu nascimento e asua posição, com certa quantia tirada de um fundodestinado a esse fim; alcança até o títulode snipall, ou de legítimo, que é apenso ao seunome; esse título, porém, não passa aosdescendentes. Estes povos vêem como umprodigioso defeito político entre nós que todas asnossas leis sejam ameaçadoras e que a infraçãoseja punida com os mais severos castigos,enquanto a sua observância não dá direito arecompensa alguma; por este motivo representama justiça com seis olhos, dois adiante, dois atrás eum de cada lado (para simbolizar a circunspeção),segurando na mão direita um saco cheio de ouro, eempunhando na esquerda uma espadaembainhada, para demonstrar que está maisdisposta a premiar do que a punir.
Na escolha que fazem dos súditos para
desempenharem cargos públicos, olham mais paraa probidade do que para o talento. Como o governoé necessário ao gênero humano, crêem que aProvidência nunca teve em mira fazer daadministração dos negócios públicos uma ciênciacomplicada e misteriosa, acessível apenas a umlimitado número de espíritos raros e sublimes,desses três ou quatro prodígios, que aparecem láde séculos a séculos; mas julgam que a verdade, ajustiça, a temperança e as restantes virtudes estãoao alcance de toda gente e que a prática dessasvirtudes, acompanhada de alguma experiência ebons intuitos, tornam quem quer que seja aptopara servir ao seu país, embora muito raquítico emuito tacanho.
Persuadindose de que os talentos superiores estãolonge de suprir as virtudes morais, dizem eles queos empregos não poderiam ser confiados a maisperigosas mãos do que às dos grandes talentos quenão possuem virtude alguma, e que os errosnascidos da ignorância de um ministro probo nãotêm tantas conseqüências funestas para o bem doseu povo, como as obscuras práticas desseministro, cujas tendências fossem depravadas,cujas intenções fossem criminosas ou predispostasa fazer o mal impunemente.
Aquele dos Liliputianos que não acreditar naprovidência divina é declarado incapaz de exercerqualquer cargo público. Como os soberanos sejulgam, muito justamente, delegados daProvidência, os Liliputianos supõem que nada hámais absurdo nem mais incoerente do que oprocedimento de um príncipe que se serve de gentesem religião, que nega essa suprema autoridade de
que se considera depositário e da qual, de fato,recebe a que possui.
Referindome a estas leis e às seguintes, apenasfalo das leis originais e primitivas dos Liliputianos.Sei que, pelas modernas leis, estes povos caíramem um grande excesso de corrupção; provao overgonhoso uso de obter os mais elevadosempregos dançando na corda e os lugares dedistinção os que saltam à vara larga. Note o leitorque esse indigno uso foi introduzido pelo pai doatual imperador.
Entre aquele povo, a ingratidão é tida como umcrime enorme, como em outro tempo o foi, segundorefere a história, aos olhos de algumas naçõesvirtuosas. Dizem os Liliputianos que todo indivíduoque se torna ingrato para com o seu benfeitor, deveser necessariamente inimigo de todos os outroshomens.
Julgam os naturais de Lilipute que o pai e a mãenão devem ser encarregados da educação dosfilhos, e há, em todas as cidades, colégios públicos,para onde todos os progenitores, excetocamponeses e operários, são obrigados a mandaros filhos de ambos os sexos, para serem educadose instruídos. Assim que atingem a idade de vinteluas, supõemnos dóceis e capazes de aprender. Asescolas são de diversas espécies, consoante àdiferença de sexo ou de sangue. Professores hábeiseducam as crianças para um modo de vidaconforme a sua ascendência, os seus própriosdotes de espírito e as suas tendências.
Os seminários para os filhos de nobres têmprofessores sérios e eruditos. O vestuário e
subsistência dos rapazes são simples.Inspiramlhes princípios de honra, de justiça, decoragem, de modéstia, de religião e de amor pelapátria. Até à idade dos quatro anos são vestidospelos homens; dessa idade em diante, sãoobrigados a se vestirem sós, embora sejam denobre estirpe. Só têm licença para brincar napresença do professor e por esse sistema evitamfunestas impressões de doidice e de vício que cedocomeçam a corromper os costumes e as tendênciasda mocidade. Os pais podem visitálos duas vezespor ano. A visita pode durar apenas uma hora,com a liberdade de beijar o filho à entrada e àsaída; um professor, que assiste sempre a essasvisitas, não consente que falem em segredo com ascrianças, que as lisonjeiem, nem lhes dêemconfeitos ou bolos.
Nos colégios para o sexo feminino, as meninasnobres são educadas quase como rapazes, comuma diferença: é que são vestidas por criadas, massempre na presença de uma professora, até quecheguem aos cinco anos, idade em que principiama vestirse sem auxílio de ninguém.
Quando se sabe que as aias ou criadas gravesentretêm as raparigas com histórias extravagantes,contos insípidos ou capazes de lhes causar medo,(o que é uso corrente das governantas emInglaterra), são açoitadas publicamente três vezespor toda a cidade, presas durante um ano e porfim exiladas para o ponto mais deserto do país.Assim as raparigas e os rapazes, entre aquele povo,envergonhamse de ser covardes e tolos;desprezam todo o ornamento exterior e só têm emconsideração a compostura e o asseio. Os seus
exercícios são menos violentos do que os dosrapazes e não as fazem aplicar tanto. Entretanto,aprendem ciências e belasletras. Há um provérbioque diz que a mulher, devendo ser uma companhiasempre agradável ao marido, carece de ornar oespírito que nunca envelhece.
Ao contrário dos Europeus, os Liliputianos pensamque nada demanda mais cuidado e aplicação doque a educação das crianças. É fácil gerálas,dizem eles, tão fácil como semear e plantar, masconservar certas plantas, fazêlas crescer bem,precavêlas contra os rigores do inverno, contra osardores e tempestades de verão, contra os ataquesdos insetos, de, em suma, fazerlhes dar frutos emabundância, é o resultado da atenção e do cuidadode um hábil jardineiro.
Escolhem o professor que tenha o espírito maisbem formado do que espírito sublime, maismorigeração do que ciência.
Não podem suportar os professores que atordoamincessantemente os ouvidos dos discípulos comgramaticais combinações frívolas, discussõespueris, observações e que, para lhes ensinar aantiga língua, que pouca relação tem com a que sefala hoje, lhes enchem o espírito de regras eexceções e põem de lado o uso e o exercício paralhes atulhar o cérebro de princípios supérfluos epreceitos dificultosos; querem que o professor sefamiliarize dignamente com os seus alunos, porquenão há nada mais contrário à boa educação do queo pedantismo e a fingida seriedade; segundo eles,devem mais baixarse do que elevarse peranteeles, embora não deixem de o considerar algodifícil, pois que muitas vezes é preciso mais esforço
e vigor e sempre mais atenção para descer semperigo do que para subir.
São de opinião de que os professores devemaplicarse mais a formar o espírito das criançaspara as lutas da vida do que a enriquecêlo comconhecimentos curiosos, quase sempre inúteis.Ensinamlhes, pois, logo, a ser prudentes efilósofos, a fim de que, mesmo na idade dosprazeres, saibam gozálos filosoficamente. Não seráridículo — perguntam eles — só conhecerlhes anatureza e o verdadeiro uso quando já seencontram inaptos, aprender a viver quando a vidaestá quase passada e principiar a ser homemquando se está prestes a deixar de o ser? Dãoserecompensas para a confissão sincera e ingênuados erros, e os que melhor sabem raciocinar sobreos seus próprios defeitos, obtêm honras e mercês.Querem que sejam curiosos e façam amiudadasperguntas acerca de tudo o que ouvem, e sãopunidos severamente aqueles que, em presença deuma coisa extraordinária e notável, demonstrempouca admiração ou curiosidade.
Recomendaselhes que sejam muito fiéis, muitosubmissos, muito dedicados ao príncipe, mas deuma dedicação geral e de dever não particular, quefere muitas vezes a consciência e sempre aliberdade, e que expõe a grandes fatalidades.
Os professores de História empenhamse menoscom o trabalho de ensinar a seus discípulos a datade tal ou tal acontecimento, do que adescreverlhes o carácter, as boas, as másqualidades dos reis, dos generais e dos ministros;julgam que pouco lhes pode interessar em que anoou mês tal batalha foi travada; mas decerto lhes
interessa saber quanto os homens, em todas asépocas, são bárbaros, brutais, injustos,sanguinários, sempre dispostos a expor a vida semnecessidade e a atentar contra a dos outros semmotivo; quanto os combates desonram ahumanidade e quão fortes devem ser para chegar aesta funesta extremidade; consideram a história doespírito humano a melhor de todas, e ensinammenos os discípulos a reter os fatos, do que ajulgálos.
Querem que o amor das ciências se limite e quecada um escolha o gênero de estudo que maisconvenha à sua tendência e ao seu talento; fazemtanto caso de um homem que estuda demasiadocomo de um homem que come demais,persuadidos de que o espírito tem as mesmasindisposições que o estômago. Só o imperador éque possui uma vasta e numerosa biblioteca.Quanto aos particulares que possuam grandesbibliotecas, são considerados como asnoscarregados de livros.
Naquele povo, a filosofia é muito alegre e nãoconsiste, como nas nossas escolas,em ergotismos; ignoram o quesejabarroco e buralipton, categorias, termos deprimeira e de segunda intenção e outrasdificultosas tolices da dialética, que são tão úteispara o raciocínio como para a dança. A filosofiadeles consiste em estabelecer princípios infalíveisque levem o espírito a preferir o estado medíocre deum homem honesto ao bemestar do rico e aofausto de um financeiro, e às conquistas de umgeneral vitorioso o vencerem em si próprios a forçadas paixões. A filosofia de que usam habituaos a
um viver austero, fugindo de tudo quanto costumaos sentidos à voluptuosidade, tudo o que torna aalma dependente do corpo, enfraquecendolhe aliberdade. De resto, a virtude é sempreapresentada como uma coisa fácil e agradável.
Exortamnos a que escolham com segurança ummodo de vida, fazendo o possível para lhes fazertomar aquele que melhor convenha às suasnaturais tendências, pouco se importando com asfaculdades paternas, de maneira que, por vezes, ofilho de um lavrador chega a ser ministro deEstado, enquanto o filho de um fidalgo se tornasimples comerciante.
O valor que este povo consagra à física e àsmatemáticas é simplesmente com a mira de queessas ciências sejam vantajosas para a vida e paraos progressos das artes aplicadas.
Geralmente, dãose pouco o trabalho de conhecertodas as partes do universo, preferindo gozar anatureza sem a examinar, a discorrer sobre aordem e o movimento dos corpos físicos. Quanto àmetafísica, têmna como uma fonte de visões e dequimeras.
Embirram com a linguagem afetada e apreciosidade do estilo, tanto na prosa como noverso, e entendem que é do mesmo modoimpertinente o querer uma pessoa salientarse,seja pela maneira de se exprimir, seja pela maneirade trajar. Autor que ponha de parte o estilo puro,claro e sério, para usar de uma gíria obsoleta,recheada de extraordinárias metáforas, é corrido eapupado nas ruas como se fora um tipo decarnaval.
Naquele povo, cuidam do corpo e da alma aomesmo tempo, porque, tratandose de fazerhomens, cumpre não lhes formar uma coisa sem aoutra. É, consoante dizem, uma parelha de cavalosque é necessário guiar em passo certo. Segundoeles, desenvolvendo uma criança simplesmente ofísico, fica ignorante e estúpida; cultivandolhesomente o espírito, fica desgraciosa e raquítica.
Aos mestres é proibido castigar os alunoscorporalmente; castigamnos apenas privandoosde alguma coisa que apreciem, envergonhandoose, principalmente, não lhes dando lições durantetrês dias, o que os apoquenta extraordinariamente,pois que, abandonandoos a si próprios, assim lhesdemonstram que não são dignos de que osinstruam.
A dor física produzida pelo castigo corporal serveapenas para os tornar tímidos, defeito muitoprejudicial, de que nunca se curam.
CAPÍTULO VII
Recebendo o autor aviso que iam processálo pelo crime de lesamajestade,foge para Blefuscu.
Antes de me referir à minha saída do império deLilipute, pareceme talvez conveniente informar oleitor de uma intriga secreta que se teceu contramim.
Estava pouco ao corrente do manejo da corte, e aminha situação negarame disposições necessáriaspara ser astucioso cortesão, ainda que muitos de
humilde condição como eu tenham conseguido asgraças da corte e empregos rendosos; no entanto,não tinham decerto escrúpulos em questões debrio e pundonor. Fosse como fosse, o que é fato éque, quando me dispunha a sair para visitar oimperador de Blefuscu, uma individualidade dealta influência e consideração no palácio, e a quemeu prestara serviços de certa importância, veioprocurarme secretamente à casa, durante a noite.Chegou de cadeirinha, sem se fazer anunciar, edespediu os moços.
Meti a cadeirinha, com sua excelência dentro, naalgibeira do gibão e, dando ordem ao meu criadoque fechasse a porta, coloquei a cadeirinha emcima da mesa e senteime ao lado. Feitos oscumprimentos de praxe, notando o aspectocontristado e inquieto do meu hóspede,pergunteilhe qual o motivo por que assim estava.Pediume que o ouvisse com a máxima atençãosobre um assunto que dizia respeito à minhahonra e à minha vida e principiou:
— Informoo de que há pouco foram convocadosvários conselhos privados por sua causa e que, hádois dias, Sua Majestade tomou uma desagradávelsolução.
Decerto não ignora que SkyreshBolgolam (galbet ou almirantemor) nunca deixoude ser seu mortal inimigo, desde que o senhor seencontra aqui. Não sei a que atribuir tal antipatia;o que sei é que o ódio lhe aumentou desde a suaexpedição contra a esquadra de Blefuscu: comoalmirante, sentiuse despeitado com o bom êxito.Este cavalheiro, de combinaçãocom Flimnap,tesoureiromor, o general Limtoc, o
camareiromor Lalcon e o supremo magistradoBalmaff, redigiu uma série de artigos para oprocessar como réu de lesamajestade e comoautor de vários outros crimes.
Este exórdio chocoume de tal maneira, que iainterrompêlo, quando me pediu que não proferissepalavra e que o ouvisse. Em seguida, continuou:
— Grato pelos serviços que me prestou, procureiinformarme de todo o processo e obtive cópia detodos os artigos. É uma coisa que põe a minhacabeça em perigo, mas que faço para o servir.
ARTICULADO DA ACUSAÇÃO PROMOVIDA CONTRA QUIMBUSFLESTRIN (O HOMEM MONTANHA)
“Art. 1.° — Visto que, por uma lei decretada noimpério de Sua Majestade Cabin Deffar Piune, éordenado que qualquer indivíduo que verta águasno recinto do palácio imperial seja sujeito às penase castigos do crime de lesamajestade, e que,apesar disso, o citado Quimbus Plestrin, por umaviolação feita à lei, sob pretexto de apagar o fogohavido nos aposentos da querida esposa de SuaMajestade imperial, apagara maliciosa, traiçoeira ediabolicamente, despejando a bexiga, o referidofogo havido nos aludidos aposentos, tendo entradopara esse efeito no recinto do citado palácioimperial;
“Art. 2.° — Que havendo o mencionado QuimbusFlestrin conduzido a armada imperial de Blefuscu,e tendolhe seguidamente Sua Majestade imperialordenado que se assenhoreasse de todas as outrasmais do mencionado império de Blefuscu, ereduzilo a simples província que pudesse sergovernada por um vicerei do nosso país, e fazer
perecer e matar todos os exilados partidários dosovos quebrados pela extremidade mais grossa, omencionado Flestrin, como traidor rebelde à SuaFidelíssima Majestade imperial, apresentara umrequerimento para ser dispensado do citadoserviço, sob o pretexto frívolo de uma repugnânciaem meterse a obrigar as consciências e a oprimira liberdade de um povo inocente;
Art. 3.° — Que certos embaixadores de Blefuscu,tendo vindo há pouco pedir a paz à Sua Majestadeimperial, o mencionado Flestrin, como súditodesleal, ajudara, socorrera, livrara de apuros eobsequiara os citados embaixadores, ainda que osreconhecesse como ministros de um príncipe queacabara de mostrarse recentemente inimigodeclarado de Sua Majestade imperial e numaguerra aberta contra a sobredita Majestade;
“Art. 4.° — Que o mencionado Quimbus Flestrin,contra o dever de um súdito fiel, se dispunha agoraa fazer uma viagem à corte de Blefuscu, para aqual recebera apenas uma licença verbal de SuaMajestade imperial, e, sob o pretexto da ditalicença, se propunha temerária e perfidamente afazer a citada viagem, livrar de apuros e auxiliar oimperador de Blefuscu.”
— Ainda existem outros artigos — acrescentou ele— mas os mais importantes são aqueles que acabode citarlhe. Nas diversas deliberações sobre esteassunto, é preciso confessar que Sua Majestade fezver a sua moderação, a sua suavidade e a suaequidade, considerando muitas vezes os seusserviços e tratando de atenuar os seus crimes. Otesoureiro e o almirante foram de opinião que deviasofrer morte cruel e ignominiosa, lançando fogo à
sua casa durante a noite, e o general deviaesperálo com vinte mil homens armados deflechas envenenadas, para o ferir no rosto e nasmãos. Ordens secretas deviam ser dadas a algunsdos seus criados para espalharem um líquidovenenoso nas suas camisas, líquido que depressarasgaria a própria carne, fazendoo morrer entreexcessivos tormentos. O general concordou, demaneira que, durante certo tempo, a maioria dosvotos foi contra si; Sua Majestade imperial, porém,resolvido a salvarlhe a vida, conseguiu o sufrágiodo camareiromor. Entretanto, Redresal, primeirosecretário dos negócios secretos do Estado,recebeu ordem do imperador para dar a suaopinião, o que fez em conformidade à de SuaMajestade, e decerto justificou bem a estima que osenhor lhe consagra: reconheceu que os crimescometidos eram grandes, contudo mereciam estaindulgência; disse que a amizade que havia entreambos era tão conhecida, que talvez o pudessejulgar prevenido a seu favor; que, no entanto, paraobedecer ao mandado de Sua Majestade,ponderando os seus serviços e seguindo asuavidade do seu espírito, queria pouparlhe a vidae contentarse em tirarlhe os olhos. Julgava comsubmissão que, por esta forma, a justiça podiaficar de algum modo satisfeita, e todos aplaudiriama clemência do imperador, tão bem como oprocesso equitativo e generoso daqueles quetinham a honra de ser seus conselheiros; que aperda da vista não lhe poria obstáculo à forçacorporal, com a qual podia ainda ser útil a SuaMajestade; que a cegueira serve para aumentar acoragem, ocultandonos os perigos; que o espíritose torna mais recolhido e mais apto para adescoberta da verdade; que o temor que mostrou
pelos seus olhos era a maior dificuldade que teve avencer ao assenhorearse da esquadra inimiga, eque seria bastante que visse pelos olhos dosoutros, pois que os mais poderosos príncipes nãovêem de outro modo. Esta proposta foi recebidadesfavoravelmente por toda a assembléia. Oalmirante Bolgolam, todo aceso, ergueuse e,arrebatado de furor, disse que estava admirado deque o secretário ousasse ser de opinião que seconservasse a vida a um traidor; que os serviçosque o senhor havia prestado eram, consoante àsverdadeiras máximas do Estado, enormes crimes;que, quem era capaz de apagar de repente um fogoregando com urina o palácio de Sua Majestade, (oque não podia recordar sem horror), poderia, deoutra vez, pelo mesmo modo, inundar o palácio etoda a cidade, tendo uma bomba disposta paraesse efeito; e que a mesma força que o fizeraarrastar toda a esquadra inimiga poderia servirpara a reconduzir, ao primeiro descontentamento,ao sítio de onde a havia tirado; que havia motivosfortíssimos para pensar que o senhor era no íntimopartidário da extremidade mais grossa, e porque atraição principia no coração antes de transparecernos atos, como partidário da extremidade maisdelgada, declarouo formalmente traidor e rebelde,e insistiu em que devia ser morto sem maisdelongas. O tesoureiro foi do mesmo parecer. Fezver a que extremo tinham sido reduzidas asfinanças com a despesa do seu sustento, o que erauma coisa incomportável; que o expedienteproposto pelo secretário, de lhe tirar os olhos,longe de ser um remédio contra o mal, oaumentaria segundo todas as aparências, comoparece pelo uso vulgar que há em cegar certas avesque, depois dessa operação, comem mais ainda e
engordam rapidamente; que Sua SagradaMajestade e o conselho, que eram seus juízes,estavam conscienciosamente persuadidos do seucrime, o que era uma prova mais do que suficientepara o condenar à morte, sem recorrer a provasformais requisitadas pela letra rígida da lei. SuaMajestade imperial, porém, não estandoabsolutamente resolvido a dar consentimento àsua morte, disse graciosamente que, visto como oconselho julgava a perda da sua vista um castigomuito leve, podia acrescentarse um outro. E osecretário, que é seu amigo, pedindosubmissamente para ser ouvido ainda, e responderao que o tesoureiro objectara com referência àgrande despesa que Sua Majestade fazia por suacausa, disse que Sua Excelência, que dispunhadas finanças do imperador, poderia facilmenteremediar esse mal diminuindo na sua mesa poucoe pouco e que, por esse meio, falta de quantidadesuficiente de alimento, o senhor se tornaria fraco elânguido, perderia o apetite e, em breve, a vida.Assim, pela grande amizade que o secretário lheconsagra, este assunto foi liquidadoamigavelmente; foram dadas ordens terminantespara que fosse mantido o segredo do desejo de ofazer morrer lentamente de fome. A sentençalavrada para lhe serem vasados os olhos foiregistrada no arquivo do conselho, ao que pessoaalguma se opôs, exceção feita do almiranteBolgolam. Dentro de três dias, o secretário teráordem para vir a sua casa, onde lerá os artigos deacusação na sua presença e, em seguida, fazêlosabedor da grande clemência e graça de SuaMajestade e do conselho, condenandoo apenas àperda da vista, pena a que Sua Majestade tem acerteza de que se sujeitará com o reconhecimento e
humildade convenientes. Vinte cirurgiões de SuaMajestade virão depois e executarão a operaçãopela acertada descarga de muitas flechas bastanteagudas nas meninas dos seus olhos, quandoestiver deitado no chão. É a si que compete tomaras convenientes precauções que a prudência lhesugira. Quanto a mim, para afastar qualquersuspeita, é preciso que volte tão secretamentecomo vim.
Sua Excelência deixoume e fiquei só, entregue ainquietações. Era um uso introduzido por essepríncipe e pelo seu ministério, (pelo que measseguram, muito diferente do uso dos primitivostempos), que, depois da corte haver ordenado umsuplício para satisfazer o ressentimento dosoberano ou a maldade de um favorito, oimperador devia fazer um discurso a todo o seuconselho, falando da sua brandura e da suaclemência como qualidades reconhecidas de todagente. O discurso do imperador a meu respeitodepressa correu por todo o país, e nada inspiratanto terror ao povo como esses elogios daclemência imperial, porque se tinha notado que,quanto mais rasgados eram esses elogios, mais osuplício era, ordinariamente, cruel e injusto. E,com respeito a mim, preciso é confessar que, nãosendo pelo meu nascimento, nem pela minhaeducação, destinado a ser homem de corte,percebia tão pouco desses assuntos, que não podiadecidir se a sentença lavrada contra mim erabranda ou rigorosa, justa ou injusta. Nem sequerpedi licença para apresentar a minha defesa:preferia ser condenado sem ser ouvido, porque,tendo visto em outros tempos vários processosidênticos, sempre notei que terminam consoante
às instruções dadas aos juízes e conforme àvontade dos acreditados e poderosos acusadores.Tive certo desejo de resistir, pois que, estando emliberdade, nem todas as forças deste impérioconseguiriam nada de mim e podia facilmente, àpedrada, bater e arrasar a capital; repeli, porém,esse projeto com horror, lembrandome dojuramento que prestara a Sua Majestade, dosfavores que me havia concedido e da dignidadede nardac,em que fora investido. Demais, nãotinha tão cheio o espírito dos sentimentos da corte,que me persuadisse de que os rigores de SuaMajestade me permitiriam liquidar todas asobrigações que lhe devia.
Por fim, tomei uma resolução, que, conforme asaparências, será censurada por algumas pessoasjusticeiras, porque, confesso, foi uma grandetemeridade e um péssimo procedimento da minhaparte ter querido conservar os olhos, a liberdade ea vida, contra a vontade da corte. Se conhecessemelhor a índole dos príncipes e dos ministros deEstado, que depois observei em muitas outrascortes, e o seu método de tratar acusados menoscriminosos do que eu, submetermeia sem custo aum castigo tão suave; mas, levado pelo fogo damocidade, e tendo antecipadamente obtido licençade Sua Majestade imperial para ir à corte deBlefuscu, deime pressa, antes de expirado o prazode três dias, em mandar uma carta ao meu amigosecretário, pela qual o fazia ciente da resoluçãoque tomara de partir nesse mesmo dia paraBlefuscu, mediante a licença que me foraconcedida, e, sem aguardar resposta, dirigimepara a costa da ilha, onde estava a esquadra.Aposseime de um grande navio de guerra,
prendilhe um cabo à proa e, levantando asâncoras, despime, coloquei a roupa (e a mantaque trazia no braço) sobre o navio, que trouxeatrás de mim, e ora andando, ora nadando,cheguei ao porto real de Blefuscu, onde o povotanto tempo esperara por mim. Deramme doisguias para me levar à capital, que tem o mesmonome. Conserveios nas mãos até chegar a cemtoesas das portas da cidade e pedilhes queavisassem da minha chegada um dos secretáriosde Estado, e lhe fizessem saber que aguardava asordens de Sua Majestade. Como resposta recebi,uma hora depois, a notícia de que Sua Majestade,acompanhado de toda a comitiva, vinhareceberme. Adianteime cinqüenta toesas, e o rei ea comitiva apearamse de suas montadas; a rainhae suas aias saíram dos seus coches, e não noteique a minha presença os assustasse. Deiteime nochão para beijar as mãos do rei e da rainha. Dissea Sua Majestade que viera, cumprindo a minhapromessa e com licença do imperador meu amo,para ter a honra de visitar tão poderoso príncipe, epara lhe oferecer todos os serviços quedependessem de mim e que não fossem contráriosaos deveres contraídos com o meu soberano, semaludir, porém, ao meu desvalimento.
Não enfastiarei o leitor com os pormenores daminha recepção, que foi consoante à generosidadede tão grande príncipe, nem com os incômodos porque passei à míngua de uma casa ou de umacama, sendo obrigado a dormir no chãoembrulhado na minha manta.
CAPÍTULO VIII
O autor, por um feliz acaso, encontra meio de deixar Blefuscu e após algumasdificuldades volta à sua pátria.
Três dias depois da minha chegada, passeando eua minha curiosidade pela encosta da ilha que olhapara o nordeste, descobri, a meia légua dedistância no mar, qualquer coisa que me pareceuum barco, de quilha para o ar. Descalcei ossapatos e as meias e, caminhando pela água pertode cinqüenta toesas, reparei em que o objeto seaproximava com a força da maré e conheci entãoque era una escaler que, pelo que calculei, podiater sido desligado de um navio em virtude dealguma tempestade; por essa circunstância torneiapressadamente à cidade e pedi a Sua Majestadeque me cedesse vinte dos maiores navios, que lhehaviam ficado da derrota da sua esquadra, e trêsmil marinheiros, sob as ordens de umvicealmirante. Os citados navios fizeramse devela e seguiram o seu rumo, enquanto eu medirigia pelo caminho mais curto à encosta, ondeprimeiramente descobrira o escaler. Notei que amaré o tinha aproximado mais da terra. Quando osnavios se me juntaram, despime, metime na águae avancei até cinqüenta toesas do escaler, depoisdo que me vi obrigado a nadar até que o atingisse;os marinheiros lançaramme um cabo, no qualamarrei uma das extremidades a um buraco naproa do escaler e a outra extremidade a um naviode guerra; não pude, porém, continuar a minhaviagem, porque perdi o pé. Pusme então a nadaratrás do escaler e a empurrálo com uma dasmãos, de maneira que a favor da maré meencaminhei de tal modo para a margem, que pude
pôr o queixo fora da água e achar pé. Descanseidurante uns três minutos e, em seguida, impeliainda o escaler até que a água me desse pelasaxilas e então a maior fadiga já tinha passado;agarrei outros cabos trazidos num dos navios eligueios primeiramente ao escaler e depois a novedos navios que me esperavam; como o vento era defeição e os marinheiros me auxiliaram, procedi demaneira que chegássemos a vinte toesas damargem, e como o mar recuou, alcancei o escaler apé enxuto e, com o auxílio de dois mil homens, decordas e de máquinas, consegui virálo, notandoque poucas avarias tinha sofrido.
Levei dez dias para fazer entrar o escaler no portode Blefuscu, onde se acumulou grande multidão,cheia de pasmo pela presença de tão prodigiosaembarcação.
Disse ao rei que a minha boa estrela me fizeraencontrar aquele escaler para me transportar aqualquer outro ponto, de onde poderia regressar aomeu torrão natal, e pedi a Sua Majestade quedesse ordem para pôr aquela embarcação emestado de servir e me concedesse licença paraabandonar os seus Estados o que, após sentidasrecriminações, me foi concedido.
Estava eu sobremaneira surpreendido de que oimperador de Lilipute, depois da minha partida,não tivesse feito quaisquer diligências para meencontrar; soube, porém, que Sua Majestadeimperial, ignorando que eu fora conhecedor dosseus desígnios, imaginara que eu tinha ido aBlefuscu apenas com o intuito de cumprir a minhapromessa, conforme a licença que dele obtivera, eque regressaria em breve; mas, por fim, a minha
ausência deulhe cuidado e, tendo conferenciadocom o tesoureiro e o resto do conluio, foi enviadauma pessoa de distinção com uma cópia dosartigos do processo contra mim. O mensageirotinha instruções para representar ao soberano deBlefuscu a grande brandura de seu amo, que secontentava em punirme com a perda da minhavista; que me subtraíra à justiça e que, se eu nãoregressasse no prazo de dois dias, seria despojadodo meu título de nardac edeclarado réu de altatraição. O embaixador acrescentou que, paramanter a paz e a amizade entre os dois países,esperaria que o rei de Blefuscu desse ordem parame fazer reconduzir a Lilipute, ligado de pés emãos, para ser punido como traidor.
O rei de Blefuscu, tendo solicitado três dias paradeliberar sobre este assunto, enviou uma respostamuito sensata e muito prudente. Observou que,quanto a restituirme ligado, o imperador nãoignorava que isso era uma coisa impossível; que,embora eu lhe tivesse arrebatado a esquadra,estava muito reconhecido para comigo em virtudede alguns bons serviços que lhe prestara, comrelação ao tratado de paz; demais, que em breve severiam livres de mim, porque encontrara namargem um prodigioso navio capaz de me levarembarcado; que dera ordem para que opreparassem consoante às minhas indicações eaproveitando o meu auxílio, de maneira queesperava, no prazo de algumas semanas, que osdois países ficariam livres de tão insuportávelfardo.
O embaixador regressou a Lilipute com estaresposta, e o soberano de Blefuscu referiume tudo
o que se havia passado, oferecendome ao mesmotempo, mas em segredo e confidencialmente, a suagraciosa proteção, se quisesse ficar ao seu serviço.Ainda que acreditasse na sua sincera proposta,resolvi nunca mais entregarme nas mãos denenhum príncipe, nem de nenhum ministro,quando podia passar sem eles; esta a razão porque, depois de ter manifestado a Sua Majestade omeu justo reconhecimento pelas suas simpáticasintenções, pedilhe, humildemente, que me desselicença para me retirar, dizendolhe que, visto aboa ou má estrela me haver proporcionado umbarco, decidira me entregar ao oceano, antes deque houvesse rompimento de hostilidades entreaqueles dois poderosos soberanos. O rei não semostrou ofendido com este meu discurso, e soubemesmo que bastante contente tinha ficado com aminha decisão, e bem assim a mor parte dos seusministros.
Estas considerações levaramme a partir um poucomais cedo do que projetara, e a corte, que anelavapela minha saída, contribuiu para isso comsolicitude. Quinhentos operários foramempregados no fabrico de duas velas para o meubarco, segundo as ordens, dobrandose em treze omais grosso tecido que havia lá, e acolchoandoo.Entregueime à tarefa de fazer cordas e cabos,juntando dez, vinte ou trinta dos mais fortes queeles tinham. Uma grande pedra, que tive a sorte deencontrar perto da praia, após aturadas pesquisas,serviume de âncora; e gordura de trezentos boisserviume para encebar o meu escaler e paraoutros usos. Tive um trabalho insano em cortar asmaiores árvores para fazer remos e mastros, noque, contudo, fui auxiliado pelos carpinteiros dos
navios de Sua Majestade.
Decorrido perto de um mês, quando tudo estava apostos, fui ter com o rei para receber as suasordens e, simultaneamente, fazer as minhasdespedidas. O rei, acompanhado da família e corte,saiu do palácio. Deiteime de bruços para ter ahonra de lhe beijar a mão, que me estendeu muitograciosamente, assim como a rainha e os jovenspríncipes. Sua Majestade presenteoume comcinqüenta bolsas contendo duzentos spruggs cadauma, com o seu retrato em tamanho natural, quemeti logo nas minhas luvas para não seestragarem.
Embarquei a bordo do escaler cem bois e trezentoscarneiros, com pão e bebidas em proporção e certaquantidade de carne cozida, tanta quanto osquatrocentos cozinheiros me haviam podidofornecer. Tratei de obter seis vacas e seis tourosvivos, e igual número de ovelhas e cordeiros, com ofito de os levar ao meu país, para fazer procriar aespécie; fornecime também de feno e trigo. Não mefaltou vontade de levar comigo seis naturais dopaís, mas o rei não consentiu, e, além de mepassarem uma minuciosa busca às algibeiras, SuaMajestade fezme dar a minha palavra de honra deque não levaria nenhum dos seus súditos, aindaque consentissem nisso ou mo pedissem.
Preparadas as coisas deste modo, fizme ao mar novigésimo quarto dia de Setembro de 1701, pelasseis horas da manhã, e, depois de ter navegadoquatro léguas para o norte, notei que estava ovento de sudoeste; às seis da tarde descortineiuma ilhota que se prolongava aproximadamentemeia légua para o nordeste. Segui avante e lancei
ferro do lado da costa da ilhota, que estavaabrigada do vento e me pareceu desabitada. Bebialguns refrescos e fui descansar. Dormi perto deseis horas, porque o dia começou a despontar duashoras depois de eu ter acordado. Almocei, e, comoo vento estava de feição, levantei ferro e segui omesmo rumo do dia anterior, guiado pela minhaagulha portátil. Era meu desígnio, caso me fossepossível, aproar a uma das ilhas que, com razão,supunha situadas ao nordeste da terra de VanDiemen.
Nesse dia nada descobri; mas no imediato, pelastrês horas da tarde, depois de ter navegado,segundo os meus cálculos, perto de vinte e quatroléguas, enxerguei um navio que se dirigia para osudoeste. Larguei o pano todo e, ao cabo de meiahora, o navio, que me tinha avistado, arvorou oseu pavilhão e disparou um tiro de canhão. Édifícil patentear a alegria que experimentei com aesperança de tornar a ver novamente o meu país eos queridos entes que lá deixara. O navio ferrou asvelas e veio ao meu encontro, das cinco para asseis horas da tarde de 26 de Setembro. Fiqueilouco de contentamento ao ver o pavilhão inglês.Meti as vacas e os carneiros na algibeira do gibão esubi para bordo com a minha pequena carga devíveres. Era um navio mercante inglês, queregressava do Japão pelos mares do norte e do sul,comandado pelo capitão João Bidell, de Depford,honrado homem e excelente marinheiro.
Havia a bordo perto de cinqüenta homens, entre osquais encontrei um antigo camarada meu, PedroWilliams, que falou elogiosamente de mim aocapitão. Esta boa criatura proporcionoume
magnífico acolhimento e pediume que lhe dissessede onde vinha e para onde me dirigia, o que fiz empoucas palavras; julgou, porém, que a fadiga e osperigos que eu tinha corrido me haviamtranstornado a cabeça, pelo que tirei logo daalgibeira as vacas e os carneiros, o que deu lugar auma grande admiração de seu lado, provada,assim, a veracidade do que acabava de narrar.Mostreilhe as moedas de ouro, que me dera o reide Blefuscu, e bem assim o retrato em tamanhonatural e muitas outras curiosidades do país.Deilhe duas bolsas com duzentos spruggs eprometi que, chegando à Inglaterra, lhe fariapresente de uma vaca e de uma ovelha prenhes.
Não importunarei o leitor com os pormenores daminha viagem; aproámos às Dunas em 13 de Abrilde 1702. Uma única fatalidade me aconteceu: osratos do navio arrebataramme uma das ovelhas.Desembarquei o resto do meu gado com excelentesaúde e solteio a pastar no canteiro de um jardim,onde se jogava bola, em Greenwich.
Durante o pouco tempo que me deixei ficar emInglaterra, amealhei um razoável pecúlio emmostrar os meus animais a várias pessoas deimportância e até à gente do povo, e, antes deempreender a minha segunda viagem, desfizmedeles por seiscentas libras esterlinas. Após o meuúltimo regresso, em vão procurei a raça quejulgava consideravelmente aumentada,principalmente os carneiros; esperava que tudoaquilo revertesse em favor das nossas manufaturasde lã pela finura dos velos.
Piquei apenas dois meses em companhia de minhamulher e dos meus: a insaciável paixão de ver
terras estranhas não consentia que estivesse muitotempo sedentário. Entreguei a minha mulher mil equinhentas libras esterlinas e alojeia numa belacasa em Redriff; levei comigo o resto dos meusbens, uma parte em dinheiro e outra emmercadorias, com o intuito de aumentálos. Meutio John deixarame umas terras perto de Epping,que rendiam trinta libras esterlinas e eu alugara alongo prazo os Touros Negros, em Fotherlane, queme davam o mesmo rendimento. Por este processo,não corria o risco de deixar minha família nanecessidade de recorrer à caridade da paróquia.Meu filho John, a quem dei o nome de meu tio,aprendia latim e freqüentava o colégio; minha filhaIsabel, casada atualmente e com filhos,consagravase ao trabalho de agulha. Despedimede minha mulher e de meus filhos e, apesar debastantes lágrimas choradas de parte a parte,embarquei corajosamente a bordo do Àventura, navio mercante, de trezentas toneladas,comandado pelo capitão João Nicolau. deLiverpool.
Segunda Parte
VIAGEM A BROBDINGNAG
CAPÍTULO I
O autor, depois de haver suportado um grande temporal, embarca numescaler para se dirigir à terra e é agarrado por um dos seus naturais — Como
foi tratado — Esboço sobre o país e o seu povo.
TENDO sido condenado pela natureza e pelafortuna a uma agitada existência, dois mesesdepois da minha chegada, como já referi, tornei adeixar a minha terra natal e embarquei nas Dunas,em 20 de Junho de 1702, a bordo do navio Àventura, cujo capitão, João Nicolau, da provínciade Cornualha, partia para Surate. Tivemos ventofavorável até às alturas do Cabo da BoaEsperança, onde lançámos ferro para fazer aguada.Encontrandose o nosso capitão atacado de umafebre intermitente, só pudemos sair do Cabo emfins de Março. Tornámos então a fazernos de velae a nossa viagem decorreu bem até o estreito deMadagascar; chegando, porém, ao norte desta ilha,os ventos, que nesses mares sopram sempre entrenorte e oeste, desde o princípio de Dezembro atéprincípio de Maio, começaram em 29 de Abril asoprar muito violentamente do lado de oeste, o quedurou vinte dias seguidos, e nesse prazo fomosimpelidos um pouco para o oriente das ilhasMolucas sobre três graus ao norte da linhaequinocial, o que o nosso capitão descobriu pelocálculo feito no segundo dia de Maio, quando ovento amainou; sendo, porém, muitoexperimentado na navegação desses mares,deunos ordem para nos prepararmos para sofreruma terrível tempestade, que não tardou a sedesencadear. Principiou a levantarse um pé devento chamado monção. Temendo que o vento setornasse demasiadamente forte, ferrámos a vela deestai e pusemonos de capa para ferrar a mezena;o temporal, porém, aumentava, e fizemos amarraros canhões e ferrámos a mezena. O navio estava aolargo, e pareceunos que o melhor partido a tomarera ir de vento em popa. Amarrámos a mezena eesticámos as escotas; o leme estava voltado ao
vento e o navio governava bem. Largámos a velagrande, mas ficou rasgada com a violência dotemporal. Em seguida, arriámos a grande verga, afim de a desmantilhar e cortámos todas ascordagens e o cadernal que a segurava. No marencapelado as vagas entrechocavamse. Tirámos asmalaguetas e ajudámos o timoneiro, que não podiagovernar só. Não quisemos arriar o mastro dagávea, porque o navio aguentavase melhorcorrendo com o tempo e estávamos persuadidos deque prosseguiria o seu rumo mesmo com o mastroiçado.
Vendo que nos encontrávamos muito ao largodepois da tempestade, largámos a mezena e a velagrande e navegámos com vento da alheta; emseguida largámos o velacho, a vela de estai e agávea. O nosso rumo era estenordeste, e o ventoera de sudoeste. Amarrámos a estibordo edesamarrámos de barlavento, braceámos asbolinas e pusemos o navio mais perto do vento, atodo o pano. Durante este temporal, que foiseguido desse impetuoso vento, de estesudoeste,fomos impelidos, segundo os meus cálculos, paraquinhentas léguas aproximadamente para oOriente, de modo que o mais velho e o maisexperimentado dos marinheiros não nos soubedizer em que parte do mundo estávamos.Entretanto, os nossos víveres não faltavam, o navionão abrira água e a nossa tripulação gozava boasaúde; a ração de água, porém, era muitodiminuta. Pareceunos, pois, mais convenientecontinuar a mesma rota, em vez de voltarmos aonorte, o que talvez nos tivesse levado até àsparagens da Grande Tartária que ficam mais paranordeste e no mar Glacial.
A 16 de Junho de 1703, um gageiro descobriuterra do alto do joanete; a 17, vimos claramenteuma grande ilha ou um continente, (pois nãosoubemos qual das duas coisas era), ao ladodireito do qual havia uma pequena língua de terra,que entrava pelo mar e uma enseada demasiadobaixa para poder receber um navio com mais decem toneladas. Lançámos ferro a uma légua dessaenseada; o nosso capitão mandou doze homens dasua equipagem bem armados na chalupa, comrecipientes para água, caso pudessem encontrar.Pedilhe licença para os acompanhar a esse país efazer as descobertas que pudesse. Quandodesembarcámos, não encontrámos nem ribeira,nem fontes, nem vestígio algum de habitantes, oque forçou nossa gente a costear a margem paraprocurar água doce junto do mar. Quanto a mim,passeei só e caminhei aproximadamente umamilha dentro dessas terras, que percebi logo seremapenas uma região estéril e cheia de rochedos.Principiei a aborrecerme, e, não vendo coisaalguma que pudesse satisfazer a minhacuriosidade, tornei tranqüilamente para a enseada,quando vi os nossos homens na chalupa, quepareciam tentar, à força de remos, salvar a vida, enotei ao mesmo tempo que eram perseguidos porum homem de tamanho descomunal. Ainda queentrasse pelo mar dentro, a água apenas lhechegava aos joelhos e dava espantosas pernadas;os nossos homens, porém, tinham o avanço dequase meia légua e como o mar neste ponto eracheio de rochedos, o homenzarrão não pôdealcançar a chalupa. Por minha parte, desatei afugir tão rapidamente quanto as pernas mopermitiam, e trepei até ao cume de uma escarpadamontanha, que me proporcionou o meio de avistar
uma parte da região. Acheia muito bem cultivada;mas o que a princípio me surpreendeu foi otamanho da erva, que me pareceu ter mais de vintepés de altura.
Tomei por uma estrada que se me afigurou para oshabitantes uma pequena vereda que atravessavaum campo de cevada. Por aí caminhei durantealgum tempo, mas eu nada podia ver, porque otempo da ceifa estava próximo e os trigos tinham aaltura de quarenta pés. Caminhei seguramenteuma hora antes de que conseguisse chegar aoextremo desse campo, que era defendido por umasebe alta, de uns cento e vinte pés; quanto àsárvores, essas eram tão grandes, que não lhespude calcular a altura.
Tentei encontrar alguma abertura na sebe, quandoenxerguei um dos habitantes em um campopróximo, do mesmo tamanho daquele que vira nomar perseguindo a chalupa. Afigurouseme tãoalto como um campanário vulgar, e cada pernadaocupava o espaço de cinco toesas. Fui tomado degrande terror e corri a ocultarme no trigo, de ondeo vi parar junto de uma abertura da sebe,lançando a vista para um e outro lado e chamandocom uma fortíssima e ressonante voz, como separtisse de um portavoz; o som era tão forte e tãoelevado, que a princípio julguei ser um trovão.Logo sete homens da sua estatura seencaminharam para ele, todos de foicinhaempunhada e cada foicinha era do tamanho deseis foices das usadas na Europa. Estes homensnão estavam tão bem vestidos como o primeiro epareciam criados. Apenas receberam ordem,dirigiramse para o campo em que eu estava, para
ceifar o trigo. Afasteime deles o mais que foipossível; mas moviame com extrema dificuldade,porque os colmos de trigo eram algumas vezesmuito distantes uns dos outros, de maneira quequase se me tornava impossível caminhar naquelaespécie de mata. Contudo, dirigime para um sítiodo campo, onde a chuva e o vento tinham acamadoo trigo; foime, então, totalmente impossível ir maisalém, porque os caules estavam tão entrelaçados,que não havia meio de atravessálos e as barbasdas espigas caídas eram tão fortes e tão agudas,que me picavam através da veste, penetrandomena carne. Entretanto, percebi que os ceifadoresdistavam de mim umas cinqüenta toesas.Sentindome completamente exausto e reduzido aodesespero, deiteime entre dois sulcos e desejava aíacabar os meus dias, representandoseme aminha viúva desolada, com meus filhos órfãos edeplorando a minha loucura, que me fizeraempreender essa segunda viagem contra a vontadede todos os meus amigos e parentes.
Nesta terrível agitação, não podia deixar de pensarno país de Lilipute, cujos habitantes me haviamconsiderado como o maior prodígio que até entãoaparecera no mundo, onde era capaz de arrastarsó com uma das mãos toda uma esquadra e depraticar outras ações maravilhosas, cuja memóriaserá eternamente conservada nas crônicas daqueleimpério, embora a posteridade não queiraacreditar, ainda que confirmadas por uma naçãointeira. Refleti que mortificação não seria para mimparecer tão miserável aos olhos da nação, ondeagora me encontrava, como o seria um liliputianoentre nós; no entanto, olhava isto como a menordas minhas fatalidades, porque é coisa para notar
que os entes humanos são ordinariamente maisselvagens e mais cruéis em proporção ao seutamanho e, assim refletindo, que podia eu esperarsenão ser um manjar na boca do primeiro daquelesenormes bárbaros que me apanhasse? De fato, osfilósofos têm razão, quando dizem que não hágrande nem pequeno senão por comparação.Talvez os Liliputianos encontrassem alguma naçãomenor em relação a eles, como me pareceram, equem sabe se esta prodigiosa raça de mortais nãoseria uma nação liliputiana em relação à dequalquer outro país, que não descobrimos ainda?Mas, aterrado e confuso, como estava, não fizentão todas estas observações filosóficas.
Um dos ceifeiros, acercandose a cinco toesas dosulco em que estava deitado, fezme recear que,dando mais um passo, me esmagasse com o pé oume cortasse em dois com a foicinha; foi por issoque, vendoo prestes a levantar o pé e a caminhar,comecei a soltar gritos de piedade tão fortes quantoo terror de que estava possuído me consentiu.Consideroume algum tempo com a circunspeçãode um homem que tenta agarrar um pequenoanimal perigoso, de forma que não seja arranhadonem mordido, como eu próprio fizera algumasvezes na Inglaterra com respeito a uma doninha.Por fim, ousou tomarme pelas nádegas eergueume a toesa e meia da sua vista, a fim deexaminar o meu rosto mais atentamente.Adivinheilhe a intenção e resolvi não fazer amenor resistência, enquanto ele me suspendia noar a mais de sessenta pés do chão, ainda que meapertasse cruelmente as nádegas, receando quelhe escorregasse por entre os dedos. Tudo o queousei fazer foi limitarme a olhar para o céu, e pôr
as mãos em atitude suplicante e a proferir algumaspalavras num tom muito humilde e muito triste,em conformidade com o estado em que meencontrava então, porque a todo o momento mearreceava de que me quisesse esmagar, como deordinário esmagamos certos animaizinhosdaninhos que queremos matar; ele, no entanto,pareceu contente com a minha voz e os meusgestos e principiou a olharme como um objetocurioso, ficando bastante surpreendidoouvindome falar.
