as viagens de guliver

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Page 1: As Viagens de Guliver
Page 2: As Viagens de Guliver

eBookLibris

VIAGENS DE GULLIVER

Jonathan Swift

Viagens de Gulliver(Travels Into Several Remote Nations of the World ­ In Four Parts ­ by Lemuel Gulliver ­ first

a Surgeon, and then a Captain of several Ships ­ London ­ MDCCXXVI)Jonathan Swift

(1667­1745)Tradução: Cruz Teixeira

Fonte DigitalDigitalização do livro em papelClássicos Jackson vol. XXXI

1950

Traduções de “O Editor ao Leitor” e “Uma Carta do Capitão Gulliver para seu primoSympson” por Teotonio Simões a partir da edição de “Gulliver’s Travels” do Project

GutenbergTranscribed from the 1892 George Bell and Sons edition by David Price

[email protected]

Imagem da capa:Arthur Rackham (1867­1939)

Fonte digitalwww.artpassions.net

© 2004 — Jonathan Swift

ÍNDICE

O Editor ao Leitor [desta edição]VIAGENS DE GULLIVERO Editor ao Leitor [segundo a edição original]Uma carta do Capitão Gulliver para seu Primo SympsonPRIMEIRA PARTE — Viagem a LiliputeSEGUNDA PARTE — Viagem a BrobdingnagTERCEIRA PARTE — Viagem a Lapúcia, aos Balnibarbos, a Luggnagg, a Glubbdudrib e ao 

Page 3: As Viagens de Guliver

JapãoQUARTA PARTE — Viagem ao país dos HuyhnhmnsÍndice dos Capítulos

O Editor ao Leitor

[desta edição]

“Se eu tivesse que fazer umalista de seis livros a serem

preservados quando todos osoutros fossem destruídos,

certamentecolocaria Viagens de

Gulliver entre eles.”George Orwell: Politics vs

Literature

Creio   que   nem   seria   preciso   um   aval   tãorespeitável   quanto   o  de  Orwell,   que   leu  a   obra,texto integral, quando tinha oito anos (ou, para sermais exato, um dia antes, porque abriu o presenteantes  do  dia:),   que  o   leu  pelo  menos  seis   vezesdesde   então,   para   dizer   da   importância   desteclássico de Jonathan Swift.

Entretanto,   como sempre   faço  antes  de  publicaralguma   obra,   percorri   as   livrarias   online,conferindo   a   disponibilidade   do   título,   para   nãoinfringir   nenhum   direito   autoral,   principalmenteno aspecto patrimonial.

Qual não foi minha surpresa ao verificar que o AsViagens   de   Gulliver está   disponível   em   muitas   e

Page 4: As Viagens de Guliver

muitas edições... mas em sua maioria “adaptações”para   o   público   infantil,   nas   quais,indefectivelmente, consta o nome do adaptador(a),claro. Em uma livraria online, inclusive, o livro éatribuído   a   quem   fez   a   adaptação.   O   pobreJonathan Swift foi literalmente desprezado!!

E houve tempo em que a obra, texto integral, eralida  por  garotos  de  oito  anos.  Não  precisava sernenhum Orwell, nem morar na Inglaterra. Por aquimesmo, na edição da saudosa Editora Globo (a dePorto Alegre), em edição especial do Clube do Livro,na coleção Clássicos Jackson, entre outras.

Mas, já em 1956, ao anunciar a edição especial de“As Viagens de Gulliver” aos associados do Clubedo Livro, por encomenda, ao preço em todo o Brasilde   Cr$50,00   (o   preço   normal   de   cada   livro   doClube do Livro era Cr$15,00), na orelha deThingumBob,   de   Edgar   Allan   Poe   (setembro   de   1956),fazia­se a seguinte ressalva:

“Geralmente,   editam­se   as   duas   primeirasviagens: ao país dos anões (Liliput) e ao paísdos   gigantes   (Brobdingnag).   Neste   volume,encontram­se, não só as 2 primeiras viagensjá   citadas,   mas   as   2   subseqüentes,   àLapúcia   e   a   Japão   e   ao   país   dos   cavalos(huyhnhnms),   o   que   torna   precioso   estelivro, traduzido em todas as línguas como aBíblia. Em

“AS VIAGENS DEGULLIVER”

V. S. encontrará uma das mais terríveis e marcantes sátiras contra a humanidade, 

Page 5: As Viagens de Guliver

escrita pelo gênio de Jonathan Swift.”

O   “elegante   volume   de   420   páginas,   capas   emcores, preço para os associados em todo o BrasilCr$50,00”,   contudo,   estava   além   das   minhasposses. Li, emprestado de biblioteca, em edição daEditora Globo (a de Porto Alegre) e não aos oito,mas aos onze anos.

A   que   vem   esta   nota   do   editor,   mais   no   estiloprefácio,   já  que não é  meu costume prefaciar oslivros editados pela eBooksBrasil.org?

Primeiro,  para  destacar  a   importância  da   ediçãoem eBook deste título, já que tempo houve em queo Clube do Livro fazia dele “edição extra”.

Segundo, para destacar que, hoje,  substima­se ainfância,  com as tais “adaptações para o públicoinfantil”, que me parecem atender mais à economiade papel de certas casas editoras do que qualqueroutra coisa. Mas ainda bem que existem os HarryPorter e os Senhor dos Anéis para provar que ascrianças   de   hoje   não   são   diferentes   das   deantanho! Se lhes interessam os títulos, não são ostamanhos   dos   volumes   que   as   afastam   da   boaleitura.

Nesta edição, com capa em cores, nas versões deeBooks que cores comportam, o leitor (espero quemuitos em seus oito ou onze anos), encontrará asquatro   viagens,   em  texto   (quase)* integral.   Trateide incluir dois textos que foram omitidos na ediçãoem papel digitalizada, que constavam da primeiraedição,   de   acordo   com   a   disponível   no   ProjectGutenberg: O   Editor   ao   Leitor eUma   Carta   doCapitão Gulliver para seu Primo Sympson.

Page 6: As Viagens de Guliver

Não sei se constavam na edição do Clube do Livro.Nunca tive acesso a ela.

Chamo a atenção, finalmente, para o fato de estaedição   ser   feita   sob   um   licenciamento   CreativeCommons, destacando o aspecto Atribuição: “Vocêdeve dar crédito ao autor original”. E colocar umaquestão, para reflexão do eventual leitor: É corretoalterar   o   texto   do   Autor,   com   omissões   ouinserções não autorizadas?

Como   contribuição   à   abertura   de   discussão   arespeito,   as   reclamações   do   Capitão   Guliver   emcarta   a   seu   primo   e   Editor,   Richard   Sympson,podem ser um bom começo.

Sem   mais,   para   vocês,   crianças   de   hoje,   asfantásticas Viagens de Gulliver.

Preço em todo o Brasil e mundo: o custo de umaligação   telefônica   local,   energia   elétrica   e   adisponibilidade   de   um   computador   conectado   àinternet.

Observação: leitura permitida para adultos:)

Outono, 2004Teotonio Simões

eBooksBrasil

Jonathan Swift

VIAGENS DEGULLIVER

Page 7: As Viagens de Guliver

O Editor ao Leitor

[segundo a edição original]

O autor destas Viagens, Sr. Lemuel Gulliver, é meuantigo e íntimo amigo; há, parece, alguma relaçãoentre   nós   pelo   lado   materno.   Há   cerca   de   trêsanos,   o   Sr.   Gulliver   fartando­se   do   assédio   depessoas curiosas que iam procurá­lo em sua casaem Redriff, comprou um pequeno pedaço de terra,com   uma   casa   aprazível,   perto   de   Newark,   emNottinghamshire, sua terra natal; onde agora viveretirado,   embora   na   boa   estima   entre   seusvizinhos.

Embora   Mr.   Gulliver   tenha   nascido   emNottinghamshire,   onde   seu  pai   viveu,   eu   o   ouvidizer   que   sua   família   veio   de   Oxfordshire;confirmando o fato, observei no cemitério da igregaem  Bandury,   neste   condado,   diversas   tumbas   emonumentos dos Gullivers.

Antes de deixar Redriff, confiou­me a custódia dospapéis   que  se   seguem em minhas  mãos,   com aliberdade de dispor deles como achasse melhor. Euos percorri cuidadosamente três vezes. O estilo écorreto e simples; e o único defeito que encontrei éque o autor, à maneira dos viajantes, é um poucopor   demais   detalhista.   Há   um   ar   de   aparenteverdade   no   todo;   e   realmente   o   autor   era   tãodistinguido por sua veracidade, que se tornou umaespécie   de   provérbio   entre   seus   vizinhos   emRedriff,   quando  alguém afirmava  algo,  dizer,   eratão verdade como se o Sr. Gulliver o tivesse dito.

Page 8: As Viagens de Guliver

Por conselho de algumas pessoas prestigiosas, àsquais,   com a  permissão  do  autor,  mostrei   estespapéis, agora aventuro­me a lançá­los ao mundo,esperando que possam ser, pelo menos por algumtempo,   um   entretenimento   melhor   para   nossosjovens   nobres,   que   as   garatujas   comuns   depolíticos e partidos.

Este   volume   teria   sido   pelo   menos   duas   vezesmaior,   se   eu   não   tivesse   forçado   a   tirarinumeráveis   passagens   relativas   aos   ventos   eondas,  bem como às  variações  e   finalidades  nasdiversas   viagens,   juntamente   com   as   descriçõesminuciosas do manejo do navio em tempestades,no estilo dos marinheiros;  bem como a conta delongitudes   e   latitudes;   embora   tenha   razão   detemer   que   o   Sr.   Gulliver   ficasse   um   poucoinsatisfeito.   Mas   resolvi   talhar   o   trabalho   tantoquanto   possível   à   capacidade   geral   dos   leitores.Contudo,   se   minha   própria   ignorância   dosnegócios   marítimos   me   levou   a   cometer   algunserros,   só   eu   sou   responsável   por   eles.   E   sequalquer   viajante   tiver   a   curiosidade   de   ver   otrabalho   inteiro,   como   veio   das   mãos   do   autor,estarei à disposição para satisfazê­lo.

Para maiores   informações  a   respeito  do autor,  oleitor satisfar­se­á nas primeiras páginas do livro.

Richard Sympson.

Uma carta do Capitão Gulliver para seu primo Sympson.

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Escrita no ano de 1727.

Espero   que   você   esteja   disposto   a   admitirpublicamente,   caso   seja   intimado   a   isso,   queatravés de sua grande e freqüente pressa você mepersuadiu a publicar um relato muito desconexo enão   correto   de   minhas   viagens,   com   indicaçõespara   contratar   alguns   jovens   de   qualqueruniversidade  para  ordená­los,   e   corrigir   o   estilo,como meu sobrinho Dampier fez, aconselhado pormim, em seu livro intitulado “Uma Viagem ao redordo   mundo”.   Mas   não   me   lembro   de   lhe   terconcedido o poder de consentir que qualquer coisapudesse ser omitida, e muito menos que qualquercoisa pudesse ser  insertada;  por  isso,  quanto àsinserções, aqui renuncio qualquer coisa desse tipo;particularmente um parágrafo sobre sua majestadeRainha   Anne,   da   mais   pia   e   gloriosa   memória;apesar   de   reverenciá­la   e   estimá­la   mais   quequalquer um da espécie humana. Mas você, ou seuinterpolador,   deve   ter   considerado  que   essa  nãoera minha inclinação, assim não foi decente louvarqualquer animal de nossa composição perante meumestre Huyhnhnm. E ademais, o fato foi totalmentefalso;   pois   pelo   que   sei,   estando   em   Inglaterradurante   alguma   parte   do   reinado   de   suamajestade,   ela  governou através  de  um ministrochefe;   aliás   mesmo   por   dois   sucessivamente,   oprimeiro dos quais  era o  lord de Godolphin,  e  osegundo o lord de Oxford; assim que você me fezdizer coisa que não era. Da mesma forma no relatoda   academia   dos   projetistas,   e   em   diversaspassagens   de   minha   conversa   com   meumestre Huyhnhnm,   você   ou   omitiu   algumascircunstâncias   materiais,   ou   misturou­as   ou

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mudou­as de tal modo, que dificilmente reconheçominha   própria   obra.   Quando   anteriormenteapontei   algo   disso   em   uma   carta,   você   teve   agentileza de responder que tinha medo de ofender;que   as   pessoas   no   poder   eram   muito   vigilantessobre   a   imprensa,   e   aptas   não   apenas   ainterpretar,   mas   a   punir   qualquer   coisa   queparecesse como uminnuendo (como penso que vocêo chamou). Mas, como, como poderia o que falei hátantos anos atrás, e a cerca de cinco mil léguas dedistância, em outro reino, ser aplicado a qualquerdos Yahus,  que agora dizem governar o rebanho;especialmente em um tempo quando pouco pensei,ou temi, a infelicidade de viver sob eles? Não tenhotoda   razão   de   reclamar,   quando   vejo   estesmesmos Yahus levados   por Huyhnhnms em   umveículo,   como   se   fossem   brutos,   e   aqueles   ascriaturas   racionais?   E   na   verdade   evitar   tãomonstruosa   e   detestável   visão   foi   um   dosprincipais motivos de meu retiro para cá.

Esse tanto pensei próprio contar a você em relaçãoa você mesmo, e à confiança que despositei em si.

Lastimo,   em   segundo   lugar,   de   minha   própriagrande vontade de julgamento, ao ser persuadidopelas solicitações e falsos raciocínios de você e dealguns   outros,   muito   contra   minha   própriaopinião, por conceder que minhas viagens fossempublicadas. Por favor, traga à mente quantas vezesdesejei que você considerasse, quando você insistiuno motivo do bem público, que osYahus eram umaespécie   de   animais   completamente   incapazes   deemenda   por   preceitos   ou   exemplos:   e   isso   foiprovado; em vez de ver um completo fim dado atodos os abusos e corrupções,  pelo  menos nesta

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pequena ilha, como tinha razão de esperar; veja,após seis meses de admoestações, não soube quemeu livro tenha produzido um único efeito acordecom   minhas   intenções.   Desejaria   que   você   mefizesse saber,  por uma carta,  quando partido oufacção fossem extintos; juízes estudados e corretos;peticionários   honestos   e   modestos,   com   algumatintura de senso comum, e Smithfield**, refulgindocom pirâmides  de   livros   de   leis;   a   educação  dajovem nobreza   inteiramente  mudada;  os  médicosbanidos; as fêmeas Yahus abundando em virtude,honra, fidelidade e bom senso; cortes e reuniões degrandes   ministros   inteiramente   sem   joio   oumácula;   juízo,  mérito,   e   aprendizado  agraciados;todos depreciadores da imprensa em prosa e versocondenados a  comer nada mais  que seu própriopapel,   e   saciar   sua  sede  com sua  própria   tinta.Estas,   e   milhares   de   outras   reformas,   contavafirmemente por seu encorajamento; como de fatoeram   completamente   deduzíveis   dos   preceitosexternados  em meu  livro.  E  é  preciso  confessar,que   sete  meses   eram um  tempo   suficiente   paracorrigir   cada   vício   e   loucura   às   quaisos Yahus estão   sujeitos,   se   suas   naturezastivessem   sido   capazes   de   mínima   disposição   àvirtude ou à sabedoria. Já, tão longe você esteve deresponder minha expectativa em qualquer de suascartas;  que pelo  contrário  você   está  abarrotandonosso correio cada semana com libelos, e chaves, ereflexões, e memórias, e segundas partes; em queme vejo acusado de refletir sobre o povo do grandeestado;   de   degradar   a   natureza   humana   (poisassim têm ainda a confiança de descrevê­la), e deabusar do sexo feminino. Descobri igualmente queos escritores destes volumes não estão concordesentre si; pois alguns deles não me consentem ser o

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autor   de   minhas   próprias   viagens;   e   outrosfazem­me autor de livros dos quais sou totalmenteestranho.

Descobri   igualmente   que   seu   impressor   foi   tãodescuidado a ponto de confundir as épocas, e erraras datas, de minha várias viagens e retornos; querdesignando   o   verdadeiro   ano,   nem   o   verdadeiromês;  nem dia  do mês:   e  ouvi  que  o  manuscritooriginal está todo destruído desde a publicação demeu   livro;   quer   tenho   qualquer   cópiaremanescente:   contudo,   enviei­lhe   algumascorreções, que pode insertar, caso haja algum diauma   segunda   edição:   e   embora   não   possasustentá­las;  mas deixarei  esta  questão para serajustada pelos meus judiciosos e cândidos leitorescomo queiram.

Ouvi   alguns   de   nossos Yahus do   mar   acharemerros   em   minha   liguagem   marítima,   como   nãoadequada em muitas partes, nem atualmente emuso. Não posso ajudar nisso. Em minhas primeirasviagens,   quando   jovem,   fui   instruido   pormarinheiros mais velhos,  e aprendi  a  falar  comofalavam.   Mas   desde   então   descobri   queos Yahus do mar são aptos,  como os de  terra,  aficarem na moda em suas palavras, que muda acada ano; tanto que, como recordo a cada retornoà minha própria terra seu velho dialeto estava tãoalterado, que dificilmente podia entender o novo. Eobservo,   quando   algum Yahu vem   de   Londresmovido   pela   curiosidade   visitar­me   em   casa,nenhum   de   nós   é   capaz   de   expressar   nossasconcepções de maneira intelegível ao outro.

Se a censura dos Yahus pudesse de alguma formame afetar, teria grande razão para reclamar, que

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alguns deles são tão brutos a ponto de pensaremmeu  livro  de  viagem uma mera   ficção   tirada  demeu próprio cérebro, e foram tão longe a ponto delançar   insinuações,   que   os Huyhnhnms eos Yahus têm   uma   existência   não   maior   que   oshabitantes de Utopia.

De   fato  preciso  confessar,  que   referente  ao  povode Lilipute, Brobdingrag (pois  que  asssim é   que  apalavra   deveria   ter   sido   soletrada,   e   nãoerroneamente Brobdingnag),   e Lapúcia,   não   ouvinunca até agora de qualquer Yahu tão presunçosoa ponto de disputar sua existência, ou os fatos querelatei   a   respeito   deles;   porque   a   verdadeimediatamente atinge cada leitor com convicção. Ehá   menos   probabilidade   em   meu   relatodos Huyhnhnms ou Yahus,   quando   é   manifestoquanto  aos  últimos,  há   tantos  quantos  milharesmesmo  neste   país,   que   apenas   diferem  de   seusirmãos   brutos   na   terra   dos Huyhnhnm,   porqueusam uma espécie de jargão, e não andarem nus?Escrevi   para   emendá­los,   e   não   para   suaaprovação.   A   louvação   unânime   de   toda   a   raçaseria   para   mim   de   menor   conseqüência   que   orelinchar destes dois Huyhnhnms degenerados quemantenho   em   meu   estábulo;   porque   destes,degenerados   como   são,   eu   ainda   melhoro   emalgumas virtudes sem nenhuma mistura de vício.

Presumem pensar acaso estes miseráveis animaisque sou tão degenerado a ponto de defender minhaveracidade? Yahucomo sou,  é  bem conhecido portoda a terra dos Huyhnhnm, que, pelas instruçõese exemplos de meu ilustre mestre, fui capaz de noespaço de dois anos (embora confesse com a maiordificuldade) de remover aquele  infernal hábito de

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mentir,   trapacear,   enganar,   e   prevaricar,   tãoprofundamente   enraizado  nas  próprias   almas  detodos   da   minha   espécie;   especialmente   osEuropeus.

Tenho outras queixas a fazer sobre esta vexatóriaocasião;   mas   me   esquivo   de   aborrecer­me   ou   avocê por mais tempo. Preciso livremente confessar,que   desde   meu   último   retorno,   algumascorrupções de minha naturezaYahu reviveram emmim através de minha conversa com uns poucosde sua espécie, e particularmente com os de minhaprópria família, por uma inevitável necessidade; docontrário  eu nunca teria   tentado um projeto   tãoabsurdo   como   o   de   reformar   a   raça Yahu nestereino:   Mas   acabei   com   todos   tais   visionáriosesquemas para sempre.

2 de Abril, 1727

Primeira Parte

VIAGEM A LILIPUTE

CAPÍTULO I

O autor conta de modo sucinto os principais motivos que o levaram a viajar —Naufraga e salva­se a nado chegando ao país de Lilipute — Prendem­no e

conduzem­no para o interior.

MEU   pai,   cujas   propriedades,   situadas   naprovíncia   de  Nottingham,   eram medíocres,   tinhacinco filhos; era eu o terceiro. Mandou­me ele parao  colégio  Emanuel,   em Cambridge,  aos  quatorze

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anos. Permaneci aí três anos, que empreguei comutilidade.  Como, porém, a minha educação fossemuito dispendiosa, puseram­me como aprendiz emcasa   do   Sr.   James   Bates,   famoso   cirurgião   deLondres, onde fiquei até aos vinte e um. Meu pai,de   tempos   a   tempos,   enviava­me   algumaspequenas   quantias,   que   empreguei   em  aprenderpilotagem   e   outros   ramos   de   matemáticas   maisprecisos   aos   que   manifestam   o   desejo   de   viajarpelo mar, pois eu supunha ser essa a minha vidafutura.

Deixando a  companhia  do  Sr.  Bates,   voltei  paracasa de meu pai,  e,   tanto dele como de meu tioJohn   e   de   outros   parentes,   consegui   arranjar   aquantia de quarenta libras esterlinas por ano paraa  minha  subsistência  em Leyde.  Entreguei­me  eapliquei­me ao  estudo da medicina durante  doisanos e sete meses, convencido de que tal estudo,algum dia, me seria útil nas minhas viagens.

Pouco depois do meu regresso de Leyde, pela boarecomendação  do  meu excelente  professor,  o  Sr.Bates,   consegui   emprego   de   cirurgiãono Andorinha, no qual embarquei por três anos emeio,   sob   as   ordens   do   comandante   AbrahãoPanell.   Entrementes,   viajei   pelo   Levante   eproximidades.

Quando voltei, resolvi fixar residência em Londres,e o Sr. Bates animou­me a tomar essa resolução,recomendando­me aos seus clientes. Aluguei partede   um   palacete   situado   no   bairro   Old­Jewry   epouco depois esposei Maria Burton, segunda filhade Eduardo Burton, negociante da rua de Newgate,a qual me trouxe quatrocentas libras esterlinas dedote.

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Mas, passados dois anos, o meu querido professor,senhor Bates, faleceu e, faltando o meu protetor, aminha   clientela   principiou   a   minguar.   A   minhaconsciência  não  me  consentia   imitar  o  modo  deproceder   da   maior   parte   dos   cirurgiões,   cujaciência é deveras semelhante à dos procuradores:esta a razão por que, consultando minha mulher ealguns dos meus íntimos, resolvi fazer nova viagempor mar.

Fui,   depois,   cirurgião   em   dois   navios,   e   muitasoutras viagens que fiz, durante seis anos, às Índiasorientais   e   ocidentais,   aumentaram um pouco  aminha fortuna.

Empreguei   os   meus   ócios   em   ler   os   melhoresautores   antigos   e   modernos,   levando   semprecomigo certo número de livros, e, quando vinha àterra, não descurava de notar os usos e costumesdos povos, aprendendo, simultaneamente, a línguado país,  o que se me tornava fácil,  visto possuirboa memória.

Tendo sido pouco feliz numa das minhas últimasviagens, aborreci­me do mar e deliberei meter­meem casa com minha mulher e meus filhos. Mudeide   residência  e   fui  de  Old­Jewry  para  a   rua  deFetter­Lane e, daí, para Wapping, na esperança depraticar   com   os   marinheiros,   mas   tal   nãoaconteceu.

Depois de,  baldadamente,   ter esperado três anosque   os   meus   negócios   melhorassem,   aceiteivantajoso partido, que me foi oferecido pelo capitãoGuilherme Prichard, que ia partir no Antílope, emviagem para o mar do Sul. A 4 de Maio de 1699,embarcámos  em Bristol   e  a  nossa   viagem  foi,   a

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princípio, muito feliz.

Ocioso   se   torna   maçar   o   leitor   com   apormenorização   das   nossas   aventuras   por   essesmares; basta apenas dizer­lhe que, ao passarmospelas  Índias  orientais,   fomos acometidos  por  umtemporal   de   tamanha   violência   que   nos   lançoupara o noroeste da terra de Van Diemen. Por umaobservação que fiz, notei que estávamos a 30,2 delatitude meridional. Da tripulação haviam morridodoze homens em virtude do exaustivo trabalho e damá   alimentação.   A   5   de   Novembro,   que   era   oprincípio do estio naqueles países, o tempo estavaum pouco escuro, e os marinheiros avistaram umarocha que se achava afastada do navio apenas ocomprimento   de  um cabo;  mas   o   vento   era   tãoforte,   que   fomos   impelidos  diretamente   contra   oescolho, onde chocámos num momento. Eu e maiscinco companheiros saltámos para uma lancha e,à força de remar, conseguimos livrar­nos do navioe   do   escolho.   Navegámos,   assim,   perto   de   trêsléguas, mas por fim o cansaço não nos deixou maisremar;   completamente   extenuados,   deixámo­noslevar ao sabor das vagas e em breve uma nortadarija virou­nos a lancha.

Desconheço   qual   tivesse   sido   a   sorte   dos   meuscompanheiros de lancha, nem dos que se salvaramdo escolho,  ou  ainda  dos  que   ficaram no navio,mas   desconfio   que   pereceram   todos;   quanto   amim, nadei ao acaso e fui levado para terra pelovento e pela maré. De vez em quando estendia aspernas a ver se encontrava fundo; por fim, estandoquase   exausto,   tomei   pé.   Por   então,   o   temporalamainara. Como o declive era um tanto insensível,caminhei perto de meia légua pelo mar, antes que

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pusesse pé em terra firme. Andei quase um quartode légua sem avistar casa alguma, nem encontrarvestígios   de   habitantes,   embora   esse   país   fossemuito   povoado.   O   cansaço,   o   calor   e   o   meioquartilho  de  aguardente  que  bebera  ao  deixar   onavio,   tinham­me dado sono. Deitei­me na relva,que  era  de  uma  finura extrema,  e  pouco  depoisdormia profundamente. Dormi durante nove horasseguidas.   Ao   cabo   desse   tempo,   acordei,   tenteilevantar­me, mas em vão o  fiz.  Vi­me deitado decostas, notando também que as pernas e os braçosestavam presos ao chão, assim como os cabelos.Cheguei   a   observar   que   muitos   cordõesdelgadíssimos me rodeavam o corpo, das axilas àscoxas. Só podia olhar para cima; o sol começava aaquecer e  a  sua  forte  claridade  feria­me a vista.Ouvi um confuso rumor em torno de mim, mas naposição em que me encontrava só podia olhar parao sol.  Em breve, porém, senti  mover­se qualquercoisa em cima da minha perna esquerda, coisa queme avançava suavemente sobre o peito, e me subiaquase   ao   queixo.   Qual   não   foi   o   meu   espantoquando   enxerguei   uma   figurinha   humana   quepouco mais teria de seis polegadas, empunhandoum arco e uma flecha, e com uma aljava às costas!Quase ao mesmo tempo os meus olhos viram maisuns   quarenta   da   mesma   espécie.   Desatei   derepente   a   soltar   gritos   tão   horríveis,   que   todosaqueles animálculos fugiram aterrorizados, e maistarde soube que alguns caíram de cima do meucorpo,   com   tal   precipitação,   que   ficaramgravemente feridos. Apesar disso, tornaram daí  apouco,   e   um   deles   teve   o   arrojo   de   chegar   tãoperto, que viu a minha cara; levantou as mãos e osolhos com ar de admiração,  e,  por  fim,  com vozesganiçada mas nítida, exclamou: Hekinah Degul,

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palavras   que   os   outros   repetiram   muitas   vezes,mas cujo sentido me não foi lícito desvendar.

Entretanto,   conservava­me   admirado,   inquieto,perturbado, e o leitor ponha­se no meu caso e vejase não era de fato uma situação crítica.

Por fim, forcejando em readquirir liberdade, tive asorte de arrancar do chão as estacas que prendiamà   terra   o   meu   braço   direito,   porque,soerguendo­me um pouco, dera por que me tinhampreso   e   cativo.  Ao  mesmo   tempo,   com um  forterepelão, que me causou extrema dor, alarguei umpouco os cordões que prendiam os meus cabelosdo lado direito, (cordões mais finos do que os meuspróprios  cabelos)  de  modo que  me encontrei   emcondições  de   dar  à   cabeça  um movimento  maislivre.

Então,  aqueles   insetos  humanos  puseram­se  emfuga,   soltando   agudíssimos   gritos.   Assim   quecessou aquele ruído, ouvi um deles exclamar: Fogofonac, e, em seguida, senti a mão cravada de maisde cem flechas, que me picavam como se fossemagulhas.  Deram depois nova descarga para o ar,assim como nós na Europa atiramos bombas,  e,ainda que não as visse, é  de supor que algumascaíssem   parabolicamente   sobre   o   meu   corpo   esobre minha cara, que eu diligenciava tapar com amão direita. Assim que terminou aquela granizadade flechas, tentei novamente libertar­me; mas umaoutra  descarga,  maior  do  que  a  primeira,   se   fezouvir,   enquanto   outros   tentavam   ferir­me   àslançadas;   por   felicidade,   trazia   vestida   umaimpenetrável roupa de pele de búfalo. Pensei que omelhor era conservar­me quieto e naquela posiçãoaté à noite; nesse instante, libertando o meu braço

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esquerdo,   poderia   pôr­me   completamente   emliberdade, e, com respeito aos habitantes, era comrazão   que  me   supunha  de  uma   força   igual   aosmais poderosos exércitos que viessem atacar­me,desde que seus componentes fossem do tamanhodaqueles que vira até  então. Outra, porém, era asorte que me aguardava.

Quando   me   viram   tranqüilo,   deixaram   de   meassediar com flechas; mas, pelo rumor que ouvi,compreendi   que   o   seu   número   aumentavaconsideravelmente   e,   perto   de   duas   toesas,defronte do meu ouvido esquerdo, senti um ruídodurante mais de uma hora como de pessoas quetrabalhavam. Por fim, voltando um pouco a cabeçapara   esse   lado,   tanto   quanto   mo   permitiam   asestacas e os cordões, vi um tablado erguido palmoe meio do chão, onde quatro desses homenzinhospoderiam   caber,   e   uma   escada   que   lhe   davaacesso; daí, um deles, que parecia ser pessoa deimportância, dirigiu­me um longo discurso, de quenão percebi palavra. Antes de principiar, exclamoutrês vezes: Langro Dehul san. Estas palavras foram,em seguida, repetidas e explicadas por sinais paraque   eu   as   compreendesse.   Depois,   cinqüentahomens   avançaram   e   cortaram   os   cordões   queseguravam a parte esquerda da minha cabeça, oque   deu   ensejo   a   que   eu   pudesse   movê­lalivremente   para  a   direita   e   observar   a   cara   e   ogesto daquele que falava. Pareceu­me ser de meiaidade e,  de estatura maior do que os três que oacompanhavam,   um   dos   quais,   que   tinha   oaspecto de pajem, lhe segurava a cauda da beca,enquanto os outros dois permaneciam de pé, aoslados, para o amparar. Pareceu­me bom orador econjecturei   que,   segundo   as   regras   da   arte,

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misturava   na   sua   arenga   períodos   cheios   deameaças   e   de   promessas.   Respondi   em   poucaspalavras, ou, melhor exprimindo, por um pequenonúmero   de   sinais,   mas   de   um   modo   cheio   desubmissão,   erguendo  a  mão   esquerda   e   os  doisolhos ao sol, como que a tomá­lo por testemunhade que morria de  fome,  pois  já  não comia haviaalgum   tempo.   O   meu   apetite   era,   de   fato,   tãoviolento, que não pude deixar de fazer ver a minhaimpaciência,   (talvez   contra   os   preceitos   dacivilidade), levando várias vezes a mão à boca paradar a perceber que carecia de alimento.

O Hurgo,   (é  assim que entre  eles  se  designa umfidalgo,  como mais tarde soube),  percebeu­me àsmil  maravilhas.  Desceu do   tablado  e  deu ordempara que encostassem a mim muitas escadas demão  pelas  quais   subiram mais  de  cem homens,que se dirigiram para a minha boca, carregados decestos cheios de viandas. Notei que havia carnesde diversos  animais,  mas não pude distingui­laspelo   sabor.   Eram   quartos   parecidos   com   os   decarneiro,   e   magnificamente   preparados,   masmenores do que as asas de uma cotovia; enguli­osaos dois e aos três com seis pães. Forneceram­metudo isso, dando grandes mostras de assombro ede   admiração   da   minha   estatura   e   do   meuprodigioso   apetite.   Fazendo­lhes   um   outro   sinalpara lhes dar a entender que me faltava de beber,conjecturaram, pela maneira por que comia,  queuma   pequena   quantidade   de   bebida   me   nãosatisfaria;   e,   como   eram   um   povo   interessante,levantaram com muita agilidade um dos maiorestonéis de vinho que possuíam, vieram­no rolandoaté a minha mão e destaparam­no. Bebi­o de umtrago e com grande prazer.  Trouxeram­me outro,

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que   levou   o   mesmo   caminho,   e   fiz­lhes   váriossinais para que me trouxessem mais alguns.

Depois de me haverem visto praticar todas aquelasmaravilhas, soltaram gritos de alegria e desatarama dançar, repetindo muitas vezes, como a princípiohaviam   feito: Hekinah   Degul.   Pouco   depois   ouviuma   aclamação   geral   com   freqüentes   repetiçõesdas   palavras: Peplom   Selan, e   senti   ao   ladoesquerdo muita gente alargando­me os cordões, detal  maneira  que  me  encontrei   em estado  de  mevoltar  e  de  satisfazer  o  desejo  de  urinar,   funçãoque  efetuei   com grande  admiração  do  povo  que,adivinhando o que ia fazer, fugiu impetuosamentepara a direita e para a esquerda, a fim de evitar odilúvio.   Algum   tempo   antes   tinham­mecaridosamente untado o rosto e as mãos com umapomada de aroma agradável que, em pouquíssimotempo, me curou das picadas das  flechas.  Estascircunstâncias,   reunidas   às   bebidas   que   mederam,   predispuseram­me   para   dormir;   o   sonodurou   oito   horas   seguidas,   em   virtude   doimperador   ter   ordenado   aos   médicos   que   medeitassem drogas soporíficas no vinho.

Enquanto dormia, o imperador de Lilipute, (tal erao nome desse país), ordenou que me conduzissemao   lugar   em   que   se   encontrava.   Esta   resoluçãoparecerá talvez arrojada e perigosa, e estou certode que soberano algum da Europa a levaria a bem;no entanto, a meu ver, era um desejo igualmenteprudente e perigoso, porque, no caso em que essepovo tivesse tentado matar­me com as suas lançase   as   suas   flechas   enquanto   dormia,   seriaimediatamente despertado à primeira sensação dedor, o que excitaria a minha cólera e aumentaria

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as minhas forças a tal ponto, que me encontrariaem estado de quebrar o resto dos cordões e, apósisso, como me não pudessem resistir, seriam todosesmagados por mim.

Fizeram trabalhar à pressa cinco mil carpinteiros eengenheiros   para   construir   um   carro:   era   umaviatura com o tamanho de três polegadas, com setepés de comprimento por quatro de largura, e comvinte   e   duas   rodas.   Assim   que   o   deram   porconcluído,   conduziram­no   ao   lugar   em   que   meencontrava. A principal dificuldade, porém, estavaem levantar­me e colocar­me naquele carro. Comesse   fito,   fincaram no   chão  oitenta   varas,   tendocada uma dois pés de altura; cada uma delas eramunida,   na   ponta,   de   uma   roldana   pela   qualpassavam cordas muito fortes, da grossura de umaguita, com ganchos que iam prender­se em cintosque   os   operários   haviam   colocado   em   volta   dopescoço, das mãos, das pernas e de todo o corpo.Novecentos   homens   dos   mais   robustos   foramempregados  a  puxar  as  cordas  por  meio  de  umelevado número de polés ligadas às varas, e, poressa forma, em menos de três horas, fui levantado,colocado e   ligado  à  máquina.  Sei   tudo   isso  pelanarração que depois me fizeram, porque, enquantodurou aquela manobra, dormia eu profundamente.Quinhentos cavalos, dos maiores que existiam nascavalariças imperiais, tendo cada um a altura dequatro polegadas e meia, foram atrelados ao carro,e arrastaram­no na direção da capital, que ficava àdistância de um quarto de légua.

Tinha   já   quatro   horas   de   caminho,   quando   fuisubitamente   acordado   por   um   acidente   deverasridículo.   Os   condutores   haviam   parado   para

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arranjar qualquer coisa, e uns três habitantes dopaís   tiveram   a   curiosidade   de   examinar   o   meurosto   enquanto   dormia;   e,   avançandocautelosamente   até   a   minha   cara,   um   deles,capitão   dos   guardas,   enfiou   a   aguda   ponta   daalabarda na minha venta esquerda, o que me fezcomichão   no   nariz,   acordou­me   e   obrigou­me   aespirrar três vezes.  Caminhámos durante o restodo   dia   e   acampámos   à   noite,   com   quinhentosguardas, metade com archotes e metade com arcose   flechas,   prontos   a   descarregá­las   ao   primeiromovimento que eu fizesse.

No dia seguinte, ao romper do sol, continuámos anossa rota e chegámos ao meio­dia a cem toesasdas portas da cidade. O imperador e toda a cortesaíram   para   nos   ver;   mas   os   oficiais   nãoconsentiram que Sua Majestade arriscasse a suapessoa em subir para o meu corpo, como muitosoutros o haviam feito.

No sítio  em que o carro parou,  havia um antigotemplo, tido como o maior de todo o império, que,segundo   o   preconceito   daquela   gente,   foraprofanado com um crime de homicídio, e, por essemotivo,  era empregado para diversos usos. Ficouresolvido   que   eu   ficaria   alojado   naquele   vastoedifício.  A  porta  grande,  que  dava  para  o  norte,tinha   aproximadamente   seis   palmos  de   altura   equase   três   de   largura;   aos   lados,   havia   umapequena janela de seis polegadas. À da esquerda,os serralheiros do imperador aplicaram noventa euma correntes, parecidas com as que as damas daEuropa costumam usar nos relógios, e quase tãogrossas;   e   com   trinta   e   seis   cadeados   meprenderam a perna esquerda. Em frente do templo,

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do outro lado da estrada, à distância de vinte pés,havia  uma torre  que devia   ter  uns cinco pés  dealtura;   era   aí   que   o   soberano   devia   subir   commuitos dos principais senhores da sua corte para,comodamente, ver­me à sua vontade. Conta­se quemais   de   cem   mil   habitantes   saíram   da   cidade,atraídos   pela   curiosidade,   e,   apesar   dos   meusguardas, não foram menos de dez mil, suponho eu,os que, por diversas vezes, subiriam com escadasacima   do   meu   corpo,   se   se   não   publicasse   umdecreto do conselho do Estado proibindo que talcoisa se fizesse.

Não é possível imaginar­se o barulho e o espantodo povo, quando me viu de pé  e a caminhar: ascorrentes que me prendiam o pé esquerdo tinhampouco   mais   ou   menos   seis   pés   de   comprido,   edavam­me  liberdade de  ir  e  vir,  descrevendo umsemicírculo.

CAPÍTULO II

O imperador de Lilipute, acompanhado de muitos dos seus cortesãos, veiovisitar o autor na sua prisão — Descrição da personalidade e do trajo de Sua

Majestade — Sábios nomeados para ensinar o idioma do país ao autor —São­lhe concedidas algumas graças em virtude da sua conduta pacífica — As

algibeiras são­lhe revistadas.

A primeira vez que o imperador, a cavalo, me veiovisitar, ia­lhe sendo funesta, porque, ao ver­me, ocavalo,   espantado,   encabritou­se;   o   príncipe,porém,   que   é   um   excelente   cavaleiro,   firmou­sebem nos estribos até que a sua comitiva correu elhe   segurou   o   freio   ao   cavalo.   Sua   Majestade,depois   de   pôr   o   pé   em   terra,   examinou­me   por

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todos   os   lados   com   grande   admiração,mantendo­se sempre, contudo, por precaução, forado alcance da minha corrente.

A   imperatriz,   as   princesas   e   os   príncipes   desangue,   acompanhados   de   muitas   damas,sentaram­se   a   alguma  distância   em  cadeiras   debraços.

O imperador é o homem mais alto de toda a suacorte, o que o faz temido de todos os que o olham.As feições do seu rosto são fortes e másculas; lábioaustríaco,   nariz   aquilino   e   tez   esverdeada;   é   decorpo   bem   feito,   membros   proporcionados;   temgraça e majestade em todos os seus movimentos.Tinha  já  passado a   flor  da sua mocidade,   tendovinte e oito anos e três quartos, e já reinara sete,aproximadamente.   Para   o   contemplar   mais   àminha vontade, mantinha­me deitado de lado, demaneira que o meu rosto estivesse paralelo ao seu,enquanto ele se conservava a toesa e meia longe demim.  Depois  disso,   tive­o  muitas  vezes  à  minhamão   e   por   essa   circunstância   não   é   fácilenganar­me   em   descrevê­lo.   O   seu   trajo   erasimples,   meio   europeu,   meio   asiático;   mascingia­lhe   a   cabeça   um   ligeiro   elmo   de   ouro,ornado   de   jóias   e   de   um   magnífico   penacho.Empunhava a  espada para  se  defender,  caso euquebrasse as minhas cadeias.  Esta espada deviater   o   tamanho   de   três   polegadas;   o   punho   e   abainha eram de ouro e cheios de diamantes. A suavoz era áspera, mas clara e distinta, e podia ouvi­loà   vontade,   embora   me   conservasse   de   pé.   Asdamas e os cortesãos vinham todos soberbamentetrajados, de modo que o lugar ocupado por toda acorte  parecia  a  meus  olhos  como que  uma bela

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saia estendida no chão e bordada com figuras deouro e prata. Sua Majestade imperial concedeu­mea honra de falar comigo muitas vezes: e eu semprelhe respondi, sem que nos entendêssemos um aooutro. Ao cabo de duas horas, a corte retirou­se edeixaram­me   numerosa   guarda   para   impedir   aimpertinência   e,   quiçá,   a   maldade   da   populaça,que sentia grande impaciência em amontoar­se emtorno   de   mim,   para   me   ver   de   perto.   Algunstiveram o arrojo e a temeridade de me alvejar comflechas,   uma   das   quais   me   ia   tirando   o   olhoesquerdo.  O coronel,  porém, mandou prender  osseis   mais   teimosos   desta   canalha   e   não   julgoupena mais conveniente para aquele delito do queentregá­los   às   minhas   mãos   bem   amarrados   etolhidos.   Tomei­os,   pois,   com   a   mão   direita   emeti­os todos cinco na algibeira do gibão; quantoao sexto, fingi querer enguli­lo vivo. O pobre diabosoltava   gritos  horríveis,   e   o   coronel,   juntamentecom   alguns   oficiais,   estava   sobressaltado,principalmente quando viu que eu sacava de umcanivete.   Mas   depressa   lhe   fiz   cessar   todo   oespanto porque, com uma calma suave e humana,cortei rapidamente as cordas que o prendiam e ocoloquei no chão com a máxima delicadeza, e elelogo fugiu em desabalada carreira. Tratei os outrospela mesma forma, tirando­os da algibeira, um porum.  Notei,   com satisfação,   que   os   soldados   e   opovo tinham ficado muito comovidos com aquelegesto de humanidade, que foi relatado à corte deum modo vantajoso para mim e que me deu honra.

A   notícia   da   chegada   de   um   homemprodigiosamente   grande   espalhara­se   em   todo   oimpério   e   atraíra   grande   número   de   pessoasociosas   e   curiosas,   de   maneira   que   as   aldeias

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ficaram quase despovoadas e o cultivo das terrasficaria   abandonado,   o   que   seria   uma   enormecalamidade para o país, se Sua Majestade imperialnão providenciasse com a publicação de decretos.Decretou,   pois,   que   todos   aqueles   que   já   metinham visto, voltassem imediatamente para suascasas e não tornassem a aparecer, senão medianteuma  licença   especial.  Essa  medida  deu   imensoslucros aos empregados das secretarias do Estado.

Entretanto, o imperador convocara diversas vezesos conselhos,  para deliberar sobre o partido queera preciso tomar a respeito de mim. Soube maistarde   que   a   corte   se   tinha   visto   em   sériosembaraços.   Receavam   que   eu   quebrasse   ascorrentes e me pusesse em liberdade; diziam que omeu   sustento,   porque   causava   uma   enormedespesa,   viria   a   produzir   carestia   e   escassez   devíveres;   por   vezes   eram   de   opinião   que   medeixassem   morrer   de   fome   ou   então   que   meatravessassem   com   flechas   envenenadas;refletiram,   porém,   que   a   infecção   de   um   corpocomo  o  meu  poderia  produzir  uma  epidemia  nacapital   e   em   todo   o   império.   Enquantodeliberavam,   muitos   oficiais   do   exércitodirigiram­se para a porta da antecâmara, onde sereunia   o   conselho,   e   logo   que   dois   foramintroduzidos, deram conta do meu comportamentocom   respeito   aos   seis   criminosos,   a   que   já   mereferi, o que causou uma impressão tão favorávelno espírito de Sua Majestade e de todo o conselho,que uma comissão imperial foi logo enviada paraobrigar   todas   as   aldeias,   a   quatrocentas   ecinqüenta toesas em redor da cidade, a entregartodas as manhãs seis  bois,  quarenta carneiros eoutros   víveres   para   meu   sustento,   com   uma

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quantidade proporcional de pão e de vinho, alémde   outras   bebidas.   Esses   gêneros   seriam   pagoscom   letras   do   tesouro,   que   Sua   Majestademandava entregar. Este príncipe tinha apenas derendimento o  das  suas   terras,   e  só   em ocasiõesmuito   especiais   é   que   criava   impostos   aos   seussúditos,   que   eram   obrigados   a   acompanhá­lo   àguerra à sua própria custa.

Foram   designadas   seiscentas   pessoas   para   meservirem,   as   quais   tiveram   uma   gratificaçãoespecial   para   seu   passadio   e   tendas   muitocômodas,   levantadas   aos   lados   da   minha   portapara residirem.

Também foi  ordenado que  trezentos  alfaiates  mefizessem   uma   roupa   à   moda   do   país;   que   seishomens de  letras,  dos mais notáveis  do  império,fossem   encarregados   de   me   ensinar   a   língua   e,enfim,   que   os   cavalos   do   imperador   e   os   danobreza, fariam muitas vezes exercícios na minhapresença para se  costumarem à  minha estatura.Todas   estas   ordens   foram   pontualmentecumpridas.   Fiz   grandes   progressos   noconhecimento da língua de Lilipute. Entrementes,o imperador deu­me a honra de freqüentes visitase também quis auxiliar os meus professores a meinstruírem.

As primeiras palavras que aprendi foram para lhedar a perceber que tinha grande vontade de queme concedesse liberdade, o que todos os dias lherepetia   de   joelhos.   A   sua   resposta   foi   que   erapreciso   esperar   por   algum   tempo;   que   era   umassunto que não podia resolver sem ouvir a opiniãodo   seu   conselho   e   que,   primeiramente,   eranecessário   que   eu   prometesse,   sob   juramento,

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observar uma inviolável paz para com ele e com osseus   súditos,   e   que   enquanto   esperasse,   seriatratado   com   toda   a   delicadeza   possível.Aconselhou­me a alcançar, pela minha paciência epelo meu bom comportamento, a sua estima e a doseu povo. Pediu­me que lhe não ficasse querendomal,   se   ordenasse   a   certos   oficiais   que   merevistassem,   porque   era   muito   natural   que   eutrouxesse comigo armas perigosas e prejudiciais àsegurança   do   Estado.   Respondi­lhe   que   estavapronto   a   despir   a   roupa   e   a   despejar   todas   asalgibeiras   na   sua   presença.   Observou­me   que,conforme às leis do império, era preciso que fosserevistado   por   dois   comissários;   que   sabia  muitobem que tal  ato não se devia executar sem meuconsentimento,   porém   que   formava   tão   bomconceito   da   minha   generosidade   e   da   minharetidão,   que   confiaria   sem   receio   aquelesindivíduos nas minhas mãos; que tudo o que se metirasse,   me   seria   restituído   fielmente,   quandosaísse do país, ou que seria indenizado segundo ovalor que eu próprio desse.

Quando   vieram   os   dois   comissários   para   merevistar, tomei esses dois cavalheiros nas minhasmãos.   Meti­os   primeiramente   nas   algibeiras   dogibão,   e,   depois,   em   todas   as   outras.   Vinhammunidos de penas, tinta e papel, e de tudo o queviram, fizeram um minucioso inventário; e, assimque   concluíram,  pediram­me  que   os  pusesse  nochão para que fossem dar conta ao imperador doque haviam visto.

Este inventário era assim concebido:

“Em primeiro lugar, na algibeira direita do gibão dogrande Homem   Montanha (que   assim   traduzi   as

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palavras Quimbus   Flestrin),   após   uma   minuciosabusca, apenas encontrámos um pouco de fazendagrosseira, demasiado grande para servir de tapetena principal sala de recepção de Vossa Majestade.Na algibeira esquerda, achámos um grande cofrede  prata  com uma tampa do mesmo metal,  quenós, comissários, não pudemos levantar. Pedimosao   citado Homem   Montanha que   o   abrisse   e,entrando  um de  nós,   enterrou­se   em pó   até   aojoelho e  esteve a espirrar  durante duas horas,  eoutro, sete minutos. Na algibeira direita do colete,encontrámos um prodigioso maço com a grossuraaproximada   de   três   homens,   amarrado   com   umcabo   muito   forte,   de   substâncias   brancas   edelgadas,   pegadas   uma   às   outras,   com   grandesfiguras negras, que nos pareceram ser de escrita.Na  algibeira  direita,  havia  uma grande  máquinachata,  armada com dentes  muito  compridos  quepareciam a paliçada que há em volta do palácio deSua Majestade. Na algibeira grande do lado direitodo alçapão, (conforme interpretei a palavra ranfulo,pela qual queriam indicar os meus calções), vimosum grande pilar de ferro, oco, ligado a uma grossapeça de madeira, maior do que o pilar,  e de umlado desse  pilar  havia  outras  peças  de   ferro   emrelevo,   que   seguravam   uma   pedra   talhada   emcunho; não soubemos o que isso era, e na algibeiradireita havia ainda uma outra máquina do mesmogosto.

“Na   algibeirinha   do   lado   direito,   havia   muitasrodelas   de   metal   vermelho   e   branco   e   de   umagrossura diferente; algumas das rodelas brancas,que   nos   pareceram   ser   de   prata,   eram   de   taldiâmetro e peso, que eu e meu colega tivemos certadificuldade   em   levantá­las. Item,   dois   sabres   de

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algibeira,   cuja   lâmina   se   encaixava   em   umaranhura do punho e tinha um fio muito cortante;estavam   metidos   numa   grande   caixa   ou   estojo.Havia ainda duas algibeiras a revistar, que eramduas aberturas   talhadas no alto  doalçapão,  masmuito   juntas   em   virtude   do   seu   ventre,   que   ascomprimia. De fora do bolsinho direito pendia umagrande  corrente  de  prata,   com uma maravilhosamáquina na extremidade. Pedimos­lhe que tirassepara   fora   do   bolso   tudo   o   que   estava   preso   àcorrente,   e   pareceu­nos   ser   um   globo   parte   deprata   e   parte   de   metal   transparente.   Pelo   ladotransparente   vimos   certas   figuras   esquisitastraçadas   num   círculo;   julgámos   que   lhespoderíamos tocar, mas os dedos foram retidos poruma   substância   luminosa.   Aplicámos   essamáquina junto aos nossos ouvidos; fazia um ruídocontínuo, semelhante ao de um moinho d’água, econjecturamos   que,   ou   é   qualquer   animaldesconhecido, ou, então, a divindade que adora; noentanto,   inclinamo­nos   mais   para   esta   últimaopinião,   porque   nos   afirmou,   (se   nós   assim   ocompreendemos,   pois   se   exprimia   muitoimperfeitamente),   que   raramente   fazia   qualquercoisa sem que o consultasse; chamava­lhe o seuoráculo, e dizia que designava o tempo para todasas ações da sua vida.

“Do   bolso   esquerdo,   tirou   uma   rede   que   quasepodia servir para pescador, porém que se abria efechava;   encontramos­lhe   dentro   muitas   rodelasmaciças   de   um   metal   amarelo;   se   são   de   ouroverdadeiro, devem ter incalculável valor.

“Assim,   tendo,  para  cumprimento  das  ordens  deVossa Majestade, revistado cuidadosamente todas

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as suas algibeiras, notámos um cinto em volta docorpo,   fabricado   com   a   pele   de   algum   animalprodigioso, do qual pendia, do lado esquerdo, umaespada do tamanho de seis homens; enquanto dolado  direito,  havia  uma  bolsa   repartida   em doiscompartimentos,   podendo   cada   um   conter   trêssúditos   de   Vossa   Majestade.   Num   dessescompartimentos,   havia   globos   ou   balas   de   umoutro metal muito pesado, quase do tamanho danossa cabeça e que exigia uma forte mão para aslevantar;  o outro continha uma porção de certosgrãos negros, mas relativamente pequenos e muitoleves, porque pudemos conservar na palma da mãomais de cinqüenta.

“Tal   é   o   inventário   exato   de   tudo   o   queencontrámos no corpo do Homem Montanha,  quenos   recebeu   magnificamente   e   com   o   respeitodevido à incumbência de Vossa Majestade.

“Assinado e selado aos quatro dias da nonagésimalua do feliz império de Vossa Majestade.

Flessen, Frelock, Marsi, Frelock”

Assim que o inventário acima foi lido na presençado   imperador,   este   ordenou­me,   em   termoscorteses, que lhe entregasse todas aquelas coisasuma a  uma.  Primeiro,  pediu  o  meu sabre:  deraordem   a   três   mil   homens   das   suas   melhorestropas, que o acompanhavam, que o rodeassem acerta distância com arcos e flechas; eu, porém, nãodei   por   esse   movimento   porque   os   meus   olhosestavam fixos em Sua Majestade. Pediu­me, pois,que desembainhasse o meu sabre, que, embora umpouco enferrujado pela água do mar, estava muito

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brilhante. Desembainhei­o, e, em seguida, todas astropas soltaram grandes gritos. Ordenou­me que oembainhasse   e   que   o   lançasse   para   o   chão   tãosuavemente   quanto   pudesse,   a   seis   pés   dedistância,   pouco   mais   ou   menos,   das   minhascorrentes. A segunda coisa que me pediu foram ascolunas   de   ferro   ocas,   referindo­se   às   minhaspistolas;   apresentei­as   e,   por   sua   ordem,expliquei­lhe,   conforme   pude,   o   uso,   e,carregando­as   só   de   pólvora,   avisei   o   imperadorpara não se assustar, e disparei­as para o ar. Oassombro,   por   esta   ocasião,   foi   maior   do   quequando foi visto o sabre; caíram todos de costascomo   que   fulminados   por   um   raio,   e   até   oimperador, que era valente, só pôde refazer­se dosusto passado certo tempo. Entreguei­lhe as duaspistolas pelo mesmo processo que já tinha usadocom   o   sabre,   com   os   sacos   de   chumbo   e   depólvora, prevenindo­o de que não aproximasse dolume o saco de pólvora, se não queria que o seupalácio imperial fosse pelos ares, aviso que deveraso surpreendeu.

Entreguei­lhe   também   o   meu   relógio,   que   lhedespertou grande curiosidade, e ordenou que doisdos seus maiores guardas o levassem aos ombros,enfiado   numa   vara,   como   costumam   fazer   oscarregadores em Inglaterra aos barris de cerveja.Estava admirado com o contínuo ruído que fazia ecom   o   movimento   do   ponteiro   que   marcava   osminutos; podia, muito à vontade, segui­lo com osolhos, pois que aquele povo tinha uma vista maispenetrante   do   que   a   nossa.   Pediu   aos   seusdoutores que lhe dissessem o que pensavam a esserespeito,   o   que   deu   lugar   a   respostas   muitodesencontradas, como o leitor facilmente calculará.

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Depois entreguei as moedas de cobre e de prata, abolsa, com umas nove grandes moedas de ouro ealgumas mais pequenas; o pente, a caixa de prata,de rapé, o lenço e o jornal. O sabre, as pistolas, ossacos de pólvora e de chumbo foram transportadospara o arsenal de Sua Majestade; o resto, porém,foi deixado ficar no sítio em que me encontrava.

Numa   bolsa   à   parte,   e   que   não   foi   revistada,estavam os óculos, de que às vezes me servia, porter a vista fraca, um telescópio, com muitas outrasbagatelas,   que   supus   não   serem   de   grandeimportância,   pelo   que   deixei   de   mostrar   aoscomissários,   temendo   que,   apreendendo­mas,   asperdessem ou estragassem.

CAPÍTULO III

O autor diverte o imperador e os grandes de um e de outro sexo de formadeveras extraordinária — Descrição das diversões da corte de Lilipute — O

autor é posto em liberdade, mediante certas condições.

O   imperador   quis   um   dia   dar­me   espetaculosadiversão, em que aquele povo vai além de todas asoutras nações que visitei,  quer na destreza, querna   magnificência,   mas   nada   me   divertiu   tantocomo ver os dançarinos de corda fazerem volteiossobre finíssimo fio, com o comprimento de dois pése onze polegadas.

As pessoas que executam este trabalho são as queaspiram a grandes empregos e se supõem dignosde se tornarem favoritos da corte; com esse intuitose   entregam   desde   tenra   idade   a   esses   nobresexercícios,   que   convêm   principalmente   aos

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indivíduos   de   elevada   categoria.   Quando   umimportante cargo está vago, ou pela morte do que odesempenhava ou por ter caído no desagrado doimperador,   (o   que   acontece   freqüentemente),apresentam,   uns   seis   pretendentes,   umrequerimento  para   lhes  ser  concedida  licença  dedivertirem Sua Majestade e a corte com uma dançana corda, e aquele que saltar a maior altura semcair,  é  quem conquista o  lugar.  Acontece muitasvezes   que   se   ordena   também   aos   grandesmagistrados   que   dancem,   para   provarem   a   suahabilidade e para darem a entender ao imperadorque   não   perderam   as   suas   faculdades. Flimnap,tesoureiro­mor   do   império,   passa   por   ter   ahabilidade   de   dar   uma   cabriola   na   corda,   umapolegada mais alto do que qualquer outro grandeda corte; vi­o por várias vezes dar o salto mortal, (aque   damos   o   nome   de somerset),   em   umaminúscula tábua presa à corda e que não tem maisgrossura do que uma guia ordinária.

Essas diversões dão muitas vezes lugar a funestosdesastres,   a  maioria   dos   quais   é   registrada  nosarquivos   imperiais.   Eu   próprio   vi   uns   trêspretendentes ficarem aleijados; o perigo, porém, émuito   maior,   quando   os   próprios   ministrosrecebem   ordem   para   mostrar   a   sua   habilidade,porque,   fazendo   esforços   extraordinários,   paraserem superiores  a  si  mesmos e  para  colocaremmal   os   outros,   dão   quase   sempre   perigosasquedas.

Asseguraram­me   que,   um   ano   antes   da   minhachegada, Flimnap teria   infalivelmente   quebrado   acabeça,   se   um   dos   coxins   do   imperador   o   nãotivesse salvado.

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Há um outro divertimento; mas esse é apenas parao imperador, a imperatriz e o primeiro ministro. Oimperador coloca em cima de uma mesa três fiosde   seda,   separados   uns   dos   outros,   com   ocomprimento de seis  polegadas;  um é  carmesim;outro, amarelo; e o terceiro, branco. Os citados fiosconstituem   prêmios   para   aqueles   a   quem   oimperador   quer   distinguir   com   uma   singulardemonstração de sua magnificência.  A cerimôniarealiza­se   na   grande   sala   de   recepção   de   SuaMajestade, onde os concorrentes são obrigados adar uma prova do seu engenho;  e  de ordem tal,que nada de semelhante eu vi em qualquer outropaís do velho ou do novo mundo.

O   imperador   segura   um   bastão,   com   as   duasextremidades voltadas para o horizonte, enquantoos   concorrentes,   adiantando­se   sucessivamente,saltam   por   cima   do   bastão.   Algumas   vezes,   oimperador segura uma ponta e o primeiro ministrooutra; e outras vezes só o primeiro ministro é quemsegura.

Aquele que melhor realiza o salto,  demonstrandoagilidade   e   leveza,   é   recompensado   com   a   sedacarmesim;   a   amarela   é   dada   ao   segundo,   e   abranca,   ao   terceiro.   Estes   fios,   de   que   fazemtalabarte,   servem­lhes   depois   de   ornamento   e,distinguindo­os   do   vulgo,   dão­lhes   grandeprosápia.

Tendo   um   dia   o   imperador   dado   ordem   a   umaparte do seu exército,   instalado na capital  e nosarredores, para estar pronta à  primeira voz, quisdivertir­se   de   uma   forma   muito   singular.Ordenou­me que me conservasse de pé como umcolosso, com os dois pés distanciados um do outro,

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quanto possível, porém sem que essa posição meincomodasse; depois mandou ao seu general, velhocapitão muito experimentado, que dispusesse emlinha de batalha as tropas e que as fizesse passarem   revista   pelo   meio   das   minhas   pernas:   ainfantaria a vinte e quatro de frente, a cavalaria adezesseis,   tambores   a   rufar,   bandeirasdesfraldadas e lanças em continência. O corpo doexército era constituído por três homens de pé  emil de cavalo. Sua Majestade fez saber a todos osseus   soldados,   sob   pena   de   morte,   queobservassem,   com   respeito   a   mim,   durante   amarcha, o máximo rigor da ordenança, o que, noentanto,   não   impediu   que   alguns   oficiaiserguessem   a   cabeça,   olhando­me   quandopassavam   por   debaixo.   E,   para   confessar   averdade, os meus calções estavam em tal estado,que lhes dei razão para desatarem a rir.

Tinha apresentado ou enviado tantos memoriais erequerimentos  para  a  minha   liberdade,  que,  porfim,   Sua   Majestade   expôs   o   assunto,primeiramente à mesa do desembargo e depois aoconselho  do  Estado,  onde  houve  objeção  apenaspor parte do ministro Skyresh Bolgolam, que, semrazão alguma, se declarou contra mim; todo o restodo   conselho,   porém,   foi­me   favorável,   e   oimperador apoiou esta opinião. O citado ministro,que era galbet, como quem diz almirante, mereceraa confiança do seu amo por ser hábil nos negóciospúblicos,  mas era de  índole  áspera e excêntrica.Conseguiu   que   os   artigos   respeitantes   àscondições,  em que devia ser posto em liberdade,seriam   redigidos   por   ele.   Esses   artigos   foramtrazidos   pessoalmente   por Skyresh   Bolgolam,acompanhado de dois subsecretários e de muitas

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pessoas   de   distinção.   Disseram­me   que   mecomprometesse,   sob   juramento,   a   observá­los,juramento feito primeiro à moda do meu país e, emseguida, à maneira decretada pelas suas leis, queconsistia em conservar o artelho do meu pé direitona mão esquerda, em pôr o dedo grande da mãodireita no alto da cabeça e o polegar na ponta daorelha direita. Como, porém, há talvez curiosidadeem conhecer o estilo daquela carta e em saber osartigos preliminares da minha libertação, traduzo,aqui, palavra por palavra, todo o documento.