Entretanto, não podia deixar de gemer e de chorar,e, voltando a cabeça, fazialhe perceber, tantoquanto podia, quanto me magoava o seu índice e opolegar. Pareceu ter compreendido a dor que eusentia, porque, erguendo uma aba do seu gibão,me colocou carinhosamente dentro dela e correulogo ao amo, que era o único lavrador, o mesmoque eu tinha visto no campo havia pouco.
O lavrador pegou em um pedacinho de palhaquase da grossura de uma bengala de uso comum,e com essa palhinha ergueu as abas do meucasaco, tomandoas, pelo que me pareceu, poruma espécie de cobertura com que a Natureza medotara; soprou os cabelos para melhor me ver orosto; chamou os criados, perguntoulhes, segundosupus, se já alguma vez tinham visto algum animalparecido comigo. Depois, colocoume com amáxima cautela no chão com as quatro patas, maseu me levantei logo e caminhei com gravidade, deum lado para o outro, para dar a entender que nãotinha em mente fugir. Sentaramse todos em voltade mim, para melhor examinar os meusmovimentos. Tirei o chapéu e cumprimentei mui
submissamente o lavrador, lanceime a seus pés,levantei as mãos e a cabeça, e proferi algumaspalavras o mais fortemente que pude. Tirei daalgibeira uma bolsa cheia de ouro e apresenteilhahumildemente. Recebeua na palma da mão echegoua muito perto dos olhos para ver o que erae em seguida viroua e reviroua com a ponta deum alfinete que tirou da manga, mas nadapercebeu. Nisto, fizlhe sinal para que pusesse amão no chão e, tomando a bolsa, abria e espalheitodas as moedas de ouro na sua mão. Tinha seismoedas espanholas de quatro pistolas cada uma,sem contar umas trinta moedas menores. Viomolhar o dedo mínimo na língua e levantar umadas moedas maiores e logo outra; pareceume,porém, ignorar completamente o que era;indiqueilhe que as tornasse a guardar na bolsa eque a metesse na minha algibeira.
O lavrador ficou então persuadido de que eu erauma criatura pensante; dirigiume a palavra amiúdo, mas o timbre da sua voz aturdiame osouvidos como se fora uma azenha; no entanto, aspalavras eram claras. Respondi o mais alto quepude em várias línguas e muitas vezes aplicou oouvido a uma toesa de mim, mas em vão. Depois,mandou a sua gente voltar para o seu trabalho, e,puxando pelo lenço, dobrouo em dois e colocouona mão esquerda que pusera no chão, fazendomesinal para que saltasse para dentro, o que pudefazer com facilidade, porque não tinha mais queum pé de espessura. Pareceume dever obedecer e,receando cair, deiteime ao comprido no lenço, emque me envolvi e, por essa maneira, fui levado atéà sua casa. Aí, chamou a mulher e apresentouma;ela, porém, soltou horríveis gritos e recuou como
fazem as mulheres em Inglaterra ao ver um sapoou uma aranha. Entretanto, quando, ao cabo decerto tempo, reparou em todos os meus modos eem como eu compreendia os sinais que o maridome fazia, começou a tratarme com mais ternura.
Estava próximo o meiodia e então um criado pôs ojantar na mesa. A refeição era, conforme o usocomum do lavrador, constituída de carne cozidadentro de um prato com o diâmetro aproximado devinte e quatro pés. A família compunhase dolavrador, da mulher, de três filhos e de uma velhaavó. Assim que se sentaram, o dono da casacolocoume a pequena distância dele, em cima damesa que tinha uns trinta pés de altura.Coloqueime o mais afastado possível do rebordo,com medo de dar uma queda. A mulher cortou umbocado de carne, em seguida pão em um prato demadeira que pôs diante de mim. Fizlhe umareverência muito humilde e, fazendo uso do meugarfo e da minha faca, comecei a comer, o que lhescausou grande satisfação. A dona da casa mandoua criada buscar um pequeno cálice que tinhacapacidade para dez canadas; depois, encheuo deum líquido. Ergui o cálice com grande dificuldadee, com um modo muito respeitoso, bebi à saúdedela, exprimindome em inglês o mais alto que mefoi possível, o que fez com que os assistentesdessem tão grandes gargalhadas que quase fiqueisurdo. Este líquido tinha um pouco o sabor dacidra e não era desagradável. O lavrador fezmesinal para que me colocasse ao lado do seu pratode madeira; mas, caminhando muito depressa,tropecei numa côdea de pão e caí de bruços, semque, contudo, me magoasse. Levanteime logo,notando que aquela boa gente estava muito
contristada, agarrei o meu chapéu e, fazendoovoltear sobre a cabeça umas poucas de vezes,soltei três vivas para provar que não tinha sofridodano algum; ao encaminharme, porém, para omeu amo, (este é o nome que doravante lhe voudar), o filho mais novo, que estava sentado maisperto dele, e que era maldoso, tendo pouco mais oumenos dez anos, agarroume pelas pernas elevantoume a tamanha altura, que todo euestremeci. O pai livroume das suas mãos e aomesmo tempo assobioulhe com tanta força oouvido esquerdo, que seria capaz de deitar abaixoum regimento de cavalaria européia, e mandouosair da mesa; temendo, porém, que o pequeno meficasse com zanga, pois sei bem o que são rapazes,sempre maus e prontos a fazer perversidades aaves, a gatos, a cães e a coelhos, lanceime dejoelhos e pedi instantemente ao pai, indicandolheo filho, que o desculpasse. O pai acedeu e orapazinho retornou a seu lugar; então, dirigimepara ele e beijeilhe a mão.
A meio do jantar, o gato favorito da minha amasaltoulhe para o colo. Ouvi atrás de mim um ruídosemelhante ao de doze fabricantes de meiastrabalhando, e, voltando a cabeça, notei que era ogato que miava. Pareceume três vezes maior doque um boi, quando lhe examinei a cabeça e umadas patas, enquanto a ama lhe dava de comer e lhefazia festas. A ferocidade do focinho deste animaldesconcertoume completamente, embora estivessea respeitável distância da mesa, a uns cinqüentapés pelo menos, e embora a minha ama segurasseo bichano com medo que me saltasse; mas nãohouve novidade e o gato poupoume.
Meu amo postoume a toesa e meia do gato e comosei que, sempre que se foge de um animal feroz ouse mostra medo, o animal perseguenosinfalivelmente, resolvi portarme convenientementejunto do bichano e andei resolutamente umasdezoito polegadas, o que o fez recuar como setivesse medo de mim. Os cães não me assustaramtanto. Entraram uns quatro, e, entre eles, ummastim do tamanho de quatro elefantes e um galgomais alto, mas menos corpulento.
Ao fim do jantar, entrou a ama de leite, trazendoao colo uma criança de um ano que, assim que meviu, soltou gritos tão fortes, que não me custavanada acreditar se ouvissem da ponte de Londresaté Chelsea. A criança, olhandome como se foraum boneco ou uma bugiganga, chorava, porque mequeria para brinquedo. A mãe pegou em mim eentregoume nas mãos da criança, que me levou àboca; ao verme em tal situação, dei tamanhosgritos, que a criança, assustada, deixoume cair, eteria infalivelmente quebrado a cabeça se a mãenão me aparasse no avental. A ama, para sossegaro pequeno, deulhe um guizo do tamanho de umapipa, cheio de pedregulhos, e preso, por meio deuma corda, à cintura do pimpolho. Isso porém nãoo sossegou, tendo a ama de recorrer ao extremoremédio e que foi darlhe de mamar. Forçoso éconfessar que nunca vi coisa que mais nojo mecausasse do que os peitos da citada ama, nãosabendo mesmo a que possa comparálos.
Isto fezme lembrar os peitos das damas inglesas,que tão encantadores são e que nos aparecem taiscomo são, porque são proporcionais à nossa vista eà nossa estatura; entretanto, o microscópio,
aumentandoos, faznos aparecer muitos sítios,que escapam à vista desarmada, tornandoosextremamente feios. Pois os peitos da amaobedeciam a estas regras. Assim foi que, emLilipute, uma mulher me dizia que lhe pareciamuito feio, que descobria na minha pele grandesburacos, que os pêlos da barba eram dez vezesmais ásperos do que as cerdas do porco e a minhatez, composta de diversas cores, não podia sermais desagradável, ainda que seja louro e passepor possuir uma bonita carnação.
Depois do jantar, meu amo mandou chamar osceifeiros e, pelo que lhe percebi pela voz e pelosgestos, encarregou a mulher de ter grande cuidadocomigo. Sentiame bastante cansado e com grandevontade de dormir; percebendo isso, minha amameteume na sua cama e tapoume com um lençobranco, mas muito mais largo do que a vela de umnavio.
Dormi duas horas e sonhei que estava em casa aolado de minha mulher e de meus filhos, o quetornou maior a minha aflição quando, ao acordar,me encontrei só num enorme quarto de duzentos atrezentos pés de comprido por duzentos de alto edeitado numa cama com a largura de dez toesas.Minha ama saíra para tratar dos serviços da casa etinhame deixado fechado. A cama ficava à alturade quatro toesas do chão; contudo, certasnecessidades naturais forçavamme a descer, e nãome atrevi a chamar; embora o tentasse, seria emvão, pois uma voz como a minha, e estando a tãogrande distância, como a que havia do quarto emque eu estava, à cozinha, onde se encontrava afamília, não era fácil de ouvir. Entretanto, dois
ratos treparam ao longo dos cortinados edesataram a correr pela cama; um aproximouseda minha cara e tão assustado fiquei, que melevantei logo empunhando um sabre para medefender. Estes terríveis animais tiveram ainsolência de me atacar por dois lados, mas furei abarriga de um, enquanto o outro fugiu. Após essefeito, deiteime para descansar um pouco e tornara mim. Estes animais eram do tamanho de um cãode fila, mas infinitamente mais ágeis e maisferozes, de maneira que, se tivesse tirado ocinturão e posto debaixo de mim antes de medeitar, teria sido infalivelmente devorado pelosratos.
Pouco depois, a minha ama entrou no quarto e,vendome cheio de sangue, pegou em mim.Aponteilhe o rato morto, sorrindo e fazendo outrossinais, dandolhe a entender que não estava ferido,o que lhe causou certa alegria. Tentei fazerlhecompreender que desejava muito ir para o chão, oque ela fez, mas o acanhamento não me permitiuexprimir de outra maneira, que não fosseapontando para a porta e fazendo muitas mesuras.A bondosa mulher percebeu, ainda que com certadificuldade, e, tomandome pela mão, levoume atéao jardim, onde me deixou. Afastandome umascem toesas e, fazendo sinal para que me nãoolhasse, oculteime entre duas folhas de azedas eaí fiz o que o leitor facilmente adivinhará.
CAPÍTULO II
Retrato da filha do lavrador — O autor é levado a uma cidade onde havia umafeira, e, em seguida, à capital — Pormenores da sua viagem.
A citada senhora tinha uma filha de nove anos,criança muito inteligente e esperta para a suaidade. A mãe de combinação com ela, lembrousede me preparar, para passar a noite, a cama daboneca, antes que anoitecesse. Meteram a referidacama numa gaveta da mesinha de cabeceira ecolocaram esta gaveta em cima de uma prateleira,suspensa na parede, por causa dos ratos; e foiessa a cama em que dormi durante a minhapermanência em casa de tão bondosas criaturas.Era tão hábil esta pequena, que, depois de mevestir e despirme diante dela umas duas vezes,soube vestirme e despirme, quando lhe aprazia,embora fosse só por obediência, que lhe eu davasemelhante trabalho; fezme seis camisas e outrasespécies de roupa branca, do mais fino pano quefora possível encontrarse, (e que, em boa verdade,era muito mais grosso do que o tecido para velasde navio), e ela própria as lavava. A minhalavadeira armarase também em professora,ensinandome o idioma do seu país. Quando euapontava para qualquer coisa, diziame logo onome que tinha, de maneira que, dentro em pouco,fiquei apto para pedir o que queria; era de muitoboa índole; deume o nome de Grildrig, palavra quesignifica aquilo a que os Latinoschamam homúnculos, os italianoshomunceletino eos ingleses manikin. É a ela que devo aconservação da minha existência. Estávamossempre juntos; eu chamavalhe Glumdalclitch, oumestrazinha, e seria um indício de negraingratidão se alguma vez esquecesse os cuidados ea afeição que me proporcionava. De todo o coração,desejo que um dia esteja em condições de
retribuílos, em lugar de ser talvez a inocente, masfunesta, causa da sua desventura, como tiveocasião de verificar.
Corria então por todo o país que o meu amoencontrara no campo um animal, do tamanho de,talvez, um splacnuck(animal da região que deviater seis pés) e com a mesma configuração de umente humano; que imitava o homem nas suasmenores ações e parecia falar uma espécie delinguagem, que lhes era própria; que já aprenderamuitos vocábulos do idioma deles; que caminhavadireito sobre os dois pés, era dócil e tratável,acudia logo que o chamavam, fazia tudo quantolhe ordenavam, tinha os membros delicados e umatez mais branca e mais fina do que a filha de umfidalgo aos três anos de idade. Um lavrador, seuvizinho e seu íntimo amigo, veio fazerlhe umavisita para verificar a veracidade do boato quecorrera. Mandaramme logo chamar; colocarammeem cima da mesa, por onde caminhei, como meordenavam. Desembainhei e embainhei a espada;cumprimentei o amigo do meu amo; pergunteilhe,na língua do seu país, como ia de saúde, deilhe asboas vindas, enfim, segui todas as indicações daminha pequena professora. Este homem, a quem aavançada idade cansara a vista, pôs os óculos parame ver melhor; essa ação fezme soltar uma grandegargalhada. As pessoas da família, quedescobriram o motivo da minha alegria, tambémdesataram a rir; o alvejado, porém, era tão gebo etão palerma, que não se melindrou com isso. Tinhaa aparência de um avarento e isso foi confirmadopelo estúpido conselho que deu a meu amo, paraque me fizesse ver por dinheiro em qualquer dia defeira, na cidade próxima, afastada da nossa casa
mais de vinte e duas milhas. Pareceume quefalavam a meu respeito, pois o faziam em segredo,durante algum tempo, e outras vezes olhavam paramim e apontavamme.
No dia seguinte, de manhã, Glumdalclitch, a minhajuvenil ama, confirmou as minhas suspeitas,contandome toda a conversa que tivera com amãe. A pobre pequena meteume no seio ebastantes lágrimas chorou; receava que meacontecesse algum mal; que me pisassem, meestropeassem, ou, talvez, homens rústicos ebrutais me esmagassem, quando me segurassem.Como notasse que era de índole modesto e muitodelicado em tudo quanto respeitava à minhahonra, apoquentavase por me ver exposto pordinheiro à curiosidade do mais baixo povo; diziaque o pai e a mãe lhe tinham prometidoque Grildrig seria tudo para ela, porém que viaperfeitamente que queriam enganála, como no anoanterior lhe haviam feito, quando lhe fingiram darum cordeiro, que, tornado carneiro, foi vendido aum magarefe. Quanto a mim, posso dizêlo comverdade, senti menos pesar do que a minhapequena dona. Concebi grandes esperanças, quenunca me abandonaram, de que um diarecuperaria a liberdade e, com respeito à ignomíniade ser transportado de um lado para o outro, comoanimal raro, pensei que tal desgraça nunca poderiaser repreensível e não atingiria a minha honra,quando chegasse à Inglaterra, porque o próprio reida GrãBretanha, se estivesse em idênticascircunstâncias, teria a mesma sorte.
Meu amo, conforme a opinião do amigo, meteumeem um caixote e, no dia da feira, conduziume
para a cidade próxima com a filha. O caixote eratodo tapado e apenas tinha alguns buracos paradeixar entrar o ar. A minha amiguinha tinha tido ocuidado de colocar debaixo de mim o colchão dacama da sua boneca; entrementes, fui rudementesacudido durante a viagem, que, no entanto, foiapenas de meia hora. O cavalo andava quarentapés aproximadamente cada passo, e trotava de talmaneira, que a oscilação era a mesma de um naviopor ocasião de temporal; o caminho era um poucomais comprido do que de Londres a SaintAlbans.O meu dono apeouse do cavalo numa estalagem,onde costumava ficar e, depois de conversar umpouco com o estalajadeiro e fazer algunspreparativos necessários, alugou um grultred, oupregoeiro público, para chamar a atenção de toda acidade para um animal raro, que se poderia ver porindicação da ÁguiaVerde, que era menor do queum splacnuck e parecido, em todas as partes doseu corpo, com uma criatura humana, que podiapronunciar muitas palavras e fazer uma infinidadede frases retumbantes.
Fui colocado sobre uma mesa na maior sala daestalagem, que tinha quase trezentos pésquadrados. A minha pequena dona mantinhase depé em um tamborete muito perto da mesa, paratomar conta de mim e darme instruções sobre oque deveria fazer. O meu dono, para evitar amultidão e a desordem, não consentiu queentrassem mais de trinta pessoas de cada vez parame verem. Andei por um lado e outro em cima damesa, seguindo as indicações da menina.Dirigiume algumas perguntas, que tinhamresposta ao meu alcance e respondi o melhor e omais alto que me foi possível. Volteime várias
vezes para todos os circunstantes e fiz milcumprimentos. Tomei um dedal cheio de vinho,que Glumdalclitch me dera como copo, e bebi à suasaúde. Desembainhei a espada e fiz o molinete àmaneira dos esgrimistas de Inglaterra. A minhadona deume uma haste de palha, fazendoexercícios nela como funâmbulo, que aprendera naminha meninice. Nesse dia, fui mostrado durantedoze vezes e obrigado a repetir sempre a mesmacoisa, até que estivesse quase morto de fadiga, deaborrecimento e de desgosto.
Aqueles que me viram fizeram tais referências ameu respeito, que o povo quis forçar as portas paraentrar.
Meu amo, tendo em vista os seus própriosinteresses, não deixou que pessoa alguma metocasse, salvo a filha, e, para me colocar mais aoabrigo de qualquer acidente, enfileirara bancos emvolta da mesa, a uma distância que me punha forado alcance do espectador. No entanto, um pequenoe mau estudante arremessoume à cabeça umanoz, e por pouco que me não alcança; foiarremessada com tanta força que, se o golpe lhenão falhava, termeia feito saltar os miolos, poisera quase tão grande como um melão; tive, porém,o prazer de ver que o estudantinho foi posto forada sala.
Meu amo fez anunciar que, no dia seguinte, haviaainda de mostrarme; entretanto, arranjarammeum modo de condução mais cômodo, visto queficara derreadíssimo com a primeira viagem, e como espetáculo que dera durante oito horasconsecutivas não me podia ter nas pernas e quaseestava sem voz. Para concluir, quando estava de
volta, os fidalgos das vizinhanças, ouvindo falar demim, foram ter à casa do meu amo. Houve um diaem que apareceram mais de trinta com asmulheres e os filhos, porque nesse país, assimcomo na Inglaterra, há muitos fidalgos ociosos emandriões.
Meu amo, vendo o proveito que podia tirar de mim,resolveu deixarme ver nas mais importantescidades do reino. Tendose fornecido das coisasmais necessárias para uma viagem longa, depoisde ter regulado os seus negócios particulares, e dese haver despedido da mulher, a 17 de Agosto de1703, aproximadamente dois meses depois daminha chegada, partimos em direção à capital,situada no centro deste império, a quinhentasléguas de distância da nossa moradia. Meu amofez sentar a filha na garupa, por detrás dele.Levoume em uma caixa presa em volta do corpo,metida no pano mais fino que ela pôde encontrar.
A vontade de meu amo era fazerme ver pelocaminho, em todas as cidades, vilas e aldeias umpouco importantes, e percorrer até os solares danobreza que pouco o desviassem do seu caminho.Fizemos jornadas pequenas, apenas de oitenta oucem léguas, porque Glumdalclitch, de propósito,para me evitar fadiga, queixouse de que já estavamoída com o andamento do cavalo. Muitas vezesme tirava da caixa para tomar um pouco de ar.Atravessamos uns seis rios mais largos e maisprofundos que o Nilo e o Ganges, e quase nãohavia ribeiro que não fosse maior do que o Tâmisana ponte de Londres. Demorámonos três semanasnessa viagem e fui exibido em dezoito grandescidades, sem contar várias aldeias e muitos solares
de província.
Ao vigésimo sexto dia de Outubro, chegámos àcapital, chamada na sua língua Lorbrulgrud ouo Orgulho do Universo.Meu amo alugou umaposento na principal rua da cidade, poucoafastado do palácio real, e distribuiu, conformecostumava, programas, contendo uma minuciosa eatraente descrição da minha pessoa e das minhashabilidades. Alugou uma grande sala de trezentosa quatrocentos pés de largura, onde colocou umamesa com sessenta pés de diâmetro, em cima daqual eu devia desempenhar o meu papel; fêlacercar de paliçadas, para evitar que eu caísse. Foiem cima desta mesa que me exibiu dez vezes pordia, com grande espanto e satisfação de todo opovo. Então, sabia eu falar sofrivelmente a sualíngua e entendia perfeitamente tudo quantodiziam de mim; além disso, aprendera o seualfabeto e podia, embora com certo custo, ler eexplicar os livros, porqueGlumdalclitch deramelições em casa do pai e nas horas de descanso nodecorrer da viagem; trazia um livro na algibeira,um pouco maior do que um volume de atlas, livropara uso das crianças, e que era uma espécie decatecismo resumido; serviase dele para meensinar as letras do alfabeto e davame ainterpretação das palavras.
CAPÍTULO III
O autor é mandado para a corte; a rainha comprao e o apresenta ao rei —Discute com os sábios de Sua Majestade — Preparamlhe um aposento —
Tornase favorito da rainha — Mantém a honra do seu país — As suasquestões com o anão da rainha.
O trabalho e o cansaço, durante alguns dias,abalaram a minha saúde, porque, quanto maismeu amo ganhava, mais se tornava insaciável.Perdera completamente o apetite e quase metornara um esqueleto. Meu amo, dando por isso ejulgando que pouco tempo teria de vida, resolveufazerme valer o mais possível. Enquanto assimraciocinava, um sardral, ou escudeiro do rei, veiodar ordem a meu amo para me levarimediatamente à corte, para divertimento darainha e de todas as damas. Algumas dessasdamas já me haviam visto e relataram coisasestupendas acerca da minha pequena figura, domeu gracioso garbo e da minha fina inteligência.Sua Majestade e a comitiva ficaram extremamenteencantadas com as minhas maneiras. Ajoelheimee pedi graciosamente vênia para lhe beijar o realpé; esta princesa, porém, apresentoume o seudedo mínimo, que abrangi com os meus doisbraços e onde pousei, com o máximo respeito, osmeus lábios. Dirigiume perguntas gerais comreferência ao meu país e às minhas viagens, ao querespondi o mais distintamente que me foi possível,empregando poucas palavras; perguntoume seficaria satisfeito em viver na corte; fiz uma grandereverência até tocar na mesa em que me haviamcolocado, e respondi humildemente ser escravo domeu amo, porém que, se isso apenas dependessede mim, ficaria encantado em consagrar a minhavida ao serviço de Sua Majestade: em seguida,perguntou a meu amo se queria venderme. Ele,que supunha que a minha vida não ia além de ummês, ficou radiante com a proposta e fixou o preçoda minha venda em mil peças de ouro, queimediatamente lhe foram entregues. Pedi então àrainha que, visto haverme tornado escravo de Sua
Majestade, me concedesse a mercê deque Glumdalclitch, que fora sempre cheia deatenções e cuidados para comigo, fosse admitidaem honra do seu serviço e continuasse a ser minhagovernanta. Sua Majestade concedeume isso ebem assim o lavrador, que bem contente semostrou por ver a filha na corte. Quanto à pobrepequena, não podia ocultar a sua alegria. Meu amoretirouse e disseme, ao partir, que me deixava emum bom lugar, ao que apenas redargui com umacavalheiresca vênia.
A rainha notou a frieza com que acolhera ocumprimento e a despedida do lavrador eperguntoume o motivo. Tomei a liberdade deresponder a Sua Majestade que só devia ao meuantigo amo a obrigação de me não haver esmagadocomo a um pobre animal inofensivo, achadocasualmente nos seus campos; que essa boa açãoestava bem paga pelo proveito que tirara,mostrandome por dinheiro e pela importância querecebera pela minha venda; que a minha saúdeestava muito abalada pela minha escravatura epela obrigação contínua de entreter e divertir apopulaça a todas as horas do dia e que, se meuamo não me julgasse a vida em perigo, SuaMajestade não me teria adquirido; como, porém,não tencionava doravante ser tão infeliz sob aproteção de tão boa e tão nobre princesa,ornamento da natureza, admiração do mundo,delícias dos seus súditos e fênix da criação,esperava que as apreensões que sofrera com o meuúltimo amo ficariam sem efeito, pois já achava aminha vida reanimada pela influência da suaaugustíssima presença.
Tal foi a súmula do meu discurso, proferido comdiversos barbarismos e muitas vezes hesitante.
A rainha, que bondosamente desculpou os defeitosda minha arenga, ficou surpreendida por encontrartanto espírito e tão bom senso em um pequenoanimal; tomoume nas mãos e levoumeimediatamente ao rei, que estava encerrado no seuescritório. Sua Majestade, príncipe muito sério e derosto severo, não reparando bem à primeira vistana minha figura, perguntou finalmente à rainhadesde quando se tornara protetora deum splacnuck (pois me tomara por este inseto). Arainha, porém, que tinha infinito espírito,colocoume delicadamente sobre a secretária do reie ordenoume dissesse eu próprio quem era. Filoem poucas palavras e Glumdalclitch, que ficara àentrada do escritório, não podendo estar muitotempo sem mim, entrou e explicou a SuaMajestade que eu fora encontrado num campo.
O rei, mais sábio do que ninguém dos seusEstados, fora educado no estudo das filosofias eprincipalmente nas matemáticas. Entretanto,quando viu de perto a minha estatura e o meuaprumo, antes que eu principiasse a falar,imaginou que poderia ser uma artificiosa máquinacomo um engenho que faz mover os espetos deassar, ou, melhor, um relógio inventado eexecutado por um hábil artista; mas, quandonotou raciocínio nos sons que emitia, não pôdeocultar o seu espanto.
Mandou chamar três famosos sábios que estavam,então, de serviço na corte (segundo o admirávelcostume desse país). Esses cavalheiros, depois deterem examinado de perto o meu talhe com a
máxima exatidão, discutiram diferentemente ameu respeito. Eram todos de opinião que não podiaser produto que seguisse as leis ordinárias danatureza, porque era destituído da faculdadenatural de conservar a minha vida, quer pelaagilidade, quer pela facilidade de trepar a umaárvore, quer pelo poder de cavar a terra para fazerburacos onde pudesse ocultarme, como oscoelhos. Os meus dentes, que examinaramdetidamente, fizeramlhes conjecturar que era umanimal carnívoro.
Um desses filósofos foi mais longe; disse que euera um embrião, um aborto; essa opinião, contudo,foi rejeitada pelos outros dois, que observaram queos meus membros eram perfeitos e completos nasua espécie e que tinha vivido muitos anos, o quepareceu evidente na minha barba, cujos pêlosdescobriram com um microscópio. Não quiseramafirmar que eu fosse anão porque a minhapequenez estava fora de toda a comparação, eporque o anão favorito da rainha, o menor que atéentão se vira nesse reino, tinha quase trinta pés dealtura. Após grande discussão, concluíramunanimemente que eu não passava de um replumsealcath, o que, sendo interpretado literalmente,queria dizer lusus naturae, decisão muito conformecom a filosofia moderna da Europa, cujosprofessores, desprezando o velho subterfúgiodas causas ocultas, a favor das quais os sectáriosde Aristóteles tentam mascarar a sua ignorância,inventaram esta maravilhosa solução de todas asdificuldades da física. Admirável progresso daciência humana!
Feita esta conclusão decisiva, tomei a liberdade de
proferir algumas palavras: Dirigime ao soberano eprotestei a Sua Majestade que vinha de uma regiãoem que a minha espécie se encontrava em muitosmilhões de indivíduos de ambos os sexos, em queos animais, as árvores e as casas eramproporcionais ao meu tamanho, e onde, porconseguinte, podia sentirme em condições dedefenderme e encontrar o meu sustento, asminhas necessidades e as minhas comodidades, domesmo modo que qualquer súdito de SuaMajestade. Esta resposta fez sorrirdesdenhosamente os filósofos, que replicaram queo lavrador me ensinara bem e que eu sabia a liçãona ponta da língua. O rei, que tinha um espíritomais esclarecido, despedindo os sábios, mandouchamar o lavrador que, por felicidade, ainda nãosaíra da cidade. Tendoo, pois, interrogadoparticularmente, e em seguida acareandoo comigoe com a pequena, Sua Majestade principiou aacreditar que o que eu dissera podia muito bem serverdade. Rogou à rainha que desse ordem para quetivessem comigo um cuidado muito especial, e foide opinião que me deixassem continuar sob atutela de Glumdalclitch, ao notar que tínhamosuma grande afeição mútua.
A rainha ordenou ao seu carpinteiro que fizesseuma caixa que me pudesse servir de quarto dedormir, conforme o modelo que eue Glumdalclitch lhe fornecêssemos. Este homem,que era um artífice muito hábil, feznos, em trêssemanas, um quarto de madeira com dezesseis pésde largo e doze de alto, com janelas, uma porta edois aposentos.
Um outro operário excelente, que se tornara
célebre pelas curiosas bugigangas que fabricava,lembrouse de me fazer duas cadeiras de ummaterial parecido com marfim, e duas mesas comum armário, para eu guardar as minhas roupas;em seguida, a rainha mandou procurar pelosmercadores as mais finas fazendas para me fazeruma roupa.
Esta princesa gostava tanto de me ouvir conversar,que não podia jantar sem mim. Tinha uma mesacolocada sobre aquela em que Sua Majestadecomia, com uma cadeira em que mesentava. Glumdalclitch permanecia de pé sobre umtamborete, perto da mesa, para poder tomar contade mim.
Certo dia, o príncipe, ao jantar, quis ter o prazer deconversar comigo, fazendome perguntasconcernentes a costumes, religião, leis, governo eliteratura da Europa, a que eu respondi o melhorque pude. O seu espírito era tão apurado e o seujuízo tão seguro, que fez reflexões e observaçõesmuito sensatas sobre tudo quanto lhe disse;referindose a dois partidos, que dividem aInglaterra, perguntoume se euera whig ou tory; depois, virandose para o seuministro, que se postara por detrás dele,empunhando um bastão branco tão alto como omastro do Soberano Real, disse:
— Como a grandeza humana pouco vale, pois quevis insetos têm também ambição pelas classes edistinções entre si! Têm pequenos farrapos queenvergam, tocas, gaiolas, caixas, a que chamampalácios e solares; equipagens, librés, títulos,empregos, funções, paixões, como nós. Entre elesamase, odeiase, enganase, traise, como aqui.
Era assim que filosofava Sua Majestade, naocasião em que lhe falara na Inglaterra, e eusentiame confuso e indignado de ver a minhapátria, a senhora das artes, a soberana dos mares,o árbitro da Europa, a glória do Universo, tratadacom tanto desprezo.
Não havia nada que me ofendesse e meincomodasse mais do que o anão da rainha, que,sendo de uma estatura até então não vista naquelepaís, se tornou de extrema insolência na presençade um homem muito menor do que ele. Olhavamecom ar altivo e desdenhoso e zombavaincessantemente da minha pequena estatura.Vingueime, apenas, tratandoo como irmão. Umdia, durante o jantar, o malévolo anão,aproveitando o ensejo, em que não pensava emcoisa alguma, tomoume pelo meio do corpo edeixoume cair num prato de leite, desaparecendologo. Fiquei apenas com as orelhas de fora e, senão fora um excelente nadador, decerto morreriaafogado. Glumdalclitch, nessa ocasião, estavacasualmente na parte oposta do aposento. Arainha ficou tão consternada com este acidente,que lhe faltou presença de espírito para me acudir;a minha pequena governanta, porém, correu logoem meu auxílio e tiroume habilmente do prato,depois de eu ter bebido mais de meia canada deleite. Meteramme na cama; entretanto, só sofri odesaire de perder a roupa, que ficou todamanchada. O anão foi castigado e eu senti certoprazer em assistir a esse castigo.
Vou agora fazer ao leitor uma ligeira descriçãodesse país, tanto pelo que pude conhecêlo, comopelo que dele percorri. Toda a extensão do reino é
aproximadamente de três mil léguas decomprimento e de duas mil e quinhentas delargura; daqui concluo que os nossos geógrafos daEuropa se enganam, quando julgam que apenashá mar entre o Japão e a Califórnia. Imagineisempre que devia haver daquele lado um grandecontinente, para servir de contrapeso ao grandecontinente da Tartária. Devem, pois, corrigirse osmapas e juntar esta vasta extensão do país à partenordeste da América; e para isso estou disposto aauxiliar os geógrafos com as minhas luzes. Estereino é quase uma ilha, terminada ao norte poruma cadeia de montanhas que tem pouco mais oumenos trinta milhas de altitude, e de onde não éfácil a aproximação por causa dos vulcões, que sãoem grande número no cimo.
Os mais sábios ignoram que espécie de mortaishabita além dessas montanhas, nem mesmo se láexistem habitantes. Não há porto algum nessereino, e os locais da costa onde os rios vãoperderse no mar, são tão cheios de rochedos altose escarpados, e o mar está ordinariamente tãoagitado, que não há quase ninguém que seaventure a ele, de maneira que esses povos sãoexcluídos de todo o comércio com o resto domundo. Nos grandes rios pululam sempreexcelentes peixes; assim, raramente se pesca nooceano, porque os peixes do mar são do mesmotamanho dos da Europa e, com relação a eles, nãomerecem ser pescados; daí a evidência de que anatureza, na produção de plantas e animais detalhe enorme, se limita completamente a estecontinente, e, sob este ponto de vista, recorro aosfilósofos. No entanto, apanhamse às vezes, nacosta, baleias com que aquele povo se sustenta e
se delicia. Vi uma dessas baleias, tão grande, queum homem daquela região mal a podia levar àscostas. Às vezes, por curiosidade, trazemnas emcestos a Lorbrulgrud; vi um pedaço num prato àmesa do rei.
A região é muito povoada, porque contémcinqüenta e uma cidades, perto de cem burgoscercados de muralhas, e bem importante númerode aldeias e lugarejos. Para satisfazer a curiosidadedo leitor, bastará talvez dar a descriçãode Lorbrulgrud.Esta cidade fica situada sobre umrio que a atravessa e a divide em duas partesquase iguais. Contém mais de oitenta mil casas eperto de seiscentos mil habitantes; tem decomprimento três glonglus (que são cerca decinqüenta e quatro milhas inglesas) e dois e meiode largo, segundo a medida que tomei sobre omapa real, levantado por ordem do rei, que foiestendido no chão de propósito para eu ver, e tinhacem pés de comprimento.
O palácio do rei é um edifício bastante irregular; êantes um amontoado de edifícios, que têm perto desete milhas de circuito; os principais aposentostêm a altura de duzentos e quarenta pés, tendolargura proporcional.
Cederam um coche para Glumdalclitch e para mim,a fim de vermos a cidade, as praças e osmonumentos. Suponho que o coche era quase umquadrado como a sala de Westminster, não, porém,tão alto. Um dia, fizemos parar o coche emdiversas lojas, onde os mendigos, aproveitando oensejo, se amontoaram junto das portinholas e mepatentearam os mais horrorosos espetáculos quefoi dado ver a olhos ingleses. Como eram
disformes, estropiados, sujos, cheios de chagas, detumores que à minha vista pareciam enormes,peço ao leitor que ajuíze da impressão que essasmisérias me causaram e me poupe o descrevêlos.
As aias da rainha pediam muitas vezesa Glumdalclitch que as visitasse nos seusaposentos e que fosse eu com ela, para terem oprazer de me ver de perto e tocarme. Diversasvezes me despiam e me punham nu dos pés àcabeça, para melhor examinarem a delicadeza dosmeus membros. Nesse estado, gabavamme,metiamme às vezes no seio e faziamme milcarícias; nenhuma delas, porém, tinha a pele tãomacia como Glumdalclitch.
Estou persuadido de que não tinham másintenções; tratavamme sem cerimônia, como umacriatura sem raciocínio, despiamse à vontade etiravam a própria camisa na minha presença semtomar as precauções que a decência e o pudorexigem. Estava, entretanto, colocado em cima dascômodas, defronte delas e era obrigado, emboraconstrangido, a vêlas completamente nuas. E digoconstrangido, porque, na verdade, essa vista nãome dava tentação alguma nem o menor prazer. Asua pele pareciame áspera, pouco unida e dediferente coloração, com manchas aqui e ali, dotamanho de pratos; os seus compridos cabeloscaídos pareciam pedaços de fitas; nada digo acercade outros sítios do corpo, donde é preciso concluirque a beleza das mulheres, que tanta emoção noscausa, não passa de uma coisa imaginária, poisque as mulheres da Europa se assemelhariam aessas mulheres a que acabo de aludir, se os nossosolhos fossem microscópicos. Suplico ao belo sexo
do meu país que não se melindre com esta minhaobservação. É coisa de pouca monta para as belas,serem feias a olhos penetrantes que nunca verão.Os filósofos sabem bem o que isto é; quando,porém, olham uma beleza, vêmna como toda agente e já não são filósofos. A rainha, queconversava muitas vezes comigo acerca de minhasviagens por mar procurava todos os ensejospossíveis para me distrair, quando me viamelancólico. Perguntoume, certo dia, se tinhadestreza para manejar uma vela ou um remo, e seum pouco de exercício nesse gênero não conviria àminha saúde. Respondi que conhecia muito bemdos dois, porque, embora o meu empregoparticular fosse o de cirurgião, isto é, médico daarmada, fui, muitas vezes, obrigado a trabalharcomo marinheiro, mas ignorava como isso se fazianeste país, onde o barco menor era igual a umnavio de guerra de primeira ordem entre nós;demais, um navio proporcionado à minha estaturae às minhas forças não poderia flutuar durantemuito tempo naquelas águas, e não poderiagovernálo. Sua Majestade disseme que, se euquisesse, o seu carpinteiro de navios faria umpequeno barco e me escolheria um lugar próprio,em que eu pudesse navegar. O carpinteiro denavios, seguindo as minhas indicações, construiu,no prazo de dez dias, um pequeno navio com todasas suas cordagens, capaz de conter comodamenteoito europeus. Assim que o deu pronto, a rainhaordenou ao construtor que fizesse um tanque demadeira, com o comprimento de trezentos pés, alargura de cinqüenta e a profundidade de oito, oqual era bem alcatroado para impedir que a águasaísse; foi colocado no chão, ao longo da parede,numa sala exterior do palácio: tinha uma torneira
perto do fundo para deixar sair a água de tempos atempos, e dois criados podiamno encher em meiahora. Foi aí que remei para meu divertimento,tanto como para divertir a rainha e as suas damas,que sentiram grande prazer em ver a minhaagilidade e jeito. Algumas vezes içava a vela e omeu único trabalho era governar o leme, enquantoas damas faziam vento com os leques; quando seencontravam cansadas, alguns pajens impeliam efaziam andar o navio com o seu sopro, enquantoeu mostrava a minha destreza a estibordo e abombordo, conforme me apetecia. Quandoacabava, Glumdalclitch guardava o navio no seuquarto e suspendiao de um prego para secar.
Durante este exercício aconteceume um dia umacidente que me ia custando a vida, porque umdos pajens colocou o meu navio no tanque, e umamulher da comitiva de Glumdalclitch levantoumemuito delicadamente para me meter no navio; mas,escorregandolhe pelos dedos, cairia infalivelmenteda altura de quarenta pés para a coberta, se nãofosse detido por um grande alfinete, que estavapreso no avental dessa mulher. A cabeça doalfinete passou por entre a camisa e o cós dascalças e assim fiquei suspenso no ar pelosfundilhos, até que Glumdalclitch veio em meuauxílio.
Doutra vez, um dos criados, cuja função consistiaem mudar a água ao meu tanque de três em trêsdias, foi tão desastrado que deixou cair à águauma enorme rã, sem que desse por isso.
A rã esteve oculta até o momento em queembarquei; então, vendo que tinha ondepousarse, trepou para o navio e fêlo inclinar de
tal maneira que me vi obrigado a fazer contrapesodo lado oposto, para evitar que o naviosubmergisse, e depois, usando dos remos, forceiaa sair.
Vou agora narrar o maior perigo que corri nestereino. Glumdalclitch tinhame fechado à chave noseu quarto, saindo para negócios ou para fazeralguma visita. Era no verão e a janela do quarto ebem assim as janelas e a porta dos meusaposentos encontravamse abertas; enquantoestava sentado tranqüila e melancolicamente pertoda mesa, ouvi qualquer coisa entrar pela janela eandar aos pulos de um lado para outro. Ainda queficasse um pouco assustado, tive coragem de olharpara fora, sem porém me levantar da cadeira; vientão um animal a pular e a saltar para todos oslados, o qual, por fim, se aproximou da minhacaixa; este animal, que era um macaco, olhandopara dentro e em todas as direções, causoume talterror que não tive a presença de espírito suficientepara me meter debaixo da cama, como podia fazercom grande facilidade. Depois de muitas caretas ecabriolas, descobriume, e, metendo uma das mãospela abertura da porta, como costuma fazer umgato que brinca com um rato, embora mudassemuitas vezes de lugar para me pôr a salvo,agarroume pelas bandas do colete, (que era defazenda desse país, muito espessa e muito forte) epuxoume para fora. Agarroume com a mãodireita e seguroume como uma ama segura umacriança que vai amamentar, do mesmo modo queeu vi fazer à mesma espécie de animal com umgato da Europa. Quando me debatia, apertavamecom tanta força, que me pareceu que o melhorpartido a tomar era ficar sossegado e ceder a tudo
quanto lhe aprouvesse. Tenho alguns motivos paracrer que me tomou por um pequeno macaco,porque, com a outra mão, afagavame o rosto. Foirepentinamente interrompido por um ruído à portado aposento, como se alguém tentasse abrila; desúbito, saltou pela janela por onde tinha entrado, edaí, para os beirais, caminhando sobre as trêsmãos e segurandome com a quarta, até queatingiu um telhado que ficava contíguo ao nosso.Nesse instante ouvi que Glumdalclitch soltavaestridentes gritos. A pobre moça estava numgrande desespero e toda essa parte do palácio ficousobressaltada; os criados correram em busca deenxadas; o macaco foi visto por muitas pessoassentado na empena de um edifício, segurandomecomo uma boneca numa das mãos e dandome decomer com a outra, metendome na boca algumascarnes que tinha apanhado, e batendome, quandoeu não queria comer, o que era motivo de galhofapara a gentalha que me via debaixo, no que tinharazão porque, salvo para mim, a coisa tinha suagraça. Alguns atiraram pedras na esperança defazer descer o macaco, mas foram logo proibidosdisso pelo receio que tinham de me partir a cabeça.
As escadas foram montadas e muitos homenssubiramnas. Logo o macaco, aterrado, deixou ocampo livre e largoume sobre um beiral. Então,um dos lacaios da minha dona, excelente rapaz,subiu e, metendome na algibeira das calças,fezme descer com segurança.
Estava quase sufocado com as porcarias que omacaco me tinha metido nas goelas; a minhaquerida dona, porém, deume um vomitório queme aliviou. Estava tão fraco e tão moído pelos
apertões deste animal, que fui obrigado a recolherà cama, onde permaneci durante quinze dias. O reie toda a corte mandaram perguntar por mim todosos dias. O macaco foi condenado à morte e foilavrado um decreto em que se proibia a posse deum animal deste gênero nas imediações do palácio.Da primeira vez que, depois de estarcompletamente restabelecido, me apresentei ao reipara lhe agradecer todos os seus cuidados, deumea honra de chalacear muito a respeito deste caso;perguntoume quais tinham sido os meuspensamentos e reflexões, enquanto estive nasmãos do macaco; que gosto tinham os alimentosque me dera, e se o ar fresco, que respirara notelhado, me não aguçara o apetite. Desejou muitosaber o que faria em tal situação no meu país.Disse a Sua Majestade que na Europa não haviamacacos, à exceção de dois que tinham trazido depaíses estrangeiros, e que eram tão pequenos queninguém podia temêlos e que, com respeito àqueleenorme animal, (era, de fato, tão grande como umelefante), se o medo me houvesse dado tempo parapensar nos meios de recorrer à minha espada, (eproferindo estas palavras, tomei um ar altivo elevei a mão ao punho da espada), quando meteu amão no meu quarto, talvez lhe fizesse tal ferimentoque o obrigasse a retirarse mais depressa do queviera. Pronunciei estas palavras num tom enérgico,como uma pessoa ciosa de sua honra e que temsentimentos. No entanto, o meu discurso apenasproduziu uma gargalhada, e todo o respeito devidoa Sua Majestade por parte daqueles que orodeavam, não pôde retêlos, o que me fez refletirsobre a tolice de um homem que tenta dignificarseem presença dos que estão fora de todos os grausde igualdade ou de comparação para com eles; e,
entretanto, o que então me aconteceu, vi repetirsemuitas vezes em Inglaterra, onde um homenzinhose orgulha, se faz valer, finge de fidalgote e ousatomar ares importantes como grandes do reino,porque tem algum talento.
Fornecia todos os dias à corte matéria para algumridículo, e Glumdalclitch, embora me estimassecom grandes extremos, era bastante maliciosa parainformar a rainha das asneiras que eu às vezesfazia, supondo que, referindoas, podia fazer rirSua Alteza. Tendome um dia, por exemplo, apeadodo coche em passeio, acompanhadopor Glumdalclitch, levado por ela dentro da caixa,desatei a andar; havia excremento de vacas pelocaminho; quis, para demonstrar a minha agilidade,saltálo; por infelicidade, porém, saltei mal e caíexatamente no meio, de maneira que fiquei todosujo. Tiraramme dali a custo e um dos lacaioslimpoume o melhor que pôde com um lenço. Arainha foi depressa sabedora daquela impertinenteaventura e os lacaios divulgaramna por todaparte.
CAPÍTULO IV
Diversas idéias do autor para agradar ao rei e à rainha — O rei informaseacerca da Europa, de que o autor lhe faz um relatório — As observações do rei
sobre este assunto.
Eu costumava ir ter com o rei, quando ele selevantava, uns três dias por semana, eencontravame lá muitas vezes quando obarbeavam, o que, a princípio, me fazia tremer: anavalha do barbeiro era quase duplamente do
tamanho de uma foice. Sua Majestade, consoanteera uso do seu país, só se barbeava duas vezes porsemana. Certo dia pedi ao barbeiro alguns pêlos dabarba de Sua Majestade. Tendome feito presentedeles, peguei num pedaço de madeira e,fazendolhe alguns buracos com o bico de umaagulha, prendi, aí, com tal habilidade, os pêlos,que fiz um pente, o que foi um grande auxílio,porque o meu estava todo partido e quase inútil enão fui capaz de encontrar na região um operárioque os soubesse fabricar.
Lembrome de uma diversão que procurei paramim por essa mesma ocasião. Pedi a uma dascriadas graves da rainha, que guardasse os finoscabelos que caíssem da cabeça de Sua Altezaquando a penteassem, e que mos desse. Junteiuma considerável porção e, então,aconselhandome com o marceneiro que receberaordem para fabricar tudo quanto eu lhe pedisse,deilhe instruções para fazer duas poltronas dotamanho das que se encontravam na minha caixae de fazerlhes pequenos buracos com uma soveladelgada.
Quando os pés, os braços, as travessas e osespaldares ficaram prontos, compus o fundo comos cabelos da rainha, que passei pelos buracos efiz delas cadeiras parecidas com as de cana de quenos servimos em Inglaterra. Tive a honra depresentear com elas a rainha, que as meteu numarmário como uma curiosidade.
Quis um dia que me sentasse numa dessascadeiras, mas eu excuseime, protestando que nãoera tão temerário nem tão insolente que aplicasse oassento sobre os respeitáveis cabelos que tinham,
noutro tempo, ornado a cabeça de Sua Alteza.Como era dotado de jeito para a mecânica, fiz, emseguida, com esses cabelos, uma pequena bolsabem talhada, com o comprimento aproximado deduas varas, com o nome de Sua Alteza tecido emletras douradas, que dei a Glumdalclitch, com oconsentimento da rainha.
O rei, que deveras apreciava música, dava muitasvezes concertos, a que eu assistia metido na caixa;o ruído, porém, era tão grande, que quase me eraimpossível distinguir os acordes. Tenho a certezade que nem os tambores nem as trombetas de umexército real, rufando e soando perto dos meusouvidos ao mesmo tempo, poderiam igualar aqueleruído. Eu costumava fazer colocar a caixa longe dosítio em que estavam os concertistas, de fechar asportas e as janelas e de correr os cortinados: comessas precauções, não achava desagradável amúsica.
Aprendi, na minha mocidade, a tocarcravo, Glumdalclitch possuía um no seu quarto,onde, duas vezes por semana, ia um professor paraensinar. Deume um dia a fantasia para deliciar orei e a rainha com uma ária inglesa tocada nesteinstrumento; isso, porém, pareceumeextremamente difícil, porque o cravo tinha quasesessenta pés de comprimento e as teclas eram dalargura aproximada de um pé, de maneira que,com os meus dois braços estendidos, não podiaatingir mais do que cinco teclas e, além disso, paratirar alguns sons, tinha que dar fortes punhadas.No entanto, tive segunda idéia: arranjei doisbastões quase com a grossura de uma agulha demeia vulgar e forrei as extremidades dos bastões
com pele de rato, para bater sobre as teclas e delastirar alguns sons; coloqueime num bancofronteiro para onde subi e então desatei a corrercom toda a presteza e agilidade possível sobre essaespécie de estrado, batendo aqui e ali sobre oteclado, servindome dos bastões com toda a força,de maneira que acabei por tocar uma giga inglesacom grande contentamento de Suas Majestades.Forçoso é, porém, confessar que nunca fiz exercíciomais violento nem mais fatigante.
O rei, como já disse, era um príncipe cheio deespírito, e dava muitas vezes ordem para metrazerem na caixa e colocaremme na secretária doseu escritório. Então pediame para que tirasseuma das cadeiras para fora da caixa e me sentassede modo que ficasse no nível do seu rosto. Destaforma, frequentemente, com ele falei. Certo dia,tomei a liberdade de dizer a Sua Majestade que odesprezo que ele concebera pela Europa e peloresto do mundo não estava em harmonia com asexcelentes faculdades de espírito que odistinguiam; que a inteligência nada tinha com otamanho do corpo; que, pelo contrário, havíamosobservado, no nosso país, que os indivíduos deelevada estatura não eram, em geral, os maisengenhosos; que, entre os animais, as abelhas e asformigas gozavam da reputação de ter maisindústria, artifício e sagacidade; e, finalmente, que,embora ele pouca importância ligasse à minhafigura, contudo esperava poder prestar grandesserviços a Sua Majestade. O rei ouviume comgrande atenção e principiou a olharme de outromodo e a não avaliar a minha inteligência pelomeu tamanho.
Ordenoume então que lhe fizesse uma exatarelação do governo da Inglaterra, porque, aindaque os príncipes estejam ordinariamenteprevenidos a favor das suas máximas e dos seususos, ficaria bem satisfeito por saber se haveriaalguma coisa no meu país que lhe fosse útil imitar.Imagine o meu querido leitor qual não seria o meudesejo em possuir o engenho e a língua deDemóstenes e de Cícero, para ser capaz dedescrever dignamente a minha pátria, Inglaterra, etraçar dela uma idéia sublime.
Principiei por dizer a Sua Majestade que os nossosEstados eram constituídos por duas ilhas queformavam três poderosos reinos governados porum único soberano, sem que figurassem em linhade conta as nossas colônias na América.Alargueime deveras sobre a fertilidade do nossoterritório e sobre a variedade do nosso clima. Emseguida, descrevi a constituição do Parlamentoinglês, composto, em parte, de uma corporaçãoilustre chamada Câmara dos Pares, personagensdo sangue mais nobre, antigos proprietários esenhores das mais belas terras do país. Disse doextremo cuidado que havia na sua educação comrelação às ciências e às armas para os tornarcapazes de serem conselheiros natos do reino, deterem parte na administração do governo, de seremmembros da mais elevada categoria damagistratura, de que não havia apelo, e da suapátria, pelo seu valor, comportamento e fidelidade;que esses senhores eram o ornamento e o esteio doreino, dignos sucessores dos seus antepassados,cujas honras haviam obtido como recompensa deuma virtude insigne e que nunca se vira a suaposteridade degenerar; que a esses senhores
estavam agregados santos homens, que tinham oseu lugar entre os bispos, cujo cargo particular eravelar pela religião e por aqueles que a pregam aopovo; que se buscavam e se escolhiam no clero osmais santos e os mais sábios homens para sereminvestidos nessa eminente dignidade.
Acrescentei que a outra parte do Parlamento erauma assembléia respeitável denominada Câmarados Comuns, composta de nobres, escolhidoslivremente, e até deputados pelo povo, unicamentepor causa das suas luzes, dos seus talentos e doseu amor pela pátria, a fim de representar o saberde toda a nação. Disse que esses dois corposformavam a mais augusta assembléia do universoque, de acordo com o príncipe, dispunha de tudo eregulava, de certo modo, o destino de todos ospovos da Europa.
Em seguida, desci aos arcanos da justiça, ondetinham assento veneráveis intérpretes da lei, quedecidiam as diferentes contestações dosparticulares, que puniam o crime e protegiam ainocência. Não deixei de falar da sábia e econômicaadministração das nossas finanças e de meesplanar sobre o valor e as expedições dos nossosguerreiros de mar e de terra. Computei o númerodo povo, contando também que havia milhões dehomens professando diversas religiões e diferentespartidos políticos entre nós. Não omiti nem osnossos jogos, nem os espetáculos, nem nenhumaoutra particularidade que eu supusesse dar honraao meu país, e terminei com uma pequenanarração histórica das últimas revoluções daInglaterra, desde há cem anos para cá, pouco maisou menos.
Esta conversa durou cinco audiências, cada umadelas de grande número de horas, e o rei ouviutudo com a máxima atenção, escrevendo o extratode quase tudo o que lhe dizia e marcando, aomesmo tempo, os pontos sobre que tencionavainterrogarme.
Assim que concluí estes meus longos discursos,Sua Majestade, numa sexta audiência,examinando os seus extratos, apresentoumemuitas dúvidas e grandes objeções acerca de cadaassunto. Perguntoume quais eram os meiosvulgares empregados para cultivar o espírito danossa juvenil nobreza; quais as medidas que setomavam, quando uma casa nobre se extinguia, oque podia darse de tempos a tempos; quais asqualidades precisas aos que deviam ser criadoscomo novos pares; se o capricho do príncipe ouuma importante quantia dada de propósito a umadama da corte e a um favorito, ou um desejo defortalecer um partido de oposição ao bem público,não eram nunca motivos para essas promoções;qual era o grau de ciência que os pares possuíamacerca das leis do seu país, e como se tornavamcapazes de decidir em último recurso dos direitosdos seus compatriotas; se eram sempre isentos deavareza e preconceitos; se os santos bispos de queeu falara, alcançavam sempre esse alto cargo pelasua ciência sobre matérias teológicas e pelasantidade da sua vida; se nunca tiveram fraquezas;se nunca tinham intrigado enquanto padres, senão tinham sido outrora esmoleres de um par, porintermédio do qual conseguiam ser elevados abispos e se, neste caso, não seguiam sempre,cegamente, a opinião do par e não serviam a suapaixão ou o seu preconceito na assembléia do
Parlamento.
Quis saber como se procedia para a eleiçãodaqueles que chamara de comuns; se um estranho,com uma bolsa recheada de ouro, não podia,algumas vezes, ganhar o sufrágio dos eleitores àforça do dinheiro, fazerse preferido ao seu própriosenhor, ou aos mais importantes e mais distintosda nobreza na vizinhança; por que é que haviatamanha paixão em se ser eleito para aassembléia, pois que esta eleição dava ensejo auma grande despesa e não rendia coisa alguma;que era preciso, pois, que os eleitos fossemhomens de um completo desinteresse e de umaeminente e heróica virtude, ou, ainda, quecontassem ser indenizados e reembolsados comusura pelo príncipe e pelos ministros, sacrificandopor eles o bem público. Sua Majestadeapresentoume, sobre esta matéria, dificuldadesextraordinárias, que a prudência me não permiterepetir.
Acerca do que lhe disse dos arcanos da justiça,Sua Majestade quis ser esclarecido em muitíssimospontos. Estava bem no caso de satisfazêlo, poisem outros tempos quase ficara arruinado com umlongo processo em estado de ser julgado; se ficavamuito caro um pleito; se os advogados tinhamliberdade para defender as causas evidentementeinjustas; se nunca se havia notado que o espíritopartidário e de religião tivesse feito pender abalança; se esses advogados tinham algumconhecimento dos primeiros inícios e das leisgerais de equidade, ou se não se contentavam emsaber as leis arbitrárias e os costumes locais dopaís; se eles e os juízes tinham o direito de
interpretar e comentar as leis a seu modo; se ospleiteantes e as sentenças não estavam algumasvezes em contradição uns com outros na mesmaespécie.
Depois, começou a interrogarme sobre aadministração das finanças, e disseme que eutinha desprezado esse assunto, porque não fizerasubir senão a cinco ou seis milhões por ano osimpostos; que, no entanto, a despesa do Estado iamuito além e excedia muitas vezes a receita.
Não podia, dizia ele, conceber como é que um reinoousava despender além do seu rendimento e comeros seus bens como um particular. Perguntoumequais eram os nossos credores e se nós teríamoscom que lhes pagar; se mantínhamos a seurespeito as leis da natureza, da razão e daequidade. Estava admirado da pormenorização quelhe fizera das nossas guerras e das despesasexcessivas que exigiam. Era preciso, certamente,dizia ele, que nós fôssemos um povo bem irrequietoe bem questionador ou que tivéssemos mausvizinhos.
— Que têm vocês a deslindar — acrescentava ele —fora das ilhas? Possuem aí outro negócio que nãoseja o comércio? Devem pensar em fazerconquistas? E não lhes basta tomar conta dosportos e das costas?
O que deveras o assombrou, foi saber quemantínhamos um exército no seio da paz e no meiode um povo livre. Disse que, se fôssemosgovernados com o nosso próprio consentimento,não podia imaginar que tivéssemos medo e contraquem nos havíamos de bater. Perguntoume se a
casa de um particular não seria melhor defendidapor ele próprio, pelos filhos e pelos criados do quepor uma cáfila de patifes e de gatunos tirados aoacaso da escória do povo, com salário diminuto, eque poderiam ganhar cem vezes mais.
Riu muito da minha extravagante aritmética,(como lhe aprouve chamar), quando computei onúmero dos nossos habitantes, calculando asdiferentes seitas que vivem entre nós, com relaçãoà religião e à política.
Notou que, entre as diversões da nobreza, eumencionara o jogo. Quis saber em que idade eraessa diversão ordinariamente praticada e porquanto tempo, e se algumas vezes não se alteravaa fortuna dos particulares e lhes não fazia cometerações baixas e indignas; se homens vis e corruptosnão podiam, algumas vezes, pela sua habilidadenesse mister, adquirir grandes riquezas, ter mesmoos nossos pares em uma espécie de dependência,acostumálos a viver em más companhias,desviálos inteiramente da cultura do seu espírito edo cuidado dos seus negócios particulares eforçálos pelas perdas que podiam causar,ensinálos talvez a servirse dessa mesmahabilidade infame que os arruinara.
Ficara extremamente admirado com a narrativaque lhe fizera da nossa história do último século,que não passava, segundo ele, de umencadeamento horrível de conjurações, derebeliões, de chacinas, de morticínios, revoluções,de exílios e dos mais horrendos defeitos que aavareza e o espírito de facção, a hipocrisia, aperfídia, a cruzada, a raiva, a loucura, o ódio, ainveja, a maldade e a ambição podiam engendrar.
Sua Majestade em uma outra audiência teve otrabalho de recapitular a substância de tudoquanto eu dissera, comparou as perguntas que medirigira com as respostas que lhe dera; depois,tomandome nas suas mãos, e afagandomecarinhosamente, exprimiuse por estas palavras,que nunca esquecerei assim como não esquecerei omodo por que as pronunciou:
— Meu querido amiguinho Grildrig, fizeste umpanegírico bem extraordinário acerca do teu país;provaste à evidência que a ignorância, a preguiça eo vício podem ser, às vezes, as únicas qualidadesde um homem de Estado; que as leis sãoesclarecidas, interpretadas e aplicadas o melhorpossível por indivíduos cujos interesses erapacidade os levam a corrompêlas, aembrulhálas e a iludilas. Noto entre vós aconstituição de um governo que, no seu princípio,foi talvez suportável, porém que o vício desfiguroupor completo. Não me parece até, por tudo quantome disseste, que uma única virtude seja requeridapara alcançar alguma função ou algum lugareminente. Vejo que os homens não são enobrecidospela virtude; os sacerdotes, não avançam pelapiedade ou pela ciência; os soldados, pelo seucomportamento ou pelo seu valor; os juízes, pelasua integridade; os senadores, pelo amor da pátria,nem os homens de Estado pelo seu saber. Masquanto a ti, que passaste a mor parte da vida emviagens, quero crer que não tenhas enfermado dosvícios do teu país; mas, por tudo o que me referistea princípio, e pelas respostas que te obriguei a daràs minhas objeções, suponho que a maioria dosteus compatriotas é a mais perniciosa casta deinsetos que a natureza jamais suportou que
rastejasse sobre a superfície da terra.
CAPÍTULO V
Zelo do autor pela honra da sua pátria — Faz uma vantajosa proposta ao rei,que a rejeita — A literatura deste povo é imperfeita e limitada — As suas leis,
os seus assuntos militares e os seus partidários de Estado.
O amor pela verdade não permitiu que eu calasseesta minha conversa com o rei; este mesmo amor,porém, não me deixou também que me abstivessede falar, quando vi o meu querido país tratado comtal vilipêndio. Iludi habilmente a mor parte dassuas perguntas e dei a cada coisa a mais favorávelforma que pude, porque, quando se trata dedefender a minha pátria e de manter a sua glória,exaltome, quando vejo que não há razão; então,nada omito para ocultar os seus defeitos edeformidades e para colocar a sua virtude e belezana posição mais vantajosa. Foi o que me esforceipor fazer nas diversas conferências que tive com ojudicioso monarca; por desgraça, perdi o meutrabalho.
No entanto, necessário é desculpar um rei que vivecompletamente separado do resto do mundo e que,por conseguinte, ignora os usos e costumes dasoutras nações. Esse defeito de conhecimentos serásempre a causa de muitos preconceitos e de umacerta maneira limitada de pensar, e que as idéiasde virtude e de vício de um príncipe estrangeiro eisolado fossem tidas como regras e como máximasa seguir.
Para confirmar o que acabo de dizer e para fazer
ver os desgraçados efeitos de uma educaçãolimitada, relatarei, aqui, uma coisa que, com certocusto, se acreditará. Com o fim de alcançar asboas graças de Sua Majestade, deilhe conta deuma descoberta feita há uns quatrocentos anos,um pequeno pó negro que uma pequeníssimacentelha podia acender num instante, de talmaneira que seria capaz de fazer ir pelos aresmontanhas, com um ruído maior do que o dotrovão; que certa quantidade deste pó, sendometida num tubo de bronze ou de ferro, conformea sua grossura, fazia sair uma bala de chumbo oude ferro com tão grande violência e tantavelocidade, que nada era capaz de sustar a suaforça; que as balas assim lançadas de um tubofundido e expelidas pela inflamação daquelepequeno pó, quebravam, voltavam, davam cabo debatalhões, de esquadrões, arrasavam as maisfortes muralhas, deitavam por terra as maiselevadas torres e faziam soçobrar os maioresnavios; que esse pó, metido num globo de ferroexpelido por certa máquina, queimava, esmagavacasas e lançava em todas as direções estilhaçosque fulminavam tudo quanto encontrassem; queconhecia a composição desse maravilhoso pó, ondesó entravam coisas vulgares e de preço econômicoe que até poderia ensinar aos seus súditos osegredo, se Sua Majestade quisesse; que, por meiodeste pó, Sua Majestade derrubaria as mais fortesmuralhas da mais potente cidade do seu reino, sealguma vez se sublevasse e ousasse resistirlhe.
O rei, assombrado com a descrição que lhe fiz dosterríveis efeitos do meu pó, parecia não podercompreender como um inseto impotente, fraco, vile rasteiro, imaginara tão horrível coisa, e de que
ousava falar de forma tão familiar, que pareciaolhar como bagatelas a carnificina e desolação queproduzia tão pernicioso invento.
— Era preciso — dizia ele — que o seu inventorfosse um gênio mau, inimigo de Deus e das suasobras.
Respondeu que, embora nada lhe agradasse maisdo que as novas descobertas, quer na natureza,quer nas artes, preferia perder a coroa a fazer usode tão funesto segredo, proibindome, sob pena deperder a vida, de divulgálo a qualquer dos seussúditos; doloroso efeito da ignorância e datacanhez de espírito de um príncipe sem educação.Este monarca, ornado com todas as qualidadesque alcançam a veneração, o amor e a estima dospovos, de espírito forte e penetrante, de grandeprudência, de profunda ciência, dotado deadmiráveis talentos para o governo, quase adoradopelo seu povo, encontrase estupidamenteincomodado por um capricho excessivo eextravagante, de que nunca fizemos idéia naEuropa, e deixa fugir uma ocasião que lhe vemparar às mãos para se tornar o senhor absoluto davida, da liberdade e dos bens de todos os seussúditos.
Não digo isto com o intuito de rebaixar as virtudese as luzes deste príncipe, a quem, não ignoro, estanarrativa háde desacreditar no espírito de umleitor inglês; mas asseguro que este defeito nãoprovinha senão da ignorância. Esses povos nãotinham ainda reduzido a política a uma arte, comoos nossos sublimes espíritos da Europa.
Lembrome de que, numa conversa que certo dia
tive com o rei, disselhe que havia entre nós umgrande número de volumes escritos acerca da artede governar, e Sua Majestade formou a esserespeito uma opinião muito baixa do nossoespírito, acrescentando que desprezava e detestavatodo o mistério, todo o requinte e toda a intriga nosprocessos de um príncipe ou de um ministro deEstado. Não podia compreender o que eu queriadizer com os segredos de gabinete.
Quanto a ele, resumira a ciência de governar emestreitíssimos limites, reduzindoa ao sensocomum, à razão, à justiça, à brandura, à rápidadecisão dos processos civis e criminais e a outraspráticas semelhantes ao alcance de toda a gente eque não merecem referência. Por fim, arriscou esteestranho paradoxo que, se alguém pudesse fazercrescer duas espigas ou dois bocados de erva numpouco de terra onde antes só havia um, mereceriamais do gênero humano e prestaria um serviçomais essencial ao seu país do que toda a raça dosnossos sublimes políticos.
A literatura deste povo é muitíssimo limitada econsiste apenas no conhecimento da moral, dahistória, da poesia e das matemáticas; preciso é,porém, confessar que são excelentes nestes quatrogêneros.
O último dos citados conhecimentos só é aplicadopor eles a tudo quanto seja útil, de maneira que omelhor da nossa matemática seria muito poucoapreciado por eles. Com respeito a entidadesmetafísicas, abstrações e categorias, foimeimpossível fazer que as compreendessem.
Nesse país não é permitido decretar uma lei que
empregue mais palavras do que as letras existentesno alfabeto, que é composto de vinte e duasapenas; há até muito poucas leis que tenham taisdimensões. São todas expressas em termos clarose simples, e esses povos não são nem muito vivos,nem muito engenhosos para lhes achar algumsentido; e, além disso, é crime capital escrever umcomentário sobre qualquer lei.
Possuem desde remotíssimos tempos a arte deimprimir, tão bem como os chineses; as suasbibliotecas, porém, não são grandes; a do rei, que émais numerosa, é constituída por mil volumesapenas, enfileirados numa galeria de duzentos pésde comprimento, onde tive a liberdade de ver todosos livros que me aprouve. O livro que tive, aprincípio, curiosidade de ler, foi colocado em cimade uma mesa sobre a qual me puseram; então,voltando o rosto para o livro, comecei pelo alto dapágina; passeava por cima dele, para a direita epara a esquerda, cerca de dez passos, conforme ocomprimento das linhas, e recuava à medida quecaminhava na leitura das páginas. Começava a leroutra página pelo mesmo processo, depois do quea virava, o que com dificuldade pude fazer com asminhas duas mãos, porque o papel era tão espessoe tão seco como papelão. O seu estilo é claro,másculo e suave, mas nunca florido, porque nãosabem entre si multiplicar as palavras inúteis evariar as expressões. Percorri muitos dos seuslivros, principalmente aqueles que diziam respeitoà história e à moral; entre outros, li com prazer umvelho tratado que estava no quartode Glumdalclitch e que se intitulava: Tratado dafraqueza do gênero humano e que apenas eraestimado pelas mulheres e pelas classes menos
elevadas. Entretanto, tive a curiosidade de saber oque um autor desse país podia dizer sobresemelhante assunto. Este escritor fazia ver muitoextensamente quanto o homem está pouco emsituação de se pôr ao abrigo das injúrias daatmosfera e da fúria dos animais ferozes; quantoera ultrapassado por outros animais, quer emforça, quer em velocidade, quer na previdência,quer na indústria. Mostrava que a natureza setinha degenerado nos últimos séculos e que estavaa declinar.
Ensinava que as próprias leis da naturezarevelavam absolutamente que tínhamos sido, aprincípio, de uma estatura maior e de umacompleição mais vigorosa, para não sermossujeitos a uma súbita destruição pela queda deuma telha de cima de uma casa, ou de uma pedraarremessada pela mão de uma criança, ou paranão nos afogarmos em algum rio. Dessesraciocínios, o autor tirava diversas aplicações úteisà conduta da vida. Quanto a mim, não podiadeixar de fazer reflexões sobre esta moral e sobre atendência universal que têm todos os homens dese queixar da natureza e de exagerar os seusdefeitos.
Estes gigantes tinhamse como pequenos e fracos.Que somos nós, europeus? Esse mesmo autor diziaque um homem não passava de um verme da terrae de um átomo e que a sua pequenez devia semprehumilhálo. Ai! que sou eu — dizia de mim paramim — eu, que estou abaixo de nada emcomparação desses homens que se consideram tãopequenos e tão insignificantes!
Nesse mesmo livro faziase ver a vaidade do título
de alteza e grandeza, e quanto era ridículo que umhomem, que tinha mais de cento e cinqüenta pésde altura, ousasse dizerse alto e grande. Quepensariam os príncipes e os soberbos senhores daEuropa — pensava eu então — se lessem este livro,eles que, com cinco pés e algumas polegadas,pretendem, sem cerimônia, que se lhes dê otratamento de alteza e de grandeza? Mas, por queé que não exigiam também os títulos de grossura,largura e espessura? Ao menos teriam podidoinventar um termo geral para compreender todasessas dimensões e fazerse chamar vossaextensão. Respondersemeá, talvez, que aspalavras alteza e grandeza se relacionam com aalma e não com o corpo; mas, se assim é, por quenão tomar títulos mais próprios e mais condizentescom um sentido espiritual? Por que não se fizeramtratar porvossa sabedoria, vossa penetração, vossaprevidência, vossa liberalidade, vossa bondade,vosso bom senso, vosso belo espírito? É precisoconfessar que, como estes títulos teriam sido muitobelos e muito honrosos, teriam também semeadomuita amenidade nos cumprimentos dosinferiores, não havendo nada mais divertido do queum discurso cheio de contradições.
A medicina, a cirurgia, a farmacopéia são muitocultivadas nesse país. Entrei, certo dia, num vastoedifício, que julguei ser um arsenal cheio de balase canhões: era a loja de um boticário; as balaseram pílulas e os canhões, seringas.Comparativamente, os nossos maiores canhõessão, em verdade, modestas colubrinas.
Com relação à sua milícia, dizse que o exército dorei é composto de cento e seis mil homens de pé e
de trinta e dois mil de cavalo, se lícito é darse essenome a um exército constituído de negociantes elavradores, cujos comandantes não são senão seuspares e a nobreza sem recompensa nem soldoalgum. São, de fato, bastante perfeitos nos seusexercícios e têm uma disciplina magnífica, o quenão é para admirar, visto que os lavradores sãocomandados pelos seus próprios senhores e osburgueses pelos principais da sua própria cidade,eleitos à maneira de Veneza.
Tive curiosidade de saber por que este príncipe,cujos Estados são inacessíveis, julgava necessárioensinar ao seu povo a prática da disciplina militar;mas depressa soube a razão, quer pelas conversasque entabulei sobre este assunto, quer pela leituradas suas histórias; porque, durante muitosséculos, foram atacados pela doença a que tantosoutros governos estão sujeitos: o pariato e anobreza, disputando muita vez pelo poder, o povopela liberdade e o rei pelo domínio arbitrário. Estascoisas, ainda que prudentemente temperadas pelasleis do reino, têm ocasionado a criação de facções,ateado paixões e causado guerras civis, a últimadas quais foi felizmente sufocada pelo avô dopríncipe reinante, e a milícia, então estabelecida noreino, foi mantida desde então para prevenir novasdesordens.
CAPÍTULO VI
O rei e a rainha fazem uma viagem à fronteira, onde o autor os acompanha —Pormenor da maneira por que saí desse país para regressar à Inglaterra.
Tinha sempre presente no espírito que algum diarecuperaria a minha liberdade, ainda que nãopudesse adivinhar por que meio, nem formarprojeto algum com a menor probabilidade. O navio,que me tinha trazido e que soçobrara nessasparagens, era o primeiro barco europeu que, aoque se sabe, conseguira aproximarse daí, e o reidera ordens muito terminantes para que, se algumoutro aparecesse, fosse puxado para terra e toda atripulação e passageiros fossem metidos numacarroça de lixo e levados paraLorbrulgrud.
Estava muito empenhado em encontrar umamulher da minha estatura com a qual eu pudessemultiplicar a espécie; no entanto, creio quepreferiria morrer a fazer criação de desgraçadosentes, destinados a ser engaiolados, assim comocanários, e a ser, depois, vendidos por todo o reinoa pessoas de elevada estirpe, como pequeninosanimais curiosos. Era, na verdade, tratado comgrande bondade; era o favorito do rei e da rainha eas delícias de toda a corte; mas estava numasituação que não convinha à dignidade da minhanatureza humana. A princípio, não podia esqueceros preciosos penhores que deixara em minha casa.Desejava bastante encontrarme entre povos comos quais pudesse entabular conversa como de igualpara igual, e ter a liberdade de andar pelas ruas epelos campos sem receio de ser pisado ouesmagado como uma rã ou ser o joguete de algumcãozinho; a minha libertação, porém, chegou maisdepressa do que esperava e de uma formaextraordinária, que vou referir fielmente com todosos pormenores desse admirável acontecimento.
Havia dois anos que vivia nesse país. No princípio
do terceiro, Glumdalclitch e eu fazíamos parte dacomitiva régia numa viagem que o rei e a rainharealizaram pela costa meridional do reino.Levavamme, de ordinário, na minha caixa deviagem, que era um aposento muito cômodo, com alargura de doze pés. Tinham, por minha ordem,colocado uma maca suspensa de cordões de sedaaos quatro cantos superiores da minha caixa, a fimde que sentisse menos as sacudidelas do cavalo,sobre o qual um criado me levava na sua frente.Ordenara ao marceneiro que fizesse na tampa umaabertura com um pé quadrado para deixar entrar oar, de maneira que, quando eu quisesse, pudesseabrila e fechála por meio de uma corrediça.
Quando chegámos ao termo da nossa viagem o reiachou conveniente passar alguns dias numavivenda que possuía perto de Flanflasnic, cidadesituada a dezoito milhas inglesas dabeiramar. Glumdalclitch e eu estávamos deverasfatigados, e eu até um pouco constipado; mas apobre pequena estava tão doente que era obrigadaa permanecer sempre no quarto. Tive vontade dever o oceano. Fizme parecer mais doente do querealmente me sentia e pedi que me dessemliberdade para respirar o ar do mar com um pajemcom quem eu simpatizava muito e a quem, noutrotempo, fora confiado. Nunca esquecerei arepugnância com queGlumdalclitch consentiunisso, nem a ordem severa que deu ao pajem parater cuidado comigo, nem as lágrimas que chorou,como se tivesse o pressentimento do que me deviaacontecer. O pajem conduziume, pois, na caixa,afastandose quase meia légua da região, para osrochedos à beiramar. Disselhe, então, que mepusesse no chão e, levantando o caixilho de uma
das minhas janelas, comecei a olhar tristementepara o mar. Pedi então ao pajem que, tendovontade de dormir alguns instantes na maca, modeixasse fazer, pois isso me aliviaria. O pajemfechou bem a janela, com receio de que eu sentissefrio; depressa adormeci. Tudo o que possoconjecturar é que, enquanto dormia, o pajem,julgando que nada tinha a recear, trepou pelosrochedos em busca de ovos das aves marinhas,tendoo visto da janela a procurálos e apanhálos.Fosse como fosse, o que é certo é que fuisubitamente acordado por um violento solavancoque a minha caixa sofreu, que me senti no ar e, emseguida, arrebatado com prodigiosa rapidez. Oprimeiro solavanco quase me fez saltar fora damaca, mas, depois, o movimento tornouse maissuave. Gritei com todas as forças dos meuspulmões, mas debalde. Olhei por entre os vidros esó vi nuvens. Ouvia por cima da cabeça um terrívelruído, semelhante ao bater de asas. Então,comecei a conhecer a perigosa situação em que meencontrava e a suspeitar que alguma águia tivessesegurado o cordão da minha caixa com o bico, nodesejo de a deixar cair sobre algum rochedo, comouma tartaruga na casca e, em seguida, tirarmepara fora e devorarme, porque a sagacidade e oolfato desta ave permitemlhe descobrir a suapresa a grande distância, ainda que muito ocultoestivesse na caixa que tinha apenas a espessura deduas polegadas.
Ao cabo de certo tempo, notei que o ruído e o baterde asas aumentavam muito e que a caixa se moviapara um lado e para outro como uma tabuletaimpelida pelo vento; ouvi violentas pancadas queeram dadas na águia e depois, de repente,
sentime cair perpendicularmente durante mais deum minuto, mas com incrível velocidade. A minhaqueda acabou por um terrível solavanco queretiniu na minha cabeça como a nossa catarata doNiágara, depois do que fiquei às escuras duranteum minuto e então a minha caixa principiou aelevarse, de maneira que pude ver o sol por cimada minha janela. Percebi, então, que caíra no mare que a caixa flutuava. Supus, e suponho ainda,que a águia que arrebatara a minha caixa foraperseguida por duas ou três águias e constrangidaa deixarme cair, enquanto se defendia das outras,que lhe disputavam a presa. As chapas de ferro,colocadas por baixo da caixa, conservaram oequilíbrio e impediram que se quebrasse eesmigalhasse ao cair.
Oh! como desejei que Glumdalclitch me socorressenesse súbito acidente que tanto me afastara dela!Posso, na verdade, dizer que, no meio das minhasdesgraças, lamentava e tinha saudades da minhapequena dona, e pensava no desgosto que sentiriacom a minha perda e no sentimento da rainha.Estou certo de que poucos viajantes há que setenham encontrado em situação tão triste comoaquela em que então me encontrava, esperando atodo o instante que a minha caixa se partisse oupelo menos se voltasse ao primeiro golpe de vento efosse submergida pelas vagas; um vidro partido, eestava completamente perdido. Não havia nadaque pudesse fazer senão conservarme à minhajanela, que estava munida pelo lado de fora dearames muito fortes que a protegiam contra osacidentes que podem ocorrer em uma viagem. Vi aágua entrar na minha caixa por algumasfendazinhas, que tratei de tapar o melhor possível.
Ah! não tinha força para levantar a tampa daminha caixa, o que, se pudesse, faria, e aí mecolocaria de preferência a ficar encerrado nessaespécie de porão.
Nesta crítica situação, ouvi, ou julguei ouvir, umaespécie de ruído ao lado da caixa; depressacomecei a imaginar que era puxada e de algumaforma rebocada, porque, de tempos a tempos,sentia como que um esforço, que fazia subir asondas até à altura das janelas, deixandome quaseàs escuras. Alimentei, então, algumas fracasesperanças de salvação, ainda que não pudesseimaginar de onde ela me viria. Subi para ascadeiras e aproximei a cabeça de uma pequenaabertura que havia na tampa da caixa, e desatei agritar com toda força e a pedir socorro em todas aslínguas que sabia. Em seguida, atei o lenço a umabengala que tinha e, fazendoa sair pela abertura,manejeia muitas vezes no espaço, a fim de que, sealgum barco ou navio estivesse próximo, osmarinheiros pudessem conjecturar que dentrodaquela caixa estava um desgraçado mortal.
Não notei que tudo isso tivesse dado algumresultado, mas constatei que a minha caixacaminhava sempre para a frente. Ao cabo de umahora senti que chocava contra alguma coisa dura.Temi a princípio que fosse um rochedo e fiqueimuito alarmado com o caso. Ouvi, então,claramente, bulha sobre a tampa da caixa, como ade um cabo; depois, fui içado a pouco e poucoquase três pés a mais do que estava anteriormente;ao notar isso, ergui ainda a bengala e o lenço,gritando por socorro até ficar rouco. Comoresposta, ouvi grandes aclamações repetidas três
vezes, que me causaram transportes de alegria quenão podem ser compreendidos senão por aquelesque os sentem; ao mesmo tempo ouvi andar sobrea tampa e alguém, chamando pela abertura, eminglês, perguntou:
— Está alguém aí?
— Sim! — respondi — Sou um pobre inglês reduzidopela fortuna à maior calamidade que até agoraqualquer criatura tenha sofrido. Em nome deDeus, salveme desta enxovia.
Ao que a voz me redarguiu:
— Tranquilizese, que nada tem a recear; a caixaestá segura ao navio, e o carpinteiro vem já parafazer um buraco e tirálo daí.
Respondi que isso era desnecessário e demoravamuito tempo; que bastava que qualquer tripulantepusesse o dedo no cordão a fim de levar a caixapara fora do mar, e colocála a bordo. Alguns dosque me ouviam falar assim, imaginavam que eraum pobre insensato; outros riam; eu entretantonão me lembrava que estava tratando com homensda minha estatura e da minha força. Apareceu ocarpinteiro e, dentro de poucos minutos, fez umaabertura na tampa, com a largura de três pés, edeume uma pequena escada pela qual subi.Entrei ao navio em um estado de grandíssimafraqueza.
Os marinheiros ficaram espantados eformularamme mil perguntas, a que não tivecoragem de responder. Imaginava verme entrepigmeus, tanto os meus olhos se haviam habituadoaos objetos monstruosos que acabara de deixar;
mas o capitão, M. Thomas Viletcks, homem deprobidade e de mérito, oriundo da província deSalop, reparando em que eu estava caindo defraqueza, mandoume entrar para o seu quarto,deume um cordial para me fortalecer e fezmedeitar na sua cama, aconselhandome a querepousasse, pois carecia bastante de descanso.Antes que adormecesse, disselhe que possuíapreciosos móveis dentro da minha caixa, umasoberba maca, uma cama de campanha, duascadeiras, uma mesa, um armário; que o meuquarto era atapetado ou, para melhor dizer,estofado de seda e algodão; que, se quisessemandar algum homem da sua tripulação rebuscaro meu quarto, abriloia na sua presença e lhemostraria os móveis. O capitão, ouvindomeaqueles absurdos, julgou que eu estava louco; noentanto, para me ser agradável, prometeu mandarfazer o que lhe pedia e, subindo ao convés,mandou alguns dos seus homens revistar a caixa.
Dormi durante algumas horas, mas continuamentesobressaltado pela idéia da região que deixara e doperigo que correra. Contudo, ao despertar,acheime muito bem disposto. Eram oito horas danoite e o capitão ordenou que me dessem de cearimediatamente, supondo que jejuara durantemuito tempo. Tratoume com extrema bondade,notando, todavia, que eu tinha os olhosdesvairados. Quando nos deixaram sós, pediumeque lhe narrasse as minhas viagens e lheexplicasse por que acidente eu fora abandonadonaquela grande caixa à mercê das ondas. Dissemeque, por volta do meiodia, olhando pelo óculo, adescobrira de muito longe e a tomara por umpequeno barco, que queria apanhálo, em vista de
querer comprar bolacha que lhe faltava; que, aoaproximarse, conhecera o seu erro e mandara oescaler para verificar o que era; que os seushomens tinham voltado verdadeiramenteaterrados, jurando que haviam visto uma casaflutuante; que rira do seu disparate e que elepróprio embarcara no escaler, ordenando aos seusmarinheiros que trouxessem um cabo; que, como otempo estava sereno, depois de ter remado emvolta da grande caixa, rodeandoa por várias vezes,dera com a janela; que ordenara então à sua genteque remasse e se aproximasse desse lado e, queligando um cabo a uma das argolas da janela,fizeraa rebocar; que vira a bengala e o lenço pelaabertura e que imaginara que alguns desgraçadosestivessem encerrados nela. Pergunteilhe se ele oua sua tripulação não tinham visto aves prodigiosasno ar, na ocasião em que me descobriram, ao queredarguiu que, falando sobre esse assunto com osmarinheiros, enquanto dormia, um deles lhedissera ter observado três águias que tomavam orumo do norte; porém não tinha notado quefossem maiores do que o vulgar, o que é fácil desupor, visto a enorme altura a que voavam, e nãopôde também adivinhar o motivo por que lheformulavam semelhante pergunta. Em seguida,perguntei ao capitão a que distância supunhaestar de terra; respondeume que, pelos melhorescálculos que pudera fazer, estávamos afastadoscem léguas. Garantilhe que estava completamenteenganado em quase metade, porque não tinhadeixado o país de onde eu vinha, senão duas horasantes que eu caísse ao mar; esta minha observaçãofêlo voltar a crer que o meu cérebro estavaavariado, e aconselhoume que tornasse a deitarna cama, num quarto que de antemão me
mandara preparar. Afirmeilhe que me sentia bemdisposto depois da refeição e com a sua amávelcompanhia, e que estava no pleno uso das minhasfaculdades mentais e tão perfeitamente comoantes.
Retomou a sua costumada seriedade e pediumepara lhe dizer francamente se eu não tinha aconsciência perturbada por algum crime quetivesse cometido e que fosse punido por ordem dealgum príncipe, e exposto nessa caixa, como porvezes acontece aos criminosos de certos países,que são abandonados à mercê das ondas numnavio sem velas e sem víveres; que embora sesentisse arrependido por haver recolhido a bordotal celerado, dava a sua palavra de honra que medesembarcaria, com segurança, no primeiro portoque tocasse; acrescentou que as suas suspeitashaviam aumentado em virtude de alguns discursosmuito absurdos, que fizera a princípio a algunsmarinheiros, e, depois, a ele mesmo, com relação àminha caixa e ao meu quarto e bem assim pelosmeus desvairados olhos e estranha atitude.
Pedilhe que ouvisse com paciência a narrativa daminha vida; historieilha mui fielmente desde aúltima vez que deixara a Inglaterra até o momentoem que me descobrira; e, como a verdade abresempre um caminho nos espíritos inteligentes, estehonesto e digno fidalgo, que possuía bom senso enão era completamente destituído de letras, ficousatisfeito com a minha boa fé e sinceridade; mas,além disso, para confirmar tudo quanto eu dissera,pedilhe que desse ordem para trazerem o meuarmário, cuja chave estava em meu poder; abrio àsua vista e filo examinar todas as curiosas coisas
executadas no país de onde eu saíra de uma formatão estranha. Entre outros objetos, havia o penteque eu fabricara com os pêlos das barbas do rei eum outro da mesma matéria, ao qual servia deguarnição uma apara da unha do dedo polegar domesmo soberano; havia uma carta de agulhas e dealfinetes com o comprimento de pé e meio; um anelcom que um dia a rainha me presenteara de umaforma muito cativante, tirandoo do dedo eenfiandomo no pescoço, como se fora um colar.Pedi ao capitão que aceitasse aquele anel comotestemunho de reconhecimento pelos favoresdispensados, o que ele recusou terminantemente.Por fim, disselhe que examinasse atentamente ascalças que eu usava e que eram feitas de pele derato.
O capitão ficou muito satisfeito com tudo o que lhecontei e disseme que esperava, quando do nossoregresso à Inglaterra, que eu escrevesse a relaçãodas minhas viagens e a publicasse em volume.Respondi que julgava haver já muitos livros deviagens; que as minhas aventuras não passariamde um simples romance e de uma ridícula ficção;que a minha relação conteria apenas descrições deplantas e de animais extraordinários, de leis, decostumes e usos extravagantes; que essasdescrições eram muito vulgares e que já estavamfartos delas; e que, não tendo outra coisa a dizercom respeito às minhas viagens, não valia a penadarme o trabalho de descrevêlas. No entanto,agradecilhe a lisonjeira opinião que formava ameu respeito.
Pareceume admirado de uma coisa: de eu falar tãoalto, perguntandome se o monarca e a soberana
desse país eram surdos. Respondilhe que era umacoisa a que me habituara havia mais de dois anose que, por meu lado, admirava a sua voz e a da suagente, que parecia falarme sempre ao ouvido, masque apesar disso, podia ouvilos muito bem; que,quando falava nesse país, era como um homemque fala da rua para outro que está no alto de umcampanário, exceto quando era colocado sobreuma mesa ou equilibrado na mão de qualquerindivíduo. Declareilhe que notara outra coisa e eraque, a princípio, ao entrar no navio, quando osmarinheiros se mantinham de pé junto de mim,pareciamme infinitamente pequenos; que, durantea minha permanência nesse país, não podiaverme ao espelho, desde que os meus olhos sehaviam habituado a objetos grandes, porque acomparação que fazia tornavame desprezível amim próprio. O capitão disseme, enquantoceávamos, que tinha notado que eu examinava ascoisas com uma espécie de assombro e quealgumas vezes lhe parecia que fazia esforços paranão soltar uma gargalhada; que, em taismomentos, não sabia como aceitar o caso, mas queo atribuía a um desarranjo mental. Redargui queestava assombrado por haver sido capaz de meconter ao ver os pratos da grossura de uma moedade prata de três soldos, uma perna de carneiro queera uma simples isca, um copo tão grande comouma casca de noz e, assim sucessivamente,continuei a descrever todo o resto dos seus móveise das suas coisas, comparativamente; porque,embora a rainha me tivesse dado para meu usotudo quanto era necessário num tamanhoproporcionado à minha estatura, o que é certo éque as minhas idéias estavam completamenteentregues ao que via em volta de mim, e fazia como
todos os homens que examinam continuamente osoutros sem se examinarem a si próprios e semprestarem atenção à sua pequenez. O capitão,referindose ao velho rifão inglês, disseme que eutinha mais olhos do que barriga, pois que repararaque não comia com grande apetite; e continuandoa gracejar, acrescentou que daria com prazer cemlibras esterlinas para ter o gosto de ver a minhacaixa no bico da águia e, em seguida, cair de tãogrande altura no mar, o que certamente seria umcaso muito interessante e digno de ser transmitidoaos séculos vindouros.
O citado capitão, que regressava de Tonquin,faziase de vela para Inglaterra, e fora impelidopara o nordeste, a quarenta graus de latitude, ecento e quarenta e três de longitude; como, porém,se levantasse um vento de monção dois dias depoisda minha estada a bordo, fomos levados para onorte durante muito tempo; e, costeando a NovaHolanda, fizemonos no rumo de oestenordeste edepois de sudoeste, até termos dobrado a Cabo daBoa Esperança. A nossa viagem foi muito feliz, maseu pouparei ao leitor a sua descrição. O capitãoaproou a uns dois portos e fez chegar aí o seuescaler para trazer víveres e tomar água; quanto amim, não saí de bordo senão quando aportamos àsDunas. Isso deuse, creio, que a 3 de Junho de1706, quase nove meses depois da minhalibertação. Ofereci os meus móveis para garantiado pagamento da minha passagem; o capitão,porém, protestou, dizendo nada querer receber.Despedimonos muito afetuosamente e fizlheprometer que iria visitarme em Redriff. Alugueium cavalo e um guia por algum dinheiro que ocapitão me emprestou.
Durante esta viagem, notando a pequenez dascasas, das árvores, do gado e dos habitantes,julgueime ainda em Lilipute: receei pisar osviajantes que encontrava e muitas vezes gritei paraos fazer afastar do caminho, de maneira que emvárias ocasiões corri o risco de ficar com a cabeçapartida por causa da minha impertinência.
Quando cheguei a minha casa, que reconheci acusto, um dos criados abriume a porta e eu baixeia cabeça para entrar, com receio de dar algumacabeçada; essa porta pareciame um postigo.Minha mulher correu logo para me beijar, mascurveime até a altura dos seus joelhos, temendoque não chegasse à boca. Minha filha saltoumepara os joelhos a fim de me pedir a bênção, mas sópude distinguirlhe as feições quando se levantou,estando desde muito acostumado a estar de pé,com a cabeça e os olhos erguidos para cima.Considerei todos os meus criados e uns doisamigos que ali se encontravam como pigmeus e amim como um gigante. Disse a minha mulher queela tinha sido muito frugal, porque eu achava queela própria estava reduzida, assim como a filha, acoisa nenhuma. Numa palavra, procedi de maneiratão estranha que todos formaram de mim a mesmaopinião que o capitão formara quando me viu abordo, e concluíram que eu ensandecera.Pormenorizo estas coisas para tornar conhecido ogrande poder do hábito e do preconceito.
Em pouco tempo me habituei à mulher, à família eaos amigos; minha mulher opinou que eu nãotornaria a embarcar; no entanto, a minha máestrela ordenou precisamente o contrário, como oleitor poderá verificar pelo seguimento. Entretanto,
é aqui que finda a segunda parte das minhasmalaventuradas viagens.
Terceira Parte
VIAGEM A LAPÚCIA, AOS BALNIBARBOS, A LUGGNAGG, AGLUBBDUDRIB E AO JAPÃO
CAPÍTULO I
O autor empreende terceira viagem — É aprisionado pelos piratas — Maldadede um holandês — Chega a Lapúcia.
HAVIA pouco mais de dois anos que permaneciaem minha casa, quando o capitão Guill Robinson,da província de Cornualha, comandante do BoaEsperança, navio de trezentas toneladas, veioprocurarme. Fora outrora cirurgião de um naviode que ele era capitão, numa viagem ao Levante, efui sempre muito bem tratado. O capitão, tendoconhecimento da minha chegada, fezme umavisita em que patenteou a alegria que sentira aoverme de perfeita saúde; perguntoume se eu meresolvera a ficar definitivamente em casa edisseme que projetava fazer uma viagem às ÍndiasOrientais, para onde contava partir dentro de doismeses. Insinuoume ao mesmo tempo que sentiriamuito prazer em que eu continuasse a ser omédico de bordo; que teria um outro cirurgião edois enfermeiros comigo; que receberia soldodobrado; e, depois de provar que o conhecimentoque eu tinha do mar era pelo menos igual ao seu,me levaria como se fosse o imediato.
Enfim, teve palavras tão elogiosas, pareceume tãobondoso, que me deixei levar, tendo ademais,apesar das desgraças passadas, uma grandepaixão pelas viagens. A única dificuldade queprevia era obter o consentimento de minha mulherque, no entanto, mo deu de boa vontade, decertoem vista das vantagens que seus filhos podiamauferir daí.