“GOLBASTO   MOMAREN   EULAMÉ   GURDILOSHEFIN   MULLY   ULLY   GUÉ,   mui   poderosoimperador   de   Lilipute,   as   delícias   e   o   terror   douniverso,   cujos   estados   abrangem   cincomil blustrugs (ou   sejam,   aproximadamente,   seisléguas em redor) até os confins do globo, soberanode todos os soberanos, mais alto do que os filhosdos   homens,   cujos   pés   oprimem   a   terra   até   ocentro, cuja cabeça chega ao sol, cujo relance deolhos   faz   tremer   os   joelhos   dos   potentados,carinhoso   como   a   primavera,   agradável   como   overão, abundante como o outono, terrível como oinverno, a todos os nossos fiéis e amados súditos,saúde. Sua Majestade altíssima propõe ao HomemMontanha os   seguintes   artigos,   dos   quais,   comopreliminar, será obrigado a fazer a ratificação porjuramento solene:

I. O Homem Montanha não sairá dos nossos vastosEstados   sem   nossa   permissão   escrita   eautenticada com o nosso selo grande.

II. Não terá a liberdade de entrar na nossa capitalsem   nossa   ordem   expressa,   a   fim   de   que   oshabitantes sejam avisados duas horas antes para

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permanecerem encerrados em suas casas.

III.  O   referido Homem Montanha limitará   os   seuspasseios   às  nossas   estradas  principais,   evitandopassear ou deitar­se em algum prado ou seara.

IV.   Passeando   pelas   aludidas   estradas,   terá   omáximo cuidado possível em não pisar o corpo dealgum   dos   nossos   fiéis   súditos,   nem   os   seuscavalos ou carruagens e não agarrará nenhum dosnossos súditos, sem que ele o consinta.

V.  Se   for  necessário   que  algum dos   correios   dogabinete   faça   qualquer   jornada   extraordinária,o Homem Montanha é obrigado a levar na algibeirao mencionado correio durante seis dias, uma vezem   todas   as   luas,   e   trazendo­o   de   novo,   são   esalvo,   à   nossa   presença   imperial,   se   tal   lhe   forrequerido.

VI. Será o nosso aliado contra os nossos inimigosda   ilha  de  Blefuscu  e   fará   todo  o  possível  parafazer   submergir  a  esquadra  que  eles  atualmentepreparam contra o nosso território.

VII.   O   dito Homem   Montanha,   às   horas   dedescanso,   prestará   o   seu   auxílio   aos   nossosoperários, ajudando­os a carregar grandes blocosde pedra para se concluírem os muros do nossogrande parque e outras construções imperiais.

VIII.   Depois   de   ter   feito   o   solene   juramento   deobservar   estes   artigos,   acima   decretados,   odito Homem   Montanha terá   uma   ração   de   carnetodos os dias e bebida suficiente para sustento demil e oitocentos e setenta e quatro súditos nossos;terá entrada livre perante a nossa individualidadeimperial   e   outras   demonstrações   do   nosso

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valimento.

“Dado no nosso paço, em Belfaborac, aos doze diasda nonagésima primeira lua do nosso império”.

Prestei o juramento e assinei todos aqueles artigoscom grande alegria, embora alguns não fossem tãohonrosos   como   eu  desejava,  mas  nisso   via­se   oefeito da malícia do almirante Skyresh Bolgolam.

Tiraram­me as correntes e fui posto em liberdade.O imperador deu­me a honra de assistir à minhalibertação.   Agradeci   humildemente   a   mercê   queSua   Majestade   me   havia   feito,   prostrando­me   aseus pés, mas ele mandou que me levantasse, nostermos mais amáveis possíveis.

O leitor decerto pôde notar que, no último artigo doauto   da   minha   libertação,   o   imperador   secomprometera   a   dar­me   uma   ração   de   carne   ebebida, que poderia bastar para sustento de mil eoitocentos e setenta e quatro Liliputianos. Algumtempo  depois,  perguntando  a  um cortesão,  meuamigo particular, a razão que determinara aquelealimento,   respondeu­me   que   os   matemáticos   deSua Majestade,   tomando  a  altura  do  meu corpopor meio de um quadrante e calculando a minhagrossura,  e,  achando­a,  em relação à   sua,  comomil e oitocentos e setenta e quatro estão para um,inferiram da homogeneidade do seu corpo, que eudevia ter um apetite mil e oitocentas e setenta equatro vezes maior do que o deles.

Por esta exposição pode o leitor avaliar o notávelsenso daquele  povo e  a  economia sábia,  exata eperspicaz do imperador.

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CAPÍTULO IV

Descrição de Mildeno, capital de Lilipute, e do palácio do imperador —Conversa entre o autor e um secretário de Estado relativa aos negócios do

império — Oferecimento que o autor fez ao imperador de servir nas grandesguerras.

O primeiro requerimento que apresentei, depois deter   alcançado   a  minha   liberdade,   foi   para   obterlicença  de   visitar  Mildeno,   capital   do   império;   oimperador   deferiu­o,   recomendando­me   que   nãocausasse   dano   algum   aos   habitantes   nem   tãopouco às moradias. O povo foi avisado, por umaproclamação,   do   desejo,   de   que   eu   estavapossuído, de visitar a cidade.

A muralha que a circundava era da altura de doispés e meio e da espessura de oito polegadas, pelomenos; de maneira que um carro podia andar porcima e  dar a volta  à  cidade com segurança;  eraflanqueada de fortes torres distanciadas umas dasoutras dez pés. Passei por cima da porta ocidentale   caminhei   vagarosamente  e  de   lado  pelas  duasruas principais,   levando apenas o  colete  vestido,receando   que   as   abas   do   gibão   fizessem   algumestrago nos telhados e beirais das casas. Ia com omáximo cuidado, para que não acontecesse pisaralgumas pessoas que se encontravam pelas ruas,apesar das claras ordens expressas a toda a gente,para   que   se   fechasse   em   casa   enquanto   euandasse   de   passeio.   Os   balcões,   as   janelas   dosprimeiros,   segundos   e   terceiros   andares,   as   daságuas­furtadas ou trapeiras, e os próprios beiraisestavam   tão   apinhados   de   espectadores,   que   vilogo ser  enorme a população.  Esta cidade  formauma espécie de quadrilátero, tendo cada lanço de

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muralha   quinhentos   pés   de   comprido.   As   duasruas  maiores   têm cinco  pés  de   largura;  as   ruaspequenas, onde me não foi possível entrar, têm alargura de doze a dezoito polegadas. A cidade podecomportar   quinhentas   mil   almas.   As   casas   têmtrês ou quatro andares. As lojas e os mercados sãobem sortidos. Em outros tempos, havia boa ópera eexcelente comédia; como, porém, a liberalidade dopríncipe não abrangesse os atores, decaíram.

O   palácio   do   imperador,   edificado   no   centro   dacidade,   onde   as   duas   principais   ruas   seencontram, é rodeado de uma elevada muralha devinte   e   três   polegadas   que   está   vinte   pésdistanciada do edifício.

Sua Majestade dera­me licença para eu transporde uma pernada aquela muralha, a fim de ver oseu palácio por todos os lados. O átrio exterior éum quadrado de quarenta pés e compreende doisoutros átrios.

É no mais interior que ficam os aposentos de SuaMajestade, que eu tinha grande desejo de ver. Issoera   difícil   tarefa,   visto   como   as   portas   maiorestinham apenas dezoito polegadas de alto por setede largo. Demais, as construções do átrio exteriorelevavam­se   a   cinco   pés   do   terreno   etornava­se­me   impossível   dar   uma   pernada   porcima   delas,   sem   risco   de   quebrar   a   lousa   dostelhados,   enquanto   os   muros   me   não   dessemcuidado  por   serem solidamente   construídos   compedras   de   quatro   polegadas   de   espessura.   Oimperador,   entretanto,   tinha   grande   vontade   deque eu visse a magnificência do seu palácio. Só,porém, ao cabo de três dias, é que me encontrei emestado de satisfazê­lo, depois de haver cortado com

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o meu canivete  algumas das maiores árvores  doparque   imperial,   afastado   da   cidade   cinqüentatoesas  aproximadamente.  Dessas árvores  fiz  doistamboretes, com três pés de altura cada um e tãofortes que pudessem aguentar­me o peso do corpo.Sendo a população novamente prevenida, tornei aatravessar   a   cidade   e   dirigi­me   para   o   palácio,levando na mão os tamboretes. Quando cheguei aum   dos   lados   do   átrio   exterior,   subi   para   umtamborete e segurei o outro. Passei este por cimados telhados e coloquei­o delicadamente no chão,no espaço que havia entre o primeiro e o segundoátrio,  que tinha oito pés de  largura. Em seguidapassei   muito   comodamente   por   cima   dasconstruções,   servindo­me   dos   tamboretes   e,quando me encontrei do lado de dentro, tirei comum gancho o tamborete que ficara do lado oposto.Deste   modo,   consegui   chegar   até   o   átrio   maisinterior,  onde,  deitando­me de   lado,  meti  a   carapor   todas   as   janelas   do   primeiro   andar,   quetinham deixado ficar abertas de propósito, e vi osmais   magnificentes   aposentos   que   imaginar   sepossa.   Vi   também   a   imperatriz   e   as   jovensprincesas   nos   seus   quartos,   rodeadas   da   suacomitiva. Sua Alteza imperial dignou­se sorrir­megraciosamente e deu­me, pela janela, a mão paraeu beijar. Não pormenorizarei aqui as curiosidadesque se encerravam nesse palácio; reservo isso paraobra  de  maior   tomo  e  que   está   quase  pronta   aentrar   no   prelo,   contendo   uma   descrição   geraldesse império desde a sua fundação, a história dosseus   imperadores   durante  um  longo   número   deséculos,   observações   sobre   as   suas   guerras,política,   leis,   literatura   e   religião   do   país,   asplantas e os animais que aí se encontram, usos ecostumes   dos   habitantes,   com   muitos   outros

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assuntos   prodigiosamente   curiosos   eexcessivamente úteis. O meu fim agora é, apenas,referir   o   que   me   aconteceu   durante   umapermanência   de   quase   nove   meses   naquelemaravilhoso império.

Quinze   dias   depois   de   haver   recuperado   aliberdade, recebi a visita de Keldersal, secretário deEstado encarregado das missões particulares, queveio   apenas   acompanhado   de   um   criado.   Deuordem   para   que   o   coche   o   esperasse   a   certadistância e pediu­me que lhe concedesse uma horade audiência. Propus­lhe deitar­me no chão paraque pudesse ficar à altura dos meus ouvidos; ele,porém, preferiu que o tomasse na palma da mãodurante a conversa. Principiou por me felicitar pelaminha liberdade, dizendo que podia gabar­se de tercontribuído um pouco para tão feliz resultado. Emseguida acrescentou que, se não fora o  interesseque a corte tomara, não seria tão depressa que eua obteria, prosseguindo:

— Embora o nosso Estado pareça florescente aosolhos do estrangeiro,  o  que é  certo  é  que  temosdois   grandes   males   a   debelar:   de   dentro,   umapoderosa facção; de fora, a invasão de que estamosameaçados   por   um   formidável   inimigo.   Comrespeito ao primeiro,  preciso é  que saiba que hásetenta luas existem dois partidos contrários nesteimpério,   sob   os   nomesde Tramecksan eSlamecksan,   termos   derivadosde altos e baixos   tacões dos   seus   sapatos,   pelosquais   se   distinguem.   Não   falta   quem   seja   deopinião,   é   fato,   que   os   tacões   altos   são   maisconformes   à   nossa   antiga   constituição;   apesardisso Sua Majestade resolveu servir­se apenas dos

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tacões baixos na administração do governo e emtodos   os   cargos   que   dependem   da   coroa.   Podemesmo verificar que os tacões de Sua Majestadeimperial são, pelo menos, mais baixos um drurr doque os de qualquer outra pessoa da corte. (O drurréaproximadamente a décima quarta parte de umapolegada).   O   ódio   dos   dois   partidos   —continuou Keldersal — estão em tal grau, que nãocomem, não bebem juntos, nem se falam. Temosquase  que  a  certeza  de  que  os  Tramecksans  outacões altos são em maior número do que nós; aautoridade, porém, está  na nossa mão. Contudo,andamos suspeitosos de que sua alteza imperial, opresuntivo   herdeiro   da   coroa,   tem   algumainclinação   para   os   tacões   altos;   pelo   menostivemos ocasião de ver que um dos tacões é maisalto do que outro, o que o faz coxear um pouco.Ora, no meio destas dissensões intestinas, estamosameaçados de uma invasão pelo  lado da  ilha deBlefuscu, que é outro grande império do universo,quase   tão   grande   e   tão   poderoso   como   este,porque,   segundo   temos   ouvido   dizer,   há   outrosimpérios,   reinos  e  Estados no mundo,  habitadospor   criaturas   humanas   tão   grandes   e   tão   altascomo vós; os nossos filósofos, porém, põem suasdúvidas e preferem conjecturar que caístes da luaou de alguma estrela, porque o que é   fato é  quemeia   dúzia   de   mortais   do   vosso   tamanhoconsumiria em pouco tempo toda a fruta e todo ogado   dos   Estados   de   Sua   Majestade   imperial.Demais, os nossos historiógrafos, há seis mil luas,não  fazem referência  a  outras  regiões  senão  aosdois  grandes  impérios  de Lilipute  e  de Blefuscu.Estas   duas   poderosas   potências   têm,   como   iadizendo, andado empenhadas, durante trinta e seisluas, numa guerra muitíssimo acesa, e motivada

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pelo   seguinte:   toda   gente   concorda   em   que   amaneira primitiva de partir os ovos antes de seremcomidos, é bater com eles no rebordo de qualquerprato   ou   copo;   mas   o   avô   de   Sua   Majestadeimperial, em criança, estando para comer um ovo,teve a infelicidade de cortar um dedo, o que deumotivo a que o  imperador,  seu pai,   lavrasse umdecreto,  em que  ordenava aos  seus  súditos,  sobgraves   penas,   que   partissem   os   ovos   pelaextremidade   mais   delgada.   Este   decreto   irritoutanto   o   povo,   que   consoante   narram   os   nossoscronistas, houve por essa época seis revoltas, emuma   das   quais   um   imperador   perdeu   a   coroa.Estas   questiúnculas   intestinas   foram   semprefomentadas pelos soberanos de Blefuscu e, quandoas   sublevações   foram   sufocadas,   os   culpadosrefugiaram­se neste império. Pelas estatísticas quese fizeram, onze mil homens, em diversas épocas,preferiram   morrer   a   submeter­se   ao   decreto   departir   os   ovos   pela   extremidade   mais   delgada.Foram   escritas   e   publicadas   centenas   devolumosos   livros   acerca   deste   assunto;   mas   oslivros que defendiam o modo de partir os ovos pelaextremidade   mais   grossa   foram   proibidos   desdelogo, e todo o seu partido foi declarado incapaz deexercer   qualquer   função   pública.   Durante   aininterrupta série daqueles motins, os imperadoresde Blefuscu fizeram freqüentes recriminações porintermédio dos seus embaixadores, acusando­nosde   praticar   um   crime,   violando   um   preceitofundamental do nosso grande profeta Dustrogg, noquinquagésimo quarto capítulo de Blundecral (queé o seu Corão). Isto, porém, foi considerado comouma   simples   interpretação   do   sentido   do   texto,cujos termos eram: que todos os fiéis quebrarão osovos   pela   extremidade   mais   cômoda. Na   minha

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opinião, deve deixar­se à consciência de cada um aresolução de qual seja a extremidade mais cômoda,ou   pelo   menos,   é   à   autoridade   do   soberanomagistrado   que   compete   resolver.   Ora,   ospartidários   da   extremidade   mais   grossa,   que   seencontravam exilados,   viram  tanta  deferência  nacorte do imperador de Blefuscu e tanto auxílio eapoio no nosso próprio país,  que se seguiu umaguerra   sanguinolenta   entre   os   dois   impérios,guerra que durou trinta e seis luas, com vário êxitopara cada uma das partes. Nesta guerra perdemosquarenta naus de linha e um grande número denavios   com  trinta  mil   dos  nossos  mais   valentesmarinheiros  e  soldados;  dá­se  como certo  que  aperda sofrida pelo nosso  inimigo não  foi   inferior.Seja como for, o que é fato é que os de Blefuscupreparam   agora   uma   temível   esquadra,   paraoperar   um   desembarque   nas   costas   do   nossoimpério.   Ora,   Sua   Majestade   imperial,   tendo   amáxima confiança na vossa coragem, e tendo emaltíssimo apreço a vossa força, pediu­me que vospormenorizasse   todos   estes   assuntos,   a   fim   desaber   quais   as   vossas  disposições   a   respeito   desemelhante assunto.

Respondi ao secretário,   limitando­me a enviar aoimperador as minhas muito humildes homenagense   dando­lhe   a   entender   que   estava   disposto   asacrificar   a   vida   para   defender   a   sua   sagradapersonalidade   e   o   seu   império   contra   todas   asempresas   e   invasões   dos   seus   inimigos.Despediu­se, depois, muito satisfeito com a minharesposta.

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CAPÍTULO V

O autor opõe­se ao desembarque dos inimigos, por meio de um extraordinárioestratagema — O imperador concede­lhe um grande titulo honorífico — O

imperador de Blefuscu envia embaixadores a solicitar a paz — Incendeiam­seos aposentos da imperatriz — O autor concorre muito para extinguir o

incêndio.

O   império   de   Blefuscu   é   uma   ilha   situada   aonordeste de Lilipute, e está dele separada apenaspor um canal, que tem quatrocentas toesas. Nuncao   vira,   e   como   corria   o   boato   do   projetadodesembarque, tomei as máximas cautelas para nãoaparecer   desse   lado,   receoso   de   que   fossedescoberto por algum navio do inimigo.

Dei   parte   ao   imperador   de   um   projeto,   queelaborara   havia   pouco   tempo,   para   me   tornarsenhor   de   toda   a   frota   inimiga   que,   segundo   orelatório daqueles que haviam sido mandados emreconhecimento, estava no porto, pronta a fazer­sede vela ao primeiro vento  favorável.  Consultei  osmais   experimentados   marinheiros,   para   quesoubessem   qual   a   profundidade   do   canal,   edisseram­me que ao centro, na maré cheia, tinhade   profundidade   setenta glumgluffs,   (queeqüivalem a seis  pés de medida européia,  poucomais   ou   menos)   e   em   outros   pontoscinqüenta glumgluffs,   o   máximo.   Encaminhei­mesecretamente   para   a   costa   nordeste,   fronteira   aBlefuscu   e,   deitando­me   detrás   de   uma   colina,assestei   o   óculo   e   vi   a   frota   inimiga,   que   eraconstituída de  cinqüenta  navios  de guerra e  umavultado número de transportes. Afastando­me emseguida,   dei   ordem   para   fabricarem   grandequantidade de cabos, o mais fortes possível, combarras de ferro. Os cabos deviam ser pouco mais

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ou menos da grossura de um cordel dobrado, e asbarras, do comprimento e grossura de uma agulhade fazer meia. Tripliquei o cabo para o tornar aindamais forte, e, pela mesma razão, torci juntamentetrês barras de ferro e a cada uma delas apliqueium gancho.  Voltei  à   costa  nordeste,   e,  metendodebaixo do gibão os sapatos e as meias, entrei nomar.   A   princípio   entrei   pela   água   com   a   maiorpresteza possível e depois nadei até o centro umastoesas, de maneira a achar pé. Cheguei junto dafrota   em   menos   de   trinta   minutos.   Os   inimigosficaram tão aterrados com a minha presença, quesaltaram todos dos navios como rãs e fugiram paraterra;   calculei­lhes   o   número   em   trinta   milhomens, pouco mais ou menos. Tratei, então, desegurar cada nau pela proa com um gancho presoa   um   cabo.   Enquanto   andava   nesta   faina,   oinimigo deu uma descarga de milhares de flechas,muitas das quais me atingiram na cara e nas mãose que, além da excessiva dor que me produziram,deveras embaraçaram a minha tarefa.  O que medava  mais   cuidado   eram  os   olhos,   que   ficariaminfalivelmente perdidos se me não lembrasse logode  um expediente:   em uma das  algibeiras   tinhauns óculos; tirei­os e coloquei­os o mais depressaque pude. Armado com este elmo de novo gênero,continuei   o   meu   trabalho,   não   fazendo   caso   dacontínua granizada de flechas que caía em cima demim.   Colocados   todos   os   ganchos,   principiei   arebocá­los; o trabalho, porém, resultou inútil, vistocomo os navios estavam ancorados. Puxei logo docanivete e cortei todas as amarras; feito isto, numabrir   e   fechar   de   olhos   fui   sirgando   muito   àvontade cinqüenta dos maiores navios e arrastei­oscomigo.

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Os Blefuscudianos, que não podiam adivinhar qualfosse   o   meu   propósito,   ficaram   igualmentesurpreendidos   e   confusos:   não   me   tinham   vistocortar as amarras e  julgaram que a minha idéiaera deixá­los flutuar ao sabor do vento e da maré,fazendo­os   se   entrechocarem;   quando,   porém,viram que eu rebocava toda a esquadra, soltaramgritos de raiva e de desespero.

Tendo caminhado por algum tempo e achando­mefora do alcance das suas flechas, parei um poucopara tirar todas aquelas que se me tinham cravadono rosto e nas mãos; depois, conduzindo a minhapresa,   tratei   de   me   dirigir   ao   porto   imperial   deLilipute.

O   imperador,   com   toda   a   sua   corte,   estava   napraia, aguardando o êxito da minha empresa.

Viam ao longe uma armada que se acercava; como,porém, a água me dava pelo pescoço, não notaramque era eu quem a conduzia até eles.

O imperador julgava que eu tinha perecido e que aesquadra   inimiga   se   aproximava   para   operar   odesembarque;  os seus temores,  porém, em breveforam   dissipados,   porque,   tendo   encontrado   pé,viu­me à frente de todas as naus e ouvira­me gritarcom toda a força dos meus pulmões: Viva o muitopoderoso imperador de Lilipute. Assim que chegueià terra, este soberano elogiou­me infinitamente e,logo   em   seguida,   me   fez nardac, que   é   o   maishonroso título honorífico existente entre eles.

Sua   Majestade   pediu­me   que   lhe   satisfizesse   odesejo   de   se   assenhorear   dos   outros   naviosinimigos   e   de   os   conduzir   aos   seus   portos.   A

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ambição   deste   príncipe   ficava   satisfeita   com   aposse de todo o império de Blefuscu, para o reduzira província do seu império e fazê­la governar porum   vice­rei;   mandou   matar   todos   os   exiladospartidários   da   extremidade   mais   grossa   econstranger  os  seus  povos  a  quebrarem os  ovospela   extremidade   mais   delgada,   o   que   o   fariachegar à monarquia universal; tratei de dissuadi­lodessa   idéia,   baseando­me   em   razões   políticas   ejusticeiras e neguei­me energicamente a tornar­meinstrumento para oprimir a liberdade de um povolivre,   nobre   e   corajoso.   Quando   foi   apresentadoeste   assunto   ao   conselho,   a  parte  mais   sensataapoiou o meu parecer.

Esta  declaração  franca e  desassombrada era  tãooposta aos projetos e à política de Sua Majestadeimperial,   que   era  difícil   obter  perdão  para  mim;falaram a este respeito no conselho de uma formamuito   artificiosa,   e   os   meus   inimigos   secretosvaleram­se disso para me perder. É bem certo queos   mais   importantes   serviços   prestados   aossoberanos   são   depressa   esquecidos,   quandoseguidos de uma recusa em os auxiliar cegamenteem suas paixões!

Perto de três semanas depois da minha memorávelexpedição,   chegou   de   Blefuscu   uma   soleneembaixada, trazendo propostas de paz. O tratadoem   breve   ficou   concluído   em   condições   deverasvantajosas   para   o   imperador   de   Lilipute.   Aembaixada era constituída por seis  fidalgos,  comuma   comitiva   de   quinhentas   pessoas,   e   podedizer­se   sem   exagero   que   a   sua   entradacorrespondeu   à   grandeza   de   seu   amo   e   àimportância da negociação.

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Depois de feito o tratado, Suas Excelências, tendosabido secretamente os bons serviços que prestaraao   país   pelo   modo   por   que   falei   ao   imperador,fizeram­me  uma cerimoniosa   visita.  Principiarampor  me   fazer   os  maiores   elogios   acerca  do  meuvalor e da minha generosidade, e convidaram­me,em nome de seu amo, para ir viver em Blefuscu.Agradeci­lhes   e   pedi­lhes   que   apresentassem   osmeus   mais   humildes   respeitos   à   Sua   Majestadeblefuscudiana,   cujas   brilhantes   virtudes   eramuniversalmente   conhecidas.   Prometi   visitar   SuaMajestade antes de regressar ao meu país.

Passados alguns dias,  pedi   licença ao  imperadorpara   fazer   os   meus   cumprimentos   ao   grandesoberano de Blefuscu; respondeu­me, com a maiorfrieza, que fosse quando me apetecesse.

Esqueci­me   de   dizer   que   os   embaixadores   mehaviam   falado   por   intermédio   de   um   intérprete,visto   que   as   línguas   dos   dois   países   são   muitodiferentes   uma   da   outra.   Qualquer   das   naçõesgaba   a   antigüidade,   a   beleza   e   a   força   do   seuidioma e despreza o outro.

No entanto, o imperador, orgulhoso da vantagemque obtivera sobre os Blefuscudianos pela tomadada   sua   esquadra,   obrigou   os   embaixadores   aapresentarem as  suas  credenciais  e  a   fazerem asua   alocução   em   língua   liliputiana,   e,   comoverdade, seja dito que, em virtude do tráfico e docomércio   que   existem   entre   os   dois   países,   darecepção mútua dos exilados e do costume em queos   Liliputianos   estão   de   mandar   a   flor   de   suanobreza a Blefuscu, a fim de se educar e aprenderos seus exercícios, há poucas pessoas de distinçãono   império   de   Lilipute   e   também   pouquíssimos

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negociantes ou marinheiros nas praças marítimasque não falem as duas línguas.

Por então, tive ensejo de prestar à Sua Majestadeimperial assinalado serviço.

Fui acordado certa ocasião, — devia ser perto demeia­noite — com os gritos de uma multidão, quese   juntara   à   porta   de   minha   casa;   ouvifreqüentemente   a   palavra burgum. Algunscortesãos, abrindo passagem por entre a multidão,imploraram­me que, sem detença, me dirigisse aopalácio, e que lavrava incêndio nos aposentos daimperatriz, por descuido de uma das suas aias queadormecera   lendo   um   poema   blefuscudiano.Levantei­me imediatamente e dirigi­me ao paláciocom certo custo, para que não pisasse ninguém naminha passagem, o que consegui. Quando cheguei,vi que já se tinham aplicado as escadas às paredesdos quartos e estavam bem fornecidos de baldes; aágua,   porém,   ficava   muito   longe.   Esses   baldesdeviam ter talvez o tamanho de dedais, e o pobrepovo   acarretava­os   com   a   máxima   solicitude.   Oincêndio   lavrava   já   com   bastante   intensidade   eaquele   magnífico   palácio   seria   infalivelmentereduzido   a   cinzas,   se,   por   uma   extraordináriapresença de espírito, me não ocorresse de repenteuma idéia.  Na noite precedente, tinha bebido emgrande   quantidade   um   certo   vinho   brancochamado glimigrim, importado de uma província deBlefuscu   e   que   tem   grandes   propriedadesdiuréticas.   Desatei   então   a   urinar   em   talabundância e dirigi o jato com tanto acerto e tãoapropositadamente que, dentro de três minutos, ofogo   estava   completamente   apagado   e   o   restodaquele   soberbo   edifício,   que   custara   somas

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imensas, ficou preservado de tal incêndio.

Não sabia se o imperador veria com bons olhos oserviço   que   acabava   de   prestar­lhe,   porque,consoante às leis fundamentais da nação, era umcrime   capital   e   digno   da   pena   de   morte   verteráguas nas proximidades do palácio imperial; fiquei,porém,   tranqüilo,   quando   soube   que   SuaMajestade dera ordem ao grão­juiz para me enviarcartas de agradecimento; disseram­me, depois, quea   imperatriz,   experimentando   um   grande   terrorpelo  ato  que  praticara,   fora   transportada para  olado mais afastado do átrio e se resolvera a nuncamais habitar os aposentos que eu ousara macularcom ação desonesta e impudente.

CAPÍTULO VI

Os costumes dos habitantes de Lilipute — Sua literatura — Suas leis emaneiras de educar os filhos.

Ainda   que   eu   reserve   a   descrição   deste   impériopara  um  trabalho  à   parte,   julgo  um dever,   dar,dele,   aqui,   ao   leitor,   uma   idéia   geral.   Como   aestatura ordinária daquela gente pouco maior é doque seis  polegadas,  há  uma proporção exata emtodos os outros animais, assim como nas árvores.Por exemplo: os cavalos e os bois maiores regulamentre quatro e cinco polegadas, aproximadamente;os   patos   são   quase   do   tamanho   de   um   pardal;quanto   aos   insetos,   esses   eram   quase   invisíveispara mim; a natureza, porém, soube ajustar a vistados habitantes de Lilipute a todos os objetos quelhes   são   destinados.   Para   fazer   conhecer   bem

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quanto o seu olhar é penetrante, com respeito aosobjetos que lhes ficam próximos, basta dizer que viuma   vez   com   prazer   um   cozinheiro   hábildepenando uma cotovia que não era maior do queuma mosca vulgar, e uma rapariga a enfiar um fiode seda invisível numa agulha também invisível.

Servem­se de caracteres e de letras, e o seu modode   escrever   é   notável,   não   o   fazendo   nem   daesquerda para a direita, como na Europa; nem dadireita para a esquerda, como os Árabes; nem decima para  baixo,   como na China;  nem de  baixopara   cima   como   os   Caucasianos,   masobliquamente  e  de  um a outro  ângulo  do papel,como as senhoras em Inglaterra.

Enterram os mortos de cabeça para baixo, porqueimaginam que, dentro de onze mil luas, todos osmortos devem ressuscitar; que, por essa época, aTerra, que julgam plana, se voltará de baixo paracima   e   que,   por   esse   meio,   no   momento   daressurreição, seriam encontrados de pé. Os sábios,entretanto,   reconhecem   o   absurdo   daquelaopinião, mas permanece o uso antigo, baseado nasidéias do povo.

Têm leis e costumes singularíssimos, que eu talveztentasse justificar, se não fossem contrários aos daminha   querida   pátria.   A   primeira,   de   que   fareimenção, diz respeito aos denunciantes.  Todos oscrimes   contra   o   Estado   são  punidos   nesse   paíscom   extremo   rigor;   se   o   acusado,   porém,   provaevidentemente a sua inocência, o acusador é logocondenado a  uma  ignominiosa  morte  e   todos  osseus bens confiscados em prol do inocente. Se oacusador   é   pobre,   o   imperador,   do   seu   tesouroparticular, indeniza o acusado de todas as perdas e

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danos.

A fraude é considerada como um crime maior doque o roubo; esta a razão por que é sempre punidacom a morte, visto como existe o princípio de que ocuidado   e   a   vigilância,   com   um   espírito   vulgar,podem garantir os bens de um indivíduo contra astentativas dos ladrões, mas a probidade não temdefesa contra a astúcia e a má fé.

Embora   eu   considere   os   castigos   e   as   grandesrecompensas como os eixos em que gira o governo,ouso   dizer   que   a   máxima   de   castigar   erecompensar  não  é   observada  na  Europa  com amesma sensatez como no império de Lilipute. Todoaquele  que  pode  apresentar  provas  bastantes  deque observou fielmente as leis do seu país durantesetenta   e   três   luas,   tem   o   direito   de   pretendercertas regalias, consoante ao seu nascimento e asua posição, com certa quantia tirada de um fundodestinado   a   esse   fim;   alcança   até   o   títulode snipall, ou   de legítimo, que   é   apenso   ao   seunome;   esse   título,   porém,   não   passa   aosdescendentes.   Estes   povos   vêem   como   umprodigioso defeito político entre nós que todas asnossas   leis  sejam ameaçadoras  e  que a   infraçãoseja   punida   com   os   mais   severos   castigos,enquanto   a   sua   observância   não   dá   direito   arecompensa alguma; por este motivo representama justiça com seis olhos, dois adiante, dois atrás eum de cada lado (para simbolizar a circunspeção),segurando na mão direita um saco cheio de ouro, eempunhando   na   esquerda   uma   espadaembainhada,   para   demonstrar   que   está   maisdisposta a premiar do que a punir.

Na   escolha   que   fazem   dos   súditos   para

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desempenharem cargos públicos, olham mais paraa probidade do que para o talento. Como o governoé   necessário   ao   gênero   humano,   crêem   que   aProvidência   nunca   teve   em   mira   fazer   daadministração dos negócios públicos uma ciênciacomplicada   e  misteriosa,   acessível   apenas   a  umlimitado   número   de   espíritos   raros   e   sublimes,desses três ou quatro prodígios, que aparecem láde séculos a séculos; mas julgam que a verdade, ajustiça, a temperança e as restantes virtudes estãoao alcance de toda gente e que a prática dessasvirtudes,   acompanhada  de   alguma   experiência   ebons   intuitos,   tornam quem quer   que   seja   aptopara servir ao seu país, embora muito raquítico emuito tacanho.

Persuadindo­se de que os talentos superiores estãolonge de suprir as virtudes morais, dizem eles queos  empregos  não poderiam ser  confiados  a  maisperigosas mãos do que às dos grandes talentos quenão   possuem   virtude   alguma,   e   que   os   errosnascidos da ignorância de um ministro probo nãotêm tantas conseqüências funestas para o bem doseu   povo,   como   as   obscuras   práticas   desseministro,   cujas   tendências   fossem   depravadas,cujas intenções fossem criminosas ou predispostasa fazer o mal impunemente.

Aquele   dos   Liliputianos   que   não   acreditar   naprovidência divina é declarado incapaz de exercerqualquer   cargo   público.   Como   os   soberanos   sejulgam,   muito   justamente,   delegados   daProvidência, os Liliputianos supõem que nada hámais   absurdo   nem   mais   incoerente   do   que   oprocedimento de um príncipe que se serve de gentesem religião, que nega essa suprema autoridade de

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que  se   considera  depositário  e  da  qual,  de   fato,recebe a que possui.

Referindo­me a estas  leis  e às seguintes,  apenasfalo das leis originais e primitivas dos Liliputianos.Sei que, pelas modernas leis, estes povos caíramem um grande   excesso  de   corrupção;   prova­o   overgonhoso   uso   de   obter   os   mais   elevadosempregos   dançando   na   corda   e   os   lugares   dedistinção os que saltam à vara larga. Note o leitorque esse  indigno uso  foi   introduzido pelo pai  doatual imperador.

Entre  aquele  povo,  a   ingratidão é   tida como umcrime enorme, como em outro tempo o foi, segundorefere   a   história,   aos   olhos   de   algumas   naçõesvirtuosas. Dizem os Liliputianos que todo indivíduoque se torna ingrato para com o seu benfeitor, deveser   necessariamente   inimigo   de   todos   os   outroshomens.

Julgam os naturais de Lilipute que o pai e a mãenão   devem   ser   encarregados   da   educação   dosfilhos, e há, em todas as cidades, colégios públicos,para   onde   todos   os   progenitores,   excetocamponeses e operários, são obrigados a mandaros filhos de ambos os sexos, para serem educadose instruídos. Assim que atingem a idade de vinteluas, supõem­nos dóceis e capazes de aprender. Asescolas   são   de   diversas   espécies,   consoante   àdiferença de sexo ou de sangue. Professores hábeiseducam   as   crianças   para   um   modo   de   vidaconforme   a   sua   ascendência,   os   seus   própriosdotes de espírito e as suas tendências.

Os   seminários   para   os   filhos   de   nobres   têmprofessores   sérios   e   eruditos.   O   vestuário   e

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subsistência   dos   rapazes   são   simples.Inspiram­lhes princípios de honra,  de  justiça,  decoragem, de modéstia, de religião e de amor pelapátria.  Até  à   idade dos quatro anos são vestidospelos   homens;   dessa   idade   em   diante,   sãoobrigados   a   se   vestirem   sós,   embora   sejam   denobre   estirpe.   Só   têm   licença   para   brincar   napresença do professor e  por esse sistema evitamfunestas impressões de doidice e de vício que cedocomeçam a corromper os costumes e as tendênciasda mocidade. Os pais podem visitá­los duas vezespor  ano.  A   visita  pode  durar  apenas  uma hora,com a   liberdade  de  beijar  o   filho  à   entrada  e  àsaída;  um professor,  que assiste  sempre a essasvisitas, não consente que falem em segredo com ascrianças,   que   as   lisonjeiem,   nem   lhes   dêemconfeitos ou bolos.

Nos   colégios   para   o   sexo   feminino,   as   meninasnobres   são   educadas   quase   como   rapazes,   comuma diferença: é que são vestidas por criadas, massempre  na presença de uma professora,  até  quecheguem aos cinco anos, idade em que principiama vestir­se sem auxílio de ninguém.

Quando   se   sabe   que   as   aias   ou   criadas   gravesentretêm as raparigas com histórias extravagantes,contos insípidos ou capazes de lhes causar medo,(o   que   é   uso   corrente   das   governantas   emInglaterra), são açoitadas publicamente três vezespor toda a cidade, presas durante um ano e porfim exiladas  para  o  ponto  mais  deserto  do país.Assim as raparigas e os rapazes, entre aquele povo,envergonham­se   de   ser   covardes   e   tolos;desprezam todo o ornamento exterior e só têm emconsideração   a   compostura   e   o   asseio.  Os   seus

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exercícios   são   menos   violentos   do   que   os   dosrapazes e não as fazem aplicar tanto. Entretanto,aprendem ciências e belas­letras. Há um provérbioque diz que a mulher, devendo ser uma companhiasempre   agradável   ao   marido,   carece   de   ornar   oespírito que nunca envelhece.

Ao contrário dos Europeus, os Liliputianos pensamque nada demanda mais  cuidado e  aplicação doque   a   educação   das   crianças.   É   fácil   gerá­las,dizem eles, tão fácil como semear e plantar, masconservar   certas   plantas,   fazê­las   crescer   bem,precavê­las contra os rigores do inverno, contra osardores e tempestades de verão, contra os ataquesdos insetos, de, em suma, fazer­lhes dar frutos emabundância, é o resultado da atenção e do cuidadode um hábil jardineiro.

Escolhem o  professor  que   tenha  o   espírito  maisbem   formado   do   que   espírito   sublime,   maismorigeração do que ciência.

Não podem suportar os professores que atordoamincessantemente   os   ouvidos   dos   discípulos   comgramaticais   combinações   frívolas,   discussõespueris,   observações   e   que,   para   lhes   ensinar   aantiga língua, que pouca relação tem com a que sefala   hoje,   lhes   enchem   o   espírito   de   regras   eexceções e põem de lado o uso e o exercício paralhes atulhar o cérebro de princípios supérfluos epreceitos  dificultosos;  querem que o professor sefamiliarize dignamente com os seus alunos, porquenão há nada mais contrário à boa educação do queo pedantismo e a fingida seriedade; segundo eles,devem   mais   baixar­se   do   que   elevar­se   peranteeles,   embora   não   deixem   de   o   considerar   algodifícil, pois que muitas vezes é preciso mais esforço

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e  vigor  e   sempre  mais  atenção  para  descer   semperigo do que para subir.

São   de   opinião   de   que   os   professores   devemaplicar­se  mais  a   formar  o  espírito  das  criançaspara as lutas da vida do que a enriquecê­lo comconhecimentos   curiosos,   quase   sempre   inúteis.Ensinam­lhes,   pois,   logo,   a   ser   prudentes   efilósofos,   a   fim   de   que,   mesmo   na   idade   dosprazeres, saibam gozá­los filosoficamente. Não seráridículo — perguntam eles — só  conhecer­lhes anatureza   e   o   verdadeiro   uso   quando   já   seencontram inaptos, aprender a viver quando a vidaestá   quase   passada   e   principiar   a   ser   homemquando se está prestes a deixar de o ser? Dão­serecompensas para  a  confissão  sincera e   ingênuados erros, e os que melhor sabem raciocinar sobreos seus próprios defeitos, obtêm honras e mercês.Querem que   sejam curiosos   e   façam amiudadasperguntas   acerca   de   tudo   o   que   ouvem,   e   sãopunidos severamente aqueles que, em presença deuma  coisa   extraordinária   e  notável,   demonstrempouca admiração ou curiosidade.

Recomenda­se­lhes  que   sejam muito   fiéis,  muitosubmissos,  muito dedicados ao príncipe,  mas deuma dedicação geral e de dever não particular, quefere   muitas   vezes   a   consciência   e   sempre   aliberdade, e que expõe a grandes fatalidades.

Os   professores   de   História   empenham­se   menoscom o trabalho de ensinar a seus discípulos a datade   tal   ou   tal   acontecimento,   do   que   adescrever­lhes   o   carácter,   as   boas,   as   másqualidades dos reis, dos generais e dos ministros;julgam que pouco lhes pode interessar em que anoou mês tal batalha foi travada; mas decerto lhes

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interessa  saber  quanto  os  homens,  em  todas  asépocas,   são   bárbaros,   brutais,   injustos,sanguinários, sempre dispostos a expor a vida semnecessidade e a atentar contra a dos outros semmotivo;   quanto   os   combates   desonram   ahumanidade e quão fortes devem ser para chegar aesta funesta extremidade; consideram a história doespírito   humano   a   melhor   de   todas,   e   ensinammenos   os   discípulos   a   reter   os   fatos,   do   que   ajulgá­los.

Querem que o amor das ciências se limite e quecada   um   escolha   o   gênero   de   estudo   que   maisconvenha à sua tendência e ao seu talento; fazemtanto caso de um homem que estuda demasiadocomo   de   um   homem   que   come   demais,persuadidos   de   que   o   espírito   tem   as   mesmasindisposições  que o  estômago.  Só  o   imperador  éque   possui   uma   vasta   e   numerosa   biblioteca.Quanto   aos   particulares   que   possuam   grandesbibliotecas,   são   considerados   como   asnoscarregados de livros.

Naquele   povo,   a   filosofia   é   muito   alegre   e   nãoconsiste,   como   nas   nossas   escolas,em ergotismos; ignoram   o   quesejabarroco e buralipton, categorias,   termos   deprimeira   e   de   segunda   intenção   e   outrasdificultosas tolices da dialética, que são tão úteispara o raciocínio como para a  dança.  A  filosofiadeles consiste em estabelecer princípios infalíveisque levem o espírito a preferir o estado medíocre deum   homem   honesto   ao   bem­estar   do   rico   e   aofausto de um financeiro,  e  às conquistas de umgeneral vitorioso o vencerem em si próprios a forçadas paixões. A filosofia de que usam habitua­os a

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um viver austero, fugindo de tudo quanto costumaos sentidos à voluptuosidade, tudo o que torna aalma   dependente   do   corpo,   enfraquecendo­lhe   aliberdade.   De   resto,   a   virtude   é   sempreapresentada como uma coisa fácil e agradável.

Exortam­nos a que escolham com segurança ummodo de vida,  fazendo o possível para  lhes  fazertomar   aquele   que   melhor   convenha   às   suasnaturais tendências, pouco se importando com asfaculdades paternas, de maneira que, por vezes, ofilho   de   um   lavrador   chega   a   ser   ministro   deEstado,  enquanto  o   filho de um fidalgo se   tornasimples comerciante.

O   valor   que   este   povo   consagra   à   física   e   àsmatemáticas é  simplesmente com a mira de queessas ciências sejam vantajosas para a vida e paraos progressos das artes aplicadas.

Geralmente, dão­se pouco o trabalho de conhecertodas   as   partes   do  universo,   preferindo   gozar   anatureza   sem   a   examinar,   a   discorrer   sobre   aordem e o movimento dos corpos físicos. Quanto àmetafísica, têm­na como uma fonte de visões e dequimeras.

Embirram   com   a   linguagem   afetada   e   apreciosidade   do   estilo,   tanto   na   prosa   como   noverso,   e   entendem   que   é   do   mesmo   modoimpertinente   o   querer   uma   pessoa   salientar­se,seja pela maneira de se exprimir, seja pela maneirade trajar. Autor que ponha de parte o estilo puro,claro   e   sério,   para   usar   de   uma   gíria   obsoleta,recheada de extraordinárias metáforas, é corrido eapupado   nas   ruas   como   se   fora   um   tipo   decarnaval.

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Naquele   povo,   cuidam   do   corpo   e   da   alma   aomesmo   tempo,   porque,   tratando­se   de   fazerhomens, cumpre não lhes formar uma coisa sem aoutra. É, consoante dizem, uma parelha de cavalosque é  necessário  guiar  em passo certo.  Segundoeles,  desenvolvendo uma criança simplesmente ofísico,   fica   ignorante   e   estúpida;   cultivando­lhesomente o espírito, fica desgraciosa e raquítica.

Aos   mestres   é   proibido   castigar   os   alunoscorporalmente;   castigam­nos   apenas   privando­osde alguma coisa que apreciem, envergonhando­ose, principalmente,  não  lhes dando lições durantetrês dias, o que os apoquenta extraordinariamente,pois que, abandonando­os a si próprios, assim lhesdemonstram   que   não   são   dignos   de   que   osinstruam.

A dor física produzida pelo castigo corporal serveapenas   para   os   tornar   tímidos,   defeito   muitoprejudicial, de que nunca se curam.

CAPÍTULO VII

Recebendo o autor aviso que iam processá­lo pelo crime de lesa­majestade,foge para Blefuscu.

Antes de me referir à minha saída do império deLilipute,  parece­me talvez conveniente  informar oleitor de uma intriga secreta que se teceu contramim.

Estava pouco ao corrente do manejo da corte, e aminha situação negara­me disposições necessáriaspara ser astucioso cortesão, ainda que muitos de

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humilde condição como eu tenham conseguido asgraças da corte e empregos rendosos; no entanto,não   tinham   decerto   escrúpulos   em   questões   debrio e pundonor. Fosse como fosse, o que é fato éque,   quando  me  dispunha  a   sair   para   visitar   oimperador   de   Blefuscu,   uma   individualidade   dealta influência e consideração no palácio, e a quemeu   prestara   serviços   de   certa   importância,   veioprocurar­me secretamente à casa, durante a noite.Chegou  de  cadeirinha,   sem se   fazer  anunciar,   edespediu os moços.

Meti a cadeirinha, com sua excelência dentro, naalgibeira do gibão e, dando ordem ao meu criadoque   fechasse   a   porta,   coloquei   a   cadeirinha   emcima   da   mesa   e   sentei­me   ao   lado.   Feitos   oscumprimentos   de   praxe,   notando   o   aspectocontristado   e   inquieto   do   meu   hóspede,perguntei­lhe qual o motivo por que assim estava.Pediu­me  que  o   ouvisse   com a  máxima  atençãosobre   um   assunto   que   dizia   respeito   à   minhahonra e à minha vida e principiou:

— Informo­o  de   que  há   pouco   foram convocadosvários conselhos privados por sua causa e que, hádois dias, Sua Majestade tomou uma desagradávelsolução.

Decerto   não   ignora   que SkyreshBolgolam (galbet ou   almirante­mor)   nunca   deixoude ser seu mortal inimigo, desde que o senhor seencontra aqui. Não sei a que atribuir tal antipatia;o que sei é que o ódio lhe aumentou desde a suaexpedição   contra   a   esquadra  de   Blefuscu:   comoalmirante, sentiu­se despeitado com o bom êxito.Este   cavalheiro,   de   combinaçãocom Flimnap,tesoureiro­mor,   o   general   Limtoc,   o

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camareiro­mor   Lalcon   e   o   supremo   magistradoBalmaff,   redigiu   uma   série   de   artigos   para   oprocessar   como   réu   de   lesa­majestade   e   comoautor de vários outros crimes.

Este   exórdio   chocou­me   de   tal   maneira,   que   iainterrompê­lo, quando me pediu que não proferissepalavra e que o ouvisse. Em seguida, continuou:

— Grato  pelos  serviços  que  me prestou,  procureiinformar­me de todo o processo e obtive cópia detodos  os  artigos.  É  uma coisa  que  põe  a  minhacabeça em perigo, mas que faço para o servir.

ARTICULADO DA ACUSAÇÃO PROMOVIDA CONTRA QUIMBUSFLESTRIN (O HOMEM MONTANHA)

“Art.  1.°  — Visto  que,  por  uma  lei  decretada noimpério  de Sua Majestade Cabin Deffar  Piune,   éordenado que qualquer indivíduo que verta águasno recinto do palácio imperial seja sujeito às penase   castigos   do   crime   de   lesa­majestade,   e   que,apesar disso, o citado Quimbus Plestrin, por umaviolação feita à lei, sob pretexto de apagar o fogohavido nos aposentos  da querida esposa de SuaMajestade imperial, apagara maliciosa, traiçoeira ediabolicamente,   despejando   a   bexiga,   o   referidofogo havido nos aludidos aposentos, tendo entradopara   esse   efeito   no   recinto   do   citado   palácioimperial;

“Art. 2.° — Que havendo o mencionado QuimbusFlestrin conduzido a armada imperial de Blefuscu,e tendo­lhe seguidamente Sua Majestade imperialordenado que se assenhoreasse de todas as outrasmais   do   mencionado   império   de   Blefuscu,   ereduzi­lo   a   simples   província   que   pudesse   sergovernada por um vice­rei do nosso país, e  fazer

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perecer e matar todos os exilados partidários dosovos  quebrados  pela  extremidade  mais  grossa,  omencionado Flestrin,  como traidor rebelde à  SuaFidelíssima   Majestade   imperial,   apresentara   umrequerimento   para   ser   dispensado   do   citadoserviço, sob o pretexto frívolo de uma repugnânciaem meter­se a obrigar as consciências e a oprimira liberdade de um povo inocente;

Art. 3.° — Que certos embaixadores de Blefuscu,tendo vindo há pouco pedir a paz à Sua Majestadeimperial,   o   mencionado   Flestrin,   como   súditodesleal,   ajudara,   socorrera,   livrara   de   apuros   eobsequiara os citados embaixadores, ainda que osreconhecesse como ministros de um príncipe queacabara   de   mostrar­se   recentemente   inimigodeclarado   de   Sua   Majestade   imperial   e   numaguerra aberta contra a sobredita Majestade;

“Art. 4.° — Que o mencionado Quimbus Flestrin,contra o dever de um súdito fiel, se dispunha agoraa  fazer  uma viagem à  corte  de Blefuscu,  para aqual recebera apenas uma licença verbal de SuaMajestade   imperial,   e,   sob   o   pretexto   da   ditalicença,  se  propunha temerária  e  perfidamente afazer a citada viagem, livrar de apuros e auxiliar oimperador de Blefuscu.”

— Ainda existem outros artigos — acrescentou ele— mas os mais importantes são aqueles que acabode citar­lhe. Nas diversas deliberações sobre esteassunto, é preciso confessar que Sua Majestade fezver  a   sua  moderação,   a   sua   suavidade   e  a   suaequidade,   considerando   muitas   vezes   os   seusserviços e tratando de atenuar os seus crimes. Otesoureiro e o almirante foram de opinião que deviasofrer morte cruel e ignominiosa, lançando fogo à

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sua   casa   durante   a   noite,   e   o   general   deviaesperá­lo   com   vinte   mil   homens   armados   deflechas envenenadas, para o  ferir  no rosto e nasmãos. Ordens secretas deviam ser dadas a algunsdos   seus   criados   para   espalharem   um   líquidovenenoso nas suas camisas, líquido que depressarasgaria  a  própria  carne,   fazendo­o  morrer  entreexcessivos   tormentos.   O   general   concordou,   demaneira que, durante certo tempo, a maioria dosvotos foi contra si; Sua Majestade imperial, porém,resolvido a salvar­lhe a vida, conseguiu o sufrágiodo camareiro­mor.  Entretanto,  Redresal,  primeirosecretário   dos   negócios   secretos   do   Estado,recebeu   ordem   do   imperador   para   dar   a   suaopinião,   o   que   fez   em   conformidade   à   de   SuaMajestade, e decerto justificou bem a estima que osenhor   lhe   consagra:   reconheceu   que   os   crimescometidos  eram grandes,  contudo mereciam estaindulgência; disse que a amizade que havia entreambos   era   tão   conhecida,   que   talvez   o   pudessejulgar prevenido a seu favor; que, no entanto, paraobedecer   ao   mandado   de   Sua   Majestade,ponderando   os   seus   serviços   e   seguindo   asuavidade do seu espírito, queria poupar­lhe a vidae contentar­se em tirar­lhe os olhos. Julgava comsubmissão   que,   por   esta   forma,   a   justiça   podiaficar de algum modo satisfeita, e todos aplaudiriama   clemência   do   imperador,   tão   bem   como   oprocesso   equitativo   e   generoso   daqueles   quetinham a honra de ser  seus conselheiros;  que aperda   da   vista   não   lhe   poria   obstáculo   à   forçacorporal,  com a qual  podia ainda ser útil  a  SuaMajestade; que a cegueira serve para aumentar acoragem, ocultando­nos os perigos; que o espíritose   torna   mais   recolhido   e   mais   apto   para   adescoberta da verdade; que o temor que mostrou

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pelos seus olhos era a maior dificuldade que teve avencer ao assenhorear­se da esquadra  inimiga, eque   seria   bastante   que   visse   pelos   olhos   dosoutros, pois que os mais poderosos príncipes nãovêem de  outro  modo.  Esta  proposta   foi   recebidadesfavoravelmente   por   toda   a   assembléia.   Oalmirante   Bolgolam,   todo   aceso,   ergueu­se   e,arrebatado de furor, disse que estava admirado deque   o   secretário   ousasse   ser   de   opinião   que   seconservasse a vida a um traidor; que os serviçosque o senhor havia prestado eram, consoante àsverdadeiras máximas do Estado, enormes crimes;que, quem era capaz de apagar de repente um fogoregando com urina o palácio de Sua Majestade, (oque não podia   recordar  sem horror),  poderia,  deoutra vez, pelo mesmo modo, inundar o palácio etoda   a   cidade,   tendo  uma  bomba  disposta   paraesse   efeito;   e   que   a   mesma   força   que   o   fizeraarrastar   toda   a   esquadra   inimiga   poderia   servirpara a reconduzir, ao primeiro descontentamento,ao sítio de onde a havia tirado; que havia motivosfortíssimos para pensar que o senhor era no íntimopartidário da extremidade mais grossa, e porque atraição principia no coração antes de transparecernos   atos,   como   partidário   da   extremidade   maisdelgada, declarou­o formalmente traidor e rebelde,e   insistiu   em   que   devia   ser   morto   sem   maisdelongas. O tesoureiro foi do mesmo parecer. Fezver   a   que   extremo   tinham   sido   reduzidas   asfinanças com a despesa do seu sustento, o que erauma   coisa   incomportável;   que   o   expedienteproposto   pelo   secretário,   de   lhe   tirar   os   olhos,longe   de   ser   um   remédio   contra   o   mal,   oaumentaria   segundo   todas   as   aparências,   comoparece pelo uso vulgar que há em cegar certas avesque, depois dessa operação, comem mais ainda e

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engordam   rapidamente;   que   Sua   SagradaMajestade   e   o   conselho,   que   eram   seus   juízes,estavam conscienciosamente   persuadidos  do   seucrime, o que era uma prova mais do que suficientepara o condenar à  morte,  sem recorrer a provasformais  requisitadas pela  letra rígida da  lei.  SuaMajestade   imperial,   porém,   não   estandoabsolutamente   resolvido   a   dar   consentimento   àsua morte, disse graciosamente que, visto como oconselho julgava a perda da sua vista um castigomuito   leve,   podia   acrescentar­se   um   outro.   E   osecretário,   que   é   seu   amigo,   pedindosubmissamente para ser ouvido ainda, e responderao   que   o   tesoureiro   objectara   com   referência   àgrande despesa que Sua Majestade fazia por suacausa,   disse   que   Sua   Excelência,   que   dispunhadas   finanças   do   imperador,   poderia   facilmenteremediar esse mal diminuindo na sua mesa poucoe pouco e que, por esse meio, falta de quantidadesuficiente de alimento, o senhor se tornaria fraco elânguido,  perderia  o  apetite  e,  em breve,  a  vida.Assim,  pela grande amizade que o secretário   lheconsagra,   este   assunto   foi   liquidadoamigavelmente;   foram   dadas   ordens   terminantespara que fosse mantido o segredo do desejo de ofazer   morrer   lentamente   de   fome.   A   sentençalavrada   para   lhe   serem   vasados   os   olhos   foiregistrada no arquivo do conselho, ao que pessoaalguma   se   opôs,   exceção   feita   do   almiranteBolgolam.  Dentro   de   três   dias,   o   secretário   teráordem para vir a sua casa, onde lerá os artigos deacusação na sua presença e, em seguida, fazê­losabedor   da   grande   clemência   e   graça   de   SuaMajestade e do conselho, condenando­o apenas àperda da vista, pena a que Sua Majestade tem acerteza de que se sujeitará com o reconhecimento e

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humildade convenientes.  Vinte  cirurgiões  de  SuaMajestade   virão   depois   e   executarão   a   operaçãopela acertada descarga de muitas flechas bastanteagudas   nas   meninas   dos   seus   olhos,   quandoestiver deitado no chão. É a si que compete tomaras convenientes  precauções  que  a  prudência   lhesugira.   Quanto   a   mim,   para   afastar   qualquersuspeita,   é   preciso   que   volte   tão   secretamentecomo vim.

Sua Excelência deixou­me e fiquei só, entregue ainquietações.   Era   um   uso   introduzido   por   essepríncipe   e   pelo   seu   ministério,   (pelo   que   measseguram, muito diferente do uso dos primitivostempos), que, depois da corte haver ordenado umsuplício   para   satisfazer   o   ressentimento   dosoberano   ou   a   maldade   de   um   favorito,   oimperador devia   fazer  um discurso a   todo o seuconselho,   falando   da   sua   brandura   e   da   suaclemência como qualidades reconhecidas de todagente.   O   discurso   do   imperador   a   meu   respeitodepressa correu por   todo  o  país,  e  nada  inspiratanto   terror   ao   povo   como   esses   elogios   daclemência   imperial,  porque  se   tinha notado  que,quanto mais rasgados eram esses elogios, mais osuplício   era,   ordinariamente,   cruel   e   injusto.   E,com respeito a mim, preciso é confessar que, nãosendo   pelo   meu   nascimento,   nem   pela   minhaeducação,   destinado   a   ser   homem   de   corte,percebia tão pouco desses assuntos, que não podiadecidir   se   a   sentença   lavrada   contra   mim   erabranda ou rigorosa, justa ou injusta. Nem sequerpedi   licença   para   apresentar   a   minha   defesa:preferia   ser   condenado   sem   ser   ouvido,   porque,tendo   visto   em   outros   tempos   vários   processosidênticos,   sempre  notei  que   terminam consoante

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às   instruções   dadas   aos   juízes   e   conforme   àvontade dos acreditados e poderosos acusadores.Tive certo desejo de resistir, pois que, estando emliberdade,   nem   todas   as   forças   deste   impérioconseguiriam nada de mim e podia facilmente, àpedrada, bater e arrasar a capital; repeli,  porém,esse   projeto   com   horror,   lembrando­me   dojuramento   que   prestara   a   Sua   Majestade,   dosfavores   que  me  havia   concedido   e   da   dignidadede nardac,em   que   fora   investido.   Demais,   nãotinha tão cheio o espírito dos sentimentos da corte,que   me   persuadisse   de   que   os   rigores   de   SuaMajestade   me   permitiriam   liquidar   todas   asobrigações que lhe devia.

Por   fim,   tomei  uma resolução,  que,  conforme asaparências,  será  censurada por algumas pessoasjusticeiras,   porque,   confesso,   foi   uma   grandetemeridade e um péssimo procedimento da minhaparte ter querido conservar os olhos, a liberdade ea vida, contra a vontade da corte. Se conhecessemelhor a  índole dos príncipes e dos ministros deEstado,   que   depois   observei   em   muitas   outrascortes, e o seu método de tratar acusados menoscriminosos do que eu, submeter­me­ia sem custo aum castigo   tão   suave;  mas,   levado  pelo   fogo  damocidade, e tendo antecipadamente obtido licençade   Sua   Majestade   imperial   para   ir   à   corte   deBlefuscu, dei­me pressa, antes de expirado o prazode três dias, em mandar uma carta ao meu amigosecretário,  pela  qual   o   fazia   ciente  da   resoluçãoque   tomara   de   partir   nesse   mesmo   dia   paraBlefuscu,   mediante   a   licença   que   me   foraconcedida,   e,   sem   aguardar   resposta,   dirigi­mepara   a   costa   da   ilha,   onde   estava   a   esquadra.Apossei­me   de   um   grande   navio   de   guerra,

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prendi­lhe   um   cabo   à   proa   e,   levantando   asâncoras,  despi­me,   coloquei  a   roupa   (e  a  mantaque   trazia   no   braço)   sobre   o   navio,   que   trouxeatrás   de   mim,   e   ora   andando,   ora   nadando,cheguei   ao  porto   real   de  Blefuscu,   onde   o  povotanto   tempo   esperara   por   mim.   Deram­me   doisguias para me levar à  capital, que tem o mesmonome.  Conservei­os  nas  mãos  até   chegar  a   cemtoesas   das   portas   da   cidade   e   pedi­lhes   queavisassem da minha chegada um dos secretáriosde Estado, e lhe fizessem saber que aguardava asordens de Sua Majestade.  Como resposta recebi,uma hora depois, a notícia de que Sua Majestade,acompanhado   de   toda   a   comitiva,   vinhareceber­me. Adiantei­me cinqüenta toesas, e o rei ea comitiva apearam­se de suas montadas; a rainhae suas aias saíram dos seus coches, e não noteique a minha presença os assustasse. Deitei­me nochão para beijar as mãos do rei e da rainha. Dissea  Sua  Majestade  que  viera,   cumprindo  a  minhapromessa e com licença do  imperador meu amo,para ter a honra de visitar tão poderoso príncipe, epara   lhe   oferecer   todos   os   serviços   quedependessem de mim e que não fossem contráriosaos deveres contraídos com o meu soberano, semaludir, porém, ao meu desvalimento.

Não   enfastiarei   o   leitor   com   os   pormenores   daminha recepção, que foi consoante à generosidadede tão grande príncipe, nem com os incômodos porque   passei   à   míngua   de   uma   casa   ou   de   umacama,   sendo   obrigado   a   dormir   no   chãoembrulhado na minha manta.

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CAPÍTULO VIII

O autor, por um feliz acaso, encontra meio de deixar Blefuscu e após algumasdificuldades volta à sua pátria.

Três dias depois da minha chegada, passeando eua minha curiosidade pela encosta da ilha que olhapara   o   nordeste,   descobri,   a   meia   légua   dedistância no mar, qualquer coisa que me pareceuum   barco,   de   quilha   para   o   ar.   Descalcei   ossapatos e as meias e, caminhando pela água pertode cinqüenta  toesas,   reparei  em que o objeto  seaproximava com a força da maré e conheci entãoque era una escaler que, pelo que calculei, podiater   sido   desligado   de   um   navio   em   virtude   dealguma tempestade; por essa circunstância torneiapressadamente à cidade e pedi a Sua Majestadeque me cedesse vinte dos maiores navios, que lhehaviam ficado da derrota da sua esquadra, e trêsmil   marinheiros,   sob   as   ordens   de   umvice­almirante.   Os   citados   navios   fizeram­se   devela   e   seguiram   o   seu   rumo,   enquanto   eu   medirigia pelo  caminho mais  curto  à  encosta,  ondeprimeiramente   descobrira   o   escaler.  Notei   que  amaré o tinha aproximado mais da terra. Quando osnavios se me juntaram, despi­me, meti­me na águae avancei até cinqüenta toesas do escaler, depoisdo que me vi obrigado a nadar até que o atingisse;os   marinheiros   lançaram­me   um   cabo,   no   qualamarrei  uma das  extremidades  a  um buraco  naproa do escaler e a outra extremidade a um naviode  guerra;  não pude,  porém, continuar  a  minhaviagem, porque perdi o pé. Pus­me então a nadaratrás   do   escaler   e   a   empurrá­lo   com   uma   dasmãos,   de   maneira   que   a   favor   da   maré   meencaminhei de tal modo para a margem, que pude

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pôr o queixo fora da água e achar pé.  Descanseidurante  uns   três  minutos  e,   em seguida,   impeliainda  o   escaler   até   que  a  água  me  desse  pelasaxilas   e   então  a  maior   fadiga   já   tinha  passado;agarrei   outros   cabos   trazidos  num dos  navios   eliguei­os primeiramente ao escaler e depois a novedos navios que me esperavam; como o vento era defeição e os marinheiros me auxiliaram, procedi demaneira   que   chegássemos   a   vinte   toesas   damargem, e como o mar recuou, alcancei o escaler apé enxuto e, com o auxílio de dois mil homens, decordas e de máquinas,  consegui  virá­lo,  notandoque poucas avarias tinha sofrido.

Levei dez dias para fazer entrar o escaler no portode Blefuscu, onde se acumulou grande multidão,cheia  de  pasmo pela  presença  de   tão  prodigiosaembarcação.

Disse  ao   rei   que  a  minha  boa   estrela  me   fizeraencontrar   aquele   escaler   para   me   transportar   aqualquer outro ponto, de onde poderia regressar aomeu   torrão   natal,   e   pedi   a   Sua   Majestade   quedesse   ordem   para   pôr   aquela   embarcação   emestado   de   servir   e   me   concedesse   licença   paraabandonar os seus Estados o que, após sentidasrecriminações, me foi concedido.

Estava   eu   sobremaneira   surpreendido   de   que   oimperador  de  Lilipute,  depois  da  minha  partida,não   tivesse   feito   quaisquer   diligências   para   meencontrar;   soube,   porém,   que   Sua   Majestadeimperial,   ignorando  que   eu   fora   conhecedor  dosseus   desígnios,   imaginara   que   eu   tinha   ido   aBlefuscu apenas com o intuito de cumprir a minhapromessa, conforme a licença que dele obtivera, eque regressaria em breve; mas, por fim, a minha

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ausência  deu­lhe  cuidado e,   tendo conferenciadocom o tesoureiro e o resto do conluio, foi enviadauma   pessoa   de   distinção   com   uma   cópia   dosartigos   do   processo   contra   mim.   O   mensageirotinha instruções para representar ao soberano deBlefuscu a grande brandura de seu amo, que secontentava em punir­me com a perda da minhavista; que me subtraíra à justiça e que, se eu nãoregressasse no prazo de dois dias, seria despojadodo   meu   título   de nardac   edeclarado   réu   de   altatraição.   O   embaixador   acrescentou   que,   paramanter  a  paz  e  a  amizade  entre  os  dois  países,esperaria que o rei de Blefuscu desse ordem parame   fazer   reconduzir   a   Lilipute,   ligado   de   pés   emãos, para ser punido como traidor.

O rei de Blefuscu, tendo solicitado três dias paradeliberar sobre este assunto, enviou uma respostamuito   sensata   e  muito  prudente.  Observou  que,quanto   a   restituir­me   ligado,   o   imperador   nãoignorava que isso era uma coisa impossível; que,embora   eu   lhe   tivesse   arrebatado   a   esquadra,estava muito reconhecido para comigo em virtudede   alguns   bons   serviços   que   lhe   prestara,   comrelação ao tratado de paz; demais, que em breve severiam   livres   de   mim,   porque   encontrara   namargem um prodigioso  navio   capaz  de  me   levarembarcado;   que   dera   ordem   para   que   opreparassem   consoante   às   minhas   indicações   eaproveitando   o   meu   auxílio,   de   maneira   queesperava,  no prazo de algumas semanas,  que osdois   países   ficariam   livres   de   tão   insuportávelfardo.

O   embaixador   regressou   a   Lilipute   com   estaresposta, e o soberano de Blefuscu referiu­me tudo

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o que se havia passado, oferecendo­me ao mesmotempo, mas em segredo e confidencialmente, a suagraciosa proteção, se quisesse ficar ao seu serviço.Ainda   que   acreditasse   na   sua   sincera   proposta,resolvi   nunca   mais   entregar­me   nas   mãos   denenhum   príncipe,   nem   de   nenhum   ministro,quando podia  passar  sem eles;  esta  a  razão porque, depois de ter manifestado a Sua Majestade omeu  justo reconhecimento pelas suas simpáticasintenções, pedi­lhe, humildemente, que me desselicença para  me retirar,  dizendo­lhe  que,  visto  aboa   ou   má   estrela   me   haver   proporcionado   umbarco,  decidira  me entregar  ao  oceano,  antes  deque   houvesse   rompimento   de   hostilidades   entreaqueles  dois  poderosos   soberanos.  O   rei  não   semostrou ofendido com este meu discurso, e soubemesmo que bastante contente tinha ficado com aminha decisão, e bem assim a mor parte dos seusministros.

Estas considerações levaram­me a partir um poucomais cedo do que projetara, e a corte, que anelavapela   minha   saída,   contribuiu   para   isso   comsolicitude.   Quinhentos   operários   foramempregados no fabrico de duas velas para o meubarco, segundo as ordens, dobrando­se em treze omais grosso tecido que havia lá, e acolchoando­o.Entreguei­me   à   tarefa   de   fazer   cordas   e   cabos,juntando dez, vinte ou trinta dos mais fortes queeles tinham. Uma grande pedra, que tive a sorte deencontrar perto da praia, após aturadas pesquisas,serviu­me de âncora; e gordura de trezentos boisserviu­me   para   encebar   o   meu   escaler   e   paraoutros usos. Tive um trabalho insano em cortar asmaiores  árvores  para   fazer   remos  e  mastros,  noque, contudo, fui auxiliado pelos carpinteiros dos

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navios de Sua Majestade.

Decorrido perto de um mês, quando tudo estava apostos,   fui   ter   com   o   rei   para   receber   as   suasordens   e,   simultaneamente,   fazer   as   minhasdespedidas. O rei, acompanhado da família e corte,saiu  do  palácio.  Deitei­me  de  bruços  para   ter  ahonra de lhe beijar a mão, que me estendeu muitograciosamente,  assim como a rainha e os  jovenspríncipes.   Sua   Majestade   presenteou­me   comcinqüenta bolsas contendo duzentos spruggs cadauma, com o seu retrato em tamanho natural, quemeti   logo   nas   minhas   luvas   para   não   seestragarem.

Embarquei a bordo do escaler cem bois e trezentoscarneiros, com pão e bebidas em proporção e certaquantidade   de   carne   cozida,   tanta   quanto   osquatrocentos   cozinheiros   me   haviam   podidofornecer. Tratei  de obter seis vacas e seis tourosvivos, e igual número de ovelhas e cordeiros, com ofito de os levar ao meu país, para fazer procriar aespécie; forneci­me também de feno e trigo. Não mefaltou   vontade  de   levar   comigo   seis  naturais   dopaís,   mas   o   rei   não   consentiu,   e,   além   de   mepassarem uma minuciosa busca às algibeiras, SuaMajestade fez­me dar a minha palavra de honra deque não levaria nenhum dos seus súditos, aindaque consentissem nisso ou mo pedissem.

Preparadas as coisas deste modo, fiz­me ao mar novigésimo quarto  dia  de Setembro de 1701,  pelasseis  horas  da manhã,   e,  depois  de  ter  navegadoquatro   léguas   para   o   norte,   notei   que   estava   ovento   de   sudoeste;   às   seis   da   tarde   descortineiuma   ilhota   que   se   prolongava   aproximadamentemeia légua para o nordeste. Segui avante e lancei

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ferro   do   lado   da   costa   da   ilhota,   que   estavaabrigada do vento e me pareceu desabitada. Bebialguns refrescos e fui  descansar.  Dormi perto deseis horas, porque o dia começou a despontar duashoras depois de eu ter acordado. Almocei, e, comoo vento estava de  feição,  levantei   ferro e  segui  omesmo rumo do dia anterior,  guiado pela minhaagulha portátil.  Era meu desígnio, caso me fossepossível, aproar a uma das ilhas que, com razão,supunha   situadas   ao   nordeste   da   terra   de   VanDiemen.

Nesse dia nada descobri;  mas no imediato, pelastrês   horas   da   tarde,   depois   de   ter   navegado,segundo os meus cálculos, perto de vinte e quatroléguas, enxerguei um navio que se dirigia para osudoeste. Larguei o pano todo e, ao cabo de meiahora,  o  navio,  que me tinha avistado,  arvorou oseu   pavilhão   e   disparou   um   tiro   de   canhão.   Édifícil patentear a alegria que experimentei com aesperança de tornar a ver novamente o meu país eos queridos entes que lá deixara. O navio ferrou asvelas e veio ao meu encontro, das cinco para asseis   horas   da   tarde   de   26   de   Setembro.   Fiqueilouco de contentamento ao ver o pavilhão inglês.Meti as vacas e os carneiros na algibeira do gibão esubi para bordo com a minha pequena carga devíveres.   Era   um   navio   mercante   inglês,   queregressava do Japão pelos mares do norte e do sul,comandado pelo capitão João Bidell,  de Depford,honrado homem e excelente marinheiro.

Havia a bordo perto de cinqüenta homens, entre osquais encontrei  um antigo camarada meu, PedroWilliams,   que   falou   elogiosamente   de   mim   aocapitão.   Esta   boa   criatura   proporcionou­me

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magnífico acolhimento e pediu­me que lhe dissessede onde vinha e para onde me dirigia, o que fiz empoucas palavras; julgou, porém, que a fadiga e osperigos   que   eu   tinha   corrido   me   haviamtranstornado   a   cabeça,   pelo   que   tirei   logo   daalgibeira as vacas e os carneiros, o que deu lugar auma   grande   admiração   de   seu   lado,   provada,assim,   a   veracidade   do   que   acabava   de   narrar.Mostrei­lhe as moedas de ouro, que me dera o reide Blefuscu, e bem assim o retrato em tamanhonatural   e   muitas   outras   curiosidades   do   país.Dei­lhe   duas   bolsas   com   duzentos spruggs eprometi   que,   chegando   à   Inglaterra,   lhe   fariapresente de uma vaca e de uma ovelha prenhes.

Não importunarei  o  leitor com os pormenores daminha viagem; aproámos às Dunas em 13 de Abrilde 1702. Uma única fatalidade me aconteceu: osratos do navio arrebataram­me uma das ovelhas.Desembarquei o resto do meu gado com excelentesaúde e soltei­o a pastar no canteiro de um jardim,onde se jogava bola, em Greenwich.

Durante   o  pouco   tempo  que  me  deixei   ficar   emInglaterra,   amealhei   um   razoável   pecúlio   emmostrar   os   meus   animais   a   várias   pessoas   deimportância   e   até  à   gente   do  povo,   e,   antes   deempreender   a  minha   segunda   viagem,   desfiz­medeles por seiscentas libras esterlinas. Após o meuúltimo   regresso,   em   vão   procurei   a   raça   quejulgava   consideravelmente   aumentada,principalmente   os   carneiros;   esperava   que   tudoaquilo revertesse em favor das nossas manufaturasde lã pela finura dos velos.

Piquei apenas dois meses em companhia de minhamulher   e   dos   meus:   a   insaciável   paixão   de   ver

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terras estranhas não consentia que estivesse muitotempo sedentário. Entreguei a minha mulher mil equinhentas libras esterlinas e alojei­a numa belacasa   em Redriff;   levei   comigo   o   resto   dos  meusbens,   uma   parte   em   dinheiro   e   outra   emmercadorias,  com o  intuito de aumentá­los.  Meutio John deixara­me umas terras perto de Epping,que rendiam trinta libras esterlinas e eu alugara alongo prazo os Touros Negros, em Fotherlane, queme davam o mesmo rendimento. Por este processo,não   corria   o   risco   de   deixar   minha   família   nanecessidade  de   recorrer   à   caridade  da  paróquia.Meu filho John, a quem dei o nome de meu tio,aprendia latim e freqüentava o colégio; minha filhaIsabel,   casada   atualmente   e   com   filhos,consagrava­se ao trabalho de agulha. Despedi­mede minha mulher  e  de meus  filhos  e,  apesar  debastantes   lágrimas   choradas   de   parte   a   parte,embarquei   corajosamente   a   bordo   do Àventura, navio   mercante,   de   trezentas   toneladas,comandado   pelo   capitão   João   Nicolau.   deLiverpool.

Segunda Parte

VIAGEM A BROBDINGNAG

CAPÍTULO I

O autor, depois de haver suportado um grande temporal, embarca numescaler para se dirigir à terra e é agarrado por um dos seus naturais — Como

foi tratado — Esboço sobre o país e o seu povo.

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TENDO   sido   condenado   pela   natureza   e   pelafortuna   a   uma   agitada   existência,   dois   mesesdepois da minha chegada, como já referi, tornei adeixar a minha terra natal e embarquei nas Dunas,em   20   de   Junho   de   1702,   a   bordo   do   navio Àventura, cujo   capitão,  João  Nicolau,  da  provínciade Cornualha, partia para Surate. Tivemos ventofavorável   até   às   alturas   do   Cabo   da   BoaEsperança, onde lançámos ferro para fazer aguada.Encontrando­se o nosso capitão atacado de umafebre  intermitente,  só  pudemos sair  do Cabo emfins de Março. Tornámos então a fazer­nos de velae a nossa viagem decorreu bem até  o estreito deMadagascar; chegando, porém, ao norte desta ilha,os ventos, que nesses mares sopram sempre entrenorte e oeste, desde o princípio de Dezembro atéprincípio  de  Maio,   começaram em 29 de  Abril  asoprar muito violentamente do lado de oeste, o quedurou   vinte   dias   seguidos,   e   nesse   prazo   fomosimpelidos   um   pouco   para   o   oriente   das   ilhasMolucas   sobre   três   graus   ao   norte   da   linhaequinocial,  o que o nosso capitão descobriu pelocálculo   feito  no  segundo dia  de  Maio,  quando  ovento   amainou;   sendo,   porém,   muitoexperimentado   na   navegação   desses   mares,deu­nos ordem para nos prepararmos para sofreruma   terrível   tempestade,   que   não   tardou   a   sedesencadear.   Principiou   a   levantar­se   um  pé   devento  chamado monção. Temendo  que  o   vento   setornasse demasiadamente forte, ferrámos a vela deestai e pusemo­nos de capa para ferrar a mezena;o temporal, porém, aumentava, e fizemos amarraros canhões e ferrámos a mezena. O navio estava aolargo, e pareceu­nos que o melhor partido a tomarera ir de vento em popa. Amarrámos a mezena eesticámos   as   escotas;   o   leme   estava   voltado   ao

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vento e o navio governava bem. Largámos a velagrande,   mas   ficou   rasgada   com   a   violência   dotemporal. Em seguida, arriámos a grande verga, afim   de   a   desmantilhar   e   cortámos   todas   ascordagens e  o  cadernal  que a  segurava.  No marencapelado as vagas entrechocavam­se. Tirámos asmalaguetas e ajudámos o timoneiro, que não podiagovernar   só.   Não   quisemos   arriar   o   mastro   dagávea,   porque   o   navio   aguentava­se   melhorcorrendo com o tempo e estávamos persuadidos deque prosseguiria o seu rumo mesmo com o mastroiçado.

Vendo   que   nos   encontrávamos   muito   ao   largodepois da tempestade, largámos a mezena e a velagrande   e   navegámos   com   vento   da   alheta;   emseguida   largámos o  velacho,  a   vela  de  estai   e  agávea. O nosso rumo era este­nordeste, e o ventoera   de   sudoeste.   Amarrámos   a   estibordo   edesamarrámos   de   barlavento,   braceámos   asbolinas e pusemos o navio mais perto do vento, atodo   o   pano.   Durante   este   temporal,   que   foiseguido desse impetuoso vento, de este­sudoeste,fomos impelidos, segundo os meus cálculos, paraquinhentas   léguas   aproximadamente   para   oOriente,   de   modo   que   o   mais   velho   e   o   maisexperimentado   dos   marinheiros   não   nos   soubedizer   em   que   parte   do   mundo   estávamos.Entretanto, os nossos víveres não faltavam, o navionão abrira água e a nossa tripulação gozava boasaúde;   a   ração   de   água,   porém,   era   muitodiminuta.   Pareceu­nos,   pois,   mais   convenientecontinuar a mesma rota, em vez de voltarmos aonorte,   o   que   talvez   nos   tivesse   levado   até   àsparagens da Grande Tartária que ficam mais paranordeste e no mar Glacial.

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A   16   de   Junho   de   1703,   um   gageiro   descobriuterra do alto do  joanete;  a 17, vimos claramenteuma   grande   ilha   ou   um   continente,   (pois   nãosoubemos   qual   das   duas   coisas   era),   ao   ladodireito do qual havia uma pequena língua de terra,que entrava pelo mar e uma enseada demasiadobaixa para poder receber um navio com mais decem toneladas. Lançámos ferro a uma légua dessaenseada; o nosso capitão mandou doze homens dasua   equipagem   bem   armados   na   chalupa,   comrecipientes para água,  caso pudessem encontrar.Pedi­lhe licença para os acompanhar a esse país efazer   as   descobertas   que   pudesse.   Quandodesembarcámos,   não   encontrámos   nem   ribeira,nem fontes, nem vestígio algum de habitantes,  oque forçou nossa gente a costear a margem paraprocurar água doce junto do mar. Quanto a mim,passeei   só   e   caminhei   aproximadamente   umamilha dentro dessas terras, que percebi logo seremapenas   uma   região   estéril   e   cheia   de   rochedos.Principiei   a   aborrecer­me,   e,   não   vendo   coisaalguma   que   pudesse   satisfazer   a   minhacuriosidade, tornei tranqüilamente para a enseada,quando   vi   os   nossos   homens   na   chalupa,   quepareciam tentar, à força de remos, salvar a vida, enotei ao mesmo tempo que eram perseguidos porum homem de   tamanho descomunal.  Ainda  queentrasse   pelo   mar   dentro,   a   água   apenas   lhechegava aos joelhos e dava espantosas pernadas;os   nossos   homens,   porém,   tinham   o   avanço   dequase meia  légua e como o mar neste ponto eracheio   de   rochedos,   o   homenzarrão   não   pôdealcançar   a   chalupa.   Por   minha   parte,   desatei   afugir   tão   rapidamente   quanto   as   pernas   mopermitiam, e trepei até ao cume de uma escarpadamontanha, que me proporcionou o meio de avistar

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uma parte da região. Achei­a muito bem cultivada;mas   o   que   a   princípio   me   surpreendeu   foi   otamanho da erva, que me pareceu ter mais de vintepés de altura.

Tomei por uma estrada que se me afigurou para oshabitantes  uma pequena vereda que  atravessavaum   campo   de   cevada.   Por   aí   caminhei   durantealgum tempo,  mas  eu nada podia  ver,  porque  otempo da ceifa estava próximo e os trigos tinham aaltura   de   quarenta   pés.   Caminhei   seguramenteuma   hora   antes   de   que   conseguisse   chegar   aoextremo desse campo, que era defendido por umasebe   alta,   de   uns   cento   e   vinte   pés;   quanto   àsárvores,   essas   eram   tão   grandes,   que   não   lhespude calcular a altura.

Tentei encontrar alguma abertura na sebe, quandoenxerguei   um   dos   habitantes   em   um   campopróximo, do mesmo tamanho daquele que vira nomar   perseguindo   a   chalupa.   Afigurou­se­me   tãoalto como um campanário vulgar, e cada pernadaocupava o espaço de cinco toesas. Fui tomado degrande terror e corri a ocultar­me no trigo, de ondeo   vi   parar   junto   de   uma   abertura   da   sebe,lançando a vista para um e outro lado e chamandocom   uma   fortíssima   e   ressonante   voz,   como   separtisse de um porta­voz; o som era tão forte e tãoelevado,   que   a   princípio   julguei   ser   um   trovão.Logo   sete   homens   da   sua   estatura   seencaminharam   para   ele,   todos   de   foicinhaempunhada   e   cada   foicinha   era   do   tamanho  deseis  foices das usadas na Europa. Estes homensnão estavam tão bem vestidos como o primeiro epareciam   criados.   Apenas   receberam   ordem,dirigiram­se para o campo em que eu estava, para

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ceifar   o   trigo.   Afastei­me   deles   o   mais   que   foipossível; mas movia­me com extrema dificuldade,porque   os   colmos   de   trigo   eram   algumas   vezesmuito distantes uns dos outros,  de maneira quequase se me tornava impossível caminhar naquelaespécie de mata. Contudo, dirigi­me para um sítiodo campo, onde a chuva e o vento tinham acamadoo trigo; foi­me, então, totalmente impossível ir maisalém, porque os caules estavam tão entrelaçados,que não havia meio de atravessá­los e as barbasdas espigas caídas eram tão fortes e tão agudas,que me picavam através da veste, penetrando­mena   carne.   Entretanto,   percebi   que   os   ceifadoresdistavam   de   mim   umas   cinqüenta   toesas.Sentindo­me completamente exausto e reduzido aodesespero, deitei­me entre dois sulcos e desejava aíacabar   os   meus   dias,   representando­se­me   aminha viúva desolada,  com meus  filhos órfãos edeplorando   a   minha   loucura,   que   me   fizeraempreender essa segunda viagem contra a vontadede todos os meus amigos e parentes.

Nesta terrível agitação, não podia deixar de pensarno país de Lilipute,  cujos habitantes me haviamconsiderado como o maior prodígio que até entãoaparecera no mundo, onde era capaz de arrastarsó  com uma das mãos  toda uma esquadra e depraticar outras ações maravilhosas, cuja memóriaserá eternamente conservada nas crônicas daqueleimpério,   embora   a   posteridade   não   queiraacreditar,  ainda que confirmadas por uma naçãointeira. Refleti que mortificação não seria para mimparecer   tão  miserável   aos   olhos  da  nação,   ondeagora me encontrava, como o seria um liliputianoentre nós; no entanto, olhava isto como a menordas minhas fatalidades, porque é coisa para notar

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que  os   entes  humanos   são  ordinariamente  maisselvagens   e   mais   cruéis   em   proporção   ao   seutamanho e, assim refletindo, que podia eu esperarsenão ser um manjar na boca do primeiro daquelesenormes bárbaros que me apanhasse? De fato, osfilósofos   têm   razão,   quando   dizem   que   não   hágrande   nem   pequeno   senão   por   comparação.Talvez os Liliputianos encontrassem alguma naçãomenor em relação a eles,  como me pareceram, equem sabe se esta prodigiosa raça de mortais nãoseria   uma   nação   liliputiana   em   relação   à   dequalquer outro país, que não descobrimos ainda?Mas,   aterrado   e   confuso,   como   estava,   não   fizentão todas estas observações filosóficas.

Um dos ceifeiros, acercando­se a cinco toesas dosulco  em que  estava deitado,   fez­me recear  que,dando mais um passo, me esmagasse com o pé oume cortasse em dois com a foicinha; foi por issoque, vendo­o prestes a levantar o pé e a caminhar,comecei a soltar gritos de piedade tão fortes quantoo   terror   de   que   estava   possuído   me   consentiu.Considerou­me algum tempo com a circunspeçãode   um   homem   que   tenta   agarrar   um   pequenoanimal perigoso, de forma que não seja arranhadonem   mordido,   como   eu   próprio   fizera   algumasvezes na Inglaterra com respeito a uma doninha.Por   fim,   ousou   tomar­me   pelas   nádegas   eergueu­me a toesa e meia da sua vista, a fim deexaminar   o   meu   rosto   mais   atentamente.Adivinhei­lhe   a   intenção   e   resolvi   não   fazer   amenor resistência, enquanto ele me suspendia noar a mais de sessenta pés do chão, ainda que meapertasse   cruelmente   as   nádegas,   receando   quelhe escorregasse por entre os dedos. Tudo o queousei fazer foi limitar­me a olhar para o céu, e pôr

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as mãos em atitude suplicante e a proferir algumaspalavras num tom muito humilde e muito triste,em   conformidade   com   o   estado   em   que   meencontrava então,  porque  a   todo o  momento  mearreceava de que me quisesse esmagar,  como deordinário   esmagamos   certos   animaizinhosdaninhos   que   queremos   matar;   ele,   no   entanto,pareceu   contente   com   a   minha   voz   e   os   meusgestos   e   principiou   a   olhar­me   como   um  objetocurioso,   ficando   bastante   surpreendidoouvindo­me falar.

Entretanto, não podia deixar de gemer e de chorar,e,   voltando   a   cabeça,   fazia­lhe   perceber,   tantoquanto podia, quanto me magoava o seu índice e opolegar.  Pareceu  ter  compreendido a  dor  que eusentia,  porque, erguendo uma aba do seu gibão,me colocou carinhosamente dentro dela e correulogo ao amo, que era o único lavrador, o mesmoque eu tinha visto no campo havia pouco.

O   lavrador   pegou   em   um   pedacinho   de   palhaquase da grossura de uma bengala de uso comum,e   com   essa   palhinha   ergueu   as   abas   do   meucasaco,   tomando­as,   pelo   que   me   pareceu,   poruma espécie de cobertura com que a Natureza medotara;  soprou os cabelos para melhor me ver  orosto; chamou os criados, perguntou­lhes, segundosupus, se já alguma vez tinham visto algum animalparecido   comigo.   Depois,   colocou­me   com   amáxima cautela no chão com as quatro patas, maseu me levantei logo e caminhei com gravidade, deum lado para o outro, para dar a entender que nãotinha em mente fugir. Sentaram­se todos em voltade   mim,   para   melhor   examinar   os   meusmovimentos.  Tirei  o  chapéu e cumprimentei  mui

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submissamente o lavrador, lancei­me a seus pés,levantei   as  mãos   e   a   cabeça,   e   proferi   algumaspalavras   o   mais   fortemente   que   pude.   Tirei   daalgibeira uma bolsa cheia de ouro e apresentei­lhahumildemente.   Recebeu­a   na   palma   da   mão   echegou­a muito perto dos olhos para ver o que erae em seguida virou­a e revirou­a com a ponta deum   alfinete   que   tirou   da   manga,   mas   nadapercebeu. Nisto,   fiz­lhe sinal para que pusesse amão no chão e, tomando a bolsa, abri­a e espalheitodas as moedas de ouro na sua mão. Tinha seismoedas espanholas de quatro pistolas cada uma,sem   contar   umas   trinta   moedas   menores.   Vi­omolhar o dedo mínimo na língua e levantar umadas   moedas   maiores   e   logo   outra;   pareceu­me,porém,   ignorar   completamente   o   que   era;indiquei­lhe que as tornasse a guardar na bolsa eque a metesse na minha algibeira.

O lavrador ficou então persuadido de que eu erauma   criatura   pensante;   dirigiu­me   a   palavra   amiúdo,  mas  o   timbre  da   sua   voz  aturdia­me  osouvidos como se fora uma azenha; no entanto, aspalavras   eram claras.  Respondi   o  mais  alto  quepude em várias línguas e muitas vezes aplicou oouvido a uma toesa de mim, mas em vão. Depois,mandou a sua gente voltar para o seu trabalho, e,puxando pelo lenço, dobrou­o em dois e colocou­ona mão esquerda que pusera no chão, fazendo­mesinal  para que saltasse para dentro,  o que pudefazer  com facilidade,  porque não tinha mais  queum pé de espessura. Pareceu­me dever obedecer e,receando cair, deitei­me ao comprido no lenço, emque me envolvi e, por essa maneira, fui levado atéà sua casa. Aí, chamou a mulher e apresentou­ma;ela, porém, soltou horríveis gritos e recuou como

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fazem as mulheres em Inglaterra ao ver um sapoou uma aranha. Entretanto,  quando, ao cabo decerto tempo, reparou em todos os meus modos eem como eu compreendia os sinais que o maridome fazia, começou a tratar­me com mais ternura.

Estava próximo o meio­dia e então um criado pôs ojantar  na  mesa.  A   refeição   era,   conforme  o  usocomum do   lavrador,   constituída  de  carne  cozidadentro de um prato com o diâmetro aproximado devinte   e   quatro   pés.   A   família   compunha­se   dolavrador, da mulher, de três filhos e de uma velhaavó.   Assim   que   se   sentaram,   o   dono   da   casacolocou­me a pequena distância dele, em cima damesa   que   tinha   uns   trinta   pés   de   altura.Coloquei­me o mais afastado possível do rebordo,com medo de dar uma queda. A mulher cortou umbocado de carne, em seguida pão em um prato demadeira   que   pôs   diante   de   mim.   Fiz­lhe   umareverência muito humilde e, fazendo uso do meugarfo e da minha faca, comecei a comer, o que lhescausou grande satisfação. A dona da casa mandoua   criada   buscar   um   pequeno   cálice   que   tinhacapacidade para dez canadas; depois, encheu­o deum líquido. Ergui o cálice com grande dificuldadee, com um modo muito respeitoso,  bebi à  saúdedela, exprimindo­me em inglês o mais alto que mefoi   possível,   o   que   fez   com   que   os   assistentesdessem tão grandes gargalhadas que quase fiqueisurdo.  Este   líquido   tinha  um pouco  o   sabor  dacidra  e  não  era  desagradável.  O   lavrador   fez­mesinal para que me colocasse ao lado do seu pratode   madeira;   mas,   caminhando   muito   depressa,tropecei numa côdea de pão e caí de bruços, semque,   contudo,   me   magoasse.   Levantei­me   logo,notando   que   aquela   boa   gente   estava   muito

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contristada,   agarrei   o   meu   chapéu   e,   fazendo­ovoltear   sobre   a   cabeça   umas   poucas   de   vezes,soltei três vivas para provar que não tinha sofridodano   algum;   ao   encaminhar­me,   porém,   para   omeu amo, (este é  o nome que doravante lhe voudar), o  filho mais novo, que estava sentado maisperto dele, e que era maldoso, tendo pouco mais oumenos   dez   anos,   agarrou­me   pelas   pernas   elevantou­me   a   tamanha   altura,   que   todo   euestremeci.  O  pai   livrou­me  das   suas  mãos   e   aomesmo   tempo   assobiou­lhe   com   tanta   força   oouvido esquerdo, que seria capaz de deitar abaixoum regimento de cavalaria européia, e mandou­osair da mesa; temendo, porém, que o pequeno meficasse com zanga, pois sei bem o que são rapazes,sempre  maus   e  prontos   a   fazer   perversidades   aaves,   a   gatos,   a   cães   e   a   coelhos,   lancei­me  dejoelhos e pedi instantemente ao pai, indicando­lheo   filho,   que   o   desculpasse.   O   pai   acedeu   e   orapazinho  retornou a  seu  lugar;   então,  dirigi­mepara ele e beijei­lhe a mão.

A meio do  jantar,  o  gato  favorito  da minha amasaltou­lhe para o colo. Ouvi atrás de mim um ruídosemelhante   ao   de   doze   fabricantes   de   meiastrabalhando, e, voltando a cabeça, notei que era ogato  que miava.  Pareceu­me três vezes maior  doque um boi, quando lhe examinei a cabeça e umadas patas, enquanto a ama lhe dava de comer e lhefazia festas. A ferocidade do focinho deste animaldesconcertou­me completamente, embora estivessea respeitável distância da mesa, a uns cinqüentapés pelo menos, e embora a minha ama segurasseo  bichano com medo que  me  saltasse;  mas  nãohouve novidade e o gato poupou­me.

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Meu amo postou­me a toesa e meia do gato e comosei que, sempre que se foge de um animal feroz ouse   mostra   medo,   o   animal   persegue­nosinfalivelmente, resolvi portar­me convenientementejunto   do   bichano   e   andei   resolutamente   umasdezoito   polegadas,   o   que   o   fez   recuar   como   setivesse medo de mim. Os cães não me assustaramtanto.   Entraram   uns   quatro,   e,   entre   eles,   ummastim do tamanho de quatro elefantes e um galgomais alto, mas menos corpulento.

Ao fim do jantar, entrou a ama de leite, trazendoao colo uma criança de um ano que, assim que meviu, soltou gritos tão fortes, que não me custavanada acreditar se ouvissem da ponte de Londresaté  Chelsea. A criança, olhando­me como se foraum boneco ou uma bugiganga, chorava, porque mequeria  para  brinquedo.  A  mãe  pegou em mim eentregou­me nas mãos da criança, que me levou àboca;   ao   ver­me   em   tal   situação,   dei   tamanhosgritos, que a criança, assustada, deixou­me cair, eteria  infalivelmente quebrado a  cabeça se a  mãenão me aparasse no avental. A ama, para sossegaro pequeno, deu­lhe um guizo do tamanho de umapipa, cheio de pedregulhos, e preso, por meio deuma corda, à cintura do pimpolho. Isso porém nãoo sossegou,  tendo a ama de recorrer ao extremoremédio   e   que   foi   dar­lhe  de  mamar.  Forçoso  éconfessar  que  nunca  vi   coisa  que  mais  nojo  mecausasse   do   que   os   peitos   da   citada   ama,   nãosabendo mesmo a que possa compará­los.

Isto fez­me lembrar os peitos das damas inglesas,que tão encantadores são e que nos aparecem taiscomo são, porque são proporcionais à nossa vista eà   nossa   estatura;   entretanto,   o   microscópio,

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aumentando­os,   faz­nos   aparecer   muitos   sítios,que   escapam   à   vista   desarmada,   tornando­osextremamente   feios.   Pois   os   peitos   da   amaobedeciam   a   estas   regras.   Assim   foi   que,   emLilipute,   uma   mulher   me   dizia   que   lhe   pareciamuito feio, que descobria na minha pele grandesburacos,   que  os  pêlos  da  barba   eram dez  vezesmais ásperos do que as cerdas do porco e a minhatez,   composta   de   diversas   cores,   não   podia   sermais desagradável,  ainda que seja  louro e passepor possuir uma bonita carnação.

Depois  do   jantar,  meu  amo  mandou   chamar   osceifeiros e,  pelo que  lhe percebi pela voz e pelosgestos, encarregou a mulher de ter grande cuidadocomigo. Sentia­me bastante cansado e com grandevontade  de  dormir;  percebendo  isso,  minha amameteu­me na sua cama e tapou­me com um lençobranco, mas muito mais largo do que a vela de umnavio.

Dormi duas horas e sonhei que estava em casa aolado  de  minha  mulher   e   de  meus   filhos,   o   quetornou maior a minha aflição quando, ao acordar,me encontrei só num enorme quarto de duzentos atrezentos pés de comprido por duzentos de alto edeitado numa cama com a largura de dez toesas.Minha ama saíra para tratar dos serviços da casa etinha­me deixado fechado. A cama ficava à alturade   quatro   toesas   do   chão;   contudo,   certasnecessidades naturais forçavam­me a descer, e nãome atrevi a chamar; embora o tentasse, seria emvão, pois uma voz como a minha, e estando a tãogrande distância, como a que havia do quarto emque  eu estava,  à   cozinha,  onde  se  encontrava  afamília,   não   era   fácil   de   ouvir.   Entretanto,   dois

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ratos   treparam   ao   longo   dos   cortinados   edesataram a correr pela cama; um aproximou­seda   minha   cara   e   tão   assustado   fiquei,   que   melevantei   logo   empunhando   um   sabre   para   medefender.   Estes   terríveis   animais   tiveram   ainsolência de me atacar por dois lados, mas furei abarriga de um, enquanto o outro fugiu. Após essefeito, deitei­me para descansar um pouco e tornara mim. Estes animais eram do tamanho de um cãode   fila,   mas   infinitamente   mais   ágeis   e   maisferozes,   de   maneira   que,   se   tivesse   tirado   ocinturão   e   posto   debaixo   de   mim   antes   de   medeitar,   teria   sido   infalivelmente   devorado   pelosratos.

Pouco depois,  a minha ama entrou no quarto e,vendo­me   cheio   de   sangue,   pegou   em   mim.Apontei­lhe o rato morto, sorrindo e fazendo outrossinais, dando­lhe a entender que não estava ferido,o   que   lhe   causou   certa   alegria.   Tentei   fazer­lhecompreender que desejava muito ir para o chão, oque ela fez, mas o acanhamento não me permitiuexprimir   de   outra   maneira,   que   não   fosseapontando para a porta e fazendo muitas mesuras.A bondosa mulher percebeu, ainda que com certadificuldade, e, tomando­me pela mão, levou­me atéao   jardim,   onde  me  deixou.  Afastando­me  umascem   toesas   e,   fazendo   sinal   para   que   me   nãoolhasse, ocultei­me entre duas folhas de azedas eaí fiz o que o leitor facilmente adivinhará.

CAPÍTULO II

Retrato da filha do lavrador — O autor é levado a uma cidade onde havia umafeira, e, em seguida, à capital — Pormenores da sua viagem.

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A citada senhora  tinha uma  filha de  nove  anos,criança   muito   inteligente   e   esperta   para   a   suaidade. A mãe de combinação com ela, lembrou­sede me preparar,  para passar a noite,  a cama daboneca, antes que anoitecesse. Meteram a referidacama   numa   gaveta   da   mesinha   de   cabeceira   ecolocaram esta gaveta em cima de uma prateleira,suspensa  na  parede,   por   causa  dos   ratos;   e   foiessa   a   cama   em   que   dormi   durante   a   minhapermanência em casa de tão bondosas criaturas.Era   tão   hábil   esta   pequena,   que,   depois   de   mevestir  e  despir­me diante  dela  umas duas vezes,soube vestir­me e despir­me, quando lhe aprazia,embora fosse só  por obediência, que lhe eu davasemelhante trabalho; fez­me seis camisas e outrasespécies de roupa branca, do mais fino pano quefora possível encontrar­se, (e que, em boa verdade,era muito mais grosso do que o tecido para velasde   navio),   e   ela   própria   as   lavava.   A   minhalavadeira   armara­se   também   em   professora,ensinando­me o  idioma do seu país.  Quando euapontava   para   qualquer   coisa,   dizia­me   logo   onome que tinha, de maneira que, dentro em pouco,fiquei apto para pedir o que queria; era de muitoboa índole; deu­me o nome de Grildrig, palavra quesignifica   aquilo   a   que   os   Latinoschamam homúnculos, os   italianoshomunceletino eos   ingleses manikin. É   a   ela   que   devo   aconservação   da   minha   existência.   Estávamossempre   juntos;  eu chamava­lhe Glumdalclitch,  oumestrazinha,   e   seria   um   indício   de   negraingratidão se alguma vez esquecesse os cuidados ea afeição que me proporcionava. De todo o coração,desejo   que   um   dia   esteja   em   condições   de

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retribuí­los, em lugar de ser talvez a inocente, masfunesta,   causa   da   sua   desventura,   como   tiveocasião de verificar.

Corria   então   por   todo   o   país   que   o   meu   amoencontrara no campo um animal, do tamanho de,talvez,   um splacnuck(animal   da   região   que   deviater seis pés) e com a mesma configuração de umente   humano;   que   imitava   o   homem   nas   suasmenores   ações   e   parecia   falar   uma   espécie   delinguagem, que lhes era própria; que já aprenderamuitos vocábulos do idioma deles; que caminhavadireito   sobre   os   dois   pés,   era   dócil   e   tratável,acudia  logo  que o  chamavam,  fazia   tudo quantolhe ordenavam, tinha os membros delicados e umatez mais branca e mais fina do que a filha de umfidalgo aos três anos de idade. Um lavrador, seuvizinho   e   seu   íntimo   amigo,   veio   fazer­lhe   umavisita   para   verificar   a   veracidade   do   boato   quecorrera. Mandaram­me logo chamar; colocaram­meem cima da mesa,  por onde caminhei,  como meordenavam. Desembainhei e embainhei a espada;cumprimentei o amigo do meu amo; perguntei­lhe,na língua do seu país, como ia de saúde, dei­lhe asboas vindas, enfim, segui todas as indicações daminha pequena professora. Este homem, a quem aavançada idade cansara a vista, pôs os óculos parame ver melhor; essa ação fez­me soltar uma grandegargalhada.   As   pessoas   da   família,   quedescobriram o motivo  da minha alegria,   tambémdesataram a rir; o alvejado, porém, era tão gebo etão palerma, que não se melindrou com isso. Tinhaa aparência de um avarento e isso foi confirmadopelo estúpido conselho que deu a meu amo, paraque me fizesse ver por dinheiro em qualquer dia defeira, na cidade próxima, afastada da nossa casa

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mais   de   vinte   e   duas   milhas.   Pareceu­me   quefalavam a meu respeito, pois o faziam em segredo,durante algum tempo, e outras vezes olhavam paramim e apontavam­me.

No dia seguinte, de manhã, Glumdalclitch, a minhajuvenil   ama,   confirmou   as   minhas   suspeitas,contando­me   toda   a   conversa   que   tivera   com   amãe.   A   pobre   pequena   meteu­me   no   seio   ebastantes   lágrimas   chorou;   receava   que   meacontecesse   algum   mal;   que   me   pisassem,   meestropeassem,   ou,   talvez,   homens   rústicos   ebrutais me esmagassem, quando me segurassem.Como notasse que era de  índole modesto e muitodelicado   em   tudo   quanto   respeitava   à   minhahonra,   apoquentava­se   por   me   ver   exposto   pordinheiro à  curiosidade do mais baixo povo;  diziaque   o   pai   e   a   mãe   lhe   tinham   prometidoque Grildrig seria   tudo   para   ela,   porém   que   viaperfeitamente que queriam enganá­la, como no anoanterior lhe haviam feito, quando lhe fingiram darum cordeiro, que, tornado carneiro, foi vendido aum magarefe.  Quanto  a  mim,  posso  dizê­lo  comverdade,   senti   menos   pesar   do   que   a   minhapequena dona.  Concebi  grandes  esperanças,  quenunca   me   abandonaram,   de   que   um   diarecuperaria a liberdade e, com respeito à ignomíniade ser transportado de um lado para o outro, comoanimal raro, pensei que tal desgraça nunca poderiaser   repreensível   e   não   atingiria   a  minha  honra,quando chegasse à Inglaterra, porque o próprio reida   Grã­Bretanha,   se   estivesse   em   idênticascircunstâncias, teria a mesma sorte.

Meu amo, conforme a opinião do amigo, meteu­meem um caixote   e,   no   dia   da   feira,   conduziu­me

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para a cidade próxima com a filha. O caixote eratodo tapado e apenas tinha alguns buracos paradeixar entrar o ar. A minha amiguinha tinha tido ocuidado de colocar debaixo de mim o colchão dacama da sua boneca; entrementes, fui rudementesacudido durante  a  viagem,  que,  no entanto,   foiapenas de meia hora. O cavalo andava quarentapés aproximadamente cada passo, e trotava de talmaneira, que a oscilação era a mesma de um naviopor ocasião de temporal; o caminho era um poucomais comprido do que de Londres a Saint­Albans.O meu dono apeou­se do cavalo numa estalagem,onde costumava  ficar  e,  depois de conversar umpouco   com   o   estalajadeiro   e   fazer   algunspreparativos   necessários,   alugou   um grultred, oupregoeiro público, para chamar a atenção de toda acidade para um animal raro, que se poderia ver porindicação  da Águia­Verde, que   era  menor  do  queum splacnuck e  parecido,   em  todas  as  partes  doseu corpo, com uma criatura humana, que podiapronunciar muitas palavras e fazer uma infinidadede frases retumbantes.

Fui  colocado sobre  uma mesa  na  maior  sala  daestalagem,   que   tinha   quase   trezentos   pésquadrados. A minha pequena dona mantinha­se depé  em um tamborete muito perto da mesa, paratomar conta de mim e dar­me instruções sobre oque   deveria   fazer.   O   meu   dono,   para   evitar   amultidão   e   a   desordem,   não   consentiu   queentrassem mais de trinta pessoas de cada vez parame verem. Andei por um lado e outro em cima damesa,   seguindo   as   indicações   da   menina.Dirigiu­me   algumas   perguntas,   que   tinhamresposta ao meu alcance e respondi o melhor e omais   alto   que   me   foi   possível.   Voltei­me   várias

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vezes   para   todos   os   circunstantes   e   fiz   milcumprimentos.   Tomei   um   dedal   cheio   de   vinho,que Glumdalclitch me dera como copo, e bebi à suasaúde. Desembainhei a espada e fiz o molinete àmaneira   dos   esgrimistas   de   Inglaterra.   A   minhadona   deu­me   uma   haste   de   palha,   fazendoexercícios nela como funâmbulo, que aprendera naminha meninice. Nesse dia, fui mostrado durantedoze vezes e obrigado a repetir sempre a mesmacoisa, até que estivesse quase morto de fadiga, deaborrecimento e de desgosto.

Aqueles  que  me viram  fizeram tais   referências  ameu respeito, que o povo quis forçar as portas paraentrar.

Meu   amo,   tendo   em   vista   os   seus   própriosinteresses,   não   deixou   que   pessoa   alguma   metocasse, salvo a filha, e, para me colocar mais aoabrigo de qualquer acidente, enfileirara bancos emvolta da mesa, a uma distância que me punha forado alcance do espectador. No entanto, um pequenoe   mau   estudante   arremessou­me   à   cabeça   umanoz,   e   por   pouco   que   me   não   alcança;   foiarremessada com tanta força que, se o golpe lhenão falhava, ter­me­ia feito saltar os miolos, poisera quase tão grande como um melão; tive, porém,o prazer de ver que o estudantinho foi posto forada sala.

Meu amo fez anunciar que, no dia seguinte, haviaainda  de  mostrar­me;   entretanto,   arranjaram­meum   modo   de   condução   mais   cômodo,   visto   queficara derreadíssimo com a primeira viagem, e como   espetáculo   que   dera   durante   oito   horasconsecutivas não me podia ter nas pernas e quaseestava sem voz.  Para concluir,  quando estava de

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volta, os fidalgos das vizinhanças, ouvindo falar demim, foram ter à casa do meu amo. Houve um diaem   que   apareceram   mais   de   trinta   com   asmulheres   e   os   filhos,   porque   nesse   país,   assimcomo na Inglaterra,  há  muitos  fidalgos ociosos emandriões.

Meu amo, vendo o proveito que podia tirar de mim,resolveu   deixar­me   ver   nas   mais   importantescidades   do   reino.   Tendo­se   fornecido   das   coisasmais necessárias para uma viagem longa,  depoisde ter regulado os seus negócios particulares, e dese haver despedido da mulher, a 17 de Agosto de1703,   aproximadamente   dois   meses   depois   daminha   chegada,   partimos   em   direção   à   capital,situada   no   centro   deste   império,   a   quinhentasléguas de distância da nossa moradia.  Meu amofez   sentar   a   filha   na   garupa,   por   detrás   dele.Levou­me em uma caixa presa em volta do corpo,metida no pano mais fino que ela pôde encontrar.

A   vontade   de   meu   amo   era   fazer­me   ver   pelocaminho, em todas as cidades, vilas e aldeias umpouco  importantes,  e percorrer até  os solares danobreza que pouco o desviassem do seu caminho.Fizemos jornadas pequenas, apenas de oitenta oucem   léguas,   porque Glumdalclitch,   de   propósito,para me evitar fadiga, queixou­se de que já estavamoída com o andamento do cavalo. Muitas vezesme tirava da caixa para tomar um pouco de ar.Atravessamos   uns   seis   rios   mais   largos   e   maisprofundos   que   o   Nilo   e   o  Ganges,   e   quase   nãohavia ribeiro que não fosse maior do que o Tâmisana ponte de Londres. Demorámo­nos três semanasnessa   viagem   e   fui   exibido   em   dezoito   grandescidades, sem contar várias aldeias e muitos solares

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de província.

Ao   vigésimo   sexto   dia   de   Outubro,   chegámos   àcapital,   chamada   na   sua   língua Lorbrulgrud ouo Orgulho   do   Universo.Meu   amo   alugou   umaposento   na   principal   rua   da   cidade,   poucoafastado   do   palácio   real,   e   distribuiu,   conformecostumava, programas, contendo uma minuciosa eatraente descrição da minha pessoa e das minhashabilidades. Alugou uma grande sala de trezentosa quatrocentos pés de largura, onde colocou umamesa com sessenta pés de diâmetro, em cima daqual   eu   devia   desempenhar   o   meu   papel;   fê­lacercar de paliçadas, para evitar que eu caísse. Foiem cima desta mesa que me exibiu dez vezes pordia,   com grande   espanto   e   satisfação  de   todo   opovo.   Então,   sabia   eu   falar   sofrivelmente   a   sualíngua   e   entendia   perfeitamente   tudo   quantodiziam   de   mim;   além   disso,   aprendera   o   seualfabeto   e  podia,   embora   com certo   custo,   ler   eexplicar   os   livros,   porqueGlumdalclitch dera­melições em casa do pai e nas horas de descanso nodecorrer  da viagem;  trazia um livro na algibeira,um pouco maior do que um volume de atlas, livropara uso das crianças, e que era uma espécie decatecismo   resumido;   servia­se   dele   para   meensinar   as   letras   do   alfabeto   e   dava­me   ainterpretação das palavras.

CAPÍTULO III

O autor é mandado para a corte; a rainha compra­o e o apresenta ao rei —Discute com os sábios de Sua Majestade — Preparam­lhe um aposento —

Torna­se favorito da rainha — Mantém a honra do seu país — As suasquestões com o anão da rainha.

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O   trabalho   e   o   cansaço,   durante   alguns   dias,abalaram   a   minha   saúde,   porque,   quanto   maismeu   amo   ganhava,   mais   se   tornava   insaciável.Perdera   completamente   o   apetite   e   quase   metornara um esqueleto. Meu amo, dando por isso ejulgando que pouco tempo teria de vida, resolveufazer­me   valer   o   mais   possível.   Enquanto   assimraciocinava, um sardral, ou escudeiro do rei,  veiodar   ordem   a   meu   amo   para   me   levarimediatamente   à   corte,   para   divertimento   darainha   e   de   todas   as   damas.   Algumas   dessasdamas   já   me   haviam   visto   e   relataram   coisasestupendas  acerca  da  minha pequena  figura,  domeu gracioso garbo e da minha fina inteligência.Sua Majestade e a comitiva ficaram extremamenteencantadas com as minhas maneiras. Ajoelhei­mee pedi graciosamente vênia para lhe beijar o realpé;   esta   princesa,   porém,   apresentou­me   o   seudedo   mínimo,   que   abrangi   com   os   meus   doisbraços e onde pousei, com o máximo respeito, osmeus   lábios.   Dirigiu­me   perguntas   gerais   comreferência ao meu país e às minhas viagens, ao querespondi o mais distintamente que me foi possível,empregando   poucas   palavras;   perguntou­me   seficaria satisfeito em viver na corte; fiz uma grandereverência até  tocar na mesa em que me haviamcolocado, e respondi humildemente ser escravo domeu amo, porém que, se isso apenas dependessede mim, ficaria encantado em consagrar a minhavida   ao   serviço   de   Sua   Majestade:   em   seguida,perguntou a meu amo se queria vender­me. Ele,que supunha que a minha vida não ia além de ummês, ficou radiante com a proposta e fixou o preçoda   minha   venda   em   mil   peças   de   ouro,   queimediatamente lhe foram entregues. Pedi então àrainha que, visto haver­me tornado escravo de Sua

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Majestade,   me   concedesse   a   mercê   deque Glumdalclitch, que   fora   sempre   cheia   deatenções e cuidados para comigo,   fosse admitidaem honra do seu serviço e continuasse a ser minhagovernanta.   Sua   Majestade   concedeu­me   isso   ebem   assim   o   lavrador,   que   bem   contente   semostrou por ver a filha na corte. Quanto à pobrepequena, não podia ocultar a sua alegria. Meu amoretirou­se e disse­me, ao partir, que me deixava emum bom lugar, ao que apenas redargui com umacavalheiresca vênia.

A   rainha   notou   a   frieza   com   que   acolhera   ocumprimento   e   a   despedida   do   lavrador   eperguntou­me   o   motivo.   Tomei   a   liberdade   deresponder a Sua Majestade que só  devia ao meuantigo amo a obrigação de me não haver esmagadocomo   a   um   pobre   animal   inofensivo,   achadocasualmente nos seus campos; que essa boa açãoestava   bem   paga   pelo   proveito   que   tirara,mostrando­me por dinheiro e pela importância querecebera  pela  minha  venda;  que  a  minha  saúdeestava   muito   abalada   pela   minha   escravatura   epela   obrigação   contínua   de   entreter   e   divertir   apopulaça a todas as horas do dia e que, se meuamo   não   me   julgasse   a   vida   em   perigo,   SuaMajestade não me  teria  adquirido;  como,  porém,não   tencionava   doravante   ser   tão   infeliz   sob   aproteção   de   tão   boa   e   tão   nobre   princesa,ornamento   da   natureza,   admiração   do   mundo,delícias   dos   seus   súditos   e   fênix   da   criação,esperava que as apreensões que sofrera com o meuúltimo amo ficariam sem efeito, pois já  achava aminha   vida   reanimada   pela   influência   da   suaaugustíssima presença.

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Tal foi a súmula do meu discurso, proferido comdiversos barbarismos e muitas vezes hesitante.

A rainha, que bondosamente desculpou os defeitosda minha arenga, ficou surpreendida por encontrartanto  espírito   e   tão  bom senso  em um pequenoanimal;   tomou­me   nas   mãos   e   levou­meimediatamente ao rei, que estava encerrado no seuescritório. Sua Majestade, príncipe muito sério e derosto severo, não reparando bem à primeira vistana  minha  figura,  perguntou  finalmente  à   rainhadesde   quando   se   tornara   protetora   deum splacnuck (pois me tomara por este inseto). Arainha,   porém,   que   tinha   infinito   espírito,colocou­me delicadamente sobre a secretária do reie ordenou­me dissesse eu próprio quem era. Fi­loem poucas palavras e Glumdalclitch,  que ficara àentrada   do   escritório,   não   podendo   estar   muitotempo   sem   mim,   entrou   e   explicou   a   SuaMajestade que eu fora encontrado num campo.

O   rei,   mais   sábio   do   que   ninguém   dos   seusEstados,   fora educado no estudo das  filosofias  eprincipalmente   nas   matemáticas.   Entretanto,quando  viu  de  perto  a  minha estatura  e  o  meuaprumo,   antes   que   eu   principiasse   a   falar,imaginou que poderia ser uma artificiosa máquinacomo um engenho  que   faz  mover  os   espetos  deassar,   ou,   melhor,   um   relógio   inventado   eexecutado   por   um   hábil   artista;   mas,   quandonotou   raciocínio  nos   sons  que   emitia,   não  pôdeocultar o seu espanto.

Mandou chamar três famosos sábios que estavam,então,  de  serviço  na   corte   (segundo  o  admirávelcostume desse país). Esses cavalheiros, depois deterem   examinado   de   perto   o   meu   talhe   com   a

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máxima   exatidão,   discutiram   diferentemente   ameu respeito. Eram todos de opinião que não podiaser   produto   que   seguisse   as   leis   ordinárias   danatureza,   porque   era   destituído   da   faculdadenatural   de   conservar   a   minha   vida,   quer   pelaagilidade,   quer   pela   facilidade   de   trepar   a   umaárvore, quer pelo poder de cavar a terra para fazerburacos   onde   pudesse   ocultar­me,   como   oscoelhos.   Os   meus   dentes,   que   examinaramdetidamente, fizeram­lhes conjecturar que era umanimal carnívoro.

Um desses  filósofos  foi  mais  longe; disse que euera um embrião, um aborto; essa opinião, contudo,foi rejeitada pelos outros dois, que observaram queos meus membros eram perfeitos e completos nasua espécie e que tinha vivido muitos anos, o quepareceu   evidente   na   minha   barba,   cujos   pêlosdescobriram com um microscópio.  Não quiseramafirmar   que   eu   fosse   anão   porque   a   minhapequenez   estava   fora   de   toda   a   comparação,   eporque o anão favorito da rainha, o menor que atéentão se vira nesse reino, tinha quase trinta pés dealtura.   Após   grande   discussão,   concluíramunanimemente que eu não passava de um replumsealcath,   o   que,   sendo   interpretado   literalmente,queria dizer lusus naturae, decisão muito conformecom   a   filosofia   moderna   da   Europa,   cujosprofessores,   desprezando   o   velho   subterfúgiodas causas ocultas, a favor das quais os sectáriosde Aristóteles tentam mascarar a sua ignorância,inventaram esta maravilhosa solução de todas asdificuldades   da   física.   Admirável   progresso   daciência humana!

Feita esta conclusão decisiva, tomei a liberdade de

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proferir algumas palavras: Dirigi­me ao soberano eprotestei a Sua Majestade que vinha de uma regiãoem que a minha espécie se encontrava em muitosmilhões de indivíduos de ambos os sexos, em queos   animais,   as   árvores   e   as   casas   eramproporcionais   ao   meu   tamanho,   e   onde,   porconseguinte,   podia   sentir­me   em   condições   dedefender­me   e   encontrar   o   meu   sustento,   asminhas necessidades e as minhas comodidades, domesmo   modo   que   qualquer   súdito   de   SuaMajestade.   Esta   resposta   fez   sorrirdesdenhosamente os filósofos, que replicaram queo lavrador me ensinara bem e que eu sabia a liçãona ponta da língua. O rei, que tinha um espíritomais   esclarecido,  despedindo  os   sábios,  mandouchamar o lavrador que, por felicidade, ainda nãosaíra   da   cidade.   Tendo­o,   pois,   interrogadoparticularmente, e em seguida acareando­o comigoe   com   a   pequena,   Sua   Majestade   principiou   aacreditar que o que eu dissera podia muito bem serverdade. Rogou à rainha que desse ordem para quetivessem comigo um cuidado muito especial, e foide   opinião   que   me   deixassem   continuar   sob   atutela   de Glumdalclitch, ao   notar   que   tínhamosuma grande afeição mútua.

A  rainha ordenou ao  seu carpinteiro  que   fizesseuma  caixa  que  me  pudesse   servir   de   quarto  dedormir,   conforme   o   modelo   que   eue Glumdalclitch lhe   fornecêssemos.   Este   homem,que era um artífice muito hábil,  fez­nos, em trêssemanas, um quarto de madeira com dezesseis pésde largo e doze de alto, com janelas, uma porta edois aposentos.

Um   outro   operário   excelente,   que   se   tornara

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célebre  pelas  curiosas  bugigangas  que   fabricava,lembrou­se   de   me   fazer   duas   cadeiras   de   ummaterial parecido com marfim, e duas mesas comum armário, para eu guardar as minhas roupas;em   seguida,   a   rainha   mandou   procurar   pelosmercadores as mais finas fazendas para me fazeruma roupa.

Esta princesa gostava tanto de me ouvir conversar,que não podia jantar sem mim. Tinha uma mesacolocada   sobre   aquela   em   que   Sua   Majestadecomia,   com   uma   cadeira   em   que   mesentava. Glumdalclitch permanecia de pé sobre umtamborete, perto da mesa, para poder tomar contade mim.

Certo dia, o príncipe, ao jantar, quis ter o prazer deconversar   comigo,   fazendo­me   perguntasconcernentes a costumes, religião, leis, governo eliteratura da Europa, a que eu respondi o melhorque pude. O seu espírito era tão apurado e o seujuízo   tão seguro,  que  fez   reflexões e  observaçõesmuito   sensatas   sobre   tudo   quanto   lhe   disse;referindo­se   a   dois   partidos,   que   dividem   aInglaterra,   perguntou­me   se   euera whig ou tory; depois,   virando­se   para   o   seuministro,   que   se   postara   por   detrás   dele,empunhando um bastão branco  tão alto  como omastro do Soberano Real, disse:

— Como a grandeza humana pouco vale, pois quevis  insetos  têm também ambição pelas classes edistinções   entre   si!   Têm   pequenos   farrapos   queenvergam,   tocas,   gaiolas,   caixas,  a  que  chamampalácios   e   solares;   equipagens,   librés,   títulos,empregos, funções, paixões, como nós. Entre elesama­se, odeia­se, engana­se, trai­se, como aqui.

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Era   assim   que   filosofava   Sua   Majestade,   naocasião   em   que   lhe   falara   na   Inglaterra,   e   eusentia­me   confuso   e   indignado   de   ver   a   minhapátria, a senhora das artes, a soberana dos mares,o árbitro da Europa, a glória do Universo, tratadacom tanto desprezo.

Não   havia   nada   que   me   ofendesse   e   meincomodasse mais do que o anão da rainha, que,sendo de uma estatura até então não vista naquelepaís, se tornou de extrema insolência na presençade um homem muito menor do que ele. Olhava­mecom   ar   altivo   e   desdenhoso   e   zombavaincessantemente   da   minha   pequena   estatura.Vinguei­me,   apenas,   tratando­o   como irmão. Umdia,   durante   o   jantar,   o   malévolo   anão,aproveitando  o   ensejo,   em que  não  pensava   emcoisa   alguma,   tomou­me   pelo   meio   do   corpo   edeixou­me cair num prato de leite, desaparecendologo. Fiquei apenas com as orelhas de fora e, senão fora um excelente nadador,  decerto morreriaafogado. Glumdalclitch, nessa   ocasião,   estavacasualmente   na   parte   oposta   do   aposento.   Arainha   ficou   tão  consternada  com este  acidente,que lhe faltou presença de espírito para me acudir;a minha pequena governanta, porém, correu logoem meu auxílio  e   tirou­me habilmente  do prato,depois de eu ter bebido mais de meia canada deleite. Meteram­me na cama; entretanto, só sofri odesaire   de   perder   a   roupa,   que   ficou   todamanchada. O anão foi castigado e eu senti  certoprazer em assistir a esse castigo.

Vou   agora   fazer   ao   leitor   uma   ligeira   descriçãodesse país, tanto pelo que pude conhecê­lo, comopelo que dele percorri. Toda a extensão do reino é

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aproximadamente   de   três   mil   léguas   decomprimento   e   de   duas   mil   e   quinhentas   delargura; daqui concluo que os nossos geógrafos daEuropa se  enganam, quando  julgam que apenashá   mar   entre   o   Japão   e   a   Califórnia.   Imagineisempre que devia haver daquele  lado um grandecontinente,   para   servir   de   contrapeso  ao   grandecontinente da Tartária. Devem, pois, corrigir­se osmapas e juntar esta vasta extensão do país à partenordeste da América; e para isso estou disposto aauxiliar  os  geógrafos  com as  minhas  luzes.  Estereino é  quase  uma  ilha,   terminada ao norte  poruma cadeia de montanhas que tem pouco mais oumenos trinta milhas de altitude, e de onde não éfácil a aproximação por causa dos vulcões, que sãoem grande número no cimo.