Fizemonos de vela em 5 de Agosto de 1708 eaportámos ao forte de S. Jorge em 1 de Abril de1709, onde permanecemos três semanas pararefrescar a nossa tripulação, que, na maioria,estava doente. Daí, dirigimonos a Tonquin, onde onosso capitão resolveu demorarse algum tempo,porque a mor parte das mercadorias que tinhavontade de adquirir só lhe podia ser entreguealguns meses depois. Para se desforrar um poucodas despesas da demora, adquiriu um barcocarregado de diferentes espécies de mercadorias,de que os Tonquineses fazem um comércioordinário com as ilhas próximas, e, embarcando aíquarenta homens, em que incluíra três da região,fezme seu capitão e deume plenos poderesdurante dois meses, enquanto ele negociava emTonquin.
Ainda não havia três dias que nos tínhamos feitoao mar quando rebentou uma violenta tempestadeque nos impeliu durante cinco dias para nordeste eem seguida para este. O tempo serenou um pouco,mas o vento de oeste continuava a soprar comforça.
Ao décimo dia, dois piratas perseguiramnos e logonos aprisionaram, porque o meu navio estava tãocarregado que singrava muito lentamente,
sendonos por completo impossível manobrar demaneira a nos defender.
Os dois piratas abordaram e entraram no nossonavio à frente dos seus homens; encontrandonos,porém, de bruços, como eu ordenara,contentaramse em ligarnos e, fazendonosguardar, principiaram a visitar o navio.
Notei entre eles um holandês que parecia ter certaautoridade, conquanto fosse apenas a do comando.Pelos nossos modos conheceu que éramos inglesese, falandonos na sua língua, dissenos que nosiam ligar a todos costas com costas e lançarnos aomar. Como eu falasse muito bem holandês,declareilhe quem éramos e soliciteilhe, emconsideração do nome comum de cristãos e decristãos reformados, de vizinhos, de aliados, queintercedesse por nós junto do capitão. As minhaspalavras deram apenas como resultado irritálo;redobrou as ameaças e, voltandose para oscompanheiros, faloulhes em língua japonesa,repetindo amiudadas vezes a palavra cristãos.
O maior navio desses piratas era comandado porum capitão japonês, que falava um pouco a línguaholandesa; dirigiuseme e, após algumasperguntas, a que humildemente respondi,asseguroume que nos pouparia a vida. Fizlhe umgrande cumprimento e, virandome, então, para oholandês, disselhe que estava bastante admiradode ter encontrado mais humanidade num idólatrado que num cristão. Em breve, porém, tive de mearrepender das palavras que proferira, porque essemiserável réprobo, tendo tentado em vão persuadiros dois capitães a que me lançassem ao mar (noque não quiseram consentir por causa da
promessa que um deles me havia feito), obteve quefosse ainda mais rigorosamente tratado do que seme matassem. Haviam dividido a minha gentepelos dois navios e pelo barco; quanto a mim,decidiram abandonarme à sorte, num batel comdois remos, uma vela e víveres para quatro dias. Ocapitão japonês redobrou a dose e tirou das suaspróprias provisões esse caridoso aumento; nãoquis até que me expoliassem. Desci, pois, paraesse barquinho, enquanto o brutal holandês medirigia do alto da coberta todas as injúrias eimprecações que a sua linguagem podia lhefornecer.
Quase uma hora antes de sermos vistos pelos doispiratas, tomara altura, e vira que nosencontrávamos a quarenta e seis graus de latitudee a cento e oitenta e três de longitude. Quando mevi um pouco afastado, descobri com um óculodiferentes ilhas ao sudoeste. Então, icei a vela, poiso vento estava de feição, com desejo de aproar àmais próxima dessas ilhas, o que me deu tarefapara três horas. Esta ilha não era mais do queuma rocha, onde encontrei muitos ovos depássaros; então, usando do meu fuzil, lancei fogo aalgumas raízes e a alguns juncos marítimos parapoder cozer os ovos, que foram nessa noite todo omeu sustento, estando resolvido a poupar asminhas provisões tanto quanto me fosse possível.Passei a noite nessa rocha, deitado no chão sobreas urzes que me serviram de cama, e dormi muitobem.
No dia seguinte, fizme de rumo para outra ilha edepois para uma terceira e para uma quarta,servindome às vezes dos remos; mas, para não
maçar o leitor, direi apenas que ao cabo de cincodias atingi a última ilha que vira, e que ficava aosudoeste da primeira.
Esta ilha estava mais afastada do que euimaginava e só pude chegar lá passadas cincohoras. Dei uma volta completa antes de poderaproar. Pondo pé em terra numa pequena baía,que era três vezes mais larga do que o meubarquinho, notei que toda a ilha não passava deum grande rochedo, com alguns intervalos em quenasciam relva e ervas muito odoríferas. Tomei asminhas pequenas provisões e, depois de havercomido um pouco, guardei o resto numas covas, deque havia grande número. Apanhei alguns ovos norochedo e arranquei certa quantidade de juncosmarítimos e ervas secas, a fim de as acender nodia seguinte para cozinhar os meus ovos, porquetinha comigo o meu fuzil, a isca e uma lente.Passei toda a noite na cova, onde colocara asminhas provisões; a minha cama eram essas ervasdestinadas para o lume. Dormi pouco, porqueestava mais inquieto do que cansado.
Considerei que era impossível não morrer numlugar tão miserando. Acheime tão combalido comestas reflexões, que não tive coragem para melevantar e, antes de me sentir com forças para sairdo meu esconderijo, o sol já ia muito alto; fazia umtempo magnífico e o sol estava tão ardente que eraobrigado a desviar dele o rosto.
De repente, porém, escureceu de maneira diferentedo que costuma acontecer quando passa umanuvem. Volteime para o sol e vi um grande corpoopaco e móvel entre mim e o astro, que pareciaandar de um lado para o outro. Este corpo
suspenso, que se me afigurava ficar a duas milhasde altura, ocultoume o sol durante sete minutos;porém não pude observar a causa daquelaescuridão. Quando este objeto chegou mais pertodo sítio em que me encontrava, pareceume ser deuma substância sólida, cuja base era plana, unidae luzente pela reverberação do mar. Detiveme emum montículo, quase a duzentos passos damargem, e vi esse corpo descer e aproximarse demim, a uma milha de distância talvez. Tomei,então, o meu telescópio, e descobri grande númerode pessoas em movimento, pessoas que meolhavam e se olhavam umas para as outras.
O instinto natural da vida fezme nascer algunssentimentos de alegria e de esperança, pois queesta aventura poderia ajudarme a sair dodesgraçado estado em que me encontrava; aomesmo tempo, porém, o leitor não pode imaginar aestupefação que me causou a vista daquela espéciede ilha aérea, habitada por homens que tinham aarte e o poder de a levantar, de a baixar e de afazer andar à sua vontade; não tendo, contudo, oespírito de filosofar sobre tão estranho fenômeno,contenteime em observar para que lado é que ailha girava, porque me pareceu parar algum tempo.Entretanto, aproximouse do lado em que euestava e pude descortinar muitos terraços grandese escadarias de espaço a espaço para comunicaremumas com outras.
Sobre o terraço mais baixo, vi muitos homens quepescavam aves à linha e outros que olhavam.Fizlhes sinal com o chapéu e com o lenço; e,quando os vi mais perto, gritei com toda a forçados meus pulmões. Tendo, então, olhado com a
máxima atencão vi uma enorme multidãoapinhada no ponto que me ficava em frente.Descobri, pelas suas posições, que me viam,embora me não tivessem respondido. Reparei,então, nuns seis homens que subiamapressadamente ao cume da ilha, e supus quefossem enviados a algumas pessoas de autoridadepara receberem ordens sobre o que deviam fazernesta ocasião.
A multidão dos insulares aumentou e, em menosde meia hora, a ilha aproximouse de tal maneira,que mediaram apenas uns cem passos de distânciaentre ela e mim. Foi, então, que adotei váriasposições humildes e comoventes e dirigi váriassúplicas; não obtive resposta alguma; os quepareciam estar mais próximos, a julgar pelas suasroupas, eram pessoas de distinção.
Por fim, um deles fez ouvir a sua voz numalinguagem clara, polida e muito suave, cujo timbrese aproximava do italiano; foi também em italianoque respondi, imaginando que o som e aacentuação desta língua seriam mais gratos aosseus ouvidos do que qualquer outro idioma. Estepovo compreendeu o meu pensamento; assim,fizeramme sinal para que descesse do rochedo eque me encaminhasse para a margem. Então, dailha volante, baixandose a uma alturaconveniente, deitaramme de cima do terraço umacorrente com uma pequena cadeira suspensa,sobre a qual me sentei, sendo, num momento,içado por meio de um cadernal.
CAPÍTULO II
Carácter dos Lapucianos — Opinião a respeito dos seus sábios, do seu rei eda corte — Recepção que foi feita ao autor — Os receios e as inquietações dos
habitantes — Carácter das mulheres lapucianas.
Assim que cheguei, encontreime rodeado de umamultidão que me observava admirada e que eucontemplei do mesmo modo, não tendo visto nuncatão singular raça de mortais tanto no rosto, comonos hábitos e nas maneiras; inclinavam a cabeçaora para a direita, ora para a esquerda; tinham umolho voltado para dentro e outro para o sol. Assuas roupas eram semeadas de figuras do sol, dalua e das estrelas e cheios de rabecas, de flautas,de harpas, de trombetas, de guitarras, de alaúdese de muitos outros instrumentos musicaisdesconhecidos na Europa. Vi em torno delesmuitos criados armados de bexigas, ligadas comum malho na ponta de um pequeno pau, ondehavia certa quantidade de ervilhinhas e seixinhos;batiam de tempos a tempos com essas bexigas naboca ou nas orelhas daqueles que lhes ficavammais próximos e não pude perceber o motivo de talhábito. A inteligência deste povo parecia tãodistraída e tão mergulhada em profundameditação, que ninguém podia falar nem estar comatenção ao que se lhe dizia sem o auxílio daquelasruidosas bexigas, com que se lhe batia na boca ounas orelhas, para o despertar. Esta era a razão porque as pessoas que possuíam certos meios,mantinham um criado, que lhes servia de monitore sem o qual nunca saíam.
A ocupação deste personagem, quando duas outrês pessoas se encontravam juntas, consistia embater habilmente com a bexiga na boca daquele a
quem se dirigia o discurso. O monitoracompanhava sempre o seu amo quando ele saía, eera obrigado a darlhe, de quando em quando, coma bexiga nos olhos, porque, sem isso, os seusgrandes devaneios pôloiam muita vez em perigode cair em algum precipício, ou de bater com acabeça em algum poste, de empurrar os outros narua, ou de ser lançado em algum riacho.
Fizeramme subir ao cume da ilha e entrar nopalácio do rei, onde vi Sua Majestade num trono,cercado de personagens da primeira distinção. Emfrente do trono estava uma grande mesa cheia deglobos, esferas e de instrumentos matemáticos detoda espécie. O rei não deu pela minha entrada,embora a multidão que me acompanhasse fizessebastante alarido; estava, então, entregue à soluçãode um problema, e parámos defronte dele duranteuma hora precisa, à espera de que Sua Majestadeacabasse a sua operação. Havia junto dele doispajens empunhando bexigas, e um deles, quandoSua Majestade concluiu o trabalho, bateulhedocemente e com respeito na boca, enquanto ooutro lhe bateu na orelha direita. O rei pareceu,então, despertar como que em sobressalto e,circunvagando a vista por mim e pela gente que merodeava, recordouse do que lhe haviam ditoacerca da minha chegada, poucos momentosantes; dirigiume algumas palavras e logo umhomem, armado de uma bexiga, se aproximou demim e bateume com ela na orelha direita; fizlhe,porém, sinal de que era desnecessário ter essetrabalho, o que deu ao rei e a toda a corte umaelevada idéia acerca da minha inteligência. Osoberano fezme algumas perguntas, a querespondi sem que um e outro nos
compreendêssemos. Em seguida me conduziram aum aposento onde me serviram o jantar. Quatropessoas de distinção me deram a honra de sesentar perto de mim; tivemos dois serviços, cadaum de três pratos. O primeiro era composto deuma perna de carneiro cortada em triânguloequilátero; de uma peça de boi sob a forma de umrombóide e de um chouriço de sangue sob a de umciclóide. O segundo serviço foi constituído por doispratos semelhando rabecas, salsichas e lingüiças,que pareciam flautas e oboés, e um fígado de veadoque tinha a aparência de uma harpa. Os pães, quenos serviram, tinham a configuração de cones, decilindros e de paralelogramos.
Depois do jantar, um homem veio ter comigo daparte do rei, com uma caneta, tinta e papel, efezme compreender, por sinais, que tinha ordemde me ensinar a língua do país. Estive com eleperto de quatro horas, durante as quais escrevi emquatro colunas um grande número de palavrascom a tradução em frente. Ensinoume tambémalgumas frases curtas, cujo sentido me deu aconhecer, dizendome o que elas significavam. Omeu professor mostroume em seguida, num dosseus livros, a figura do sol, da lua, das estrelas, dozodíaco, dos trópicos e dos círculos polares,dizendome o nome de tudo isso, assim como detoda a espécie de instrumentos de música, com ostermos desta arte relativos a cada instrumento.Quando acabou a lição, compus para meu usoparticular um pequeno e bonito dicionário de todosos vocábulos que aprendera e, em poucos dias,graças à minha feliz memória, soube sofrivelmentea língua lapuciana.
Na manhã seguinte compareceu um alfaiate, queme tirou medidas. Os alfaiates dessa regiãoexercem o seu mister de maneira diferente da dosoutros países da Europa. Tirou primeiramentemedida da altura do meu corpo com um quadrantee depois com régua e compasso, tendo medido acircunferência e toda a proporção dos membrossuperiores, fez o cálculo em um papel e, ao fim deseis dias, trouxeme uma roupa muito mal feita;desculpouse, dizendome que tivera a infelicidadede enganarse nos cálculos.
Nesse dia, Sua Majestade ordenou que fizessemavançar a sua ilha para Lagado, que é a capital doseu reino em terra firme, e depois para certascidades e aldeias, a fim de receber osrequerimentos dos seus súditos. Para esse efeitodeixou cair uma porção de cordéis com uma bolade chumbo na extremidade, com o fim de que oseu povo atasse aí os seus requerimentos, queeram puxados depois e que no ar davam aaparência de papagaios.
Os conhecimentos que eu possuía acerca dematemáticas auxiliaramme muito paracompreender o seu modo de falar e as metáforas,extraídas na sua maioria das matemáticas e damúsica, porque sei também um pouco desta arte.Todas as suas idéias não passavam de linhas e defiguras, e até a sua galanteria era toda geométrica.Se, por exemplo, queriam gabar a beleza de umadonzela, diziam que os seus dentes brancos erambelos e perfeitos paralelogramos; que assobrancelhas eram um segmento encantador, ouuma bela porção de círculos; que os olhosformavam uma admirável elipse; que o colo era
ornado de dois globos acíntotas. O seno, atangente, a linha reta, a linha curva, o cone, ocilindro, a oval, a parábola, o diâmetro, o raio, ocentro, o ponto, são entre eles termos que entramna linguagem do amor.
As casas eram pessimamente construídas; e arazão é que nesse país se despreza a geometriaprática como uma coisa vulgar e mecânica. Nuncavi povo tão tolo, tão mesquinho e tão inábil emtudo quanto se relacione com as ações comuns e omodo de proceder. São, além disso, os pioresargumentadores do mundo, sempre dispostos acontradizer, exceto quando pensam com justiça, oque lhes acontece raramente, e, então, calamse;não sabem o que seja imaginativa, invenção,retratos, e não têm sequer termos na sua línguaque exprimam estas coisas. Deste modo todas assuas obras, incluindo as poesias, parecemteoremas de Euclides.
Muitos deles, principalmente aqueles que sededicam à astronomia, caem na astrologiajudiciária, embora não se atrevam a confessálopublicamente; mas o que eu encontrei de maissurpreendente, foi a tendência, que tinham, para apolítica, e a curiosidade pelos comentários;falavam continuamente dos negócios de Estado efaziam sem cerimônia alguma o seu juízo acerca detudo quanto se passava nos gabinetes dospríncipes. Notei, muitas vezes, o mesmo carácternos nossos matemáticos europeus, sem nunca terpodido encontrar a menor analogia entre osmatemáticos e a política, salvo se se imagina que,assim como um círculo menor tem tantos grauscomo o círculo maior, aquele que se encontra apto
para raciocinar sobre um círculo traçado numpapel, possa do mesmo modo fazêlo sobre a esferado mundo; porém não será antes o defeito naturalde todos os homens, que se dão o prazer de falar ede raciocinar sobre o que menos percebem?
Este povo parece sempre inquieto e assustado.Aquilo que não conseguiu nunca impedir orepouso dos outros homens é o contínuo assuntodas suas queixas e dos seus temores; ficamapreensivos com a alteração dos corpos celestes;por exemplo: que a terra, pelas contínuasaproximações do sol, não seja por fim devoradapelas chamas deste terrível astro; que esse archoteda natura não se encontre a pouco e pouco cobertode crosta pela espuma e não venha a apagarsecompletamente para os mortais; temem que opróximo cometa que, consoante os seus cálculos,aparecerá dentro de trinta e um anos, com umapancada da sua cauda fulmine a terra e a reduza acinzas; receiam ainda que o sol, à força deespalhar os raios por toda parte, venha a gastarsee a perder completamente a sua substância. Sãoestes os receios e as inquietações que lhes tiram osono e os privam de toda a espécie de prazeres;assim, logo que se encontram de manhã, asprimeiras palavras que trocam entre si éreferindose a ele, perguntando como passa, e emque estado nasceu e desapareceu no ocaso.
As mulheres desta ilha são muito vivas; desprezamos maridos e são muito amáveis com osestrangeiros, de que há sempre um considerávelnúmero na comitiva da corte; é também entre elesque as damas da corte escolhem os seus amantes.O que há de desagradável nisto, é que elas
costumam entregarse sem rebuço algum e comcerta segurança, porque os maridos estão tãoabsorvidos nas suas especulações geométricas,que se lhes acaricia as mulheres na sua presençasem que eles dêem por isso, contanto que o seumonitor lá não esteja para lhes bater com a bexiga.
As donzelas e as mulheres casadas sentem grandedesgosto em viverem encerradas naquela ilha,embora seja o mais delicioso ponto da terra evivam entre riqueza e magnificências. Podem irpara onde quiserem, na ilha, mas almejam corrermundo e dirigirse à capital, onde lhes é proibido irsem autorização do rei, o que nunca conseguiramobter porque os maridos têm experimentadoalgumas vezes o desgosto de não as tornar a ver.Ouvi contar que uma alta dama da corte, casadacom o primeiro ministro, o homem mais perfeito erico da corte, que a amava loucamente, veio aLagado sob o pretexto de que estava doente, e aípermaneceu oculta durante alguns meses até queo soberano a mandou procurar; foi encontradanum estado lamentável, numa péssima casa, tendoempenhado os seus vestidos para manter umlacaio velho e feio que todos os dias a espancava;livraramna dele muito contra vontade sua e, aindaque o marido a recebesse com bondade,fazendolhe mil carícias e dandolhe vãsrepreensões sobre o seu procedimento, poucodepois tornou a fugir com todas as jóias epedrarias, para ir ter novamente com esse indignoamante; e nunca mais se ouviu falar nela.
O leitor talvez tome esta narrativa por um casoeuropeu, ou mesmo inglês; peçolhe, porém, queconsidere que os caprichos da espécie feminina
não se limitam apenas a uma parte do mundo,nem a um clima único; em qualquer ponto doglobo terrestre são os mesmos.
CAPÍTULO III
Fenômeno explicado pelos filósofos e astrônomos modernos — Os Lapucianossão grandes astrônomos — De como o rei logra apaziguar as sedições.
Solicitei licença do soberano para ver ascuriosidades da ilha; concedeume e ordenou a umdos seus cortesãos que me acompanhasse. Quisprincipalmente saber em que consistia o segredonatural ou artificial que causava os diversosmovimentos de que vou dar ao leitor uma notaexata e filosófica.
A ilha volante é perfeitamente redonda; o seudiâmetro é de sete mil e oitocentos e sete toesas emeia, isto é, quase quatro mil passos, e, porconseguinte, contém aproximadamente dez milacres. O fundo desta ilha ou a superfície inferior,tal como parece a quem a vê por baixo, é como umlargo diamante, polido e talhado regularmente, quereflete a luz a quatrocentos passos. No subsolo hámuitos minerais, situados seguindo a fila ordináriadas minas, e por cima existe um terreno fértil dedez a doze pés de profundidade.
A inclinação das partes da circunferência para ocentro da superfície superior é a causa natural detodas as chuvas e orvalhos que caem na ilha seremconduzidos por pequenos regatos para o meio,onde se juntam em quatro grandes tanques, tendocada um deles quase meia milha de circuito. A
duzentos passos de distância do centro dessestanques, a água é continuamente atraída eevaporada pelo sol durante o dia, o que impede oextravasamento. Demais, como depende do poderreal erguer a ilha acima da região das nuvens e dosvapores terrestres, pode, quando lhe apraz,impedir a queda da chuva e do orvalho, o que nãoestá no poder de nenhum outro potentado daEuropa, que, não dependendo de pessoa alguma,depende sempre da chuva e do bom tempo.
No centro da ilha existe um buraco com perto devinte e cinco toesas de diâmetro, pelo qual descemos astrônomos a um largo zimbório que, por estemotivo, é chamado Flandona gagnole, ou Cava dosAstrônomos, situada a uma profundidade decinqüenta toesas acima da superfície superior dodiamante. Nesta cava havia vinte lâmpadas sempreacesas que, pela reverberação do diamante,espalham uma grande luz por todos os lados. Estelocal é guarnecido de sextantes, de quadrantes, detelescópios, de astrolábios e de outrosinstrumentos astronômicos; a maior curiosidade,porém, de que depende até o destino da ilha, éuma pedra magnética de prodigioso tamanho,talhada em forma de naveta de tecelão.
Tem o comprimento de três toesas e, na sua maiorespessura, mede pelo menos toesa e meia. Esteímã está suspenso por um grosso eixo giratório dediamante, que passa pelo meio da pedra, sobre aqual gira, e que está colocado com tanta precisãoque um fraco impulso pode fazêla mover; estárodeada por um círculo de diamante com aconfiguração do cilindro cavado, com quatro pés deprofundidade, com muitos pés de espessura e com
seis toesas de diâmetro, colocado horizontalmentee mantido por oito pedestais, todos de diamante,tendo cada um a altura de três toesas. Do ladocôncavo do círculo há uns entalhes profundos dedoze polegadas, em que estão colocadas asextremidades do eixo, que gira quando é preciso.
Força alguma pode deslocar a pedra, porque ocírculo e os pés do círculo são de uma só peça como corpo do diamante que forma a base da ilha.
É por meio deste ímã que a ilha se levanta, sebaixa e muda de lugar; porque, em relação a esteponto da terra em que reside o monarca, a pedra émunida, em um dos seus lados, de um poderatrativo e no outro de um poder repulsivo. Assim,quando o ímã está voltado para a terra peloseu pólo amigo, a ilha desce; mas, quando o póloinimigo está voltado para a mesma terra, a ilhasobe. Quando a posição da terra obliqua, omovimento da ilha é igual, porque, nesse ímã, asforças agem sempre em linha paralela à suadireção; é pelo movimento oblíquo que a ilha éconduzida às diferentes partes dos domínios dosoberano.
Este monarca seria o príncipe mais absoluto douniverso, se pudesse arranjar ministros que lheobedecessem em tudo, mas estes, possuindoterrenos em baixo, no continente, e considerandoque o furor dos príncipes é passageiro, não seimportam de causar prejuízo a si própriosoprimindo a liberdade dos seus compatriotas.
Se alguma cidade se revolta ou recusa pagarimpostos, o rei tem duas maneiras de dominála. Aprimeira e mais moderada é estacionar a sua ilha
por cima da cidade rebelde e das terras próximas;dessa maneira priva a região do sol e do orvalho, oque causa doenças e mortandade; mas, se o crimeo merece, atiralhes grandes pedras do alto da ilha,de que só podem livrarse refugiandose nosceleiros e nos subterrâneos, onde passam o tempoa beber enquanto os telhados das suas casas sãodespedaçados. Se continuam temerariamente nasua teimosia e na sua revolta, o rei recorre entãoao último remédio, que é deixar cair a ilha a prumosobre as suas cabeças, o que esmaga todas ascasas e todos os habitantes. No entanto, o prínciperaramente lança mão desse temível extremo, queos ministros não se atrevem a aconselharlhe, vistoque esse violento processo os tornaria odiosos aopovo e prejudicaria também a eles, que possuemos seus bens no continente, porque a ilha sópertence ao rei, que também apenas possui a ilhacomo domínio.
Há ainda uma outra razão mais forte pela qual osreis deste país fogem sempre de aplicar esse últimocastigo, salvo num caso de absoluta necessidade; éporque, se a cidade que se quer destruir ficasituada perto de alguns rochedos altos (porque oshá neste país, assim como em Inglaterra, perto dasgrandes cidades que foram expressamenteconstruídas junto dessas rochas, para sepreservarem das cóleras régias) ou se tem grandenúmero de campanários e pirâmides de pedra, ailha real, com a sua queda, podia quebrarse. Sãoprincipalmente os campanários que o rei teme e opovo sabe isso perfeitamente. Assim, quando SuaMajestade está deveras agastado, faz sempredescer a ilha muito suavemente, com medo, diz ele,de esmagar o seu povo, mas, no íntimo, o que mais
teme é que os campanários lhe quebrem a ilha.Nesse caso, os filósofos supõem que o ímã nãopoderia amparála mais e cairia fatalmente.
CAPÍTULO IV
O autor deixa a ilha de Lapúcia e é levado aos Balnibarbos — A sua chegadaà capital — Descrição desta cidade e arredores — É recebido com bondade
por um grãosenhor.
Embora não possa dizer que fui maltratado nestailha, é contudo verdade que me supus poucoatendido e um tanto desprezado. O príncipe e opovo só se dedicavam a curiosidades, amatemáticas e à música; sobre este assunto estavaeu muito abaixo deles e faziamme justiçadandome pouca importância.
Por outro lado, depois de ter visto todas ascuriosidades da ilha, sentia grande vontade de sairdali, estando muito cansado daqueles aéreosinsulares. É verdade que me excediam em ciências,que muito estimo, e de que possuo algumas luzes;mas estavam tão absorvidos nas suasespeculações que nunca me encontrara em tãotriste companhia. Só me entretinha com mulheres,(que entretenimento para um filósofo marítimo!)com operários, com monitores, com os pajens dacorte e gente de vária espécie, o que aumentou odesprezo que me tinham; mas, de fato, podiaproceder de outro modo? Aqueles eram os únicoscom quem eu podia me entender; os outros nãofalavam.
Havia na corte um grãosenhor, favorito do
soberano e que, por esse único motivo, era tratadocom respeito, sendo contudo considerado por todoscomo um homem muito ignorante e estúpido.Passava por ser honrado e probo, porém não tinhaouvidos para a música e era uma completanegação para matemáticas, tanto que nuncapudera aprender os mais fáceis problemas dearitmética. Este cavalheiro tratoume com as maiscativantes provas de estima; deume muitas vezesa honra de visitarme, desejando informarse dosnegócios da Europa e conhecer os usos, costumes,leis e ciências das diferentes nações em que medemorara; ouviame sempre com a máximaatenção e fazia magníficas observações a respeitode tudo quanto lhe dizia. Dois monitoresacompanhavamno próforma, mas só se serviadeles na corte e nas visitas de cerimônia; quandoestávamos juntos, mandavaos retirar.
Pedi a este alto personagem que intercedesse pormim junto de Sua Majestade para eu me despedir,e ele concedeume essa mercê com prazer, comoteve a bondade de dizerme, e fezme muitos evantajosos oferecimentos que no entanto recusei,patenteando o meu vivo reconhecimento.
A 16 de Fevereiro, despedime de Sua Majestade,que me ofereceu um considerável presente, e omeu protetor deume um diamante, com umacarta de recomendação para um elevadopersonagem seu amigo, residente em Lagado,capital de Balnibarbo. Estando a ilha suspensasobre uma montanha, desci do último terraço dailha pelo mesmo processo por que subira.
O continente chamase Balnibarbo, e a capital,como já disse, tem o nome de Lagado. A princípio,
foi uma grande satisfação para mim o verme emterra firme e não no ar. Dirigime para a cidadesem custo nem estorvo algum, vestindo como oshabitantes e sabendo muito bem a língua para afalar. Encontrei sem dificuldade a moradia dapessoa a quem ia recomendado. Apresenteilhe acarta do elevado personagem e fui muito bemrecebido. Esta personagem, que era uma pessoaimportante balnibarba e que sechama Munodi, deume um belo alojamento emsua casa, onde permaneci durante a minha estadanesse país e onde fui muito bem tratado.
Na manhã do dia seguinte àquele em quecheguei, Munodi fezme entrar no seu coche parame mostrar a cidade, que é grande como meiaLondres; as casas, porém, eram estranhamenteconstruídas, e a maior parte delas estava emruínas; o povo, coberto de andrajos, andava compasso precipitado, tendo um olhar feroz. Passámospor uma das portas da cidade e avançámos unstrês mil passos no campo, onde vi grande númerode lavradores que trabalhavam na terra commuitas espécies de instrumentos; não pude,contudo, perceber o que faziam; não via em partealguma coisa que se parecesse com ervas ou comsementes. Pedi ao meu guia que me explicasse oque pretendiam todas aquelas cabeças e aquelasmãos ocupadas na cidade e no campo, não vendodali resultado algum, porque, na verdade, nuncaencontrara terra tão mal cultivada, nem casas emtão mau estado, um povo tão pobre e tãomiserável.
O senhor Munodi fora muitos anos governador deLagado, mas, pela intriga dos ministros, fora
demitido com grande pezar do povo. No entanto, orei estimavao como um homem que tinhaintenções retas, mas não possuía o espírito decorte.
Quando critiquei livremente o país e os seushabitantes, não me respondeu outra coisa senãoque eu não permanecera tempo suficiente entreeles para ajuizar, e que os diferentes povos domundo tinham usos diversos; empregou outroslugarescomuns semelhantes; mas, quandoregressámos a casa perguntoume que tal achava oseu palácio, que absurdos notava nele e que tinhaa dizer das roupas e maneiras dos seus criados.Podia afoitamente formular aquelas perguntas arespeito do palácio porque era regular, magnífico epolido. Respondi que a sua grandeza, a suaprudência e as suas riquezas o haviam tornadoisento de todos os defeitos que haviam feito osoutros loucos e mendigos; disseme que, se fossecom ele à sua casa de campo, que ficava a vintemilhas, teria muito prazer em falar comigo sobreesse assunto. Retorqui a sua excelência que fariatudo o que desejasse; partimos, pois, no diaseguinte de manhã.
Durante a nossa viagem, fezme observar osdiferentes métodos dos lavradores para semear assuas terras. Contudo, salvo em alguns sítios, nãodescobrira em todo o país nenhuma esperança deseara, nem mesmo nenhum rasto de cultura;tendo, porém, andado ainda três horas, o cenáriomudou completamente. Achámonos em ummagnífico campo. As casas dos lavradores estavamum pouco afastadas e muito bem construídas; oscampos eram fechados e encerravam vinhas,
searas de trigo, campinas, e não me lembro de tervisto coisa tão agradável. O fidalgo, que observavao meu silêncio, disse, então, suspirando, que era aíque começavam as suas terras; que, contudo, osseus compatriotas o troçavam e o desprezavam pornão saber dirigir os seus trabalhos.
Chegámos por fim ao seu palacete, que era denobre estrutura; as fontes, os jardins, asalamedas, as avenidas, os caramanchões estavamdispostos com critério e com gosto. Não regateeilouvores a tudo o que vi, mas Sua Excelência sópareceu dar por isso depois de cear.
Então, como nos encontrávamos sós, disseme,com ar muito triste, que não sabia se lhe seriapreciso, em breve, deitar abaixo as suas casas docampo e da cidade, e destruir todo o seu paláciopara o reconstruir conforme o gosto moderno; mastemia passar por ambicioso, por singular, porignorante, por caprichoso e talvez desagradar àspessoas ricas; que eu não deixaria de ficaradmirado quando soubesse algumasparticularidades que desconhecia.
Declaroume que havia quase quatro anos, certaspessoas tinham ido a Lapúcia, quer para tratar denegócios, quer por distração, e que, passados cincomeses, haviam voltado com algumas luzes sobrematemáticas, mas cheias de espíritos voláteisrecolhidos nessa região aérea; que essas pessoas,ao regressar, tinham começado a reprovar o que sepassava no país inferior e resolvido colocar asciências e as artes em novas bases; que para issohaviam obtido cartaspatentes para erigir umaacademia de engenheiros, ou seja de pessoas e desistemas; que o povo era tão fantástico, que existia
uma academia dessa gente em todas as grandescidades; que, nessas academias ou colégios, osprofessores tinham achado novos métodos paraagricultura e arquitetura, e novos instrumentos emanufaturas, por meio dos quais um só homempoderia produzir tanto como dez, e um paláciopodia ser construído numa semana com materiaistão sólidos, que duraria eternamente sem havernecessidade de reparação; todos os frutos da terradeviam nascer em todas as nações, cem vezesmaiores do que presentemente, com umainfinidade de outros admiráveis projetos.
— É pena — continuou ele — que nenhum dessesprojetos fosse aperfeiçoado até agora, que empouco tempo todo o campo fosse devastadomiseravelmente, que a maior parte das casas tenhacaído em ruínas e que todo o povo, nu, morra defrio, de sede e de fome. Com isto tudo, longe dedesanimarem, sentemse cada vez com maiorcoragem no prosseguimento dos seus sistemas,levados a pouco e pouco pela esperança e pelodesespero.
Acrescentou que, para o que era dele, não sendoum espírito empreendedor, contentarase em agirconforme o método antigo, de viver em casasconstruídas pelos seus antepassados e de fazercomo eles faziam, sem inovações; que as poucaspessoas de distinção que haviam seguido o seuexemplo, tinham sido olhadas com desprezo e setinham até tornado odiosas, criaturas malintencionadas, inimigas das artes, ignorantes,maus republicanos, preferindo a sua comodidade ea sua mole preguiça ao bem geral do país.
Sua Excelência acrescentou que me não queria
tirar, com arrazoados, o prazer que teria quandofosse visitar a academia dos sistemas; que desejavasimplesmente que observasse uma construçãoarruinada do lado da montanha; que o que via, ameia milha do seu palácio, era um moinho, que acorrente de um grande rio fazia mover, o quebastava para a sua casa e para um grande númerodos seus vassalos; que havia aproximadamentesete anos uma companhia de engenheiros vieraproporlhe o arrasamento do moinho e aconstrução de um outro no sopé da montanha, nocume da qual seria construído um reservatóriopara onde a água podia ser levada por meio detubos e máquinas, de maneira que o vento e o arno alto da montanha agitasse a água e atornassem mais fluida, e que o peso desta, aodescer, faria, com a sua queda, mover o moinhocom metade da corrente do rio; disseme que, nãose tendo dado bem na corte, porque não tinha atéagora adotado nenhum dos novos sistemas, eapertado por muitos amigos, aceitara o projeto;que, porém, depois de ter trabalhado durante doisanos, a obra resultará má e os empreendedoreshaviam fugido.
Alguns dias depois, desejei ver a academia dossistemas e Sua Excelência quis ter a amabilidadede me dar um guia para me acompanhar;tomavame talvez por um grande admirador denovidades, por um espírito curioso e crédulo. Nofundo, eu tinha sido na mocidade homem deprojetos e de sistemas, e ainda hoje tudo o que énovo e arrojado me agrada extremamente.
CAPÍTULO V
O autor visita a academia e descrevea.
A instalação desta academia não é um único esimples corpo de habitação, mas uma série dediversas edificações ocupando dois lados de umlargo.
Fui magnificamente recebido pelo porteiro, que medisse logo que, naquelas edificações, cada quartoencerrava um engenheiro, quando não mais, e quehavia perto de quinhentos quartos na academia.
O primeiro mecânico que avistei pareceume umhomem magríssimo: tinha a cara e as mãos cheiasde gordura, a barba e o cabelo crescidos, com umaroupa e uma camisa cor da pele; entregavase,havia oito anos, a um curioso projeto, queconsistia, segundo ele, em recolher os raios do sol,a fim de os encerrar em frascos hermeticamentefechados, os quais podiam servir para aquecer o arquando os estios fossem pouco quentes;declaroume que outros oito anos seriamsuficientes para fornecer aos jardins dos ricosproprietários raios de sol por preço módico;lamentouse, porém, de que os seus fundos fossemparcos e pediume lhe desse alguma coisa para oanimar.
Passei a um outro quarto, mas depressa voltei ascostas, não podendo suportar o mau cheiro. O meuguia obrigoume a entrar, dizendo em voz baixaque tomasse cautela em não ofender um homemque disso se sentiria; assim, nem sequer funguei.O engenheiro que habitava este quarto era o maisantigo da academia; o rosto e a barba eram de cor
pálida e amarela e as mãos e a roupa estavamcobertas de uma nauseante gordura. Quando lhefui apresentado, abraçoume muito estreitamente,delicadeza que teria dispensado. A sua ocupação,desde a sua entrada na academia, consistia emfazer tornar os excrementos humanos à naturezados alimentos de onde eram tirados pela separaçãodas partes diversas e pela depuração da tinturaque o excremento recebe do fel e causa maucheiro. Entregavamlhe todas as semanas, da parteda companhia, um prato cheio de matérias, dotamanho quase de um barril de Bristol.
Vi um outro ocupado em calcinar gelo, para extrairdele, consoante dizia, magnífico salitre, do qualfaria pólvora para canhão; mostroume um tratadoconcernente à maleabilidade do fogo, tratado queestava com intenção de publicar.
Em seguida, vi um arquiteto muito engenhoso, queimaginara um admirável método para construircasas começando pelo telhado e acabando pelosalicerces, projeto que me justificou magnificamentepelo exemplo de dois insetos: a abelha e a aranha.
Havia um homem, cego de nascença, que tinha sobas suas ordens muitos aprendizes cegos como ele.O seu emprego consistia em compor cores para ospintores. Este professor ensinava a distinguilaspelo tato e pelo cheiro. Fui bastante infeliz em osachar então muito pouco instruídos, e o próprioprofessor não era mais hábil.
Subi a um aposento, onde se encontrava umgrande homem que descobriu o segredo de lavrar aterra com porcos, e poupar assim as rações doscavalos, dos bois, a charrua e o lavrador. O seu
método é este: no espaço de um acre de terreno,enterravase, de seis em seis polegadas, certaquantidade de bolotas, de tâmaras, de castanhas eoutros frutos que os porcos apreciam; depoislargavamse seiscentos ou mais destes suínos que,com as mãos e o focinho, punham, em muitopouco tempo, a terra em estado de ser semeada eestrumavamna também, restituindolhe o quetinham retirado. Por fatalidade, havendo feito aexperiência, e além disso achando o sistema caro edifícil, o campo quase nada produzira. Nãoduvidava, contudo, de que o invento fosse degrandes conseqüências e de verdadeira utilidade.
Num aposento fronteiro residia um homem quetinha idéias contrárias no tocante ao mesmoassunto. Pretendia fazer marchar uma charruasem bois e sem cavalos, mas com a ajuda do ventoe, para esse efeito, construíra uma charrua commastro e velas; sustentava que, pelo mesmoprocesso, faria andar carros e carroças, e que,como conseqüência, se poderia fazer o serviço deposta pondolhes velas, tanto por mar como porterra; que, em vista de haver vários ventos no mar,não era difícil fazer a mesma coisa em terra.
Passei a um outro quarto, que estava todoatapetado com teias de aranha, onde mal haviaespaço para dar passagem ao operário. Assim queeste me viu, exclamou:
— Tome cuidado, não dê cabo das minhas teias!
Conversei com ele e foime dizendo que era umacoisa lamentável a cegueira que os homens tinhamtido até agora em relação aos bichos da seda,enquanto tinham à sua disposição tantos insetos
domésticos, de que não faziam uso algum e que,no entanto, eram preferíveis a essas lagartas, quesó sabiam fiar, ao passo que a aranha sabia fiar etecer. Acrescentou que o uso das teias de aranhapouparia ainda, com a continuação, as despesasda tintura, o que eu conceberia muito facilmentequando me tivesse feito ver um grande número demoscas de encantadoras e variegadas cores, comque ele alimentava as suas aranhas; que era certoque as suas teias tomariam, infalivelmente, a cordaquelas moscas e que, como as havia denumerosas espécies, esperava também ver embreve teias capazes de satisfazer, pelas cores, todosos diversos gostos dos homens, logo que pudesseencontrar um certo alimento suficientementeglutinoso para as suas moscas, a fim de que os fiosda aranha adquirissem maior força e solidez.
Vi depois um célebre astrônomo, que tinhaimaginado colocar um quadrante na ponta dogrande campanário da casa da câmara, ajustandode tal maneira os movimentos diurnos e anuais dosol com o vento, que pudessem concordar com omovimento da ventoinha.
Senti, durante alguns momentos, uma ligeiracólica, quando o meu guia me fez entrar muito apropósito no quarto de um grande médico, que setornara celebérrimo pelo segredo de curar a cólicade um modo completamente maravilhoso. Tinhaum grande fole, cujo tubo era de marfim; erainsinuando diversas vezes esse tubo no ânus, quepretendia, por essa espécie de clister de vento,atrair todos os gases interiores e purgar assim asentranhas atacadas de cólica. Fez a sua operaçãonum cão que, por fatalidade, morreu
imediatamente, o que desconcertou deveras onosso doutor e me tirou a vontade de recorrer aoseu remédio.
Depois de ter visitado o edifício das artes, passei aum outro corpo da casa, onde estavam os fatoresdos sistemas em relação às ciências. Entrámosprimeiro na escola de linguagem, onde nosencontrámos com três acadêmicos que discutiamjuntos o modo de embelezar a língua.
Um deles era de opinião, para abreviar o discurso,que se reduzissem todas as palavras a simplesmonossílabos e se banissem todos os verbos eparticípios.
O outro ia mais longe e propunha um modo deabolir todas as palavras, de maneira que sediscutisse sem falar, o que seria favorável ao peito,porque está claro que, à força de falar, os pulmõesse gastam e a saúde se altera. O expediente, porele achado, era trazer cada qual consigo todas ascoisas de que quisesse tratar. Este novo sistema,diziase, seria seguido, se as mulheres se lhe nãotivessem oposto. Muitos espíritos superiores destaacademia não deixavam, no entanto, deconformarse com essa maneira de exprimir ascoisas, o que só se tornava embaraçoso quandotinham de falar em diversos assuntos, porqueentão eralhes preciso trazer às costas enormesfardos, salvo se eles tivessem dois criados bastanterobustos para se pouparem esse trabalho;supunham que, se esse sistema se generalizasse,todas as nações poderiam facilmentecompreenderse (o que seria de grandecomodidade) pois não se perderia muito tempo emaprender línguas estrangeiras.
Daí, entrámos na escola de matemática, cujoprofessor ensinava aos seus discípulos um métodoque os europeus teriam trabalho em imaginar:cada teorema, cada demonstração era escritanuma obreia, com uma certa tinta de tinturacefálica. O aluno, em jejum, era obrigado, depoisde ter comido essa obreia, a absterse de beber ede comer durante três dias, de maneira que,digerida a obreia, a tintura cefálica pode subir aocérebro e levar envolvido nela o teorema ou ademonstração. Este método, de fato, não obtiveragrande êxito até agora, mas era porque, ao que sedizia, se tinha enganado um pouco no quantumsufficit, isto é, na medida da dose, ou porque osalunos, maus e indóceis, faziam simplesmentemenção de comer a obreia, ou ainda porque iammuito depressa à sentina, ou comiam àsescondidas durante os três dias.
CAPÍTULO VI
Continuase a descrição da academia.
Não fiquei muito satisfeito com a escola de política,que depois visitei. Estes doutores parecerammepouco sensatos, e a presença de tais indivíduosteve o efeito de me tornar melancólico. Esteshomens extravagantes sustentavam que osgrandes deviam escolher para seus favoritosaqueles em que vissem mais sabedoria, maiscapacidade, mais virtude, e ter sempre em vista obem público, recompensar o mérito, o saber, ahabilidade e os serviços; diziam ainda que ospríncipes deviam depositar sempre a sua confiança
nas pessoas mais capazes e mais experimentadas,e outras asneiras e quimeras, de que os príncipesnão formaram opinião até agora, o que meconfirmou a verdade deste admirável conceito deCícero: que nada há tão absurdo como o queavança algum filósofo.
Todos os outros membros da academia, porém, emnada se pareciam com estes originais, a quemacabo de aludir. Vi um médico com um espíritosublime, que possuía a fundo a ciência do governo;tinha consagrado os seus serões a descobrir ascausas das doenças de um Estado e a acharremédios para curar o mau temperamentodaqueles que administram os negócios públicos.
— Sabese — dizia ele — que o corpo natural e ocorpo político têm entre si uma perfeita analogia,pois qualquer deles pode ser tratado com osmesmos remédios. Os que estão à testa dosnegócios têm muitas vezes as seguintes doenças:estão cheios de humores em movimento, que lhesenfraquecem a cabeça e o coração, e causamlhesalgumas vezes convulsões e contrações de nervosna mão direita, uma fome canina, indigestões,gases, delírios e outras espécies de males.
Para os curar, o nosso grande médico propunhaque, quando os que superintendem nos negóciosdo Estado estivessem dispostos a se reunir emconselho, se lhes tomasse o pulso e por isso setentaria conhecer a natureza da doença; quedepois, a primeira vez que se reunissem, seenviariam, momentos antes de principiar a sessão,boticários com remédios adstringentes, paliativos,purgativos, cefalálgicos, histéricos, apofegmáticos,acústicos, etc., consoante ao gênero do mal e
repetindo sempre o mesmo remédio em todas assessões.
A execução deste projeto demandaria grandedespesa e seria, segundo penso, muito útil nestespaíses em que os Parlamentos metem o nariz nosnegócios do Estado; procuraria a unanimidade,acabaria com as diferenças, abriria a boca aosmudos, fechálaia aos deputados, acalmaria aimpetuosidade dos juvenis senadores,entusiasmaria a frieza dos velhos, despertaria osestúpidos e adormeceria os atabalhoados.
E porque ordinariamente se queixam de que osministros têm memória curta e infeliz, o mesmodoutor queria que qualquer que tivesse negócioscom eles, depois de haver exposto o assunto empoucas palavras, tivesse a liberdade de lhes darum piparote no nariz, um pontapé na barriga ouespetar um alfinete nas nádegas, e tudo isso com ofim de o impedir de esquecerse do negócio de quelhe falara; de maneira que se pudesse repetir detempos a tempos o mesmo cumprimento até que oassunto fosse despachado, deferido ou indeferido,por completo.
Queria também que cada senador, na assembléiageral da nação, depois de haver dado a sua opiniãoe ter dito tudo quanto seria necessário para amanter, fosse obrigado a concluir a propostacontraditória, porque, infalivelmente, o resultadodessas assembléias seria muito favorável ao bempúblico.
Vi dois acadêmicos a discutir com calor o meio decriar impostos sem que os povos murmurassem.Um, sustentava que o melhor método seria impor
uma taxa sobre os vícios e as paixões dos homens,e que cada um seria coletado segundo o juízo e aestima dos seus vizinhos. O outro acadêmico erade um sentimento inteiramente oposto e pretendia,pelo contrário, que era preciso coletar as belasqualidades de corpo e de espírito de que cada umse orgulhava, e coletálo mais ou menos segundoos seus graus, de maneira que seriam os seuspróprios juízes e fariam a sua declaração. A maiortaxa seria imposta sobre os cultores de Vênus, osfavoritos do belo sexo, proporcionalmente aosfavores que tivessem recebido, e devia reportarseainda, sobre este assunto, à sua própriadeclaração. Era preciso também coletar fortementeo espírito e o valor, segundo a confissão que cadaum fizesse das suas qualidades; mas com respeitoà honra, probidade, saber, modéstia, isentavamseessas qualidades de qualquer taxa, visto que,sendo muito raras, não dariam lucro algum; quenão se encontraria ninguém que não quisesseconfessar que as encontrava no seu próximo e quequase ninguém teria o arrojo de as atribuir a sipróprio.