Os  mais   sábios   ignoram que  espécie  de  mortaishabita além dessas montanhas, nem mesmo se láexistem   habitantes.   Não   há   porto   algum   nessereino,   e   os   locais   da   costa   onde   os   rios   vãoperder­se no mar, são tão cheios de rochedos altose   escarpados,   e   o   mar   está   ordinariamente   tãoagitado,   que   não   há   quase   ninguém   que   seaventure  a  ele,  de  maneira  que  esses  povos  sãoexcluídos   de   todo   o   comércio   com   o   resto   domundo.   Nos   grandes   rios   pululam   sempreexcelentes  peixes;  assim,   raramente  se  pesca  nooceano,  porque os peixes do mar são do mesmotamanho dos da Europa e, com relação a eles, nãomerecem ser pescados;  daí  a evidência de que anatureza,   na  produção  de  plantas   e   animais  detalhe   enorme,   se   limita   completamente   a   estecontinente, e, sob este ponto de vista, recorro aosfilósofos.   No   entanto,   apanham­se   às   vezes,   nacosta, baleias com que aquele povo se sustenta e

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se delicia. Vi uma dessas baleias, tão grande, queum homem daquela   região  mal  a  podia   levar  àscostas. Às vezes, por curiosidade, trazem­nas emcestos  a Lorbrulgrud;   vi  um pedaço num prato àmesa do rei.

A   região   é   muito   povoada,   porque   contémcinqüenta   e   uma   cidades,   perto   de   cem   burgoscercados de muralhas, e bem importante númerode aldeias e lugarejos. Para satisfazer a curiosidadedo   leitor,   bastará   talvez   dar   a   descriçãode Lorbrulgrud.Esta cidade  fica situada sobre umrio   que   a   atravessa   e   a   divide   em   duas   partesquase iguais. Contém mais de oitenta mil casas eperto   de   seiscentos   mil   habitantes;   tem   decomprimento   três glonglus (que   são   cerca   decinqüenta e quatro milhas inglesas) e dois e meiode   largo,   segundo   a   medida   que   tomei   sobre   omapa   real,   levantado   por   ordem   do   rei,   que   foiestendido no chão de propósito para eu ver, e tinhacem pés de comprimento.

O palácio do rei é um edifício bastante irregular; êantes um amontoado de edifícios, que têm perto desete   milhas   de   circuito;   os   principais   aposentostêm a altura de duzentos  e  quarenta pés,   tendolargura proporcional.

Cederam um coche para Glumdalclitch e para mim,a   fim   de   vermos   a   cidade,   as   praças   e   osmonumentos. Suponho que o coche era quase umquadrado como a sala de Westminster, não, porém,tão   alto.   Um   dia,   fizemos   parar   o   coche   emdiversas  lojas,  onde os mendigos,  aproveitando oensejo, se amontoaram junto das portinholas e mepatentearam os mais  horrorosos espetáculos quefoi   dado   ver   a   olhos   ingleses.   Como   eram

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disformes, estropiados, sujos, cheios de chagas, detumores   que   à   minha   vista   pareciam   enormes,peço ao leitor que ajuíze da impressão que essasmisérias me causaram e me poupe o descrevê­los.

As   aias   da   rainha   pediam   muitas   vezesa Glumdalclitch que   as   visitasse   nos   seusaposentos e que  fosse eu com ela,  para terem oprazer  de  me   ver  de  perto   e   tocar­me.  Diversasvezes  me  despiam  e  me  punham nu  dos  pés  àcabeça, para melhor examinarem a delicadeza dosmeus   membros.   Nesse   estado,   gabavam­me,metiam­me   às   vezes   no   seio   e   faziam­me   milcarícias; nenhuma delas, porém, tinha a pele tãomacia como Glumdalclitch.

Estou   persuadido   de   que   não   tinham   másintenções; tratavam­me sem cerimônia, como umacriatura   sem  raciocínio,   despiam­se   à   vontade   etiravam a própria camisa na minha presença semtomar   as   precauções   que   a   decência   e   o   pudorexigem. Estava, entretanto, colocado em cima dascômodas,   defronte  delas   e   era   obrigado,   emboraconstrangido, a vê­las completamente nuas. E digoconstrangido, porque, na verdade, essa vista nãome dava tentação alguma nem o menor prazer. Asua   pele   parecia­me   áspera,   pouco   unida   e   dediferente  coloração,   com manchas  aqui  e  ali,  dotamanho   de   pratos;   os   seus   compridos   cabeloscaídos pareciam pedaços de fitas; nada digo acercade outros sítios do corpo, donde é preciso concluirque a beleza das mulheres, que tanta emoção noscausa,  não passa de uma coisa  imaginária,  poisque as mulheres da Europa se assemelhariam aessas mulheres a que acabo de aludir, se os nossosolhos fossem microscópicos. Suplico ao belo sexo

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do meu país que não se melindre com esta minhaobservação. É coisa de pouca monta para as belas,serem feias a olhos penetrantes que nunca verão.Os   filósofos   sabem   bem   o   que   isto   é;   quando,porém,  olham uma beleza,   vêm­na  como   toda  agente   e   já   não   são   filósofos.   A   rainha,   queconversava muitas vezes comigo acerca de minhasviagens   por   mar   procurava   todos   os   ensejospossíveis   para   me   distrair,   quando   me   viamelancólico.   Perguntou­me,   certo   dia,   se   tinhadestreza para manejar uma vela ou um remo, e seum pouco de exercício nesse gênero não conviria àminha saúde. Respondi que conhecia muito bemdos   dois,   porque,   embora   o   meu   empregoparticular fosse o de cirurgião,  isto é,  médico daarmada,   fui,  muitas   vezes,   obrigado   a   trabalharcomo marinheiro, mas ignorava como isso se fazianeste  país,  onde  o  barco  menor  era   igual  a  umnavio   de   guerra   de   primeira   ordem   entre   nós;demais, um navio proporcionado à minha estaturae  às  minhas   forças  não  poderia   flutuar  durantemuito   tempo   naquelas   águas,   e   não   poderiagoverná­lo.   Sua   Majestade   disse­me   que,   se   euquisesse,   o   seu   carpinteiro   de   navios   faria   umpequeno barco e me escolheria um lugar próprio,em   que   eu   pudesse   navegar.   O   carpinteiro   denavios, seguindo as minhas indicações, construiu,no prazo de dez dias, um pequeno navio com todasas suas cordagens, capaz de conter comodamenteoito europeus. Assim que o deu pronto, a rainhaordenou ao construtor que fizesse um tanque demadeira, com o comprimento de trezentos pés, alargura de cinqüenta e a profundidade de oito, oqual era bem alcatroado para impedir que a águasaísse; foi colocado no chão, ao longo da parede,numa sala exterior do palácio: tinha uma torneira

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perto do fundo para deixar sair a água de tempos atempos, e dois criados podiam­no encher em meiahora.   Foi   aí   que   remei   para   meu   divertimento,tanto como para divertir a rainha e as suas damas,que   sentiram   grande   prazer   em   ver   a   minhaagilidade e  jeito.  Algumas vezes  içava a vela e  omeu único trabalho era governar o leme, enquantoas damas faziam vento com os leques; quando seencontravam cansadas, alguns pajens impeliam efaziam andar o navio com o seu sopro, enquantoeu   mostrava   a   minha   destreza   a   estibordo   e   abombordo,   conforme   me   apetecia.   Quandoacabava, Glumdalclitch guardava   o   navio   no   seuquarto e suspendia­o de um prego para secar.

Durante este  exercício  aconteceu­me um dia  umacidente que me  ia custando a vida,  porque umdos pajens colocou o meu navio no tanque, e umamulher   da   comitiva   de Glumdalclitch levantou­memuito delicadamente para me meter no navio; mas,escorregando­lhe pelos dedos, cairia infalivelmenteda altura de quarenta pés para a coberta, se nãofosse   detido  por  um grande  alfinete,   que   estavapreso   no   avental   dessa   mulher.   A   cabeça   doalfinete  passou  por   entre  a   camisa   e   o   cós  dascalças   e   assim   fiquei   suspenso   no   ar   pelosfundilhos,   até   que Glumdalclitch veio   em   meuauxílio.

Doutra vez, um dos criados, cuja função consistiaem mudar a água ao meu tanque de três em trêsdias,   foi   tão  desastrado   que  deixou   cair   à  águauma enorme rã, sem que desse por isso.

A   rã   esteve   oculta   até   o   momento   em   queembarquei;   então,   vendo   que   tinha   ondepousar­se, trepou para o navio e fê­lo inclinar de

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tal maneira que me vi obrigado a fazer contrapesodo   lado   oposto,   para   evitar   que   o   naviosubmergisse, e depois, usando dos remos, forcei­aa sair.

Vou agora narrar o maior perigo que corri  nestereino. Glumdalclitch tinha­me  fechado  à   chave  noseu   quarto,   saindo   para   negócios   ou   para   fazeralguma visita. Era no verão e a janela do quarto ebem   assim   as   janelas   e   a   porta   dos   meusaposentos   encontravam­se   abertas;   enquantoestava sentado tranqüila e melancolicamente pertoda mesa, ouvi qualquer coisa entrar pela janela eandar aos pulos de um lado para outro. Ainda queficasse um pouco assustado, tive coragem de olharpara fora,  sem porém me levantar da cadeira;  vientão um animal a pular e a saltar para todos oslados,   o   qual,   por   fim,   se   aproximou   da   minhacaixa; este animal,  que era um macaco, olhandopara dentro e em todas as direções, causou­me talterror que não tive a presença de espírito suficientepara me meter debaixo da cama, como podia fazercom grande facilidade. Depois de muitas caretas ecabriolas, descobriu­me, e, metendo uma das mãospela  abertura  da porta,   como costuma  fazer  umgato  que  brinca   com um rato,   embora  mudassemuitas   vezes   de   lugar   para   me   pôr   a   salvo,agarrou­me  pelas  bandas  do   colete,   (que   era  defazenda desse país, muito espessa e muito forte) epuxou­me   para   fora.   Agarrou­me   com   a   mãodireita e segurou­me como uma ama segura umacriança que vai amamentar, do mesmo modo queeu vi   fazer  à  mesma espécie  de animal  com umgato da Europa. Quando me debatia, apertava­mecom  tanta   força,   que  me  pareceu  que   o  melhorpartido a tomar era ficar sossegado e ceder a tudo

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quanto lhe aprouvesse. Tenho alguns motivos paracrer   que   me   tomou   por   um   pequeno   macaco,porque, com a outra mão, afagava­me o rosto. Foirepentinamente interrompido por um ruído à portado aposento, como se alguém tentasse abri­la; desúbito, saltou pela janela por onde tinha entrado, edaí,   para   os   beirais,   caminhando   sobre   as   trêsmãos   e   segurando­me   com   a   quarta,   até   queatingiu um telhado que ficava contíguo ao nosso.Nesse   instante   ouvi   que Glumdalclitch soltavaestridentes   gritos.   A   pobre   moça   estava   numgrande desespero e toda essa parte do palácio ficousobressaltada;  os  criados  correram em busca  deenxadas;   o  macaco   foi   visto  por  muitas  pessoassentado na empena de um edifício, segurando­mecomo uma boneca numa das mãos e dando­me decomer com a outra, metendo­me na boca algumascarnes que tinha apanhado, e batendo­me, quandoeu não queria comer, o que era motivo de galhofapara a gentalha que me via debaixo, no que tinharazão porque, salvo para mim, a coisa tinha suagraça.   Alguns   atiraram   pedras   na   esperança   defazer descer o macaco, mas foram logo proibidosdisso pelo receio que tinham de me partir a cabeça.

As   escadas   foram   montadas   e   muitos   homenssubiram­nas.  Logo  o  macaco,  aterrado,  deixou ocampo livre e  largou­me sobre um beiral.  Então,um dos  lacaios da minha dona,  excelente  rapaz,subiu   e,   metendo­me   na   algibeira   das   calças,fez­me descer com segurança.

Estava   quase   sufocado   com   as   porcarias   que   omacaco   me   tinha   metido   nas   goelas;   a   minhaquerida  dona,  porém,  deu­me  um vomitório   queme   aliviou.   Estava   tão   fraco   e   tão   moído   pelos

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apertões deste animal, que fui obrigado a recolherà cama, onde permaneci durante quinze dias. O reie toda a corte mandaram perguntar por mim todosos  dias.  O  macaco   foi   condenado   à  morte   e   foilavrado um decreto em que se proibia a posse deum animal deste gênero nas imediações do palácio.Da   primeira   vez   que,   depois   de   estarcompletamente restabelecido, me apresentei ao reipara lhe agradecer todos os seus cuidados, deu­mea honra de chalacear muito a respeito deste caso;perguntou­me   quais   tinham   sido   os   meuspensamentos   e   reflexões,   enquanto   estive   nasmãos do macaco; que gosto tinham os alimentosque me dera,  e  se  o  ar   fresco,  que respirara notelhado, me não aguçara o apetite. Desejou muitosaber  o  que   faria   em  tal   situação  no  meu país.Disse a Sua Majestade que na Europa não haviamacacos, à exceção de dois que tinham trazido depaíses estrangeiros, e que eram tão pequenos queninguém podia temê­los e que, com respeito àqueleenorme animal, (era, de fato, tão grande como umelefante), se o medo me houvesse dado tempo parapensar nos meios de recorrer à minha espada, (eproferindo   estas   palavras,   tomei   um   ar   altivo   elevei a mão ao punho da espada), quando meteu amão no meu quarto, talvez lhe fizesse tal ferimentoque o obrigasse a retirar­se mais depressa do queviera. Pronunciei estas palavras num tom enérgico,como uma pessoa ciosa de sua honra e que temsentimentos.  No entanto,  o meu discurso apenasproduziu uma gargalhada, e todo o respeito devidoa   Sua   Majestade   por   parte   daqueles   que   orodeavam, não pôde retê­los, o que me fez refletirsobre a tolice de um homem que tenta dignificar­seem presença dos que estão fora de todos os grausde igualdade ou de comparação para com eles; e,

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entretanto, o que então me aconteceu, vi repetir­semuitas vezes em Inglaterra, onde um homenzinhose orgulha, se faz valer, finge de fidalgote e ousatomar   ares   importantes   como   grandes   do   reino,porque tem algum talento.

Fornecia todos os dias à corte matéria para algumridículo,   e Glumdalclitch, embora   me   estimassecom grandes extremos, era bastante maliciosa parainformar  a   rainha das  asneiras  que  eu às  vezesfazia,   supondo   que,   referindo­as,   podia   fazer   rirSua Alteza. Tendo­me um dia, por exemplo, apeadodo   coche   em   passeio,   acompanhadopor Glumdalclitch, levado por ela dentro da caixa,desatei  a andar;  havia excremento de vacas pelocaminho; quis, para demonstrar a minha agilidade,saltá­lo;  por  infelicidade,  porém, saltei  mal  e  caíexatamente no meio,  de maneira que  fiquei   todosujo.  Tiraram­me dali   a   custo   e  um dos   lacaioslimpou­me o  melhor  que  pôde  com um  lenço.  Arainha foi depressa sabedora daquela impertinenteaventura   e   os   lacaios   divulgaram­na   por   todaparte.

CAPÍTULO IV

Diversas idéias do autor para agradar ao rei e à rainha — O rei informa­seacerca da Europa, de que o autor lhe faz um relatório — As observações do rei

sobre este assunto.

Eu   costumava   ir   ter   com   o   rei,   quando   ele   selevantava,   uns   três   dias   por   semana,   eencontrava­me   lá   muitas   vezes   quando   obarbeavam, o que, a princípio, me fazia tremer: anavalha   do   barbeiro   era   quase   duplamente   do

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tamanho de uma foice. Sua Majestade, consoanteera uso do seu país, só se barbeava duas vezes porsemana. Certo dia pedi ao barbeiro alguns pêlos dabarba de Sua Majestade. Tendo­me feito presentedeles,   peguei   num   pedaço   de   madeira   e,fazendo­lhe   alguns  buracos   com o  bico   de  umaagulha,  prendi,   aí,   com  tal  habilidade,  os  pêlos,que   fiz  um pente,   o   que   foi  um grande  auxílio,porque o meu estava todo partido e quase inútil enão fui capaz de encontrar na região um operárioque os soubesse fabricar.

Lembro­me   de   uma   diversão   que   procurei   paramim   por   essa   mesma   ocasião.   Pedi   a   uma   dascriadas graves da rainha, que guardasse os finoscabelos   que   caíssem   da   cabeça   de   Sua   Altezaquando  a  penteassem,   e   que  mos  desse.   Junteiuma   considerável   porção   e,   então,aconselhando­me com o marceneiro que receberaordem para fabricar tudo quanto eu lhe pedisse,dei­lhe   instruções   para   fazer   duas   poltronas   dotamanho das que se encontravam na minha caixae de fazer­lhes pequenos buracos com uma soveladelgada.

Quando   os   pés,   os   braços,   as   travessas   e   osespaldares ficaram prontos, compus o fundo comos cabelos da rainha, que passei pelos buracos efiz delas cadeiras parecidas com as de cana de quenos   servimos   em   Inglaterra.   Tive   a   honra   depresentear com elas a rainha, que as meteu numarmário como uma curiosidade.

Quis   um   dia   que   me   sentasse   numa   dessascadeiras, mas eu excusei­me, protestando que nãoera tão temerário nem tão insolente que aplicasse oassento sobre os respeitáveis cabelos que tinham,

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noutro   tempo,   ornado   a   cabeça   de   Sua   Alteza.Como era dotado de jeito para a mecânica, fiz, emseguida,   com esses  cabelos,  uma pequena  bolsabem talhada, com o comprimento aproximado deduas varas, com o nome de Sua Alteza tecido emletras   douradas,   que   dei   a Glumdalclitch, com   oconsentimento da rainha.

O rei, que deveras apreciava música, dava muitasvezes concertos, a que eu assistia metido na caixa;o ruído, porém, era tão grande, que quase me eraimpossível distinguir os acordes. Tenho a certezade que nem os tambores nem as trombetas de umexército   real,   rufando   e   soando  perto   dos  meusouvidos ao mesmo tempo, poderiam igualar aqueleruído. Eu costumava fazer colocar a caixa longe dosítio em que estavam os concertistas, de fechar asportas e as janelas e de correr os cortinados: comessas   precauções,   não   achava   desagradável   amúsica.

Aprendi,   na   minha   mocidade,   a   tocarcravo, Glumdalclitch possuía   um   no   seu   quarto,onde, duas vezes por semana, ia um professor paraensinar. Deu­me um dia a fantasia para deliciar orei e a rainha com uma ária inglesa tocada nesteinstrumento;   isso,   porém,   pareceu­meextremamente difícil,  porque o cravo tinha quasesessenta pés de comprimento e as teclas eram dalargura  aproximada  de  um pé,   de  maneira   que,com os  meus dois  braços  estendidos,  não  podiaatingir mais do que cinco teclas e, além disso, paratirar alguns sons, tinha que dar fortes punhadas.No   entanto,   tive   segunda   idéia:   arranjei   doisbastões quase com a grossura de uma agulha demeia vulgar e forrei as extremidades dos bastões

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com pele de rato, para bater sobre as teclas e delastirar   alguns   sons;   coloquei­me   num   bancofronteiro para onde subi e então desatei a corrercom toda a presteza e agilidade possível sobre essaespécie   de   estrado,   batendo   aqui   e   ali   sobre   oteclado, servindo­me dos bastões com toda a força,de maneira que acabei por tocar uma giga inglesacom grande   contentamento  de  Suas  Majestades.Forçoso é, porém, confessar que nunca fiz exercíciomais violento nem mais fatigante.

O   rei,   como   já   disse,   era   um príncipe   cheio   deespírito,   e   dava   muitas   vezes   ordem   para   metrazerem na caixa e colocarem­me na secretária doseu   escritório.   Então   pedia­me   para   que   tirasseuma das cadeiras para fora da caixa e me sentassede modo que ficasse no nível do seu rosto. Destaforma,   frequentemente,   com   ele   falei.   Certo   dia,tomei a liberdade de dizer a Sua Majestade que odesprezo   que   ele   concebera   pela   Europa   e   peloresto do mundo não estava em harmonia com asexcelentes   faculdades   de   espírito   que   odistinguiam; que a inteligência nada tinha com otamanho do corpo; que, pelo contrário, havíamosobservado,   no  nosso  país,   que   os   indivíduos   deelevada   estatura   não   eram,   em   geral,   os   maisengenhosos; que, entre os animais, as abelhas e asformigas   gozavam   da   reputação   de   ter   maisindústria, artifício e sagacidade; e, finalmente, que,embora   ele   pouca   importância   ligasse   à   minhafigura,   contudo   esperava   poder   prestar   grandesserviços   a   Sua   Majestade.   O   rei   ouviu­me   comgrande atenção e principiou a olhar­me de outromodo   e   a  não  avaliar   a  minha   inteligência  pelomeu tamanho.

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Ordenou­me   então   que   lhe   fizesse   uma   exatarelação   do   governo   da   Inglaterra,   porque,   aindaque   os   príncipes   estejam   ordinariamenteprevenidos a favor das suas máximas e dos seususos,   ficaria  bem satisfeito  por  saber  se  haveriaalguma coisa no meu país que lhe fosse útil imitar.Imagine o meu querido leitor qual não seria o meudesejo   em   possuir   o   engenho   e   a   língua   deDemóstenes   e   de   Cícero,   para   ser   capaz   dedescrever dignamente a minha pátria, Inglaterra, etraçar dela uma idéia sublime.

Principiei por dizer a Sua Majestade que os nossosEstados   eram   constituídos   por   duas   ilhas   queformavam   três   poderosos   reinos   governados   porum único soberano, sem que figurassem em linhade   conta   as   nossas   colônias   na   América.Alarguei­me deveras  sobre  a   fertilidade do nossoterritório e sobre a variedade do nosso clima. Emseguida,   descrevi   a   constituição   do   Parlamentoinglês,   composto,   em   parte,   de   uma   corporaçãoilustre   chamada Câmara   dos   Pares, personagensdo   sangue   mais   nobre,   antigos   proprietários   esenhores das mais belas terras do país. Disse doextremo cuidado que havia na sua educação comrelação   às   ciências   e   às   armas   para   os   tornarcapazes de serem conselheiros natos do reino, deterem parte na administração do governo, de seremmembros   da   mais   elevada   categoria   damagistratura,  de  que  não  havia  apelo,   e  da  suapátria, pelo seu valor, comportamento e fidelidade;que esses senhores eram o ornamento e o esteio doreino,  dignos  sucessores  dos  seus  antepassados,cujas honras haviam obtido como recompensa deuma virtude   insigne  e  que  nunca  se   vira  a   suaposteridade   degenerar;   que   a   esses   senhores

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estavam agregados santos homens, que tinham oseu lugar entre os bispos, cujo cargo particular eravelar pela religião e por aqueles que a pregam aopovo; que se buscavam e se escolhiam no clero osmais santos e os mais sábios homens para sereminvestidos nessa eminente dignidade.

Acrescentei  que a outra parte do Parlamento erauma   assembléia   respeitável   denominada Câmarados   Comuns, composta   de   nobres,   escolhidoslivremente, e até deputados pelo povo, unicamentepor causa das suas luzes, dos seus talentos e doseu amor pela pátria, a fim de representar o saberde   toda   a   nação.   Disse   que   esses   dois   corposformavam a mais augusta assembléia do universoque, de acordo com o príncipe, dispunha de tudo eregulava,   de   certo   modo,   o   destino   de   todos   ospovos da Europa.

Em seguida,  desci   aos  arcanos  da   justiça,   ondetinham assento veneráveis intérpretes da lei,  quedecidiam   as   diferentes   contestações   dosparticulares,  que  puniam o  crime  e  protegiam ainocência. Não deixei de falar da sábia e econômicaadministração   das   nossas   finanças   e   de   meesplanar sobre o valor e as expedições dos nossosguerreiros de mar e de terra. Computei o númerodo povo, contando também que havia milhões dehomens professando diversas religiões e diferentespartidos   políticos   entre   nós.   Não   omiti   nem   osnossos jogos, nem os espetáculos, nem nenhumaoutra particularidade que eu supusesse dar honraao   meu   país,   e   terminei   com   uma   pequenanarração   histórica   das   últimas   revoluções   daInglaterra, desde há cem anos para cá, pouco maisou menos.

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Esta conversa durou cinco audiências, cada umadelas de grande número de horas,  e  o rei  ouviutudo com a máxima atenção, escrevendo o extratode   quase   tudo   o   que   lhe   dizia   e   marcando,   aomesmo   tempo,   os   pontos   sobre   que   tencionavainterrogar­me.

Assim que  concluí   estes  meus   longos  discursos,Sua   Majestade,   numa   sexta   audiência,examinando   os   seus   extratos,   apresentou­memuitas dúvidas e grandes objeções acerca de cadaassunto.   Perguntou­me   quais   eram   os   meiosvulgares   empregados   para   cultivar   o   espírito   danossa   juvenil  nobreza;  quais  as  medidas  que  setomavam, quando uma casa nobre se extinguia, oque  podia  dar­se  de   tempos  a   tempos;  quais  asqualidades   precisas   aos   que   deviam   ser   criadoscomo novos pares;  se  o  capricho do príncipe  ouuma importante quantia dada de propósito a umadama da corte e a um favorito, ou um desejo defortalecer um partido de oposição ao bem público,não  eram nunca  motivos  para  essas  promoções;qual era o grau de ciência que os pares possuíamacerca das leis do seu país, e como se tornavamcapazes de decidir em último recurso dos direitosdos seus compatriotas; se eram sempre isentos deavareza e preconceitos; se os santos bispos de queeu falara, alcançavam sempre esse alto cargo pelasua   ciência   sobre   matérias   teológicas   e   pelasantidade da sua vida; se nunca tiveram fraquezas;se   nunca   tinham   intrigado   enquanto   padres,   senão tinham sido outrora esmoleres de um par, porintermédio   do   qual   conseguiam   ser   elevados   abispos   e   se,   neste   caso,   não   seguiam   sempre,cegamente, a opinião do par e não serviam a suapaixão   ou   o   seu   preconceito   na   assembléia   do

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Parlamento.

Quis   saber   como   se   procedia   para   a   eleiçãodaqueles que chamara de comuns; se um estranho,com   uma   bolsa   recheada   de   ouro,   não   podia,algumas vezes,  ganhar o sufrágio dos eleitores àforça do dinheiro, fazer­se preferido ao seu própriosenhor, ou aos mais importantes e mais distintosda  nobreza  na   vizinhança;   por   que   é   que  haviatamanha   paixão   em   se   ser   eleito   para   aassembléia,   pois   que   esta   eleição  dava   ensejo   auma grande despesa e não rendia coisa alguma;que   era   preciso,   pois,   que   os   eleitos   fossemhomens  de  um completo  desinteresse   e  de  umaeminente   e   heróica   virtude,   ou,   ainda,   quecontassem   ser   indenizados   e   reembolsados   comusura pelo príncipe e pelos ministros, sacrificandopor   eles   o   bem   público.   Sua   Majestadeapresentou­me,   sobre   esta   matéria,   dificuldadesextraordinárias, que a prudência me não permiterepetir.

Acerca  do que   lhe  disse  dos  arcanos  da  justiça,Sua Majestade quis ser esclarecido em muitíssimospontos.  Estava bem no caso de satisfazê­lo,  poisem outros tempos quase ficara arruinado com umlongo processo em estado de ser julgado; se ficavamuito   caro   um   pleito;   se   os   advogados   tinhamliberdade para defender as causas evidentementeinjustas; se nunca se havia notado que o espíritopartidário   e   de   religião   tivesse   feito   pender   abalança;   se   esses   advogados   tinham   algumconhecimento   dos   primeiros   inícios   e   das   leisgerais de equidade, ou se não se contentavam emsaber as  leis  arbitrárias e os costumes locais dopaís;   se   eles   e   os   juízes   tinham   o   direito   de

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interpretar e comentar as leis a seu modo; se ospleiteantes e  as sentenças não estavam algumasvezes em contradição uns com outros na mesmaespécie.

Depois,   começou   a   interrogar­me   sobre   aadministração   das   finanças,   e   disse­me   que   eutinha desprezado esse assunto, porque não fizerasubir  senão a  cinco  ou seis  milhões  por  ano osimpostos; que, no entanto, a despesa do Estado iamuito além e excedia muitas vezes a receita.

Não podia, dizia ele, conceber como é que um reinoousava despender além do seu rendimento e comeros seus bens como um particular.  Perguntou­mequais eram os nossos credores e se nós teríamoscom   que   lhes   pagar;   se   mantínhamos   a   seurespeito   as   leis   da   natureza,   da   razão   e   daequidade. Estava admirado da pormenorização quelhe   fizera   das   nossas   guerras   e   das   despesasexcessivas  que  exigiam.  Era  preciso,   certamente,dizia ele, que nós fôssemos um povo bem irrequietoe   bem   questionador   ou   que   tivéssemos   mausvizinhos.

— Que têm vocês a deslindar — acrescentava ele —fora das ilhas? Possuem aí outro negócio que nãoseja   o   comércio?   Devem   pensar   em   fazerconquistas?   E   não   lhes   basta   tomar   conta   dosportos e das costas?

O   que   deveras   o   assombrou,   foi   saber   quemantínhamos um exército no seio da paz e no meiode   um   povo   livre.   Disse   que,   se   fôssemosgovernados   com   o   nosso   próprio   consentimento,não podia imaginar que tivéssemos medo e contraquem nos havíamos de bater. Perguntou­me se a

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casa de um particular não seria melhor defendidapor ele próprio, pelos filhos e pelos criados do quepor uma cáfila de patifes e de gatunos tirados aoacaso da escória do povo, com salário diminuto, eque poderiam ganhar cem vezes mais.

Riu   muito   da   minha   extravagante   aritmética,(como   lhe   aprouve   chamar),   quando   computei   onúmero   dos   nossos   habitantes,   calculando   asdiferentes seitas que vivem entre nós, com relaçãoà religião e à política.

Notou   que,   entre   as   diversões   da   nobreza,   eumencionara o jogo. Quis saber em que idade eraessa   diversão   ordinariamente   praticada   e   porquanto tempo, e se algumas vezes não se alteravaa fortuna dos particulares e lhes não fazia cometerações baixas e indignas; se homens vis e corruptosnão  podiam,  algumas vezes,  pela   sua habilidadenesse mister, adquirir grandes riquezas, ter mesmoos nossos pares em uma espécie de dependência,acostumá­los   a   viver   em   más   companhias,desviá­los inteiramente da cultura do seu espírito edo   cuidado   dos   seus   negócios   particulares   eforçá­los   pelas   perdas   que   podiam   causar,ensiná­los   talvez   a   servir­se   dessa   mesmahabilidade infame que os arruinara.

Ficara   extremamente   admirado   com   a   narrativaque lhe fizera da nossa história do último século,que   não   passava,   segundo   ele,   de   umencadeamento   horrível   de   conjurações,   derebeliões, de chacinas, de morticínios, revoluções,de   exílios   e   dos   mais   horrendos   defeitos   que   aavareza   e   o   espírito   de   facção,   a   hipocrisia,   aperfídia,  a cruzada, a raiva,  a  loucura, o ódio,  ainveja, a maldade e a ambição podiam engendrar.

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Sua   Majestade   em   uma   outra   audiência   teve   otrabalho   de   recapitular   a   substância   de   tudoquanto eu dissera, comparou as perguntas que medirigira   com   as   respostas   que   lhe   dera;   depois,tomando­me   nas   suas   mãos,   e   afagando­mecarinhosamente,   exprimiu­se   por   estas   palavras,que nunca esquecerei assim como não esquecerei omodo por que as pronunciou:

— Meu   querido   amiguinho Grildrig, fizeste   umpanegírico bem extraordinário acerca do teu país;provaste à evidência que a ignorância, a preguiça eo vício podem ser, às vezes, as únicas qualidadesde   um   homem   de   Estado;   que   as   leis   sãoesclarecidas,   interpretadas   e   aplicadas   o   melhorpossível   por   indivíduos   cujos   interesses   erapacidade   os   levam   a   corrompê­las,   aembrulhá­las   e   a   iludi­las.   Noto   entre   vós   aconstituição de um governo que, no seu princípio,foi talvez suportável, porém que o vício desfiguroupor completo. Não me parece até, por tudo quantome disseste, que uma única virtude seja requeridapara   alcançar   alguma   função   ou   algum   lugareminente. Vejo que os homens não são enobrecidospela   virtude;   os   sacerdotes,   não   avançam   pelapiedade   ou   pela   ciência;   os   soldados,   pelo   seucomportamento ou pelo seu valor; os juízes, pelasua integridade; os senadores, pelo amor da pátria,nem os  homens  de  Estado  pelo   seu   saber.  Masquanto a ti, que passaste a mor parte da vida emviagens, quero crer que não tenhas enfermado dosvícios do teu país; mas, por tudo o que me referistea princípio, e pelas respostas que te obriguei a daràs minhas objeções,  suponho que a maioria dosteus   compatriotas   é   a   mais   perniciosa   casta   deinsetos   que   a   natureza   jamais   suportou   que

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rastejasse sobre a superfície da terra.

CAPÍTULO V

Zelo do autor pela honra da sua pátria — Faz uma vantajosa proposta ao rei,que a rejeita — A literatura deste povo é imperfeita e limitada — As suas leis,

os seus assuntos militares e os seus partidários de Estado.

O amor pela verdade não permitiu que eu calasseesta minha conversa com o rei; este mesmo amor,porém, não me deixou também que me abstivessede falar, quando vi o meu querido país tratado comtal   vilipêndio.   Iludi  habilmente   a  mor   parte   dassuas perguntas e dei a cada coisa a mais favorávelforma   que   pude,   porque,   quando   se   trata   dedefender a minha pátria e de manter a sua glória,exalto­me, quando vejo que não há  razão; então,nada   omito   para   ocultar   os   seus   defeitos   edeformidades e para colocar a sua virtude e belezana posição mais vantajosa. Foi o que me esforceipor fazer nas diversas conferências que tive com ojudicioso   monarca;   por   desgraça,   perdi   o   meutrabalho.

No entanto, necessário é desculpar um rei que vivecompletamente separado do resto do mundo e que,por  conseguinte,   ignora  os  usos  e  costumes  dasoutras nações. Esse defeito de conhecimentos serásempre a causa de muitos preconceitos e de umacerta maneira limitada de pensar, e que as idéiasde virtude e de vício de um príncipe estrangeiro eisolado fossem tidas como regras e como máximasa seguir.

Para confirmar o que acabo de dizer e para fazer

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ver   os   desgraçados   efeitos   de   uma   educaçãolimitada, relatarei, aqui, uma coisa que, com certocusto,   se   acreditará.   Com o   fim   de   alcançar   asboas  graças  de  Sua  Majestade,  dei­lhe  conta  deuma descoberta   feita  há  uns quatrocentos  anos,um   pequeno   pó   negro   que   uma   pequeníssimacentelha   podia   acender   num   instante,   de   talmaneira   que   seria   capaz   de   fazer   ir   pelos   aresmontanhas,   com   um   ruído   maior   do   que   o   dotrovão;   que   certa   quantidade   deste   pó,   sendometida num tubo de bronze ou de ferro, conformea sua grossura, fazia sair uma bala de chumbo oude   ferro   com   tão   grande   violência   e   tantavelocidade,  que  nada era  capaz  de  sustar  a  suaforça;  que  as  balas  assim  lançadas  de  um tubofundido   e   expelidas   pela   inflamação   daquelepequeno pó, quebravam, voltavam, davam cabo debatalhões,   de   esquadrões,   arrasavam   as   maisfortes   muralhas,   deitavam   por   terra   as   maiselevadas   torres   e   faziam   soçobrar   os   maioresnavios;  que  esse  pó,  metido  num globo  de   ferroexpelido por certa máquina, queimava, esmagavacasas  e   lançava em  todas  as  direções  estilhaçosque   fulminavam  tudo  quanto  encontrassem;  queconhecia a composição desse maravilhoso pó, ondesó entravam coisas vulgares e de preço econômicoe   que   até   poderia   ensinar   aos   seus   súditos   osegredo, se Sua Majestade quisesse; que, por meiodeste pó, Sua Majestade derrubaria as mais fortesmuralhas da mais potente cidade do seu reino, sealguma vez se sublevasse e ousasse resistir­lhe.

O rei, assombrado com a descrição que lhe fiz dosterríveis   efeitos   do   meu   pó,   parecia   não   podercompreender como um inseto impotente, fraco, vile rasteiro,  imaginara tão horrível coisa, e de que

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ousava   falar   de   forma   tão   familiar,   que   pareciaolhar como bagatelas a carnificina e desolação queproduzia tão pernicioso invento.

— Era preciso — dizia  ele  — que o  seu  inventorfosse um gênio mau, inimigo de Deus e das suasobras.

Respondeu que, embora nada lhe agradasse maisdo  que  as  novas  descobertas,  quer  na natureza,quer nas artes, preferia perder a coroa a fazer usode tão funesto segredo, proibindo­me, sob pena deperder a vida, de divulgá­lo a qualquer dos seussúditos;   doloroso   efeito   da   ignorância   e   datacanhez de espírito de um príncipe sem educação.Este   monarca,   ornado   com   todas   as   qualidadesque alcançam a veneração, o amor e a estima dospovos,   de   espírito   forte   e   penetrante,   de   grandeprudência,   de   profunda   ciência,   dotado   deadmiráveis talentos para o governo, quase adoradopelo   seu   povo,   encontra­se   estupidamenteincomodado   por   um   capricho   excessivo   eextravagante,   de   que   nunca   fizemos   idéia   naEuropa,   e  deixa   fugir  uma ocasião  que   lhe  vemparar às mãos para se tornar o senhor absoluto davida,  da   liberdade  e  dos  bens  de   todos  os   seussúditos.

Não digo isto com o intuito de rebaixar as virtudese as luzes deste príncipe, a quem, não ignoro, estanarrativa   há­de   desacreditar   no   espírito   de   umleitor   inglês;  mas   asseguro   que   este   defeito  nãoprovinha   senão   da   ignorância.   Esses   povos   nãotinham ainda reduzido a política a uma arte, comoos nossos sublimes espíritos da Europa.

Lembro­me de que, numa conversa que certo dia

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tive com o rei, disse­lhe que havia entre nós umgrande número de volumes escritos acerca da artede   governar,   e   Sua   Majestade   formou   a   esserespeito   uma   opinião   muito   baixa   do   nossoespírito, acrescentando que desprezava e detestavatodo o mistério, todo o requinte e toda a intriga nosprocessos de um príncipe ou de um ministro deEstado.  Não podia compreender o que eu queriadizer com os segredos de gabinete.

Quanto a ele, resumira a ciência de governar emestreitíssimos   limites,   reduzindo­a   ao   sensocomum, à  razão, à   justiça, à  brandura, à  rápidadecisão dos processos civis e criminais e a outraspráticas semelhantes ao alcance de toda a gente eque não merecem referência. Por fim, arriscou esteestranho paradoxo que,  se alguém pudesse  fazercrescer duas espigas ou dois bocados de erva numpouco de terra onde antes só havia um, mereceriamais   do   gênero  humano   e   prestaria  um serviçomais essencial ao seu país do que toda a raça dosnossos sublimes políticos.

A   literatura   deste   povo   é   muitíssimo   limitada   econsiste   apenas   no   conhecimento   da   moral,   dahistória, da poesia e das matemáticas; preciso é,porém, confessar que são excelentes nestes quatrogêneros.

O último dos citados conhecimentos só é aplicadopor eles a tudo quanto seja útil, de maneira que omelhor   da   nossa  matemática   seria   muito   poucoapreciado   por   eles.   Com   respeito   a   entidadesmetafísicas,   abstrações   e   categorias,   foi­meimpossível fazer que as compreendessem.

Nesse país não é  permitido decretar uma lei que

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empregue mais palavras do que as letras existentesno   alfabeto,   que   é   composto   de   vinte   e   duasapenas; há até muito poucas leis que tenham taisdimensões. São todas expressas em termos clarose simples, e esses povos não são nem muito vivos,nem   muito   engenhosos   para   lhes   achar   algumsentido; e, além disso, é crime capital escrever umcomentário sobre qualquer lei.

Possuem   desde   remotíssimos   tempos   a   arte   deimprimir,   tão   bem   como   os   chineses;   as   suasbibliotecas, porém, não são grandes; a do rei, que émais   numerosa,   é   constituída   por   mil   volumesapenas, enfileirados numa galeria de duzentos pésde comprimento, onde tive a liberdade de ver todosos   livros   que   me   aprouve.   O   livro   que   tive,   aprincípio, curiosidade de ler, foi colocado em cimade  uma mesa  sobre  a  qual  me  puseram;  então,voltando o rosto para o livro, comecei pelo alto dapágina;  passeava por cima dele,  para a direita epara a esquerda, cerca de dez passos, conforme ocomprimento das linhas, e recuava à medida quecaminhava na leitura das páginas. Começava a leroutra página pelo mesmo processo, depois do quea virava, o que com dificuldade pude fazer com asminhas duas mãos, porque o papel era tão espessoe   tão   seco   como   papelão.   O   seu   estilo   é   claro,másculo e suave, mas nunca florido, porque nãosabem entre   si  multiplicar  as  palavras   inúteis  evariar   as   expressões.   Percorri   muitos   dos   seuslivros, principalmente aqueles que diziam respeitoà história e à moral; entre outros, li com prazer umvelho   tratado   que   estava   no   quartode Glumdalclitch e   que   se   intitulava: Tratado   dafraqueza   do   gênero   humano e   que   apenas   eraestimado   pelas   mulheres   e   pelas   classes   menos

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elevadas. Entretanto, tive a curiosidade de saber oque   um   autor   desse   país   podia   dizer   sobresemelhante assunto. Este escritor fazia ver muitoextensamente   quanto   o   homem   está   pouco   emsituação   de   se   pôr   ao   abrigo   das   injúrias   daatmosfera e da fúria dos animais ferozes; quantoera   ultrapassado   por   outros   animais,   quer   emforça,   quer   em   velocidade,   quer   na   previdência,quer   na   indústria.   Mostrava   que   a   natureza   setinha degenerado nos últimos séculos e que estavaa declinar.

Ensinava   que   as   próprias   leis   da   naturezarevelavam   absolutamente   que   tínhamos   sido,   aprincípio,   de   uma   estatura   maior   e   de   umacompleição   mais   vigorosa,   para   não   sermossujeitos  a  uma súbita  destruição  pela  queda  deuma telha de cima de uma casa, ou de uma pedraarremessada pela  mão  de  uma criança,  ou paranão   nos   afogarmos   em   algum   rio.   Dessesraciocínios, o autor tirava diversas aplicações úteisà   conduta   da   vida.   Quanto   a   mim,   não   podiadeixar de fazer reflexões sobre esta moral e sobre atendência universal que têm todos os homens dese   queixar   da   natureza   e   de   exagerar   os   seusdefeitos.

Estes gigantes tinham­se como pequenos e fracos.Que somos nós, europeus? Esse mesmo autor diziaque um homem não passava de um verme da terrae de um átomo e que a sua pequenez devia semprehumilhá­lo. Ai! que sou eu — dizia de mim paramim   —   eu,   que   estou   abaixo   de   nada   emcomparação desses homens que se consideram tãopequenos e tão insignificantes!

Nesse mesmo livro fazia­se ver a vaidade do título

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de alteza e grandeza, e quanto era ridículo que umhomem, que tinha mais de cento e cinqüenta pésde   altura,   ousasse   dizer­se   alto   e   grande.   Quepensariam os príncipes e os soberbos senhores daEuropa — pensava eu então — se lessem este livro,eles   que,   com   cinco   pés   e   algumas   polegadas,pretendem,   sem   cerimônia,   que   se   lhes   dê   otratamento de alteza e de grandeza? Mas, por queé que não exigiam também os títulos de grossura,largura   e   espessura?   Ao   menos   teriam   podidoinventar um termo geral para compreender todasessas   dimensões   e   fazer­se   chamar vossaextensão. Responder­se­me­á,   talvez,   que   aspalavras alteza e grandeza se   relacionam   com   aalma e não com o corpo; mas, se assim é, por quenão tomar títulos mais próprios e mais condizentescom um sentido espiritual? Por que não se fizeramtratar porvossa sabedoria, vossa penetração, vossaprevidência,   vossa   liberalidade,   vossa   bondade,vosso   bom   senso,   vosso   belo   espírito?   É   precisoconfessar que, como estes títulos teriam sido muitobelos e muito honrosos, teriam também semeadomuita   amenidade   nos   cumprimentos   dosinferiores, não havendo nada mais divertido do queum discurso cheio de contradições.

A medicina,  a  cirurgia,  a   farmacopéia  são muitocultivadas nesse país. Entrei, certo dia, num vastoedifício, que julguei ser um arsenal cheio de balase  canhões:   era  a   loja  de  um boticário;  as  balaseram   pílulas   e   os   canhões,   seringas.Comparativamente,   os   nossos   maiores   canhõessão, em verdade, modestas colubrinas.

Com relação à sua milícia, diz­se que o exército dorei é composto de cento e seis mil homens de pé e

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de trinta e dois mil de cavalo, se lícito é dar­se essenome a um exército constituído de negociantes elavradores, cujos comandantes não são senão seuspares   e   a   nobreza   sem   recompensa   nem   soldoalgum. São,  de  fato,  bastante perfeitos  nos seusexercícios e têm uma disciplina magnífica, o quenão é  para admirar,  visto  que os   lavradores  sãocomandados   pelos   seus   próprios   senhores   e   osburgueses pelos principais da sua própria cidade,eleitos à maneira de Veneza.

Tive  curiosidade  de  saber  por  que  este  príncipe,cujos Estados são inacessíveis, julgava necessárioensinar ao seu povo a prática da disciplina militar;mas depressa soube a razão, quer pelas conversasque entabulei sobre este assunto, quer pela leituradas   suas   histórias;   porque,   durante   muitosséculos, foram atacados pela doença a que tantosoutros   governos   estão   sujeitos:   o   pariato   e   anobreza, disputando muita vez pelo poder, o povopela liberdade e o rei pelo domínio arbitrário. Estascoisas, ainda que prudentemente temperadas pelasleis do reino, têm ocasionado a criação de facções,ateado paixões e causado guerras civis,  a últimadas   quais   foi   felizmente   sufocada   pelo   avô   dopríncipe reinante, e a milícia, então estabelecida noreino, foi mantida desde então para prevenir novasdesordens.

CAPÍTULO VI

O rei e a rainha fazem uma viagem à fronteira, onde o autor os acompanha —Pormenor da maneira por que saí desse país para regressar à Inglaterra.

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Tinha sempre presente no espírito que algum diarecuperaria   a   minha   liberdade,   ainda   que   nãopudesse   adivinhar   por   que   meio,   nem   formarprojeto algum com a menor probabilidade. O navio,que   me   tinha   trazido   e   que   soçobrara   nessasparagens,   era  o  primeiro  barco  europeu que,  aoque se sabe, conseguira aproximar­se daí, e o reidera ordens muito terminantes para que, se algumoutro aparecesse, fosse puxado para terra e toda atripulação   e   passageiros   fossem   metidos   numacarroça de lixo e levados paraLorbrulgrud.

Estava   muito   empenhado   em   encontrar   umamulher da minha estatura com a qual eu pudessemultiplicar   a   espécie;   no   entanto,   creio   quepreferiria  morrer   a   fazer   criação  de   desgraçadosentes,  destinados a  ser  engaiolados,  assim comocanários, e a ser, depois, vendidos por todo o reinoa   pessoas   de   elevada   estirpe,   como   pequeninosanimais   curiosos.   Era,   na   verdade,   tratado   comgrande bondade; era o favorito do rei e da rainha eas   delícias   de   toda   a   corte;   mas   estava   numasituação que não convinha à dignidade da minhanatureza humana. A princípio, não podia esqueceros preciosos penhores que deixara em minha casa.Desejava bastante encontrar­me entre povos comos quais pudesse entabular conversa como de igualpara igual, e ter a liberdade de andar pelas ruas epelos   campos   sem   receio   de   ser   pisado   ouesmagado como uma rã ou ser o joguete de algumcãozinho; a minha libertação, porém, chegou maisdepressa   do   que   esperava   e   de   uma   formaextraordinária, que vou referir fielmente com todosos pormenores desse admirável acontecimento.

Havia dois anos que vivia nesse país. No princípio

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do   terceiro, Glumdalclitch e   eu   fazíamos  parte  dacomitiva régia numa viagem que o rei e a rainharealizaram   pela   costa   meridional   do   reino.Levavam­me,   de   ordinário,   na   minha   caixa   deviagem, que era um aposento muito cômodo, com alargura de  doze  pés.  Tinham,  por  minha ordem,colocado uma maca suspensa de cordões de sedaaos quatro cantos superiores da minha caixa, a fimde que sentisse menos as sacudidelas do cavalo,sobre o qual um criado me levava na sua frente.Ordenara ao marceneiro que fizesse na tampa umaabertura com um pé quadrado para deixar entrar oar, de maneira que, quando eu quisesse, pudesseabri­la e fechá­la por meio de uma corrediça.

Quando chegámos ao termo da nossa viagem o reiachou   conveniente   passar   alguns   dias   numavivenda que possuía perto  de Flanflasnic,  cidadesituada   a   dezoito   milhas   inglesas   dabeira­mar. Glumdalclitch e   eu   estávamos   deverasfatigados,  e  eu até  um pouco constipado;  mas apobre pequena estava tão doente que era obrigadaa permanecer sempre no quarto. Tive vontade dever o oceano. Fiz­me parecer mais doente do querealmente   me   sentia   e   pedi   que   me   dessemliberdade para respirar o ar do mar com um pajemcom quem eu simpatizava muito e a quem, noutrotempo,   fora   confiado.   Nunca   esquecerei   arepugnância   com   queGlumdalclitch consentiunisso, nem a ordem severa que deu ao pajem parater cuidado comigo, nem as lágrimas que chorou,como se tivesse o pressentimento do que me deviaacontecer.  O pajem conduziu­me, pois,  na caixa,afastando­se quase meia légua da região, para osrochedos   à   beira­mar.   Disse­lhe,   então,   que   mepusesse no chão e, levantando o caixilho de uma

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das minhas  janelas,  comecei  a  olhar   tristementepara   o   mar.   Pedi   então   ao   pajem   que,   tendovontade de dormir alguns instantes na maca, modeixasse   fazer,   pois   isso   me   aliviaria.   O   pajemfechou bem a janela, com receio de que eu sentissefrio;   depressa   adormeci.   Tudo   o   que   possoconjecturar   é   que,   enquanto   dormia,   o   pajem,julgando   que   nada   tinha   a   recear,   trepou   pelosrochedos  em busca  de  ovos  das  aves  marinhas,tendo­o visto da janela a procurá­los e apanhá­los.Fosse   como   fosse,   o   que   é   certo   é   que   fuisubitamente acordado por um violento solavancoque a minha caixa sofreu, que me senti no ar e, emseguida,   arrebatado   com   prodigiosa   rapidez.   Oprimeiro   solavanco   quase   me   fez   saltar   fora   damaca,  mas,  depois,  o  movimento   tornou­se maissuave.   Gritei   com   todas   as   forças   dos   meuspulmões, mas debalde. Olhei por entre os vidros esó vi nuvens. Ouvia por cima da cabeça um terrívelruído,   semelhante   ao   bater   de   asas.   Então,comecei a conhecer a perigosa situação em que meencontrava e a suspeitar que alguma águia tivessesegurado o cordão da minha caixa com o bico, nodesejo de a deixar cair sobre algum rochedo, comouma tartaruga na casca e,  em seguida,   tirar­mepara fora e devorar­me, porque a sagacidade e oolfato   desta   ave   permitem­lhe   descobrir   a   suapresa a grande distância, ainda que muito ocultoestivesse na caixa que tinha apenas a espessura deduas polegadas.

Ao cabo de certo tempo, notei que o ruído e o baterde asas aumentavam muito e que a caixa se moviapara  um  lado   e   para   outro   como   uma   tabuletaimpelida pelo vento; ouvi violentas pancadas queeram   dadas   na   águia   e   depois,   de   repente,

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senti­me cair perpendicularmente durante mais deum minuto, mas com incrível velocidade. A minhaqueda   acabou   por   um   terrível   solavanco   queretiniu na minha cabeça como a nossa catarata doNiágara, depois do que fiquei às escuras duranteum minuto   e   então  a  minha   caixa  principiou  aelevar­se, de maneira que pude ver o sol por cimada minha janela. Percebi, então, que caíra no mare que a caixa flutuava. Supus, e suponho ainda,que   a   águia   que   arrebatara   a  minha   caixa   foraperseguida por duas ou três águias e constrangidaa deixar­me cair, enquanto se defendia das outras,que lhe disputavam a presa. As chapas de ferro,colocadas   por   baixo   da   caixa,   conservaram   oequilíbrio   e   impediram   que   se   quebrasse   eesmigalhasse ao cair.

Oh! como desejei que Glumdalclitch me socorressenesse súbito acidente que tanto me afastara dela!Posso, na verdade, dizer que, no meio das minhasdesgraças, lamentava e tinha saudades da minhapequena dona, e pensava no desgosto que sentiriacom a  minha perda  e  no  sentimento  da   rainha.Estou   certo   de   que  poucos   viajantes   há   que   setenham encontrado   em situação   tão   triste   comoaquela em que então me encontrava, esperando atodo o instante que a minha caixa se partisse oupelo menos se voltasse ao primeiro golpe de vento efosse submergida pelas vagas; um vidro partido, eestava   completamente   perdido.   Não   havia   nadaque   pudesse   fazer   senão   conservar­me   à   minhajanela,   que   estava  munida  pelo   lado  de   fora  dearames   muito   fortes   que   a   protegiam   contra   osacidentes que podem ocorrer em uma viagem. Vi aágua   entrar   na   minha   caixa   por   algumasfendazinhas, que tratei de tapar o melhor possível.

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Ah!   não   tinha   força   para   levantar   a   tampa   daminha   caixa,   o   que,   se   pudesse,   faria,   e   aí   mecolocaria   de   preferência   a   ficar   encerrado  nessaespécie de porão.

Nesta crítica situação, ouvi, ou julguei ouvir, umaespécie   de   ruído   ao   lado   da   caixa;   depressacomecei a imaginar que era puxada e de algumaforma   rebocada,   porque,   de   tempos   a   tempos,sentia  como que  um esforço,  que   fazia  subir  asondas até à altura das janelas, deixando­me quaseàs   escuras.   Alimentei,   então,   algumas   fracasesperanças  de   salvação,   ainda  que  não  pudesseimaginar   de   onde   ela   me   viria.   Subi   para   ascadeiras   e   aproximei   a   cabeça  de  uma  pequenaabertura que havia na tampa da caixa, e desatei agritar com toda força e a pedir socorro em todas aslínguas que sabia. Em seguida, atei o lenço a umabengala que tinha e, fazendo­a sair pela abertura,manejei­a muitas vezes no espaço, a fim de que, sealgum   barco   ou   navio   estivesse   próximo,   osmarinheiros   pudessem   conjecturar   que   dentrodaquela caixa estava um desgraçado mortal.

Não   notei   que   tudo   isso   tivesse   dado   algumresultado,   mas   constatei   que   a   minha   caixacaminhava sempre para a frente. Ao cabo de umahora senti que chocava contra alguma coisa dura.Temi   a  princípio   que   fosse  um  rochedo   e   fiqueimuito   alarmado   com   o   caso.   Ouvi,   então,claramente, bulha sobre a tampa da caixa, como ade  um cabo;  depois,   fui   içado  a  pouco   e  poucoquase três pés a mais do que estava anteriormente;ao  notar   isso,   ergui   ainda  a   bengala   e   o   lenço,gritando   por   socorro   até   ficar   rouco.   Comoresposta,  ouvi  grandes aclamações repetidas três

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vezes, que me causaram transportes de alegria quenão podem ser compreendidos senão por aquelesque os sentem; ao mesmo tempo ouvi andar sobrea  tampa e  alguém, chamando pela abertura,  eminglês, perguntou:

— Está alguém aí?

— Sim! — respondi — Sou um pobre inglês reduzidopela   fortuna   à   maior   calamidade   que   até   agoraqualquer   criatura   tenha   sofrido.   Em   nome   deDeus, salve­me desta enxovia.

Ao que a voz me redarguiu:

— Tranquilize­se,  que nada tem a recear;  a caixaestá segura ao navio, e o carpinteiro vem já parafazer um buraco e tirá­lo daí.

Respondi  que  isso era desnecessário  e  demoravamuito tempo; que bastava que qualquer tripulantepusesse o dedo no cordão a fim de levar a caixapara fora do mar, e colocá­la a bordo. Alguns dosque me ouviam falar assim, imaginavam que eraum pobre   insensato;   outros   riam;   eu   entretantonão me lembrava que estava tratando com homensda minha estatura e da minha força. Apareceu ocarpinteiro e, dentro de poucos minutos, fez umaabertura na tampa, com a largura de três pés, edeu­me   uma   pequena   escada   pela   qual   subi.Entrei   ao   navio   em   um   estado   de   grandíssimafraqueza.

Os   marinheiros   ficaram   espantados   eformularam­me   mil   perguntas,   a   que   não   tivecoragem   de   responder.   Imaginava   ver­me   entrepigmeus, tanto os meus olhos se haviam habituadoaos  objetos  monstruosos  que  acabara  de  deixar;

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mas   o   capitão,   M.   Thomas   Viletcks,   homem   deprobidade   e   de   mérito,   oriundo   da   província   deSalop,   reparando   em   que   eu   estava   caindo   defraqueza,  mandou­me   entrar  para   o   seu  quarto,deu­me   um   cordial   para   me   fortalecer   e   fez­medeitar   na   sua   cama,   aconselhando­me   a   querepousasse,   pois   carecia   bastante   de   descanso.Antes   que   adormecesse,   disse­lhe   que   possuíapreciosos   móveis   dentro   da   minha   caixa,   umasoberba   maca,   uma   cama   de   campanha,   duascadeiras,   uma   mesa,   um   armário;   que   o   meuquarto   era   atapetado   ou,   para   melhor   dizer,estofado   de   seda   e   algodão;   que,   se   quisessemandar algum homem da sua tripulação rebuscaro  meu  quarto,   abri­lo­ia  na   sua  presença   e   lhemostraria   os   móveis.   O   capitão,   ouvindo­meaqueles absurdos, julgou que eu estava louco; noentanto, para me ser agradável, prometeu mandarfazer   o   que   lhe   pedia   e,   subindo   ao   convés,mandou alguns dos seus homens revistar a caixa.

Dormi durante algumas horas, mas continuamentesobressaltado pela idéia da região que deixara e doperigo   que   correra.   Contudo,   ao   despertar,achei­me muito bem disposto. Eram oito horas danoite e o capitão ordenou que me dessem de cearimediatamente,   supondo   que   jejuara   durantemuito   tempo.   Tratou­me   com   extrema   bondade,notando,   todavia,   que   eu   tinha   os   olhosdesvairados. Quando nos deixaram sós, pediu­meque   lhe   narrasse   as   minhas   viagens   e   lheexplicasse  por  que  acidente   eu   fora  abandonadonaquela grande caixa à mercê das ondas. Disse­meque, por volta do meio­dia, olhando pelo óculo, adescobrira   de   muito   longe   e   a   tomara   por   umpequeno barco, que queria apanhá­lo, em vista de

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querer  comprar  bolacha que  lhe  faltava;  que,  aoaproximar­se, conhecera o seu erro e mandara oescaler   para   verificar   o   que   era;   que   os   seushomens   tinham   voltado   verdadeiramenteaterrados,   jurando   que   haviam   visto   uma   casaflutuante;   que   rira   do   seu   disparate   e   que   elepróprio embarcara no escaler, ordenando aos seusmarinheiros que trouxessem um cabo; que, como otempo   estava   sereno,   depois   de   ter   remado   emvolta da grande caixa, rodeando­a por várias vezes,dera com a janela; que ordenara então à sua genteque remasse e se aproximasse desse lado e, queligando   um   cabo   a   uma   das   argolas   da   janela,fizera­a rebocar; que vira a bengala e o lenço pelaabertura e que imaginara que alguns desgraçadosestivessem encerrados nela. Perguntei­lhe se ele oua sua tripulação não tinham visto aves prodigiosasno ar, na ocasião em que me descobriram, ao queredarguiu que, falando sobre esse assunto com osmarinheiros,   enquanto   dormia,   um   deles   lhedissera ter observado três águias que tomavam orumo   do   norte;   porém   não   tinha   notado   quefossem maiores do que o vulgar, o que é fácil desupor, visto a enorme altura a que voavam, e nãopôde   também   adivinhar   o   motivo   por   que   lheformulavam   semelhante   pergunta.   Em   seguida,perguntei   ao   capitão   a   que   distância   supunhaestar de terra; respondeu­me que, pelos melhorescálculos   que   pudera   fazer,   estávamos   afastadoscem léguas. Garanti­lhe que estava completamenteenganado   em   quase   metade,   porque   não   tinhadeixado o país de onde eu vinha, senão duas horasantes que eu caísse ao mar; esta minha observaçãofê­lo   voltar   a   crer   que   o   meu   cérebro   estavaavariado,  e  aconselhou­me que tornasse a deitarna   cama,   num   quarto   que   de   antemão   me

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mandara preparar. Afirmei­lhe que me sentia bemdisposto  depois  da  refeição  e  com a sua amávelcompanhia, e que estava no pleno uso das minhasfaculdades   mentais   e   tão   perfeitamente   comoantes.

Retomou a sua costumada seriedade e pediu­mepara   lhe   dizer   francamente   se   eu   não   tinha   aconsciência   perturbada   por   algum   crime   quetivesse cometido e que fosse punido por ordem dealgum príncipe,  e exposto nessa caixa, como porvezes   acontece   aos   criminosos   de   certos   países,que   são   abandonados   à   mercê   das   ondas   numnavio   sem   velas   e   sem   víveres;   que   embora   sesentisse arrependido por haver recolhido a bordotal celerado, dava a sua palavra de honra que medesembarcaria, com segurança, no primeiro portoque   tocasse;   acrescentou   que   as   suas   suspeitashaviam aumentado em virtude de alguns discursosmuito  absurdos,   que   fizera  a  princípio  a  algunsmarinheiros, e, depois, a ele mesmo, com relação àminha caixa e ao meu quarto e bem assim pelosmeus desvairados olhos e estranha atitude.

Pedi­lhe que ouvisse com paciência a narrativa daminha   vida;   historiei­lha   mui   fielmente   desde   aúltima vez que deixara a Inglaterra até o momentoem que  me  descobrira;   e,   como  a   verdade   abresempre um caminho nos espíritos inteligentes, estehonesto e digno fidalgo, que possuía bom senso enão era completamente destituído de letras, ficousatisfeito com a minha boa fé e sinceridade; mas,além disso, para confirmar tudo quanto eu dissera,pedi­lhe   que   desse   ordem  para   trazerem   o   meuarmário, cuja chave estava em meu poder; abri­o àsua vista e fi­lo examinar todas as curiosas coisas

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executadas no país de onde eu saíra de uma formatão estranha. Entre outros objetos, havia o penteque eu fabricara com os pêlos das barbas do rei eum outro  da  mesma matéria,   ao  qual   servia  deguarnição uma apara da unha do dedo polegar domesmo soberano; havia uma carta de agulhas e dealfinetes com o comprimento de pé e meio; um anelcom que um dia a rainha me presenteara de umaforma   muito   cativante,   tirando­o   do   dedo   eenfiando­mo no pescoço,  como se  fora um colar.Pedi   ao   capitão   que   aceitasse   aquele   anel   comotestemunho   de   reconhecimento   pelos   favoresdispensados, o que ele recusou terminantemente.Por fim, disse­lhe que examinasse atentamente ascalças que eu usava e que eram feitas de pele derato.

O capitão ficou muito satisfeito com tudo o que lhecontei e disse­me que esperava, quando do nossoregresso à Inglaterra, que eu escrevesse a relaçãodas   minhas   viagens   e   a   publicasse   em   volume.Respondi   que   julgava   haver   já   muitos   livros   deviagens; que as minhas aventuras não passariamde um simples romance e de uma ridícula ficção;que a minha relação conteria apenas descrições deplantas  e  de animais  extraordinários,  de  leis,  decostumes   e   usos   extravagantes;   que   essasdescrições eram muito vulgares e que já estavamfartos delas; e que, não tendo outra coisa a dizercom respeito às minhas viagens, não valia a penadar­me   o   trabalho   de   descrevê­las.   No   entanto,agradeci­lhe   a   lisonjeira   opinião   que   formava   ameu respeito.

Pareceu­me admirado de uma coisa: de eu falar tãoalto, perguntando­me se o monarca e a soberana

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desse país eram surdos. Respondi­lhe que era umacoisa a que me habituara havia mais de dois anose que, por meu lado, admirava a sua voz e a da suagente, que parecia falar­me sempre ao ouvido, masque apesar disso, podia ouvi­los muito bem; que,quando   falava  nesse  país,   era  como um homemque fala da rua para outro que está no alto de umcampanário,   exceto   quando   era   colocado   sobreuma   mesa   ou   equilibrado   na   mão   de   qualquerindivíduo. Declarei­lhe que notara outra coisa e eraque,  a  princípio,  ao  entrar  no  navio,  quando  osmarinheiros  se  mantinham de pé   junto  de  mim,pareciam­me infinitamente pequenos; que, durantea   minha   permanência   nesse   país,   não   podiaver­me ao  espelho,  desde  que  os  meus  olhos  sehaviam   habituado   a   objetos   grandes,   porque   acomparação   que   fazia   tornava­me   desprezível   amim   próprio.   O   capitão   disse­me,   enquantoceávamos, que tinha notado que eu examinava ascoisas   com   uma   espécie   de   assombro   e   quealgumas vezes lhe parecia que fazia esforços paranão   soltar   uma   gargalhada;   que,   em   taismomentos, não sabia como aceitar o caso, mas queo atribuía a um desarranjo mental. Redargui queestava   assombrado  por  haver   sido   capaz   de  meconter ao ver os pratos da grossura de uma moedade prata de três soldos, uma perna de carneiro queera uma simples isca, um copo tão grande comouma   casca   de   noz   e,   assim   sucessivamente,continuei a descrever todo o resto dos seus móveise   das   suas   coisas,   comparativamente;   porque,embora a rainha me tivesse dado para meu usotudo   quanto   era   necessário   num   tamanhoproporcionado à  minha estatura, o que é  certo éque   as   minhas   idéias   estavam   completamenteentregues ao que via em volta de mim, e fazia como

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todos os homens que examinam continuamente osoutros   sem  se   examinarem a   si   próprios   e   semprestarem   atenção   à   sua   pequenez.   O   capitão,referindo­se ao velho rifão inglês, disse­me que eutinha mais olhos do que barriga, pois que repararaque não comia com grande apetite; e continuandoa gracejar, acrescentou que daria com prazer cemlibras esterlinas para ter o gosto de ver a minhacaixa no bico da águia e, em seguida, cair de tãogrande altura no mar, o que certamente seria umcaso muito interessante e digno de ser transmitidoaos séculos vindouros.

O   citado   capitão,   que   regressava   de   Tonquin,fazia­se   de   vela   para   Inglaterra,   e   fora   impelidopara o nordeste,  a quarenta graus de  latitude, ecento e quarenta e três de longitude; como, porém,se levantasse um vento de monção dois dias depoisda minha estada a  bordo,   fomos  levados  para  onorte durante muito tempo; e,  costeando a NovaHolanda, fizemo­nos no rumo de oeste­nordeste edepois de sudoeste, até termos dobrado a Cabo daBoa Esperança. A nossa viagem foi muito feliz, maseu pouparei  ao  leitor a sua descrição.  O capitãoaproou a  uns  dois  portos  e   fez   chegar  aí   o   seuescaler para trazer víveres e tomar água; quanto amim, não saí de bordo senão quando aportamos àsDunas.   Isso deu­se,  creio,  que a 3 de Junho de1706,   quase   nove   meses   depois   da   minhalibertação. Ofereci  os meus móveis para garantiado   pagamento   da   minha   passagem;   o   capitão,porém,   protestou,   dizendo   nada   querer   receber.Despedimo­nos   muito   afetuosamente   e   fiz­lheprometer   que   iria   visitar­me   em Redriff.   Alugueium cavalo  e  um guia  por  algum dinheiro  que ocapitão me emprestou.

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Durante   esta   viagem,   notando   a   pequenez   dascasas,   das   árvores,   do   gado   e   dos   habitantes,julguei­me   ainda   em   Lilipute:   receei   pisar   osviajantes que encontrava e muitas vezes gritei paraos fazer afastar do caminho, de maneira que emvárias ocasiões corri o risco de ficar com a cabeçapartida por causa da minha impertinência.

Quando  cheguei  a  minha  casa,  que   reconheci  acusto, um dos criados abriu­me a porta e eu baixeia cabeça para entrar,  com receio de dar algumacabeçada;   essa   porta   parecia­me   um   postigo.Minha   mulher   correu   logo   para   me   beijar,   mascurvei­me até a altura dos seus joelhos, temendoque não chegasse à  boca.  Minha  filha saltou­mepara os joelhos a fim de me pedir a bênção, mas sópude distinguir­lhe as feições quando se levantou,estando desde  muito  acostumado a  estar  de  pé,com   a   cabeça   e   os   olhos   erguidos   para   cima.Considerei   todos   os   meus   criados   e   uns   doisamigos que ali se encontravam como pigmeus e amim como um gigante. Disse a minha mulher queela tinha sido muito frugal, porque eu achava queela própria estava reduzida, assim como a filha, acoisa nenhuma. Numa palavra, procedi de maneiratão estranha que todos formaram de mim a mesmaopinião  que  o  capitão   formara quando me viu  abordo,   e   concluíram   que   eu   ensandecera.Pormenorizo estas coisas para tornar conhecido ogrande poder do hábito e do preconceito.

Em pouco tempo me habituei à mulher, à família eaos   amigos;   minha   mulher   opinou   que   eu   nãotornaria   a   embarcar;   no   entanto,   a   minha   máestrela ordenou precisamente o contrário, como oleitor poderá verificar pelo seguimento. Entretanto,

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é   aqui   que   finda   a   segunda   parte   das   minhasmal­aventuradas viagens.

Terceira Parte

VIAGEM A LAPÚCIA, AOS BALNIBARBOS, A LUGGNAGG, AGLUBBDUDRIB E AO JAPÃO

CAPÍTULO I

O autor empreende terceira viagem — É aprisionado pelos piratas — Maldadede um holandês — Chega a Lapúcia.

HAVIA pouco mais de dois anos que permaneciaem minha casa, quando o capitão Guill Robinson,da   província   de   Cornualha,   comandante   do BoaEsperança, navio   de   trezentas   toneladas,   veioprocurar­me. Fora outrora cirurgião de um naviode que ele era capitão, numa viagem ao Levante, efui   sempre  muito  bem tratado.  O capitão,   tendoconhecimento   da   minha   chegada,   fez­me   umavisita em que patenteou a alegria que sentira aover­me de perfeita saúde; perguntou­me se eu meresolvera   a   ficar   definitivamente   em   casa   edisse­me que projetava fazer uma viagem às ÍndiasOrientais, para onde contava partir dentro de doismeses. Insinuou­me ao mesmo tempo que sentiriamuito   prazer   em   que   eu   continuasse   a   ser   omédico de bordo; que teria um outro cirurgião edois   enfermeiros   comigo;   que   receberia   soldodobrado; e, depois de provar que o conhecimentoque eu tinha do mar era pelo menos igual ao seu,me levaria como se fosse o imediato.

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Enfim, teve palavras tão elogiosas, pareceu­me tãobondoso,   que   me   deixei   levar,   tendo   ademais,apesar   das   desgraças   passadas,   uma   grandepaixão   pelas   viagens.   A   única   dificuldade   queprevia era obter o consentimento de minha mulherque, no entanto, mo deu de boa vontade, decertoem  vista   das   vantagens   que   seus   filhos   podiamauferir daí.

Fizemo­nos   de   vela   em   5   de   Agosto   de   1708   eaportámos ao forte de S. Jorge em 1 de Abril de1709,   onde   permanecemos   três   semanas   pararefrescar   a   nossa   tripulação,   que,   na   maioria,estava doente. Daí, dirigimo­nos a Tonquin, onde onosso capitão resolveu demorar­se algum tempo,porque   a   mor   parte   das   mercadorias   que   tinhavontade   de   adquirir   só   lhe   podia   ser   entreguealguns meses depois. Para se desforrar um poucodas   despesas   da   demora,   adquiriu   um   barcocarregado de  diferentes  espécies  de  mercadorias,de   que   os   Tonquineses   fazem   um   comércioordinário com as ilhas próximas, e, embarcando aíquarenta homens, em que incluíra três da região,fez­me   seu   capitão   e   deu­me   plenos   poderesdurante  dois  meses,   enquanto   ele   negociava   emTonquin.

Ainda não havia três dias que nos tínhamos feitoao mar quando rebentou uma violenta tempestadeque nos impeliu durante cinco dias para nordeste eem seguida para este. O tempo serenou um pouco,mas   o   vento   de   oeste   continuava   a   soprar   comforça.

Ao décimo dia, dois piratas perseguiram­nos e logonos aprisionaram, porque o meu navio estava tãocarregado   que   singrava   muito   lentamente,

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sendo­nos  por   completo   impossível  manobrar  demaneira a nos defender.

Os dois  piratas  abordaram e entraram no nossonavio à frente dos seus homens; encontrando­nos,porém,   de   bruços,   como   eu   ordenara,contentaram­se   em   ligar­nos   e,   fazendo­nosguardar, principiaram a visitar o navio.

Notei entre eles um holandês que parecia ter certaautoridade, conquanto fosse apenas a do comando.Pelos nossos modos conheceu que éramos inglesese,   falando­nos na sua  língua,  disse­nos  que nosiam ligar a todos costas com costas e lançar­nos aomar.   Como   eu   falasse   muito   bem   holandês,declarei­lhe   quem   éramos   e   solicitei­lhe,   emconsideração   do   nome   comum   de   cristãos   e   decristãos reformados,  de vizinhos,  de aliados,  queintercedesse por nós junto do capitão. As minhaspalavras   deram   apenas   como   resultado   irritá­lo;redobrou   as   ameaças   e,   voltando­se   para   oscompanheiros,   falou­lhes   em   língua   japonesa,repetindo amiudadas vezes a palavra cristãos.

O maior navio desses piratas era comandado porum capitão japonês, que falava um pouco a línguaholandesa;   dirigiu­se­me   e,   após   algumasperguntas,   a   que   humildemente   respondi,assegurou­me que nos pouparia a vida. Fiz­lhe umgrande cumprimento e, virando­me, então, para oholandês, disse­lhe que estava bastante admiradode ter encontrado mais humanidade num idólatrado que num cristão. Em breve, porém, tive de mearrepender das palavras que proferira, porque essemiserável réprobo, tendo tentado em vão persuadiros dois capitães a que me lançassem ao mar (noque   não   quiseram   consentir   por   causa   da

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promessa que um deles me havia feito), obteve quefosse ainda mais rigorosamente tratado do que seme   matassem.   Haviam   dividido   a   minha   gentepelos   dois   navios   e   pelo   barco;   quanto   a   mim,decidiram abandonar­me à  sorte, num batel comdois remos, uma vela e víveres para quatro dias. Ocapitão japonês redobrou a dose e tirou das suaspróprias   provisões   esse   caridoso   aumento;   nãoquis   até   que   me   expoliassem.   Desci,   pois,   paraesse  barquinho,   enquanto  o  brutal  holandês  medirigia   do   alto   da   coberta   todas   as   injúrias   eimprecações   que   a   sua   linguagem   podia   lhefornecer.

Quase uma hora antes de sermos vistos pelos doispiratas,   tomara   altura,   e   vira   que   nosencontrávamos a quarenta e seis graus de latitudee a cento e oitenta e três de longitude. Quando mevi   um   pouco   afastado,   descobri   com   um   óculodiferentes ilhas ao sudoeste. Então, icei a vela, poiso vento estava de feição, com desejo de aproar àmais próxima dessas  ilhas,  o que me deu tarefapara   três  horas.  Esta   ilha  não  era  mais  do  queuma   rocha,   onde   encontrei   muitos   ovos   depássaros; então, usando do meu fuzil, lancei fogo aalgumas raízes e a alguns juncos marítimos parapoder cozer os ovos, que foram nessa noite todo omeu   sustento,   estando   resolvido   a   poupar   asminhas provisões tanto quanto me fosse possível.Passei a noite nessa rocha, deitado no chão sobreas urzes que me serviram de cama, e dormi muitobem.

No dia seguinte, fiz­me de rumo para outra ilha edepois   para   uma   terceira   e   para   uma   quarta,servindo­me às  vezes  dos   remos;  mas,  para  não

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maçar o leitor, direi apenas que ao cabo de cincodias atingi a última ilha que vira, e que ficava aosudoeste da primeira.

Esta   ilha   estava   mais   afastada   do   que   euimaginava   e   só   pude   chegar   lá   passadas   cincohoras.   Dei   uma   volta   completa   antes   de   poderaproar.  Pondo  pé   em  terra  numa pequena  baía,que   era   três   vezes   mais   larga   do   que   o   meubarquinho, notei que toda a ilha não passava deum grande rochedo, com alguns intervalos em quenasciam relva e ervas muito odoríferas. Tomei asminhas   pequenas   provisões   e,   depois   de   havercomido um pouco, guardei o resto numas covas, deque havia grande número. Apanhei alguns ovos norochedo   e  arranquei   certa  quantidade  de   juncosmarítimos e ervas secas, a fim de as acender nodia seguinte para cozinhar os meus ovos, porquetinha   comigo   o   meu   fuzil,   a   isca   e   uma   lente.Passei   toda   a   noite   na   cova,   onde   colocara   asminhas provisões; a minha cama eram essas ervasdestinadas   para   o   lume.   Dormi   pouco,   porqueestava mais inquieto do que cansado.

Considerei   que   era   impossível   não   morrer   numlugar tão miserando. Achei­me tão combalido comestas   reflexões,   que   não   tive   coragem   para   melevantar e, antes de me sentir com forças para sairdo meu esconderijo, o sol já ia muito alto; fazia umtempo magnífico e o sol estava tão ardente que eraobrigado a desviar dele o rosto.

De repente, porém, escureceu de maneira diferentedo   que   costuma   acontecer   quando   passa   umanuvem. Voltei­me para o sol e vi um grande corpoopaco e móvel  entre  mim e o  astro,  que pareciaandar   de   um   lado   para   o   outro.   Este   corpo

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suspenso, que se me afigurava ficar a duas milhasde altura, ocultou­me o sol durante sete minutos;porém   não   pude   observar   a   causa   daquelaescuridão. Quando este objeto chegou mais pertodo sítio em que me encontrava, pareceu­me ser deuma substância sólida, cuja base era plana, unidae luzente pela reverberação do mar. Detive­me emum   montículo,   quase   a   duzentos   passos   damargem, e vi esse corpo descer e aproximar­se demim,   a   uma   milha   de   distância   talvez.   Tomei,então, o meu telescópio, e descobri grande númerode   pessoas   em   movimento,   pessoas   que   meolhavam e se olhavam umas para as outras.

O  instinto  natural  da vida   fez­me nascer  algunssentimentos  de  alegria  e  de  esperança,  pois  queesta   aventura   poderia   ajudar­me   a   sair   dodesgraçado   estado   em   que   me   encontrava;   aomesmo tempo, porém, o leitor não pode imaginar aestupefação que me causou a vista daquela espéciede ilha aérea, habitada por homens que tinham aarte e o poder de a  levantar, de a baixar e de afazer andar à sua vontade; não tendo, contudo, oespírito de filosofar sobre tão estranho fenômeno,contentei­me em observar para que lado é  que ailha girava, porque me pareceu parar algum tempo.Entretanto,   aproximou­se   do   lado   em   que   euestava e pude descortinar muitos terraços grandese escadarias de espaço a espaço para comunicaremumas com outras.

Sobre o terraço mais baixo, vi muitos homens quepescavam   aves   à   linha   e   outros   que   olhavam.Fiz­lhes   sinal   com   o   chapéu   e   com   o   lenço;   e,quando os vi mais perto, gritei  com toda a forçados  meus pulmões.  Tendo,   então,  olhado com a

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máxima   atencão   vi   uma   enorme   multidãoapinhada   no   ponto   que   me   ficava   em   frente.Descobri,   pelas   suas   posições,   que   me   viam,embora   me   não   tivessem   respondido.   Reparei,então,   nuns   seis   homens   que   subiamapressadamente   ao   cume   da   ilha,   e   supus   quefossem enviados a algumas pessoas de autoridadepara receberem ordens sobre o que deviam fazernesta ocasião.

A multidão dos insulares aumentou e, em menosde meia hora, a ilha aproximou­se de tal maneira,que mediaram apenas uns cem passos de distânciaentre   ela   e   mim.   Foi,   então,   que   adotei   váriasposições   humildes   e   comoventes   e   dirigi   váriassúplicas;   não   obtive   resposta   alguma;   os   quepareciam estar mais próximos, a julgar pelas suasroupas, eram pessoas de distinção.

Por   fim,   um   deles   fez   ouvir   a   sua   voz   numalinguagem clara, polida e muito suave, cujo timbrese aproximava do italiano; foi também em italianoque   respondi,   imaginando   que   o   som   e   aacentuação  desta   língua  seriam mais  gratos  aosseus ouvidos do que qualquer outro idioma. Estepovo   compreendeu   o   meu   pensamento;   assim,fizeram­me sinal para que descesse do rochedo eque me encaminhasse para a margem. Então, dailha   volante,   baixando­se   a   uma   alturaconveniente, deitaram­me de cima do terraço umacorrente   com   uma   pequena   cadeira   suspensa,sobre   a   qual   me   sentei,   sendo,   num   momento,içado por meio de um cadernal.

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CAPÍTULO II

Carácter dos Lapucianos — Opinião a respeito dos seus sábios, do seu rei eda corte — Recepção que foi feita ao autor — Os receios e as inquietações dos

habitantes — Carácter das mulheres lapucianas.

Assim que cheguei, encontrei­me rodeado de umamultidão   que   me   observava   admirada   e   que   eucontemplei do mesmo modo, não tendo visto nuncatão singular raça de mortais tanto no rosto, comonos hábitos e nas maneiras; inclinavam a cabeçaora para a direita, ora para a esquerda; tinham umolho  voltado  para  dentro  e  outro  para  o  sol.  Assuas roupas eram semeadas de figuras do sol, dalua e das estrelas e cheios de rabecas, de flautas,de harpas, de trombetas, de guitarras, de alaúdese   de   muitos   outros   instrumentos   musicaisdesconhecidos   na   Europa.   Vi   em   torno   delesmuitos  criados  armados de  bexigas,   ligadas comum malho  na  ponta  de  um pequeno  pau,   ondehavia certa quantidade de ervilhinhas e seixinhos;batiam de tempos a tempos com essas bexigas naboca   ou   nas   orelhas   daqueles   que   lhes   ficavammais próximos e não pude perceber o motivo de talhábito.   A   inteligência   deste   povo   parecia   tãodistraída   e   tão   mergulhada   em   profundameditação, que ninguém podia falar nem estar comatenção ao que se lhe dizia sem o auxílio daquelasruidosas bexigas, com que se lhe batia na boca ounas orelhas, para o despertar. Esta era a razão porque   as   pessoas   que   possuíam   certos   meios,mantinham um criado, que lhes servia de monitore sem o qual nunca saíam.

A   ocupação  deste  personagem,   quando  duas   outrês pessoas se encontravam juntas, consistia embater habilmente com a bexiga na boca daquele a

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quem   se   dirigia   o   discurso.   O   monitoracompanhava sempre o seu amo quando ele saía, eera obrigado a dar­lhe, de quando em quando, coma   bexiga   nos   olhos,   porque,   sem   isso,   os   seusgrandes devaneios pô­lo­iam muita vez em perigode cair  em algum precipício,  ou de bater  com acabeça em algum poste, de empurrar os outros narua, ou de ser lançado em algum riacho.

Fizeram­me   subir   ao   cume   da   ilha   e   entrar   nopalácio do rei, onde vi Sua Majestade num trono,cercado de personagens da primeira distinção. Emfrente do trono estava uma grande mesa cheia deglobos, esferas e de instrumentos matemáticos detoda espécie.  O rei não deu pela minha entrada,embora a multidão que me acompanhasse fizessebastante alarido; estava, então, entregue à soluçãode um problema, e parámos defronte dele duranteuma hora precisa, à espera de que Sua Majestadeacabasse   a   sua   operação.  Havia   junto  dele   doispajens empunhando bexigas, e um deles, quandoSua   Majestade   concluiu   o   trabalho,   bateu­lhedocemente   e   com   respeito   na   boca,   enquanto   ooutro lhe bateu na orelha direita.  O rei pareceu,então,   despertar   como   que   em   sobressalto   e,circunvagando a vista por mim e pela gente que merodeava,   recordou­se   do   que   lhe   haviam   ditoacerca   da   minha   chegada,   poucos   momentosantes;   dirigiu­me   algumas   palavras   e   logo   umhomem, armado de uma bexiga, se aproximou demim e bateu­me com ela na orelha direita; fiz­lhe,porém,   sinal   de   que   era   desnecessário   ter   essetrabalho, o que deu ao rei e a toda a corte umaelevada   idéia   acerca   da   minha   inteligência.   Osoberano   fez­me   algumas   perguntas,   a   querespondi   sem   que   um   e   outro   nos

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compreendêssemos. Em seguida me conduziram aum aposento onde me serviram o  jantar.  Quatropessoas   de   distinção   me   deram   a   honra   de   sesentar perto de mim; tivemos dois serviços, cadaum de   três  pratos.  O  primeiro   era   composto  deuma   perna   de   carneiro   cortada   em   triânguloequilátero; de uma peça de boi sob a forma de umrombóide e de um chouriço de sangue sob a de umciclóide. O segundo serviço foi constituído por doispratos semelhando rabecas, salsichas e lingüiças,que pareciam flautas e oboés, e um fígado de veadoque tinha a aparência de uma harpa. Os pães, quenos serviram, tinham a configuração de cones, decilindros e de paralelogramos.

Depois do  jantar,  um homem veio ter comigo daparte   do   rei,   com   uma   caneta,   tinta   e   papel,   efez­me compreender, por sinais, que tinha ordemde  me  ensinar  a   língua  do  país.  Estive   com eleperto de quatro horas, durante as quais escrevi emquatro   colunas   um   grande   número   de   palavrascom a   tradução   em  frente.  Ensinou­me   tambémalgumas   frases   curtas,   cujo   sentido   me   deu   aconhecer,  dizendo­me o que elas significavam. Omeu professor mostrou­me em seguida, num dosseus livros, a figura do sol, da lua, das estrelas, dozodíaco,   dos   trópicos   e   dos   círculos   polares,dizendo­me o nome de tudo isso, assim como detoda a espécie de instrumentos de música, com ostermos   desta   arte   relativos   a   cada   instrumento.Quando   acabou   a   lição,   compus   para   meu   usoparticular um pequeno e bonito dicionário de todosos   vocábulos   que   aprendera   e,   em  poucos  dias,graças à minha feliz memória, soube sofrivelmentea língua lapuciana.

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Na manhã  seguinte compareceu um alfaiate, queme   tirou   medidas.   Os   alfaiates   dessa   regiãoexercem o seu mister de maneira diferente da dosoutros   países   da   Europa.   Tirou   primeiramentemedida da altura do meu corpo com um quadrantee depois com régua e compasso, tendo medido acircunferência   e   toda   a   proporção   dos   membrossuperiores, fez o cálculo em um papel e, ao fim deseis dias,   trouxe­me uma roupa muito mal  feita;desculpou­se, dizendo­me que tivera a infelicidadede enganar­se nos cálculos.

Nesse  dia,  Sua  Majestade   ordenou  que   fizessemavançar a sua ilha para Lagado, que é a capital doseu   reino   em   terra   firme,   e   depois   para   certascidades   e   aldeias,   a   fim   de   receber   osrequerimentos dos seus súditos.  Para esse efeitodeixou cair uma porção de cordéis com uma bolade chumbo na extremidade, com o fim de que oseu   povo   atasse   aí   os   seus   requerimentos,   queeram   puxados   depois   e   que   no   ar   davam   aaparência de papagaios.

Os   conhecimentos   que   eu   possuía   acerca   dematemáticas   auxiliaram­me   muito   paracompreender o seu modo de falar e as metáforas,extraídas  na   sua  maioria  das  matemáticas   e  damúsica, porque sei também um pouco desta arte.Todas as suas idéias não passavam de linhas e defiguras, e até a sua galanteria era toda geométrica.Se, por exemplo, queriam gabar a beleza de umadonzela, diziam que os seus dentes brancos erambelos   e   perfeitos   paralelogramos;   que   assobrancelhas eram um segmento  encantador,  ouuma   bela   porção   de   círculos;   que   os   olhosformavam uma  admirável   elipse;   que   o   colo   era

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ornado   de   dois   globos   acíntotas.   O   seno,   atangente,  a   linha   reta,   a   linha  curva,   o   cone,   ocilindro, a oval, a parábola, o diâmetro, o raio, ocentro, o ponto, são entre eles termos que entramna linguagem do amor.

As   casas   eram   pessimamente   construídas;   e   arazão  é   que  nesse  país  se  despreza  a  geometriaprática como uma coisa vulgar e mecânica. Nuncavi  povo   tão   tolo,   tão  mesquinho e   tão   inábil  emtudo quanto se relacione com as ações comuns e omodo   de   proceder.   São,   além   disso,   os   pioresargumentadores   do   mundo,   sempre   dispostos   acontradizer, exceto quando pensam com justiça, oque lhes acontece raramente, e,  então, calam­se;não   sabem   o   que   seja   imaginativa,   invenção,retratos, e não têm sequer termos na sua línguaque exprimam estas coisas. Deste modo todas assuas   obras,   incluindo   as   poesias,   parecemteoremas de Euclides.

Muitos   deles,   principalmente   aqueles   que   sededicam   à   astronomia,   caem   na   astrologiajudiciária,   embora  não   se   atrevam a   confessá­lopublicamente;   mas   o   que   eu   encontrei   de   maissurpreendente, foi a tendência, que tinham, para apolítica,   e   a   curiosidade   pelos   comentários;falavam continuamente dos negócios de Estado efaziam sem cerimônia alguma o seu juízo acerca detudo   quanto   se   passava   nos   gabinetes   dospríncipes.  Notei,  muitas vezes,  o mesmo carácternos nossos matemáticos europeus, sem nunca terpodido   encontrar   a   menor   analogia   entre   osmatemáticos e a política, salvo se se imagina que,assim como um círculo  menor   tem tantos grauscomo o círculo maior, aquele que se encontra apto

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para   raciocinar   sobre   um   círculo   traçado   numpapel, possa do mesmo modo fazê­lo sobre a esferado mundo; porém não será antes o defeito naturalde todos os homens, que se dão o prazer de falar ede raciocinar sobre o que menos percebem?

Este   povo   parece   sempre   inquieto   e   assustado.Aquilo   que   não   conseguiu   nunca   impedir   orepouso dos outros homens é o contínuo assuntodas   suas   queixas   e   dos   seus   temores;   ficamapreensivos com a alteração dos corpos celestes;por   exemplo:   que   a   terra,   pelas   contínuasaproximações  do   sol,  não   seja  por   fim devoradapelas chamas deste terrível astro; que esse archoteda natura não se encontre a pouco e pouco cobertode crosta pela  espuma e não venha a apagar­secompletamente   para   os   mortais;   temem   que   opróximo cometa que, consoante os seus cálculos,aparecerá  dentro de trinta e um anos, com umapancada da sua cauda fulmine a terra e a reduza acinzas;   receiam   ainda   que   o   sol,   à   força   deespalhar os raios por toda parte, venha a gastar­see a perder completamente a sua substância. Sãoestes os receios e as inquietações que lhes tiram osono e os privam de toda a espécie  de prazeres;assim,   logo   que   se   encontram   de   manhã,   asprimeiras   palavras   que   trocam   entre   si   éreferindo­se a ele, perguntando como passa, e emque estado nasceu e desapareceu no ocaso.

As mulheres desta ilha são muito vivas; desprezamos   maridos   e   são   muito   amáveis   com   osestrangeiros,  de  que  há   sempre  um considerávelnúmero na comitiva da corte; é também entre elesque as damas da corte escolhem os seus amantes.O   que   há   de   desagradável   nisto,   é   que   elas

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costumam entregar­se   sem  rebuço  algum e   comcerta   segurança,   porque   os   maridos   estão   tãoabsorvidos   nas   suas   especulações   geométricas,que se lhes acaricia as mulheres na sua presençasem que eles dêem por  isso, contanto que o seumonitor lá não esteja para lhes bater com a bexiga.

As donzelas e as mulheres casadas sentem grandedesgosto   em   viverem   encerradas   naquela   ilha,embora   seja   o   mais   delicioso   ponto   da   terra   evivam   entre   riqueza   e   magnificências.   Podem   irpara onde quiserem, na ilha, mas almejam corrermundo e dirigir­se à capital, onde lhes é proibido irsem autorização do rei, o que nunca conseguiramobter   porque   os   maridos   têm   experimentadoalgumas vezes o desgosto de não as tornar a ver.Ouvi contar que uma alta dama da corte, casadacom o primeiro ministro, o homem mais perfeito erico   da   corte,   que   a   amava   loucamente,   veio   aLagado sob o pretexto de que estava doente, e aípermaneceu oculta durante alguns meses até queo   soberano   a   mandou   procurar;   foi   encontradanum estado lamentável, numa péssima casa, tendoempenhado   os   seus   vestidos   para   manter   umlacaio velho e feio que todos os dias a espancava;livraram­na dele muito contra vontade sua e, aindaque   o   marido   a   recebesse   com   bondade,fazendo­lhe   mil   carícias   e   dando­lhe   vãsrepreensões   sobre   o   seu   procedimento,   poucodepois   tornou   a   fugir   com   todas   as   jóias   epedrarias, para ir ter novamente com esse indignoamante; e nunca mais se ouviu falar nela.

O  leitor   talvez   tome esta  narrativa  por  um casoeuropeu, ou mesmo  inglês;  peço­lhe,  porém, queconsidere   que   os   caprichos   da   espécie   feminina

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não   se   limitam apenas  a  uma parte  do  mundo,nem   a   um   clima   único;   em   qualquer   ponto   doglobo terrestre são os mesmos.

CAPÍTULO III

Fenômeno explicado pelos filósofos e astrônomos modernos — Os Lapucianossão grandes astrônomos — De como o rei logra apaziguar as sedições.

Solicitei   licença   do   soberano   para   ver   ascuriosidades da ilha; concedeu­me e ordenou a umdos  seus  cortesãos  que  me acompanhasse.  Quisprincipalmente saber em que consistia o segredonatural   ou   artificial   que   causava   os   diversosmovimentos  de  que   vou  dar  ao   leitor  uma  notaexata e filosófica.

A   ilha   volante   é   perfeitamente   redonda;   o   seudiâmetro é de sete mil e oitocentos e sete toesas emeia,   isto   é,   quase   quatro   mil   passos,   e,   porconseguinte,   contém   aproximadamente   dez   milacres. O fundo desta ilha ou a superfície inferior,tal como parece a quem a vê por baixo, é como umlargo diamante, polido e talhado regularmente, quereflete a luz a quatrocentos passos. No subsolo hámuitos minerais, situados seguindo a fila ordináriadas minas, e por cima existe um terreno fértil dedez a doze pés de profundidade.

A  inclinação das partes da circunferência para ocentro da superfície superior é a causa natural detodas as chuvas e orvalhos que caem na ilha seremconduzidos   por   pequenos   regatos   para   o   meio,onde se juntam em quatro grandes tanques, tendocada  um deles  quase  meia  milha  de   circuito.  A

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duzentos   passos   de   distância   do   centro   dessestanques,   a   água   é   continuamente   atraída   eevaporada pelo sol durante o dia, o que impede oextravasamento. Demais, como depende do poderreal erguer a ilha acima da região das nuvens e dosvapores   terrestres,   pode,   quando   lhe   apraz,impedir a queda da chuva e do orvalho, o que nãoestá   no   poder   de   nenhum   outro   potentado   daEuropa, que, não dependendo de pessoa alguma,depende sempre da chuva e do bom tempo.

No centro da ilha existe um buraco com perto devinte e cinco toesas de diâmetro, pelo qual descemos astrônomos a um largo zimbório que, por estemotivo, é chamado Flandona gagnole, ou Cava dosAstrônomos, situada   a   uma   profundidade   decinqüenta toesas acima da superfície superior dodiamante. Nesta cava havia vinte lâmpadas sempreacesas   que,   pela   reverberação   do   diamante,espalham uma grande luz por todos os lados. Estelocal é guarnecido de sextantes, de quadrantes, detelescópios,   de   astrolábios   e   de   outrosinstrumentos  astronômicos;  a  maior   curiosidade,porém, de  que  depende  até   o  destino  da  ilha,  éuma   pedra   magnética   de   prodigioso   tamanho,talhada em forma de naveta de tecelão.

Tem o comprimento de três toesas e, na sua maiorespessura,  mede  pelo  menos   toesa   e  meia.  Esteímã está suspenso por um grosso eixo giratório dediamante, que passa pelo meio da pedra, sobre aqual gira, e que está colocado com tanta precisãoque   um   fraco   impulso   pode   fazê­la   mover;   estárodeada   por   um   círculo   de   diamante   com   aconfiguração do cilindro cavado, com quatro pés deprofundidade, com muitos pés de espessura e com

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seis toesas de diâmetro, colocado horizontalmentee mantido por oito pedestais, todos de diamante,tendo cada um a altura de   três   toesas.  Do  ladocôncavo do círculo há uns entalhes profundos dedoze   polegadas,   em   que   estão   colocadas   asextremidades do eixo, que gira quando é preciso.

Força   alguma   pode   deslocar   a   pedra,   porque   ocírculo e os pés do círculo são de uma só peça como corpo do diamante que forma a base da ilha.

É  por  meio  deste   ímã   que  a   ilha  se   levanta,   sebaixa e muda de lugar; porque, em relação a esteponto da terra em que reside o monarca, a pedra émunida,   em   um   dos   seus   lados,   de   um   poderatrativo e no outro de um poder repulsivo. Assim,quando   o   ímã   está   voltado   para   a   terra   peloseu pólo  amigo, a  ilha desce;  mas,  quando o póloinimigo está   voltado   para   a   mesma   terra,   a   ilhasobe.   Quando   a   posição   da   terra   obliqua,   omovimento da ilha é igual, porque, nesse  ímã, asforças   agem   sempre   em   linha   paralela   à   suadireção;   é   pelo  movimento   oblíquo   que   a   ilha   éconduzida   às   diferentes   partes   dos   domínios   dosoberano.

Este  monarca  seria  o  príncipe  mais  absoluto  douniverso,   se  pudesse   arranjar  ministros   que   lheobedecessem   em   tudo,   mas   estes,   possuindoterrenos em baixo, no continente, e considerandoque   o   furor   dos   príncipes   é   passageiro,   não   seimportam   de   causar   prejuízo   a   si   própriosoprimindo a liberdade dos seus compatriotas.

Se   alguma   cidade   se   revolta   ou   recusa   pagarimpostos, o rei tem duas maneiras de dominá­la. Aprimeira e mais moderada é estacionar a sua ilha

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por cima da cidade rebelde e das terras próximas;dessa maneira priva a região do sol e do orvalho, oque causa doenças e mortandade; mas, se o crimeo merece, atira­lhes grandes pedras do alto da ilha,de   que   só   podem   livrar­se   refugiando­se   nosceleiros e nos subterrâneos, onde passam o tempoa beber enquanto os telhados das suas casas sãodespedaçados.   Se   continuam   temerariamente   nasua teimosia e na sua revolta, o rei recorre entãoao último remédio, que é deixar cair a ilha a prumosobre   as   suas   cabeças,   o   que   esmaga   todas   ascasas e todos os habitantes. No entanto, o prínciperaramente lança mão desse temível extremo, queos ministros não se atrevem a aconselhar­lhe, vistoque esse violento processo os tornaria odiosos aopovo e prejudicaria também a eles, que possuemos   seus   bens   no   continente,   porque   a   ilha   sópertence ao rei, que também apenas possui a ilhacomo domínio.

Há ainda uma outra razão mais forte pela qual osreis deste país fogem sempre de aplicar esse últimocastigo, salvo num caso de absoluta necessidade; éporque,   se   a   cidade   que   se   quer   destruir   ficasituada perto de alguns rochedos altos (porque oshá neste país, assim como em Inglaterra, perto dasgrandes   cidades   que   foram   expressamenteconstruídas   junto   dessas   rochas,   para   sepreservarem das cóleras régias) ou se tem grandenúmero de campanários e pirâmides de pedra, ailha real, com a sua queda, podia quebrar­se. Sãoprincipalmente os campanários que o rei teme e opovo sabe isso perfeitamente. Assim, quando SuaMajestade   está   deveras   agastado,   faz   sempredescer a ilha muito suavemente, com medo, diz ele,de esmagar o seu povo, mas, no íntimo, o que mais

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teme é  que os  campanários   lhe  quebrem a  ilha.Nesse   caso,   os   filósofos   supõem que   o   ímã   nãopoderia ampará­la mais e cairia fatalmente.

CAPÍTULO IV

O autor deixa a ilha de Lapúcia e é levado aos Balnibarbos — A sua chegadaà capital — Descrição desta cidade e arredores — É recebido com bondade

por um grão­senhor.

Embora não possa dizer que fui maltratado nestailha,   é   contudo   verdade   que   me   supus   poucoatendido e  um tanto  desprezado.  O príncipe e  opovo   só   se   dedicavam   a   curiosidades,   amatemáticas e à música; sobre este assunto estavaeu   muito   abaixo   deles   e   faziam­me   justiçadando­me pouca importância.

Por   outro   lado,   depois   de   ter   visto   todas   ascuriosidades da ilha, sentia grande vontade de sairdali,   estando   muito   cansado   daqueles   aéreosinsulares. É verdade que me excediam em ciências,que muito estimo, e de que possuo algumas luzes;mas   estavam   tão   absorvidos   nas   suasespeculações   que   nunca   me   encontrara   em   tãotriste companhia. Só me entretinha com mulheres,(que   entretenimento   para   um   filósofo   marítimo!)com operários, com monitores, com os pajens dacorte e gente de vária espécie, o que aumentou odesprezo   que   me   tinham;   mas,   de   fato,   podiaproceder de outro modo? Aqueles eram os únicoscom quem eu podia me entender;  os outros nãofalavam.

Havia   na   corte   um   grão­senhor,   favorito   do

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soberano e que, por esse único motivo, era tratadocom respeito, sendo contudo considerado por todoscomo   um   homem   muito   ignorante   e   estúpido.Passava por ser honrado e probo, porém não tinhaouvidos   para   a   música   e   era   uma   completanegação   para   matemáticas,   tanto   que   nuncapudera   aprender   os   mais   fáceis   problemas   dearitmética. Este cavalheiro tratou­me com as maiscativantes provas de estima; deu­me muitas vezesa honra de visitar­me, desejando informar­se dosnegócios da Europa e conhecer os usos, costumes,leis  e  ciências das diferentes nações em que medemorara;   ouvia­me   sempre   com   a   máximaatenção e fazia magníficas observações a respeitode   tudo   quanto   lhe   dizia.   Dois   monitoresacompanhavam­no pró­forma, mas   só   se   serviadeles na corte e nas visitas de cerimônia; quandoestávamos juntos, mandava­os retirar.

Pedi a este alto personagem que intercedesse pormim junto de Sua Majestade para eu me despedir,e ele concedeu­me essa mercê  com prazer,  comoteve   a   bondade   de   dizer­me,   e   fez­me   muitos   evantajosos oferecimentos que no entanto recusei,patenteando o meu vivo reconhecimento.

A 16 de Fevereiro, despedi­me de Sua Majestade,que   me   ofereceu   um   considerável   presente,   e   omeu   protetor   deu­me   um   diamante,   com   umacarta   de   recomendação   para   um   elevadopersonagem   seu   amigo,   residente   em   Lagado,capital   de   Balnibarbo.   Estando   a   ilha   suspensasobre uma montanha, desci do último terraço dailha pelo mesmo processo por que subira.

O   continente   chama­se   Balnibarbo,   e   a   capital,como já disse, tem o nome de Lagado. A princípio,

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foi uma grande satisfação para mim o ver­me emterra  firme e não no ar.  Dirigi­me para a cidadesem custo nem estorvo algum, vestindo como oshabitantes e sabendo muito bem a língua para afalar.   Encontrei   sem   dificuldade   a   moradia   dapessoa a quem ia recomendado. Apresentei­lhe acarta   do   elevado   personagem   e   fui   muito   bemrecebido.  Esta  personagem,  que  era  uma pessoaimportante   balnibarba   e   que   sechama Munodi, deu­me   um   belo   alojamento   emsua casa, onde permaneci durante a minha estadanesse país e onde fui muito bem tratado.

Na   manhã   do   dia   seguinte   àquele   em   quecheguei, Munodi fez­me entrar  no seu coche parame   mostrar   a   cidade,   que   é   grande   como   meiaLondres;   as   casas,   porém,   eram   estranhamenteconstruídas,   e   a   maior   parte   delas   estava   emruínas; o povo, coberto de andrajos, andava compasso precipitado, tendo um olhar feroz. Passámospor uma das portas da cidade e avançámos unstrês mil passos no campo, onde vi grande númerode   lavradores   que   trabalhavam   na   terra   commuitas   espécies   de   instrumentos;   não   pude,contudo, perceber o que faziam; não via em partealguma coisa que se parecesse com ervas ou comsementes. Pedi ao meu guia que me explicasse oque pretendiam todas aquelas cabeças e aquelasmãos ocupadas na cidade e no campo, não vendodali  resultado algum, porque, na verdade, nuncaencontrara terra tão mal cultivada, nem casas emtão   mau   estado,   um   povo   tão   pobre   e   tãomiserável.

O senhor Munodi fora muitos anos governador deLagado,   mas,   pela   intriga   dos   ministros,   fora

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demitido com grande pezar do povo. No entanto, orei   estimava­o   como   um   homem   que   tinhaintenções   retas,   mas   não   possuía   o   espírito   decorte.

Quando   critiquei   livremente   o   país   e   os   seushabitantes,  não me respondeu outra coisa senãoque   eu  não  permanecera   tempo   suficiente   entreeles   para   ajuizar,   e   que   os   diferentes   povos   domundo   tinham   usos   diversos;   empregou   outroslugares­comuns   semelhantes;   mas,   quandoregressámos a casa perguntou­me que tal achava oseu palácio, que absurdos notava nele e que tinhaa dizer das roupas e maneiras dos seus criados.Podia   afoitamente   formular   aquelas   perguntas   arespeito do palácio porque era regular, magnífico epolido.   Respondi   que   a   sua   grandeza,   a   suaprudência   e  as   suas   riquezas  o  haviam  tornadoisento   de   todos   os   defeitos   que   haviam   feito   osoutros loucos e mendigos; disse­me que, se fossecom ele à sua casa de campo, que ficava a vintemilhas, teria muito prazer em falar comigo sobreesse assunto. Retorqui a sua excelência que fariatudo   o   que   desejasse;   partimos,   pois,   no   diaseguinte de manhã.

Durante   a   nossa   viagem,   fez­me   observar   osdiferentes métodos dos lavradores para semear assuas terras. Contudo, salvo em alguns sítios, nãodescobrira em todo o país nenhuma esperança deseara,   nem   mesmo   nenhum   rasto   de   cultura;tendo, porém, andado ainda três horas, o cenáriomudou   completamente.   Achámo­nos   em   ummagnífico campo. As casas dos lavradores estavamum pouco afastadas e muito bem construídas; oscampos   eram   fechados   e   encerravam   vinhas,

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searas de trigo, campinas, e não me lembro de tervisto coisa tão agradável. O fidalgo, que observavao meu silêncio, disse, então, suspirando, que era aíque começavam as suas terras; que, contudo, osseus compatriotas o troçavam e o desprezavam pornão saber dirigir os seus trabalhos.

Chegámos   por   fim   ao   seu   palacete,   que   era   denobre   estrutura;   as   fontes,   os   jardins,   asalamedas, as avenidas, os caramanchões estavamdispostos com critério  e  com gosto.  Não regateeilouvores a tudo o que vi, mas Sua Excelência sópareceu dar por isso depois de cear.

Então,   como   nos   encontrávamos   sós,   disse­me,com ar  muito   triste,  que  não  sabia  se   lhe  seriapreciso, em breve, deitar abaixo as suas casas docampo e da cidade, e destruir todo o seu paláciopara o reconstruir conforme o gosto moderno; mastemia   passar   por   ambicioso,   por   singular,   porignorante,  por  caprichoso e   talvez  desagradar  àspessoas   ricas;   que   eu   não   deixaria   de   ficaradmirado   quando   soubesse   algumasparticularidades que desconhecia.

Declarou­me que havia quase quatro anos, certaspessoas tinham ido a Lapúcia, quer para tratar denegócios, quer por distração, e que, passados cincomeses,  haviam voltado com algumas  luzes  sobrematemáticas,   mas   cheias   de   espíritos   voláteisrecolhidos nessa região aérea; que essas pessoas,ao regressar, tinham começado a reprovar o que sepassava   no   país   inferior   e   resolvido   colocar   asciências e as artes em novas bases; que para issohaviam   obtido   cartas­patentes   para   erigir   umaacademia de engenheiros, ou seja de pessoas e desistemas; que o povo era tão fantástico, que existia

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uma academia dessa gente em todas as grandescidades;   que,   nessas   academias   ou   colégios,   osprofessores   tinham   achado   novos   métodos   paraagricultura e arquitetura, e novos instrumentos emanufaturas,  por meio dos quais  um só  homempoderia   produzir   tanto   como   dez,   e   um   paláciopodia ser construído numa semana com materiaistão   sólidos,   que  duraria   eternamente   sem havernecessidade de reparação; todos os frutos da terradeviam   nascer   em   todas   as   nações,   cem   vezesmaiores   do   que   presentemente,   com   umainfinidade de outros admiráveis projetos.

— É pena — continuou ele — que nenhum dessesprojetos   fosse   aperfeiçoado   até   agora,   que   empouco   tempo   todo   o   campo   fosse   devastadomiseravelmente, que a maior parte das casas tenhacaído em ruínas e que todo o povo, nu, morra defrio,  de sede e de fome. Com isto tudo,  longe dedesanimarem,   sentem­se   cada   vez   com   maiorcoragem   no   prosseguimento   dos   seus   sistemas,levados   a   pouco   e   pouco  pela   esperança   e   pelodesespero.

Acrescentou que, para o que era dele, não sendoum espírito empreendedor, contentara­se em agirconforme   o   método   antigo,   de   viver   em   casasconstruídas   pelos   seus   antepassados   e   de   fazercomo eles  faziam, sem inovações;  que as poucaspessoas  de  distinção   que  haviam  seguido   o   seuexemplo, tinham sido olhadas com desprezo e setinham   até   tornado   odiosas,   criaturas   malintencionadas,   inimigas   das   artes,   ignorantes,maus republicanos, preferindo a sua comodidade ea sua mole preguiça ao bem geral do país.

Sua   Excelência   acrescentou   que   me   não   queria

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tirar,  com arrazoados, o prazer que teria quandofosse visitar a academia dos sistemas; que desejavasimplesmente   que   observasse   uma   construçãoarruinada do lado da montanha; que o que via, ameia milha do seu palácio, era um moinho, que acorrente   de   um   grande   rio   fazia   mover,   o   quebastava para a sua casa e para um grande númerodos   seus   vassalos;   que   havia   aproximadamentesete   anos   uma   companhia   de   engenheiros   vierapropor­lhe   o   arrasamento   do   moinho   e   aconstrução de um outro no sopé da montanha, nocume   da   qual   seria   construído   um   reservatóriopara  onde  a  água podia  ser   levada  por  meio  detubos e máquinas, de maneira que o vento e o arno   alto   da   montanha   agitasse   a   água   e   atornassem   mais   fluida,   e   que   o   peso   desta,   aodescer,   faria,  com a sua queda, mover o moinhocom metade da corrente do rio; disse­me que, nãose tendo dado bem na corte, porque não tinha atéagora   adotado   nenhum   dos   novos   sistemas,   eapertado   por   muitos   amigos,   aceitara   o   projeto;que, porém, depois de ter trabalhado durante doisanos,  a  obra   resultará  má   e  os  empreendedoreshaviam fugido.

Alguns   dias   depois,   desejei   ver   a   academia   dossistemas e Sua Excelência quis ter a amabilidadede   me   dar   um   guia   para   me   acompanhar;tomava­me   talvez   por   um   grande   admirador   denovidades, por um espírito curioso e crédulo. Nofundo,   eu   tinha   sido   na   mocidade   homem   deprojetos e de sistemas, e ainda hoje tudo o que énovo e arrojado me agrada extremamente.

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CAPÍTULO V

O autor visita a academia e descreve­a.

A   instalação  desta   academia  não   é   um  único   esimples   corpo   de   habitação,   mas   uma   série   dediversas   edificações   ocupando  dois   lados  de  umlargo.

Fui magnificamente recebido pelo porteiro, que medisse logo que, naquelas edificações, cada quartoencerrava um engenheiro, quando não mais, e quehavia perto de quinhentos quartos na academia.

O primeiro mecânico  que avistei  pareceu­me umhomem magríssimo: tinha a cara e as mãos cheiasde gordura, a barba e o cabelo crescidos, com umaroupa   e   uma   camisa   cor   da   pele;   entregava­se,havia   oito   anos,   a   um   curioso   projeto,   queconsistia, segundo ele, em recolher os raios do sol,a   fim de os encerrar em frascos hermeticamentefechados, os quais podiam servir para aquecer o arquando   os   estios   fossem   pouco   quentes;declarou­me   que   outros   oito   anos   seriamsuficientes   para   fornecer   aos   jardins   dos   ricosproprietários   raios   de   sol   por   preço   módico;lamentou­se, porém, de que os seus fundos fossemparcos e pediu­me lhe desse alguma coisa para oanimar.

Passei a um outro quarto, mas depressa voltei ascostas, não podendo suportar o mau cheiro. O meuguia  obrigou­me a  entrar,  dizendo  em voz  baixaque tomasse cautela em não ofender um homemque disso se sentiria; assim, nem sequer funguei.O engenheiro que habitava este quarto era o maisantigo da academia; o rosto e a barba eram de cor

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pálida  e  amarela   e  as  mãos   e  a   roupa  estavamcobertas de uma nauseante gordura. Quando lhefui apresentado, abraçou­me muito estreitamente,delicadeza que teria dispensado. A sua ocupação,desde  a   sua   entrada  na  academia,   consistia   emfazer tornar os excrementos humanos à naturezados alimentos de onde eram tirados pela separaçãodas  partes  diversas  e  pela  depuração  da  tinturaque   o   excremento   recebe   do   fel   e   causa   maucheiro. Entregavam­lhe todas as semanas, da parteda   companhia,   um   prato   cheio   de   matérias,   dotamanho quase de um barril de Bristol.

Vi um outro ocupado em calcinar gelo, para extrairdele,   consoante   dizia,   magnífico   salitre,   do   qualfaria pólvora para canhão; mostrou­me um tratadoconcernente à maleabilidade do fogo, tratado queestava com intenção de publicar.

Em seguida, vi um arquiteto muito engenhoso, queimaginara   um   admirável   método   para   construircasas  começando  pelo   telhado  e  acabando  pelosalicerces, projeto que me justificou magnificamentepelo exemplo de dois insetos: a abelha e a aranha.

Havia um homem, cego de nascença, que tinha sobas suas ordens muitos aprendizes cegos como ele.O seu emprego consistia em compor cores para ospintores.   Este   professor   ensinava   a   distingui­laspelo tato e pelo cheiro. Fui bastante infeliz em osachar  então muito  pouco  instruídos,  e  o  próprioprofessor não era mais hábil.

Subi   a   um   aposento,   onde   se   encontrava   umgrande homem que descobriu o segredo de lavrar aterra com porcos,  e poupar assim as rações doscavalos, dos bois, a charrua e o  lavrador.  O seu

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método é este: no espaço de um acre de terreno,enterrava­se,   de   seis   em   seis   polegadas,   certaquantidade de bolotas, de tâmaras, de castanhas eoutros   frutos   que   os   porcos   apreciam;   depoislargavam­se seiscentos ou mais destes suínos que,com   as   mãos   e   o   focinho,   punham,   em   muitopouco tempo, a terra em estado de ser semeada eestrumavam­na   também,   restituindo­lhe   o   quetinham   retirado.   Por   fatalidade,   havendo   feito   aexperiência, e além disso achando o sistema caro edifícil,   o   campo   quase   nada   produzira.   Nãoduvidava,   contudo,   de   que   o   invento   fosse   degrandes conseqüências e de verdadeira utilidade.

Num   aposento   fronteiro   residia   um   homem   quetinha   idéias   contrárias   no   tocante   ao   mesmoassunto.   Pretendia   fazer   marchar   uma   charruasem bois e sem cavalos, mas com a ajuda do ventoe,  para esse efeito,  construíra uma charrua commastro   e   velas;   sustentava   que,   pelo   mesmoprocesso,   faria   andar   carros   e   carroças,   e   que,como conseqüência, se poderia fazer o serviço deposta pondo­lhes  velas,   tanto  por mar como porterra; que, em vista de haver vários ventos no mar,não era difícil fazer a mesma coisa em terra.

Passei   a   um   outro   quarto,   que   estava   todoatapetado   com  teias  de  aranha,   onde  mal  haviaespaço para dar passagem ao operário. Assim queeste me viu, exclamou:

— Tome cuidado, não dê cabo das minhas teias!

Conversei com ele e foi­me dizendo que era umacoisa lamentável a cegueira que os homens tinhamtido   até   agora   em   relação   aos   bichos   da   seda,enquanto tinham à  sua disposição tantos insetos

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domésticos, de que não faziam uso algum e que,no entanto, eram preferíveis a essas lagartas, quesó sabiam fiar, ao passo que a aranha sabia fiar etecer. Acrescentou que o uso das teias de aranhapouparia ainda,  com a continuação,  as despesasda tintura, o que eu conceberia muito facilmentequando me tivesse feito ver um grande número demoscas de encantadoras e variegadas cores, comque ele alimentava as suas aranhas; que era certoque as suas teias tomariam, infalivelmente, a cordaquelas   moscas   e   que,   como   as   havia   denumerosas   espécies,   esperava   também   ver   embreve teias capazes de satisfazer, pelas cores, todosos diversos gostos dos homens, logo que pudesseencontrar   um   certo   alimento   suficientementeglutinoso para as suas moscas, a fim de que os fiosda aranha adquirissem maior força e solidez.

Vi   depois   um   célebre   astrônomo,   que   tinhaimaginado   colocar   um   quadrante   na   ponta   dogrande campanário da casa da câmara, ajustandode tal maneira os movimentos diurnos e anuais dosol com o vento, que pudessem concordar com omovimento da ventoinha.

Senti,   durante   alguns   momentos,   uma   ligeiracólica, quando o meu guia me fez entrar muito apropósito no quarto de um grande médico, que setornara celebérrimo pelo segredo de curar a cólicade   um  modo   completamente  maravilhoso.   Tinhaum   grande   fole,   cujo   tubo   era   de   marfim;   erainsinuando diversas vezes esse tubo no ânus, quepretendia,   por   essa   espécie   de   clister   de   vento,atrair todos os gases interiores e purgar assim asentranhas atacadas de cólica. Fez a sua operaçãonum   cão   que,   por   fatalidade,   morreu

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imediatamente,   o   que   desconcertou   deveras   onosso doutor e me tirou a vontade de recorrer aoseu remédio.

Depois de ter visitado o edifício das artes, passei aum outro corpo da casa, onde estavam os fatoresdos   sistemas   em   relação   às   ciências.   Entrámosprimeiro   na   escola   de   linguagem,   onde   nosencontrámos com três acadêmicos que discutiamjuntos o modo de embelezar a língua.

Um deles era de opinião, para abreviar o discurso,que   se   reduzissem   todas   as   palavras   a   simplesmonossílabos   e   se   banissem   todos   os   verbos   eparticípios.

O outro   ia  mais   longe  e  propunha um modo deabolir   todas   as   palavras,   de   maneira   que   sediscutisse sem falar, o que seria favorável ao peito,porque está claro que, à força de falar, os pulmõesse gastam e a saúde se altera. O expediente, porele achado, era trazer cada qual consigo todas ascoisas de que quisesse tratar. Este novo sistema,dizia­se, seria seguido, se as mulheres se lhe nãotivessem oposto. Muitos espíritos superiores destaacademia   não   deixavam,   no   entanto,   deconformar­se   com   essa   maneira   de   exprimir   ascoisas,  o  que  só   se   tornava  embaraçoso  quandotinham   de   falar   em   diversos   assuntos,   porqueentão   era­lhes   preciso   trazer   às   costas   enormesfardos, salvo se eles tivessem dois criados bastanterobustos   para   se   pouparem   esse   trabalho;supunham que, se esse sistema se generalizasse,todas   as   nações   poderiam   facilmentecompreender­se   (o   que   seria   de   grandecomodidade) pois não se perderia muito tempo emaprender línguas estrangeiras.

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Daí,   entrámos   na   escola   de   matemática,   cujoprofessor ensinava aos seus discípulos um métodoque   os   europeus   teriam   trabalho   em   imaginar:cada   teorema,   cada   demonstração   era   escritanuma   obreia,   com   uma   certa   tinta   de   tinturacefálica. O aluno, em jejum, era obrigado, depoisde ter comido essa obreia, a abster­se de beber ede   comer   durante   três   dias,   de   maneira   que,digerida a obreia, a tintura cefálica pode subir aocérebro   e   levar   envolvido   nela   o   teorema   ou   ademonstração. Este método, de fato, não obtiveragrande êxito até agora, mas era porque, ao que sedizia,   se   tinha   enganado  um pouco  no quantumsufficit, isto  é,  na medida da dose,  ou porque osalunos,   maus   e   indóceis,   faziam   simplesmentemenção de comer a obreia, ou ainda porque iammuito   depressa   à   sentina,   ou   comiam   àsescondidas durante os três dias.

CAPÍTULO VI

Continua­se a descrição da academia.

Não fiquei muito satisfeito com a escola de política,que  depois   visitei.  Estes  doutores  pareceram­mepouco  sensatos,   e  a  presença  de   tais   indivíduosteve   o   efeito   de   me   tornar   melancólico.   Esteshomens   extravagantes   sustentavam   que   osgrandes   deviam   escolher   para   seus   favoritosaqueles   em   que   vissem   mais   sabedoria,   maiscapacidade, mais virtude, e ter sempre em vista obem   público,   recompensar   o   mérito,   o   saber,   ahabilidade   e   os   serviços;   diziam   ainda   que   ospríncipes deviam depositar sempre a sua confiança

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nas pessoas mais capazes e mais experimentadas,e outras asneiras e quimeras, de que os príncipesnão   formaram   opinião   até   agora,   o   que   meconfirmou a verdade deste admirável  conceito deCícero: que   nada   há   tão   absurdo   como   o   queavança algum filósofo.

Todos os outros membros da academia, porém, emnada   se   pareciam   com   estes   originais,   a   quemacabo de aludir.  Vi  um médico com um espíritosublime, que possuía a fundo a ciência do governo;tinha   consagrado   os   seus   serões   a   descobrir   ascausas   das   doenças   de   um   Estado   e   a   acharremédios   para   curar   o   mau   temperamentodaqueles que administram os negócios públicos.

— Sabe­se — dizia ele — que o corpo natural e ocorpo político têm entre si uma perfeita analogia,pois   qualquer   deles   pode   ser   tratado   com   osmesmos   remédios.   Os   que   estão   à   testa   dosnegócios têm muitas vezes as seguintes doenças:estão cheios de humores em movimento, que lhesenfraquecem a cabeça e o coração, e causam­lhesalgumas vezes convulsões e contrações de nervosna   mão   direita,   uma   fome   canina,   indigestões,gases, delírios e outras espécies de males.

Para os curar,  o nosso grande médico propunhaque, quando os que superintendem nos negóciosdo   Estado   estivessem   dispostos   a   se   reunir   emconselho,  se   lhes   tomasse  o pulso  e  por   isso  setentaria   conhecer   a   natureza   da   doença;   quedepois,   a   primeira   vez   que   se   reunissem,   seenviariam, momentos antes de principiar a sessão,boticários com remédios adstringentes, paliativos,purgativos, cefalálgicos, histéricos, apofegmáticos,acústicos,   etc.,   consoante   ao   gênero   do   mal   e

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repetindo sempre o mesmo remédio em todas assessões.

A   execução   deste   projeto   demandaria   grandedespesa e seria, segundo penso, muito útil nestespaíses em que os Parlamentos metem o nariz nosnegócios   do   Estado;   procuraria   a   unanimidade,acabaria   com   as   diferenças,   abriria   a   boca   aosmudos,   fechá­la­ia   aos   deputados,   acalmaria   aimpetuosidade   dos   juvenis   senadores,entusiasmaria a  frieza dos velhos,  despertaria osestúpidos e adormeceria os atabalhoados.

E  porque   ordinariamente   se   queixam de  que   osministros   têm memória  curta  e   infeliz,  o  mesmodoutor  queria  que qualquer  que  tivesse  negócioscom eles,  depois de haver exposto o assunto empoucas  palavras,   tivesse  a   liberdade de   lhes  darum piparote no nariz, um pontapé na barriga ouespetar um alfinete nas nádegas, e tudo isso com ofim de o impedir de esquecer­se do negócio de quelhe falara; de maneira que se pudesse repetir detempos a tempos o mesmo cumprimento até que oassunto fosse despachado, deferido ou indeferido,por completo.

Queria também que cada senador, na assembléiageral da nação, depois de haver dado a sua opiniãoe   ter   dito   tudo   quanto   seria   necessário   para   amanter,   fosse   obrigado   a   concluir   a   propostacontraditória,   porque,   infalivelmente,   o   resultadodessas assembléias seria muito  favorável ao bempúblico.

Vi dois acadêmicos a discutir com calor o meio decriar   impostos sem que os povos murmurassem.Um, sustentava que o melhor método seria impor

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uma taxa sobre os vícios e as paixões dos homens,e que cada um seria coletado segundo o juízo e aestima dos seus vizinhos. O outro acadêmico erade um sentimento inteiramente oposto e pretendia,pelo   contrário,   que   era   preciso   coletar   as   belasqualidades de corpo e de espírito de que cada umse orgulhava, e coletá­lo mais ou menos segundoos   seus   graus,   de   maneira   que   seriam   os   seuspróprios juízes e fariam a sua declaração. A maiortaxa seria imposta sobre os cultores de Vênus, osfavoritos   do   belo   sexo,   proporcionalmente   aosfavores que tivessem recebido, e devia reportar­seainda,   sobre   este   assunto,   à   sua   própriadeclaração. Era preciso também coletar fortementeo espírito e o valor, segundo a confissão que cadaum fizesse das suas qualidades; mas com respeitoà honra, probidade, saber, modéstia, isentavam­seessas   qualidades   de   qualquer   taxa,   visto   que,sendo muito raras, não dariam lucro algum; quenão   se   encontraria   ninguém   que   não   quisesseconfessar que as encontrava no seu próximo e quequase ninguém teria o arrojo de as atribuir  a sipróprio.