Do mesmo modo se deviam coletar as senhoras emproporção da sua beleza, dos seus atrativos e dassuas graças, conforme ao seu próprio juízo, como oque se fazia com relação aos homens; mas pelafidelidade, sinceridade, bom senso e bondadenatural das mulheres, visto que disso não seufanam, nada deviam pagar, pois tudo o quepudesse receberse daí não bastaria para cobrir asdespesas do governo.
A fim de reter os senadores no interesse da coroa,um outro acadêmico político era de opinião ser
necessário que o príncipe fizesse jogar todos osempregos em rifas, de maneira, contudo, que ossenadores, antes de jogarem, fizessem juramento edessem caução de que se conformariam emseguida, conforme às intenções da corte, querganhassem ou não; porém que os recusados teriamdepois o direito de ocupar qualquer lugar vago quehouvesse mais tarde. Estariam sempre cheios deesperanças, não se queixariam de falsaspromessas que lhes seriam dadas e só confiariamna fortuna, cujos ombros são sempre mais fortesdo que os do ministério.
Um outro acadêmico mostroume um escritocontendo um curioso método para descobrir asconspirações e as intrigas, que era examinar osalimentos dos indivíduos suspeitos, a ocasião emque os comem, o lado para o qual se deitam nacama e a mão com que limpam o traseiro;observarlhes os excrementos e ajuizar, pelo cheiroe pela cor, dos pensamentos e dos projetos de umhomem, tanto mais que, na sua opinião, ospensamentos não são nunca mais ponderados,nem o espírito se encontra tão recolhido, comoquando se está no retrete.
Ajuntava que, quando, para fazer simplesmenteexperiências, havia algumas vezes pensado noassassínio de um homem, tinha então encontradoos seus excrementos muito amarelos e que,quando pensava em revoltarse e incendiar acapital, acharaos de uma cor muito negra.
Arrisqueime a acrescentar algumas palavras aosistema desse político; disselhe que seria bommanter sempre um núcleo de espiões e delatoresque se protegeriam e aos quais se daria sempre
uma certa importância em dinheiro proporcionalao valor da sua denúncia, quer fundada, quer não;que, por esse meio, os súditos viveriam no receio eno respeito; que esses delatores e acusadoresseriam autorizados a dar o sentido que lhesaprouvesse aos escritos que lhes caíssem nasmãos; que poderiam, por exemplo, interpretarassim os termos seguintes:
Um crivo: uma alta dama da corte.Um cão coxo: uma descida, uma invasão.A peste: um exército em pé de guerra.Um bolônio: um favorito.A gota: um grãosacerdote.Um pinico: uma assembléia.Uma vassoura: uma revolução.Uma ratoeira: um emprego financeiro.Um esgoto: a corte.Um chapéu e um cinto: uma amante.Uma cana partida: o tribunal.Um tonel vazio: um general.Uma chaga aberta: o estado dos negócios públicos.
Poderseia ainda observar o anagrama de todos osnomes citados num escrito; para isso, porém, eramnecessários homens da mais elevada penetração edo gênio mais sublime, principalmente quando setratasse de descobrir o sentido político e misteriosodas letras iniciais. Assim: N poderia significar umaconspiração; B um regimento de cavalaria; L umaesquadra. Além disso, transpondose as letras,poderseia descobrir num escrito todos os ocultosdesejos de um partido descontente. Por exemplo:lêse numa carta escrita a um amigo: Seu irmãoTomás sofre de hemorróidas; o hábil decifradordesvendará, na assimilação destas palavras
indiferentes, uma frase que fará compreender queestá tudo preparado para uma sedição.
O acadêmico agradeceume deveras o terlhecomunicado estas pequenas observações, eprometeu fazer menção honrosa de meu nome notratado que ia publicar sobre esse assunto.
Nada vi no país que pudesse reterme mais tempo,de maneira que comecei a pensar no meu regressoà Inglaterra.
CAPÍTULO VII
O autor deixa Lagado e chega a Maldonada — Faz uma pequena viagem aGlubbdudrib — Como é recebido pelo governador.
O continente de que este reino faz parteestendese, pelo que pude ajuizar, a este para umaregião desconhecida da América, a oeste para aCalifórnia e, ao norte, para o oceano Pacífico. Nãofica a mais de mil e cinqüenta léguas de Lagado.Este país, que tem um porto célebre e grandecomércio com a ilha de Luggnagg, fica situado anoroeste, quase a vinte graus de latitudesetentrional e a cento e quarenta de longitude. Ailha de Luggnagg fica ao sudoeste do Japão, de queestá afastada cerca de cem léguas. Há uma estreitaaliança entre o imperador do Japão e o rei deLuggnagg, o que dá vários ensejos de ir de um aoutro. Por tal motivo resolvi tomar esse caminhopara voltar à Europa. Aluguei duas mulas com umguia, para levar a minha bagagem e indicarme ocaminho. Despedime do meu ilustre protetor, quetanta bondade me demonstrara e, ao partir, recebi
dele um magnífico presente.
Durante a minha viagem não se deu aventuraalguma que mereça ser relatada. Quando chegueiao porto de Maldonada, que é uma cidade quase dotamanho de Portsmouth, não havia navio algum noporto pronto a partir para Luggnagg. Travei algunsconhecimentos. Um fidalgo distinto disseme que,em vista de não haver navio algum para Luggnaggsenão daí a um mês, faria bem em dar um passeioaté Glubbdudrib, que ficava apenas a umas cincoléguas para sudoeste; ele mesmo ofereceuse parame acompanhar com alguns amigos seus eforneceume um barco.
Glubbdudrib, segundo a sua etimologia,significa Ilha dos Feiticeiros ou Mágicos. É quasetrês vezes tão larga como a ilha de Wight e éfertilíssima. Esta ilha está sob o poder do chefe deuma tribo toda ela composta de feiticeiros, que sóse ligam entre si, sendo sempre príncipe o maisantigo da tribo. Este príncipe ou governador possuium palácio magnífico e um parque com perto detrês mil acres, cercados de um muro de pedrastalhadas de vinte pés de altura. Ele e toda a famíliasão servidos por criados de uma espécie muitoextraordinária. Pelo conhecimento que possui denecromancia, tem o poder de evocar os espíritos eobrigálos a servilo durante vinte e quatro horas.
Quando abordámos a ilha, deviam ser umas onzehoras da manhã. Um dos dois fidalgos que meacompanhavam foi ter com o governador e disseque um estrangeiro desejava ter a honra decumprimentar sua alteza. Este cumprimento foibem acolhido. Entrámos no átrio do palácio epassámos por entre uma sebe de guardas, cujas
armas e atitudes deveras me assustaram;atravessámos as salas e encontrámos umainfinidade de criados antes de que conseguíssemoschegar aos aposentos do governador. Depois dehavermos feito três profundas reverências, mandouque nos sentássemos em pequenos tamboretes,que ficavam junto do trono. Como compreendia alíngua dos Balnibarbos, dirigiume algumasperguntas acerca das minhas viagens e, para meprovar que queria tratarme sem cerimônia, fezsinal com o dedo a toda a sua gente para que seretirasse e, num instante (o que me admiroumuito) todos desapareceram como fumo. Mal tivetempo para me refazer; o governador, porém,tendome dito que nada tinha a recear e vendo osmeus dois companheiros seguros de si, comecei ater ânimo e contei a sua alteza as diferentesaventuras das minhas viagens, não sem ser, de vezem quando, perturbado por uma estúpidaimaginação, olhando muitas vezes em torno demim, para a direita e para a esquerda, e lançandoos olhos para o lugar por onde vira desaparecer osfantasmas.
Tive a honra de jantar com o governador, que nosfez servir por um novo grupo de espectros.Permanecemos na mesa até ao pôr do sol e, tendopedido a sua alteza que nos desculpasse de nãoquerermos passar a noite no seu palácio,retirámonos eu e os meus dois amigos, e fomosem busca de uma cama na capital, que ficapróxima. Na manhã seguinte, viemos apresentar osnossos respeitos ao governador. Durante os dezdias que permanecemos nesta ilha, vim afamiliarizarme de tal maneira com os espíritos,que, se não tinha perdido de todo o medo, pois me
restava algum, cedia à minha curiosidade. Logodepois tive ocasião de satisfazêla, e por isso oleitor poderá julgar que sou mais curioso ainda doque poltrão. Sua alteza disseme um dia quenomeasse todos os mortos que me aprouvesse, queos faria comparecer e os obrigaria a responder atodas as perguntas que lhes quisesse dirigir, com acondição, contudo, de que só os interrogaria sobreo que se passou no seu tempo e que podia estarbem certo de que me falariam sempre verdade, poisé inútil aos mortos mentir.
Rendi humildes ações de graças a sua alteza e,para me aproveitar dos seus oferecimentos,pusme a recordar o que em outros tempos lera nahistória romana. Primeiro, acudiume ao espírito aidéia de pedir para ver a famosa Lucrécia, queTarquínio violou e que, não podendo sobreviver aessa afronta, se suicidara. Logo vi diante de mimuma dama muito formosa, vestida à romana.Tomei a liberdade de perguntarlhe por que vingaraem si própria o crime de outrem; baixou os olhos erespondeu que os historiadores, com receio de adarem por fraca, a haviam enlouquecido; emseguida, desapareceu.
O governador fez sinal para que aparecessemCésar e Bruto. Fiquei atônito de admiração e derespeito à vista de Bruto, e César confessoumeque todas as suas belas ações tinham ficadoabaixo da de Bruto, que lhe tirara a vida paralivrar Roma da sua tirania.
Tive vontade de ver Homero; apareceume;conversei com ele e pergunteilhe o que pensavaacerca da sua Ilíada.Declaroume que ficarasurpreendido com os excessivos louvores que lhe
teciam havia três mil anos; que o seu poema eramedíocre e eivado de tolices; que não tinhaagradado no seu tempo senão por causa da belezada sua dicção e da harmonia dos seus versos, eque ficara assombrado porque, visto a sua línguaestar morta, e ninguém lhe conhecer as belezas, oespírito e as finuras, achava ainda pessoas ocas oumuito estúpidas, que o admiravam. Sófocles eEurípedes, que o acompanhavam, tiveram poucomais ou menos a mesma opinião e troçaramprincipalmente dos nossos sábios modernos que,obrigados a reconhecer os disparates das antigastragédias, quando eram fielmente traduzidas,sustentavam, no entanto, que em grego é que seencontravam as belezas e era preciso saber esseidioma para julgar com segurança.
Quis ver Aristóteles e Descartes. O primeiroconfessoume que nada ouvira de física senão aosfilósofos seus contemporâneos, e todos aqueles quetinham vivido entre ele e Descartes; acrescentouque tomara por bom caminho, ainda que fossemuitas vezes enganado, principalmente pelo seuextravagante sistema com respeito à alma dosanimais. Descartes tomou a palavra e disse quetinha encontrado alguma coisa e souberaestabelecer muito bons princípios, porém que nãotinha ido muito longe, e que todos aqueles quedoravante quisessem percorrer o mesmo trilho,seriam sempre retidos pela fraqueza do seu espíritoe obrigados a tatear; que era uma grande loucurapassar a vida a procurar sistemas e que averdadeira física conveniente e útil ao homem erafazer um amontoado de experiências e de se limitara isso; que tivera por discípulos muitos insensatos,entre os quais se podia contar um certo Spinoza.
Tive a curiosidade de ver diversos mortos ilustresdos últimos tempos, e sobretudo mortos distintos,porque senti sempre grande veneração pelanobreza. Oh! quantas coisas espantosas não vi,quando o governador fez passar revista diante demim a todo o cortejo de antepassados da mor partedos nossos marqueses, condes, fidalgos modernos!quanto prazer não senti em ver a sua origem etodos os personagens que lhes transmitiram o seusangue! Vi claramente o motivo por que certasfamílias têm o nariz comprido, outras o queixopontiagudo, outras o rosto abaçanado e as feiçõeshorríveis e ainda por que outras têm belos olhos ea tez delicada e loura; por que é que, em certasfamílias, há muitos doidos e estouvados, e emoutras, muitos velhacos e gatunos; por que aíndole de umas é má, brutal, baixa e covarde, oque as distingue tanto como os brasões e as librés.Compreendi, finalmente, a razão por que PolidoroVirgílio dissera acerca de certas castas:
Nec vir fortis, nec fœmina casta. (1)
O que me pareceu mais notável foi ver os que,tendo trazido originariamente o mal imundo acertas famílias, tinham feito esse triste legado atoda a sua posteridade. Fiquei ainda surpreendidoem notar, na genealogia de certos fidalgos, pajens,lacaios, professores de dança e de canto, etc.
Conheci claramente a razão por que oshistoriadores transformaram guerreiros imbecis ecovardes em grandes capitães; insensatos epequenos gênios em grandes políticos; bajuladorese cortesãos em pessoas de bem; ateus em homenscheios de religião; infames devassos em castos, edelatores de profissão em homens verdadeiros e
sinceros. Soube de que modo pessoasinocentíssimas tinham sido condenadas à morteou banidas da sociedade pela intriga dos favoritosque haviam corrompido os juízes; como sucederaque homens de baixa extração e sem merecimentohaviam sido guindados aos mais elevados cargos;como os alcoviteiros e as rameiras tinham muitasvezes abalado os mais importantes negócios eocasionado no universo os maioresacontecimentos. Oh! como então fiz uma baixaidéia da humanidade! como a prudência e aprobidade dos homens me pareceram tãomesquinhas, ao ver a origem de todas asrevoluções, o vergonhoso motivo das maisbrilhantes empresas, as molas, ou antes, osacidentes imprevistos e bagatelas que os tinhamfeito vencer.
Descobri a ignorância e a temeridade dos nossoshistoriadores, que fizeram morrer envenenadoscertos reis, que ousaram dar a público conversassecretas de um príncipe com o seu primeiroministro e que têm, segundo se imagina,espionado, para assim dizer, os gabinetes dossoberanos e as secretárias dos embaixadores, paraextrair daí curiosas anedotas.
Foi por isso que soube as causas secretas dealguns acontecimentos, que assombravam omundo; como uma rameira governara umconfidente, um confidente um conselho secreto, e oconselho secreto todo um parlamento.
Um general do exército confessoume queconseguira uma vitória pelo seu feitio poltrão epela sua imprudência, e um almirante dissemeque tinha derrotado contra sua vontade uma
esquadra inimiga, quando o seu desejo era deixarderrotar a sua. Houve três reis que me declararamque, no seu reinado, nunca tinham recompensadonem elevado nenhum homem de merecimento,salvo uma vez em que o seu ministro o enganou,enganandose a si próprio sobre este assunto; quenisto haviam tido razão, porque a virtude era umacoisa muito incômoda na corte.
Tive a curiosidade de me informar por que meiosum grande número de pessoas havia conseguidoelevadas fortunas. Limiteime a estes últimostempos, sem tocar, contudo, no tempo presente,com receio de melindrar estrangeiros, (porque nãopreciso de advertir que tudo o que tenho dito aquinão respeita à minha querida pátria). Entre essesmeios encontrei o preconceito, a opressão, osuborno, a perfídia, o pandarismo e outrasidênticas bagatelas, que pouca atenção merecem;mas o pior é que muitos confessaram dever a suaelevação à facilidade que haviam tido, uns por seprestarem às mais horríveis devassidões; outrospor entregarem as mulheres e as filhas; outros, portraírem a sua pátria e o seu rei e alguns por seutilizarem do veneno. Após estas descobertas,persuadome de que será perdoado doravante umpouco menos de estima e veneração pela grandeza,que honro e respeito naturalmente, como todos osinferiores devem fazer com relação àqueles a quema natureza ou a fortuna colocaram numa filasuperior.
Lera em alguns livros que os súditos tinhamprestado grandes serviços ao seu príncipe e ao seupaís. Tive vontade de conhecêlos; disseramme,porém, que os seus nomes foram esquecidos e que
se lembravam agora de alguns apenas, de que oscidadãos haviam feito menção fazendoos passarpor traidores e ladrões. Essas pessoas, pois, cujosnomes haviam esquecido, apareceramme, todavia,na minha presença, mas com um aspecto humildee mal vestidos; disseramme que haviam morridona miséria e na desgraça e alguns até no patíbulo.
Dentre eles, notei um homem, cujo caso mepareceu extraordinário, que tinha ao seu lado umrapaz de dezoito anos. Declaroume que foracapitão de navios durante muitos anos e que, nocombate naval de Actium, fizera soçobrar aprimeira linha, afundara três navios da primeirafila e tomara um do mesmo tamanho, o que fora oúnico motivo da fuga de Antônio e da completaderrota da sua esquadra; que o rapaz, que estavajunto de si, era o único filho, que morrera emcombate; acrescentou que, terminada a guerra,veio a Roma para solicitar uma recompensa e pediro comando de um navio maior, cujo capitãomorrera na batalha; mas, sem lhe atenderem opedido, esse lugar fora dado a um rapaz que nuncavira o mar, filho de um certo liberto que servirauma das amantes do imperador; que, voltando aoseu departamento, o acusaram de ter faltado aoseu dever; e que o comando do seu navio foraconfiado a um pajem favorito do vicealmirantePulícola; que fora, então, obrigado a retirarse paraa sua casa, numa terra afastada de Roma e que aífindara seus dias. Desejando saber se esta históriaera verídica, pedi para ver Agripa, que, nessecombate, fora o almirante da esquadra vitoriosa;compareceu, e, confirmando a veracidade daquelanarrativa, contou mais circunstâncias que amodéstia do capitão omitira.
Como todos os personagens evocados seapresentaram tais como haviam sido no mundo, vicom mágoa quanto, durante cem anos, o gênerohumano se degenerara; quanto a devassidão, comtodas as suas conseqüências, alterara os traçosfisionômicos, tornara raquíticos os corpos, relaxaraos músculos, afrouxara os nervos, apagara ascores e corrompera a carne dos ingleses.
Enfim, quis ver alguns dos nossos camponeses, dequem se louva a simplicidade, a sobriedade, ajustiça, o espírito de liberdade, o valor e o amorpela pátria.
Vios e não pude deixar de os comparar com os dehoje, que vendem à custa do dinheiro os seus votosna eleição dos deputados ao Parlamento e que, sobeste ponto de vista, possuem toda a finura e todo omanejo das pessoas da corte.
CAPÍTULO VIII
Regresso ao autor a Maldonada — Fazse de vela para o reino de Luggnagg —É preso à sua chegada e levado à corte — Como é recebido.
Tendo chegado o dia da nossa partida, despedimede sua alteza o governador de Glubbdudrib e volteicom os meus dois companheiros a Maldonada,onde, depois de ter esperado durante quinze dias,embarquei por fim num navio que se dirigia paraLuggnagg. Os dois fidalgos, e ainda umas outraspessoas mais, tiveram a gentileza de me fornecerprovisões necessárias para essa viagem e de meconduzir a bordo. Apanhámos um forte temporal efomos obrigados a governar ao norte para
podermos nos afastar de um certo vento forte, quesopra neste ponto por espaço de sessenta léguas. A21 de Abril de 1709 entrámos no rio de Clumegnig,que é uma cidade com porto de mar ao sudoeste deLuggnagg. Lançámos ferro a uma légua da cidade efizemos sinal para aparecer o piloto. Em menos demeia hora vieram dois a bordo, os quais nosguiaram por meio de escolhos e rochedos, que sãomuito perigosos nesta baía, e na passagem queconduz a uma bacia onde os navios estão emsegurança e que está afastada dos da cidade ocomprimento de um cabo.
Alguns dos nossos marinheiros, fosse por traição,ou por imprudência, disseram aos pilotos que euera um estrangeiro e um grande viajante. Estesavisaram o comissário da alfândega, que me dirigiudiversas perguntas na língua balnibarbiana, que écompreendida nesta cidade em virtude do comércioe principalmente pela gente do mar e aduaneira.Respondi em poucas palavras e narrei umahistória tão verossímil e tão extensa quanto me foipossível; no entanto, julguei conveniente ocultar omeu país e de me intitular holandês, com desejo deir ao Japão, onde sabia que só os holandeses sãorecebidos. Disse, pois, ao comissário quenaufragara na costa dos Balnibarbos e, tendochocado com um rochedo, estivera na ilha volantede Lapúcia, de que muitas vezes ouvira falar e quedesejava agora dirigirme ao Japão, a fim de voltardaí ao meu país. O comissário disseme que eraobrigado a prenderme até que recebesse ordensda corte, para onde ia escrever imediatamente e deonde contava receber resposta dentro em quinzedias. Deramme um alojamento razoável epuseramme sentinela à porta. Tinha um grande
jardim, por onde podia passear, e fui muito bemtratado, à custa do rei. Muitas pessoas vieramvisitarme, excitadas pela curiosidade de ver umhomem que vinha de um país muito afastado, doqual nunca tinham ouvido falar.
Tratei com um rapaz do nosso navio para me servirde intérprete. Era natural de Luggnagg; mas,vivendo há largos anos em Maldonada, sabiaperfeitamente as duas línguas. Com o seu auxílio,fiquei em condições de conversar com todos os queme dessem a honra de vir visitarme, isto é, deentender as suas perguntas e eles entenderem asminhas respostas.
A resposta da corte veio ao fim de quinze dias,como se esperava; trazia uma ordem para serconduzido com a minha comitiva por umdestacamento de cavalaria a Traldragenv ouTrildragdrib, porque, se não estou em erro, sepronuncia das duas maneiras. Toda a minhacomitiva consistia nesse pobre rapaz, que meservia de intérprete e que tomara para meuserviço. Fizeram partir adiante de nós um correio,que nos avançou meio dia, para avisar o rei daminha próxima chegada e para pedir a SuaMajestade marcasse o dia e hora em que poderiater a honra e prazer de lamber a poeira dos pés dotrono.
Dois dias depois da minha chegada tive audiência.Primeiro fizeramme deitar e arrastar sobre abarriga e limpar o sobrado com a minha língua àmedida que adiantava para o trono do rei; mas,porque era estrangeiro, tiveram a bondade delimpar o sobrado, de maneira que a poeira nãopodia prejudicarme. Era uma graça especial, que
não se concedia mesmo às pessoas de primeiracategoria, quando tinham a honra de ser recebidasna audiência de Sua Majestade; algumas vezes atése deixava de propósito o sobrado muito sujo ecoberto de poeira, quando os que vinham àaudiência tinham inimigos na corte. Uma vez vium fidalgo ter a boca tão cheia de pó e tão suja doque apanhara com a língua, que, quando chegouao trono, lhe fora impossível articular uma únicapalavra. Para essa fatalidade não há remédio,porque é proibido, sob graves penas, escarrar oulimpar a boca na presença do rei. Existe mesmo,nessa corte, um outro uso, que não posso aprovar:quando o rei pretende matar algum fidalgo oualgum cortesão de maneira que o não desonre, fazlançar sobre o sobrado um determinado pócinzento, que está envenenado e não deixa defazêlo morrer suavemente e sem ruído ao cabo devinte e quatro horas; mas, para fazer justiça a esterei, à sua grande doçura e à bondade que tem emdirigir a vida dos seus súditos, é preciso dizer emsua honra que, depois de semelhantes execuções,tem o costume de ordenar muito expressamente ovarrer bem o sobrado, de maneira que, se oscriados se esqueciam, corriam o risco de descair dasua graça. Vi certo dia condenar um pajem a serchicoteado por se ter malevolamente desleixado deadvertir o varredor de executar a ordem, o quetinha dado lugar a que um fidalgo, em que sefundavam grandes esperanças, ficasseenvenenado; o príncipe, cheio de bondade, quisainda perdoar ao pajem e pouparlhe o chicote.
Para tornar a mim, quando cheguei a quatropassos do trono de Sua Majestade, levanteime nosjoelhos e, depois de haver batido sete vezes no
chão com a cabeça, pronunciei as palavrasseguintes, que na véspera me haviam ensinado decor:
Iruckpling gloffthrobb squu tserumm blhiopmlashnalt zwin inodbalkuff hshiophad kurdluhasht.
É uma fórmula estabelecida pelas leis deste reinopara todos aqueles que são admitidos emaudiência e que pode ser traduzida assim: PossaVossa Majestade sobreviver ao sol!
O rei deume uma resposta que não compreendi, erepliquei como me haviam ensinado:
— Fluftedrin yalerick dwuldom prtasrad mirpush.
Frase que, traduzida à letra, significava: A minhalíngua está na boca do meu amigo.
Dei assim a perceber que desejava servirme domeu intérprete; então, mandou entrar o rapaz dequem falei, e, com o seu auxílio, respondi a todasas perguntas que Sua Majestade me dirigiudurante meia hora. Falei em balnibarbiano e o meuintérprete traduzia as minhas palavras paraluggnaggiano.
O rei teve muito prazer com a minha conversação eordenou ao seu bliffmarklub, ou camarista, quemandasse preparar um aposento no seu palácio,para mim e para o meu intérprete, e entregarmeuma importância por dia para a minha mesa, comuma bolsa cheia de ouro para os meusdivertimentos.
Permaneci três meses nesta corte para obedecer aSua Majestade, que me cumulou de amabilidades,
e me fez oferecimentos muito graciosos para meconvidar a estabelecerme nos seus Estados;julguei, porém, dever meu agradecerlhe e pensarantes em voltar para o meu país, para ali acabarmeus dias junto de minha querida mulher, hátanto tempo privada das doçuras da minhapresença.
CAPÍTULO IX
Dos struldbruggs ou imortais.
Os Luggnaggianos são um povo muito delicado evalente e, embora tenham um pouco desse orgulhoque é comum a todas as nações do Oriente, são,contudo, probos e educados com respeito aestrangeiros, principalmente com aqueles que sãobem recebidos na corte.
Travei conhecimento e ligueime com pessoas degrande conhecimento e de bom aspecto e, com orecurso do meu intérprete, tive com elas conversasagradáveis e instrutivas.
Um deles perguntoume certo dia se tinha vistoalguns dos seus struldbruggs, ou imortais.Respondilhe negativamente e que tinha muitacuriosidade em saber como é que podiam ter dadoaquele nome a humanos; disseme que algumasvezes (embora raramente) nascia numa famíliauma criança com uma mancha vermelha eredonda, colocada diretamente na sobrancelhaesquerda, e que essa feliz mancha a preservava damorte; que essa mancha era a princípio do
diâmetro de uma moeda de prata (a que nós, emInglaterra, chamamos three pence ) e que depoisaumentava e até mudava de cor; que dos doze aosvinte anos era verde, data em que se tornava azul,até aos quarenta, em que se fazia completamenteverde e tão grande como um shilling, e depois nãomudava; acrescentou que nasciam tão poucascrianças com essa mancha na testa que apenasexistiam mil e cem imortais de ambos os sexos emtodo o reino; que havia quase uns cinqüenta nacapital e que havia três anos não nascia umacriança dessa espécie, que fosse do sexo feminino;que o nascimento de um imortal não era concedidoa uma determinada família; que era um presenteda natureza ou do acaso, e que os próprios filhosdos struldbruggs nasciam mortais como os filhosdos outros homens, sem ter privilégio algum.
Esta narrativa agradoume extremamente, e àpessoa que ma contava, entendendo a língua dosBalnibarbos, que falava à vontade, testemunhei aminha admiração e a minha alegria com aspalavras mais expressivas e mais desusadas.Exclamei, com uma espécie de entusiasmo:
— Feliz nação, cujos filhos ao nascer podemalcançar a imortalidade! Feliz região, em que osexemplos dos tempos passados se mantém sempre,em que a virtude dos primeiros séculos subsisteainda, e em que os primeiros homens vivem aindae viverão eternamente, para dar lições deprudência a todos os seus descendentes! Felizes ossublimes struldbruggs, que têm o privilégio de nãomorrer e a quem, por conseguinte, a idéia da mortenão intimida, não enfraquece, não quebra.
Demonstrei, em seguida, que ficara surpreendido
por não ter ainda visto nenhum desses imortais nacorte; que, se alguns havia, a gloriosa manchaestampada na testa saltaria logo à vista.
— Por que o rei — acrescentei — que é um príncipetão judicioso, não os emprega no ministério e nãolhes confere a sua confiança?
Mas talvez a rígida virtude desses velhosimportunasse e ferisse os olhos da sua corte. Aindaque assim fosse, estava resolvido a falar noassunto a Sua Majestade na primeira ocasião quese me deparasse, e quer ele tivesse como boa aminha opinião, quer não, aceitaria em todo o casoo alojamento que teve a bondade de oferecermenos seus Estados, a fim de poder passar o restodos meus dias na ilustre companhia desseshomens imortais, contanto que se dignassematurarme.
Aquele a quem dirigi a palavra, olhandome entãocom um sorriso que denotava a minha ignorância,que lhe causava dó, respondeume que estavaencantado por eu desejar ficar no país, e pediulicença para explicar aos outros o que eu acabavade dizer; fêlo e, durante algum tempo,conversaram entre si na sua linguagem que eu nãocompreendia; não pude sequer lerlhes, nos gestosou nos olhos, a impressão que o meu discursocausara nos seus espíritos. Por fim, a mesmapessoa que me falara até então, dissemedelicadamente que os seus amigos estavamcativados com as minhas reflexões judiciosas sobrea felicidade e as vantagens da imortalidade, masdesejavam saber que sistema de vida seguiria equais seriam as minhas ocupações e as minhasvistas, se a natureza me tivesse feito
nascer struldbrugg.
A essa interessante pergunta retorqui que iasatisfazêlos imediatamente com prazer, que assuposições e as idéias me custavam pouco e queestava habituado a imaginar o que teria feito, setivesse sido rei, general do exército ou ministro deEstado; que, com relação à imortalidade, meditaraalgumas vezes sobre o modo de proceder de queusaria se tivesse de viver eternamente e que, emvista do que me dizia, ia dar largas à minhaimaginação.
Disse, pois, que, se tivesse tido a vantagem denascer struldbrugg, logo que pudesse conhecer aminha felicidade e perceber a diferença que existiaentre a vida e a morte, teria, primeiramente,metido mãos à obra, para me tornar rico, e que àforça de ser intrigante, subtil e rasteiro, poderiaesperar verme um pouco à vontade ao cabo deduzentos anos; que, em segundo lugar, meaplicaria muito seriamente ao estudo dos meusprimeiros anos, que poderia orgulharme de metornar, um dia, o homem mais sábio do universo;que observaria com cuidado todos os grandesacontecimentos; que examinaria com atençãotodos os príncipes e todos os ministros de Estadoque se sucedessem uns aos outros; teria tido oprazer de comparar todos os seus caracteres e defazer sobre esse assunto as mais belas reflexões domundo; que teria traçado uma memória fiel e exatade todas as revoluções da moda e da linguagem, edas mudanças havidas nos costumes, leis, usos eaté nos prazeres; que, por esse estudo e por essasobservações, me tornaria, por fim, um museu deantigüidades, um registro vivo, um tesouro de
conhecimentos, um dicionário falante, o oradorperpétuo dos meus compatriotas e de todos osmeus contemporâneos.
— Nestas circunstâncias, nunca me casaria, —acrescentei — e levaria uma vida de rapaz alegre,livremente, economicamente a fim de que, vivendosempre, tivesse sempre de que viver. Ocuparmeiaem formar o espírito de alguns rapazes, dandolhesparte das minhas luzes e da minha longaexperiência. Os meus verdadeiros amigos, osconfidentes, os meus companheiros seriam osmeus ilustres confrades struldbruggs, de queescolheria uma dúzia de entre os mais velhos, paracom eles me ligar mais estreitamente. Não deixariade freqüentar também alguns mortais demerecimento, que me habituaria a ver morrer semdesgosto e sem pesar, pois a posteridade meconsolaria da sua morte; poderia até ser para mimum espetáculo bastante agradável, do mesmomodo que um jardineiro sente prazer em ver astulipas e os cravos do seu jardim nascerem,morrerem e tornarem a nascer. Comunicaríamosmutuamente, entre nós struldbruggs, todas asnotas e observações que fizéssemos sobre a causae o progresso da corrupção do gênero humano.Comporíamos a esse respeito um excelente tratadode moral, cheio de lições úteis e capazes deimpedir a natureza humana de degenerar, como ofizera dia a dia, e pelo que é censurada há dois milanos. Que espetáculo nobre e encantador não seriaver com os seus próprios olhos as decadências e asrevoluções dos impérios, a face da terra renovada,as cidades soberbas transformadas em cidadesburguesas ou tristemente amortalhadas nas suasvergonhosas ruínas; as aldeias obscuras tornadas
a habitação dos reis e dos seus cortesãos; os rioscélebres transformados em pequenos regatos; ooceano banhando outras praias; novas regiõesdescobertas; um mundo desconhecido, saindo, porassim dizer, do caos; a barbárie e a ignorânciaespalhadas pelas nações mais delicadas e maisesclarecidas; a imaginação extinguindo o juízo; ojuízo gelando a imaginação; o amor pelos sistemas,pelos paradoxos, pelo empolado, pelas subtilezas eantíteses, sufocando a razão e o bom gosto; averdade oprimida hoje e triunfante amanhã; osperseguidos tornados perseguidores e osperseguidores, perseguidos por sua vez; ossoberbos, abatidos, e os humildes, glorificados; osescravos, os libertos, os mercenários, conseguindouma fortuna imensa com a administração dosfundos públicos, com as desgraças, fome, sede,nudez e sangue dos povos; enfim, a posteridadedesses salteadores públicos reduzida ao nada, deonde a rapina e a injustiça os haviam tirado!Como, nesta situação de imortalidade, a idéia damorte nunca estaria presente no espírito para meperturbar ou para arrefecer os meus desejos,entregarmeia a todos os prazeres sensíveis de quea natureza e o raciocínio me permitissem o uso.Contudo, as ciências seriam sempre o meuprimeiro e mais querido cuidado; suponho que, àforça de meditar, encontraria por fim aslongitudes, a quadratura do círculo, o motoperpétuo, a pedra filosofal e a panacéia universal;que, numa palavra, levaria todas as ciências etodas as artes à sua última perfeição.
Logo que findei a minha prédica, o único que tinhacompreendido voltouse para a assembléia e fezdela um extrato na linguagem do país; depois de o
ouvir, puseramse a raciocinar juntos durantecerto tempo, sem que, no entanto,testemunhassem, ao menos pelos seus gestos eatitudes, desprezo algum pelo que acabava dedizer. Por fim, todos, de comum acordo, pedirampor favor e caridade à mesma pessoa que resumirao meu discurso, que me abrisse os olhos e meemendasse os erros.
Disseme primeiramente que não era o únicoestrangeiro que olhava com espanto e com inveja asituação dosstruldbruggs; que encontrara nosBalnibarbos e nos Japoneses pouco mais oumenos as mesmas exposições; que o desejo deviver era natural do homem; que aquele que tinhaum pé para a cova, se esforçava por se manterfirme no outro; que o velho mais corcovadoimaginava sempre um amanhã e um futuro eapenas encarava a morte como um mal longínquoe fugidio; mas, na ilha de Luggnagg se pensava deum modo bem diferente, e que o exemplo familiar ea contínua presença dos struldbruggs haviampreservado os habitantes desse insensato amorpela vida.
— O sistema de conduta — continuou ele — que sepropunha na suposição de ser imortal e que hápouco traçou, é ridículo e completamente contrárioa todo o raciocínio. Supôs, decerto, que, nesseestado, gozaria de uma eterna mocidade, de umvigor e de uma saúde de ferro. Mas, quandoperguntámos o que faria se tivesse de viver sempre,supusemos porventura que nunca envelhecesse e asua pretendida imortalidade fosse uma eternaprimavera?
Em seguida, descreveume
os struldbruggs, dizendo que eram semelhantes aosmortais e como eles viviam até aos trinta anos;que, depois dessa idade, caíam a pouco e poucoem negra melancolia, que aumentava sempre atéatingirem os oitenta; que, por então, não eramapenas sujeitos a todas as enfermidades, a todasas misérias e a todas as fraquezas dos velhosdessa idade, mas a aflitiva idéia da eterna duraçãoda sua miserável caducidade os atormentava a talponto que nada podia consolálos; que não eramsimplesmente, como todos os outros velhos,cabeçudos, rabugentos, avarentos, carrancudos,linguareiros, mas gostavam de si próprios,renunciavam às doçuras da amizade, nãodispensavam ternura a seus filhos e que, além daterceira geração, já não reconheciam a posteridade;que a inveja e a raiva os devoravamcontinuamente; e que a vista dos sensíveisprazeres de que usufruem os juvenis mortais, osseus divertimentos, os seus amores, os seusexercícios os faziam de certo modo morrer a cadamomento; que tudo, até a própria morte dos velhosque pagavam o tributo à natureza, lhes excitava araiva e os mergulhava no desespero; que, por essarazão, todas as vezes que viam realizarse umenterro, maldiziam a sua sorte e se queixavamamargamente da natureza, que lhes recusara adoçura de morrer, de acabar a sua aborrecidacarreira para entrar num eterno repouso; que jánão se encontravam em estado de cultivar oespírito; que a memória enfraquecia; que mal selembravam do que tinham visto e aprendido nasua mocidade e na idade madura; que os menosmiseráveis eram os que tinham entontecido, quetinham perdido completamente a memória eestavam reduzidos ao estado infantil; esses, ao
menos, encontravam quem se condoesse deles,dandolhes todos os recursos de que necessitavam.
— Quando um struldbrugg — acrescentou — secasa com uma struldbrugg, o casamento, conformeas leis do Estado, é dissolvido logo que o mais novodos dois chegue aos oitenta anos. É justo quedesgraçados entes humanos, condenados, contra avontade e sem o haverem merecido, a vivereternamente, não sejam ainda, para acréscimo dedesgraça, obrigados a viver com uma mulhereterna. O que é mais triste ainda é que, depois deter atingido esta idade fatal, são olhados comomortos civilmente. Os seus herdeiros apoderamsedos seus bens; sãolhes dados tutores, ou antes,são despojados de tudo e reduzidos a uma simplespensão alimentícia (lei muito justa em virtude dasórdida avareza comum aos velhos). Os velhos sãomantidos por custeio público numa casachamada: hospital dos imortais pobres. Um imortalde oitenta anos já não pode exercer um empregoou função alguma; não pode negociar, não podecontratar, não pode comprar nem vender e o seupróprio testemunho não é reconhecido em justiça.Quando, porém, atingem noventa anos, ainda épior: todos os dentes e cabelos caem; perdem opaladar e bebem e comem sem prazer algum;perdem a noção das coisas mais fáceis de reter, eesquecem o nome dos amigos e às vezes o próprio.Tornaselhes por este motivo inútil entreteremsecom a leitura, pois que, quando querem ler umafrase de quatro palavras, esquecem as duasprimeiras, enquanto lêem as duas últimas. Pelomesmo motivo lhes é impossível conversar comalguém. Além disto, como a língua deste país estásujeita a freqüentes mudanças,
os struldbruggs nascidos num século têm muitotrabalho em compreender a linguagem dos homensnascidos noutro século, e são sempre estrangeirosna sua pátria.
Tais foram os pormenores que me forneceu arespeito dos imortais desse país, pormenores queme surpreenderam em extremo. Em seguida,mostroume uns seis, e confesso que nunca vinada mais feio e mais desagradável; as mulheres,sobretudo, eram horrorosas; imaginei verespectros.
O leitor decerto compreenderá que perdi, então,toda a vontade de tornarme imortal porsemelhante preço. Fiquei vexadíssimo com asloucas imaginações a que me entregara sobre osistema de uma vida eterna neste baixo mundo.
O rei, sabendo da conversa que eu mantivera comaqueles de quem falei, riu muito das minhas idéiassobre a imortalidade e a inveja que eu sentirapelos struldbruggs. Em seguida, perguntoumemuito a sério se eu queria levar comigo dois outrês exemplares deles para o meu país, para curaros meus compatriotas do desejo de viver e do medode morrer. No íntimo, sentiria muito prazer em queme tivesse feito esse presente; mas por uma leifundamental do reino é proibido aos imortais sairdele.
CAPÍTULO X
O autor parte da ilha de Luggnagg para se dirigir ao Japão, onde embarca emum navio holandês — Chega a Amsterdam e daí passa para a Inglaterra.
Suponho que tudo o que tenho contado acercados struldbruggs não haja enfastiado o leitor. Creioque não são coisas vulgares, gastas e batidas, quese encontrem em todas as relações de viagens; pelomenos, posso assegurar que nada achei de igualnas que li. Em todo o caso, se são coisas reditas ejá conhecidas, peço considerar que viajantes, semse copiarem uns aos outros, podem muito bemcontar as mesmas coisas, quando visitam osmesmos países.
Como existe um grande comércio entre o reino deLuggnagg e o império do Japão, é de crer que osautores japoneses não esquecessem de mencionarnos seus livros os struldbruggs. Mas apermanência que fiz no Japão foi muito curta e,por não possuir, além disto, tintura alguma dalinguagem japonesa, não pude saber ao certo seesse assunto fora tratado nos seus livros. Algumholandês poderá talvez um dia dizernos o que hásobre tal assunto.
O rei de Luggnagg, tendo muitas vezes, emborainutilmente, insistido comigo para ficar nos seusEstados, teve por fim a bondade de me concederliberdade para sair e fez até a honra de me daruma carta de recomendação, escrita por seupróprio punho, para Sua Majestade, o imperadordo Japão. Ao mesmo tempo presenteoume comquatrocentas e quarenta e quatro peças de ouro,de cinco mil quinhentas e cinco pérolas e deoitocentos e oitenta e oito mil, cento e oitenta e oitogrãos de uma espécie de arroz muito rara. Estasespécies de números, que se multiplicam por dez,agradam muito ao povo desse país.
Em sete de Maio de 1709 despedime, com todas
as cerimônias, de Sua Majestade, e disse adeus atodos os amigos que deixava na corte. Estepríncipe fezme conduzir por um destacamento dosseus guardas até ao porto de Glanguenstald,situado a sudoeste da ilha. Ao cabo de seis diasencontrei um navio pronto a transportarme aoJapão; embarquei e, após a nossa viagem, quedurou cinqüenta dias, desembarcámos numpequeno porto chamado Xamoschi, ao sudoeste doJapão.
Mostrei primeiramente aos comissários daAlfândega a carta com que tinha a honra de serapresentado pelo rei de Luggnagg a Sua Majestadenipônica; conheceram logo o selo de Sua Majestadeluggnaggiana, cujo sinete representava um reiamparando um pobre aleijado e ajudandoo aandar.
Os magistrados da cidade, sabedores de que eu eraportador daquela augusta carta, tratarammecomo ministro e forneceramme uma carruagempara me transportar a Yedo, que é a capital doImpério. Aí, fui recebido em audiência por SuaMajestade imperial e tive a honra de lhe apresentara minha carta, que abriu na presença de todoscom grande cerimonial, e que Sua Majestade fezlogo explicar pelo seu intérprete que lhe pedissequalquer graça que, em consideração para com oseu muito querido irmão, o rei de Luggnagg, maconcederia imediatamente.
Este intérprete, que era ordinariamente empregadonos negócios do comércio com os holandeses,conheceu facilmente pelo meu aspecto que eu eraeuropeu e, por esse motivo, traduziume em línguaholandesa as palavras de Sua Majestade. Respondi
que era negociante da Holanda; que naufragaranum mar afastado; que desde então caminharamuito por terra e por mar para chegar a Luggnagge daí ao império do Japão, onde sabia encontrar osholandeses meus compatriotas que comerciavam, oque me podia proporcionar ocasião de voltar para aEuropa; suplicava, pois, a Sua Majestade que metransferisse com segurança para Nangasac. Tomei,ao mesmo tempo, a liberdade de pedirlhe umaoutra mercê; foi que, por consideração para com orei de Luggnagg, que me dava a honra deprotegerme, de muito boa vontade me dispensasseda cerimônia que se fazia praticar aos do meu paíse não me obrigasse a calcar aos pés o crucifixo, poisviera ao Japão para passar à Europa e não paratraficar.
Quando o intérprete expôs a Sua Majestadenipônica esta derradeira mercê que pedia, pareceusurpreendido e respondeu que era o primeirohomem da minha terra a quem semelhanteescrúpulo acudia ao espírito, o que o faziadesconfiar de que eu não fosse realmenteholandês, como eu garantira, e fazia antessuporme cristão. No entanto, o imperador,gostando da razão que eu alegara e olhandoprincipalmente a recomendação do rei deLuggnagg, houve por bem, por bondade,condescender à minha fraqueza e singularidade,contanto que eu guardasse todas as conveniênciaspara salvar as aparências; disseme que dariaordem aos oficiais encarregados de fazer observareste uso para que me deixassem passar, fazendode conta que não haviam reparado em mim.Acrescentou que era de interesse meu calarmesobre o caso, porque infalivelmente os holandeses,
meus compatriotas, me apunhalariam na viagemse viessem a saber a dispensa que obtivera e oinjurioso escrúpulo que tivera em imitálos.
Dei os meus mais humildes agradecimentos a SuaMajestade por este singular favor, e, assim quealgumas tropas estavam prontas para marcharpara Nangasac, o oficial teve ordem para meconduzir a essa cidade, com instruções secretasacerca do crucifixo.
Aos nove dias do mês de Junho de 1709, após umalonga e penosa viagem, arribei a Nangasac, ondeencontrei uma companhia de holandeses que tinhapartido de Amsterdam para negociar em Amboina eque estava pronta para embarcar, no seu regresso,num grande navio de quatrocentas e cinqüentatoneladas. Permanecera muito tempo na Holanda,pois fizera os meus estudos em Leyde e falavamuito bem a língua desse país. Dirigirammediversas perguntas acerca das minhas viagens, aque respondi conforme me aprouve. Mantiveperfeitamente, perante eles, a linha de holandês;citei amigos e parentes nas ProvínciasUnidas eapresenteime como natural de Gelderland.
Estava disposto a dar ao capitão do navio, que eraum certo Theodoro Vangrult, tudo quanto lheapetecesse pedirme pela minha passagem;sabendo, porém, que eu era cirurgião,contentouse com metade do preço vulgar, com acondição de que exerceria a bordo o meu mister.
Antes de embarcarmos, alguns da tropatinhamme perguntado amiudadamente se eutraficara, ao que eu respondi, de um modo geral,que fizera tudo quanto era necessário. Contudo,
um patife audacioso lembrouse de mostrarmemaldosamente ao oficial japonês, dizendo: nãocalcou aos pés o crucifixo. O oficial, que tinhasecretas ordens para nada exigir de mim,aplicoulhe vinte bastonadas dadas nas costas, demaneira que mais ninguém se atreveu, após essacena, a fazerme perguntas sobre tal assunto.
Na nossa viagem nada houve que mereça serreferido. Fizemonos de vela, com vento de feição, etomámos água no Cabo da Boa Esperança em 16de Abril de 1710; desembarcámos em Amsterdam,onde me demorei pouco tempo e onde depressaembarquei para a Inglaterra. Que prazer não foi omeu ao tornar a ver a minha querida pátria, apóscinco anos e meio de ausência! Encaminheimediretamente para Redriff, onde encontrei minhamulher e meus filhos de perfeita saúde.
Quarta Parte
VIAGEM AO PAÍS DOS HUYHNHNMS
CAPÍTULO I
O autor empreende ainda uma viagem na qualidade de capitão de navio — Asua tripulação insubordinase, prendeo, acorrentao e põeno em terra num
ponto desconhecido — Descrição dos Yahus — Dois Huyhnhnms vêm ter comele.
PASSEI cinco magníficos meses na docecompanhia de minha mulher e de meus filhos eposso dizer que, então, era feliz, se pudesseverificar que o era; fui, porém, desgraçadamente
tentado a fazer ainda nova viagem, principalmentequando me foi oferecido o orgulhoso título decapitão a bordo do Aventura, navio mercante detrezentas e cinqüenta toneladas. Entendia muitobem de navegação e, demais, estava cansado dotítulo subalterno de cirurgião de bordo. Nãorenunciei, contudo, à profissão, e soube exercêla,quando se me ofereceu ensejo. Por entãocontenteime em levar comigo, nesta viagem, ummoço praticante. Despedime de minha mulher,que ficava grávida. Embarcando em Portsmouth,fizme de vela a 2 de Dezembro de 1710.