Do mesmo modo se deviam coletar as senhoras emproporção da sua beleza, dos seus atrativos e dassuas graças, conforme ao seu próprio juízo, como oque  se   fazia  com relação  aos  homens;  mas  pelafidelidade,   sinceridade,   bom   senso   e   bondadenatural   das   mulheres,   visto   que   disso   não   seufanam,   nada   deviam   pagar,   pois   tudo   o   quepudesse receber­se daí não bastaria para cobrir asdespesas do governo.

A fim de reter os senadores no interesse da coroa,um   outro   acadêmico   político   era   de   opinião   ser

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necessário   que   o   príncipe   fizesse   jogar   todos   osempregos em rifas,  de maneira,  contudo,  que ossenadores, antes de jogarem, fizessem juramento edessem   caução   de   que   se   conformariam   emseguida,   conforme   às   intenções   da   corte,   querganhassem ou não; porém que os recusados teriamdepois o direito de ocupar qualquer lugar vago quehouvesse mais tarde.  Estariam sempre cheios deesperanças,   não   se   queixariam   de   falsaspromessas que lhes seriam dadas e só confiariamna fortuna, cujos ombros são sempre mais fortesdo que os do ministério.

Um   outro   acadêmico   mostrou­me   um   escritocontendo   um   curioso   método   para   descobrir   asconspirações  e  as   intrigas,  que  era  examinar  osalimentos dos indivíduos suspeitos, a ocasião emque os comem, o  lado para o qual se deitam nacama   e   a   mão   com   que   limpam   o   traseiro;observar­lhes os excrementos e ajuizar, pelo cheiroe pela cor, dos pensamentos e dos projetos de umhomem,   tanto   mais   que,   na   sua   opinião,   ospensamentos   não   são   nunca   mais   ponderados,nem   o   espírito   se   encontra   tão   recolhido,   comoquando se está no retrete.

Ajuntava   que,   quando,   para   fazer   simplesmenteexperiências,   havia   algumas   vezes   pensado   noassassínio de um homem, tinha então encontradoos   seus   excrementos   muito   amarelos   e   que,quando   pensava   em   revoltar­se   e   incendiar   acapital, achara­os de uma cor muito negra.

Arrisquei­me   a   acrescentar   algumas   palavras   aosistema   desse   político;   disse­lhe   que   seria   bommanter sempre um núcleo de espiões e delatoresque se protegeriam e aos  quais  se  daria  sempre

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uma certa   importância  em dinheiro  proporcionalao valor da sua denúncia, quer fundada, quer não;que, por esse meio, os súditos viveriam no receio eno   respeito;   que   esses   delatores   e   acusadoresseriam   autorizados   a   dar   o   sentido   que   lhesaprouvesse   aos   escritos   que   lhes   caíssem   nasmãos;   que   poderiam,   por   exemplo,   interpretarassim os termos seguintes:

Um crivo: uma alta dama da corte.Um cão coxo: uma descida, uma invasão.A peste: um exército em pé de guerra.Um bolônio: um favorito.A gota: um grão­sacerdote.Um pinico: uma assembléia.Uma vassoura: uma revolução.Uma ratoeira: um emprego financeiro.Um esgoto: a corte.Um chapéu e um cinto: uma amante.Uma cana partida: o tribunal.Um tonel vazio: um general.Uma chaga aberta: o estado dos negócios públicos.

Poder­se­ia ainda observar o anagrama de todos osnomes citados num escrito; para isso, porém, eramnecessários homens da mais elevada penetração edo gênio mais sublime, principalmente quando setratasse de descobrir o sentido político e misteriosodas letras iniciais. Assim: N poderia significar umaconspiração; B um regimento de cavalaria; L umaesquadra.   Além   disso,   transpondo­se   as   letras,poder­se­ia descobrir num escrito todos os ocultosdesejos de um partido descontente.  Por exemplo:lê­se  numa carta  escrita  a  um amigo: Seu  irmãoTomás   sofre   de   hemorróidas; o   hábil   decifradordesvendará,   na   assimilação   destas   palavras

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indiferentes, uma frase que fará compreender queestá tudo preparado para uma sedição.

O   acadêmico   agradeceu­me   deveras   o   ter­lhecomunicado   estas   pequenas   observações,   eprometeu fazer menção honrosa de meu nome notratado que ia publicar sobre esse assunto.

Nada vi no país que pudesse reter­me mais tempo,de maneira que comecei a pensar no meu regressoà Inglaterra.

CAPÍTULO VII

O autor deixa Lagado e chega a Maldonada — Faz uma pequena viagem aGlubbdudrib — Como é recebido pelo governador.

O   continente   de   que   este   reino   faz   parteestende­se, pelo que pude ajuizar, a este para umaregião  desconhecida  da  América,   a   oeste  para  aCalifórnia e, ao norte, para o oceano Pacífico. Nãofica a mais de mil e cinqüenta léguas de Lagado.Este   país,   que   tem   um   porto   célebre   e   grandecomércio com a  ilha de Luggnagg,  fica situado anoroeste,   quase   a   vinte   graus   de   latitudesetentrional e a cento e quarenta de longitude. Ailha de Luggnagg fica ao sudoeste do Japão, de queestá afastada cerca de cem léguas. Há uma estreitaaliança   entre   o   imperador   do   Japão   e   o   rei   deLuggnagg, o que dá vários ensejos de ir de um aoutro.  Por tal  motivo resolvi  tomar esse caminhopara voltar à Europa. Aluguei duas mulas com umguia, para levar a minha bagagem e indicar­me ocaminho. Despedi­me do meu ilustre protetor, quetanta bondade me demonstrara e, ao partir, recebi

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dele um magnífico presente.

Durante   a   minha   viagem   não   se   deu   aventuraalguma que mereça ser relatada. Quando chegueiao porto de Maldonada, que é uma cidade quase dotamanho de Portsmouth, não havia navio algum noporto pronto a partir para Luggnagg. Travei algunsconhecimentos. Um fidalgo distinto disse­me que,em vista de não haver navio algum para Luggnaggsenão daí a um mês, faria bem em dar um passeioaté Glubbdudrib, que ficava apenas a umas cincoléguas para sudoeste; ele mesmo ofereceu­se parame   acompanhar   com   alguns   amigos   seus   eforneceu­me um barco.

Glubbdudrib,   segundo   a   sua   etimologia,significa Ilha   dos   Feiticeiros ou Mágicos. É   quasetrês   vezes   tão   larga   como   a   ilha   de   Wight   e   éfertilíssima. Esta ilha está sob o poder do chefe deuma tribo toda ela composta de feiticeiros, que sóse  ligam entre  si,  sendo sempre príncipe o  maisantigo da tribo. Este príncipe ou governador possuium palácio magnífico e um parque com perto detrês  mil  acres,   cercados  de  um muro  de  pedrastalhadas de vinte pés de altura. Ele e toda a famíliasão   servidos   por   criados   de   uma   espécie   muitoextraordinária.  Pelo  conhecimento  que  possui  denecromancia, tem o poder de evocar os espíritos eobrigá­los a servi­lo durante vinte e quatro horas.

Quando abordámos a ilha, deviam ser umas onzehoras   da  manhã.  Um dos  dois   fidalgos   que  meacompanhavam foi   ter  com o governador e disseque   um   estrangeiro   desejava   ter   a   honra   decumprimentar   sua   alteza.   Este   cumprimento   foibem   acolhido.   Entrámos   no   átrio   do   palácio   epassámos por entre uma sebe de guardas, cujas

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armas   e   atitudes   deveras   me   assustaram;atravessámos   as   salas   e   encontrámos   umainfinidade de criados antes de que conseguíssemoschegar   aos   aposentos   do   governador.   Depois   dehavermos feito três profundas reverências, mandouque   nos   sentássemos   em   pequenos   tamboretes,que ficavam junto do trono. Como compreendia alíngua   dos   Balnibarbos,   dirigiu­me   algumasperguntas acerca das minhas viagens e, para meprovar   que   queria   tratar­me   sem   cerimônia,   fezsinal com o dedo a toda a sua gente para que seretirasse   e,   num   instante   (o   que   me   admiroumuito) todos desapareceram como fumo. Mal tivetempo   para   me   refazer;   o   governador,   porém,tendo­me dito que nada tinha a recear e vendo osmeus dois companheiros seguros de si, comecei ater   ânimo   e   contei   a   sua   alteza   as   diferentesaventuras das minhas viagens, não sem ser, de vezem   quando,   perturbado   por   uma   estúpidaimaginação,   olhando   muitas   vezes   em   torno   demim, para a direita e para a esquerda, e lançandoos olhos para o lugar por onde vira desaparecer osfantasmas.

Tive a honra de jantar com o governador, que nosfez   servir   por   um   novo   grupo   de   espectros.Permanecemos na mesa até ao pôr do sol e, tendopedido a sua alteza que nos desculpasse de nãoquerermos   passar   a   noite   no   seu   palácio,retirámo­nos eu e os meus dois amigos, e  fomosem   busca   de   uma   cama   na   capital,   que   ficapróxima. Na manhã seguinte, viemos apresentar osnossos   respeitos   ao   governador.  Durante   os   dezdias   que   permanecemos   nesta   ilha,   vim   afamiliarizar­me  de   tal  maneira   com os   espíritos,que, se não tinha perdido de todo o medo, pois me

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restava   algum,   cedia   à  minha   curiosidade.   Logodepois   tive   ocasião   de   satisfazê­la,   e   por   isso   oleitor poderá julgar que sou mais curioso ainda doque   poltrão.   Sua   alteza   disse­me   um   dia   quenomeasse todos os mortos que me aprouvesse, queos faria comparecer e os obrigaria a responder atodas as perguntas que lhes quisesse dirigir, com acondição, contudo, de que só os interrogaria sobreo que se passou no seu tempo e que podia estarbem certo de que me falariam sempre verdade, poisé inútil aos mortos mentir.

Rendi  humildes  ações  de  graças  a  sua  alteza  e,para   me   aproveitar   dos   seus   oferecimentos,pus­me a recordar o que em outros tempos lera nahistória romana. Primeiro, acudiu­me ao espírito aidéia   de   pedir   para   ver   a   famosa   Lucrécia,   queTarquínio violou e que, não podendo sobreviver aessa afronta, se suicidara. Logo vi diante de mimuma   dama   muito   formosa,   vestida   à   romana.Tomei a liberdade de perguntar­lhe por que vingaraem si própria o crime de outrem; baixou os olhos erespondeu que os historiadores,  com receio de adarem   por   fraca,   a   haviam   enlouquecido;   emseguida, desapareceu.

O   governador   fez   sinal   para   que   aparecessemCésar e Bruto.  Fiquei  atônito de admiração e derespeito  à   vista  de  Bruto,   e  César  confessou­meque   todas   as   suas   belas   ações   tinham   ficadoabaixo   da  de  Bruto,   que   lhe   tirara   a   vida  paralivrar Roma da sua tirania.

Tive   vontade   de   ver   Homero;   apareceu­me;conversei  com ele  e  perguntei­lhe o que pensavaacerca   da   sua Ilíada.Declarou­me   que   ficarasurpreendido com os excessivos louvores que lhe

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teciam havia três mil anos; que o seu poema eramedíocre   e   eivado   de   tolices;   que   não   tinhaagradado no seu tempo senão por causa da belezada sua dicção e da harmonia dos seus versos, eque ficara assombrado porque, visto a sua línguaestar morta, e ninguém lhe conhecer as belezas, oespírito e as finuras, achava ainda pessoas ocas oumuito   estúpidas,   que   o   admiravam.   Sófocles   eEurípedes,  que o  acompanhavam,   tiveram poucomais   ou   menos   a   mesma   opinião   e   troçaramprincipalmente dos nossos sábios modernos que,obrigados a reconhecer os disparates das antigastragédias,   quando   eram   fielmente   traduzidas,sustentavam, no entanto, que em grego é  que seencontravam as belezas e era preciso saber esseidioma para julgar com segurança.

Quis   ver   Aristóteles   e   Descartes.   O   primeiroconfessou­me que nada ouvira de física senão aosfilósofos seus contemporâneos, e todos aqueles quetinham vivido  entre  ele  e  Descartes;  acrescentouque   tomara   por   bom   caminho,   ainda   que   fossemuitas   vezes   enganado,   principalmente  pelo   seuextravagante   sistema   com   respeito   à   alma   dosanimais.  Descartes   tomou a  palavra  e  disse  quetinha   encontrado   alguma   coisa   e   souberaestabelecer muito bons princípios, porém que nãotinha   ido  muito   longe,   e   que   todos  aqueles  quedoravante   quisessem   percorrer   o   mesmo   trilho,seriam sempre retidos pela fraqueza do seu espíritoe obrigados a tatear; que era uma grande loucurapassar   a   vida   a   procurar   sistemas   e   que   averdadeira física conveniente e útil ao homem erafazer um amontoado de experiências e de se limitara isso; que tivera por discípulos muitos insensatos,entre os quais se podia contar um certo Spinoza.

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Tive a curiosidade de ver diversos mortos ilustresdos últimos tempos, e sobretudo mortos distintos,porque   senti   sempre   grande   veneração   pelanobreza.   Oh!   quantas   coisas   espantosas   não   vi,quando o governador fez passar revista diante demim a todo o cortejo de antepassados da mor partedos nossos marqueses, condes, fidalgos modernos!quanto  prazer  não  senti   em ver  a   sua  origem etodos os personagens que lhes transmitiram o seusangue!   Vi   claramente   o   motivo   por   que   certasfamílias   têm   o   nariz   comprido,   outras   o   queixopontiagudo, outras o rosto abaçanado e as feiçõeshorríveis e ainda por que outras têm belos olhos ea tez delicada e  loura; por que é  que, em certasfamílias,   há   muitos   doidos   e   estouvados,   e   emoutras,   muitos   velhacos   e   gatunos;   por   que   aíndole de umas é  má,  brutal,  baixa e covarde, oque as distingue tanto como os brasões e as librés.Compreendi, finalmente, a razão por que PolidoroVirgílio dissera acerca de certas castas:

Nec vir fortis, nec fœmina casta. (1)

O  que  me  pareceu  mais  notável   foi   ver   os   que,tendo   trazido   originariamente   o   mal   imundo   acertas   famílias,   tinham  feito  esse   triste   legado atoda a sua posteridade. Fiquei ainda surpreendidoem notar, na genealogia de certos fidalgos, pajens,lacaios, professores de dança e de canto, etc.

Conheci   claramente   a   razão   por   que   oshistoriadores transformaram guerreiros  imbecis ecovardes   em   grandes   capitães;   insensatos   epequenos gênios em grandes políticos; bajuladorese cortesãos em pessoas de bem; ateus em homenscheios de religião; infames devassos em castos, edelatores  de  profissão   em homens   verdadeiros   e

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sinceros.   Soube   de   que   modo   pessoasinocentíssimas   tinham sido   condenadas   à  morteou banidas da sociedade pela intriga dos favoritosque haviam corrompido os juízes; como sucederaque homens de baixa extração e sem merecimentohaviam sido guindados aos mais elevados cargos;como os alcoviteiros e as rameiras tinham muitasvezes   abalado   os   mais   importantes   negócios   eocasionado   no   universo   os   maioresacontecimentos.   Oh!   como   então   fiz   uma   baixaidéia   da   humanidade!   como   a   prudência   e   aprobidade   dos   homens   me   pareceram   tãomesquinhas,   ao   ver   a   origem   de   todas   asrevoluções,   o   vergonhoso   motivo   das   maisbrilhantes   empresas,   as   molas,   ou   antes,   osacidentes   imprevistos e  bagatelas  que os   tinhamfeito vencer.

Descobri a ignorância e a temeridade dos nossoshistoriadores,   que   fizeram   morrer   envenenadoscertos reis, que ousaram dar a público conversassecretas   de   um   príncipe   com   o   seu   primeiroministro   e   que   têm,   segundo   se   imagina,espionado,   para   assim   dizer,   os   gabinetes   dossoberanos e as secretárias dos embaixadores, paraextrair daí curiosas anedotas.

Foi   por   isso   que   soube   as   causas   secretas   dealguns   acontecimentos,   que   assombravam   omundo;   como   uma   rameira   governara   umconfidente, um confidente um conselho secreto, e oconselho secreto todo um parlamento.

Um   general   do   exército   confessou­me   queconseguira   uma   vitória   pelo   seu   feitio   poltrão   epela   sua   imprudência,   e  um almirante  disse­meque   tinha   derrotado   contra   sua   vontade   uma

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esquadra inimiga, quando o seu desejo era deixarderrotar a sua. Houve três reis que me declararamque, no seu reinado, nunca tinham recompensadonem   elevado   nenhum   homem   de   merecimento,salvo uma vez em que o seu ministro o enganou,enganando­se a si próprio sobre este assunto; quenisto haviam tido razão, porque a virtude era umacoisa muito incômoda na corte.

Tive a curiosidade de me informar por que meiosum grande número de pessoas havia conseguidoelevadas   fortunas.   Limitei­me   a   estes   últimostempos,  sem  tocar,   contudo,  no   tempo presente,com receio de melindrar estrangeiros, (porque nãopreciso de advertir que tudo o que tenho dito aquinão respeita à minha querida pátria). Entre essesmeios   encontrei   o   preconceito,   a   opressão,   osuborno,   a   perfídia,   o pandarismo e   outrasidênticas bagatelas, que pouca atenção merecem;mas o pior é que muitos confessaram dever a suaelevação à facilidade que haviam tido, uns por seprestarem   às   mais   horríveis   devassidões;   outrospor entregarem as mulheres e as filhas; outros, portraírem a sua pátria e o seu rei e alguns por seutilizarem   do   veneno.   Após   estas   descobertas,persuado­me de que será perdoado doravante umpouco menos de estima e veneração pela grandeza,que honro e respeito naturalmente, como todos osinferiores devem fazer com relação àqueles a quema   natureza   ou   a   fortuna   colocaram   numa   filasuperior.

Lera   em   alguns   livros   que   os   súditos   tinhamprestado grandes serviços ao seu príncipe e ao seupaís.   Tive   vontade   de   conhecê­los;   disseram­me,porém, que os seus nomes foram esquecidos e que

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se lembravam agora de alguns apenas, de que oscidadãos  haviam  feito  menção   fazendo­os  passarpor traidores e ladrões. Essas pessoas, pois, cujosnomes haviam esquecido, apareceram­me, todavia,na minha presença, mas com um aspecto humildee mal vestidos; disseram­me que haviam morridona miséria e na desgraça e alguns até no patíbulo.

Dentre   eles,   notei   um   homem,   cujo   caso   mepareceu extraordinário, que tinha ao seu lado umrapaz   de   dezoito   anos.   Declarou­me   que   foracapitão de navios durante muitos anos e que, nocombate   naval   de   Actium,   fizera   soçobrar   aprimeira   linha,  afundara  três  navios da primeirafila e tomara um do mesmo tamanho, o que fora oúnico  motivo  da   fuga  de  Antônio  e  da  completaderrota da sua esquadra; que o rapaz, que estavajunto   de   si,   era   o   único   filho,   que   morrera   emcombate;   acrescentou   que,   terminada   a   guerra,veio a Roma para solicitar uma recompensa e pediro   comando   de   um   navio   maior,   cujo   capitãomorrera  na  batalha;  mas,   sem  lhe   atenderem  opedido, esse lugar fora dado a um rapaz que nuncavira o mar,   filho de um certo  liberto que servirauma das amantes do imperador; que, voltando aoseu departamento,  o  acusaram de  ter   faltado aoseu   dever;   e   que   o   comando   do   seu   navio   foraconfiado   a   um   pajem   favorito   do   vice­almirantePulícola; que fora, então, obrigado a retirar­se paraa sua casa, numa terra afastada de Roma e que aífindara seus dias. Desejando saber se esta históriaera   verídica,   pedi   para   ver   Agripa,   que,   nessecombate,   fora  o  almirante  da esquadra vitoriosa;compareceu, e, confirmando a veracidade daquelanarrativa,   contou   mais   circunstâncias   que   amodéstia do capitão omitira.

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Como   todos   os   personagens   evocados   seapresentaram tais como haviam sido no mundo, vicom mágoa quanto,  durante cem anos,  o gênerohumano se degenerara; quanto a devassidão, comtodas   as   suas   conseqüências,   alterara   os   traçosfisionômicos, tornara raquíticos os corpos, relaxaraos   músculos,   afrouxara   os   nervos,   apagara   ascores e corrompera a carne dos ingleses.

Enfim, quis ver alguns dos nossos camponeses, dequem   se   louva   a   simplicidade,   a   sobriedade,   ajustiça, o espírito de liberdade, o valor e o amorpela pátria.

Vi­os e não pude deixar de os comparar com os dehoje, que vendem à custa do dinheiro os seus votosna eleição dos deputados ao Parlamento e que, sobeste ponto de vista, possuem toda a finura e todo omanejo das pessoas da corte.

CAPÍTULO VIII

Regresso ao autor a Maldonada — Faz­se de vela para o reino de Luggnagg —É preso à sua chegada e levado à corte — Como é recebido.

Tendo chegado o dia da nossa partida, despedi­mede sua alteza o governador de Glubbdudrib e volteicom   os   meus   dois   companheiros   a   Maldonada,onde, depois de ter esperado durante quinze dias,embarquei por fim num navio que se dirigia paraLuggnagg. Os dois fidalgos, e ainda umas outraspessoas mais, tiveram a gentileza de me fornecerprovisões  necessárias  para  essa  viagem e  de  meconduzir a bordo. Apanhámos um forte temporal efomos   obrigados   a   governar   ao   norte   para

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podermos nos afastar de um certo vento forte, quesopra neste ponto por espaço de sessenta léguas. A21 de Abril de 1709 entrámos no rio de Clumegnig,que é uma cidade com porto de mar ao sudoeste deLuggnagg. Lançámos ferro a uma légua da cidade efizemos sinal para aparecer o piloto. Em menos demeia   hora   vieram   dois   a   bordo,   os   quais   nosguiaram por meio de escolhos e rochedos, que sãomuito  perigosos  nesta  baía,   e  na  passagem queconduz   a   uma   bacia   onde   os   navios   estão   emsegurança   e   que   está   afastada  dos   da   cidade   ocomprimento de um cabo.

Alguns dos nossos marinheiros, fosse por traição,ou por imprudência, disseram aos pilotos que euera  um estrangeiro   e  um grande   viajante.  Estesavisaram o comissário da alfândega, que me dirigiudiversas perguntas na língua balnibarbiana, que écompreendida nesta cidade em virtude do comércioe principalmente pela gente do mar e aduaneira.Respondi   em   poucas   palavras   e   narrei   umahistória tão verossímil e tão extensa quanto me foipossível; no entanto, julguei conveniente ocultar omeu país e de me intitular holandês, com desejo deir ao Japão, onde sabia que só os holandeses sãorecebidos.   Disse,   pois,   ao   comissário   quenaufragara   na   costa   dos   Balnibarbos   e,   tendochocado com um rochedo, estivera na ilha volantede Lapúcia, de que muitas vezes ouvira falar e quedesejava agora dirigir­me ao Japão, a fim de voltardaí  ao meu país.  O comissário disse­me que eraobrigado a  prender­me até  que recebesse  ordensda corte, para onde ia escrever imediatamente e deonde contava receber   resposta  dentro  em quinzedias.   Deram­me   um   alojamento   razoável   epuseram­me sentinela à  porta.  Tinha um grande

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jardim, por onde podia passear, e  fui muito bemtratado,   à   custa   do   rei.   Muitas   pessoas   vieramvisitar­me,  excitadas pela  curiosidade de  ver  umhomem que vinha de um país muito afastado, doqual nunca tinham ouvido falar.

Tratei com um rapaz do nosso navio para me servirde   intérprete.   Era   natural   de   Luggnagg;   mas,vivendo   há   largos   anos   em   Maldonada,   sabiaperfeitamente as duas línguas. Com o seu auxílio,fiquei em condições de conversar com todos os queme dessem a honra de  vir   visitar­me,   isto   é,  deentender as suas perguntas e eles entenderem asminhas respostas.

A   resposta  da   corte   veio  ao   fim de  quinze  dias,como   se   esperava;   trazia   uma   ordem   para   serconduzido   com   a   minha   comitiva   por   umdestacamento   de   cavalaria   a   Traldragenv   ouTrildragdrib,   porque,   se   não   estou   em   erro,   sepronuncia   das   duas   maneiras.   Toda   a   minhacomitiva   consistia   nesse   pobre   rapaz,   que   meservia   de   intérprete   e   que   tomara   para   meuserviço. Fizeram partir adiante de nós um correio,que  nos  avançou meio  dia,  para  avisar  o   rei  daminha   próxima   chegada   e   para   pedir   a   SuaMajestade marcasse o dia e hora em que poderiater a honra e prazer de lamber a poeira dos pés dotrono.

Dois dias depois da minha chegada tive audiência.Primeiro   fizeram­me   deitar   e   arrastar   sobre   abarriga e limpar o sobrado com a minha língua àmedida que adiantava para o  trono do rei;  mas,porque   era   estrangeiro,   tiveram   a   bondade   delimpar  o   sobrado,  de  maneira  que  a  poeira  nãopodia prejudicar­me. Era uma graça especial, que

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não   se   concedia  mesmo   às  pessoas  de  primeiracategoria, quando tinham a honra de ser recebidasna audiência de Sua Majestade; algumas vezes atése  deixava  de  propósito   o   sobrado  muito   sujo   ecoberto   de   poeira,   quando   os   que   vinham   àaudiência   tinham  inimigos  na  corte.  Uma vez  vium fidalgo ter a boca tão cheia de pó e tão suja doque apanhara com a língua, que, quando chegouao trono, lhe fora impossível articular uma únicapalavra.   Para   essa   fatalidade   não   há   remédio,porque é  proibido, sob graves penas, escarrar oulimpar a boca na presença do rei. Existe mesmo,nessa corte, um outro uso, que não posso aprovar:quando   o   rei   pretende   matar   algum   fidalgo   oualgum cortesão de maneira que o não desonre, fazlançar   sobre   o   sobrado   um   determinado   pócinzento,   que   está   envenenado   e   não   deixa   defazê­lo morrer suavemente e sem ruído ao cabo devinte e quatro horas; mas, para fazer justiça a esterei, à sua grande doçura e à bondade que tem emdirigir a vida dos seus súditos, é preciso dizer emsua honra que, depois de semelhantes execuções,tem o costume de ordenar muito expressamente ovarrer   bem   o   sobrado,   de   maneira   que,   se   oscriados se esqueciam, corriam o risco de descair dasua graça. Vi certo dia condenar um pajem a serchicoteado por se ter malevolamente desleixado deadvertir   o   varredor   de   executar   a   ordem,   o   quetinha   dado   lugar   a   que   um   fidalgo,   em   que   sefundavam   grandes   esperanças,   ficasseenvenenado;   o   príncipe,   cheio   de   bondade,   quisainda perdoar ao pajem e poupar­lhe o chicote.

Para   tornar   a   mim,   quando   cheguei   a   quatropassos do trono de Sua Majestade, levantei­me nosjoelhos   e,   depois   de   haver   batido   sete   vezes   no

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chão   com   a   cabeça,   pronunciei   as   palavrasseguintes, que na véspera me haviam ensinado decor:

Iruckpling   gloffthrobb   squu   tserumm   blhiopmlashnalt zwin inodbalkuff hshiophad kurdluhasht.

É uma fórmula estabelecida pelas leis deste reinopara   todos   aqueles   que   são   admitidos   emaudiência e que pode ser traduzida assim: PossaVossa Majestade sobreviver ao sol!

O rei deu­me uma resposta que não compreendi, erepliquei como me haviam ensinado:

— Fluftedrin yalerick dwuldom prtasrad mirpush.

Frase que, traduzida à letra, significava: A minhalíngua está na boca do meu amigo.

Dei  assim a  perceber  que  desejava  servir­me  domeu intérprete; então, mandou entrar o rapaz dequem falei, e, com o seu auxílio, respondi a todasas   perguntas   que   Sua   Majestade   me   dirigiudurante meia hora. Falei em balnibarbiano e o meuintérprete   traduzia   as   minhas   palavras   paraluggnaggiano.

O rei teve muito prazer com a minha conversação eordenou   ao   seu bliff­marklub, ou   camarista,   quemandasse preparar um aposento no seu palácio,para mim e para o meu intérprete, e entregar­meuma importância por dia para a minha mesa, comuma   bolsa   cheia   de   ouro   para   os   meusdivertimentos.

Permaneci três meses nesta corte para obedecer aSua Majestade, que me cumulou de amabilidades,

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e me  fez  oferecimentos  muito  graciosos  para  meconvidar   a   estabelecer­me   nos   seus   Estados;julguei, porém, dever meu agradecer­lhe e pensarantes em voltar para o meu país, para ali acabarmeus   dias   junto   de   minha   querida   mulher,   hátanto   tempo   privada   das   doçuras   da   minhapresença.

CAPÍTULO IX

Dos struldbruggs ou imortais.

Os Luggnaggianos são um povo muito delicado evalente e, embora tenham um pouco desse orgulhoque é comum a todas as nações do Oriente, são,contudo,   probos   e   educados   com   respeito   aestrangeiros, principalmente com aqueles que sãobem recebidos na corte.

Travei  conhecimento e   liguei­me com pessoas degrande conhecimento e de bom aspecto e, com orecurso do meu intérprete, tive com elas conversasagradáveis e instrutivas.

Um deles  perguntou­me  certo  dia   se   tinha  vistoalguns   dos   seus struldbruggs, ou   imortais.Respondi­lhe   negativamente   e   que   tinha   muitacuriosidade em saber como é que podiam ter dadoaquele  nome a  humanos;  disse­me  que  algumasvezes   (embora   raramente)   nascia   numa   famíliauma   criança   com   uma   mancha   vermelha   eredonda,   colocada   diretamente   na   sobrancelhaesquerda, e que essa feliz mancha a preservava damorte;   que   essa   mancha   era   a   princípio   do

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diâmetro de uma moeda de prata (a que nós, emInglaterra,   chamamos three   pence )   e   que   depoisaumentava e até mudava de cor; que dos doze aosvinte anos era verde, data em que se tornava azul,até aos quarenta, em que se fazia completamenteverde e tão grande como um shilling, e depois nãomudava;   acrescentou   que   nasciam   tão   poucascrianças  com essa mancha na  testa  que apenasexistiam mil e cem imortais de ambos os sexos emtodo o reino;  que havia quase uns cinqüenta nacapital   e   que   havia   três   anos   não   nascia   umacriança dessa espécie, que fosse do sexo feminino;que o nascimento de um imortal não era concedidoa uma determinada família; que era um presenteda natureza ou do acaso, e que os próprios filhosdos struldbruggs nasciam   mortais   como   os   filhosdos outros homens, sem ter privilégio algum.

Esta   narrativa   agradou­me   extremamente,   e   àpessoa que ma contava, entendendo a língua dosBalnibarbos, que falava à vontade, testemunhei aminha   admiração   e   a   minha   alegria   com   aspalavras   mais   expressivas   e   mais   desusadas.Exclamei, com uma espécie de entusiasmo:

— Feliz   nação,   cujos   filhos   ao   nascer   podemalcançar  a   imortalidade!  Feliz   região,  em que  osexemplos dos tempos passados se mantém sempre,em que a virtude dos primeiros séculos subsisteainda, e em que os primeiros homens vivem aindae   viverão   eternamente,   para   dar   lições   deprudência a todos os seus descendentes! Felizes ossublimes struldbruggs, que têm o privilégio de nãomorrer e a quem, por conseguinte, a idéia da mortenão intimida, não enfraquece, não quebra.

Demonstrei,  em seguida, que ficara surpreendido

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por não ter ainda visto nenhum desses imortais nacorte;   que,   se   alguns   havia,   a   gloriosa   manchaestampada na testa saltaria logo à vista.

— Por que o rei — acrescentei — que é um príncipetão judicioso, não os emprega no ministério e nãolhes confere a sua confiança?

Mas   talvez   a   rígida   virtude   desses   velhosimportunasse e ferisse os olhos da sua corte. Aindaque   assim   fosse,   estava   resolvido   a   falar   noassunto a Sua Majestade na primeira ocasião quese  me deparasse,  e  quer  ele   tivesse  como boa aminha opinião, quer não, aceitaria em todo o casoo alojamento que  teve a bondade de oferecer­menos seus Estados, a fim de poder passar o restodos   meus   dias   na   ilustre   companhia   desseshomens   imortais,   contanto   que   se   dignassematurar­me.

Aquele a quem dirigi a palavra, olhando­me entãocom um sorriso que denotava a minha ignorância,que   lhe   causava   dó,   respondeu­me   que   estavaencantado  por   eu  desejar   ficar  no  país,   e  pediulicença para explicar aos outros o que eu acabavade   dizer;   fê­lo   e,   durante   algum   tempo,conversaram entre si na sua linguagem que eu nãocompreendia; não pude sequer ler­lhes, nos gestosou  nos   olhos,   a   impressão   que   o  meu  discursocausara   nos   seus   espíritos.   Por   fim,   a   mesmapessoa   que   me   falara   até   então,   disse­medelicadamente   que   os   seus   amigos   estavamcativados com as minhas reflexões judiciosas sobrea felicidade e as vantagens da imortalidade, masdesejavam saber  que   sistema  de   vida   seguiria   equais  seriam as  minhas  ocupações  e  as  minhasvistas,   se   a   natureza   me   tivesse   feito

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nascer struldbrugg.

A   essa   interessante   pergunta   retorqui   que   iasatisfazê­los   imediatamente   com   prazer,   que   assuposições e as idéias me custavam pouco e queestava habituado a imaginar o que teria feito, setivesse sido rei, general do exército ou ministro deEstado; que, com relação à imortalidade, meditaraalgumas vezes sobre o modo de proceder de queusaria se tivesse de viver eternamente e que, emvista   do   que   me   dizia,   ia   dar   largas   à   minhaimaginação.

Disse,   pois,   que,   se   tivesse   tido   a   vantagem   denascer struldbrugg, logo   que   pudesse   conhecer   aminha felicidade e perceber a diferença que existiaentre   a   vida   e   a   morte,   teria,   primeiramente,metido mãos à obra, para me tornar rico, e que àforça de  ser   intrigante,  subtil   e   rasteiro,  poderiaesperar  ver­me um pouco  à   vontade ao  cabo deduzentos   anos;   que,   em   segundo   lugar,   meaplicaria   muito   seriamente   ao   estudo   dos   meusprimeiros   anos,   que   poderia   orgulhar­me   de  metornar, um dia, o homem mais sábio do universo;que   observaria   com   cuidado   todos   os   grandesacontecimentos;   que   examinaria   com   atençãotodos os príncipes e todos os ministros de Estadoque   se   sucedessem uns  aos  outros;   teria   tido  oprazer de comparar todos os seus caracteres e defazer sobre esse assunto as mais belas reflexões domundo; que teria traçado uma memória fiel e exatade todas as revoluções da moda e da linguagem, edas mudanças havidas nos costumes, leis, usos eaté nos prazeres; que, por esse estudo e por essasobservações, me tornaria, por fim, um museu deantigüidades,   um   registro   vivo,   um   tesouro   de

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conhecimentos,   um   dicionário   falante,   o   oradorperpétuo   dos   meus   compatriotas   e   de   todos   osmeus contemporâneos.

— Nestas   circunstâncias,   nunca   me   casaria,   —acrescentei — e levaria uma vida de rapaz alegre,livremente, economicamente a fim de que, vivendosempre, tivesse sempre de que viver. Ocupar­me­iaem formar o espírito de alguns rapazes, dando­lhesparte   das   minhas   luzes   e   da   minha   longaexperiência.   Os   meus   verdadeiros   amigos,   osconfidentes,   os   meus   companheiros   seriam   osmeus   ilustres   confrades struldbruggs, de   queescolheria uma dúzia de entre os mais velhos, paracom eles me ligar mais estreitamente. Não deixariade   freqüentar   também   alguns   mortais   demerecimento, que me habituaria a ver morrer semdesgosto   e   sem   pesar,   pois   a   posteridade   meconsolaria da sua morte; poderia até ser para mimum   espetáculo   bastante   agradável,   do   mesmomodo que um  jardineiro  sente  prazer  em ver  astulipas   e   os   cravos   do   seu   jardim   nascerem,morrerem e  tornarem a nascer.  Comunicaríamosmutuamente,   entre   nós struldbruggs, todas   asnotas e observações que fizéssemos sobre a causae   o   progresso  da   corrupção  do   gênero  humano.Comporíamos a esse respeito um excelente tratadode   moral,   cheio   de   lições   úteis   e   capazes   deimpedir a natureza humana de degenerar, como ofizera dia a dia, e pelo que é censurada há dois milanos. Que espetáculo nobre e encantador não seriaver com os seus próprios olhos as decadências e asrevoluções dos impérios, a face da terra renovada,as   cidades   soberbas   transformadas   em   cidadesburguesas ou tristemente amortalhadas nas suasvergonhosas ruínas; as aldeias obscuras tornadas

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a habitação dos reis e dos seus cortesãos; os rioscélebres   transformados   em   pequenos   regatos;   ooceano   banhando   outras   praias;   novas   regiõesdescobertas; um mundo desconhecido, saindo, porassim  dizer,   do   caos;   a   barbárie   e   a   ignorânciaespalhadas   pelas   nações   mais   delicadas   e   maisesclarecidas;  a  imaginação extinguindo o  juízo;  ojuízo gelando a imaginação; o amor pelos sistemas,pelos paradoxos, pelo empolado, pelas subtilezas eantíteses,   sufocando   a   razão   e   o   bom   gosto;   averdade   oprimida   hoje   e   triunfante   amanhã;   osperseguidos   tornados   perseguidores   e   osperseguidores,   perseguidos   por   sua   vez;   ossoberbos, abatidos, e os humildes, glorificados; osescravos, os libertos, os mercenários, conseguindouma   fortuna   imensa   com   a   administração   dosfundos   públicos,   com   as   desgraças,   fome,   sede,nudez  e  sangue  dos  povos;   enfim,  a  posteridadedesses salteadores públicos reduzida ao nada, deonde   a   rapina   e   a   injustiça   os   haviam   tirado!Como, nesta situação de imortalidade, a idéia damorte nunca estaria presente no espírito para meperturbar   ou   para   arrefecer   os   meus   desejos,entregar­me­ia a todos os prazeres sensíveis de quea natureza e o raciocínio me permitissem o uso.Contudo,   as   ciências   seriam   sempre   o   meuprimeiro e mais querido cuidado; suponho que, àforça   de   meditar,   encontraria   por   fim   aslongitudes,   a   quadratura   do   círculo,   o   motoperpétuo, a pedra filosofal e a panacéia universal;que,   numa   palavra,   levaria   todas   as   ciências   etodas as artes à sua última perfeição.

Logo que findei a minha prédica, o único que tinhacompreendido   voltou­se   para   a   assembléia   e   fezdela um extrato na linguagem do país; depois de o

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ouvir,   puseram­se   a   raciocinar   juntos   durantecerto   tempo,   sem   que,   no   entanto,testemunhassem,   ao   menos   pelos   seus   gestos   eatitudes,   desprezo   algum   pelo   que   acabava   dedizer. Por fim, todos, de comum acordo, pedirampor favor e caridade à mesma pessoa que resumirao  meu  discurso,   que  me  abrisse   os   olhos   e  meemendasse os erros.

Disse­me   primeiramente   que   não   era   o   únicoestrangeiro que olhava com espanto e com inveja asituação   dosstruldbruggs;   que   encontrara   nosBalnibarbos   e   nos   Japoneses   pouco   mais   oumenos   as   mesmas   exposições;   que   o   desejo   deviver era natural do homem; que aquele que tinhaum pé  para  a   cova,   se  esforçava por   se  manterfirme   no   outro;   que   o   velho   mais   corcovadoimaginava   sempre   um   amanhã   e   um   futuro   eapenas encarava a morte como um mal longínquoe fugidio; mas, na ilha de Luggnagg se pensava deum modo bem diferente, e que o exemplo familiar ea   contínua   presença   dos struldbruggs haviampreservado   os   habitantes   desse   insensato   amorpela vida.

— O sistema de conduta — continuou ele — que sepropunha na suposição  de ser   imortal  e  que hápouco traçou, é ridículo e completamente contrárioa   todo   o   raciocínio.   Supôs,   decerto,   que,   nesseestado,  gozaria  de  uma eterna mocidade,  de umvigor   e   de   uma   saúde   de   ferro.   Mas,   quandoperguntámos o que faria se tivesse de viver sempre,supusemos porventura que nunca envelhecesse e asua   pretendida   imortalidade   fosse   uma   eternaprimavera?

Em   seguida,   descreveu­me

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os struldbruggs, dizendo que eram semelhantes aosmortais   e   como eles   viviam até   aos   trinta  anos;que, depois dessa idade, caíam a pouco e poucoem negra melancolia, que aumentava sempre atéatingirem   os   oitenta;   que,   por   então,   não   eramapenas sujeitos a todas as enfermidades, a todasas   misérias   e   a   todas   as   fraquezas   dos   velhosdessa idade, mas a aflitiva idéia da eterna duraçãoda sua miserável caducidade os atormentava a talponto que nada podia consolá­los; que não eramsimplesmente,   como   todos   os   outros   velhos,cabeçudos,   rabugentos,   avarentos,   carrancudos,linguareiros,   mas   gostavam   de   si   próprios,renunciavam   às   doçuras   da   amizade,   nãodispensavam ternura a seus filhos e que, além daterceira geração, já não reconheciam a posteridade;que   a   inveja   e   a   raiva   os   devoravamcontinuamente;   e   que   a   vista   dos   sensíveisprazeres de que usufruem os juvenis mortais,  osseus   divertimentos,   os   seus   amores,   os   seusexercícios os faziam de certo modo morrer a cadamomento; que tudo, até a própria morte dos velhosque pagavam o tributo à natureza, lhes excitava araiva e os mergulhava no desespero; que, por essarazão,   todas   as   vezes   que   viam   realizar­se   umenterro,   maldiziam   a   sua   sorte   e   se   queixavamamargamente   da   natureza,   que   lhes   recusara   adoçura   de   morrer,   de   acabar   a   sua   aborrecidacarreira para entrar  num eterno repouso;  que  jánão   se   encontravam   em   estado   de   cultivar   oespírito;  que a memória enfraquecia;  que mal  selembravam do  que   tinham visto   e   aprendido  nasua mocidade e na idade madura; que os menosmiseráveis  eram os que  tinham entontecido,  quetinham   perdido   completamente   a   memória   eestavam   reduzidos   ao   estado   infantil;   esses,   ao

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menos,   encontravam   quem   se   condoesse   deles,dando­lhes todos os recursos de que necessitavam.

— Quando   um struldbrugg —   acrescentou   —   secasa com uma struldbrugg, o casamento, conformeas leis do Estado, é dissolvido logo que o mais novodos   dois   chegue   aos   oitenta   anos.   É   justo   quedesgraçados entes humanos, condenados, contra avontade   e   sem   o   haverem   merecido,   a   vivereternamente, não sejam ainda, para acréscimo dedesgraça,   obrigados   a   viver   com   uma   mulhereterna. O que é mais triste ainda é que, depois deter   atingido   esta   idade   fatal,   são   olhados   comomortos civilmente. Os seus herdeiros apoderam­sedos seus bens; são­lhes dados tutores, ou antes,são despojados de tudo e reduzidos a uma simplespensão alimentícia (lei muito justa em virtude dasórdida avareza comum aos velhos). Os velhos sãomantidos   por   custeio   público   numa   casachamada: hospital dos imortais pobres. Um imortalde oitenta anos já não pode exercer um empregoou  função alguma;  não pode negociar,  não podecontratar, não pode comprar nem vender e o seupróprio testemunho não é reconhecido em justiça.Quando,   porém,  atingem  noventa   anos,   ainda   épior:   todos  os  dentes  e   cabelos   caem;  perdem opaladar   e   bebem   e   comem   sem   prazer   algum;perdem a noção das coisas mais fáceis de reter, eesquecem o nome dos amigos e às vezes o próprio.Torna­se­lhes por este motivo inútil entreterem­secom a leitura, pois que, quando querem ler umafrase   de   quatro   palavras,   esquecem   as   duasprimeiras,   enquanto   lêem as  duas   últimas.   Pelomesmo   motivo   lhes   é   impossível   conversar   comalguém. Além disto, como a língua deste país estásujeita   a   freqüentes   mudanças,

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os struldbruggs nascidos   num   século   têm   muitotrabalho em compreender a linguagem dos homensnascidos noutro século, e são sempre estrangeirosna sua pátria.

Tais   foram   os   pormenores   que   me   forneceu   arespeito dos imortais desse país, pormenores queme   surpreenderam   em   extremo.   Em   seguida,mostrou­me   uns   seis,   e   confesso   que   nunca   vinada mais feio e mais desagradável; as mulheres,sobretudo,   eram   horrorosas;   imaginei   verespectros.

O   leitor   decerto   compreenderá   que  perdi,   então,toda   a   vontade   de   tornar­me   imortal   porsemelhante   preço.   Fiquei   vexadíssimo   com   asloucas   imaginações  a   que  me  entregara   sobre   osistema de uma vida eterna neste baixo mundo.

O rei, sabendo da conversa que eu mantivera comaqueles de quem falei, riu muito das minhas idéiassobre   a   imortalidade   e   a   inveja   que   eu   sentirapelos struldbruggs. Em   seguida,   perguntou­memuito a sério  se eu queria  levar comigo dois  outrês exemplares deles para o meu país, para curaros meus compatriotas do desejo de viver e do medode morrer. No íntimo, sentiria muito prazer em queme  tivesse   feito   esse  presente;  mas  por  uma  leifundamental do reino é proibido aos imortais sairdele.

CAPÍTULO X

O autor parte da ilha de Luggnagg para se dirigir ao Japão, onde embarca emum navio holandês — Chega a Amsterdam e daí passa para a Inglaterra.

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Suponho   que   tudo   o   que   tenho   contado   acercados struldbruggs não haja enfastiado o leitor. Creioque não são coisas vulgares, gastas e batidas, quese encontrem em todas as relações de viagens; pelomenos, posso assegurar que nada achei de igualnas que li. Em todo o caso, se são coisas reditas ejá conhecidas, peço considerar que viajantes, semse   copiarem  uns   aos   outros,   podem  muito   bemcontar   as   mesmas   coisas,   quando   visitam   osmesmos países.

Como existe um grande comércio entre o reino deLuggnagg e o império do Japão, é de crer que osautores japoneses não esquecessem de mencionarnos   seus   livros   os struldbruggs. Mas   apermanência que fiz  no Japão foi  muito curta e,por   não   possuir,   além   disto,   tintura   alguma   dalinguagem japonesa,  não pude saber ao certo  seesse assunto fora tratado nos seus livros. Algumholandês poderá talvez um dia dizer­nos o que hásobre tal assunto.

O   rei   de  Luggnagg,   tendo  muitas   vezes,   emborainutilmente,   insistido comigo para ficar nos seusEstados, teve por fim a bondade de me concederliberdade para sair  e   fez  até  a  honra de me daruma   carta   de   recomendação,   escrita   por   seupróprio punho, para Sua Majestade, o imperadordo  Japão.  Ao  mesmo   tempo  presenteou­me   comquatrocentas e quarenta e quatro peças de ouro,de   cinco   mil   quinhentas   e   cinco   pérolas   e   deoitocentos e oitenta e oito mil, cento e oitenta e oitogrãos de uma espécie de arroz muito rara. Estasespécies de números, que se multiplicam por dez,agradam muito ao povo desse país.

Em sete de Maio de 1709 despedi­me, com todas

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as cerimônias, de Sua Majestade, e disse adeus atodos   os   amigos   que   deixava   na   corte.   Estepríncipe fez­me conduzir por um destacamento dosseus   guardas   até   ao   porto   de   Glanguenstald,situado a sudoeste da ilha. Ao cabo de seis diasencontrei   um   navio   pronto   a   transportar­me   aoJapão;   embarquei   e,   após   a   nossa   viagem,   quedurou   cinqüenta   dias,   desembarcámos   numpequeno porto chamado Xamoschi, ao sudoeste doJapão.

Mostrei   primeiramente   aos   comissários   daAlfândega a carta com que tinha a honra de serapresentado pelo rei de Luggnagg a Sua Majestadenipônica; conheceram logo o selo de Sua Majestadeluggnaggiana,   cujo   sinete   representava um   reiamparando   um   pobre   aleijado   e   ajudando­o   aandar.

Os magistrados da cidade, sabedores de que eu eraportador   daquela   augusta   carta,   trataram­mecomo  ministro   e   forneceram­me   uma   carruagempara  me  transportar  a  Yedo,  que  é  a  capital  doImpério.   Aí,   fui   recebido   em   audiência   por   SuaMajestade imperial e tive a honra de lhe apresentara  minha  carta,  que  abriu  na  presença  de   todoscom grande cerimonial,  e que Sua Majestade  fezlogo explicar  pelo  seu  intérprete  que  lhe  pedissequalquer graça que, em consideração para com oseu muito querido irmão, o rei de Luggnagg, maconcederia imediatamente.

Este intérprete, que era ordinariamente empregadonos   negócios   do   comércio   com   os   holandeses,conheceu facilmente pelo meu aspecto que eu eraeuropeu e, por esse motivo, traduziu­me em línguaholandesa as palavras de Sua Majestade. Respondi

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que   era   negociante   da   Holanda;   que  naufragaranum   mar   afastado;   que   desde   então   caminharamuito por terra e por mar para chegar a Luggnagge daí ao império do Japão, onde sabia encontrar osholandeses meus compatriotas que comerciavam, oque me podia proporcionar ocasião de voltar para aEuropa; suplicava, pois, a Sua Majestade que metransferisse com segurança para Nangasac. Tomei,ao  mesmo   tempo,   a   liberdade  de  pedir­lhe  umaoutra mercê; foi que, por consideração para com orei   de   Luggnagg,   que   me   dava   a   honra   deproteger­me, de muito boa vontade me dispensasseda cerimônia que se fazia praticar aos do meu paíse não me obrigasse a calcar aos pés o crucifixo, poisviera ao Japão para passar à Europa e não paratraficar.

Quando   o   intérprete   expôs   a   Sua   Majestadenipônica esta derradeira mercê que pedia, pareceusurpreendido   e   respondeu   que   era   o   primeirohomem   da   minha   terra   a   quem   semelhanteescrúpulo   acudia   ao   espírito,   o   que   o   faziadesconfiar   de   que   eu   não   fosse   realmenteholandês,   como   eu   garantira,   e   fazia   antessupor­me   cristão.   No   entanto,   o   imperador,gostando   da   razão   que   eu   alegara   e   olhandoprincipalmente   a   recomendação   do   rei   deLuggnagg,   houve   por   bem,   por   bondade,condescender  à  minha   fraqueza   e   singularidade,contanto que eu guardasse todas as conveniênciaspara   salvar   as   aparências;   disse­me   que   dariaordem aos oficiais encarregados de fazer observareste uso para que me deixassem passar, fazendode   conta   que   não   haviam   reparado   em   mim.Acrescentou   que   era   de   interesse   meu   calar­mesobre o caso, porque infalivelmente os holandeses,

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meus compatriotas,  me apunhalariam na viagemse  viessem a  saber  a  dispensa  que  obtivera  e  oinjurioso escrúpulo que tivera em imitá­los.

Dei os meus mais humildes agradecimentos a SuaMajestade   por   este   singular   favor,   e,   assim  quealgumas   tropas   estavam   prontas   para   marcharpara   Nangasac,   o   oficial   teve   ordem   para   meconduzir  a   essa  cidade,   com  instruções  secretasacerca do crucifixo.

Aos nove dias do mês de Junho de 1709, após umalonga e penosa viagem, arribei a Nangasac, ondeencontrei uma companhia de holandeses que tinhapartido de Amsterdam para negociar em Amboina eque estava pronta para embarcar, no seu regresso,num   grande   navio   de   quatrocentas   e   cinqüentatoneladas. Permanecera muito tempo na Holanda,pois   fizera   os   meus   estudos   em   Leyde   e   falavamuito   bem   a   língua   desse   país.   Dirigiram­mediversas perguntas acerca das minhas viagens, aque   respondi   conforme   me   aprouve.   Mantiveperfeitamente,  perante eles,  a  linha de holandês;citei   amigos   e   parentes  nas  Províncias­Unidas   eapresentei­me como natural de Gelderland.

Estava disposto a dar ao capitão do navio, que eraum   certo   Theodoro   Vangrult,   tudo   quanto   lheapetecesse   pedir­me   pela   minha   passagem;sabendo,   porém,   que   eu   era   cirurgião,contentou­se com metade do preço vulgar, com acondição de que exerceria a bordo o meu mister.

Antes   de   embarcarmos,   alguns   da   tropatinham­me   perguntado   amiudadamente   se   eutraficara, ao que eu respondi, de um modo geral,que   fizera   tudo quanto  era  necessário.  Contudo,

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um   patife   audacioso   lembrou­se   de   mostrar­memaldosamente   ao   oficial   japonês,   dizendo: nãocalcou   aos   pés   o   crucifixo. O   oficial,   que   tinhasecretas   ordens   para   nada   exigir   de   mim,aplicou­lhe vinte bastonadas dadas nas costas, demaneira que mais ninguém se atreveu, após essacena, a fazer­me perguntas sobre tal assunto.

Na   nossa   viagem   nada   houve   que   mereça   serreferido. Fizemo­nos de vela, com vento de feição, etomámos água no Cabo da Boa Esperança em 16de Abril de 1710; desembarcámos em Amsterdam,onde  me  demorei  pouco   tempo  e   onde  depressaembarquei para a Inglaterra. Que prazer não foi omeu ao tornar a ver a minha querida pátria, apóscinco   anos   e   meio   de   ausência!   Encaminhei­mediretamente   para   Redriff,   onde   encontrei   minhamulher e meus filhos de perfeita saúde.

Quarta Parte

VIAGEM AO PAÍS DOS HUYHNHNMS

CAPÍTULO I

O autor empreende ainda uma viagem na qualidade de capitão de navio — Asua tripulação insubordina­se, prende­o, acorrenta­o e põe­no em terra num

ponto desconhecido — Descrição dos Yahus — Dois Huyhnhnms vêm ter comele.

PASSEI   cinco   magníficos   meses   na   docecompanhia de minha mulher e  de meus  filhos eposso   dizer   que,   então,   era   feliz,   se   pudesseverificar  que  o  era;   fui,  porém, desgraçadamente

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tentado a fazer ainda nova viagem, principalmentequando   me   foi   oferecido   o   orgulhoso   título   decapitão   a   bordo   do Aventura, navio   mercante   detrezentas  e   cinqüenta   toneladas.  Entendia  muitobem de navegação e,  demais,  estava cansado dotítulo   subalterno   de   cirurgião   de   bordo.   Nãorenunciei, contudo, à profissão, e soube exercê­la,quando   se   me   ofereceu   ensejo.   Por   entãocontentei­me em levar comigo, nesta viagem, ummoço   praticante.   Despedi­me   de   minha   mulher,que   ficava  grávida.  Embarcando em Portsmouth,fiz­me de vela a 2 de Dezembro de 1710.

Durante a viagem as doenças levaram­me parte datripulação, de maneira que fui obrigado a recrutargente nos Barbados e nas ilhas de Leward, onde osnegociantes,   com   quem   eu   comerciava,   tinhamdado ordem para arribar; cedo, porém, tive ensejopara   me   arrepender   de   ter   feito   aquele   malditorecrutamento, pois a mor parte era constituída porbandidos,  que  tinham sido piratas.  Estes  patifesinsubordinaram   o   resto   da   minha   tripulação   etodos juntos combinaram apoderar­se de mim e donavio.   Certa   manhã,   pois,   entraram   no   meucamarote,   atiraram­se   a   mim,   amarraram­me   eameaçaram­me de me  lançar ao mar se ousasseopor a menor resistência. Disse­lhes que a minhasorte   estava   nas   suas   mãos   e   que   consentia,antecipadamente,   no   que   eles   quisessem.Obrigaram­me   a   proferir   estas   palavras   sobjuramento,   e,   em   seguida,   desamarraram­me,contentando­se   em   me   acorrentar   em   pé   àcabeceira da cama e em postarem uma sentinela àporta do meu camarote,  com ordem de me fazersaltar   os   miolos   se   fizesse   alguma   tentativa   defuga. O seu projeto era fazer pirataria com o meu

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navio e dar caça aos espanhóis; para isso, porém,não   eram   muitos   os   tripulantes;   resolveram,primeiramente,   vender   a   carga   do   navio   e   ir   aMadagascar   para   aumentar   a   sua   gente.Entretanto,   conservavam­me   prisioneiro   a   bordodo meu camarote, muito inquieto com a sorte queme esperava.

A 9 de Maio de 1711, um tal Jacques Welch entroue disse­me que recebera ordem do senhor capitãopara  me  desembarcar.  Quis,  mas  baldadamente,conversar com ele e dirigir­lhe algumas perguntas;recusou   até   dizer­me   o   nome   daquele   a   quemtratava por senhor capitão. Fizeram­me descer parao escaler, depois de me haverem permitido arranjaro   meu   fardo   e   levar   as   minhas   coisas.Deixaram­me o meu sabre e tiveram a delicadezade não me revistar as algibeiras, onde havia algumdinheiro.   Após   quase   uma   légua   de   navegação,deixaram­me numa praia.  Perguntei  aos  que  meacompanhavam que região era aquela.

— Por nossa fé  — responderam — sabemos tantocomo o senhor, mas tome cuidado, não vá a marésurpreendê­lo. Adeus.

Em seguida o escaler afastou­se.

Abandonei a praia e subi  a um outeiro para mesentar   e  deliberar   sobre  o   caminho  que   tinha  atomar.  Quando  me  senti  um pouco  descansado,avancei   por   esses   terrenos,   resolvido   aaproveitar­me do primeiro meio de salvação que seme oferecesse e resgatar a minha vida, se pudesse,por   algumas   sementes,   por   alguns   braceletes   eoutras bagatelas, de que os viajantes não deixamde munir­se e de que tinha uma certa quantidade

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nas algibeiras.

Descortinei   grandes   árvores,   vastas   campinas   ecampos, onde a aveia crescia por todos os lados.Caminhava   com   precaução,   receando   sersurpreendido ou receber alguma flechada. Depoisde   ter   andado   algum   tempo,   fui   sair   em   umaestrada, onde se me depararam muitas pegadas decavalos   e   algumas   vacas.   Vi,   ao   mesmo   tempo,grande número de animais no campo e um ou doisda mesma espécie  empoleirados  numa árvore.  Asua figura surpreendeu­me e, tendo­se aproximadoalguns, ocultei­me por detrás de um maciço paramelhor os examinar.

Cabelos compridos lhes caíam para a cara; o peito,as costas e as patas dianteiras eram cobertas deum espesso pêlo; tinham barba no queixo como osbodes, mas o resto do corpo era pelado e deixavaver uma pele muito cinzenta. Não tinham cauda;estavam ora sentados na relva, ora deitados, ora depé   nas   patas   traseiras;   saltavam,   pulavam   etrepavam nas árvores com a agilidade dos esquilos,tendo garras nas quatro patas. As fêmeas eram umpouco menores do que os machos; tinham longoscabelos e apenas uma ligeira penugem em muitossítios do corpo.  Os seios pendiam entre as duaspatas dianteiras e algumas vezes rojavam­se pelochão,  quando  caminhavam.  O pêlo  de  uns  e  deoutros   era   de   diversas   tonalidades:   cinzento,vermelho, preto e louro. Finalmente, em nenhumadas minhas viagens vira animal tão disforme e tãodesagradável.

Depois   de   os   haver   examinado   suficientemente,segui   pela   estrada,   na   esperança   de   que   meconduziria  a  alguma choupana  de   índios.  Tendo

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caminhado   um   pedaço,   encontrei,   a   meio   daestrada, um desses animais que se encaminhavadiretamente   para   mim.   Ao   ver­me,   estacou,   fezuma   infinidade   de   caretas   e   pareceu   olhar­mecomo   um   animal   cuja   espécie   lhe   eradesconhecida;   depois,   aproximou­se   e   levantoupara mim a pata dianteira. Desembainhei o sabre ebati­lhe de leve, não querendo feri­lo, com receiode ofender aqueles a quem estes animais poderiampertencer.   O   animal,   sentindo­se   magoado,desatou a fugir e a gritar de tal maneira que atraiua atenção de uns quarenta animais da sua espécie,que correram para mim fazendo horríveis caretas.Corri   para   uma   árvore,   onde   me   encostei,mantendo­me   em   guarda   com   o   sabre;   logosaltaram aos   ramos das  árvores  e  começaram aestercar   em   cima   de   mim.   Repentinamentepuseram­se todos em fuga.

Então, deixei a árvore e continuei o meu caminho,ficando   muito   surpreendido   de   que   um   súbitoterror lhes tivesse feito fugir; mas, olhando para aesquerda,   vi   um   cavalo   trotando   gravemente   nomeio de um campo; fora a presença deste cavaloque fizera dispersar tão depressa o bando que meassaltara.   Aproximando­se   de   mim,   o   cavaloestacou,   recuou   e,   em   seguida,   olhou­mefixamente,   parecendo   um   pouco   espantado;examinou­me   por   todos   os   lados,   andando   porvárias vezes em volta de mim.

Quis andar para a frente, mas colocou­se diante demim na   estrada,  olhando­me meigamente  e   sempraticar   violência   alguma.   Examinámo­nosmutuamente   durante   certo   tempo;   por   fim,atrevi­me   a   colocar­lhe   a   mão   sobre   o   pescoço,

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acariciando­o, assobiando e falando à maneira dospalafreneiros, quando querem acariciar um cavalo;mas o animal, soberbo,  fazendo pouco da minhadelicadeza e da minha bondade, carregou a vista elevantou   orgulhosamente   uma   das   suas   patasdianteiras para me obrigar a retirar a minha mãofamiliar   demais.   Ao   mesmo   tempo,   desatou   arelinchar   três   vezes,   mas   com   uns   sons   tãovariados,   que   comecei   a   crer   que   falava   umalinguagem que   lhe  era  própria  e  que   tinha  umaespécie de sentido ligado aos seus relinchos.

Imediatamente   apareceu   um   outro   cavalo,   quecumprimentou   o   primeiro   muito   delicadamente;ambos   se   trataram   muito   bem   e   começaram   arelinchar de cem diferentes modos, que pareciamformar sons articulados; em seguida, deram algunspassos   juntos,   como   se   quisessem   conferenciarsobre qualquer assunto; iam e vinham, marchandogravemente   a   par,   semelhantes   a   pessoas   quedeliberam   sobre   coisas   importantes;   no   entanto,não  tiravam os  olhos  de  cima de  mim,  como setemessem que eu tentasse a fuga.

Surpreendido por ver animais portarem­se assim,pensei de mim para comigo:

— Visto   que   neste   país   os   animais   raciocinamassim, é porque os homens são de uma supremainteligência.