Durante a viagem as doenças levaramme parte datripulação, de maneira que fui obrigado a recrutargente nos Barbados e nas ilhas de Leward, onde osnegociantes, com quem eu comerciava, tinhamdado ordem para arribar; cedo, porém, tive ensejopara me arrepender de ter feito aquele malditorecrutamento, pois a mor parte era constituída porbandidos, que tinham sido piratas. Estes patifesinsubordinaram o resto da minha tripulação etodos juntos combinaram apoderarse de mim e donavio. Certa manhã, pois, entraram no meucamarote, atiraramse a mim, amarraramme eameaçaramme de me lançar ao mar se ousasseopor a menor resistência. Disselhes que a minhasorte estava nas suas mãos e que consentia,antecipadamente, no que eles quisessem.Obrigaramme a proferir estas palavras sobjuramento, e, em seguida, desamarraramme,contentandose em me acorrentar em pé àcabeceira da cama e em postarem uma sentinela àporta do meu camarote, com ordem de me fazersaltar os miolos se fizesse alguma tentativa defuga. O seu projeto era fazer pirataria com o meu
navio e dar caça aos espanhóis; para isso, porém,não eram muitos os tripulantes; resolveram,primeiramente, vender a carga do navio e ir aMadagascar para aumentar a sua gente.Entretanto, conservavamme prisioneiro a bordodo meu camarote, muito inquieto com a sorte queme esperava.
A 9 de Maio de 1711, um tal Jacques Welch entroue disseme que recebera ordem do senhor capitãopara me desembarcar. Quis, mas baldadamente,conversar com ele e dirigirlhe algumas perguntas;recusou até dizerme o nome daquele a quemtratava por senhor capitão. Fizeramme descer parao escaler, depois de me haverem permitido arranjaro meu fardo e levar as minhas coisas.Deixaramme o meu sabre e tiveram a delicadezade não me revistar as algibeiras, onde havia algumdinheiro. Após quase uma légua de navegação,deixaramme numa praia. Perguntei aos que meacompanhavam que região era aquela.
— Por nossa fé — responderam — sabemos tantocomo o senhor, mas tome cuidado, não vá a marésurpreendêlo. Adeus.
Em seguida o escaler afastouse.
Abandonei a praia e subi a um outeiro para mesentar e deliberar sobre o caminho que tinha atomar. Quando me senti um pouco descansado,avancei por esses terrenos, resolvido aaproveitarme do primeiro meio de salvação que seme oferecesse e resgatar a minha vida, se pudesse,por algumas sementes, por alguns braceletes eoutras bagatelas, de que os viajantes não deixamde munirse e de que tinha uma certa quantidade
nas algibeiras.
Descortinei grandes árvores, vastas campinas ecampos, onde a aveia crescia por todos os lados.Caminhava com precaução, receando sersurpreendido ou receber alguma flechada. Depoisde ter andado algum tempo, fui sair em umaestrada, onde se me depararam muitas pegadas decavalos e algumas vacas. Vi, ao mesmo tempo,grande número de animais no campo e um ou doisda mesma espécie empoleirados numa árvore. Asua figura surpreendeume e, tendose aproximadoalguns, oculteime por detrás de um maciço paramelhor os examinar.
Cabelos compridos lhes caíam para a cara; o peito,as costas e as patas dianteiras eram cobertas deum espesso pêlo; tinham barba no queixo como osbodes, mas o resto do corpo era pelado e deixavaver uma pele muito cinzenta. Não tinham cauda;estavam ora sentados na relva, ora deitados, ora depé nas patas traseiras; saltavam, pulavam etrepavam nas árvores com a agilidade dos esquilos,tendo garras nas quatro patas. As fêmeas eram umpouco menores do que os machos; tinham longoscabelos e apenas uma ligeira penugem em muitossítios do corpo. Os seios pendiam entre as duaspatas dianteiras e algumas vezes rojavamse pelochão, quando caminhavam. O pêlo de uns e deoutros era de diversas tonalidades: cinzento,vermelho, preto e louro. Finalmente, em nenhumadas minhas viagens vira animal tão disforme e tãodesagradável.
Depois de os haver examinado suficientemente,segui pela estrada, na esperança de que meconduziria a alguma choupana de índios. Tendo
caminhado um pedaço, encontrei, a meio daestrada, um desses animais que se encaminhavadiretamente para mim. Ao verme, estacou, fezuma infinidade de caretas e pareceu olharmecomo um animal cuja espécie lhe eradesconhecida; depois, aproximouse e levantoupara mim a pata dianteira. Desembainhei o sabre ebatilhe de leve, não querendo ferilo, com receiode ofender aqueles a quem estes animais poderiampertencer. O animal, sentindose magoado,desatou a fugir e a gritar de tal maneira que atraiua atenção de uns quarenta animais da sua espécie,que correram para mim fazendo horríveis caretas.Corri para uma árvore, onde me encostei,mantendome em guarda com o sabre; logosaltaram aos ramos das árvores e começaram aestercar em cima de mim. Repentinamentepuseramse todos em fuga.
Então, deixei a árvore e continuei o meu caminho,ficando muito surpreendido de que um súbitoterror lhes tivesse feito fugir; mas, olhando para aesquerda, vi um cavalo trotando gravemente nomeio de um campo; fora a presença deste cavaloque fizera dispersar tão depressa o bando que meassaltara. Aproximandose de mim, o cavaloestacou, recuou e, em seguida, olhoumefixamente, parecendo um pouco espantado;examinoume por todos os lados, andando porvárias vezes em volta de mim.
Quis andar para a frente, mas colocouse diante demim na estrada, olhandome meigamente e sempraticar violência alguma. Examinámonosmutuamente durante certo tempo; por fim,atrevime a colocarlhe a mão sobre o pescoço,
acariciandoo, assobiando e falando à maneira dospalafreneiros, quando querem acariciar um cavalo;mas o animal, soberbo, fazendo pouco da minhadelicadeza e da minha bondade, carregou a vista elevantou orgulhosamente uma das suas patasdianteiras para me obrigar a retirar a minha mãofamiliar demais. Ao mesmo tempo, desatou arelinchar três vezes, mas com uns sons tãovariados, que comecei a crer que falava umalinguagem que lhe era própria e que tinha umaespécie de sentido ligado aos seus relinchos.
Imediatamente apareceu um outro cavalo, quecumprimentou o primeiro muito delicadamente;ambos se trataram muito bem e começaram arelinchar de cem diferentes modos, que pareciamformar sons articulados; em seguida, deram algunspassos juntos, como se quisessem conferenciarsobre qualquer assunto; iam e vinham, marchandogravemente a par, semelhantes a pessoas quedeliberam sobre coisas importantes; no entanto,não tiravam os olhos de cima de mim, como setemessem que eu tentasse a fuga.
Surpreendido por ver animais portaremse assim,pensei de mim para comigo:
— Visto que neste país os animais raciocinamassim, é porque os homens são de uma supremainteligência.
Esta reflexão incutiume tanta coragem que resolviavançar por essa região até que descobrissequalquer casa e encontrasse algum habitante, oque deixara ali os dois cavalos soltos; um deles,porém, que era ruçomalhado, vendo que me iaembora, começou a relinchar junto de mim de
maneira tão expressiva que julguei perceber o queele queria; volteime e acerqueime dele,dissimulando o meu embaraço e a minhaperturbação tanto quanto me era possível, porque,no fundo, não sabia em que daria tudo isso.
Os dois cavalos chegaramse mais perto epuseramse como que a examinarme o rosto e asmãos. O meu chapéu parecia surpreendêlos,assim como a fazenda da minha roupa. Oruçomalhado pôsse a gabar a minha mão direita,parecendo encantado, e a macieza e a cor daminha pele; mas apertouma tanto entre o casco ea ranilha que não pude deixar de gritar com toda aforça dos meus pulmões, o que me atraiu miloutras carícias, cheias de amizade. Os meussapatos e as minhas meias inquietaramnos,farejaramnos e apalparamnos por diversas vezese fizeram sobre este assunto muitos gestosparecidos com os de um filósofo que tenta explicarum fenômeno.
Enfim, a atitude e as maneiras desses dois animaispareceramme tão racionais, tão prudentes, tãojudiciosas, que concluí de mim para mim quetalvez fossem encantadores que se haviamtransformado em cavalos com qualquer desígnio eque, encontrando um estranho no seu caminho,tinham querido divertirse um pouco à sua custa,ou tinham ficado atônitos com as suas feições,roupas e maneiras. Foi por isso que tomei aliberdade de falarlhes nestes termos:
— Senhores cavalos, se são feiticeiros, como tenhomotivos para crer, decerto compreendem todas aslínguas; assim, tenho a honra de lhes dizer, naminha, que sou um pobre inglês que, por
fatalidade, naufraguei nestas costas e peço ou aum ou a outro que, se são realmente cavalos, medeixem subir para a garupa, a fim de descortinaralguma aldeia ou casa onde possa recolherme.Como reconhecimento, ofereçolhes este punhal eeste bracelete.
Os dois animais pareceram ouvir o meu discursocom atenção e, quando acabei, puseramse arelinchar cada um por sua vez, voltados um para ooutro. Compreendi então, claramente, que aquelesrelinchos eram significativos e encerravampalavras com que, talvez, se pudesse fazer umalfabeto tão claro como o dos chineses.
Ouvios repetir várias vezes a palavra Yahu, de quedistinguia o som sem lhe perceber o sentido, aindaque, enquanto os dois cavalos conversavam,tentasse compreenderlhe o significado. Quandoacabaram de falar, desatei a gritar com toda aforça:Yahu! Yahu! tentando imitálos. Isto pareceusurpreendêlos em extremo, e então oruçomalhado, repetindo duas vezes a mesmapalavra, pareceu querer ensinarme o modo depronunciála. Repetia após ele o melhor que mefoi possível e quis me parecer que, emboraestivesse muito longe da perfeição, da acentuaçãoe da pronúncia, tinha, no entanto, feito algumprogresso. O outro cavalo, que era baio, ao que mepareceu, quis também ensinarme uma outrapalavra muito mais difícil de pronunciar e que,sendo reduzida à ortografia inglesa, pode serescrita assim: huyhnhnm. Não me saí tão bem dapronúncia desta como da primeira, mas depois dealguns ensaios já ia melhor, e os dois cavalosnotaram que eu era inteligente.
Após alguns momentos de conversa (decerto a meurespeito) despediramse com o mesmo cerimonialcom que se tinham acercado de mim. O baiofezme sinal para caminhar adiante dele, o quejulguei a propósito fazer enquanto não encontrasseoutro guia. Como caminhasse muitovagarosamente, pôsse a relinchar, hhuum,hhuum. Compreendi o seu pensamento e deilhe aentender, conforme pude, que estava muitocansado e me custava muito a andar.Percebendoo, detevese caridosamente para medeixar descansar.
CAPÍTULO II
O autor é levado à habitação de um huyhnhnm; como é recebido — Qual era oalimento dos huyhnhnms — Embaraços do autor para encontrar com que se
alimentar.
Depois de ter palmilhado quase três milhas,chegámos a um sítio onde havia uma grande casade madeira muito baixa e coberta de palha.Comecei logo a tirar da algibeira as pequenaslembranças, que destinava aos donos desta casa,para ser nela recebido mais bondosamente. Ocavalo teve a delicadeza de me fazer entrar,primeiro, numa grande quadra muito limpa, onde,como único mobiliário, havia uma mangedoura euma gamela.
Vi três cavalos com duas éguas, que não comiam, eque estavam sentados nos jarretes. Entretanto, oruçomalhado chegou, e, entrando, começou arelinchar em tom de dono da casa. Atravessei comele duas outras salas planas; na última, o guia
fezme sinal para esperar e passou a outroaposento que ficava próximo. Imaginei, então, demim para mim, que era preciso que o dono da casafosse uma pessoa nobre, pois assim me faziaesperar em cerimônia na antecâmara. Ao mesmotempo, porém, não podia conceber que um homemde distinção tivesse um cavalo como criado dequarto. Temi, então, estar doido, e que as minhasfatalidades me tivessem feito perdercompletamente a inteligência. Olhei atentamenteem volta de mim e pusme a examinar aantecâmara que estava pouco mais ou menosmobilada como a primeira sala. Abri muito osolhos, fitei fixamente tudo o que me cercava e viasempre a mesma coisa. Belisquei os braços, mordios lábios, bati nos quadris para acordar, no casoem que estivesse sonhando e, como eram sempreos mesmos objetos que me feriam a vista,depreendi que havia ali obra do diabo e alta magia.
Enquanto ia fazendo estas reflexões, oruçomalhado veio ter comigo e fezme sinal paraque entrasse com ele no aposento, onde vi sobreuma esteira muito asseada e fina uma bonita éguacom um potro e uma eguazinha, todos apoiadossimplesmente nas suas ancas. A égua levantouseà minha chegada e, depois de terme examinadoatentamente as mãos e o rosto, voltoume o rabocom ar desdenhoso e pôsse a rinchar,pronunciando muitas vezes apalavra Yahu. Compreendi logo, com grande pesarmeu, o sentido funesto daquela palavra, porque ocavalo que me introduzira, fazendome sinal com acabeça e repetindo a palavra hhuum,hhuum, conduziume a uma espécie de pátio ondehavia uma outra construção, a alguma distância
da casa. A primeira coisa que me saltou à vistaforam três daqueles malditos animais, que, aprincípio, tinha visto no campo e de que maisacima fiz menção; estavam presos pelo pescoço ecomiam raízes e carne de burro, de cão e de vacamorta (como depois soube), que seguravam nasgarras e dilaceravam com os dentes.
O cavalomor mandou então a um cavalinhoalazão, que era um dos seus lacaios, quedesprendesse o maior desses animais e otrouxesse. Colocaramnos a ambos de costas paramelhor fazer a comparação e foi então queo Yahu foi repetido muitas vezes, o que me deu aentender que aqueles animais sechamavam Yahus. Não posso descrever a minhasurpresa e o meu horror, quando, tendoexaminado de perto esse animal, notei nele todasas feições e toda a configuração de um homem,com a diferença de que tinha uma cara larga echata, o nariz esborrachado, os lábios grossos e aboca muito grande; isto, porém, é vulgar a todas asnações selvagens, porque as mães parem os filhoscom o rosto voltado para o chão, levamnos àscostas e eles batemlhes com o nariz nasespáduas. Este Yahu tinha as patas dianteirasparecidas com as minhas mãos, embora fossemmunidas de unhas muito grandes e a pele fossetrigueira, rude e coberta de pêlo. As pernastambém se pareciam com as minhas, com algumasdiferenças. No entanto, as minhas meias e os meussapatos tinham feito acreditar aos senhorescavalos que a diferença era muito maior. Comrespeito ao resto do corpo, era de fato a mesmacoisa, exceto com relação à cor e ao pêlo.
Ainda que assim fosse, aqueles senhoresimaginavam que a minha vestimenta era a minhapele, e, por conseguinte, parte integrante do meuser, de maneira que, por essa circunstância, eramuito diferente dos seus Yahus. O lacaio alazão,apanhando uma raiz com o casco e a ranilha, veiotrazerma. Pegueilhe e, tendoa saboreado,restituílha imediatamente com a máximadelicadeza possível. Em seguida, foi à moradiados Yahus e trouxeme um bocado de carne deburro. Este petisco pareceume tão detestável e tãodesagradável que nem lhe toquei, indicando, aomesmo tempo, que me fazia mal ao coração. Oalazão atirouo aoYahu, que imediatamente odevorou com prazer. Vendo que o sustentodos Yahus me não agradava, lembrouse de meoferecer do seu, isto é, feno e aveia; abanei, porém,a cabeça, fizlhe compreender que não era iguariade que gostasse. Então, levando uma das patasdianteiras à boca, de um modo muitosurpreendente e contudo muito natural, fezmesinais para me fazer compreender que não sabiacomo sustentarme e para me perguntar o que euqueria comer; porém não pude fazerlhe entender omeu pensamento por sinais, embora o entendesse,pois não via que ele se encontrasse em condiçõesde poder satisfazerme.
Entretanto, passou uma vaca, aponteia com odedo e dei a entender, por um aceno expressivo,que tinha vontade de mungila.Compreenderamme e logo me fizeram entrar emcasa, onde deram ordem a uma criada, isto é, àégua, de me abrir uma sala, onde encontrei umagrande quantidade de vasilhas de leite, alinhadasmuito em ordem. Bebi dele abundantemente e
tomei a minha refeição muito à vontade e comgrande coragem.
À hora do meiodia vi chegar à casa uma espéciede carruagem, puxada por quatro Yahus. Nessacarruagem um velho cavalo, que parecia pertencera elevada hierarquia, vinha visitar os meushospedeiros e jantar com eles. Receberamnomuito delicadamente e com grandes considerações,jantaram juntos na melhor sala e, além do feno eda palha que lhe apresentaram primeiramente,serviramlhe aveia fervida em leite. A gamela emque comiam, colocada ao centro da sala, estavadisposta em círculo, pouco mais ou menos comouma prensa de lagar na Normandia, e dividida emvários compartimentos, em volta dos quais secolocaram sentados sobre as ancas e encostados afardos de palha. A cada compartimento competiauma grade de manjedoura, de maneira que cadacavalo e cada égua comia a sua ração com muitomais decência e limpeza. O potro e a eguazinha,filhos dos donos da casa, assistiam a esse jantar, eparecia que os seus progenitores estavam muitoatentos em fazêlos comer. O ruçomalhadoordenoume que fosse para junto dele e pareceureferirse a mim durante largo tempo ao seu amigo,que de vez em quando me fitava, repetindo porvárias vezes a palavra Yahu.
Alguns momentos antes eu calçara as luvas; oruçomalhado, tendo notado isso, e não vendo asminhas mãos conforme as havia visto a princípio,fez diversos sinais de admiração e de enleio;tocoume três vezes com a sua pata e deume aentender que desejava que voltasse à primitivaforma. Em seguida descalceime, o que fez falar
toda a sociedade, à qual inspirei afeição. Depressalhe senti os efeitos; aplicaramse em fazermepronunciar algumas palavras que ouvia eensinaramme os nomes de aveia, leite, fogo, águae muitas outras coisas. Decorei todos esses nomese foi, então, mais do que nunca, que fiz uso dessaprodigiosa facilidade que a natureza me concedeupara aprender línguas.
Quando acabou o jantar, o cavalo, meu amo,chamoume em particular e, por meio de sinaisacompanhados de algumas palavras, fezmecompreender o pesar que sentia por ver que eu nãocomia, não achando coisa alguma que fosse domeu agrado.Hlunnh, na sua linguagem, queriadizer aveia. Pronunciei esta palavra duas ou trêsvezes, porque, embora a princípio tivesse recusadoa aveia, depois de haver refletido julguei poderfazer dela uma espécie de alimento, misturandoacom leite. Isso me sustentaria até que se meproporcionasse ensejo propício para me escapar eencontrasse indivíduos da minha espécie. Logo ocavalo deu ordem a uma criada, que era umabonita égua, para que trouxesse uma boa porçãode aveia em um prato de madeira. Fiz torrar estaaveia, consoante me foi possível; em seguida,esfregueia até que ficasse completamentedescascada, depois tratei de a padejar e coloqueiasobre duas pedras para a esmagar: arranjei água,e fiz dela uma espécie de bolo que cozi e que comiquente, misturado em leite.
A princípio, foi para mim uma iguaria muitoinsípida (embora seja um alimento muito usado emalguns pontos da Europa); mas, habitueime com otempo e, tendome encontrado bastantes vezes na
minha vida reduzido a circunstâncias difíceis, nãoera a primeira vez que percebia que pouco erapreciso para contentar as necessidades danatureza e que o corpo a tudo se habitua.Observarei aqui que, enquanto permaneci no paísdos cavalos, não sofri a menor indisposição.Verdade é que, algumas vezes, ia à caça doscoelhos e das aves, que apanhava com armadilhasfeitas de cabelos dos Yahus; outras vezes, colhiaervas, que fazia cozer, ou que comia como salada,e, de vez em quando, fabricava manteiga. O que aprincípio me causava desgosto era a falta de sal;acostumeime, porém, a passar sem ele; daquidepreendo que o uso do sal é efeito da nossaintemperança e apenas foi produzido para excitar abeber, porque é bom que se note que o homem é oúnico animal que tempera com sal tudo o quecome. Quanto a mim, ao deixar este país, tive certocusto em tornar a usálo.
Creio que já falei bastante a respeito do meusustento. Se me alongasse muito mais sobre esseassunto, pareceme que faria o que fez, nas suasrelações, a maioria dos viajantes, que imaginacoisa de grande valia para o leitor saber se tembom ou mau passadio.
Seja como for, suponho que este sucinto pormenorda minha alimentação era necessário para impedirque se imaginasse que me foi impossívelalimentarme durante três anos de permanênciaem tal país e com semelhantes habitantes.
À tarde, o cavalo, meu amo, mandoume dar umquarto a seis passos da casa e separado doalojamento dos Yahus. Estendi alguns fardos depalha e cobrime com o meu casaco, de maneira
que passei uma noite magnífica, dormindotranqüilamente. Nas seguintes passei melhor,como o leitor verá daqui a pouco, quando lhe falarda maneira de viver nesse país.
CAPÍTULO III
O autor entregase ao estudo de aprender bem a, língua e o huyhnhnm, seuamo, aplicase em ensinarlha — Muitos huyhnhnms vêm, por curiosidade,
visitar o autor — Faz a seu amo um sucinto relato das suas viagens.
Entregueime extremamente ao estudo da línguaque o huyhnhnm meu amo, (é assim que o tratareide hoje em diante), seus filhos e criados tinhammuita vontade de ensinarme. Olharamme comoum prodígio e estavam surpreendidos de que umanimal irracional tivesse todas as maneiras e todosos sinais naturais de um animal racional.Apontava cada coisa com o dedo e perguntava onome, que retinha de memória e que não deixavade inscrever no meu pequeno registro de viagem,quando estava só. Com respeito à acentuação,tentei apanhála, apurando atentamente o ouvido.O alazão, porém, foi um grande auxiliar.
Preciso é confessar que a pronúncia desta línguame pareceu muito difícil. Os huyhnhnms falam, aomesmo tempo, com a garganta e o nariz; e a sualíngua, tanto nasal como gutural, se aproximamuito da dos alemães, mas é muitíssimo maisgraciosa e expressiva. O imperador Carlos V fizeraesta curiosa observação; assim, dizia ele, se tivessede falar com o seu cavalo, falarlheia em alemão.
O meu amo sentiase tão impaciente por me ouvir
falar na sua língua para poder conversar comigo esatisfazer a sua curiosidade, que empregava todasas suas horas de descanso em darme lições e emensinarme todos os termos, todos os rodeios efinuras dessa língua. Estava convencido, comomais tarde me declarou, de que eu eraum Yahu; mas o meu asseio, a minha delicadeza, aminha docilidade, a minha disposição paraaprender, admiravamno: não podia ligar essasqualidades com as de umYahu, que é um animalgrosseiro, sujo e indócil. O meu vestuáriocausavalhe também embaraço, imaginando quefazia parte integrante do meu corpo, pois não medespia senão à noite para me deitar, quando todosna casa estavam ferrados no sono, e me vestia demanhã ao levantar, antes de acordarem. Meu amotinha vontade de saber qual era o meu país, onde ecomo adquirira esta espécie de raciocínio, quetransparecia de todas as minhas maneiras e,enfim, de conhecer a minha história. Gabavamede ter aprendido tudo isso, rapidamente, visto oprogresso que eu fazia dia a dia na compreensão ena pronúncia da língua. Para auxiliar um pouco aminha memória, formei um alfabeto com todas aspalavras que aprendera, e escreviaas com o termocorrespondente em inglês por baixo. Depois, nãotive dificuldade em escrever na presença de meumestre as palavras e frases que aprendia; nãopodia, contudo, compreender o que eu fazia,porque os huyhnhnms não faziam idéia alguma doque seja escrita.
Enfim, ao cabo de dez semanas, encontreime emestado de entender diversas vezes as suasperguntas, e três meses depois fiquei bastantehabilitado para lhes responder regularmente. Uma
das primeiras perguntas que me dirigiu, quandolhe pareceu que eu estava em condições deresponderlhe, foi indagar de que país eu vinha ecomo aprendera a fazerme animal racional, nãopassando de um Yahu, porque os Yahus, com osquais ele me encontrava semelhanças no rosto enas patas dianteiras, tinham, dizia ele, umaespécie de conhecimentos, com astúcias emalícias, porém não tinham esta concepção e estadocilidade que notava em mim. Respondilhe quevinha de muito longe e tinha atravessado os marescom outros da minha espécie; que viajara numagrande construção de madeira; que os meuscompanheiros me haviam deixado nas costas destepaís, abandonandome. Foime preciso, então,juntar à linguagem muitos sinais para me fazercompreender. Meu amo replicoume que era certoque me enganavae que tinha dito uma coisa quenão era, isto é, mentia. (Os huyhnhnms nãopossuem na sua língua vocábulos para exprimir averdade ou a mentira). Não podia compreender quehouvesse terras de alémmar e que um vil rebanhode animais pudesse fazer flutuar sobre esseelemento uma grande construção de madeira econduzila à sua vontade. E acrescentou:
— Ninguém, salvo um huyhnhnm, poderia fazersemelhante coisa. Confiar o governo de umaconstrução dessas a umYahu, é obra deinsensatos.
Esta palavra huyhnhnm, na sua língua,significava cavalo, e quer dizer, conforme a suaetimologia, a perfeição da natureza. Respondi ameu amo que me faltavam as expressões, mas,dentro de algum tempo, ficaria em estado de lhe
referir coisas, que, decerto, o surpreenderiam.Exortou a senhora égua sua mulher, os senhoresseus filhos, o potro e a eguazinha, e todos os seuscriados, a concorrer com zelo a aperfeiçoaremmena língua, e ele próprio, todos os dias, consagravapara esse fim duas a três horas.
Muitos cavalos e éguas de distinção vieram, então,visitar meu amo, excitados pela curiosidade de verum extraordinárioYahu, que, pelo que tinhamouvido, falava como huyhnhnm e fazia brilhar, comas suas maneiras, as chispas do seu raciocínio.Sentiam prazer em dirigirme perguntas ao meualcance, às quais redarguia conforme podia. Tudoisto contribuía para me fortalecer no uso da língua,de sorte que, ao cabo de cinco meses, compreendiatudo o que me diziam e exprimiame muito bemsobre a mor parte das coisas.
Alguns huyhnhnms, que vinham à casa de meuamo para me ver e conversar comigo, não queriamacreditar que eu fosse um Yahu, porque, diziam,tinha uma pele muito diferente da daquelesanimais; não me viam, acrescentavam, uma peleaproximadamente parecida com a dos Yahus senãono rosto e nas patas dianteiras, porém peladas.Meu amo sabia bem o que isso era, porque umacoisa que aconteceu uns quinze dias antestinhame obrigado a descobrirlhe esse mistério,que ocultara sempre até então com receio de queme tomasse por um verdadeiro Yahu e me pusessena companhia deles.
Já disse ao leitor que todas as noites, quando todaa casa estava recolhida, o meu costume eradespirme e cobrirme com o casaco. Certo dia,meu amo mandoume, de madrugada, o seu lacaio
alazão. Quando entrou no meu quarto, dormia euprofundamente; o meu casaco estava caído e tinhaa camisa arregaçada. Acordei com o barulho queele fez e notei que dava conta do recado com arinquieto e embaraçado. Foi logo ter com o amo econtoulhe confusamente o que vira. Quando melevantei fui dar os bons dias a sua honra (é o termousado entre os huyhnhnms, que corresponde aosnossos: alteza, grandeza e reverência) .Perguntoume logo o que havia, o que o seu lacaiolhe tinha contado de manhã; que lhe dissera quenão era o mesmo acordado que dormindo; que,quando dormia, tinha uma pele que não possuíadurante o dia.
Tinha, até essa data, ocultado esse segredo, comojá disse, para não ser confundido com a maldita einfame raça dos Yahus; mas, então, foi precisodesvendálo, contra minha vontade. Além disso, omeu vestuário e o meu calçado estavam já muitousados, e como precisavam de ser substituídospela pele de um Yahu, ou de qualquer outroanimal, eu previa que o meu segredo não ficariapor muito tempo oculto. Confiei a meu amo que,no país de onde eu vinha, os da minha espéciecostumavam cobrir o corpo com o pêlo de certosanimais, preparado com arte, quer por decência ecomodidade, quer para se precaver contra o rigordas estações; que, pelo que me dizia respeito,estava pronto a fazerlhe ver claramente o queacabava de dizer; que me ia despir e que sóocultaria o que a natureza nos inibe de mostrar. Omeu discurso pareceu admirálo; não podia,principalmente, conceber que a natureza nosobrigasse a ocultar o que nos deu.
— A natureza — dizia ele — feznos presentesvergonhosos, furtivos e criminosos? Quanto a nós— acrescentou — não coramos com esses dotes enão nos envergonhamos de os expor às claras. Noentanto — prosseguiu — não quero contrariálo.
Despime, pois, decentemente, para satisfazer àcuriosidade de sua honra, que deu grandesmostras de admiração ao ver a configuração detodas as partes decentes do corpo. Levantou o meuvestuário, peça por peça, tomandoo entre o cascoe a ranilha e examinouo atentamente; gaboume,acaricioume e deu várias voltas em torno de mim;em seguida, disse com gravidade que eraevidentemente um Yahu, e que não diferia de todosos da minha espécie senão por ter a carne menosdura e mais branca, com uma pele mais macia;que não tinha pêlo na maior parte do corpo; quetinha garras mais curtas e de configuração umpouco diferente, e que afetava andar apenas comas patas traseiras. Não quis ver mais e deixoumevestir, o que me causou prazer pois já começava asentir frio.
Demonstrei a sua honra quanto me mortificavaque me desse seriamente o nome de um animalinfame e odioso. Supliqueilhe que me poupasseuma denominação tão ignominiosa e querecomendasse a mesma coisa a sua família, aosseus criados e a todos os seus amigos; foi em vão.Pedilhe, ao mesmo tempo, a bondade de não darparte do meu segredo, que lhe confiara, a pessoaalguma, com relação ao meu vestuário, ao menosenquanto não tivesse necessidade de mudálo, eque, com respeito ao seu lacaio alazão, sua honralhe ordenasse que não desse palavra sobre o que
vira.
Prometeu guardar silêncio e o caso permaneceusecreto até que minha roupa ficasse imprestável eme fosse preciso procurar com que me vestisse,como direi mais tarde. Ao mesmo tempoexortoume a que me aperfeiçoasse ainda nalíngua, porque ficara muito mais admirado de meouvir falar e raciocinar, do que me ver branco epelado, e que tinha uma extrema vontade de saberde mim as coisas admiráveis que eu tinhaprometido explicarlhe. Desde então, teve maisempenho em instruirme. Ia com ele, sempre quesaía, e fazia com que eu fosse tratadobondosamente em toda parte e com todas asconsiderações, a fim de estar sempre de boadisposição (como me disse particularmente) e deme tornar mais agradável e mais alegre.
Todos os dias, quando estava com ele, além dotrabalho que tinha em ensinarme a língua,dirigiame mil perguntas a meu respeito, às quaisrespondia o melhor que me era possível, o que lhedava já algumas idéias gerais e imperfeitas do quedevia dizerlhe pormenorizadamente mais tarde.Seria inútil explicar aqui como consegui travar comele uma conversação longa, séria e seguida; direiapenas que a primeira conversa teve lugar daforma que passo a expor:
Disse a sua honra que vinha de um país muitoafastado, como já tinha tentado fazerlhecompreender, acompanhado de quase cinqüentameus semelhantes; que num navio, isto é, umaconstrução feita de pranchas, tínhamosatravessado o mar. Descrevilhe a forma dessenavio o melhor que pude e, tendo desdobrado o
lenço, fizlhe compreender como o vento, queinchava as velas, nos fazia caminhar. Disselheque, por ocasião de uma discussão levantada entrenós, tinha sido desembarcado nas costas da ilhaem que atualmente me encontrava; que ficara aprincípio muito embaraçado, não sabendo ondeestava, até que sua honra tivera a bondade de melivrar da perseguição dos vis Yahus.
Perguntoume, então, quem tinha construído o talnavio, e como os huyhnhnms do meu país ohaviam confiado ao governo de uns animaisirracionais. Retorqui que era impossível responderà sua pergunta e continuar a minha narrativa senão me desse a sua palavra, e se não meprometesse sobre sua honra e sobre a suaconsciência, que não se ofenderia com tudo o quelhe dissesse; que, sob esta única condição,prosseguiria a minha narrativa, e lhe exporia comsinceridade as maravilhosas coisas que lheprometera contar.
Asseguroume, positivamente, que não se ofenderiacom coisa alguma. Então, disselhe que o naviofora construído por criaturas parecidas comigo eque, no meu país e em todas as partes do mundopor onde viajava, eram os únicos animais senhorese denominados racionais; que, ao chegar àquelaregião, ficara extremamente surpreendido por veros huyhnhnms procederem como pessoas dotadasde raciocínio, do mesmo modo que ele e os seusamigos estavam muito admirados de encontrarprovas desse raciocínio numa criatura a quem lhesaprouvera tratar por Yahu, e que de fato se pareciacom esses vis animais pela sua configuraçãoexterior, e não pelas suas qualidades de alma.
Acrescentei que, se algum dia o céu permitisse quevoltasse ao meu país e publicasse a relação dasminhas viagens, e em especial a minhapermanência entre os huyhnhnms, toda a genteacreditaria que eu diria uma coisa que não era, eque seria uma história fabulosa e impertinente queeu tinha inventado; em suma, apesar de todo orespeito que ele me merecia, e toda a sua honradafamília, e todos os seus amigos, ousava afirmarlheque no meu país ninguém acreditaria queum huyhnhnm fosse um animal racional e queum Yahu fosse um animal irracional.
CAPÍTULO IV
Idéias dos huyhnhnms acerca da verdade e da mentira — As dissertações doautor são censuradas por seu amo.
Enquanto pronunciava as derradeiras palavras,meu amo parecia inquieto, embaraçado e comofora de si. Duvidar e não acreditar o que se ouvedizer é para os huyhnhnms uma operação deespírito a que não estão habituados, e, quando sãoobrigados a isso, o espírito sailhes por assim dizerfora da órbita natural. Recordome até de que,conversando algumas vezes com meu amo arespeito das propriedades da natureza humana, talcomo existe nas outras partes do mundo, e haviaocasião para lhe falar da mentira e do engano,tinha muito custo em perceber o que lhe queriadizer, porque raciocinava assim: o uso da palavrafoinos dado para comunicar uns aos outros o quepensamos e para sabermos o que ignoramos. Ora,se se diz a coisa que não é, não se procede
conforme a intenção da natureza; fazse umabusivo uso da palavra; falase e não se fala. Falarnão é fazer compreender o que se pensa?
— Ora, quando o senhor faz o que sechama mentir, dáme a compreender o que não sepensa: em vez de me dizer o que é, não fala, sóabre a boca para articular sons vãos, não me tirada ignorância, aumentaa.
Tal é a idéia que os huyhnhnms têm da faculdadede mentir, que nós, homens, possuímos num grautão perfeito e tão eminente.
Para voltar à conversa particular de que se trata,quando garanti a sua honra que os Yahus eram,no meu país, os animais senhores e dominadores(o que deveras o admirou) perguntoume setínhamos huyhnhnms e qual era o seu estado eemprego. Respondilhe que tínhamos grandequantidade; que, no verão, pastavam nascampinas e que, durante o inverno, ficavam emsuas casas, onde tinham Yahus para os servir,para lhes pentear a crina, para lhes escovar eesfregar a pele, para lhes lavar os pés, para lhesdar de comer.
— Compreendo, — retorquiu ele — isto é, que,embora os Yahus se gabem de possuir algumraciocínio, os huyhnhnms são sempre os amos,como aqui. Prouvesse aos céus apenas que osnossos Yahus fossem tão submissos e tão bonscriados como os do seu país! Mas prossiga,rogolhe.
Pedi a sua honra quisesse dispensarme de dizermais sobre este assunto, porque não podia,
segundo as regras da prudência, da decência e dadelicadeza, explicarlhe o resto.
— Quero saber tudo — tornou. — Continue e nãoreceie desgostarme.
— Pois bem! — disselhe eu — Visto que o quer emabsoluto, vou obedecerlhe. Os huyhnhnms, a quenós damos o nome de cavalos, são, entre nós, osmais belos e mais soberbos animais, igualmentevigorosos e leves para corridas. Quando vivem emcasas de pessoas de distinção, fazemlhes passar otempo a viajar, a correr, a puxar carruagens e têmpor eles todas as espécies de atenção e amizade,enquanto são novos e se portam bem; mas, assimque começam a envelhecer ou a sofrer das pernas,desfazemse deles logo e vendemnosaos Yahus, que os empregam em trabalhos rudes,penosos, baixos e vergonhosos, até que morram.Então, esfolamnos, vendemlhes as peles, eabandonam os seus cadáveres às aves de rapina,aos cães e aos lobos, que os devoram. Tal é, nomeu país, o fim dos mais belos e dos maisnobres huyhnhnms. Mas nem todos são bemtratados e felizes, como aqueles que acabo de citar;há os que habitam, nos seus primeiros anos, emcasa dos lavradores, carroceiros, cocheiros eoutros que tais, onde são obrigados a trabalhar,ainda que mal tratados e mal alimentados.
Descrevi, então, a nossa maneira de viajar a cavaloe a equipagem de um cavaleiro. Pintei o melhorpossível o freio, a sela, as esporas, o chicote, semesquecer todos os arreios dos cavalos que puxamuma carruagem, uma carroça ou uma charrua.Acrescentei que se aplicava à extremidade dos pésde todos os nossos huyhnhnms uma chapa de
certa substância muito dura chamada ferro, paralhes conservar o casco e impedilo de partirse noscaminhos pedregosos.
Meu amo pareceu indignado com esta maneirabrutal por que tratamos os huyhnhnms, no nossopaís. Disseme que estava muito admirado de quetivéssemos a ousadia e a insolência de lhes subirpara a garupa; que, se o mais vigorosodos Yahusousasse, alguma vez, tomar essaliberdade com respeito ao menor huyhnhnm entreos seus criados, seria imediatamente atirado aochão, pisado, esmagado, feito em nada.Respondilhe que os nossos huyhnhnms eram emgeral domados e educados dos três para os quatroanos, e que, se algum deles fosse insubmisso,rebelde ou renitente, o empregavam logo em puxarcarroças, em lavrar as terras e enchiamno depancadas; que os machos destinados à cavalariaou a puxar carruagens, eram ordinariamentecastrados dois anos depois de nascer, para ostornar mais dóceis e mais macios; que eramsensíveis às recompensas e aos castigos, e que, noentanto, eram destituídos de raciocínio, comoos Yahus daquela região.
Tive muito trabalho em fazer compreender tudoisto a meu amo e foime preciso usar de muitoscircunlóquios para exprimir as minhas idéias,porque a língua dos huyhnhnms não é rica e, comotêm poucas paixões, têm também poucosvocábulos, porque são as paixões multiplicadas esubtilizadas que formam a riqueza, a variedade e adelicadeza de uma língua.
Impossível se torna descrever a impressão que estediscurso causou no espírito do meu amo, e o nobre
agastamento de que foi possuído quando lhe expusa maneira por que nós tratamos os huyhnhnms, eparticularmente, o nosso uso de os castrar para ostornar mais dóceis e evitar que se procriem.Conveio em que, se houvesse um país em queos Yahus fossem os únicos animais racionais, erajusto que eles fossem os senhores, visto como oraciocínio deve ser superior à força. Mas,examinando a configuração do meu corpo,acrescentou que uma criatura como eu era muitomal feita para poder ser racional ou pelo menospara se servir do raciocínio na maior parte dascoisas da vida. Perguntoume ao mesmo tempo setodos os Yahus do meu país se pareciam comigo.Respondilhe que tínhamos pouco mais ou menosa mesma configuração, e que eu passava por bemfeito; que os juvenis machos e as fêmeas tinham apele mais fina e mais delicada, e a das fêmeas eraordinariamente, no meu país, branca como leite.Replicoume que existia, de fato, alguma diferençaentre os Yahus do pátio e eu; que era mais limpo enão tão feio como eles; com relação, porém, avantagens sólidas, os julgava superiores a mim;que os meus pés tanto dianteiros como traseiroseram nus, e que o pouco pêlo que tinha era inútil,pois nem sequer me preservava do frio; que, comrespeito aos meus pés dianteiros, não eramprecisamente pés, pois que nunca me servia delespara caminhar; que eram fracos e delicados, queos conservava geralmente nus, e que a coisa comque eu os cobria de tempos a tempos não era tãoforte nem tão dura como a coisa com que eutapava os pés traseiros; que não andava comsegurança, visto que, se um dos pés traseirosescorregasse, eu cairia imediatamente. Continuou,então, a criticar toda a configuração do meu corpo,
a chateza do meu rosto, a proeminência do meunariz, a situação dos meus olhos, agarradosimediatamente à testa, de maneira que não podiaolhar nem para a direita nem para a esquerda semvoltar a cabeça. Disse que eu não podia comer semauxílio dos meus pés dianteiros, que levava à boca,e que era aparentemente por isso que a naturezapusera aí tantas pinturas, a fim de disfarçar essedefeito; que não via que uso pudesse dar a todosesses pequenos membros separados como estavamnas extremidades dos meus pés traseiros; queeram decerto muito fracos e muito tenros para quese cortassem nas pedras e nas arestas, e queprecisava, para remediar isso, de os cobrir com apele de qualquer outro animal; que o meu corpo nue pelado estava sujeito ao frio, e que, para meprecaver dele, era obrigado a cobrilo com pêlosestranhos, isto é, a vestirme e despirme todos osdias, o que era, segundo a sua opinião, a coisamais aborrecida e fatigante do mundo; que, enfim,notara que todos os animais do seu país tinhamum natural horror aos Yahus, dos quais fugiam, demaneira que, supondo que nós, no nosso país,havíamos recebido da natureza o dom doraciocínio, não via como, com ele, podíamos curaresta intuitiva antipatia que todos os animais têmpelos da nossa espécie, e, por conseguinte, comopodemos tirar deles algum préstimo.
— Em suma — acrescentou — não quero avançarmais sobre este assunto; deixoo livre acerca dasrespostas que me poderia dar, e peçolhesimplesmente que me conte a história da sua vidae que me descreva o país em que nasceu.
Retorqui que estava disposto a satisfazêlo sobre
todos os pontos que lhe interessassem acuriosidade; mas receei muito que me fosseimpossível explicarlhe claramente a respeito damatéria de que sua honra não podia conceber idéiaalguma, visto que nada tinha notado de parecidono seu país; que, contudo, faria o que pudesse eque tentaria explicarlhe por semelhanças emetáforas, pedindo me desculpasse se me nãoutilizasse dos termos próprios.
Disselhe, pois, que era filho de pais honestos, quenascera numa ilha chamada Inglaterra, que ficavatão afastada, que o mais vigorosodos huyhnhnms mal poderia fazer a viagemdurante o curso anual do sol; que a princípioexercera a cirurgia, que é a arte de curar asferidas; que o meu país era governado por umafêmea, a que damos o nome de rainha; que o tinhaabandonado para tentar enriquecer e conseguir, àvolta, que minha família vivesse um poucodesafogada; que, na minha última viagem, foraarvorado em capitão de navio, tendo sob as minhasordens quase cinqüenta Yahus, a maioria dosquais morrera em trânsito, de maneira que me viraobrigado a substituílos por outros, recrutados deoutras nações diversas; que o nosso navio estiveraduas vezes em perigo de naufragar; da primeira vezpor uma violenta tempestade e, da segunda, porter chocado com um rochedo.
Aqui meu amo interrompeume para me perguntarcomo pudera conseguir que estrangeiros dediferentes regiões viessem comigo, com o risco desofrer os perigos de que eu me salvara e as perdasque me tinham atingido. Redarguilhe que eramtodos desgraçados sem eira nem beira e que
tinham sido obrigados a deixar o seu país, querpelo mau caminho que tomavam os seus negócios,quer pelos crimes que haviam cometido; quealguns tinham sido arruinados com demandas,outros pela má vida que levavam, outros pelo jogo;que a maioria era constituída por traidores,assassinos, ladrões, envenenadores, salteadores,perjuros, falsários, receptadores de roubos,fabricantes de moeda falsa, subornadores,soldados desertores e quase todos evadidos dasgalés; que, em conclusão, nenhum deles se atreviaa voltar à sua pátria, com receio de ser enforcadoou de apodrecer em alguma enxovia.
Durante este discurso meu amo viuse forçado ainterromperme por várias vezes. Usei de muitosrodeios para lhe dar idéia de todos os crimes quetinham obrigado os meus tripulantes, na maioria,a deixar o seu país. Não podia perceber com queintenção tinham esses entes cometido tais ações, eo que os havia levado a isso. Para o esclarecer umpouco sobre este assunto, tentei darlhe umasluzes acerca do insaciável desejo que possuímos denos engrandecermos e enriquecermos, e sobre osfunestos efeitos do luxo, da intemperança, damaldade e da inveja; mas só lhe pude fazercompreender tudo isso por meio de exemplos ehipóteses, porque não podia conceber que todosesses vícios existissem realmente; deste modopareceume como uma pessoa cuja imaginaçãoficasse assombrada com a narrativa de uma coisaque nunca vira e de que nunca ouvira falar, quebaixa os olhos e não pode exprimir por palavras asua surpresa e a sua indignação.
Estas noções: poder, governo, guerra, lei, punição e
muitas outras semelhantes, mal podemrepresentarse na língua doshuyhnhnms por longasperífrases. Tive, pois, muito trabalho, quando mefoi preciso dar a meu amo uma relação da Europa,e em especial da Inglaterra, minha pátria.
CAPÍTULO V
O autor expõe ao amo o que ordinariamente acende a guerra entre ospríncipes da Europa; explicalhe,, em seguida, como os particulares se
guerreiam mutuamente — Retrato dos procuradores e juízes de Inglaterra.
O leitor, se lhe aprouver, observará que o que vailer é extraído de muitas conversas que entabuleidiversas vezes, durante dois anos, como huyhnhnm, meu amo. Sua honra dirigiameperguntas e exigia de mim narrativaspormenorizadas à medida que me adiantava noconhecimento e no manejo da língua. Expuslhe, omelhor que me foi possível, o estado de toda aEuropa; dissertei sobre artes, manufaturas,comércio, ciências, e todas as respostas que dava atodas às perguntas, foram assunto de umainesgotável conversa; mas relatarei aqui apenas asubstância dos colóquios que tivemos a respeito daminha pátria; e, dandolhes a melhor ordem queme for possível, olharei menos o tempo e ascircunstâncias do que as exatas veracidades. Tudoo que me inquieta é o trabalho que terei emrestituir a graça e a energia dos magníficosdiscursos e os raciocínios sólidos de meu amo;peço, contudo, ao leitor, que me desculpe a minhafraqueza e incapacidade e de levar também emconta a linguagem um pouco defeituosa, na qual
sou obrigado a exprimirme no atual momento.
Para obedecer, pois, às ordens de meu amo, certodia historieilhe a última revolução havida emInglaterra pela invasão do príncipe de Orange, e aguerra que esse príncipe ambicioso travou com orei de França, o mais poderoso monarca daEuropa, cuja glória estava espalhada por todo ouniverso e que possuía todas as virtudes régias.Acrescentei que a rainha Ana, que sucedera aopríncipe de Orange, continuaria esta guerra, emque todas as potências da cristandade estavamenvolvidas. Disselhe que esta guerra funesta tinhapodido fazer morrer até agora quase um milhãode Yahus; que tinha como conseqüência mais decem cidades assaltadas e tomadas e mais detrezentos navios incendiados e afundados.
Perguntoume, então, quais eram as causas e osmotivos mais vulgares das nossas questões, àsquais eu dava o nome deguerra. Respondilhe queessas causas eram inúmeras e que lhe citariaapenas as principais.
— Muitas vezes — lhe disse eu — é a ambição decertos príncipes, que nunca julgam ter muitasterras nem governar muitos povos. Algumas vezes,é a política dos ministros, que querem dar empregoaos súditos descontentes. Outras, tem sido adivergência de espíritos sobre a escolha deopiniões. Um imagina que assobiar é um bonitoato; outro, que é um crime; este diz que é precisovestuário branco; aquele, que é preciso usálopreto, vermelho, cinzento; um é de opinião que ochapéu deve ser pequeno e de aba direita; outro,que deve ser grande e de aba caída sobre asorelhas, etc. (Imaginei de propósito estes
quiméricos exemplos, não querendo explicarlhe asverdadeiras causas das nossas dissensões comrespeito à opinião, visto que teria certo custo e meenvergonharia deveras em fazerlhascompreender). Acrescentei que as nossas guerrasnunca eram mais longas nem mais sangrentas doque quando eram motivadas por essas diferentesopiniões, que esses cérebros escandescidos sabiamfazer valer quer de um lado, quer do outro, e pelasquais se exaltam a ponto de pegar em armas.
Prossegui:
Dois príncipes estiveram em guerra, porque ambosqueriam despojar um terceiro dos seus Estados,sem que a isso tivesse direito qualquer deles. Àsvezes, um soberano atacava outro com receio deque este o atacasse. Declaram guerra ao seuvizinho, ora porque é muito forte, ora porque émuito fraco. Muitas vezes esse vizinho possuicoisas que nos faltam e a ele faltam coisas que nóspossuímos; então, declarase a guerra para sepossuir tudo ou nada. Um outro motivo que dálugar à guerra num país, é quando este seencontra desolado pela fome, dizimado pela peste,roto pelas facções. Uma cidade está ao agrado deum príncipe e a posse de uma pequena provínciaarredonda o seu Estado? motivo de guerra. Umpovo é ignorante, simples, grosseiro e fraco?atacase chacinando uma parte e reduzindo aoutra à escravidão, e isto com o fim de civilizálo.Uma guerra é muito gloriosa, quando um generososoberano vem em socorro de outro, que o chamoue que, depois de ter expulso o usurpador, seapodera dos próprios Estados que socorreu, mata,põe a ferros ou expulsa o príncipe que lhe
implorara auxílio. A consangüinidade, as alianças,os casamentos são outros tantos motivos de guerraentre os príncipes; quanto mais aparentados são,mais próximos estão de ser inimigos. As naçõespobres estão esfomeadas; as nações ricas sãoambiciosas; ora a indigência e a ambição gostamigualmente das mudanças e das revoluções. Portodas estas razões, vê bem que, entre nós, o misterde um guerreiro é o mais belo de todos os misteres;o que é um guerreiro? é um Yahu a quem se pagapara matar, a sangue frio, os seus semelhantes,que não lhe fazem mal algum.
— Realmente, o que me acaba de dizer acerca dascausas vulgares das suas guerras — replicoumesua honra — dáme uma elevada idéia do seuraciocínio! Seja ele qual for, é uma felicidade,sendo tão maus, estarem impedidos de causar mal,pois, pelo que me tem dito dos terríveis efeitosdessas guerras cruéis, em que tanta gente pereceu,creio, na verdade, que me tem dito coisas que nãosão. A natureza concedeulhes uma boca chatanum rosto chato; assim, não vejo como possammorderse, senão a pouco e pouco. Quanto àsgarras que têm nos pés dianteiros e traseiros, sãotão fracas e tão curtas, que, na verdade, bastariaum dos nossos Yahus para dar cabo de uns dozecomo o senhor.
Não pude deixar de abanar a cabeça e de sorrircom a ignorância de meu amo. Como conhecia umpouco a arte da guerra, fizlhe uma desenvolvidadescrição dos nossos canhões, das nossascolubrinas, dos nossos mosquetes, das nossascarabinas, das nossas pistolas, da nossa pólvora,dos nossos sabres, das nossas baionetas;
pinteilhe o assalto às praças, as trincheiras, osataques, as sortidas, as minas e as contraminas,os assédios, as guarnições passadas ao fio daespada; expliqueilhe as nossas batalhas navais;descrevilhe os nossos maiores navios naufragandocom toda a tripulação, outros crivados de balas decanhão, desmantelados e queimados no meio daságuas; o fumo, o fogo, as trevas, os clarões, oruído, os gemidos dos feridos, os gritos doscombatentes, os membros saltando pelo ar, o marensangüentado e coberto de cadáveres; emseguida, referilhe os nossos combates em terra,onde havia muito mais sangue vertido e onde, numdia, morreram quarenta mil combatentes, deambas as partes; e, para fazer valer um pouco acoragem e a bravura dos meus queridoscompatriotas, disselhe que os vira uma vez numassédio fazer saltar, com felicidade, uma centenade inimigos, e que tinha visto ainda saltar maisnum combate no mar, de maneira que os membrosespalhados de todos esses Yahus pareciam cairdas nuvens, o que constituía um espetáculo muitoagradável à nossa vista.
Ia continuar a fazer ainda alguma excelentedescrição, quando sua honra me ordenou silêncio,dizendo:
— A índole do Yahu é tão má, que me custa crer quetudo o que acaba de referirme não fosse possíveldesde que eu lhe supusesse uma força e umahabilidade iguais à sua maldade e malícia. Noentanto, por muito má idéia que eu formasseacerca desse animal, não se aproximava daquelade que lhe dera provas. O seu discursoperturbame o espírito e colocame numa situação
em que nunca me encontrei; receio que os meussentidos, aterrorizados com essas horríveisimagens que me traçou, não venha a pouco epouco a habituarse a elas. Odeio os Yahus destaregião, mas, apesar de tudo, perdôo todas as suasodiosas qualidades, visto como a natureza assimos formou e não possuem raciocínio para segovernar e corrigirse; porém que uma criatura,que se gaba de possuir este raciocínio, em partilha,seja capaz de cometer ações tão execrandas e de seentregar a excessos tão horríveis, é o que nãoposso compreender e me faz concluir que o estadodos irracionais ainda é preferível a um raciocíniocorrupto e depravado; mas, de fato, o vossoraciocínio é um verdadeiro raciocínio? Não seráantes um talento com que a natureza vos dotoupara aperfeiçoar todos os vícios? Mas —acrescentou — nada me tem dito com respeito aoassunto a que chamam guerra. Há um ponto queinteressa a minha curiosidade. Parece que dissehavia nesse bando de Yahus que o acompanhavano seu navio, miseráveis que os processos haviamarruinado e despojado de tudo; e qual era a lei queos pusera naquele triste estado? Além disso, quelei é essa? A sua índole e o seu raciocínio nãobastam e não prescrevem claramente o que deveme o que não devem fazer?
Respondi a sua honra que eu não estavaabsolutamente versado na ciência da lei; que opouco conhecimento que possuía dejurisprudência aprendera no convívio de algunsadvogados que outrora consultara sobre os meusnegócios; que, no entanto, ia dizerlhe o quesoubesse a tal respeito. Faleilhe, pois:
— O número daqueles que, entre nós, se dão àjurisprudência e fazem profissão de interpretar alei, é infinito e ultrapassa o das lagartas. Têm entresi todas as espécies de escalas, de distinções e denomes. Como a sua enorme quantidade torna oofício pouco lucrativo, para fazer de maneira que,ao menos, lhes dê para viver, recorrem à indústriae à chicana. Aprenderam, logo nos primeiros anos,a arte maravilhosa de provar, com um discursoretorcido, que o preto é branco e o branco é preto.
— São estes que arruinam e despojam os outros,com a sua habilidade? — atalhou sua honra.
— São, decerto — repliquei eu — e vou citarlhe umexemplo, a fim de que melhor possa ajuizar do quedigo. Imagine que o meu vizinho tem vontade depossuir a minha vaca; vai logo ter com umprocurador, isto é, um douto intérprete de práticada lei, e prometelhe uma recompensa se puderfazer ver que a minha vaca não é minha. Souobrigado a dirigirme também a umYahu damesma profissão para defender o meu direito, vistoque a lei me não permite que me defenda a mimpróprio. Ora, eu, que tenho certamente por umlado a justiça e o direito, nem por isso deixo deencontrar dois grandes obstáculos; o primeiro éque oYahu, ao qual recorri para defender a minhacausa, está, por ofício e espírito profissional,habituado desde a mocidade a advogar a falsidade,de maneira que se vê fora do seu elemento quandolhe digo a verdade nua e não sabe comodesvencilharse; o segundo obstáculo é que omesmo procurador, não obstante a simplicidade dopleito de que o encarreguei, é obrigado aembrulhálo, para se conformar com o uso dos
seus colegas e prolongálo o mais que puder, docontrário acusáloiam de estragar o ofício e darmau exemplo. Estando as coisas neste pé, só merestam dois meios para me desembaraçar daquestão: o primeiro é ir ter com o procurador daparte contrária e tentar subornálo, dandolhe odobro do que esperava receber do seu constituinte;e decerto vossa honra compreende que me não édifícil fazêlo pender para uma proposta tãovantajosa; o segundo meio, que vai talvezsurpreendêlo, mas é menos infalível, érecomendar a este Yahu, que me serve deprocurador, pleiteie a minha causa um poucoconfusamente e faça entrever aos juízes que aminha vaca podia não ser minha, mas do meuvizinho. Então os juízes, pouco habituados àscoisas claras e simples, darão mais atenção aossubtis argumentos do meu advogado, acharãogosto em ouvilo e a contrabalançar o pró e ocontra e, nesse caso, estarão melhor dispostos ajulgar em meu favor do que se ele se limitasse aprovar o direito, que me assistisse, em quatropalavras. Uma das máximas dos juízes é que tudoquanto foi julgado, foi bem julgado. Assim, têm omáximo cuidado em conservar num cartório todasas decisões anteriormente tomadas, mesmo asditadas pela ignorância, e que são o maismanifestamente possível opostas à equidade e àjusta razão. Estas anteriores decisões formam oque se chama jurisprudência; são alegadas comoautoridades e não há coisa alguma que não seprove e não se justifique, citandoas. Data de hápouco, contudo, o abandono do abuso que haviaem dar tanta força à autoridade das causasjulgadas; citamse sentenças pró e contra, tratasede ver que as espécies nunca podem ser
completamente semelhantes e ouvi dizer a um juizque as sentenças são para aqueles que asalcançam. De resto, a atenção dos juízes voltasesempre mais para as circunstâncias do que para acausa principal. Por exemplo: no caso da minhavaca, quererão saber se é vermelha ou negra, setem grandes cornos; em que campina costumapastar; que quantidade de leite fornece por dia, eassim sucessivamente; isto feito, põemse aconsultar as antigas decisões. De tempos a tempostratase da questão; por muito feliz se deve dar oconstituinte se for julgada ao fim de dez anos! Épreciso observar ainda que os homens de lei têmuma linguagem especial, um calão que lhes épróprio; um modo de se exprimir que os outros nãoentendem; é nesta magnífica linguagem que sãoescritas as leis, leis multiplicadas ao infinito eacompanhadas de inúmeras exceções. Vossa honravê perfeitamente que, neste labirinto, o justodireito se perde facilmente; que a melhor questão édifícil de ganharse; e que, se algum estrangeiro,nascido a trezentas léguas do meu país, tivesse alembrança de vir disputarme uma herança queestá na posse de minha família há trezentos anos,lhe seriam precisos talvez trinta anos para concluire esgotar por completo este difícil pleito.
— É pena — atalhou meu amo — que uma gentecom tanto gênio e talento não encaminhe o espíritopara outro lado, fazendo dele bom uso. Não seriamelhor — acrescentou — que se ocupassem emdar aos outros lições de prudência e de virtude, eparticipassem com o público das suas luzes?Porque, indubitavelmente, essa hábil gente possuiconhecimento de todas as ciências.
— Qual história! — repliquei — Sabem apenas doseu mister e nada mais; são os maiores ignorantesdo mundo sobre qualquer outra matéria; sãoinimigos da boa literatura, de todas as ciências, e,nas relações vulgares da vida, parecem estúpidos,mazombos, enfadonhos, malcriados. Falo nageneralidade, porque se encontram algunsespirituosos, agradáveis e galantes.
CAPÍTULO VI
Do luxo, da intemperança e das doenças que reinam na Europa — Condiçãoda nobreza.
Meu amo não podia compreender como toda essaraça de patrícios era tão malevolente e tão terrível.
— Que motivo — perguntava ele — os leva a causardetrimento tão considerável àqueles que carecemde auxílio? E que quer dizer comessa recompensa que se promete a um procurador,a quem se entrega uma causa?
Respondilhe que era dinheiro. Tive algum trabalhoem fazerlhe compreender o que significava essapalavra; expliqueilhe as nossas diferentes espéciesde moedas, e os metais de que eram constituídas;fizlhe conhecer a sua utilidade, dizendolhe quequem possuísse muitas era feliz; que entãoenvergava boas roupas; possuía boas casas, boaspropriedades; que comia pratos finos; e que tinhaboas fêmeas à disposição; que, por essa razão,nunca acreditávamos ter muito dinheiro e que,quanto mais tínhamos, mais queríamos ter; que orico ocioso abusava do trabalho do pobre, que,
para achar com que mantivesse a sua miserávelexistência, suava de manhã à noite, sem ter ummomento de descanso.
— Pois quê! — atalhou sua honra — Toda a terranão pertence a todos os animais e não têm elesdireito igual aos frutos que ela produz para seualimento? Por que há Yahus privilegiados, quecolhem esses frutos com exclusão dos seussemelhantes? E, se alguns pretendem um direitomais especial, não devem ser principalmenteaqueles que, pelo seu trabalho, contribuíram paratornar a terra útil?
— Nada disso! — lhe respondi — Aqueles que fazemviver todos os outros pela cultura da terra sãoexatamente os que morrem de fome.
— Mas — prosseguiu ele —, que entende pelaexpressão de pratos finos, quando me disse quecom dinheiro se comiam pratos finos no seu país?
Pusme então a explicarlhe as iguarias maisesquisitas que vulgarmente aparecem na mesa dosricos e os diferentes modos por que se preparam ascarnes; disselhe sobre isto tudo quanto me acudiuao espírito e informeio de que, para bem temperaras carnes, e sobretudo para ter bons licores,armávamos navios e empreendíamos longas eperigosas viagens pelo mar; de maneira que, antesde poder dar uma esplêndida refeição a algumasfêmeas de distinção, era preciso mandar muitosnavios às quatro partes do mundo.
— O seu país — retorquiu ele — é muito miserável,pois não fornece alimento para os seus habitantes!Nem sequer há água e são obrigados a atravessar
mares para encontrar de beber!
Repliqueilhe que a Inglaterra, minha pátria,produzia tanto alimento que era impossível aoshabitantes consumilo e que, com respeito àbebida, fabricávamos um excelente licor com sucode certos frutos ou com o extrato de algunscereais; que, numa palavra, nada faltava para asnossas necessidades naturais; mas, para manter onosso luxo e a nossa intemperança, enviávamos apaíses estranhos o que tínhamos a mais no nossoe recebíamos dos outros o que não tínhamos e que,em troca, trazíamos artigos que serviam para nostirar a saúde e nos encher o corpo de vícios; queesse amor pelo luxo, pelos pratos exóticos, e peloprazer, era o princípio de todos os movimentos dosnossos Yahus; que, para atingilo, era precisoenriquecer; que era isso que produzia ratoneiros,ladrões, perjuros, patifes, lisonjeiros,subornadores, falsários, falsas testemunhas,mentirosos, jogadores, impostores, fanfarrões,maus autores, envenenadores, impudentes,pretensiosos, ridículos, espíritos fracos. Foimenecessário definir todos estes termos.
Acrescentei que o trabalho que tínhamos em irbuscar vinho em países estrangeiros, não era porfalta de água ou de outro licor bom para viver, masporque o vinho era uma bebida que nos tornavaalegres; que nos fazia de algum modo sair fora denós mesmos; que afugentava do nosso espíritotodas as idéias tristes; que enchia a nossa cabeçade mil imaginações loucas; que excitava a coragem,bania o receio e nos libertava, por algum tempo, datirania do raciocínio.
— É — continuei eu — fornecendo aos ricos todas
as coisas de que eles têm necessidade, que vive onosso pequeno povo. Por exemplo: quando estouem minha casa, vestido como devo estar, tragosobre o meu corpo o trabalho de cem operários.Um milhão de mãos contribuiu para construir emobilar a minha casa, e ainda são precisos cincoou seis vezes mais para vestir minha mulher.
Tinha chegado ao ponto de descreverlhecertos Yahus, que passam a vida junto dos queestão ameaçados de a perder, isto é, dos nossosmédicos. Dissera a sua honra que a mor parte dosmeus companheiros de viagem tinha morrido dedoença; ele, porém, tinha uma idéia muitoimperfeita do que eu lhe dissera. Sobre o caso,porém, tinha ele opinião bem diferente.
Imaginava que morríamos como todos os outrosanimais e que não tínhamos outra doença além defraqueza e de pesadelo um momento antes demorrer, a menos que fôssemos feridos por qualqueracidente. Fui, pois, obrigado a explicarlhe anatureza e a causa das nossas outras doenças.Disselhe que comíamos sem ter fome; quebebíamos sem ter sede; que passávamos as noitesa tomar bebidas abrasadoras sem comerabsolutamente nada, o que inflamava as nossasentranhas, arruinava o nosso estômago eespalhava em todos os membros uma fraqueza euma languidez mortais; que muitas fêmeas danossa espécie tinham um certo vírus que dividiamcom os seus amantes; que essa doença funesta,assim como muitas outras, nascia algumas vezesconosco e nos era transmitida pelo sangue; enfim,que nunca mais acabaria, se quisesse exporlhetodas as doenças a que estávamos sujeitos: que
havia pelo menos quinhentas a seiscentas emrelação a cada membro, e que cada parte, fosseexterna, fosse interna, tinha uma infinidade, quelhe era própria.
— Para curar todos esses males — acrescentei —tínhamos Yahus que se consagravam unicamenteao estudo do corpo humano, e que pretendiam,com remédios eficazes, extirpar as nossas doenças,lutar contra a própria natureza e prolongar asnossas vidas.
Como se tratava da minha profissão, expliquei comprazer a sua honra o método dos nossos médicos etodos os mistérios da medicina.
— Em primeiro lugar — continuei — é preciso suporque todas as doenças provêm de repleção,concluindo, por isso, os médicos, sensatamente,que a evacuação é necessária, seja por baixo, sejapor cima. Para isso, fazem uma escolha de ervas,de minerais, de gomas, de óleos, de escamas, desais, de excrementos, de cascas de árvores, deserpentes, de sapos, de rãs, de aranhas, de peixes,e de tudo isto nos fabricam um licor de um cheiroe gosto abomináveis, que faz ânsias ao coração,horroriza e revolta todos os sentidos. É este licorque os nossos médicos nos mandam beber paraproduzir a evacuação por cima, que se chamavômito. Entretanto tiram do seu armazém outrasdrogas, que nos fazem tomar quer pelo orifício decima, quer pelo orifício de baixo, conforme a suafantasia; é, então, ou uma medicina que purga asentranhas e causa horríveis cólicas, ou é umclister que lava e relaxa os intestinos. A natureza— dizem eles, muito engenhosamente — deunos oorifício superior e visível para ingerir, e o orifício
inferior e secreto para expulsar; ora, a doençamuda a disposição natural do corpo; é preciso,pois, que o remédio faça o mesmo e combata anatureza, e para isso é necessário trocar o uso dosorifícios, isto é, ingerir pelo de baixo e evacuar pelode cima. Temos ainda outras doenças que nadatêm de reais, senão a sua imaginação. Os que sãoatacados por esta espécie de mal, chamamsedoentes de cisma. Também há para as curarremédios para verdadeiras doenças. Geralmente,as fortes doenças de imaginação atacam as nossasfêmeas; mas nós conhecemos certos específicosnaturais para as curar sem dor.
Certo dia, meu amo dirigiume um cumprimentoque eu não merecia. Como lhe falasse das pessoasde qualidade de Inglaterra, disseme que mejulgava fidalgo, porque era muito mais limpo emais bem feito do que todos os Yahus que viviamno seu país, embora eu lhes fosse muito inferiorem força e agilidade; que isso provinha, decerto, daminha diferente maneira de viver e de que eu nãotinha apenas a faculdade de falar, mas possuíaainda alguns lampejos de raciocínio que poderiamaperfeiçoarse com a continuação das relações quetravasse com ele.
Ao mesmo tempo fezme observar que entreos huyhnhnms se notava que os brancos e osalazões cinzentos não eram tão bem feitos como osbaios castanhos, os cinzentos ruços e os pretos;que aqueles não nasciam com os mesmos talentose as mesmas disposições que estes; que, por isso,ficavam toda a vida no estado de servidão, que lhesconvinha, e que nenhum deles pensava em sairdessa situação para se elevar à de senhor, o que no
país pareceria uma coisa enorme e monstruosa.
— Ê preciso — dizia ele — ficar na situação em quea natureza nos faz desabrochar; é ofendêla, érevoltarse contra ela querer sair da situação emque nos deu o ser. Quanto a si, decerto nasceuconsoante é, porque tem de seu a nobreza, isto é: oseu bom espírito e a sua boa índole.
Agradeci a sua honra humildemente a boa opiniãoque formava a meu respeito, mas assegurei aomesmo tempo que a minha ascendência eramodesta, pois descendia apenas de uma honestafamília, que me havia dado uma regular instrução.Disselhe que a nobreza entre nós nada tinha decomum com a idéia que ele concebera; que osnossos fidalgos eram educados desde a infância naociosidade e no luxo; que, logo que a idade lhespermitia, esgotavamse com fêmeas devassas ecorruptas, contraindo odiosas doenças; que,quando haviam exaurido toda a fortuna e se viamcompletamente arruinados, casavam, e com quem?Com uma fêmea de baixo nascimento, feia, malfeita, doente, mas rica; que semelhante casal nãodeixava de engendrar filhos mal constituídos,amarfanhados, escrofulosos, disformes, o quecontinuava até à terceira geração, salvo se ajudiciosa fêmea não remediasse isso, implorando oauxílio de algum amigo caridoso. Acrescentei que,entre nós, um corpo seco, magro, descarnado,fraco, doente, se tornara um sinal quase infalívelde nobreza: que mesmo uma compleição robusta eum aspecto de saúde iam tão mal a um homem dequalidade, que logo se concluía que era filho dealgum criado de casa, a quem a mãe fizera seusfavores, principalmente se possuir um espírito
elevado, justo e bem feito, e se não for nem rombo,nem afeminado, nem brutal, nem caprichoso, nemdevasso, nem ignorante.
CAPÍTULO VII
Paralelo entre os Yahus e os homens.
O leitor estará talvez escandalizado com os retratosfiéis que tracei, então, da espécie humana, e dasinceridade com que falei ante um soberbo animalque formava já uma tão má opinião acercados Yahus; confesso, porém, ingenuamente, que ocarater dos huyhnhnms e as excelentes qualidadesdesses virtuosos quadrúpedes tinham feito uma talimpressão sobre o meu espírito, que não podiacomparálos a nós outros, humanos, semdesprezar os meus semelhantes. Este desprezofezme vêlos como quase indignos de todaconsideração. Além disso, meu amo tinha ainteligência muito penetrante e notava todos osdias na minha pessoa defeitos enormes, de que menão percebera e que olhava simplesmente comoligeiras imperfeições. As suas judiciosasobservações inspiraramme um espírito crítico emisantropo, e o amor que tinha pela verdade mefez detestar a mentira e tirar todo o disfarce àsminhas narrativas.
Confessarei, contudo, ainda outra ingenuidade,um outro princípio da minha sinceridade. Quandopassei um ano entre oshuyhnhnms, senti por elestanta amizade, respeito, estima e veneração, queresolvi então nunca mais pensar em voltar ao meu
país, mas acabar os meus dias nesta feliz região,aonde o céu me conduziu para me ensinar acultivar a virtude. Por muito feliz me daria, se aminha resolução tivesse sido eficaz! Mas o azar,que sempre me perseguiu, não me permitiu que eugozasse dessa felicidade. Seja como for, agora queestou em Inglaterra, sintome bem contente pornão ter dito tudo e haver ocultadoaoshuyhnhnms três quartos das nossasextravagâncias e vícios; empalidecia até, de vez emquando, tanto quanto me era possível, os defeitosdos meus compatriotas. Embora os revelasse,usava de restrições mentais e tentava dizer o falsosem mentir. Não era eu digno de desculpa nisto?Quem não é um pouco parcial, quando se trata daprópria pátria?
Relatei até aqui a súmula das conversas que tivecom meu amo, durante o tempo em que me honreide estar a seu serviço; mas, para evitar ser prolixo,passei em claro muitos outros assuntos.
Um dia, em que mandou chamarme demadrugada e ordenou que me sentasse a algumadistância dele (honra que ainda me não haviadado), falou assim:
— Passei pelo meu espírito tudo que me tem dito,quer a seu respeito, quer a respeito do seu país.Vejo claramente que o senhor e os seuscompatriotas têm uma centelha de espírito, semque possa adivinhar como esse pequeno dom lhescoube em partilha; mas vejo também que o usoque fazem dele é apenas para aumentar todos osseus defeitos naturais e para adquirir outros, que anatureza lhes não deu. É certo que se parecemcom os Yahus deste país pela configuração exterior
e que só lhes falta, para serem perfeitamenteiguais a eles, força, agilidade e garras maiscompridas. Mas, pelo lado dos costumes, asemelhança é completa. Odeiamse mortalmente eo motivo que encontramos para isso é que vêemreciprocamente a sua fealdade e a sua odiosaconfiguração, sem que nenhum olhe para sipróprio. Como os senhores possuem um átomo deraciocínio e compreendem que a vista recíproca daimpertinente figura dos seus corpos era igualmenteuma coisa insuportável e que os tornaria odiososmutuamente, têm o bom senso de os encobrir porprudência e amorpróprio; mas, apesar destaprecaução, não se odeiam menos, porque outrosassuntos de divergência, que reinam entre osnossos Yahus, também reinam entre os senhores.Se, por exemplo, atiramos carne acinco Yahus, que bastaria para saciar cinqüenta,esses cinco animais, gulosos e vorazes, em vez decomerem em paz o que se lhes dá em abundância,lançamse uns contra os outros, mordemse,dilaceramse e todos querem tudo para si, demaneira que temos de os servir à parte e mesmoprender os que já estão saciados, com receio deque se lancem sobre os outros, que ainda não oestão. Se alguma vaca da vizinhança morre develhice ou de acidente, os nossos Yahus mal sabemda agradável notícia, entram todos em campo,rebanho contra rebanho, curral contra curral, aver qual se apossará da vaca. Batemse,arranhamse, dilaceramse, até que a vitória pendapara um lado e, se não há morticínio, é porque nãotêm o raciocínio dos Yahus da Europa parainventar máquinas de carnificina e outras espéciesde armas assassinas. Temos, em alguns pontos daregião, certas pedras brilhantes de diversas cores,
que os nossos Yahus muito apreciam. Quando asencontram, fazem o possível para as desenterrar deonde estão ordinariamente metidas; trazemnaspara as suas habitações e fazem delas um montão,que ocultam cuidadosamente e que vigiam semdescanso como um tesouro, tomando cuidado emque os companheiros não o descubram. Nãopudemos ainda compreender de onde lhes provémtão forte tendência para estas pedras brilhantes epara que lhes podem ser úteis; mas suponho agoraque essa avareza dos seus Yahus, a que aludiu, seencontra também nos nossos, e que é isso que ostorna apaixonados pelas pedras brilhantes.
Quis uma vez tirar a um dos nossos Yahus o seuquerido tesouro; o animal, vendo que lhe tinhamarrebatado o objeto da sua paixão, desatou a gritarcom todas as forças dos seus pulmões;enfureceuse e depois caiu em grande fraqueza;tornouse lânguido, não comeu, não dormiu, nãotrabalhou até que eu desse ordem a um dos meuscriados para lhe restituir o tesouro, colocandoo nosítio de onde o havia tirado. Então o Yahu começoua voltar ao seu habitual bom humor e nunca maisdeixou de esconder os seus tesouros em outroponto mais seguro. Quando um Yahu descobre,num campo, uma dessas pedras, muitas vezesaparece um outro que lha disputa; enquanto seagridem, vem um terceiro e arrebata a pedra;assim finda a questão. Segundo o que me disse, assuas questões não acabam tão depressa no seupaís, nem com tão pouca despesa. Aqui, os doispleiteantes (se esse nome se lhes pode aplicar)ficam quites por nem um nem outro ficar com oobjeto disputado; em contrário do que acontece noseu país, onde, pleiteandose, se perde o que se
quer ter e o que não se tem. Muitas vezes osnossos Yahus são atacados por uma fantasia, cujacausa não podemos perceber. Gordos, bemalimentados, dormindo em boas camas, tratadoscom meiguice pelos donos, cheios de saúde e deforça, caem de repente num abatimento, numdesgosto, numa negra melancolia, que os tornamoles e estúpidos. Neste estado, fogem dos seuscompanheiros, não comem, não saem; parecemsonhar com o canto das suas habitações eabismarse nos seus lúgubres pensamentos. Paraos curar dessa doença, encontrámos apenas umremédio: é despertálos por um tratamento umpouco rude e empregálos em trabalhos difíceis. Aocupação que lhes damos põe em movimento todoo seu espírito e faz readquirir a sua naturalvivacidade.
Quando meu amo me narrou este fato compormenores, não pude deixar de pensar no meupaís, em que muitas vezes acontece a mesma coisae em que se vêem homens cumulados de bens ehonras, cheios de saúde e de robustez, cercados deprazeres e livres de todas as inquietações, cair derepente em tristeza e languidez, tornarse pesadosa si próprios, consumirse em quiméricas reflexões,apoquentarse, acabrunharse e não fazer usoalgum da sua razão, entregues aos flatoshipocondríacos. Estou persuadido de que oremédio que convém a estas doenças é aquele quese dá aos Yahus, e que uma vida laboriosa e árduaé um excelente regime para a tristeza e amelancolia. É um remédio que eu próprioexperimentei e aconselho ao leitor amigo paraprevenir o mal, incitoo a nunca ser ocioso; e,posto que não tenha situação alguma definida,
peçolhe que observe que há diferença entre nadafazer e nada ter que fazer.
— Os nossos Yahus — prosseguiu meu amo — têmuma violenta paixão por certa raiz que dá muitosumo. Buscamna com entusiasmo e sugamnacom extremo prazer e sem se cansar. Então se osvê ora a acariciarse, ora a esgatanharse, ora agritar e fazer caretas, ora a pairar, dançar,deitarse no chão, rolar e adormecer na lama. Asfêmeas dos Yahus parecem recear e fogem àaproximação dos machos; não consentem que asacariciem abertamente à vista de outrem; a menorliberdade em público fereas, revoltaas epõemnas zangadas; quando, porém, uma dessascastas fêmeas vê passar num ponto desviadoalgum Yahunovo e perfeito, ocultase por detrás deuma árvore ou num silvado, mas de maneira queo Yahu possa vêla ao passar e abordála. Logo elafoge, mas olhando muitas vezes para trás, econduz tão bem o seu manejo que oapaixonado Yahu, que a persegue, atingea por fimnum local favorável ao mistério e aos seus desejos.Aí, doravante ela aguardará o seu novo amante,que não deixará de comparecer à entrevista, salvose alguma aventura idêntica se apresenta no seucaminho e lhe faz esquecer a primeira. Mas afêmea é a própria que falha algumas vezes; amudança agrada aos dois sexos e a diversidade étanto do gosto de um como do outro. O prazer deuma fêmea consiste em ver os machos cair,morderse, arranharse, dilacerarse por suacausa; excitaos ao combate e tornase o prêmio dovencedor, ao qual se entrega para o agatanhar emseguida ou para se deixar agatanhar por elepróprio, e é assim que findam todos os amores.
Amam loucamente os filhos; os machos, que sejulgam os pais, queremnos, ainda que lhes sejaimpossível assegurarse de que tenham concorridoem parte para o seu nascimento.
Esperava que sua honra me fosse dizer maisalguma coisa com respeito aos costumesdos Yahus e que nada lhe escaparia dos seusvícios. Corava de antemão pela honra da minhaespécie e temi que me fosse descrever todos osgêneros de impudência que reinam entreos Yahus do seu país; teria sido terrível a imagemdas nossas devassidões em moda, em que anatureza não basta para os nossos desenfreadosdesejos, em que esta natureza se procura sem seencontrar, e em que inventamos prazeresdesconhecidos aos outros animais, vício odiosopara o qual só os Yahus têm tendência, e que oraciocínio não pôde banir do nosso hemisfério.
CAPÍTULO VIII
Filosofia e costumes dos huyhnhnms.
Algumas vezes solicitei do meu amo que medeixasse ver os rebanhos dos Yahus da vizinhança,a fim de examinarlhes pessoalmente as maneirase propensões. Consciente da aversão que lhestinha, não receou que a vista e o contato com elesme corrompessem; quis, porém, que umcorpulento alazão tostado, um dos seus criadosfiéis e muito manso, me acompanhasse, receosoque me acontecesse algum acidente.
Os Yahus olharamme como um semelhante seu,principalmente depois de me haverem visto asmangas arregaçadas, com o peito e braços nus.Quiseram, então, aproximarse de mim, ecomeçaram a arremedarme, pondose em pé naspatas traseiras, levantando a cabeça e colocandouma das patas na ilharga. A vista da minhaconfiguração faziaos soltar gargalhadas. Noentanto, testemunharamme menos aversão e ódio,como fazem sempre os macacos selvagens à vistade um macaco aprisionado, que usa um chapéu,enverga uma roupa e anda de meias.
Com eles apenas me aconteceu uma aventura.Certo dia em que fazia muito calor e em que eu mebanhava, uma jovemYahu acercouse de mim edesatou a apertarme com quanta força tinha.Soltei grandes gritos e supus que as suas garrasme dilacerariam; mas apesar da fúria que aanimava e da raiva que lhe brilhava nos olhos, nãome fez a menor arranhadura. O alazão acudiu,ameaçoua e ela fugiu logo. Esta ridícula história,referida depois em casa, foi motivo de grandegalhofa para meu amo e toda a família, enquantopara mim foi causa de vergonha e enleio. Não seise devo observar que esta Yahu tinha cabelospretos e a pele mais cinzenta do que todas as quetinha visto.
Como me demorei três anos naquela região,decerto o leitor espera de mim, a exemplo de todosos outros viajantes, que faça uma narrativa amplados habitantes desse país, quero dizer,dos huyhnhnms, e que exponhapormenorizadamente os seus usos, costumes,máximas e modos. É isso também o que vou fazer,
mas em poucas palavras.
Como os huyhnhnms, que são os senhores e osanimais dominantes nesta região, nasceram comgrande propensão para a virtude e nem sequerfazem a idéia do mal com relação a uma criaturaracional, a principal máxima é cultivar eaperfeiçoar o seu raciocínio e tomálo por guia emtodos os seus atos. Entre eles, a razão não produzproblemas como entre nós e não forma argumentosigualmente verossímeis pró e contra. Ignoram oque seja suscitar dúvidas, defender sentimentosabsurdos e máximas perniciosas ou indignas afavor da probabilidade. Tudo o que eles dizem,convence, porque não afirmam coisa algumaobscura, duvidosa, desfigurada ou disfarçada pelasreflexões e pelo interesse. Recordome de que tivemuito trabalho em fazer compreender a meu amo oque entendia pela palavra opinião, e como erapossível que nós discutíssemos algumas vezes eque raramente fôssemos do mesmo parecer.
— Não é imutável a razão? — perguntava ele — Averdade não é uma só? Devemos garantir comocerto o que é duvidoso? Devemos negarpositivamente o que não vemos claramente quepode ser? Por que se debatem questões que aevidência não pode decidir, sobre as quais, fossequal fosse o partido que tomassem, sempreencontrariam a dúvida e a incerteza? Para queservem todas essas conjecturas filosóficas, todosesses vãos raciocínios acerca de matériasincompreensíveis, todas essas indagações estéreise essas eternas discussões? Quem tem boa vistanão anda aos encontrões: com uma razão pura epenetrante não se deve contestar e, se assim o
fazem, é porque é preciso que a sua razão estejacoberta de trevas ou que odeiem a verdade.
Era uma coisa admirável a sã filosofia deste cavalo;Sócrates nunca raciocinou com tanta sensatez. Seseguíssemos estas máximas, haveria certamentena Europa menos erros de que os que existem.Mas, então, em que se tornariam as nossasbibliotecas? Que seria feito da reputação dosnossos sábios e do negócio dos nossos livreiros? Arepública das letras seria apenas a da razão e nasuniversidades só haveria aulas de bom senso.
Os huyhnhnms amamse reciprocamente,auxiliamse, amparamse e consolamsemutuamente: não se invejam, não são ciosos dafelicidade dos vizinhos; não atentam contra aliberdade e a vida dos seus semelhantes:julgarseiam infelizes, se algum dia o fizessem;dizem, a exemplo de um antigo: Nihil caballorum ame alienum puto (2). Não maldizem uns dos outros;a sátira não encontra neles nem princípio nemmeio; os superiores não oprimem os inferiores como peso do seu grau e da sua autoridade; o seumodo de proceder, justo, prudente e moderadonunca produz murmurações; a dependência é umlaço e não um jugo, e o poder, sempre submetidoàs leis da equidade, é respeitado sem ser temido.
Os seus casamentos são melhor regulados do queos nossos. Os machos escolhem para esposasfêmeas da sua cor. Um ruçomalhado casa semprecom uma ruçamalhada, e assimconsecutivamente. Por esta razão nunca se vêmudança, revolta ou míngua nas famílias. Osfilhos são o vivo retrato dos pais; as armas e otítulo de nobreza consistem na conformação,
estatura, cor e qualidades, que se perpetuam nadescendência, de maneira que não se vê um cavalomagnífico e soberbo gerar um sendeiro, nem deuma sendeira nascer um bonito cavalo, comomuitas vezes acontece na Europa.
Entre esses animais não há desavenças caseiras. Aesposa é fiel ao marido, e o marido pagalhe namesma moeda.
Um e outro, embora envelheçam, não esfriam assuas relações, quando mais não seja as docoração; apesar de permitidos, o divórcio e aseparação nunca foram postos em prática; osesposos são sempre amantes e as esposas semprequeridas; eles não são imperiosos, elas não sãorebeldes e nunca pensam em recusar aquilo a queos maridos têm direito e que quase sempre seencontram em estado de exigir.
A castidade mútua é o fruto da razão e nunca doreceio, atenção ou preconceito. São castos e fiéis,porque, para conservar tanto a suavidade como aboa ordem da vida, assim ê preciso e oprometeram. É o único motivo que lhes fazconsiderar a castidade como uma virtude. Alémdisso, têm na conta de um vício condenado pelanatureza a negligência de uma propagação legítimada sua espécie e aborrecem tudo quanto podecausar obstáculo ou demora no cumprimentodesse dever.
Educam os filhos com extraordinário cuidado.Enquanto a mãe vela pelo corpo e pela saúde, o paiatende ao espírito e à razão. Reprimemlhes tantoquanto possível os ímpetos e os ardores fogosos dajuventude e casamnos cedo, em conformidade
com os conselhos da razão e os desejos danatureza. Enquanto esses casamentos não serealizam, não consentem aos moços mais do queuma concubina, que mora na mesma casa e fazparte do número de criados, mas é sempredespedida nas vésperas do casamento.
As fêmeas recebem pouco mais ou menos a mesmaeducação dos machos, e lembrome de que meuamo achava desarrazoado e ridículo o nossocostume sobre esse ponto. Dizia que metade danossa espécie só tinha talento para se multiplicar.
O mérito dos machos consiste principalmente naforça e na ligeireza, e o das fêmeas na meiguice ena docilidade. Se uma fêmea possui as qualidadesdo macho, procuramlhe um marido que tenha asqualidades da fêmea; nesse caso tudo écompensado e acontece, como às vezes entre nós,que o marido é a mulher e a mulher, o marido.Assim, os filhos gerados por estes casais nãodegeneram e perpetuam felizmente as qualidadesdos autores dos seus dias.
CAPÍTULO IX
Parlamento dos huyhnhnms — Questão importante ventilada nestaassembléia de toda a nação — Pormenores acerca de alguns usos do país.
Durante a minha permanência no paísdos huyhnhnms, quase três meses antes da minhapartida, houve uma assembléia geral da nação,uma espécie de parlamento, em que meu amo seapresentou como deputado do seu cantão.Trataram de um assunto que já tinha sido posto
cem vezes em discussão e que era o único assuntoque nunca fora partilhado pelos espíritosdoshuyhnhnms. Meu amo, no regresso, referiumetudo o que se passara a esse respeito.
Tratavase de resolver se era absolutamentenecessário acabar com a raça dos Yahus. Um dosmembros sustentava e apoiava a sua opinião comdiversas provas muito fortes e muito sólidas.Pretendia que o Yahu era o animal mais disforme emais perigoso que a natureza até então tinhaproduzido; que era igualmente malicioso einsubmisso e que só pensava em prejudicar osoutros animais. Recordou uma antiga tradiçãoespalhada pelo país, segundo a qual se asseguravaque os Yahus não tinham existido sempre, mas,num certo século, haviam aparecido dois no alto deuma montanha. Ou porque fossem formados deum limo gordo ou glutinoso, aquecido pelos raiosdo sol, ou porque tivesse saído da vasa de qualquerpântano, ou porque a espuma do mar os fizessedesabrochar, o caso é que essesdois Yahus geraram muitos outros e a sua espéciese tinha multiplicado de tal maneira, que o paísestava cheio deles; que, para prevenir osinconvenientes de semelhante procriação,os huyhnhnms tinham outrora ordenado umacaçada geral aos Yahus; que fora apanhada grandeporção deles e que, depois de haverem destruídotodos os velhos, haviam conservado os mais novospara os aprisionar o mais que lhes fosse possívelcom respeito a um animal tão mau e que oshaviam destinado a serem domesticados.Acrescentou que o que havia de mais certo nestalenda é que os Yahus não eramYlnhniam sky (istoé, aborígines). Demonstrou que os habitantes da
região tinham tido a imprudente fantasia de seservir dosYahus em detrimento do uso dos burros,que eram excelentes animais, meigos, pacíficos,dóceis, submissos, que com qualquer coisa sealimentavam, infatigáveis, e que tinham o únicodefeito de possuir uma voz desagradável, emboramuito menos do que a maior parte dos Yahus.
Logo que os outros deputados tinham discursadodiversamente, porém com muita eloqüência, arespeito do mesmo assunto, meu amo levantousee apresentou uma judiciosa proposta, cuja idéia eulhe inspirara. A princípio confirmou a tradiçãopopular pelo seu sufrágio e apoiou o quesabiamente tinha dito sobre esse ponto de históriao honrado membro que usara da palavra antesdele. Mas acrescentou que esses doisprimeiros Yahus, de que se tratava, tinham vindode qualquer país de alémmar, e haviamdesembarcado e sido abandonados pelos seuscompanheiros; que primeiramente se tinhamretirado para as montanhas e para as florestas;que, na continuação, a sua índole se alterara; quese haviam tornado selvagens e ferozes ecompletamente diferentes dos da boa espécie, quehabita em países afastados. Para estabelecer eapoiar solidamente esta proposta, disse que tinhaem sua casa, desde algum tempo, um Yahu muitoextraordinário, de quem certamente os membrosda assembléia tinham ouvido falar e que atémuitos o haviam visto. Contou, então, como meencontrara a princípio e como o meu corpo eracoberto de uma composição artificial de pêlos e depeles de animais; disse que possuía umalinguagem que me era própria e que, no entanto,aprendera perfeitamente a sua; que eu lhe referira
o acidente que me trouxera a esta costa; que mevira despido e nu, e observara que eu era umverdadeiro e perfeito Yahu se não fora a pelebranca ter pouco pêlo e garras curtas em demasia.
— Este Yahu estrangeiro — acrescentou — quismepersuadir de que, no seu país e em muitos outrosque percorreu, osYahus são os únicos animaissenhores, dominantes e racionais, e queos huyhnhnms vivem na escravidão e na miséria.Tem certamente todas as qualidades exteriores dosnossos Yahus, mas é preciso confessar que é maisbem educado e tem alguma tintura de razão. Nãoraciocina como um huyhnhnm, mas ao menospossui conhecimentos e luzes muito superiores àsdos nossosYahus. Mas aqui está, senhores, o quevai surpreendêlos e para o que peço a máximaatenção; acreditáloão? Asseguroume que, no seupaís, os huyhnhnms eram feitos eunucos desde amais tenra idade; que isto os fazia mais meigos edóceis, e que essa operação era feita muito bem esem perigo algum. Será a primeira vez, senhores,que os animais nos terão dado alguma lição e queteremos seguido o seu exemplo? A formiga não nosensinou a sermos industriosos e previdentes? Enão foi a andorinha que nos deu as primeiras luzesde arquitetura? Concluo, pois, que pode muito bemser introduzido no nosso país, com respeito aosjovens Yahus, o uso da castração. A vantagem quedaí resultará é que os Yahus, assim mutilados,serão mais meigos, mais submissos, mais tratáveise, por esse meio, destruiremos a pouco e poucoessa maldita raça. Sou mesmo de opinião que seexortem todos os huyhnhnms a educar com grandecuidado os burricos que são, na verdade,preferíveis aos Yahus a todos os respeitos,
principalmente os que são capazes de trabalharcom a idade de cinco anos, enquanto os Yahus denada são capazes, até aos doze.
Foi isto o que meu amo referiu acerca dasdeliberações do parlamento. Não me disse, porém,uma outra particularidade que me interessavapessoalmente e de que cedo principiei a conheceros funestos efeitos; é esta a principal época daminha vida infortunada! Mas, antes de explicareste assunto, preciso ainda dizer alguma coisa docarácter e usos dos huyhnhnms.
Os huyhnhnms não têm livros; não sabem ler nemescrever e, por conseguinte, toda a sua ciênciaconsiste na tradição. Como este povo é pacífico,unido, prudente, virtuoso, muito razoável e nãotem comércio algum com os povos estrangeiros,são raríssimos os grandes acontecimentos no seupaís, e todos os traços da sua história, quemerecem ser conhecidos, podem muito bem serconservados na memória que não a sobrecarregam.
Não têm doenças nem médicos. Confesso que nãoposso resolver se o defeito dos médicos provém dodefeito das doenças, ou se o defeito das doençasprovém dos defeitos dos médicos; isto, porém, nãoquer dizer que, de vez em quando, não tenhamalgumas indisposições; mas sabem curálas comfacilidade pelo perfeito conhecimento que têm dasplantas e das ervas medicinais, visto comoestudam incessantemente a botânica nos seuspasseios e muitas vezes mesmo durante asrefeições.
A sua poesia é muitíssimo bela e principalmentemuito harmoniosa. Não consiste numa pieguice
familiar e baixa, nem numa linguagem afetada,nem num precioso calão, nem em pontosepigramáticos, nem em subtilezas obscuras, nemem antíteses pueris, nem nas agudezas dosespanhóis, nem nos concetti dos italianos, nem nasfiguras exageradas dos orientais. A agradabilidadee a justeza das comparações, a riqueza e aexatidão das descrições, a ligação e a vivacidadedas imagens formam a essência e o carácter dasua poesia. Meu amo recitavame algumas vezestrechos admiráveis dos melhores poemas. Era umencanto! Persuadiame de que estava ouvindoHomero, Virgílio ou Milton!
Quando um huyhnhnm morre isto não aflige nemalegra ninguém. Os parentes mais chegados e osmelhores amigos olham para o seu falecimentocom olhos enxutos e indiferentes. O própriomoribundo não demonstra o menor pesar pordeixar o mundo; parece terminar uma visita edespedirse de uma sociedade com quem seentreteve muito tempo. Recordome de que meuamo, tendo convidado certo dia um dos seusamigos e respectiva família para tratar com eledeterminado assunto importante, combinaram departe a parte o dia e a hora. Ficámos muitosurpreendidos de não os ver chegar à horamarcada. Por fim, apareceu a mulher,acompanhada de dois filhos, mas um pouco maistarde, e disse ao entrar que a desculpassem,porque o marido morrera essa manhã de umdesastre inesperado. No entanto, não se serviu dapalavra morrer, pois semelhante termo éconsiderado como expressão descortês, masda snuuwnh, que literalmente significava ir ter coma avó! Durante todo o tempo que se demorou na
casa, esteve muito alegre, e daí a três mesesmorreu também alegremente, após uma agradávelagonia.
A mor parte dos huyhnhnms vive entre setenta esetenta e cinco anos, e poucos atingem os oitenta.Algumas semanas antes de morrer pressentemvulgarmente o seu fim e não ficam aterrados. Porentão recebem as visitas e os cumprimentos dosamigos, que vêm desejarlhes uma feliz viagem.Dez dias antes do passamento, o futuro morto, quequase nunca se engana nos seus cálculos, vaipagar as visitas que recebe, conduzido numa liteirapelos seus Yahus; é nessa ocasião que se despede,usando as tradicionais formalidades, de todos osamigos e lhes diz o derradeiro adeus de cerimônia,como se deixasse uma região para passar o restoda sua vida em outra.