Esta reflexão incutiu­me tanta coragem que resolviavançar   por   essa   região   até   que   descobrissequalquer   casa   e   encontrasse  algum habitante,   oque deixara ali  os dois cavalos soltos;  um deles,porém,  que   era   ruço­malhado,   vendo  que  me   iaembora,   começou   a   relinchar   junto   de   mim   de

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maneira tão expressiva que julguei perceber o queele   queria;   voltei­me   e   acerquei­me   dele,dissimulando   o   meu   embaraço   e   a   minhaperturbação tanto quanto me era possível, porque,no fundo, não sabia em que daria tudo isso.

Os   dois   cavalos   chegaram­se   mais   perto   epuseram­se como que a examinar­me o rosto e asmãos.   O   meu   chapéu   parecia   surpreendê­los,assim   como   a   fazenda   da   minha   roupa.   Oruço­malhado pôs­se a gabar a minha mão direita,parecendo   encantado,   e   a   macieza   e   a   cor   daminha pele; mas apertou­ma tanto entre o casco ea ranilha que não pude deixar de gritar com toda aforça   dos   meus   pulmões,   o   que   me   atraiu   miloutras   carícias,   cheias   de   amizade.   Os   meussapatos   e   as   minhas   meias   inquietaram­nos,farejaram­nos e apalparam­nos por diversas vezese   fizeram   sobre   este   assunto   muitos   gestosparecidos com os de um filósofo que tenta explicarum fenômeno.

Enfim, a atitude e as maneiras desses dois animaispareceram­me   tão   racionais,   tão   prudentes,   tãojudiciosas,   que   concluí   de   mim   para   mim   quetalvez   fossem   encantadores   que   se   haviamtransformado em cavalos com qualquer desígnio eque,  encontrando um estranho no  seu caminho,tinham querido divertir­se um pouco à sua custa,ou   tinham   ficado   atônitos   com   as   suas   feições,roupas   e   maneiras.   Foi   por   isso   que   tomei   aliberdade de falar­lhes nestes termos:

— Senhores cavalos, se são feiticeiros, como tenhomotivos para crer, decerto compreendem todas aslínguas;  assim,   tenho  a  honra  de   lhes  dizer,  naminha,   que   sou   um   pobre   inglês   que,   por

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fatalidade,  naufraguei  nestas costas e peço ou aum ou a outro que, se são realmente cavalos, medeixem subir para a garupa, a fim de descortinaralguma   aldeia   ou   casa   onde   possa   recolher­me.Como reconhecimento, ofereço­lhes este punhal eeste bracelete.

Os dois animais pareceram ouvir o meu discursocom   atenção   e,   quando   acabei,   puseram­se   arelinchar cada um por sua vez, voltados um para ooutro. Compreendi então, claramente, que aquelesrelinchos   eram   significativos   e   encerravampalavras   com   que,   talvez,   se   pudesse   fazer   umalfabeto tão claro como o dos chineses.

Ouvi­os repetir várias vezes a palavra Yahu, de quedistinguia o som sem lhe perceber o sentido, aindaque,   enquanto   os   dois   cavalos   conversavam,tentasse   compreender­lhe   o   significado.   Quandoacabaram   de   falar,   desatei   a   gritar   com   toda   aforça:Yahu! Yahu! tentando imitá­los. Isto pareceusurpreendê­los   em   extremo,   e   então   oruço­malhado,   repetindo   duas   vezes   a   mesmapalavra,   pareceu   querer   ensinar­me   o   modo   depronunciá­la.  Repeti­a após ele o melhor que mefoi   possível   e   quis   me   parecer   que,   emboraestivesse muito longe da perfeição, da acentuaçãoe   da   pronúncia,   tinha,   no   entanto,   feito   algumprogresso. O outro cavalo, que era baio, ao que mepareceu,   quis   também   ensinar­me   uma   outrapalavra   muito  mais   difícil   de   pronunciar   e   que,sendo   reduzida   à   ortografia   inglesa,   pode   serescrita assim: huyhnhnm. Não me saí tão bem dapronúncia desta como da primeira, mas depois dealguns   ensaios   já   ia   melhor,   e   os   dois   cavalosnotaram que eu era inteligente.

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Após alguns momentos de conversa (decerto a meurespeito)  despediram­se com o mesmo cerimonialcom   que   se   tinham   acercado   de   mim.   O   baiofez­me   sinal   para   caminhar   adiante   dele,   o   quejulguei a propósito fazer enquanto não encontrasseoutro   guia.   Como   caminhasse   muitovagarosamente,   pôs­se   a   relinchar, hhuum,hhuum. Compreendi o seu pensamento e dei­lhe aentender,   conforme   pude,   que   estava   muitocansado   e   me   custava   muito   a   andar.Percebendo­o,   deteve­se   caridosamente   para   medeixar descansar.

CAPÍTULO II

O autor é levado à habitação de um huyhnhnm; como é recebido — Qual era oalimento dos huyhnhnms — Embaraços do autor para encontrar com que se

alimentar.

Depois   de   ter   palmilhado   quase   três   milhas,chegámos a um sítio onde havia uma grande casade   madeira   muito   baixa   e   coberta   de   palha.Comecei   logo   a   tirar   da   algibeira   as   pequenaslembranças, que destinava aos donos desta casa,para   ser   nela   recebido   mais   bondosamente.   Ocavalo   teve   a   delicadeza   de   me   fazer   entrar,primeiro, numa grande quadra muito limpa, onde,como único mobiliário,  havia uma mangedoura euma gamela.

Vi três cavalos com duas éguas, que não comiam, eque estavam sentados nos jarretes. Entretanto, oruço­malhado   chegou,   e,   entrando,   começou   arelinchar em tom de dono da casa. Atravessei comele  duas  outras  salas  planas;  na   última,  o  guia

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fez­me   sinal   para   esperar   e   passou   a   outroaposento que ficava próximo. Imaginei,  então, demim para mim, que era preciso que o dono da casafosse   uma   pessoa   nobre,   pois   assim   me   faziaesperar em cerimônia na antecâmara. Ao mesmotempo, porém, não podia conceber que um homemde   distinção   tivesse   um   cavalo   como   criado   dequarto. Temi, então, estar doido, e que as minhasfatalidades   me   tivessem   feito   perdercompletamente   a   inteligência.   Olhei   atentamenteem   volta   de   mim   e   pus­me   a   examinar   aantecâmara   que   estava   pouco   mais   ou   menosmobilada   como   a   primeira   sala.   Abri   muito   osolhos, fitei fixamente tudo o que me cercava e viasempre a mesma coisa. Belisquei os braços, mordios lábios, bati nos quadris para acordar, no casoem que estivesse sonhando e, como eram sempreos   mesmos   objetos   que   me   feriam   a   vista,depreendi que havia ali obra do diabo e alta magia.

Enquanto   ia   fazendo   estas   reflexões,   oruço­malhado veio ter comigo e fez­me sinal paraque entrasse com ele no aposento, onde vi sobreuma esteira muito asseada e fina uma bonita éguacom um potro e  uma eguazinha,   todos apoiadossimplesmente nas suas ancas. A égua levantou­seà  minha chegada e, depois de ter­me examinadoatentamente as mãos e o rosto, voltou­me o rabocom   ar   desdenhoso   e   pôs­se   a   rinchar,pronunciando   muitas   vezes   apalavra Yahu. Compreendi logo, com grande pesarmeu, o sentido funesto daquela palavra, porque ocavalo que me introduzira, fazendo­me sinal com acabeça   e   repetindo   a   palavra hhuum,hhuum, conduziu­me a uma espécie de pátio ondehavia uma outra construção,  a alguma distância

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da casa.  A primeira coisa que me saltou à  vistaforam   três   daqueles   malditos   animais,   que,   aprincípio,   tinha   visto   no   campo   e   de   que   maisacima fiz menção; estavam presos pelo pescoço ecomiam raízes e carne de burro, de cão e de vacamorta   (como   depois   soube),   que   seguravam   nasgarras e dilaceravam com os dentes.

O   cavalo­mor   mandou   então   a   um   cavalinhoalazão,   que   era   um   dos   seus   lacaios,   quedesprendesse   o   maior   desses   animais   e   otrouxesse. Colocaram­nos a ambos de costas paramelhor   fazer   a   comparação   e   foi   então   queo Yahu foi repetido muitas vezes, o que me deu aentender   que   aqueles   animais   sechamavam Yahus. Não   posso   descrever   a   minhasurpresa   e   o   meu   horror,   quando,   tendoexaminado de perto esse animal, notei nele todasas  feições  e   toda a  configuração de um homem,com a  diferença  de  que   tinha  uma cara   larga  echata, o nariz esborrachado, os lábios grossos e aboca muito grande; isto, porém, é vulgar a todas asnações selvagens, porque as mães parem os filhoscom o   rosto   voltado   para   o   chão,   levam­nos   àscostas   e   eles   batem­lhes   com   o   nariz   nasespáduas.   Este Yahu tinha   as   patas   dianteirasparecidas   com as  minhas  mãos,   embora   fossemmunidas de unhas muito grandes e a pele  fossetrigueira,   rude   e   coberta   de   pêlo.   As   pernastambém se pareciam com as minhas, com algumasdiferenças. No entanto, as minhas meias e os meussapatos   tinham   feito   acreditar   aos   senhorescavalos   que   a   diferença   era   muito   maior.   Comrespeito  ao resto do corpo,  era de  fato a mesmacoisa, exceto com relação à cor e ao pêlo.

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Ainda   que   assim   fosse,   aqueles   senhoresimaginavam que a minha vestimenta era a minhapele, e, por conseguinte, parte integrante do meuser,  de maneira que, por essa circunstância,  eramuito  diferente  dos   seus Yahus. O  lacaio   alazão,apanhando uma raiz com o casco e a ranilha, veiotrazer­ma.   Peguei­lhe   e,   tendo­a   saboreado,restituí­lha   imediatamente   com   a   máximadelicadeza   possível.   Em   seguida,   foi   à   moradiados Yahus e   trouxe­me   um   bocado   de   carne   deburro. Este petisco pareceu­me tão detestável e tãodesagradável   que  nem   lhe   toquei,   indicando,   aomesmo   tempo,   que  me   fazia  mal   ao   coração.  Oalazão   atirou­o   aoYahu, que   imediatamente   odevorou   com   prazer.   Vendo   que   o   sustentodos Yahus me   não   agradava,   lembrou­se   de   meoferecer do seu, isto é, feno e aveia; abanei, porém,a cabeça, fiz­lhe compreender que não era iguariade  que  gostasse.  Então,   levando  uma das  patasdianteiras   à   boca,   de   um   modo   muitosurpreendente   e   contudo   muito   natural,   fez­mesinais para me fazer compreender que não sabiacomo sustentar­me e para me perguntar o que euqueria comer; porém não pude fazer­lhe entender omeu pensamento por sinais, embora o entendesse,pois não via que ele se encontrasse em condiçõesde poder satisfazer­me.

Entretanto,   passou   uma   vaca,   apontei­a   com   odedo e dei a entender, por um aceno expressivo,que   tinha   vontade   de   mungi­la.Compreenderam­me e  logo me fizeram entrar emcasa, onde deram ordem a uma criada,  isto é,  àégua, de me abrir uma sala, onde encontrei umagrande quantidade de vasilhas de leite, alinhadasmuito   em   ordem.   Bebi   dele   abundantemente   e

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tomei   a   minha   refeição   muito   à   vontade   e   comgrande coragem.

À hora do meio­dia vi chegar à casa uma espéciede   carruagem,   puxada   por   quatro Yahus. Nessacarruagem um velho cavalo, que parecia pertencera   elevada   hierarquia,   vinha   visitar   os   meushospedeiros   e   jantar   com   eles.   Receberam­nomuito delicadamente e com grandes considerações,jantaram juntos na melhor sala e, além do feno eda   palha   que   lhe   apresentaram   primeiramente,serviram­lhe aveia  fervida em leite.  A gamela emque  comiam,  colocada  ao  centro  da  sala,   estavadisposta em círculo, pouco mais ou menos comouma prensa de lagar na Normandia, e dividida emvários   compartimentos,   em   volta   dos   quais   secolocaram sentados sobre as ancas e encostados afardos de palha. A cada compartimento competiauma grade de manjedoura, de maneira que cadacavalo e cada égua comia a sua ração com muitomais decência e limpeza. O potro e a eguazinha,filhos dos donos da casa, assistiam a esse jantar, eparecia  que  os  seus  progenitores   estavam muitoatentos   em   fazê­los   comer.   O   ruço­malhadoordenou­me que  fosse para  junto dele  e  pareceureferir­se a mim durante largo tempo ao seu amigo,que  de   vez   em quando  me   fitava,   repetindo  porvárias vezes a palavra Yahu.

Alguns   momentos   antes   eu   calçara   as   luvas;   oruço­malhado, tendo notado isso, e não vendo asminhas mãos conforme as havia visto a princípio,fez   diversos   sinais   de   admiração   e   de   enleio;tocou­me três vezes com a sua pata e deu­me aentender   que   desejava   que   voltasse   à   primitivaforma.  Em seguida  descalcei­me,  o  que   fez   falar

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toda a sociedade, à qual inspirei afeição. Depressalhe   senti   os   efeitos;   aplicaram­se   em   fazer­mepronunciar   algumas   palavras   que   ouvia   eensinaram­me os nomes de aveia, leite, fogo, águae muitas outras coisas. Decorei todos esses nomese foi, então, mais do que nunca, que fiz uso dessaprodigiosa facilidade que a natureza me concedeupara aprender línguas.

Quando   acabou   o   jantar,   o   cavalo,   meu   amo,chamou­me  em particular   e,  por  meio  de   sinaisacompanhados   de   algumas   palavras,   fez­mecompreender o pesar que sentia por ver que eu nãocomia,   não   achando   coisa   alguma   que   fosse   domeu   agrado.Hlunnh, na   sua   linguagem,   queriadizer aveia. Pronunciei esta palavra duas ou trêsvezes, porque, embora a princípio tivesse recusadoa   aveia,   depois   de   haver   refletido   julguei   poderfazer dela uma espécie de alimento, misturando­acom   leite.   Isso   me   sustentaria   até   que   se   meproporcionasse ensejo propício para me escapar eencontrasse indivíduos da minha espécie.  Logo ocavalo   deu   ordem   a   uma   criada,   que   era   umabonita égua, para que trouxesse uma boa porçãode aveia em um prato de madeira. Fiz torrar estaaveia,   consoante   me   foi   possível;   em   seguida,esfreguei­a   até   que   ficasse   completamentedescascada, depois tratei de a padejar e coloquei­asobre duas pedras para a esmagar: arranjei água,e fiz dela uma espécie de bolo que cozi e que comiquente, misturado em leite.

A   princípio,   foi   para   mim   uma   iguaria   muitoinsípida (embora seja um alimento muito usado emalguns pontos da Europa); mas, habituei­me com otempo e, tendo­me encontrado bastantes vezes na

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minha vida reduzido a circunstâncias difíceis, nãoera   a   primeira   vez   que   percebia   que   pouco   erapreciso   para   contentar   as   necessidades   danatureza   e   que   o   corpo   a   tudo   se   habitua.Observarei aqui que, enquanto permaneci no paísdos   cavalos,   não   sofri   a   menor   indisposição.Verdade   é   que,   algumas   vezes,   ia   à   caça   doscoelhos e das aves, que apanhava com armadilhasfeitas  de  cabelos  dos Yahus;  outras  vezes,  colhiaervas, que fazia cozer, ou que comia como salada,e, de vez em quando, fabricava manteiga. O que aprincípio me causava desgosto era a falta de sal;acostumei­me,   porém,   a   passar   sem   ele;   daquidepreendo   que   o   uso   do   sal   é   efeito   da   nossaintemperança e apenas foi produzido para excitar abeber, porque é bom que se note que o homem é oúnico   animal   que   tempera   com   sal   tudo   o   quecome. Quanto a mim, ao deixar este país, tive certocusto em tornar a usá­lo.

Creio   que   já   falei   bastante   a   respeito   do   meusustento. Se me alongasse muito mais sobre esseassunto, parece­me que faria o que fez, nas suasrelações,   a   maioria   dos   viajantes,   que   imaginacoisa de grande valia  para o  leitor  saber se   tembom ou mau passadio.

Seja como for, suponho que este sucinto pormenorda minha alimentação era necessário para impedirque   se   imaginasse   que   me   foi   impossívelalimentar­me  durante   três  anos  de  permanênciaem tal país e com semelhantes habitantes.

À tarde, o cavalo, meu amo, mandou­me dar umquarto   a   seis   passos   da   casa   e   separado   doalojamento   dos Yahus. Estendi   alguns   fardos   depalha e cobri­me com o meu casaco, de maneira

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que   passei   uma   noite   magnífica,   dormindotranqüilamente.   Nas   seguintes   passei   melhor,como o leitor verá daqui a pouco, quando lhe falarda maneira de viver nesse país.

CAPÍTULO III

O autor entrega­se ao estudo de aprender bem a, língua e o huyhnhnm, seuamo, aplica­se em ensinar­lha — Muitos huyhnhnms vêm, por curiosidade,

visitar o autor — Faz a seu amo um sucinto relato das suas viagens.

Entreguei­me extremamente  ao  estudo da  línguaque o huyhnhnm meu amo, (é assim que o tratareide hoje em diante),  seus filhos e criados tinhammuita vontade de ensinar­me.  Olharam­me comoum prodígio e estavam surpreendidos de que umanimal irracional tivesse todas as maneiras e todosos   sinais   naturais   de   um   animal   racional.Apontava cada coisa com o dedo e perguntava onome, que retinha de memória e que não deixavade inscrever no meu pequeno registro de viagem,quando   estava   só.   Com   respeito   à   acentuação,tentei apanhá­la, apurando atentamente o ouvido.O alazão, porém, foi um grande auxiliar.

Preciso é confessar que a pronúncia desta línguame pareceu muito difícil. Os huyhnhnms falam, aomesmo tempo, com a garganta e o nariz; e a sualíngua,   tanto   nasal   como   gutural,   se   aproximamuito   da   dos   alemães,   mas   é   muitíssimo   maisgraciosa e expressiva. O imperador Carlos V fizeraesta curiosa observação; assim, dizia ele, se tivessede falar com o seu cavalo, falar­lhe­ia em alemão.

O meu amo sentia­se tão impaciente por me ouvir

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falar na sua língua para poder conversar comigo esatisfazer a sua curiosidade, que empregava todasas suas horas de descanso em dar­me lições e emensinar­me   todos   os   termos,   todos   os   rodeios   efinuras   dessa   língua.   Estava   convencido,   comomais   tarde   me   declarou,   de   que   eu   eraum Yahu; mas o meu asseio, a minha delicadeza, aminha   docilidade,   a   minha   disposição   paraaprender,   admiravam­no:   não   podia   ligar   essasqualidades com as de umYahu, que é  um animalgrosseiro,   sujo   e   indócil.   O   meu   vestuáriocausava­lhe   também   embaraço,   imaginando   quefazia parte integrante do meu corpo, pois não medespia senão à noite para me deitar, quando todosna casa estavam ferrados no sono, e me vestia demanhã ao levantar, antes de acordarem. Meu amotinha vontade de saber qual era o meu país, onde ecomo   adquirira   esta   espécie   de   raciocínio,   quetransparecia   de   todas   as   minhas   maneiras   e,enfim, de conhecer a minha história.  Gabava­mede  ter  aprendido  tudo  isso,   rapidamente,  visto  oprogresso que eu fazia dia a dia na compreensão ena pronúncia da língua. Para auxiliar um pouco aminha memória, formei um alfabeto com todas aspalavras que aprendera, e escrevia­as com o termocorrespondente em inglês por baixo.  Depois,  nãotive dificuldade em escrever na presença de meumestre   as   palavras   e   frases   que   aprendia;   nãopodia,   contudo,   compreender   o   que   eu   fazia,porque os huyhnhnms não faziam idéia alguma doque seja escrita.

Enfim, ao cabo de dez semanas, encontrei­me emestado   de   entender   diversas   vezes   as   suasperguntas,   e   três   meses   depois   fiquei   bastantehabilitado para lhes responder regularmente. Uma

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das primeiras  perguntas  que me dirigiu,  quandolhe   pareceu   que   eu   estava   em   condições   deresponder­lhe, foi indagar de que país eu vinha ecomo aprendera a   fazer­me animal  racional,  nãopassando   de   um Yahu, porque   os Yahus, com   osquais ele me encontrava semelhanças no rosto enas   patas   dianteiras,   tinham,   dizia   ele,   umaespécie   de   conhecimentos,   com   astúcias   emalícias, porém não tinham esta concepção e estadocilidade que notava em mim. Respondi­lhe quevinha de muito longe e tinha atravessado os marescom outros da minha espécie;  que viajara numagrande   construção   de   madeira;   que   os   meuscompanheiros me haviam deixado nas costas destepaís,   abandonando­me.   Foi­me   preciso,   então,juntar  à   linguagem muitos  sinais  para  me   fazercompreender. Meu amo replicou­me que era certoque me enganavae que  tinha dito  uma coisa quenão   era, isto   é,   mentia.   (Os huyhnhnms nãopossuem na sua língua vocábulos para exprimir averdade ou a mentira). Não podia compreender quehouvesse terras de além­mar e que um vil rebanhode   animais   pudesse   fazer   flutuar   sobre   esseelemento   uma   grande   construção   de   madeira   econduzi­la à sua vontade. E acrescentou:

— Ninguém,   salvo   um huyhnhnm, poderia   fazersemelhante   coisa.   Confiar   o   governo   de   umaconstrução   dessas   a   umYahu, é   obra   deinsensatos.

Esta   palavra huyhnhnm, na   sua   língua,significava cavalo, e   quer   dizer,   conforme   a   suaetimologia,   a   perfeição   da   natureza.   Respondi   ameu   amo   que   me   faltavam as   expressões,  mas,dentro de algum tempo, ficaria em estado de lhe

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referir   coisas,   que,   decerto,   o   surpreenderiam.Exortou a senhora égua sua mulher, os senhoresseus filhos, o potro e a eguazinha, e todos os seuscriados, a concorrer com zelo a aperfeiçoarem­mena língua, e ele próprio, todos os dias, consagravapara esse fim duas a três horas.

Muitos cavalos e éguas de distinção vieram, então,visitar meu amo, excitados pela curiosidade de verum   extraordinárioYahu, que,   pelo   que   tinhamouvido, falava como huyhnhnm e fazia brilhar, comas suas  maneiras,  as  chispas  do  seu  raciocínio.Sentiam prazer   em dirigir­me  perguntas  ao  meualcance, às quais redarguia conforme podia. Tudoisto contribuía para me fortalecer no uso da língua,de sorte que, ao cabo de cinco meses, compreendiatudo o que me diziam e exprimia­me muito bemsobre a mor parte das coisas.

Alguns huyhnhnms, que   vinham   à   casa   de   meuamo para me ver e conversar comigo, não queriamacreditar  que   eu   fosse  um Yahu, porque,  diziam,tinha   uma   pele   muito   diferente   da   daquelesanimais;  não me viam, acrescentavam, uma peleaproximadamente parecida com a dos Yahus senãono   rosto  e  nas  patas  dianteiras,  porém peladas.Meu amo sabia bem o que isso era, porque umacoisa   que   aconteceu   uns   quinze   dias   antestinha­me   obrigado   a   descobrir­lhe   esse  mistério,que ocultara sempre até então com receio de queme tomasse por um verdadeiro Yahu e me pusessena companhia deles.

Já disse ao leitor que todas as noites, quando todaa   casa   estava   recolhida,   o   meu   costume   eradespir­me   e   cobrir­me   com o   casaco.  Certo  dia,meu amo mandou­me, de madrugada, o seu lacaio

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alazão. Quando entrou no meu quarto, dormia euprofundamente; o meu casaco estava caído e tinhaa camisa arregaçada. Acordei com o barulho queele fez e notei que dava conta do recado com arinquieto e embaraçado. Foi logo ter com o amo econtou­lhe confusamente o que vira.  Quando melevantei fui dar os bons dias a sua honra (é o termousado entre  os huyhnhnms,  que corresponde aosnossos:   alteza,   grandeza   e   reverência)   .Perguntou­me logo o que havia, o que o seu lacaiolhe tinha contado de manhã; que lhe dissera quenão   era   o  mesmo   acordado   que   dormindo;   que,quando dormia, tinha uma pele que não possuíadurante o dia.

Tinha, até essa data, ocultado esse segredo, comojá disse, para não ser confundido com a maldita einfame   raça   dos Yahus;   mas,   então,   foi   precisodesvendá­lo, contra minha vontade. Além disso, omeu vestuário e o meu calçado estavam já muitousados,   e   como   precisavam   de   ser   substituídospela   pele   de   um Yahu, ou   de   qualquer   outroanimal,  eu previa que o meu segredo não ficariapor muito tempo oculto. Confiei a meu amo que,no  país  de  onde  eu vinha,  os  da minha espéciecostumavam cobrir o corpo com o pêlo de certosanimais, preparado com arte, quer por decência ecomodidade, quer para se precaver contra o rigordas   estações;   que,   pelo   que   me   dizia   respeito,estava   pronto   a   fazer­lhe   ver   claramente   o   queacabava   de   dizer;   que   me   ia   despir   e   que   sóocultaria o que a natureza nos inibe de mostrar. Omeu   discurso   pareceu   admirá­lo;   não   podia,principalmente,   conceber   que   a   natureza   nosobrigasse a ocultar o que nos deu.

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— A   natureza   —   dizia   ele   —   fez­nos   presentesvergonhosos, furtivos e criminosos? Quanto a nós— acrescentou — não coramos com esses dotes enão nos envergonhamos de os expor às claras. Noentanto — prosseguiu — não quero contrariá­lo.

Despi­me,   pois,   decentemente,   para   satisfazer   àcuriosidade   de   sua   honra,   que   deu   grandesmostras   de   admiração   ao   ver   a   configuração  detodas as partes decentes do corpo. Levantou o meuvestuário, peça por peça, tomando­o entre o cascoe a ranilha e examinou­o atentamente; gabou­me,acariciou­me e deu várias voltas em torno de mim;em   seguida,   disse   com   gravidade   que   eraevidentemente um Yahu, e que não diferia de todosos da minha espécie senão por ter a carne menosdura e  mais  branca,  com uma pele  mais  macia;que não tinha pêlo na maior parte do corpo; quetinha   garras   mais   curtas   e   de   configuração   umpouco diferente, e que afetava andar apenas comas patas traseiras. Não quis ver mais e deixou­mevestir, o que me causou prazer pois já começava asentir frio.

Demonstrei   a   sua   honra   quanto   me   mortificavaque me desse seriamente o nome de um animalinfame e  odioso.  Supliquei­lhe  que  me poupasseuma   denominação   tão   ignominiosa   e   querecomendasse  a  mesma coisa a  sua  família,  aosseus criados e a todos os seus amigos; foi em vão.Pedi­lhe, ao mesmo tempo, a bondade de não darparte do meu segredo, que lhe confiara, a pessoaalguma, com relação ao meu vestuário, ao menosenquanto  não   tivesse  necessidade  de  mudá­lo,   eque, com respeito ao seu lacaio alazão, sua honralhe ordenasse que não desse palavra sobre o que

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vira.

Prometeu  guardar   silêncio   e   o   caso  permaneceusecreto até que minha roupa ficasse imprestável eme  fosse  preciso  procurar  com que  me vestisse,como   direi   mais   tarde.   Ao   mesmo   tempoexortou­me   a   que   me   aperfeiçoasse   ainda   nalíngua, porque ficara muito mais admirado de meouvir  falar e raciocinar,  do que me ver branco epelado, e que tinha uma extrema vontade de saberde   mim   as   coisas   admiráveis   que   eu   tinhaprometido   explicar­lhe.   Desde   então,   teve   maisempenho em instruir­me. Ia com ele, sempre quesaía,   e   fazia   com   que   eu   fosse   tratadobondosamente   em   toda   parte   e   com   todas   asconsiderações,   a   fim   de   estar   sempre   de   boadisposição  (como me disse  particularmente)  e  deme tornar mais agradável e mais alegre.

Todos  os  dias,   quando  estava   com ele,   além dotrabalho   que   tinha   em   ensinar­me   a   língua,dirigia­me mil perguntas a meu respeito, às quaisrespondia o melhor que me era possível, o que lhedava já algumas idéias gerais e imperfeitas do quedevia   dizer­lhe   pormenorizadamente   mais   tarde.Seria inútil explicar aqui como consegui travar comele uma conversação longa, séria e seguida; direiapenas   que   a   primeira   conversa   teve   lugar   daforma que passo a expor:

Disse a  sua honra que vinha de um país muitoafastado,   como   já   tinha   tentado   fazer­lhecompreender,   acompanhado   de   quase   cinqüentameus  semelhantes;   que  num navio,   isto   é,  umaconstrução   feita   de   pranchas,   tínhamosatravessado   o   mar.   Descrevi­lhe   a   forma   dessenavio  o  melhor  que pude e,   tendo desdobrado o

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lenço,   fiz­lhe   compreender   como   o   vento,   queinchava   as   velas,   nos   fazia   caminhar.   Disse­lheque, por ocasião de uma discussão levantada entrenós, tinha sido desembarcado nas costas da ilhaem que  atualmente  me encontrava;  que   ficara  aprincípio   muito   embaraçado,   não   sabendo   ondeestava, até que sua honra tivera a bondade de melivrar da perseguição dos vis Yahus.

Perguntou­me, então, quem tinha construído o talnavio,   e   como   os huyhnhnms do   meu   país   ohaviam   confiado   ao   governo   de   uns   animaisirracionais. Retorqui que era impossível responderà sua pergunta e continuar a minha narrativa senão   me   desse   a   sua   palavra,   e   se   não   meprometesse   sobre   sua   honra   e   sobre   a   suaconsciência, que não se ofenderia com tudo o quelhe   dissesse;   que,   sob   esta   única   condição,prosseguiria a minha narrativa, e lhe exporia comsinceridade   as   maravilhosas   coisas   que   lheprometera contar.

Assegurou­me, positivamente, que não se ofenderiacom coisa  alguma.  Então,  disse­lhe  que  o  naviofora construído por criaturas parecidas comigo eque, no meu país e em todas as partes do mundopor onde viajava, eram os únicos animais senhorese  denominados   racionais;  que,  ao  chegar   àquelaregião,  ficara extremamente surpreendido por veros huyhnhnms procederem como pessoas  dotadasde raciocínio, do mesmo modo que ele e os seusamigos   estavam   muito   admirados   de   encontrarprovas desse raciocínio numa criatura a quem lhesaprouvera tratar por Yahu, e que de fato se pareciacom   esses   vis   animais   pela   sua   configuraçãoexterior,   e   não   pelas   suas   qualidades   de   alma.

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Acrescentei que, se algum dia o céu permitisse quevoltasse ao meu país e publicasse a relação dasminhas   viagens,   e   em   especial   a   minhapermanência   entre   os huyhnhnms, toda   a   genteacreditaria que eu diria uma coisa que não era, eque seria uma história fabulosa e impertinente queeu  tinha  inventado;  em suma,  apesar  de   todo  orespeito que ele me merecia, e toda a sua honradafamília, e todos os seus amigos, ousava afirmar­lheque   no   meu   país   ninguém   acreditaria   queum huyhnhnm fosse   um   animal   racional   e   queum Yahu fosse um animal irracional.

CAPÍTULO IV

Idéias dos huyhnhnms acerca da verdade e da mentira — As dissertações doautor são censuradas por seu amo.

Enquanto   pronunciava   as   derradeiras   palavras,meu   amo   parecia   inquieto,   embaraçado   e   comofora de si. Duvidar e não acreditar o que se ouvedizer   é   para   os huyhnhnms uma   operação   deespírito a que não estão habituados, e, quando sãoobrigados a isso, o espírito sai­lhes por assim dizerfora   da   órbita   natural.   Recordo­me   até   de   que,conversando   algumas   vezes   com   meu   amo   arespeito das propriedades da natureza humana, talcomo existe nas outras partes do mundo, e haviaocasião  para   lhe   falar   da  mentira   e   do   engano,tinha muito  custo em perceber o  que  lhe queriadizer, porque raciocinava assim: o uso da palavrafoi­nos dado para comunicar uns aos outros o quepensamos e para sabermos o que ignoramos. Ora,se se   diz   a   coisa   que   não   é, não   se   procede

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conforme   a   intenção   da   natureza;   faz­se   umabusivo uso da palavra; fala­se e não se fala. Falarnão é fazer compreender o que se pensa?

— Ora,   quando   o   senhor   faz   o   que   sechama mentir, dá­me a compreender o que não sepensa: em vez de me dizer o que é,  não fala, sóabre a boca para articular sons vãos, não me tirada ignorância, aumenta­a.

Tal é a idéia que os huyhnhnms têm da faculdadede mentir, que nós, homens, possuímos num grautão perfeito e tão eminente.

Para voltar à conversa particular de que se trata,quando garanti  a  sua honra que os Yahus eram,no meu país, os animais senhores e dominadores(o   que   deveras   o   admirou)   perguntou­me   setínhamos huyhnhnms e   qual   era   o   seu   estado   eemprego.   Respondi­lhe   que   tínhamos   grandequantidade;   que,   no   verão,   pastavam   nascampinas  e  que,  durante  o   inverno,   ficavam emsuas   casas,   onde   tinham Yahus para   os   servir,para   lhes   pentear   a   crina,   para   lhes   escovar   eesfregar a pele, para lhes lavar os pés, para lhesdar de comer.

— Compreendo,   —   retorquiu   ele   —   isto   é,   que,embora   os Yahus se   gabem   de   possuir   algumraciocínio,   os huyhnhnms são   sempre   os   amos,como   aqui.   Prouvesse   aos   céus   apenas   que   osnossos Yahus fossem   tão   submissos   e   tão   bonscriados   como   os   do   seu   país!   Mas   prossiga,rogo­lhe.

Pedi a sua honra quisesse dispensar­me de dizermais   sobre   este   assunto,   porque   não   podia,

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segundo as regras da prudência, da decência e dadelicadeza, explicar­lhe o resto.

— Quero saber tudo — tornou. — Continue e nãoreceie desgostar­me.

— Pois bem! — disse­lhe eu — Visto que o quer emabsoluto, vou obedecer­lhe. Os huyhnhnms, a quenós damos o nome de cavalos, são, entre nós, osmais  belos  e  mais  soberbos  animais,   igualmentevigorosos e leves para corridas. Quando vivem emcasas de pessoas de distinção, fazem­lhes passar otempo a viajar, a correr, a puxar carruagens e têmpor eles todas as espécies de atenção e amizade,enquanto são novos e se portam bem; mas, assimque começam a envelhecer ou a sofrer das pernas,desfazem­se   deles   logo   e   vendem­nosaos Yahus, que os empregam em trabalhos rudes,penosos,  baixos e vergonhosos,  até  que morram.Então,   esfolam­nos,   vendem­lhes   as   peles,   eabandonam os seus cadáveres às aves de rapina,aos cães e aos  lobos, que os devoram. Tal é,  nomeu   país,   o   fim   dos   mais   belos   e   dos   maisnobres huyhnhnms. Mas   nem   todos   são   bemtratados e felizes, como aqueles que acabo de citar;há os que habitam, nos seus primeiros anos, emcasa   dos   lavradores,   carroceiros,   cocheiros   eoutros que  tais,  onde são obrigados a trabalhar,ainda que mal tratados e mal alimentados.

Descrevi, então, a nossa maneira de viajar a cavaloe  a  equipagem de  um cavaleiro.  Pintei  o  melhorpossível o freio, a sela, as esporas, o chicote, semesquecer todos os arreios dos cavalos que puxamuma   carruagem,   uma   carroça   ou   uma   charrua.Acrescentei que se aplicava à extremidade dos pésde   todos   os   nossos huyhnhnms uma   chapa   de

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certa   substância  muito  dura  chamada ferro, paralhes conservar o casco e impedi­lo de partir­se noscaminhos pedregosos.

Meu   amo   pareceu   indignado   com   esta   maneirabrutal por que tratamos os huyhnhnms, no nossopaís. Disse­me que estava muito admirado de quetivéssemos a ousadia e a insolência de lhes subirpara   a   garupa;   que,   se   o   mais   vigorosodos Yahusousasse,   alguma   vez,   tomar   essaliberdade com respeito ao menor huyhnhnm entreos   seus   criados,   seria   imediatamente   atirado   aochão,   pisado,   esmagado,   feito   em   nada.Respondi­lhe  que os  nossos huyhnhnms eram emgeral domados e educados dos três para os quatroanos,   e   que,   se   algum   deles   fosse   insubmisso,rebelde ou renitente, o empregavam logo em puxarcarroças,   em   lavrar   as   terras   e   enchiam­no   depancadas; que os machos destinados à  cavalariaou   a   puxar   carruagens,   eram   ordinariamentecastrados   dois   anos   depois   de   nascer,   para   ostornar   mais   dóceis   e   mais   macios;   que   eramsensíveis às recompensas e aos castigos, e que, noentanto,   eram   destituídos   de   raciocínio,   comoos Yahus daquela região.

Tive  muito   trabalho   em   fazer   compreender   tudoisto a meu amo e  foi­me preciso usar de muitoscircunlóquios   para   exprimir   as   minhas   idéias,porque a língua dos huyhnhnms não é rica e, comotêm   poucas   paixões,   têm   também   poucosvocábulos, porque são as paixões multiplicadas esubtilizadas que formam a riqueza, a variedade e adelicadeza de uma língua.

Impossível se torna descrever a impressão que estediscurso causou no espírito do meu amo, e o nobre

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agastamento de que foi possuído quando lhe expusa maneira por que nós tratamos os huyhnhnms, eparticularmente, o nosso uso de os castrar para ostornar   mais   dóceis   e   evitar   que   se   procriem.Conveio   em   que,   se   houvesse   um   país   em   queos Yahus fossem os únicos animais racionais, erajusto que eles   fossem os senhores,  visto  como oraciocínio   deve   ser   superior   à   força.   Mas,examinando   a   configuração   do   meu   corpo,acrescentou que uma criatura como eu era muitomal  feita para poder ser racional  ou pelo menospara   se   servir  do   raciocínio  na  maior  parte  dascoisas da vida. Perguntou­me ao mesmo tempo setodos os Yahus do meu país se pareciam comigo.Respondi­lhe que tínhamos pouco mais ou menosa mesma configuração, e que eu passava por bemfeito; que os juvenis machos e as fêmeas tinham apele mais fina e mais delicada, e a das fêmeas eraordinariamente,  no meu país,  branca como  leite.Replicou­me que existia, de fato, alguma diferençaentre os Yahus do pátio e eu; que era mais limpo enão   tão   feio   como   eles;   com   relação,   porém,   avantagens   sólidas,   os   julgava   superiores   a  mim;que os meus pés tanto dianteiros como traseiroseram nus, e que o pouco pêlo que tinha era inútil,pois nem sequer me preservava do frio; que, comrespeito   aos   meus   pés   dianteiros,   não   eramprecisamente pés, pois que nunca me servia delespara caminhar; que eram fracos e delicados, queos conservava geralmente nus, e que a coisa comque eu os cobria de tempos a tempos não era tãoforte   nem   tão   dura   como   a   coisa   com   que   eutapava   os   pés   traseiros;   que   não   andava   comsegurança,   visto   que,   se   um   dos   pés   traseirosescorregasse, eu cairia imediatamente. Continuou,então, a criticar toda a configuração do meu corpo,

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a chateza do   meu   rosto,   a proeminência do   meunariz,   a   situação   dos   meus   olhos,   agarradosimediatamente à testa, de maneira que não podiaolhar nem para a direita nem para a esquerda semvoltar a cabeça. Disse que eu não podia comer semauxílio dos meus pés dianteiros, que levava à boca,e que era aparentemente por isso que a naturezapusera aí tantas pinturas, a fim de disfarçar essedefeito; que não via que uso pudesse dar a todosesses pequenos membros separados como estavamnas   extremidades   dos   meus   pés   traseiros;   queeram decerto muito fracos e muito tenros para quese   cortassem   nas   pedras   e   nas   arestas,   e   queprecisava, para remediar isso, de os cobrir com apele de qualquer outro animal; que o meu corpo nue  pelado   estava   sujeito   ao   frio,   e   que,   para  meprecaver  dele,   era  obrigado  a  cobri­lo  com pêlosestranhos, isto é, a vestir­me e despir­me todos osdias,  o  que  era,  segundo a  sua opinião,  a  coisamais aborrecida e fatigante do mundo; que, enfim,notara que todos os animais do seu país tinhamum natural horror aos Yahus, dos quais fugiam, demaneira   que,   supondo   que   nós,   no   nosso   país,havíamos   recebido   da   natureza   o   dom   doraciocínio, não via como, com ele, podíamos curaresta intuitiva antipatia que todos os animais têmpelos da nossa espécie, e, por conseguinte, comopodemos tirar deles algum préstimo.

— Em suma — acrescentou — não quero avançarmais sobre este assunto; deixo­o livre acerca dasrespostas   que   me   poderia   dar,   e   peço­lhesimplesmente que me conte a história da sua vidae que me descreva o país em que nasceu.

Retorqui  que estava disposto a satisfazê­lo  sobre

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todos   os   pontos   que   lhe   interessassem   acuriosidade;   mas   receei   muito   que   me   fosseimpossível   explicar­lhe   claramente   a   respeito   damatéria de que sua honra não podia conceber idéiaalguma, visto que nada tinha notado de parecidono seu país; que, contudo, faria o que pudesse eque   tentaria   explicar­lhe   por   semelhanças   emetáforas,   pedindo   me   desculpasse   se   me   nãoutilizasse dos termos próprios.

Disse­lhe, pois, que era filho de pais honestos, quenascera numa ilha chamada Inglaterra, que ficavatão   afastada,   que   o   mais   vigorosodos huyhnhnms mal   poderia   fazer   a   viagemdurante   o   curso   anual   do   sol;   que   a   princípioexercera   a   cirurgia,   que   é   a   arte   de   curar   asferidas;  que  o  meu país  era  governado por  umafêmea, a que damos o nome de rainha; que o tinhaabandonado para tentar enriquecer e conseguir, àvolta,   que   minha   família   vivesse   um   poucodesafogada;   que,   na   minha   última   viagem,   foraarvorado em capitão de navio, tendo sob as minhasordens   quase   cinqüenta Yahus, a   maioria   dosquais morrera em trânsito, de maneira que me viraobrigado a substituí­los por outros, recrutados deoutras nações diversas; que o nosso navio estiveraduas vezes em perigo de naufragar; da primeira vezpor uma violenta tempestade e,  da segunda, porter chocado com um rochedo.

Aqui meu amo interrompeu­me para me perguntarcomo   pudera   conseguir   que   estrangeiros   dediferentes regiões viessem comigo, com o risco desofrer os perigos de que eu me salvara e as perdasque  me   tinham atingido.  Redargui­lhe  que   eramtodos   desgraçados   sem   eira   nem   beira   e   que

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tinham sido obrigados a deixar o seu país,  querpelo mau caminho que tomavam os seus negócios,quer   pelos   crimes   que   haviam   cometido;   quealguns   tinham   sido   arruinados   com   demandas,outros pela má vida que levavam, outros pelo jogo;que   a   maioria   era   constituída   por   traidores,assassinos,   ladrões,   envenenadores,   salteadores,perjuros,   falsários,   receptadores   de   roubos,fabricantes   de   moeda   falsa,   subornadores,soldados   desertores   e   quase   todos   evadidos   dasgalés; que, em conclusão, nenhum deles se atreviaa voltar à sua pátria, com receio de ser enforcadoou de apodrecer em alguma enxovia.

Durante este discurso meu amo viu­se forçado ainterromper­me por várias  vezes.  Usei  de muitosrodeios para lhe dar idéia de todos os crimes quetinham obrigado os meus tripulantes, na maioria,a deixar o seu país. Não podia perceber com queintenção tinham esses entes cometido tais ações, eo que os havia levado a isso. Para o esclarecer umpouco   sobre   este   assunto,   tentei   dar­lhe   umasluzes acerca do insaciável desejo que possuímos denos engrandecermos e enriquecermos, e sobre osfunestos   efeitos   do   luxo,   da   intemperança,   damaldade   e   da   inveja;   mas   só   lhe   pude   fazercompreender   tudo   isso   por   meio   de   exemplos   ehipóteses,  porque  não  podia  conceber  que   todosesses   vícios   existissem   realmente;   deste   modopareceu­me   como   uma   pessoa   cuja   imaginaçãoficasse assombrada com a narrativa de uma coisaque nunca vira e de que nunca ouvira falar, quebaixa os olhos e não pode exprimir por palavras asua surpresa e a sua indignação.

Estas noções: poder, governo, guerra, lei, punição e

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muitas   outras   semelhantes,   mal   podemrepresentar­se na língua doshuyhnhnms por longasperífrases. Tive, pois, muito trabalho, quando mefoi preciso dar a meu amo uma relação da Europa,e em especial da Inglaterra, minha pátria.

CAPÍTULO V

O autor expõe ao amo o que ordinariamente acende a guerra entre ospríncipes da Europa; explica­lhe,, em seguida, como os particulares se

guerreiam mutuamente — Retrato dos procuradores e juízes de Inglaterra.

O leitor, se lhe aprouver, observará que o que vailer é  extraído de muitas conversas que entabuleidiversas   vezes,   durante   dois   anos,   como huyhnhnm, meu   amo.   Sua   honra   dirigia­meperguntas   e   exigia   de   mim   narrativaspormenorizadas   à   medida   que   me   adiantava   noconhecimento e no manejo da língua. Expus­lhe, omelhor   que  me   foi  possível,   o   estado  de   toda  aEuropa;   dissertei   sobre   artes,   manufaturas,comércio, ciências, e todas as respostas que dava atodas   às   perguntas,   foram   assunto   de   umainesgotável conversa; mas relatarei aqui apenas asubstância dos colóquios que tivemos a respeito daminha pátria; e, dando­lhes a melhor ordem queme   for   possível,   olharei   menos   o   tempo   e   ascircunstâncias do que as exatas veracidades. Tudoo   que   me   inquieta   é   o   trabalho   que   terei   emrestituir   a   graça   e   a   energia   dos   magníficosdiscursos   e   os   raciocínios   sólidos   de   meu   amo;peço, contudo, ao leitor, que me desculpe a minhafraqueza   e   incapacidade   e   de   levar   também   emconta a linguagem um pouco defeituosa, na qual

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sou obrigado a exprimir­me no atual momento.

Para obedecer, pois, às ordens de meu amo, certodia   historiei­lhe   a   última   revolução   havida   emInglaterra pela invasão do príncipe de Orange, e aguerra que esse príncipe ambicioso travou com orei   de   França,   o   mais   poderoso   monarca   daEuropa,  cuja  glória  estava espalhada por   todo ouniverso e  que possuía todas as virtudes régias.Acrescentei   que   a   rainha   Ana,   que   sucedera   aopríncipe  de  Orange,   continuaria  esta  guerra,   emque   todas   as   potências   da   cristandade   estavamenvolvidas. Disse­lhe que esta guerra funesta tinhapodido   fazer  morrer  até   agora  quase  um milhãode Yahus;  que tinha como conseqüência mais decem   cidades   assaltadas   e   tomadas   e   mais   detrezentos navios incendiados e afundados.

Perguntou­me, então, quais eram as causas e osmotivos   mais   vulgares   das   nossas   questões,   àsquais eu dava o nome deguerra. Respondi­lhe queessas   causas   eram   inúmeras   e   que   lhe   citariaapenas as principais.

— Muitas vezes — lhe disse eu — é a ambição decertos   príncipes,   que   nunca   julgam   ter   muitasterras nem governar muitos povos. Algumas vezes,é a política dos ministros, que querem dar empregoaos   súditos   descontentes.   Outras,   tem   sido   adivergência   de   espíritos   sobre   a   escolha   deopiniões.  Um  imagina que assobiar  é  um bonitoato; outro, que é um crime; este diz que é precisovestuário   branco;   aquele,   que   é   preciso   usá­lopreto, vermelho, cinzento; um é de opinião que ochapéu deve ser pequeno e de aba direita; outro,que   deve   ser   grande   e   de   aba   caída   sobre   asorelhas,   etc.   (Imaginei   de   propósito   estes

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quiméricos exemplos, não querendo explicar­lhe asverdadeiras   causas   das   nossas   dissensões   comrespeito à opinião, visto que teria certo custo e meenvergonharia   deveras   em   fazer­lhascompreender).  Acrescentei que as nossas guerrasnunca eram mais longas nem mais sangrentas doque quando eram motivadas por essas diferentesopiniões, que esses cérebros escandescidos sabiamfazer valer quer de um lado, quer do outro, e pelasquais se exaltam a ponto de pegar em armas.

Prossegui:

Dois príncipes estiveram em guerra, porque ambosqueriam despojar  um  terceiro  dos  seus  Estados,sem que a isso tivesse direito qualquer deles. Àsvezes,  um soberano atacava outro com receio deque   este   o   atacasse.   Declaram   guerra   ao   seuvizinho,   ora  porque   é  muito   forte,   ora  porque   émuito   fraco.   Muitas   vezes   esse   vizinho   possuicoisas que nos faltam e a ele faltam coisas que nóspossuímos;   então,   declara­se   a   guerra   para   sepossuir   tudo ou nada.  Um outro  motivo  que  dálugar   à   guerra   num   país,   é   quando   este   seencontra desolado pela fome, dizimado pela peste,roto pelas facções. Uma cidade está ao agrado deum príncipe e a posse de uma pequena provínciaarredonda  o   seu  Estado?  motivo  de   guerra.  Umpovo   é   ignorante,   simples,   grosseiro   e   fraco?ataca­se   chacinando   uma   parte   e   reduzindo   aoutra à escravidão, e isto com o fim de civilizá­lo.Uma guerra é muito gloriosa, quando um generososoberano vem em socorro de outro, que o chamoue   que,   depois   de   ter   expulso   o   usurpador,   seapodera dos próprios Estados que socorreu, mata,põe   a   ferros   ou   expulsa   o   príncipe   que   lhe

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implorara auxílio. A consangüinidade, as alianças,os casamentos são outros tantos motivos de guerraentre os príncipes; quanto mais aparentados são,mais  próximos  estão  de  ser   inimigos.  As  naçõespobres   estão   esfomeadas;   as   nações   ricas   sãoambiciosas; ora a indigência e a ambição gostamigualmente  das  mudanças  e  das   revoluções.  Portodas estas razões, vê bem que, entre nós, o misterde um guerreiro é o mais belo de todos os misteres;o que é um guerreiro? é um Yahu a quem se pagapara matar,  a  sangue  frio,  os seus semelhantes,que não lhe fazem mal algum.

— Realmente, o que me acaba de dizer acerca dascausas vulgares das suas guerras — replicou­mesua   honra   —   dá­me   uma   elevada   idéia   do   seuraciocínio!   Seja   ele   qual   for,   é   uma   felicidade,sendo tão maus, estarem impedidos de causar mal,pois,   pelo   que   me   tem   dito   dos   terríveis   efeitosdessas guerras cruéis, em que tanta gente pereceu,creio, na verdade, que me tem dito coisas que nãosão. A   natureza   concedeu­lhes   uma   boca   chatanum rosto   chato;  assim,  não  vejo   como  possammorder­se,   senão   a   pouco   e   pouco.   Quanto   àsgarras que têm nos pés dianteiros e traseiros, sãotão fracas e tão curtas, que, na verdade, bastariaum dos nossos Yahus para dar cabo de uns dozecomo o senhor.

Não pude deixar de abanar a cabeça e de sorrircom a ignorância de meu amo. Como conhecia umpouco a arte da guerra, fiz­lhe uma desenvolvidadescrição   dos   nossos   canhões,   das   nossascolubrinas,   dos   nossos   mosquetes,   das   nossascarabinas, das nossas pistolas, da nossa pólvora,dos   nossos   sabres,   das   nossas   baionetas;

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pintei­lhe  o  assalto  às  praças,  as   trincheiras,  osataques, as sortidas, as minas e as contra­minas,os   assédios,   as   guarnições   passadas   ao   fio   daespada;   expliquei­lhe  as  nossas  batalhas  navais;descrevi­lhe os nossos maiores navios naufragandocom toda a tripulação, outros crivados de balas decanhão, desmantelados e queimados no meio daságuas;   o   fumo,   o   fogo,   as   trevas,   os   clarões,   oruído,   os   gemidos   dos   feridos,   os   gritos   doscombatentes, os membros saltando pelo ar, o marensangüentado   e   coberto   de   cadáveres;   emseguida,   referi­lhe  os  nossos  combates  em terra,onde havia muito mais sangue vertido e onde, numdia,   morreram   quarenta   mil   combatentes,   deambas as partes; e, para fazer valer um pouco acoragem   e   a   bravura   dos   meus   queridoscompatriotas, disse­lhe que os vira uma vez numassédio fazer saltar, com felicidade, uma centenade  inimigos,  e  que  tinha visto  ainda saltar  maisnum combate no mar, de maneira que os membrosespalhados   de   todos   esses Yahus pareciam   cairdas nuvens, o que constituía um espetáculo muitoagradável à nossa vista.

Ia   continuar   a   fazer   ainda   alguma   excelentedescrição, quando sua honra me ordenou silêncio,dizendo:

— A índole do Yahu é tão má, que me custa crer quetudo o que acaba de referir­me não fosse possíveldesde   que   eu   lhe   supusesse   uma   força   e   umahabilidade   iguais   à   sua   maldade   e   malícia.   Noentanto,   por   muito   má   idéia   que   eu   formasseacerca desse animal,  não se aproximava daquelade   que   lhe   dera   provas.   O   seu   discursoperturba­me o espírito e coloca­me numa situação

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em que nunca me encontrei; receio que os meussentidos,   aterrorizados   com   essas   horríveisimagens   que   me   traçou,   não   venha   a   pouco   epouco a habituar­se a elas. Odeio os Yahus destaregião, mas, apesar de tudo, perdôo todas as suasodiosas qualidades, visto como a natureza assimos   formou   e   não   possuem   raciocínio   para   segovernar   e   corrigir­se;   porém que  uma   criatura,que se gaba de possuir este raciocínio, em partilha,seja capaz de cometer ações tão execrandas e de seentregar   a   excessos   tão   horríveis,   é   o   que   nãoposso compreender e me faz concluir que o estadodos irracionais ainda é  preferível a um raciocíniocorrupto   e   depravado;   mas,   de   fato,   o   vossoraciocínio   é   um   verdadeiro   raciocínio?   Não   seráantes um talento com que a natureza vos dotoupara   aperfeiçoar   todos   os   vícios?   Mas   —acrescentou — nada me tem dito com respeito aoassunto a que chamam guerra. Há  um ponto queinteressa  a  minha  curiosidade.  Parece  que  dissehavia nesse bando de Yahus que o acompanhavano seu navio, miseráveis que os processos haviamarruinado e despojado de tudo; e qual era a lei queos pusera naquele triste estado? Além disso, quelei  é   essa?  A   sua   índole   e   o   seu   raciocínio  nãobastam e não prescrevem claramente o que deveme o que não devem fazer?

Respondi   a   sua   honra   que   eu   não   estavaabsolutamente   versado   na   ciência   da   lei;   que   opouco   conhecimento   que   possuía   dejurisprudência   aprendera   no   convívio   de   algunsadvogados que outrora consultara sobre os meusnegócios;   que,   no   entanto,   ia   dizer­lhe   o   quesoubesse a tal respeito. Falei­lhe, pois:

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— O número  daqueles   que,   entre  nós,   se   dão  àjurisprudência e  fazem profissão de  interpretar alei, é infinito e ultrapassa o das lagartas. Têm entresi todas as espécies de escalas, de distinções e denomes.  Como a  sua  enorme quantidade   torna  oofício pouco lucrativo, para fazer de maneira que,ao menos, lhes dê para viver, recorrem à indústriae à chicana. Aprenderam, logo nos primeiros anos,a  arte  maravilhosa  de  provar,   com um discursoretorcido, que o preto é branco e o branco é preto.

— São estes que arruinam e despojam os outros,com a sua habilidade? — atalhou sua honra.

— São, decerto — repliquei eu — e vou citar­lhe umexemplo, a fim de que melhor possa ajuizar do quedigo. Imagine que o meu vizinho tem vontade depossuir   a   minha   vaca;   vai   logo   ter   com   umprocurador, isto é, um douto intérprete de práticada  lei,   e  promete­lhe  uma  recompensa  se  puderfazer   ver   que   a   minha   vaca   não   é   minha.   Souobrigado   a   dirigir­me   também   a   umYahu damesma profissão para defender o meu direito, vistoque a lei me não permite que me defenda a mimpróprio.  Ora,   eu,   que   tenho   certamente  por  umlado a justiça e o direito,  nem por  isso deixo deencontrar  dois   grandes   obstáculos;   o   primeiro   éque oYahu, ao qual recorri para defender a minhacausa,   está,   por   ofício   e   espírito   profissional,habituado desde a mocidade a advogar a falsidade,de maneira que se vê fora do seu elemento quandolhe   digo   a   verdade   nua   e   não   sabe   comodesvencilhar­se;   o   segundo   obstáculo   é   que   omesmo procurador, não obstante a simplicidade dopleito   de   que   o   encarreguei,   é   obrigado   aembrulhá­lo,   para   se   conformar   com   o   uso   dos

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seus colegas e prolongá­lo o mais que puder,  docontrário  acusá­lo­iam de estragar o  ofício  e  darmau exemplo. Estando as coisas neste pé, só merestam   dois   meios   para   me   desembaraçar   daquestão: o primeiro é ir ter com o procurador daparte   contrária   e   tentar   suborná­lo,  dando­lhe  odobro do que esperava receber do seu constituinte;e decerto vossa honra compreende que me não édifícil   fazê­lo   pender   para   uma   proposta   tãovantajosa;   o   segundo   meio,   que   vai   talvezsurpreendê­lo,   mas   é   menos   infalível,   érecomendar   a   este Yahu, que   me   serve   deprocurador,   pleiteie   a   minha   causa   um   poucoconfusamente   e   faça   entrever   aos   juízes   que   aminha   vaca  podia  não   ser  minha,  mas  do  meuvizinho.   Então   os   juízes,   pouco   habituados   àscoisas  claras  e  simples,  darão  mais  atenção  aossubtis   argumentos   do   meu   advogado,   acharãogosto   em   ouvi­lo   e   a   contrabalançar   o   pró   e   ocontra e,  nesse caso, estarão melhor dispostos ajulgar em meu favor do que se ele se limitasse aprovar   o   direito,   que   me   assistisse,   em   quatropalavras. Uma das máximas dos juízes é que tudoquanto foi julgado, foi bem julgado. Assim, têm omáximo cuidado em conservar num cartório todasas   decisões   anteriormente   tomadas,   mesmo   asditadas   pela   ignorância,   e   que   são   o   maismanifestamente  possível   opostas  à   equidade   e  àjusta   razão.  Estas   anteriores  decisões   formam oque se chama jurisprudência; são alegadas comoautoridades   e   não   há   coisa   alguma  que   não   seprove e não se justifique, citando­as. Data de hápouco, contudo, o abandono do abuso que haviaem   dar   tanta   força   à   autoridade   das   causasjulgadas; citam­se sentenças pró e contra, trata­sede   ver   que   as   espécies   nunca   podem   ser

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completamente semelhantes e ouvi dizer a um juizque as   sentenças   são   para   aqueles   que   asalcançam. De resto,  a atenção dos  juízes volta­sesempre mais para as circunstâncias do que para acausa principal.  Por exemplo:  no caso da minhavaca, quererão saber se é  vermelha ou negra, setem   grandes   cornos;   em   que   campina   costumapastar; que quantidade de leite fornece por dia, eassim   sucessivamente;   isto   feito,   põem­se   aconsultar as antigas decisões. De tempos a tempostrata­se da questão; por muito feliz se deve dar oconstituinte se for julgada ao fim de dez anos! Épreciso observar ainda que os homens de lei têmuma   linguagem   especial,   um   calão   que   lhes   épróprio; um modo de se exprimir que os outros nãoentendem;  é  nesta  magnífica   linguagem que  sãoescritas   as   leis,   leis   multiplicadas   ao   infinito   eacompanhadas de inúmeras exceções. Vossa honravê   perfeitamente   que,   neste   labirinto,   o   justodireito se perde facilmente; que a melhor questão édifícil de ganhar­se; e que, se algum estrangeiro,nascido a trezentas léguas do meu país, tivesse alembrança  de   vir  disputar­me  uma herança  queestá na posse de minha família há trezentos anos,lhe seriam precisos talvez trinta anos para concluire esgotar por completo este difícil pleito.

— É pena — atalhou meu amo — que uma gentecom tanto gênio e talento não encaminhe o espíritopara outro lado, fazendo dele bom uso. Não seriamelhor  — acrescentou — que  se  ocupassem emdar aos outros lições de prudência e de virtude, eparticipassem   com   o   público   das   suas   luzes?Porque, indubitavelmente, essa hábil gente possuiconhecimento de todas as ciências.

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— Qual história! — repliquei — Sabem apenas doseu mister e nada mais; são os maiores ignorantesdo   mundo   sobre   qualquer   outra   matéria;   sãoinimigos da boa literatura, de todas as ciências, e,nas relações vulgares da vida, parecem estúpidos,mazombos,   enfadonhos,   malcriados.   Falo   nageneralidade,   porque   se   encontram   algunsespirituosos, agradáveis e galantes.

CAPÍTULO VI

Do luxo, da intemperança e das doenças que reinam na Europa — Condiçãoda nobreza.

Meu amo não podia compreender como toda essaraça de patrícios era tão malevolente e tão terrível.

— Que motivo — perguntava ele — os leva a causardetrimento tão considerável  àqueles que carecemde   auxílio?   E   que   quer   dizer   comessa recompensa que se promete a um procurador,a quem se entrega uma causa?

Respondi­lhe que era dinheiro. Tive algum trabalhoem  fazer­lhe  compreender  o  que  significava  essapalavra; expliquei­lhe as nossas diferentes espéciesde moedas, e os metais de que eram constituídas;fiz­lhe  conhecer a  sua utilidade,  dizendo­lhe quequem   possuísse   muitas   era   feliz;   que   entãoenvergava boas roupas; possuía boas casas, boaspropriedades; que comia pratos finos; e que tinhaboas   fêmeas   à   disposição;   que,   por   essa   razão,nunca   acreditávamos   ter   muito   dinheiro   e   que,quanto mais tínhamos, mais queríamos ter; que orico   ocioso   abusava   do   trabalho   do   pobre,   que,

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para achar com que mantivesse a sua miserávelexistência,  suava de manhã  à  noite,  sem ter ummomento de descanso.

— Pois quê! — atalhou sua honra — Toda a terranão pertence a todos os animais e  não têm elesdireito   igual  aos   frutos  que ela  produz para seualimento?   Por   que   há Yahus privilegiados,   quecolhem   esses   frutos   com   exclusão   dos   seussemelhantes? E, se alguns pretendem um direitomais   especial,   não   devem   ser   principalmenteaqueles que, pelo seu trabalho, contribuíram paratornar a terra útil?

— Nada disso! — lhe respondi — Aqueles que fazemviver   todos   os   outros   pela   cultura   da   terra   sãoexatamente os que morrem de fome.

— Mas   —   prosseguiu   ele   —,   que   entende   pelaexpressão de  pratos   finos,  quando me disse  quecom dinheiro se comiam pratos finos no seu país?

Pus­me   então   a   explicar­lhe   as   iguarias   maisesquisitas que vulgarmente aparecem na mesa dosricos e os diferentes modos por que se preparam ascarnes; disse­lhe sobre isto tudo quanto me acudiuao espírito e informei­o de que, para bem temperaras   carnes,   e   sobretudo   para   ter   bons   licores,armávamos   navios   e   empreendíamos   longas   eperigosas viagens pelo mar; de maneira que, antesde poder dar uma esplêndida refeição a algumasfêmeas  de  distinção,   era  preciso  mandar  muitosnavios às quatro partes do mundo.