Não quero esquecer de registrar aqui queos Tiuyhnhnms não possuem na sua língua termopara exprimir o que é mau, e servemse demetáforas tiradas das disformidades e das másqualidades dos Yahus; dessa forma, quandoquerem exprimir a falta de jeito de um criado, aculpa de algum dos filhos, uma topada, um tempochuvoso e outras coisas semelhantes, dizem onome da coisa a que se querem referir,acrescentandolhe apenas o epíteto de Yahu.
Por exemplo: para manifestar estas coisas,dirão : Hhhmyahu; whnaholmyahu;inbhmnawhhmayahu; e para significar uma casamal construída dirão: unholmhumrohlnwyahu.
Se algum dos meus queridos leitores quiser termais alguns conhecimentos com respeito aos usos
e costumes doshuyhnhnms, é favor ter a bondadede esperar que um grosso in quarto, que preparosobre este assunto, esteja concluído. Dentro embreve, publicarei o prospecto anunciador e tenho acerteza de que os assinantes não ficarão logradosnas suas esperanças e nos seus direitos.Entretanto, peço ao público a fineza de secontentar com este resumo e que me dê licençapara acabar de contar o resto das minhasaventuras.
CAPÍTULO X
Felicidade do autor no país dos huyhnhnms — Os agradáveis prazeres quesaboreia com as conversas entabuladas com eles — Modo de vida que leva
naquela região — É banido desse país por ordem do parlamento.
Fui sempre amigo da ordem e da economia, e, emqualquer situação em que me encontrasse, arranjeisempre de modo a regularizar e a industriar aminha maneira de viver. Meu amo, porém, marcaraterreno para minha moradia quase a seis passosda casa, e essa moradia, que era uma cabanaconforme o uso do país e muito parecida com ados Yahus, não era agradável nem cômoda. Fuibuscar barro com que fiz quatro paredes e umsobrado e, com um junco, fabriquei uma esteiracom a qual cobri a moradia. Apanhei cânhamo,que crescia à vontade pelo campo. Limpeio, fieio edo fio manufaturei uma espécie de pano, que enchide penas de aves, para arranjar uma cama macia,onde dormisse à vontade. Com a minha faca e oauxílio do alazão fiz uma cadeira e uma mesa.Quando minha roupa ficou completamente
esfarrapada, engendrei outra de peles de coelho aque juntei as de certos animaischamados nnuhnoh, que são muito bonitos e quasedo mesmo tamanho, e cuja pele é coberta de umfiníssimo pêlo. Com esta pele arranjei tambémexcelentes meias. Talhei para solas dos sapatospedaços de madeira muito adelgaçados e substituío cabedal por pele de Yahu. Quanto à comida, alémda que acima aludi, apanhava algumas vezes meldos troncos das árvores e comiao com o meu pãode aveia. Ninguém experimentou tanto como euque a natureza com pouco se contenta e que anecessidade é mãe do engenho.
Gozei de uma saúde perfeita e de um sossego deespírito inalterável. Não me via exposto nem àinconstância e traição dos amigos, nem àsinvisíveis ciladas ocultas dos inimigos. Não tinhatentações para vir vergonhosamente fazer corte aum fidalgo ou à amante, para me conceder honrada sua proteção e da sua benevolência. Não eraobrigado a precaverme contra a fraude e aopressão; não tinha aí espião ou denunciantepago, nem lordmayor crédulo, político estouvadoou malfazejo. Aí não receava ter a minha honramenoscabada por absurdas acusações, e a minhaliberdade vergonhosamente roubada porconspirações indignas nem ordens de prisãosacadas por alicantinas. Naquele país não haviamédicos para me envenenarem, procuradores parame arruinarem, nem autores para me aborrecerem.Não me via rodeado de trocistas, de gracejadores,de maldizentes, de críticos, de caluniadores, deratoneiros, de espíritos fracos, de hipocondríacos,de tagarelas, de caturras, de facciosos, desedutores, de falsos sábios.
Não havia por lá mercadores fraudulentos,peralvilhos, loquazes, desenxabidos, delicados,namoradores adamados, presumidos, espadas dearrasto, bêbados, invertidos e pedantes.
Os meus ouvidos não tinham sido enxovalhadospor conversas licenciosas e ímpias; os meus olhosnão eram impressionados nem pela presença deum maroto rico e educado nem pela de umhonrado homem abandonado tanto à sua virtudecomo ao seu mau destino.
Tinha a honra de me entender muita vez com ossenhores huylmlinms, que visitavam meu amo, queconsentia que eu, de vez em quando, entrasse nasala para me aproveitar da sua conversa. Aquelasociedade dirigiame às vezes algumas perguntas,às quais eu tinha a honra de responder.Acompanhava também meu amo nas suas visitas,mas permanecia sempre em silêncio, salvo se meinterrogavam. Fazia de personagem auditor cominfinito prazer: tudo o que ouvia era útil eagradável e sempre expresso em poucas palavras,porém com graça; o melhor bemestar eraobservado sem cerimônia; cada um dizia o que lhepodia agradar. Nunca se interrompiam, nunca sedavam a longas e fastidiosas narrativas, nuncahavia discussões, nunca se chicanava.
Tinham por máxima que, numa sociedade, é bomque o silêncio reine de vez em quando, e parecemeque tinham razão. Neste intervalo, e durante estaespécie de tréguas, o espírito fornecese de idéiasnovas e a conversa tornase depois mais animada eviva. As conversas baseavamse sempre sobre asvantagens e agrados da amizade, sobre os deveresda justiça, a bondade, a ordem, as admiráveis
obras da natureza, as antigas tradições, ascondições e limites da virtude, as invariáveis regrasdo raciocínio; algumas vezes sobre as deliberaçõesda próxima reunião do parlamento e muitas outrassobre o mérito dos seus poetas e as qualidades daboa poesia.
Posso dizer, sem vaidade, que eu próprio fornecia,algumas vezes, conversa, isto é, dava ensejo afortes raciocínios; porque meu amo narravalhes,de vez em quando, as minhas aventuras e ahistória do meu país, o que lhes fazia ter reflexõesmuito pouco vantajosas para a raça humana eque, por essa razão, não apontarei. Observareiapenas que meu amo parecia conhecer melhor anatureza dos Yahus que vivem nas outras partesdo mundo que eu próprio conhecia. Descobria afonte de todos os nossos desvairamentos,profundava a matéria dos nossos vícios e dasnossas loucuras, e adivinhava uma infinidade decoisas de que eu nunca falara. Isto não deveparecer incrível, pois conhecia a fundo os Yahus doseu país, de maneira que, supondo neles umpequeno grau de raciocínio, calculava o que seriamcapazes com esse acréscimo, e o seu cálculo erasempre justo.
Confessarei aqui ingenuamente que as poucasluzes e filosofia que hoje possuo, apanheias nassábias lições desse caro amo e nas conversas detodos esses seus judiciosos amigos, conversaspreferíveis às doutas conferências das academiasde Inglaterra, Alemanha e Itália. Tinha por todosesses personagens uma inclinação mesclada derespeito e temor, e sentiame penetrado dereconhecimento pela bondade que tinham para
comigo, não me confundindo com os seus Yahus ede me crerem um pouco menos imperfeito do queos do meu país.
Quando me lembrava de minha família, dos meusamigos, dos meus compatriotas e de toda a raçahumana em geral, representavamseme todoscomo verdadeiros Yahus, pelo rosto e pelo carácter,contudo um pouco mais civilizados, com o dom dapalavra e um pequeno grau de raciocínio. Quandovi o meu rosto na água pura de um límpido regato,desvieime imediatamente, não podendo suportar avista de um animal que me parecia tão disformecomo um Yahu. Os meus olhos, costumados ànobre figura dos huyhnhnms, só neles encontravabeleza animal. À força de os contemplar e de lhesfalar, tomara um pouco das suas conveniências,dos seus gestos, das suas atitudes, dos seuspassos e hoje, que estou na Inglaterra, os meusamigos dizemme, algumas vezes, que troto comoum cavalo. Quando falo ou rio parecelhes querincho. Vejome todos os dias assediado a esterespeito sem sentir o menor desgosto.
Nesta feliz situação, enquanto saboreava asdoçuras de um perfeito repouso, em que mejulgava tranqüilo para todo o resto da minha vida,e que o meu estado era o mais agradável e o maisdigno de inveja, um dia meu amo mandoumechamar mais cedo do que era costume. Quando meencontrei junto dele, reparei em que estava muitosério, com ar inquieto e perturbado, querendo falare não podendo abrir a boca. Depois de algumtempo de silêncio dirigiume estas palavras:
— Não sei como heide principar, meu querido filho,o que tenho a dizerlhe. Ficará ciente de que na
última assembléia do parlamento, na ocasião emque foi posto em discussão o caso dos Yahus, umdeputado representou à assembléia que eraindigno e vergonhoso para mim desse guarida emminha casa a um Yahu, a quem eu tratava como aum huyhnhnm; que me havia visto conversar comele e sentir prazer em ouvilo, como se fosse umsemelhante meu; que era um processo contrário àrazão e à natureza e que nunca se ouviu falar deuma coisa semelhante. Sobre este ponto, aassembléia exortoume a fazer, de duas coisas,uma: ou juntálo aos outros Yahus, que vãomutilar num dia destes, ou a fazêlo partir para opaís de onde veio. A maioria dos membros que oconhece e que o viu em minha casa, rejeitou aescolha e sustentou que era muito injusto econtrário à benevolência colocálo entreos Yahus deste país, em vista de ter um começo deraciocínio e que seria mesmo para lastimar quelhes comunicasse algum que os tornaria pioresainda; que além disso, sendo misturado comos Yahus,, poderia armar uma conspiração,subleválos, conduzir todos a uma floresta ou aocimo de uma montanha, em seguida pôrse à testadeles e vir cair sobre todos oshuyhnhnms para osdestroçar e destruir. Esta opinião foi aprovada porunanimidade de votos e, enfim, fui exortado afazêlo sair o mais breve possível. Apressome adarlhe conta deste resultado e não posso adiálo.Aconselhoo, pois, a que se ponha a nado ou entãoconstrua um pequeno objeto semelhante àqueleque o trouxe a estes lugares e de que me fezdescrição e que volte por mar, conforme veio.Todos os criados desta casa e até os dos meusvizinhos auxiliáloão nessa tarefa. Se fosse só por
mim, conserváloia toda a vida para serviço,porque tem boas inclinações, se se corrigir dealguns defeitos que possui e também de algunsmaus costumes, pois tem feito todo o possível parase conformar, tanto quanto a sua desgraçadanatureza era capaz, com a doshuyhnhnms.
Notarei, de passagem, que os decretos daassembléia geral da nação dos huyhnhnms seexprimem sempre pela palavrahnhnloyn, quesignifica exortação. Não podem conceber que sepossa obrigar e constranger uma criatura racional,como se ela fosse capaz de desobedecer à razão.
Este discurso caiume aos pés como um raio;fiquei logo em grande prostração e desespero: e,não podendo resistir à impressão da dor, desmaieijunto do meu amo, que me julgou morto.
Quando recuperei um pouco os sentidos, disselhecom voz fraca e ar tristonho que, embora nãopudesse insurgirme contra a exortação daassembléia geral, nem contra a solicitude de todosos seus amigos, que o apressavam a afastarme,pareciame, contudo, segundo o meu fracoentender, que poderiam deliberar contra mim umcastigo rigoroso; que me era impossível pôrme anado, pois o mais que poderia nadar seria umalégua e que, no entanto, a terra mais próximaficava talvez afastada cem léguas; que, comrespeito à construção de um barco, nuncaencontraria no país o que seria necessário parasemelhante trabalho; que, contudo, queriaobedecer, apesar da impossibilidade de fazer o quese me aconselhava e me dizia respeito como umacriatura que está para morrer; que a presença damorte não me aterrorizava e que a esperava como o
menor dos males de que estava ameaçado; que,posto que pudesse atravessar os mares e voltar aomeu país por qualquer aventura extraordinária,teria então a desgraça de me encontrar comos Yahus, com os quais seria obrigado a passar oresto da minha existência e cair, em breve, emtodos os seus maus hábitos; que sabia bem que asrazões que haviam levado ossenhores huyhnhnms a essa resolução, eram muitofortes para que lhes pudesse opor as de umdesgraçado Yahu como eu; que, nessaconformidade, aceitava o cativante oferecimentoque me fazia dos seus criados para me auxiliar aconstruir o barco; que lhe pedia apenas que tivessea bondade de me conceder certo prazo de temposuficiente para dedicarme a uma tarefa tão difícil,que era destinada à conservação da minhamiserável existência; que, se algum dia chegasse àInglaterra, trataria de me tornar útil aos meuscompatriotas, traçandolhes o perfil e as virtudesdos ilustres huyhnhnms e apresentandoos paraexemplo a todo o gênero humano.
Sua honra replicoume em poucas palavras, edisse que me concedia dois meses para aconstrução do barco e, ao mesmo tempo, ordenouao alazão meu companheiro (porque me é lícitodarlhe este nome na Inglaterra) que seguisse asminhas instruções, porque dissera a meu amo quesó ele me bastaria e eu sabia que me era muitoafeiçoado.
A primeira coisa que fiz foi ir com ele para o sítioda costa, onde aportara havia tempo. Subi a umouteiro e, estendendo a vista para todos os ladosna solidão dos mares, julguei enxergar para o
nordeste uma ilhota. Com o meu telescópio vianitidamente, e calculei que estivesse afastada cincoléguas. Quanto ao bom alazão, dissera apenas queera uma nuvem. Como nunca vira outra terra alémdaquela em que nascera, não tinha vista capazpara distinguir no mar objetos afastados, como eu,que passara a vida sobre esse elemento. Foi paraesta ilha que primeiramente me resolvi dirigir,quando o meu barco estivesse pronto.
Voltei à casa com o meu companheiro, e, depois determos conversado um pouco, fomos a umafloresta, que estava um tanto longe, onde eu, comuma faca, e ele, com uma pedra cortante,encabadas com muita perfeição, cortámos amadeira necessária para o trabalho. A fim de nãoenfastiar o leitor com os pormenores da minhatarefa, basta dizer que, dentro de seis semanas,fizemos uma espécie de canoa, à maneira dosíndios, mas muito mais larga, que cobri com pelesde Yahu, cosidas com fios de linho. Manufatureiuma vela com peles idênticas, tendo escolhido paraisso as dos Yahus novos, porque as dos velhosteriam sido muito duras e muito espessas;fornecime de quatro remos; fiz provisão de umaporção de carne cozida, de coelhos e aves, comduas vasilhas, uma cheia de água e outra cheia deleite. Fiz a experiência da minha canoa numgrande lago e corrigi todos os defeitos que lhe pudenotar, tapando todas as aberturas com sebode Yahu e tentando pôla em estado de me levarcom a minha pequena carga. Coloqueia, então,sobre uma pequena carroça e fila conduzir àmargem por Yahus, sob as ordens do alazão e deum outro criado.
Quando tudo estava pronto e chegou o dia daminha partida, despedime de meu amo, dasenhora sua esposa e de toda a família, tendo osolhos rasos de lágrimas e o coração trespassado dedor. Sua honra, fosse por amizade, fosse porcuriosidade, quis verme na canoa e dirigiuse paraa costa com muitos amigos da vizinhança. Fuiobrigado a esperar mais de uma hora em virtudeda maré; então, notando que o vento estava defeição para me levar à ilha, fiz as últimasdespedidas a meu amo. Ajoelheime a seus péspara lhos poder beijar e ele deume a honra delevantar o pé dianteiro até a minha boca. Se relatoessa circunstância não é por vaidade; imito todosos viajantes, que não deixam de mencionar todasas honras extraordinárias com que foramrecebidos. Fiz uma profunda reverência a toda asociedade e, entrando na canoa, afasteime dapraia.
CAPÍTULO XI
O autor é atingido por uma flecha que lhe dirige um selvagem — É tomado porportugueses que o conduzem a Lisboa, de onde passa para a Inglaterra.
Comecei esta desgraçada viagem a 15 de Fevereirono ano de 1715, pelas nove horas da manhã. Aindaque o vento fosse favorável, a princípio só me servidos remos; considerando, porém, que depressa mefatigaria e que o vento poderia mudar,arrisqueime a içar a vela e, por esta forma, com oconcurso da maré, singrei quase pelo espaço dehora e meia. Meu amo, com todosos huyhnhnms da sua companhia, permaneceu na
praia até me perder de vista e ouvi várias vezes omeu amigo alazão gritar:Hnuy illa nyhamajah, que, traduzido em vulgar, significa: Tomacautela contigo, gentil Yahu.
O meu desejo era descobrir, se pudesse, algumailhota deserta e desabitada, onde apenasencontrasse com que me alimentar e vestir.Passaria, em tal situação, uma vida mil vezes maisfeliz do que a de um primeiro ministro. Tinha umextremo horror em regressar à Europa e serobrigado a viver na sociedade e sob o impériodos Yahus. Na feliz solidão que procurava,esperava passar docemente o resto dos meus dias,envolvido na minha filosofia, usufruindo os meuspensamentos, não tendo outro fim além dosoberano bemestar, nem outro prazer que nãofosse o testemunho da minha consciência, semestar exposto ao contágio dos enormes vícios, queos huyhnhnms tinham feito entrever na minhadetestável espécie.
O leitor, decerto, se recorda de que lhe disse que atripulação do meu navio se revoltara contra mim eme aprisionara no camarote; que permaneceranessa situação durante muitas semanas, semsaber onde conduziam o meu navio e que, emsuma, me haviam desembarcado sem me dizeronde me encontrava. Entretanto, julguei queestava a dez graus ao sul do Cabo da BoaEsperança e quase a quarenta e cinco de latitudemeridional. Inferi de algumas conversas, queouvira no navio, que tinham desejo de se dirigir aMadagascar. Embora isso não fosse senão umaconjectura, não deixei de tomar a resolução desingrar para leste, esperando refrescarme ao
sudoeste da NovaHolanda, e daí dirigirme a oestepara algumas das ilhotas que ficam nasproximidades. O vento estava diretamente paraoeste, e, pelas seis horas da tarde, calculei queandara dezoito léguas para esse ponto.
Tendo, então, descoberto uma ilhota afastada maisde légua e meia, a ela aportei daí a pouco. Nãopassava de um verdadeiro rochedo, com umapequena baía que as tempestades aí haviamformado. Amarrei a canoa neste porto e, tendotrepado a um dos lados do rochedo, descobri paraleste uma terra, que se estendia de norte a sul.Passei a noite na minha canoa e, no dia seguinte,desatando a remar de madrugada e com grandecoragem, cheguei às sete horas a um sítio daNovaHolanda, que fica a sudoeste. Istoconfirmoume uma opinião que tinha já há tempo:que os mapasmúndi e as cartas geográficascolocavam este país menos três graus para leste doque realmente está. Creio ter já, há muitos anos,comunicado o meu pensamento ao meu ilustreamigo, senhor Hermann Noll, e terlhe explicado asminhas razões; mas ele preferiu seguir a multidãodos autores.
Não avistei habitante algum no sítio ondedesembarcara e, como não tinha armas, não quisaventurarme nesse país. Apanhei na praia algunsmariscos que não me atrevi a cozer, com receio deque o fogo me fizesse descobrir aos habitantes daregião. Durante os três dias que me demorei ocultonaquele local, só me alimentei de ostras e outrosmariscos, a fim de poupar as minhas provisões.Felizmente, encontrei um pequeno regato, cujaágua era magnífica.
Ao quarto dia, aventurandome a dar algunspassos nessa região, descobri talvez trintahabitantes, numa altura que ficava a unsquinhentos passos distante de mim. Estavamtodos nus, homens, mulheres e crianças, eaqueciamse em volta de uma fogueira. Um delesavistoume e fez sinal aos outros. Então,destacaramse cinco do grupo e puseramse acaminho, dirigindose para mim. Logo desatei afugir para a praia, metime na canoa e remei comtoda a força. Os selvagens seguiramme ao longoda praia e arremessaram uma flecha que meatingiu o joelho esquerdo, onde me fez uma largaferida, de que ainda tenho cicatriz. Receei que odardo estivesse envenenado; assim, tendo remadofortemente, pondome fora do alcance dosinimigos, tratei de espremer bem a ferida e depoisliguei o joelho conforme pude.
Estava seriamente embaraçado; não me atrevia avoltar ao sítio onde fora atacado e, como eraobrigado a tomar o rumo norte, tornavasemepreciso remar sempre, porque tinha o vento denordeste. No momento em que lançava uma vistade olhos para todos os lados, a fim de descobriralguma coisa, reparei, ao nordeste, numa vela que,momento a momento, crescia a olhos vistos. Nãosabia se devia ou não caminhar para ela. Por fim, ohorror que concebera por toda a raçados Yahus fezme tomar a resolução de virar debordo e remar para o sul, a fim de voltar a essamesma baía de onde saíra de manhã, preferindoexporme a toda a casta de perigo a vivercom Yahus. Aproximei a canoa da praia o mais queme foi possível e, quanto a mim, oculteime aalguns passos, por trás de uma pequena rocha que
estava perto do regato a que já me referi.
O navio avançou quase meia légua pela baía emandou o escaler com tonéis para se fornecer deágua. Este local era conhecido e visitado muitasvezes pelos viajantes, em virtude daquele regato.Os marinheiros, ao desembarcarem, viramprimeiro a minha canoa e, principiando aexaminála, sem grande trabalho notaram queaquele a quem pertencia não estava longe. Quatrodeles, bem armados, procuraram por todos oslados e por fim encontraramme escondido com aface voltada para o chão por trás da rocha. Aprincípio ficaram surpreendidos com o meuaspecto, minha roupa de peles de coelho, os meussapatos de pau e as minhas meias forradas.Presumiram logo que não era daquele país, ondetodos os habitantes andavam nus. Um delesordenou que me levantasse e perguntoume emlíngua portuguesa quem eu era. Fizlhe um grandecumprimento e nessa mesma língua, que entendiaperfeitamente, respondi que era umpobre Yahu expulso do país dos huyhnhnms e quelhe pedia que me deixasse passar. Ficaramadmirados de me ouvir falar a sua língua ecalcularam, pela cor do meu rosto, que eraeuropeu; não sabiam, porém, o que eu queria dizercom as palavras Yahu e Huyhnhnm; e, nãopuderam, simultaneamente, deixar de rir com aminha acentuação, que se assemelhava ao relinchode cavalo.
Percebi, pelo seu aspecto, movimentos de tédio, eestava já na disposição de voltarlhes as costas edirigirme para a canoa, quando puseram as mãosem mim e me obrigaram a dizerlhes qual a minha
naturalidade, de onde vinha e outras perguntasidênticas. Respondilhes que nascera na Inglaterra,de onde partira havia quase cinco anos e que, porentão, reinava a paz entre aquele país e o meu;que, assim, esperava que tivessem a bondade denão me tratar como inimigo, pois lhes não queriamal algum, e que era um pobre Yahu que buscavauma ilha deserta onde pudesse passar na solidão oresto da minha desafortunada existência.
Fiquei a princípio surpreendido, quando mefalaram, e julguei ver um prodígio. Isto pareciametão extraordinário, como se ouvisse falar um cãoou uma vaca na Inglaterra. Responderamme comtoda a humanidade e delicadeza possíveis, que menão apoquentasse, e que estavam certos de que ocapitão quereria embarcarme a bordo e levarmegrátis para Lisboa, de onde poderia passar para aInglaterra; que dois deles iriam naquele momentoter com o capitão para o informar do que tinhamvisto e receber as suas ordens; mas, ao mesmotempo, salvo se lhes desse a minha palavra de nãofugir, me ligariam. Disselhes que fizessem de mimtudo o que julgassem a propósito.
Tinham muita vontade de saber a minha vida e asminhas aventuras; mas deilhes poucas satisfaçõese todos concluíram que as minhas desgraças mehaviam perturbado o espírito. Ao cabo de duashoras, a chalupa, que fora levar água doce aonavio, voltou com ordem de me conduzirimediatamente a bordo. Prostreime de joelhospara pedir que me deixassem à vontade e que nãoquisessem tolherme a liberdade, mas foi em vão;fui ligado e metido no escaler, e nesse estadoconduzido a bordo e ao camarote do capitão.
Chamavase Pedro Mendes e era um homem muitogeneroso e delicado. Pediume, em primeiro lugar,que lhe dissesse quem era e depois perguntoumese queria comer ou beber. Garantiume que seriatratado como ele próprio e, enfim, disseme coisastão obsequiosas, que fiquei admirado de encontrartanta bondade num Yahu. Tinha, no entanto, umaspecto sombrio, sorumbático e rígido, e sórespondi a todas as suas amabilidades que a bordoda minha canoa ainda tinha de comer. Ordenou,porém, que me servissem um frango e me fizessembeber excelente vinho; e, enquanto se esperava,mandou arranjar uma boa cama num quartomuito cômodo. Quando aí fui conduzido, não quisdespirme, e deiteime na cama conforme estava.Ao fim de meia hora, enquanto toda a tripulaçãoestava no jantar, fugi do quarto no desejo de melançar a nado, a fim de não ser obrigado a vivercom Yahus. Mas fui detido por um dosmarinheiros, e o capitão, sendo informado daminha tentativa, ordenou que me encerrassem noquarto.
Depois do jantar, D. Pedro veio ter comigo e quissaber qual o motivo que me tinha levado a formara empresa de um homem desesperado.Asseguroume, ao mesmo tempo, que só tinhaempenho em darme prazer, e faloume de umaforma tão cativante e persuasiva que comecei aolhálo como animal um pouco razoável. Referilhe,em poucas palavras, a história da minha viagem, ainsurreição da tripulação do navio de que eu era ocapitão, e a resolução que tinham tomado de medeixar sobre um ponto ignorado; declareilhe quepassara três anos com os huyhnhnms, que eramcavalos falantes e animais raciocinantes. O capitão
tomou tudo isso por visões e mentiras, o que memelindrou em extremo. Disselhe que esquecera amentira desde que deixara os Yahus da Europa;que nos huyhnhnms não se mentia, nem mesmo àscrianças ou criados; que, quanto ao mais,acreditaria o que lhe conviesse, mas estava prontoa responder a todas as dificuldades que poderiaopor e me orgulhava de lhe poder fazer conhecer averdade.
O capitão, homem sensato, depois de me haverdirigido outras perguntas, e ter visto que tudo oque dizia era justo, e que todas as partes da minhahistória se relacionavam umas com as outras,começou a formar melhor opinião da minhasinceridade, tanto mais que me confessou quehavia tempo se encontrara com um marinheiroholandês que lhe disse que, com mais cincocamaradas, havia desembarcado numa certa ilhaou continente ao sul da NovaHolanda, ondetinham tomado aguada; que haviam descortinadoum cavalo levando diante de si um tropel deanimais perfeitamente semelhantes aos que lhedescrevera e a que eu dava o nome de Yahus commuitas outras particularidades, que disse teresquecido, e de que não se dera o trabalho deguardar de memória, tomandoas como mentiras.
Acrescentou que, embora eu fizesse profissão deter grande amor à verdade, quis que lhe desse aminha palavra de honra de ficar com ele durantetoda a viagem, sem pensar em atentar contra aminha existência; que, em caso contrário, meencerrariam até que chegasse a Lisboa.Prometilhe o que exigisse de mim, mas protestei,ao mesmo tempo, que preferia sofrer os mais
desagradáveis tratos a consentir em voltar a vivercom os Yahus do meu país.
Nada se passou de notável durante a nossaviagem. Para testemunhar ao capitão quantoestava sensibilizado pelas suas bondades,conversava com ele algumas vezes por gratidão,quando me pedia instantemente que lhe falasse, etentava, então, ocultar a minha misantropia e aminha aversão por todo o gênero humano. Noentanto, escaparamme, por vezes, alguns ditossatíricos e mordentes, que escutava comogentilhomem ou aos quais fingia não dar atenção.Passava, porém, a mor parte do tempo só e isoladono meu camarote, e não queria dar palavra atripulante algum. Tal era o estado do meu cérebro,que a minha convivência com os huyhnhnms meenchera de idéias sublimes e filosóficas. Sentiamedominado por uma extraordinária misantropia,semelhante a esses espíritos sombrios, a essesferozes solitários, a esses meditativos censoresque, sem terem freqüentado os huyhnhnms, semelindram por conhecer a fundo o carácter doshomens e por possuir um soberano desprezo pelahumanidade.
O capitão pediume, várias vezes, que medespojasse das peles de coelho, e ofereceuse parame emprestar tudo o que fosse necessário para mevestir dos pés à cabeça; agradecilhe, porém, osseus oferecimentos, sentindo horror em envolver omeu corpo com o que tinha sido usado porum Yahu. Consenti apenas em que meemprestasse duas camisas brancas que, sendomuito bem lavadas, não me podiam sujar.Chegámos a Lisboa a 15 de Novembro de 1715. O
capitão forçoume então a vestir a sua roupa, paraevitar que a escumalha nos apupasse pelas ruas.Levoume para sua casa e quis que permanecessecom ele durante a minha estada nessa cidade.Pedilhe instantemente que me alojasse no quartoandar, num sítio afastado, onde não convivessecom pessoa alguma. Soliciteilhe também o favorde não contar fosse a quem fosse o que eu lhenarrara acerca da minha permanêncianos huyhnhnms, porque, se a minha história fosseconhecida, seria em breve importunado comvisitas, com uma infinidade de curiosos e, o queseria pior, talvez lançado às fogueiras pelaInquisição.
O capitão, que não era casado, só tinha trêscriados, um dos quais, o que me levava as refeiçõesao quarto, tinha boas maneiras comigo e pareciater tão bom senso para um Yahu que a suacompanhia não me desagradou, e conseguiu demim que, de vez em quando, chegasse a umafresta para tomar ar; em seguida persuadiume adescer ao andar de baixo e a deitarme num quartocuja janela dava para a rua; mas, a princípio,retirei tão depressa a cabeça quanto a deitara defora; o povo feriame a vista. Contudo, fuimepaulatinamente habituando. Oito dias depoisfezme descer para um andar mais baixo; por fim,triunfou tão bem da minha fraqueza, que meconvidou a ir sentarme à porta para ver os quepassavam e, em seguida, acompanhálo algumasvezes pela rua.
D. Pedro, a quem explicara a situação da minhafamília e dos meus negócios, disseme, um dia, queera obrigado por honra e consciência a voltar ao
meu país e ir viver em minha casa com a mulher eos filhos. Ao mesmo tempo avisoume de queestava no porto um navio pronto a fazerse de velapara a Inglaterra e asseguroume que forneceriatudo quanto eu carecesse para a minha viagem.Aleguei vários motivos, que me desviavam de voltara viver no meu país e que me haviam feito tomar aresolução de buscar uma ilha deserta, ondepudesse findar os meus dias. Replicou que essailha, que eu desejava procurar, era uma quimera, eque encontraria homens em toda a parte; que, pelocontrário, quando estivesse em minha casa, seriaeu o dono e poderia permanecer solitário as vezesque me aprouvesse.
Por fim, rendime, não podendo fazer outra coisa;tinhame, então, tornado um pouco menosselvagem. Deixei Lisboa em 24 de Novembro, eembarquei num navio mercante. D. Pedroacompanhoume até o porto e teve a amabilidadede me emprestar a soma de vinte libras esterlinas.Durante a viagem, não tive convivência com ocapitão nem com os passageiros e pretextei umadoença para poder ficar sempre em meu camarote.A 5 de Dezembro de 1715 lançámos ferros nasDunas, quase às nove horas da manhã, e às cincoda tarde cheguei a Redriff de boa saúde erecolhime à casa. Minha mulher e toda a família,ao tornar a verme, testemunharam a sua surpresae a sua alegria; como me haviam julgado morto,entregaramse a transportes que não possoexprimir. Beijei e abracei todos friamente, emvirtude da idéia do Yahu, que não me saíra aindado espírito, e por esse motivo não quis a princípiodormir com minha mulher.
O primeiro dinheiro que tive empregueio emcomprar dois cavalos novos, para os quais mandeiconstruir magnífica estrebaria, que entreguei aoscuidados de um palafreneiro de primeira ordem, aquem fiz meu confidente e favorito. O cheiro deestrebaria encantavame e passava aí quatro horaspor dia a conversar com os meus cavalos, o que mefazia recordar os virtuososhuyhnhnms.
No momento em que escrevo esta relação, há cincoanos que estou de volta da minha última viagem evivo retirado em casa. No primeiro ano, foi a custoque suportei a presença de minha mulher e a demeus filhos, e quase que não pude comer emcompanhia deles. As minhas idéias mudaram coma continuação e hoje sou um homem comum,embora sempre um pouco misantropo.
CAPÍTULO XII
Invectivas do autor contra os viajantes que mentem nas relações — Justifica asua — O que pensa da conquista, que se quisesse fazer dos países que
descobriu.
Deilhe, meu querido leitor, uma história completadas minhas viagens durante o espaço de dezesseisanos e sete meses; e, nessa relação, busqueimenos ser elegante e enfeitado do que verdadeiro esincero. Talvez tenha na conta de fábulas ehistorietas tudo o que narrei e a que naturalmentenão encontrou verossemelhança; porém não meapliquei a procurar rodeios sedutores para darforça às minhas narrativas e tornálas críveis. Seme não acredita, queixese da sua própriaincredulidade; quanto a mim, que não tenho gênio
para ficções e possuo uma imaginação muito fria,relatei os fatos com tal simplicidade que deviacurálo de todas as dúvidas.
Énos dado a nós, viajantes que vamos a paísesonde quase ninguém vai, fazer descriçõessurpreendentes de quadrúpedes, de serpentes, deaves e de peixes extraordinários e raros. Mas queserve isso? O principal fim de um viajante quepublica a relação das suas viagens, não deve sertornar os homens do seu país melhores e maisprudentes e citarlhes exemplos estrangeiros, sejapara bem, seja para mal, para os excitar a praticara virtude e a fugir do vício? Foi isso o que mepropus neste trabalho e creio que me devemagradecer.
De todo o meu coração desejaria que fossedecretado por lei que, antes de qualquer viajantepublicar a relação das suas viagens, jurasse empresença do lord grãchanceler que tudo o quemandasse imprimir, fosse exatamente verdadeiro,ou, pelo menos, que assim o julgasse. O mundonão seria talvez enganado como é todos os dias.Dou antecipadamente o meu voto para essa lei econsinto em que a minha obra só seja impressadepois de que ela vigore.
Na minha mocidade percorri grande número derelações com infinito prazer; mas, desde que deiquase volta ao mundo, e vi coisas com os meuspróprios olhos, perdi o gosto por essa espécie deliteratura; prefiro ler romances. Desconfio de que oleitor pensa como eu.
Os meus amigos, julgando que a relação queescrevi das minhas viagens tinha um certo ar de
verdade, que agradaria ao público, fizerammeceder aos seus conselhos e consenti na impressão.Sofri muitos desaires na minha vida, mas nuncative tendência para mentir, seguindo assim opreceito de Virgílio na Eneida.
Sei que não há muita honra em publicar narraçõesde viagens; que isto não demanda nem gênio nemciência e que basta possuir uma boa memória outer um diário exato; sei também que os fazedoresde relações se assemelham aos dicionaristas e são,no fim de certo tempo, eclipsados, como queaniquilados por uma multidão de escritoresposteriores, que repetem tudo o que os outrosdisseram e acrescentam coisas novas. Talvez meaconteça o mesmo; viajantes irão aos países emque estive, inquirirão das minhas descrições, farãocair o meu livro e esquecer, talvez, o que nuncaescrevi. Veria isso como uma verdadeiramortificação, se escrevesse para a glória; como,porém, escrevo para utilidade do público, nenhumcuidado me dá e estou preparado para todas aseventualidades.
Desejaria bem que o meu livro tivesse uma críticasevera; porém que se poderia dizer de um viajanteque descreve países em que o nosso comércio nãotem interesses e em que não se faz referênciaalguma às nossas manufaturas? Escrevi sempaixão, sem espírito de partido e sem querer ferirninguém; escrevi para um fim mais nobre, que é ainstrução geral do gênero humano; escrevi sem terem vista interesse algum ou vaidade, de maneiraque os observadores, os examinadores, os críticos,os chicaneiros, os tímidos, os políticos e ospequenos gênios intrujões, os espíritos mais
difíceis e mais injustos nada terão que dizerme enão encontrarão ensejo para exercer o seu odiosotalento.
Confesso que me fizeram compreender que deviaprimeiro, como bom súdito e bom inglês,apresentar ao secretário de Estado, no meuregresso, uma memória instrutiva concernente àsminhas descobertas, visto como todas as terrasque um súdito descobre, pertencem, de direito, àcoroa. Entretanto duvido que a conquista dospaíses de que se trata seja tão fácil como a queFernando Cortez fez outrora de uma região daAmérica, em que os espanhóis chacinaram tantospobres índios nus e desarmados. Primeiramente,no que diz respeito ao país de Lilipute, é claro quea sua conquista não é coisa que valha a pena, poisnão tiraríamos lucros que pagassem as despesasfeitas com uma esquadra e um exército. Perguntose haverá prudência em ir atacar osBrodbingnagnianos. Seria muito interessante verum exército inglês fazer ali uma descida! Ficariacontente, se fosse enviado a uma região onde setem sempre sobre a cabeça uma ilha aérea, prontaa esmagar os rebeldes e com razão maior osinimigos de fora que quisessem se apoderar desseimpério? É verdade que a conquista do paísdos huyhnhnms parece muito acertada. Essespovos ignoram o ofício da guerra; não sabem o quesão armas de fogo e armas brancas.
Contudo, se eu fosse ministro de Estado, nuncaestaria disposto a fazer semelhante conquista. Asua elevada prudência e a sua perfeitaunanimidade são armas terríveis. Imaginese, alémdisso, cem mil huyhnhnms lançandose
furiosamente sobre um exército europeu. Quecarnificina não fariam eles com os dentes e dequantas cabeças e estômagos não dariam cabocom as suas patas traseiras?
Mas, longe de pensar em conquistar o seu país,queria antes que o convidassem a enviar alguns dasua nação para civilizar a nossa, isto é, para atornar virtuosa e mais sensata.
Uma outra razão evita que eu seja de parecer daconquista dessa região, e de crer que venha apropósito aumentar os domínios de Sua Majestadebritânica com as minhas felizes descobertas; esta éa verdade: a maneira por que se toma posse de umnovo país descoberto causame alguns ligeirosescrúpulos. Por exemplo: um grupo de piratas éimpelido por uma tempestade para uma regiãodesconhecida. Um marujo, do alto da gávea, avistaterra, e eilos logo a singrar para lá. Aportam,desembarcam na praia, vêm um povo desarmadoque os acolhe bem; logo dão uma novadenominação à terra e apossamse dela em nomedo seu chefe. Erigem um monumento que atesta àposteridade esta bela ação. Em seguida, põemse amatar duas a três dúzias desses pobres índios etêm a bondade de pouparlhes outra dúzia, quemandam para as suas cabanas. É estepropriamente o ato de posse que o direitodivino começa a fundar.
Depois se mandam outros navios a esse mesmopaís para exterminar maior número dos naturais;submetem os chefes à tortura para os obrigar aentregar os seus tesouros.
Confesso que o que aí fica não respeita à nação
inglesa, que, na fundação das colônias, faz semprebrilhar a prudência e a justiça e que, sob esteponto, pode servir de exemplo a toda a Europa.Sabese qual o nosso zelo para fazer conhecer areligião cristã nos países modernamentedescobertos e felizmente ocupados; que, para aífazer praticar as leis do cristianismo, temos ocuidado de mandar pastores muito piedosos emuito edificantes, homens de bons costumes e debom exemplo, mulheres e donzelas irrepreensíveise de uma virtude bem demonstrada, valentesoficiais, juízes íntegros e, principalmente,governadores de uma reconhecida probidade, quefazem consistir a sua felicidade na dos habitantesdo país, que não exercem tirania alguma, que nãotêm avareza, ambição, cupidez, mas unicamentemuito zelo pela glória e pelos interesses do rei seuamo.
De resto, que interesse teríamos nós em querer nosapoderar dos países cuja descrição fiz? Quevantagens tiraríamos do trabalho de acorrentar ematar os naturais? Nesses países não há minas deouro ou de prata, nem açúcar, nem tabaco.
Se, no entanto, a corte for de parecer contrário,declaro que estou pronto a atestar, quando meinterrogarem judicialmente, que, antes de mim,europeu algum pusera os pés nestas mesmasregiões; tomo por testemunhas os naturais, cujodepoimento deve fazer fé. É verdade que se podefazer chicana com relação a esses dois Yahus quecitei, e que, conforme à tradiçãodos huyhnhnms,apareceram sobre uma montanhae tornaramse desde então a vergôntea de todosos Yahus que infestam essa região. Não é difícil,
porém, provar que esses dois antigos Yahus eramoriundos da Inglaterra; certos traços dos seusdescendentes, certas tendências, certas maneiras ofazem pressupor. Quanto ao mais, deixo aosdoutores em matérias de colônias discutir esteassunto e examinar se não se funda num títuloclaro e incontestável pelo direito da GrãBretanha.
ÍNDICE DOS CAPÍTULOS
PRIMEIRA PARTE — Viagem a LiliputeCapítulo IO autor conta de modo sucinto os principais motivos que o levaram a viajar — Naufraga e salvase a nado chegando ao país de Lilipute — Prendemno e conduzemno para o interior.Capítulo IIO imperador de Lilipute, acompanhado de muitos dos seus cortesãos, veio visitar o autor na sua prisão — Descrição da personalidade e do trajo de Sua Majestade — Sábios nomeados para ensinar o idioma do país ao autor — Sãolhe concedidas algumas graças em virtude da sua conduta pacífica — As algibeiras sãolhe revistadas.Capítulo IIIO autor diverte o imperador e os grandes de um e de outro sexo de forma deveras extraordinária — Descrição das diversões da corte de Lilipute — O autor é posto em liberdade, mediante certas condições.Capítulo IVDescrição de Mildeno, capital de Lilipute, e do palácio do imperador — Conversa entre o autor e um secretário de Estado relativa aos negócios do
império — Oferecimento que o autor fez ao imperador de servir nas grandes guerras.Capítulo VO autor opõese ao desembarque dos inimigos, por meio de um extraordinário estratagema — O imperador concedelhe um grande titulo honorífico— O imperador de Blefuscu envia embaixadores a solicitar a paz — Incendeiamse os aposentos da imperatriz — O autor concorre muito para extinguir o incêndio.Capítulo VIOs costumes dos habitantes de Lilipute — Sua literatura — Suas leis e maneiras de educar os filhos.Capítulo VIIRecebendo o autor aviso que iam processálo pelo crime de lesamajestade, foge para Blefuscu.Capítulo VIIIO autor, por um feliz acaso, encontra meio de deixar Blefuscu e após algumas dificuldades volta à sua pátria.
SEGUNDA PARTE — Viagem a BrobdingnagCapítulo IO autor, depois de haver suportado um grande temporal, embarca num escaler para se dirigir à terra e é agarrado por um dos seus naturais — Como foi tratado — Esboço sobre o país e o seu povo.Capítulo IIRetrato da filha do lavrador — O autor é levado a uma cidade onde havia uma feira, e, em seguida, àcapital — Pormenores da sua viagem.Capítulo IIIO autor é mandado para a corte; a rainha comprao e o apresenta ao rei — Discute com os
sábios de Sua Majestade — Preparamlhe um aposento — Tornase favorito da rainha — Mantéma honra do seu país — As suas questões com o anão da rainha.Capítulo IVDiversas idéias do autor para agradar ao rei e à rainha — O rei informase acerca da Europa, de que o autor lhe faz um relatório — As observações do rei sobre este assunto.Capítulo VZelo do autor pela honra da sua pátria — Faz uma vantajosa proposta ao rei, que a rejeita — A literatura deste povo é imperfeita e limitada — As suas leis, os seus assuntos militares e os seus partidários de Estado.Capítulo VIO rei e a rainha fazem uma viagem à fronteira, onde o autor os acompanha — Pormenor da maneira por que saí desse país para regressar à Inglaterra.
TERCEIRA PARTE — Viagem a Lapúcia, aos Balnibarbos, a Luggnagg, a Glubbdudrib e ao JapãoCapítulo IO autor empreende terceira viagem — É aprisionado pelos piratas — Maldade de um holandês — Chega a Lapúcia.Capítulo IICarácter dos Lapucianos — Opinião a respeito dos seus sábios, do seu rei e da corte — Recepção que foi feita ao autor — Os receios e as inquietações dos habitantes — Carácter das mulheres lapucianas.Capítulo IIIFenômeno explicado pelos filósofos e astrônomos
modernos — Os Lapucianos são grandes astrônomos — De como o rei logra apaziguar as sedições.Capítulo IVO autor deixa a ilha de Lapúcia e é levado aos Balnibarbos — A sua chegada à capital — Descrição desta cidade e arredores — É recebido com bondade por um grãosenhor.Capítulo VO autor visita a academia e descrevea.Capítulo VIContinuase a descrição da academia.Capítulo VIIO autor deixa Lagado e chega a Maldonada — Faz uma pequena viagem a Glubbdudrib — Como é recebido pelo governador.Capítulo VIIIRegresso ao autor a Maldonada — Fazse de vela para o reino de Luggnagg — É preso à sua chegadae levado à corte — Como é recebido.Capítulo IXDos struldbruggs ou imortais.Capítulo XO autor parte da ilha de Luggnagg para se dirigir ao Japão, onde embarca em um navio holandês — Chega a Amsterdam e daí passa para a Inglaterra.
QUARTA PARTE — Viagem ao país dos HuyhnhmnsCapítulo IO autor empreende ainda uma viagem na qualidade de capitão de navio — A sua tripulação insubordinase, prendeo, acorrentao e põeno emterra num ponto desconhecido — Descrição dos Yahus — Dois Huyhnhnms vêm ter com ele.Capítulo II
O autor é levado à habitação de um huyhnhnm; como é recebido — Qual era o alimento dos huyhnhnms — Embaraços do autor para encontrarcom que se alimentar.Capítulo IIIO autor entregase ao estudo de aprender bem a, língua e o huyhnhnm, seu amo, aplicase em ensinarlha — Muitos huyhnhnms vêm, por curiosidade, visitar o autor — Faz a seu amo um sucinto relato das suas viagens.Capítulo IVIdéias dos huyhnhnms acerca da verdade e da mentira — As dissertações do autor são censuradas por seu amo.Capítulo VO autor expõe ao amo o que ordinariamente acende a guerra entre os príncipes da Europa; explicalhe,, em seguida, como os particulares se guerreiam mutuamente — Retrato dos procuradores e juízes de Inglaterra.Capítulo VIDo luxo, da intemperança e das doenças que reinam na Europa — Condição da nobreza.Capítulo VIIParalelo entre os Yahus e os homensCapítulo VIIIFilosofia e costumes dos huyhnhnms.Capítulo IXParlamento dos huyhnhnms — Questão importante ventilada nesta assembléia de toda a nação — Pormenores acerca de alguns usos do país.Capítulo XFelicidade do autor no país dos huyhnhnms — Os agradáveis prazeres que saboreia com as conversasentabuladas com eles — Modo de vida que leva
naquela região — É banido desse país por ordem do parlamento.Capítulo XIO autor é atingido por uma flecha que lhe dirige um selvagem — É tomado por portugueses que o conduzem a Lisboa, de onde passa para a Inglaterra.Capítulo XIIInvectivas do autor contra os viajantes que mentem nas relações — Justifica a sua — O que pensa da conquista, que se quisesse fazer dos países que descobriu.
Notas
* — Digo quase porque, comparando o texto digitalizado com a edição do Project Gutenberg, verifiquei que trechos foram omitidos. O leitor que lê Inglês é incentivado a ler o original. Aliás, ler na língua em que a obra foi escrita é sempre melhor. [NE]** — Distrito dos advogados em Londres. No original: “Smithfield blazing with pyramids of law books”, portanto, aqui, refulgindo tem o sentido de “luzindo sob a luz de chamas” [NT](1) — Nem homem forte, nem mulher casta.(2) — Nada desconheço do que diz respeito a cavalos.
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©2004 — Jonathan Swift
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__________________Junho 2004
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