— O seu país — retorquiu ele — é muito miserável,pois não fornece alimento para os seus habitantes!Nem sequer há água e são obrigados a atravessar

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mares para encontrar de beber!

Repliquei­lhe   que   a   Inglaterra,   minha   pátria,produzia   tanto   alimento   que   era   impossível   aoshabitantes   consumi­lo   e   que,   com   respeito   àbebida, fabricávamos um excelente licor com sucode   certos   frutos   ou   com   o   extrato   de   algunscereais; que, numa palavra, nada faltava para asnossas necessidades naturais; mas, para manter onosso luxo e a nossa intemperança, enviávamos apaíses estranhos o que tínhamos a mais no nossoe recebíamos dos outros o que não tínhamos e que,em troca, trazíamos artigos que serviam para nostirar a saúde e nos encher o corpo de vícios; queesse amor pelo luxo, pelos pratos exóticos, e peloprazer, era o princípio de todos os movimentos dosnossos Yahus;   que,   para   atingi­lo,   era   precisoenriquecer; que era isso que produzia ratoneiros,ladrões,   perjuros,   patifes,   lisonjeiros,subornadores,   falsários,   falsas   testemunhas,mentirosos,   jogadores,   impostores,   fanfarrões,maus   autores,   envenenadores,   impudentes,pretensiosos,   ridículos,   espíritos   fracos.   Foi­menecessário definir todos estes termos.

Acrescentei   que   o   trabalho   que   tínhamos   em   irbuscar vinho em países estrangeiros, não era porfalta de água ou de outro licor bom para viver, masporque o vinho era uma bebida que nos tornavaalegres; que nos fazia de algum modo sair fora denós   mesmos;   que   afugentava   do   nosso   espíritotodas as idéias tristes; que enchia a nossa cabeçade mil imaginações loucas; que excitava a coragem,bania o receio e nos libertava, por algum tempo, datirania do raciocínio.

— É — continuei eu — fornecendo aos ricos todas

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as coisas de que eles têm necessidade, que vive onosso pequeno povo.  Por exemplo:  quando estouem   minha   casa,   vestido   como   devo   estar,   tragosobre o meu corpo o trabalho de cem operários.Um milhão de mãos contribuiu para construir  emobilar a minha casa, e ainda são precisos cincoou seis vezes mais para vestir minha mulher.

Tinha   chegado   ao   ponto   de   descrever­lhecertos Yahus, que   passam   a   vida   junto   dos   queestão ameaçados de a perder,   isto é,  dos nossosmédicos. Dissera a sua honra que a mor parte dosmeus companheiros  de  viagem tinha  morrido  dedoença;   ele,   porém,   tinha   uma   idéia   muitoimperfeita  do  que   eu   lhe  dissera.  Sobre  o   caso,porém, tinha ele opinião bem diferente.

Imaginava  que  morríamos  como   todos  os  outrosanimais e que não tínhamos outra doença além defraqueza   e   de   pesadelo   um   momento   antes   demorrer, a menos que fôssemos feridos por qualqueracidente.   Fui,   pois,   obrigado   a   explicar­lhe   anatureza   e   a   causa  das  nossas   outras  doenças.Disse­lhe   que   comíamos   sem   ter   fome;   quebebíamos sem ter sede; que passávamos as noitesa   tomar   bebidas   abrasadoras   sem   comerabsolutamente  nada,  o  que   inflamava  as  nossasentranhas,   arruinava   o   nosso   estômago   eespalhava em todos os membros uma fraqueza euma   languidez   mortais;   que   muitas   fêmeas   danossa espécie tinham um certo vírus que dividiamcom os  seus amantes;  que essa doença  funesta,assim como muitas outras, nascia algumas vezesconosco e nos era transmitida pelo sangue; enfim,que  nunca  mais  acabaria,   se  quisesse   expor­lhetodas as  doenças  a  que  estávamos sujeitos:  que

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havia   pelo   menos   quinhentas   a   seiscentas   emrelação a  cada membro,  e  que cada parte,   fosseexterna, fosse interna, tinha uma infinidade, quelhe era própria.

— Para curar todos esses males — acrescentei —tínhamos Yahus que   se   consagravam unicamenteao   estudo  do   corpo  humano,   e   que  pretendiam,com remédios eficazes, extirpar as nossas doenças,lutar   contra   a   própria   natureza   e   prolongar   asnossas vidas.

Como se tratava da minha profissão, expliquei comprazer a sua honra o método dos nossos médicos etodos os mistérios da medicina.

— Em primeiro lugar — continuei — é preciso suporque   todas   as   doenças   provêm   de   repleção,concluindo,   por   isso,   os  médicos,   sensatamente,que a evacuação é necessária, seja por baixo, sejapor cima. Para isso, fazem uma escolha de ervas,de minerais, de gomas, de óleos, de escamas, desais,   de   excrementos,   de   cascas   de   árvores,   deserpentes, de sapos, de rãs, de aranhas, de peixes,e de tudo isto nos fabricam um licor de um cheiroe  gosto  abomináveis,  que   faz  ânsias  ao  coração,horroriza e revolta todos os sentidos. É este licorque os nossos  médicos  nos mandam beber  paraproduzir   a   evacuação   por   cima,   que   se   chamavômito. Entretanto tiram do seu armazém outrasdrogas, que nos fazem tomar quer pelo orifício decima, quer pelo orifício de baixo, conforme a suafantasia; é, então, ou uma medicina que purga asentranhas   e   causa   horríveis   cólicas,   ou   é   umclister que lava e relaxa os intestinos. A natureza— dizem eles, muito engenhosamente — deu­nos oorifício superior e visível para ingerir, e o orifício

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inferior   e   secreto   para   expulsar;   ora,   a   doençamuda   a   disposição   natural   do   corpo;   é   preciso,pois,  que  o   remédio   faça  o  mesmo e  combata  anatureza, e para isso é necessário trocar o uso dosorifícios, isto é, ingerir pelo de baixo e evacuar pelode  cima.  Temos ainda outras  doenças  que  nadatêm de reais, senão a sua imaginação. Os que sãoatacados   por   esta   espécie   de   mal,   chamam­sedoentes   de   cisma.   Também   há   para   as   curarremédios   para   verdadeiras   doenças.   Geralmente,as fortes doenças de imaginação atacam as nossasfêmeas;   mas   nós   conhecemos   certos   específicosnaturais para as curar sem dor.

Certo dia,  meu amo dirigiu­me um cumprimentoque eu não merecia. Como lhe falasse das pessoasde   qualidade   de   Inglaterra,   disse­me   que   mejulgava   fidalgo,   porque   era   muito   mais   limpo   emais bem feito do que todos os Yahus que viviamno seu país, embora eu lhes fosse muito inferiorem força e agilidade; que isso provinha, decerto, daminha diferente maneira de viver e de que eu nãotinha  apenas  a   faculdade  de   falar,  mas  possuíaainda alguns lampejos de raciocínio que poderiamaperfeiçoar­se com a continuação das relações quetravasse com ele.

Ao   mesmo   tempo   fez­me   observar   que   entreos huyhnhnms se   notava   que   os   brancos   e   osalazões cinzentos não eram tão bem feitos como osbaios castanhos,  os  cinzentos ruços e  os  pretos;que aqueles não nasciam com os mesmos talentose as mesmas disposições que estes; que, por isso,ficavam toda a vida no estado de servidão, que lhesconvinha,   e  que  nenhum deles  pensava  em sairdessa situação para se elevar à de senhor, o que no

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país pareceria uma coisa enorme e monstruosa.

— Ê preciso — dizia ele — ficar na situação em quea   natureza   nos   faz   desabrochar;   é   ofendê­la,   érevoltar­se contra ela querer sair da situação emque nos deu o ser.  Quanto a si,  decerto nasceuconsoante é, porque tem de seu a nobreza, isto é: oseu bom espírito e a sua boa índole.

Agradeci a sua honra humildemente a boa opiniãoque   formava   a   meu   respeito,   mas   assegurei   aomesmo   tempo   que   a   minha   ascendência   eramodesta, pois descendia apenas de uma honestafamília, que me havia dado uma regular instrução.Disse­lhe que a nobreza entre nós nada tinha decomum   com   a   idéia   que   ele   concebera;   que   osnossos fidalgos eram educados desde a infância naociosidade e no  luxo; que,  logo que a  idade  lhespermitia,   esgotavam­se   com   fêmeas   devassas   ecorruptas,   contraindo   odiosas   doenças;   que,quando haviam exaurido toda a fortuna e se viamcompletamente arruinados, casavam, e com quem?Com uma  fêmea  de  baixo  nascimento,   feia,  malfeita, doente, mas rica; que semelhante casal nãodeixava   de   engendrar   filhos   mal   constituídos,amarfanhados,   escrofulosos,   disformes,   o   quecontinuava   até   à   terceira   geração,   salvo   se   ajudiciosa fêmea não remediasse isso, implorando oauxílio de algum amigo caridoso. Acrescentei que,entre   nós,   um   corpo   seco,   magro,   descarnado,fraco, doente, se tornara um sinal quase infalívelde nobreza: que mesmo uma compleição robusta eum aspecto de saúde iam tão mal a um homem dequalidade,  que  logo  se  concluía que era  filho  dealgum criado de casa, a quem a mãe fizera seusfavores,   principalmente   se   possuir   um   espírito

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elevado, justo e bem feito, e se não for nem rombo,nem afeminado, nem brutal, nem caprichoso, nemdevasso, nem ignorante.

CAPÍTULO VII

Paralelo entre os Yahus e os homens.

O leitor estará talvez escandalizado com os retratosfiéis  que tracei,  então,  da espécie  humana,  e  dasinceridade com que falei ante um soberbo animalque   formava   já   uma   tão   má   opinião   acercados Yahus; confesso, porém, ingenuamente, que ocarater dos huyhnhnms e as excelentes qualidadesdesses virtuosos quadrúpedes tinham feito uma talimpressão   sobre   o   meu   espírito,   que   não   podiacompará­los   a   nós   outros,   humanos,   semdesprezar   os   meus   semelhantes.   Este   desprezofez­me   vê­los   como   quase   indignos   de   todaconsideração.   Além   disso,   meu   amo   tinha   ainteligência   muito   penetrante   e   notava   todos   osdias na minha pessoa defeitos enormes, de que menão  percebera   e   que   olhava   simplesmente   comoligeiras   imperfeições.   As   suas   judiciosasobservações   inspiraram­me   um   espírito   crítico   emisantropo, e o amor que tinha pela verdade mefez  detestar  a  mentira  e   tirar   todo  o  disfarce   àsminhas narrativas.

Confessarei,   contudo,   ainda   outra   ingenuidade,um outro princípio da minha sinceridade. Quandopassei um ano entre oshuyhnhnms, senti por elestanta amizade,  respeito,  estima e veneração,  queresolvi então nunca mais pensar em voltar ao meu

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país, mas acabar os meus dias nesta feliz região,aonde   o   céu   me   conduziu   para   me   ensinar   acultivar a virtude. Por muito feliz me daria, se aminha resolução   tivesse  sido  eficaz!  Mas  o  azar,que sempre me perseguiu, não me permitiu que eugozasse dessa felicidade. Seja como for, agora queestou   em  Inglaterra,   sinto­me  bem contente   pornão   ter   dito   tudo   e   haver   ocultadoaoshuyhnhnms três   quartos   das   nossasextravagâncias e vícios; empalidecia até, de vez emquando, tanto quanto me era possível, os defeitosdos   meus   compatriotas.   Embora   os   revelasse,usava de restrições mentais e tentava dizer o falsosem mentir. Não era eu digno de desculpa nisto?Quem não é um pouco parcial, quando se trata daprópria pátria?

Relatei até aqui a súmula das conversas que tivecom meu amo, durante o tempo em que me honreide estar a seu serviço; mas, para evitar ser prolixo,passei em claro muitos outros assuntos.

Um   dia,   em   que   mandou   chamar­me   demadrugada e ordenou que me sentasse a algumadistância   dele   (honra   que   ainda   me   não   haviadado), falou assim:

— Passei pelo meu espírito tudo que me tem dito,quer a seu respeito, quer a respeito do seu país.Vejo   claramente   que   o   senhor   e   os   seuscompatriotas   têm uma centelha  de  espírito,   semque possa adivinhar como esse pequeno dom lhescoube em partilha;  mas vejo   também que o  usoque fazem dele é apenas para aumentar todos osseus defeitos naturais e para adquirir outros, que anatureza   lhes  não  deu.  É   certo  que  se  parecemcom os Yahus deste país pela configuração exterior

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e   que   só   lhes   falta,   para   serem   perfeitamenteiguais   a   eles,   força,   agilidade   e   garras   maiscompridas.   Mas,   pelo   lado   dos   costumes,   asemelhança é completa. Odeiam­se mortalmente eo motivo que encontramos para  isso é  que vêemreciprocamente   a   sua   fealdade   e   a   sua   odiosaconfiguração,   sem   que   nenhum   olhe   para   sipróprio. Como os senhores possuem um átomo deraciocínio e compreendem que a vista recíproca daimpertinente figura dos seus corpos era igualmenteuma coisa insuportável e que os tornaria odiososmutuamente, têm o bom senso de os encobrir porprudência   e   amor­próprio;   mas,   apesar   destaprecaução,  não se odeiam menos,  porque outrosassuntos   de   divergência,   que   reinam   entre   osnossos Yahus, também reinam entre os senhores.Se,   por   exemplo,   atiramos   carne   acinco Yahus, que  bastaria   para   saciar   cinqüenta,esses cinco animais, gulosos e vorazes, em vez decomerem em paz o que se lhes dá em abundância,lançam­se   uns   contra   os   outros,   mordem­se,dilaceram­se   e   todos   querem   tudo   para   si,   demaneira que temos de os servir à parte e mesmoprender os que  já  estão saciados,  com receio  deque se  lancem sobre os outros, que ainda não oestão.   Se   alguma   vaca   da   vizinhança   morre   develhice ou de acidente, os nossos Yahus mal sabemda   agradável   notícia,   entram   todos   em   campo,rebanho  contra   rebanho,   curral   contra   curral,   aver   qual   se   apossará   da   vaca.   Batem­se,arranham­se, dilaceram­se, até que a vitória pendapara um lado e, se não há morticínio, é porque nãotêm   o   raciocínio   dos Yahus da   Europa   parainventar máquinas de carnificina e outras espéciesde armas assassinas. Temos, em alguns pontos daregião, certas pedras brilhantes de diversas cores,

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que os nossos Yahus muito apreciam. Quando asencontram, fazem o possível para as desenterrar deonde   estão   ordinariamente   metidas;   trazem­naspara as suas habitações e fazem delas um montão,que   ocultam   cuidadosamente   e   que   vigiam   semdescanso como um tesouro, tomando cuidado emque   os   companheiros   não   o   descubram.   Nãopudemos ainda compreender de onde lhes provémtão forte tendência para estas pedras brilhantes epara que lhes podem ser úteis; mas suponho agoraque essa avareza dos seus Yahus, a que aludiu, seencontra também nos nossos, e que é isso que ostorna apaixonados pelas pedras brilhantes.

Quis uma vez tirar a um dos nossos Yahus o seuquerido tesouro; o animal, vendo que lhe tinhamarrebatado o objeto da sua paixão, desatou a gritarcom   todas   as   forças   dos   seus   pulmões;enfureceu­se   e   depois   caiu   em  grande   fraqueza;tornou­se lânguido, não comeu, não dormiu, nãotrabalhou até que eu desse ordem a um dos meuscriados para lhe restituir o tesouro, colocando­o nosítio de onde o havia tirado. Então o Yahu começoua voltar ao seu habitual bom humor e nunca maisdeixou   de   esconder   os   seus   tesouros   em   outroponto   mais   seguro.   Quando   um Yahu descobre,num   campo,   uma   dessas   pedras,   muitas   vezesaparece  um outro  que   lha  disputa;   enquanto  seagridem,   vem   um   terceiro   e   arrebata   a   pedra;assim finda a questão. Segundo o que me disse, assuas  questões  não  acabam tão  depressa  no  seupaís,  nem com tão pouca despesa. Aqui,  os doispleiteantes   (se   esse   nome   se   lhes   pode   aplicar)ficam quites por nem um nem outro ficar com oobjeto disputado; em contrário do que acontece noseu país,  onde,  pleiteando­se,  se  perde o que se

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quer   ter   e   o   que   não   se   tem.   Muitas   vezes   osnossos Yahus são atacados por uma fantasia, cujacausa   não   podemos   perceber.   Gordos,   bemalimentados,  dormindo em boas  camas,   tratadoscom meiguice pelos donos, cheios de saúde e deforça,   caem   de   repente   num   abatimento,   numdesgosto,   numa   negra   melancolia,   que   os   tornamoles e estúpidos. Neste estado,  fogem dos seuscompanheiros,   não   comem,   não   saem;   parecemsonhar   com   o   canto   das   suas   habitações   eabismar­se nos seus lúgubres pensamentos. Paraos  curar  dessa doença,  encontrámos apenas umremédio:   é   despertá­los   por   um   tratamento   umpouco rude e empregá­los em trabalhos difíceis. Aocupação que lhes damos põe em movimento todoo   seu   espírito   e   faz   readquirir   a   sua   naturalvivacidade.

Quando   meu   amo   me   narrou   este   fato   compormenores,  não pude deixar  de  pensar  no meupaís, em que muitas vezes acontece a mesma coisae em que se vêem homens cumulados de bens ehonras, cheios de saúde e de robustez, cercados deprazeres e livres de todas as inquietações, cair derepente em tristeza e languidez, tornar­se pesadosa si próprios, consumir­se em quiméricas reflexões,apoquentar­se,   acabrunhar­se   e   não   fazer   usoalgum   da   sua   razão,   entregues   aos   flatoshipocondríacos.   Estou   persuadido   de   que   oremédio que convém a estas doenças é aquele quese dá aos Yahus, e que uma vida laboriosa e árduaé   um   excelente   regime   para   a   tristeza   e   amelancolia.   É   um   remédio   que   eu   próprioexperimentei   e   aconselho   ao   leitor   amigo   paraprevenir   o   mal,   incito­o   a   nunca   ser   ocioso;   e,posto   que   não   tenha   situação   alguma   definida,

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peço­lhe que observe que há diferença entre nadafazer e nada ter que fazer.

— Os nossos Yahus — prosseguiu meu amo — têmuma violenta paixão por certa raiz que dá  muitosumo.   Buscam­na   com   entusiasmo   e   sugam­nacom extremo prazer e sem se cansar. Então se osvê  ora a acariciar­se,  ora a esgatanhar­se,  ora agritar   e   fazer   caretas,   ora   a   pairar,   dançar,deitar­se no chão, rolar e adormecer na lama. Asfêmeas   dos Yahus parecem   recear   e   fogem   àaproximação dos machos; não consentem que asacariciem abertamente à vista de outrem; a menorliberdade   em   público   fere­as,   revolta­as   epõem­nas zangadas; quando, porém, uma dessascastas   fêmeas   vê   passar   num   ponto   desviadoalgum Yahunovo e perfeito, oculta­se por detrás deuma árvore ou num silvado, mas de maneira queo Yahu possa vê­la ao passar e abordá­la. Logo elafoge,   mas   olhando   muitas   vezes   para   trás,   econduz   tão   bem   o   seu   manejo   que   oapaixonado Yahu, que a persegue, atinge­a por fimnum local favorável ao mistério e aos seus desejos.Aí,  doravante  ela  aguardará  o  seu novo amante,que não deixará de comparecer à entrevista, salvose alguma aventura idêntica se apresenta no seucaminho   e   lhe   faz   esquecer   a   primeira.   Mas   afêmea   é   a   própria   que   falha   algumas   vezes;   amudança agrada aos dois sexos e a diversidade étanto do gosto de um como do outro. O prazer deuma   fêmea   consiste   em   ver   os   machos   cair,morder­se,   arranhar­se,   dilacerar­se   por   suacausa; excita­os ao combate e torna­se o prêmio dovencedor, ao qual se entrega para o agatanhar emseguida   ou   para   se   deixar   agatanhar   por   elepróprio,  e  é  assim que  findam todos os  amores.

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Amam  loucamente   os   filhos;   os  machos,   que   sejulgam os pais,  querem­nos, ainda que  lhes sejaimpossível assegurar­se de que tenham concorridoem parte para o seu nascimento.

Esperava   que   sua   honra   me   fosse   dizer   maisalguma   coisa   com   respeito   aos   costumesdos Yahus e   que   nada   lhe   escaparia   dos   seusvícios.  Corava de  antemão  pela  honra  da minhaespécie   e   temi   que  me   fosse  descrever   todos   osgêneros   de   impudência   que   reinam   entreos Yahus do seu país; teria sido terrível a imagemdas   nossas   devassidões   em   moda,   em   que   anatureza não basta para os nossos desenfreadosdesejos, em que esta natureza se procura sem seencontrar,   e   em   que   inventamos   prazeresdesconhecidos   aos   outros   animais,   vício   odiosopara  o  qual  só  os Yahus têm tendência,   e  que  oraciocínio não pôde banir do nosso hemisfério.

CAPÍTULO VIII

Filosofia e costumes dos huyhnhnms.

Algumas   vezes   solicitei   do   meu   amo   que   medeixasse ver os rebanhos dos Yahus da vizinhança,a fim de examinar­lhes pessoalmente as maneirase   propensões.   Consciente   da   aversão   que   lhestinha, não receou que a vista e o contato com elesme   corrompessem;   quis,   porém,   que   umcorpulento   alazão   tostado,   um  dos   seus   criadosfiéis   e  muito  manso,  me  acompanhasse,   receosoque me acontecesse algum acidente.

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Os Yahus olharam­me  como um semelhante   seu,principalmente   depois   de   me   haverem   visto   asmangas  arregaçadas,   com o  peito   e  braços  nus.Quiseram,   então,   aproximar­se   de   mim,   ecomeçaram a arremedar­me, pondo­se em pé naspatas traseiras,  levantando a cabeça e colocandouma   das   patas   na   ilharga.   A   vista   da   minhaconfiguração   fazia­os   soltar   gargalhadas.   Noentanto, testemunharam­me menos aversão e ódio,como fazem sempre os macacos selvagens à vistade um macaco aprisionado, que usa um chapéu,enverga uma roupa e anda de meias.

Com   eles   apenas   me   aconteceu   uma   aventura.Certo dia em que fazia muito calor e em que eu mebanhava,   uma   jovemYahu acercou­se   de   mim   edesatou   a   apertar­me   com   quanta   força   tinha.Soltei grandes gritos e supus que as suas garrasme   dilacerariam;   mas   apesar   da   fúria   que   aanimava e da raiva que lhe brilhava nos olhos, nãome   fez   a   menor   arranhadura.   O   alazão   acudiu,ameaçou­a e ela fugiu logo. Esta ridícula história,referida   depois   em   casa,   foi   motivo   de   grandegalhofa para meu amo e toda a família, enquantopara mim foi causa de vergonha e enleio. Não seise   devo   observar   que   esta Yahu tinha   cabelospretos e a pele mais cinzenta do que todas as quetinha visto.

Como   me   demorei   três   anos   naquela   região,decerto o leitor espera de mim, a exemplo de todosos outros viajantes, que faça uma narrativa amplados   habitantes   desse   país,   quero   dizer,dos huyhnhnms, e   que   exponhapormenorizadamente   os   seus   usos,   costumes,máximas e modos. É isso também o que vou fazer,

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mas em poucas palavras.

Como   os huyhnhnms, que   são   os   senhores   e   osanimais  dominantes  nesta  região,  nasceram comgrande   propensão   para   a   virtude   e   nem   sequerfazem a idéia do mal com relação a uma criaturaracional,   a   principal   máxima   é   cultivar   eaperfeiçoar o seu raciocínio e tomá­lo por guia emtodos os seus atos. Entre eles, a razão não produzproblemas como entre nós e não forma argumentosigualmente   verossímeis   pró   e   contra.   Ignoram   oque   seja   suscitar   dúvidas,   defender   sentimentosabsurdos   e   máximas   perniciosas   ou   indignas   afavor   da probabilidade. Tudo   o   que   eles   dizem,convence,   porque   não   afirmam   coisa   algumaobscura, duvidosa, desfigurada ou disfarçada pelasreflexões e pelo interesse. Recordo­me de que tivemuito trabalho em fazer compreender a meu amo oque   entendia   pela   palavra opinião, e   como   erapossível   que  nós  discutíssemos  algumas  vezes   eque raramente fôssemos do mesmo parecer.

— Não é imutável a razão? — perguntava ele — Averdade  não   é   uma   só?  Devemos   garantir   comocerto   o   que   é   duvidoso?   Devemos   negarpositivamente   o   que   não   vemos   claramente   quepode   ser?   Por   que   se   debatem   questões   que   aevidência não pode decidir,  sobre as quais,  fossequal   fosse   o   partido   que   tomassem,   sempreencontrariam   a   dúvida   e   a   incerteza?   Para   queservem  todas  essas  conjecturas   filosóficas,   todosesses   vãos   raciocínios   acerca   de   matériasincompreensíveis, todas essas indagações estéreise essas eternas discussões? Quem tem boa vistanão anda aos encontrões: com uma razão pura epenetrante  não   se   deve   contestar   e,   se   assim  o

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fazem, é porque é preciso que a sua razão estejacoberta de trevas ou que odeiem a verdade.

Era uma coisa admirável a sã filosofia deste cavalo;Sócrates nunca raciocinou com tanta sensatez. Seseguíssemos   estas   máximas,   haveria   certamentena  Europa  menos  erros  de  que  os  que  existem.Mas,   então,   em   que   se   tornariam   as   nossasbibliotecas?   Que   seria   feito   da   reputação   dosnossos sábios e do negócio dos nossos livreiros? Arepública das letras seria apenas a da razão e nasuniversidades só haveria aulas de bom senso.

Os huyhnhnms amam­se   reciprocamente,auxiliam­se,   amparam­se   e   consolam­semutuamente:  não se  invejam, não são ciosos dafelicidade   dos   vizinhos;   não   atentam   contra   aliberdade   e   a   vida   dos   seus   semelhantes:julgar­se­iam   infelizes,   se   algum  dia   o   fizessem;dizem, a exemplo de um antigo: Nihil caballorum ame alienum puto (2). Não maldizem uns dos outros;a   sátira   não   encontra   neles   nem   princípio   nemmeio; os superiores não oprimem os inferiores como peso  do  seu grau e  da  sua autoridade;  o  seumodo   de   proceder,   justo,   prudente   e   moderadonunca produz murmurações; a dependência é umlaço e não um jugo, e o poder, sempre submetidoàs leis da equidade, é respeitado sem ser temido.

Os seus casamentos são melhor regulados do queos   nossos.   Os   machos   escolhem   para   esposasfêmeas da sua cor. Um ruço­malhado casa semprecom   uma   ruça­malhada,   e   assimconsecutivamente.   Por   esta   razão   nunca   se   vêmudança,   revolta   ou   míngua   nas   famílias.   Osfilhos  são o  vivo   retrato  dos  pais;  as  armas e  otítulo   de   nobreza   consistem   na   conformação,

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estatura, cor e qualidades, que se perpetuam nadescendência, de maneira que não se vê um cavalomagnífico   e   soberbo  gerar  um sendeiro,  nem deuma   sendeira   nascer   um   bonito   cavalo,   comomuitas vezes acontece na Europa.

Entre esses animais não há desavenças caseiras. Aesposa é   fiel  ao marido,  e  o  marido paga­lhe namesma moeda.

Um e outro,  embora envelheçam, não esfriam assuas   relações,   quando   mais   não   seja   as   docoração;   apesar   de   permitidos,   o   divórcio   e   aseparação   nunca   foram   postos   em   prática;   osesposos são sempre amantes e as esposas semprequeridas;   eles  não   são   imperiosos,   elas  não   sãorebeldes e nunca pensam em recusar aquilo a queos   maridos   têm   direito   e   que   quase   sempre   seencontram em estado de exigir.

A castidade mútua é o fruto da razão e nunca doreceio, atenção ou preconceito. São castos e fiéis,porque, para conservar tanto a suavidade como aboa   ordem   da   vida,   assim   ê   preciso   e   oprometeram.   É   o   único   motivo   que   lhes   fazconsiderar   a   castidade   como  uma   virtude.  Alémdisso, têm na conta de um vício condenado pelanatureza a negligência de uma propagação legítimada   sua   espécie   e   aborrecem   tudo   quanto   podecausar   obstáculo   ou   demora   no   cumprimentodesse dever.

Educam   os   filhos   com   extraordinário   cuidado.Enquanto a mãe vela pelo corpo e pela saúde, o paiatende ao espírito e à razão. Reprimem­lhes tantoquanto possível os ímpetos e os ardores fogosos dajuventude   e   casam­nos   cedo,   em   conformidade

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com   os   conselhos   da   razão   e   os   desejos   danatureza.   Enquanto   esses   casamentos   não   serealizam, não consentem aos moços mais do queuma concubina,  que mora na mesma casa e  fazparte   do   número   de   criados,   mas   é   sempredespedida nas vésperas do casamento.

As fêmeas recebem pouco mais ou menos a mesmaeducação dos machos,  e   lembro­me de que meuamo   achava   desarrazoado   e   ridículo   o   nossocostume  sobre  esse  ponto.  Dizia  que  metade  danossa espécie só tinha talento para se multiplicar.

O mérito dos machos consiste principalmente naforça e na ligeireza, e o das fêmeas na meiguice ena docilidade. Se uma fêmea possui as qualidadesdo macho, procuram­lhe um marido que tenha asqualidades   da   fêmea;   nesse   caso   tudo   écompensado e acontece, como às vezes entre nós,que o marido é  a mulher e a mulher,  o marido.Assim,   os   filhos   gerados   por   estes   casais   nãodegeneram e perpetuam felizmente as qualidadesdos autores dos seus dias.

CAPÍTULO IX

Parlamento dos huyhnhnms — Questão importante ventilada nestaassembléia de toda a nação — Pormenores acerca de alguns usos do país.

Durante   a   minha   permanência   no   paísdos huyhnhnms, quase três meses antes da minhapartida,   houve   uma   assembléia   geral   da   nação,uma espécie de parlamento, em que meu amo seapresentou   como   deputado   do   seu   cantão.Trataram de um assunto que já  tinha sido posto

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cem vezes em discussão e que era o único assuntoque   nunca   fora   partilhado   pelos   espíritosdoshuyhnhnms. Meu amo, no regresso, referiu­metudo o que se passara a esse respeito.

Tratava­se   de   resolver   se   era   absolutamentenecessário acabar com a raça dos Yahus. Um dosmembros sustentava e apoiava a sua opinião comdiversas   provas   muito   fortes   e   muito   sólidas.Pretendia que o Yahu era o animal mais disforme emais   perigoso   que   a   natureza   até   então   tinhaproduzido;   que   era   igualmente   malicioso   einsubmisso   e   que   só   pensava   em   prejudicar   osoutros   animais.   Recordou   uma   antiga   tradiçãoespalhada pelo país, segundo a qual se asseguravaque   os Yahus não   tinham   existido   sempre,   mas,num certo século, haviam aparecido dois no alto deuma  montanha.  Ou  porque   fossem  formados  deum limo gordo ou glutinoso, aquecido pelos raiosdo sol, ou porque tivesse saído da vasa de qualquerpântano, ou porque a espuma do mar os  fizessedesabrochar,   o   caso   é   que   essesdois Yahus geraram muitos outros e a sua espéciese tinha multiplicado de tal  maneira,  que o paísestava   cheio   deles;   que,   para   prevenir   osinconvenientes   de   semelhante   procriação,os huyhnhnms tinham   outrora   ordenado   umacaçada geral aos Yahus; que fora apanhada grandeporção deles e que, depois de haverem destruídotodos os velhos, haviam conservado os mais novospara os aprisionar o mais que lhes fosse possívelcom   respeito   a   um   animal   tão   mau   e   que   oshaviam   destinado   a   serem   domesticados.Acrescentou que o que havia de mais certo nestalenda é que os Yahus não eramYlnhniam sky (istoé, aborígines).  Demonstrou  que   os  habitantes   da

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região   tinham   tido   a   imprudente   fantasia   de   seservir dosYahus em detrimento do uso dos burros,que   eram   excelentes   animais,   meigos,   pacíficos,dóceis,   submissos,   que   com   qualquer   coisa   sealimentavam,   infatigáveis,   e  que   tinham o   únicodefeito de possuir uma voz desagradável, emboramuito menos do que a maior parte dos Yahus.

Logo que os outros deputados tinham discursadodiversamente,   porém   com   muita   eloqüência,   arespeito do mesmo assunto, meu amo levantou­see apresentou uma judiciosa proposta, cuja idéia eulhe   inspirara.   A   princípio   confirmou   a   tradiçãopopular   pelo   seu   sufrágio   e   apoiou   o   quesabiamente tinha dito sobre esse ponto de históriao   honrado  membro   que  usara  da   palavra   antesdele.   Mas   acrescentou   que   esses   doisprimeiros Yahus, de que se tratava, tinham vindode   qualquer   país   de   além­mar,   e   haviamdesembarcado   e   sido   abandonados   pelos   seuscompanheiros;   que   primeiramente   se   tinhamretirado  para  as  montanhas  e  para  as   florestas;que, na continuação, a sua índole se alterara; quese   haviam   tornado   selvagens   e   ferozes   ecompletamente diferentes dos da boa espécie, quehabita   em   países   afastados.   Para   estabelecer   eapoiar solidamente esta proposta, disse que tinhaem sua casa, desde algum tempo, um Yahu muitoextraordinário,  de  quem certamente  os  membrosda   assembléia   tinham   ouvido   falar   e   que   atémuitos  o  haviam visto.  Contou,  então,  como meencontrara  a  princípio   e   como  o  meu  corpo   eracoberto de uma composição artificial de pêlos e depeles   de   animais;   disse   que   possuía   umalinguagem que me era própria e que, no entanto,aprendera perfeitamente a sua; que eu lhe referira

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o acidente que me trouxera a esta costa; que mevira   despido   e   nu,   e   observara   que   eu   era   umverdadeiro   e   perfeito Yahu se   não   fora   a   pelebranca ter pouco pêlo e garras curtas em demasia.

— Este Yahu estrangeiro — acrescentou — quis­mepersuadir de que, no seu país e em muitos outrosque   percorreu,   osYahus são   os   únicos   animaissenhores,   dominantes   e   racionais,   e   queos huyhnhnms vivem na escravidão e  na miséria.Tem certamente todas as qualidades exteriores dosnossos Yahus, mas é preciso confessar que é maisbem educado e tem alguma tintura de razão. Nãoraciocina   como   um huyhnhnm, mas   ao   menospossui conhecimentos e luzes muito superiores àsdos nossosYahus. Mas aqui está, senhores, o quevai  surpreendê­los  e  para  o  que  peço  a  máximaatenção; acreditá­lo­ão? Assegurou­me que, no seupaís,  os huyhnhnms eram feitos  eunucos desde amais tenra idade; que isto os fazia mais meigos edóceis, e que essa operação era feita muito bem esem perigo algum. Será a primeira vez, senhores,que os animais nos terão dado alguma lição e queteremos seguido o seu exemplo? A formiga não nosensinou  a   sermos   industriosos   e   previdentes?  Enão foi a andorinha que nos deu as primeiras luzesde arquitetura? Concluo, pois, que pode muito bemser   introduzido  no  nosso  país,   com respeito  aosjovens Yahus, o uso da castração. A vantagem quedaí   resultará   é   que   os Yahus, assim   mutilados,serão mais meigos, mais submissos, mais tratáveise,  por esse  meio,  destruiremos a pouco e  poucoessa maldita raça. Sou mesmo de opinião que seexortem todos os huyhnhnms a educar com grandecuidado   os   burricos   que   são,   na   verdade,preferíveis   aos Yahus a   todos   os   respeitos,

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principalmente   os   que   são   capazes  de   trabalharcom a idade de cinco anos, enquanto os Yahus denada são capazes, até aos doze.

Foi   isto   o   que   meu   amo   referiu   acerca   dasdeliberações do parlamento. Não me disse, porém,uma   outra   particularidade   que   me   interessavapessoalmente e de que cedo principiei a conheceros   funestos   efeitos;   é   esta   a   principal   época  daminha   vida   infortunada!   Mas,   antes   de   explicareste assunto, preciso ainda dizer alguma coisa docarácter e usos dos huyhnhnms.

Os huyhnhnms não têm livros; não sabem ler nemescrever   e,   por   conseguinte,   toda   a   sua   ciênciaconsiste  na  tradição.  Como este  povo  é  pacífico,unido,   prudente,   virtuoso,   muito   razoável   e   nãotem  comércio   algum com os  povos   estrangeiros,são raríssimos os grandes acontecimentos no seupaís,   e   todos   os   traços   da   sua   história,   quemerecem   ser   conhecidos,   podem  muito   bem   serconservados na memória que não a sobrecarregam.

Não têm doenças nem médicos. Confesso que nãoposso resolver se o defeito dos médicos provém dodefeito das doenças, ou se o defeito das doençasprovém dos defeitos dos médicos; isto, porém, nãoquer  dizer  que,  de   vez   em quando,  não   tenhamalgumas  indisposições;  mas  sabem curá­las  comfacilidade pelo perfeito conhecimento que têm dasplantas   e   das   ervas   medicinais,   visto   comoestudam   incessantemente   a   botânica   nos   seuspasseios   e   muitas   vezes   mesmo   durante   asrefeições.

A sua poesia é  muitíssimo bela e principalmentemuito   harmoniosa.   Não   consiste   numa   pieguice

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familiar   e   baixa,   nem   numa   linguagem   afetada,nem   num   precioso   calão,   nem   em   pontosepigramáticos,  nem em subtilezas obscuras, nemem   antíteses   pueris,   nem   nas agudezas dosespanhóis, nem nos concetti dos italianos, nem nasfiguras exageradas dos orientais. A agradabilidadee   a   justeza   das   comparações,   a   riqueza   e   aexatidão das descrições,  a  ligação e a vivacidadedas   imagens  formam a essência  e  o  carácter  dasua poesia.  Meu amo recitava­me algumas vezestrechos admiráveis dos melhores poemas. Era umencanto!   Persuadia­me   de   que   estava   ouvindoHomero, Virgílio ou Milton!

Quando um huyhnhnm morre  isto não aflige nemalegra ninguém. Os parentes mais chegados e osmelhores   amigos   olham   para   o   seu   falecimentocom   olhos   enxutos   e   indiferentes.   O   própriomoribundo   não   demonstra   o   menor   pesar   pordeixar   o   mundo;   parece   terminar   uma   visita   edespedir­se   de   uma   sociedade   com   quem   seentreteve  muito   tempo.  Recordo­me  de  que  meuamo,   tendo   convidado   certo   dia   um   dos   seusamigos   e   respectiva   família   para   tratar   com   eledeterminado assunto  importante,  combinaram departe   a   parte   o   dia   e   a   hora.   Ficámos   muitosurpreendidos   de   não   os   ver   chegar   à   horamarcada.   Por   fim,   apareceu   a   mulher,acompanhada de dois filhos, mas um pouco maistarde,   e   disse   ao   entrar   que   a   desculpassem,porque   o   marido   morrera   essa   manhã   de   umdesastre inesperado. No entanto, não se serviu dapalavra morrer, pois   semelhante   termo   éconsiderado   como   expressão   descortês,   masda snuuwnh, que literalmente significava ir ter coma avó! Durante todo o tempo que se demorou na

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casa,   esteve   muito   alegre,   e   daí   a   três   mesesmorreu também alegremente, após uma agradávelagonia.

A mor  parte  dos huyhnhnms vive  entre  setenta  esetenta e cinco anos, e poucos atingem os oitenta.Algumas   semanas   antes   de   morrer   pressentemvulgarmente o seu fim e não ficam aterrados. Porentão recebem as visitas e os cumprimentos dosamigos,   que   vêm   desejar­lhes   uma   feliz   viagem.Dez dias antes do passamento, o futuro morto, quequase   nunca   se   engana   nos   seus   cálculos,   vaipagar as visitas que recebe, conduzido numa liteirapelos seus Yahus; é nessa ocasião que se despede,usando as tradicionais  formalidades, de todos osamigos e lhes diz o derradeiro adeus de cerimônia,como se deixasse uma região para passar o restoda sua vida em outra.

Não   quero   esquecer   de   registrar   aqui   queos Tiuyhnhnms não possuem na sua língua termopara   exprimir   o   que   é   mau,   e   servem­se   demetáforas   tiradas   das   disformidades   e   das   másqualidades   dos Yahus;   dessa   forma,   quandoquerem exprimir a falta de jeito de um criado, aculpa de algum dos filhos, uma topada, um tempochuvoso   e   outras   coisas   semelhantes,   dizem   onome   da   coisa   a   que   se   querem   referir,acrescentando­lhe apenas o epíteto de Yahu.

Por   exemplo:   para   manifestar   estas   coisas,dirão   : Hhhm­yahu;   whnaholm­yahu;inbhmnawhhma­yahu; e  para  significar  uma casamal construída dirão: unholmh­umrohlnw­yahu.

Se   algum  dos   meus   queridos   leitores   quiser   termais alguns conhecimentos com respeito aos usos

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e costumes doshuyhnhnms, é favor ter a bondadede esperar  que um grosso in  quarto, que preparosobre   este  assunto,   esteja   concluído.  Dentro   embreve, publicarei o prospecto anunciador e tenho acerteza de que os assinantes não ficarão logradosnas   suas   esperanças   e   nos   seus   direitos.Entretanto,   peço   ao   público   a   fineza   de   secontentar  com este   resumo e que me dê   licençapara   acabar   de   contar   o   resto   das   minhasaventuras.

CAPÍTULO X

Felicidade do autor no país dos huyhnhnms — Os agradáveis prazeres quesaboreia com as conversas entabuladas com eles — Modo de vida que leva

naquela região — É banido desse país por ordem do parlamento.

Fui sempre amigo da ordem e da economia, e, emqualquer situação em que me encontrasse, arranjeisempre   de   modo   a   regularizar   e   a   industriar   aminha maneira de viver. Meu amo, porém, marcaraterreno para minha moradia quase a seis passosda   casa,   e   essa   moradia,   que   era   uma   cabanaconforme o uso do país e muito parecida com ados Yahus, não   era   agradável   nem   cômoda.   Fuibuscar   barro   com   que   fiz   quatro   paredes   e  umsobrado e,  com um junco,   fabriquei  uma esteiracom a  qual   cobri   a  moradia.  Apanhei   cânhamo,que crescia à vontade pelo campo. Limpei­o, fiei­o edo fio manufaturei uma espécie de pano, que enchide penas de aves, para arranjar uma cama macia,onde dormisse à  vontade. Com a minha faca e oauxílio   do   alazão   fiz   uma   cadeira   e   uma   mesa.Quando   minha   roupa   ficou   completamente

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esfarrapada, engendrei outra de peles de coelho aque   juntei   as   de   certos   animaischamados nnuhnoh, que são muito bonitos e quasedo mesmo tamanho, e cuja pele é coberta de umfiníssimo   pêlo.   Com   esta   pele   arranjei   tambémexcelentes   meias.   Talhei   para   solas   dos   sapatospedaços de madeira muito adelgaçados e substituío cabedal por pele de Yahu. Quanto à comida, alémda que acima aludi, apanhava algumas vezes meldos troncos das árvores e comia­o com o meu pãode   aveia.  Ninguém experimentou   tanto   como   euque  a  natureza  com pouco  se   contenta  e  que  anecessidade é mãe do engenho.

Gozei de uma saúde perfeita e de um sossego deespírito   inalterável.   Não   me   via   exposto   nem   àinconstância   e   traição   dos   amigos,   nem   àsinvisíveis ciladas ocultas dos inimigos. Não tinhatentações para vir vergonhosamente fazer corte aum fidalgo ou à amante, para me conceder honrada sua proteção e  da sua benevolência.  Não eraobrigado   a   precaver­me   contra   a   fraude   e   aopressão;   não   tinha   aí   espião   ou   denunciantepago,   nem lord­mayor crédulo,   político   estouvadoou malfazejo.  Aí  não receava  ter  a  minha honramenoscabada por absurdas acusações, e a minhaliberdade   vergonhosamente   roubada   porconspirações   indignas   nem   ordens   de   prisãosacadas  por  alicantinas.  Naquele  país  não  haviamédicos para me envenenarem, procuradores parame arruinarem, nem autores para me aborrecerem.Não me via rodeado de trocistas, de gracejadores,de   maldizentes,   de   críticos,   de   caluniadores,   deratoneiros, de espíritos fracos, de hipocondríacos,de   tagarelas,   de   caturras,   de   facciosos,   desedutores, de falsos sábios.

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Não   havia   por   lá   mercadores   fraudulentos,peralvilhos,   loquazes,   desenxabidos,   delicados,namoradores  adamados,  presumidos,  espadas dearrasto, bêbados, invertidos e pedantes.

Os  meus ouvidos  não  tinham sido enxovalhadospor conversas licenciosas e ímpias; os meus olhosnão  eram  impressionados  nem pela  presença  deum   maroto   rico   e   educado   nem   pela   de   umhonrado homem abandonado tanto à  sua virtudecomo ao seu mau destino.

Tinha a honra de me entender muita vez com ossenhores huylmlinms, que visitavam meu amo, queconsentia que eu, de vez em quando, entrasse nasala para me aproveitar da sua conversa. Aquelasociedade dirigia­me às vezes algumas perguntas,às   quais   eu   tinha   a   honra   de   responder.Acompanhava também meu amo nas suas visitas,mas permanecia sempre em silêncio, salvo se meinterrogavam.   Fazia   de   personagem  auditor   cominfinito   prazer:   tudo   o   que   ouvia   era   útil   eagradável e sempre expresso em poucas palavras,porém   com   graça;   o   melhor   bem­estar   eraobservado sem cerimônia; cada um dizia o que lhepodia agradar. Nunca se interrompiam, nunca sedavam   a   longas   e   fastidiosas   narrativas,   nuncahavia discussões, nunca se chicanava.

Tinham por máxima que, numa sociedade, é bomque o silêncio reine de vez em quando, e parece­meque tinham razão. Neste intervalo, e durante estaespécie de tréguas, o espírito fornece­se de idéiasnovas e a conversa torna­se depois mais animada eviva.  As conversas baseavam­se sempre sobre asvantagens e agrados da amizade, sobre os deveresda   justiça,   a   bondade,   a   ordem,   as   admiráveis

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obras   da   natureza,   as   antigas   tradições,   ascondições e limites da virtude, as invariáveis regrasdo raciocínio; algumas vezes sobre as deliberaçõesda próxima reunião do parlamento e muitas outrassobre o mérito dos seus poetas e as qualidades daboa poesia.

Posso dizer, sem vaidade, que eu próprio fornecia,algumas   vezes,   conversa,   isto   é,   dava   ensejo   afortes raciocínios;  porque meu amo narrava­lhes,de   vez   em   quando,   as   minhas   aventuras   e   ahistória do meu país, o que lhes fazia ter reflexõesmuito   pouco   vantajosas   para   a   raça   humana   eque,   por   essa   razão,   não   apontarei.   Observareiapenas que meu amo parecia conhecer melhor anatureza  dos Yahus que  vivem nas  outras  partesdo mundo que eu próprio  conhecia.  Descobria afonte   de   todos   os   nossos   desvairamentos,profundava   a   matéria   dos   nossos   vícios   e   dasnossas loucuras, e adivinhava uma infinidade decoisas   de   que   eu   nunca   falara.   Isto   não   deveparecer incrível, pois conhecia a fundo os Yahus doseu   país,   de   maneira   que,   supondo   neles   umpequeno grau de raciocínio, calculava o que seriamcapazes com esse acréscimo, e o seu cálculo erasempre justo.

Confessarei   aqui   ingenuamente   que   as   poucasluzes e filosofia que hoje possuo, apanhei­as nassábias lições desse caro amo e nas conversas detodos   esses   seus   judiciosos   amigos,   conversaspreferíveis  às doutas conferências das academiasde Inglaterra, Alemanha e Itália. Tinha por todosesses   personagens   uma   inclinação   mesclada   derespeito   e   temor,   e   sentia­me   penetrado   dereconhecimento   pela   bondade   que   tinham   para

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comigo, não me confundindo com os seus Yahus ede me crerem um pouco menos imperfeito do queos do meu país.

Quando me lembrava de minha família, dos meusamigos, dos meus compatriotas e de toda a raçahumana   em   geral,   representavam­se­me   todoscomo verdadeiros Yahus, pelo rosto e pelo carácter,contudo um pouco mais civilizados, com o dom dapalavra e um pequeno grau de raciocínio. Quandovi o meu rosto na água pura de um límpido regato,desviei­me imediatamente, não podendo suportar avista de um animal que me parecia tão disformecomo   um Yahu. Os   meus   olhos,   costumados   ànobre  figura dos huyhnhnms, só  neles encontravabeleza animal. À força de os contemplar e de lhesfalar,   tomara um pouco das  suas conveniências,dos   seus   gestos,   das   suas   atitudes,   dos   seuspassos e hoje,  que estou na  Inglaterra,  os meusamigos dizem­me, algumas vezes, que troto comoum   cavalo.   Quando   falo   ou   rio   parece­lhes   querincho.   Vejo­me   todos   os   dias   assediado   a   esterespeito sem sentir o menor desgosto.

Nesta   feliz   situação,   enquanto   saboreava   asdoçuras   de   um   perfeito   repouso,   em   que   mejulgava tranqüilo para todo o resto da minha vida,e que o meu estado era o mais agradável e o maisdigno   de   inveja,   um   dia   meu   amo   mandou­mechamar mais cedo do que era costume. Quando meencontrei junto dele, reparei em que estava muitosério, com ar inquieto e perturbado, querendo falare   não   podendo   abrir   a   boca.   Depois   de   algumtempo de silêncio dirigiu­me estas palavras:

— Não sei como hei­de principar, meu querido filho,o que tenho a dizer­lhe. Ficará  ciente de que na

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última assembléia do parlamento, na ocasião emque foi posto em discussão o caso dos Yahus, umdeputado   representou   à   assembléia   que   eraindigno e vergonhoso para mim desse guarida emminha casa a um Yahu, a quem eu tratava como aum huyhnhnm; que me havia visto conversar comele e sentir prazer em ouvi­lo, como se fosse umsemelhante meu; que era um processo contrário àrazão e à natureza e que nunca se ouviu falar deuma   coisa   semelhante.   Sobre   este   ponto,   aassembléia exortou­me a   fazer,   de   duas   coisas,uma:   ou   juntá­lo   aos   outros Yahus, que   vãomutilar num dia destes, ou a fazê­lo partir para opaís de onde veio. A maioria dos membros que oconhece  e  que  o   viu  em minha  casa,   rejeitou  aescolha   e   sustentou   que   era   muito   injusto   econtrário   à   benevolência   colocá­lo   entreos Yahus deste país, em vista de ter um começo deraciocínio   e  que   seria  mesmo para   lastimar  quelhes   comunicasse   algum   que   os   tornaria   pioresainda;   que   além   disso,   sendo   misturado   comos Yahus,, poderia   armar   uma   conspiração,sublevá­los, conduzir todos a uma floresta ou aocimo de uma montanha, em seguida pôr­se à testadeles e vir cair sobre todos oshuyhnhnms para osdestroçar e destruir. Esta opinião foi aprovada porunanimidade   de   votos   e,   enfim,   fui exortado afazê­lo  sair   o  mais  breve  possível.  Apresso­me  adar­lhe conta deste resultado e não posso adiá­lo.Aconselho­o, pois, a que se ponha a nado ou entãoconstrua   um   pequeno   objeto   semelhante   àqueleque   o   trouxe   a   estes   lugares   e   de   que   me   fezdescrição   e   que   volte   por   mar,   conforme   veio.Todos  os  criados  desta  casa  e  até   os  dos  meusvizinhos auxiliá­lo­ão nessa tarefa. Se fosse só por

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mim,   conservá­lo­ia   toda   a   vida   para   serviço,porque   tem   boas   inclinações,   se   se   corrigir   dealguns  defeitos   que  possui   e   também de  algunsmaus costumes, pois tem feito todo o possível parase   conformar,   tanto   quanto   a   sua   desgraçadanatureza era capaz, com a doshuyhnhnms.

Notarei,   de   passagem,   que   os   decretos   daassembléia   geral   da   nação   dos huyhnhnms seexprimem   sempre   pela   palavrahnhnloyn, quesignifica exortação. Não   podem   conceber   que   sepossa obrigar e constranger uma criatura racional,como se ela fosse capaz de desobedecer à razão.

Este   discurso   caiu­me   aos   pés   como   um   raio;fiquei   logo  em grande prostração e  desespero:  e,não podendo resistir à impressão da dor, desmaieijunto do meu amo, que me julgou morto.

Quando recuperei um pouco os sentidos, disse­lhecom   voz   fraca   e   ar   tristonho   que,   embora   nãopudesse   insurgir­me   contra   a exortação daassembléia geral, nem contra a solicitude de todosos seus amigos,  que o apressavam a afastar­me,parecia­me,   contudo,   segundo   o   meu   fracoentender, que poderiam deliberar contra mim umcastigo rigoroso; que me era impossível pôr­me anado,  pois  o  mais  que  poderia  nadar  seria  umalégua   e   que,   no   entanto,   a   terra   mais   próximaficava   talvez   afastada   cem   léguas;   que,   comrespeito   à   construção   de   um   barco,   nuncaencontraria  no  país  o  que   seria  necessário  parasemelhante   trabalho;   que,   contudo,   queriaobedecer, apesar da impossibilidade de fazer o quese me aconselhava e me dizia respeito como umacriatura que está para morrer; que a presença damorte não me aterrorizava e que a esperava como o

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menor  dos  males  de  que  estava  ameaçado;  que,posto que pudesse atravessar os mares e voltar aomeu   país   por   qualquer   aventura   extraordinária,teria   então   a   desgraça   de   me   encontrar   comos Yahus, com os quais seria obrigado a passar oresto  da  minha   existência   e   cair,   em  breve,   emtodos os seus maus hábitos; que sabia bem que asrazões   que   haviam   levado   ossenhores huyhnhnms a essa resolução, eram muitofortes   para   que   lhes   pudesse   opor   as   de   umdesgraçado Yahu como   eu;   que,   nessaconformidade,   aceitava   o   cativante   oferecimentoque me fazia dos seus criados para me auxiliar aconstruir o barco; que lhe pedia apenas que tivessea bondade de me conceder certo prazo de temposuficiente para dedicar­me a uma tarefa tão difícil,que   era   destinada   à   conservação   da   minhamiserável existência; que, se algum dia chegasse àInglaterra,   trataria   de   me   tornar   útil   aos   meuscompatriotas, traçando­lhes o perfil e as virtudesdos   ilustres huyhnhnms e   apresentando­os   paraexemplo a todo o gênero humano.

Sua   honra   replicou­me   em   poucas   palavras,   edisse   que   me   concedia   dois   meses   para   aconstrução do barco e, ao mesmo tempo, ordenouao   alazão  meu   companheiro   (porque  me   é   lícitodar­lhe este nome na Inglaterra)  que seguisse asminhas instruções, porque dissera a meu amo quesó  ele me bastaria e eu sabia que me era muitoafeiçoado.

A primeira coisa que fiz foi ir com ele para o sítioda costa, onde aportara havia tempo. Subi a umouteiro e, estendendo a vista para todos os ladosna   solidão   dos   mares,   julguei   enxergar   para   o

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nordeste  uma  ilhota.  Com o  meu  telescópio  vi­anitidamente, e calculei que estivesse afastada cincoléguas. Quanto ao bom alazão, dissera apenas queera uma nuvem. Como nunca vira outra terra alémdaquela   em   que   nascera,   não   tinha   vista   capazpara distinguir no mar objetos afastados, como eu,que passara a vida sobre esse elemento. Foi paraesta   ilha   que   primeiramente   me   resolvi   dirigir,quando o meu barco estivesse pronto.

Voltei à casa com o meu companheiro, e, depois determos   conversado   um   pouco,   fomos   a   umafloresta, que estava um tanto longe, onde eu, comuma   faca,   e   ele,   com   uma   pedra   cortante,encabadas   com   muita   perfeição,   cortámos   amadeira necessária para o trabalho. A fim de nãoenfastiar   o   leitor   com   os   pormenores   da   minhatarefa,  basta  dizer  que,  dentro  de  seis  semanas,fizemos   uma   espécie   de   canoa,   à   maneira   dosíndios, mas muito mais larga, que cobri com pelesde Yahu, cosidas   com   fios   de   linho.   Manufatureiuma vela com peles idênticas, tendo escolhido paraisso   as   dos Yahus novos,   porque   as   dos   velhosteriam   sido   muito   duras   e   muito   espessas;forneci­me de quatro remos;  fiz provisão de umaporção  de   carne   cozida,  de   coelhos   e  aves,   comduas vasilhas, uma cheia de água e outra cheia deleite.   Fiz   a   experiência   da   minha   canoa   numgrande lago e corrigi todos os defeitos que lhe pudenotar,   tapando   todas   as   aberturas   com   sebode Yahu e  tentando pô­la  em estado de me  levarcom a  minha  pequena   carga.  Coloquei­a,   então,sobre   uma   pequena   carroça   e   fi­la   conduzir   àmargem por Yahus, sob as ordens do alazão e deum outro criado.

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Quando   tudo   estava   pronto   e   chegou   o   dia   daminha   partida,   despedi­me   de   meu   amo,   dasenhora sua esposa e de toda a família, tendo osolhos rasos de lágrimas e o coração trespassado dedor.   Sua   honra,   fosse   por   amizade,   fosse   porcuriosidade, quis ver­me na canoa e dirigiu­se paraa   costa   com   muitos   amigos   da   vizinhança.   Fuiobrigado a esperar mais de uma hora em virtudeda  maré;   então,  notando  que   o   vento   estava  defeição   para   me   levar   à   ilha,   fiz   as   últimasdespedidas   a  meu  amo.  Ajoelhei­me   a   seus  péspara   lhos  poder  beijar  e  ele  deu­me a  honra delevantar o pé dianteiro até a minha boca. Se relatoessa circunstância não é por vaidade; imito todosos viajantes, que não deixam de mencionar todasas   honras   extraordinárias   com   que   foramrecebidos.  Fiz uma profunda reverência a toda asociedade   e,   entrando   na   canoa,   afastei­me   dapraia.

CAPÍTULO XI

O autor é atingido por uma flecha que lhe dirige um selvagem — É tomado porportugueses que o conduzem a Lisboa, de onde passa para a Inglaterra.

Comecei esta desgraçada viagem a 15 de Fevereirono ano de 1715, pelas nove horas da manhã. Aindaque o vento fosse favorável, a princípio só me servidos remos; considerando, porém, que depressa mefatigaria   e   que   o   vento   poderia   mudar,arrisquei­me a içar a vela e, por esta forma, com oconcurso  da maré,   singrei  quase  pelo  espaço  dehora   e   meia.   Meu   amo,   com   todosos huyhnhnms da sua companhia, permaneceu na

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praia até me perder de vista e ouvi várias vezes omeu   amigo   alazão   gritar:Hnuy   illa   nyhamajah, que,   traduzido   em   vulgar,   significa: Tomacautela contigo, gentil Yahu.

O meu desejo era descobrir,  se pudesse,  algumailhota   deserta   e   desabitada,   onde   apenasencontrasse   com   que   me   alimentar   e   vestir.Passaria, em tal situação, uma vida mil vezes maisfeliz do que a de um primeiro ministro. Tinha umextremo   horror   em   regressar   à   Europa   e   serobrigado   a   viver   na   sociedade   e   sob   o   impériodos Yahus. Na   feliz   solidão   que   procurava,esperava passar docemente o resto dos meus dias,envolvido na minha filosofia, usufruindo os meuspensamentos,   não   tendo   outro   fim   além   dosoberano   bem­estar,   nem   outro   prazer   que   nãofosse   o   testemunho   da   minha   consciência,   semestar exposto ao contágio dos enormes vícios, queos huyhnhnms tinham   feito   entrever   na   minhadetestável espécie.

O leitor, decerto, se recorda de que lhe disse que atripulação do meu navio se revoltara contra mim eme   aprisionara   no   camarote;   que   permaneceranessa   situação   durante   muitas   semanas,   semsaber   onde   conduziam   o   meu   navio   e   que,   emsuma,   me   haviam   desembarcado   sem   me   dizeronde   me   encontrava.   Entretanto,   julguei   queestava   a   dez   graus   ao   sul   do   Cabo   da   BoaEsperança e quase a quarenta e cinco de latitudemeridional.   Inferi   de   algumas   conversas,   queouvira no navio, que tinham desejo de se dirigir aMadagascar.   Embora   isso   não   fosse   senão   umaconjectura,   não   deixei   de   tomar   a   resolução   desingrar   para   leste,   esperando   refrescar­me   ao

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sudoeste da Nova­Holanda, e daí dirigir­me a oestepara   algumas   das   ilhotas   que   ficam   nasproximidades.   O   vento   estava   diretamente   paraoeste,   e,  pelas   seis  horas  da   tarde,   calculei  queandara dezoito léguas para esse ponto.

Tendo, então, descoberto uma ilhota afastada maisde  légua e meia,  a  ela aportei  daí  a  pouco.  Nãopassava   de   um   verdadeiro   rochedo,   com   umapequena   baía   que   as   tempestades   aí   haviamformado.   Amarrei   a   canoa   neste   porto   e,   tendotrepado a um dos lados do rochedo, descobri paraleste uma terra,  que se estendia de norte  a sul.Passei a noite na minha canoa e, no dia seguinte,desatando a  remar de  madrugada e  com grandecoragem,   cheguei   às   sete   horas   a   um   sítio   daNova­Holanda,   que   fica   a   sudoeste.   Istoconfirmou­me uma opinião que tinha já há tempo:que   os   mapas­múndi   e   as   cartas   geográficascolocavam este país menos três graus para leste doque realmente está. Creio ter já, há muitos anos,comunicado   o   meu   pensamento   ao   meu   ilustreamigo, senhor Hermann Noll, e ter­lhe explicado asminhas razões; mas ele preferiu seguir a multidãodos autores.

Não   avistei   habitante   algum   no   sítio   ondedesembarcara e, como não tinha armas, não quisaventurar­me nesse país. Apanhei na praia algunsmariscos que não me atrevi a cozer, com receio deque o fogo me fizesse descobrir aos habitantes daregião. Durante os três dias que me demorei ocultonaquele local, só me alimentei de ostras e outrosmariscos,  a   fim de  poupar  as  minhas  provisões.Felizmente,   encontrei   um   pequeno   regato,   cujaágua era magnífica.

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Ao   quarto   dia,   aventurando­me   a   dar   algunspassos   nessa   região,   descobri   talvez   trintahabitantes,   numa   altura   que   ficava   a   unsquinhentos   passos   distante   de   mim.   Estavamtodos   nus,   homens,   mulheres   e   crianças,   eaqueciam­se em volta de uma fogueira. Um delesavistou­me   e   fez   sinal   aos   outros.   Então,destacaram­se   cinco   do   grupo   e   puseram­se   acaminho,   dirigindo­se   para   mim.   Logo   desatei   afugir para a praia, meti­me na canoa e remei comtoda a força. Os selvagens seguiram­me ao longoda   praia   e   arremessaram   uma   flecha   que   meatingiu o joelho esquerdo, onde me fez uma largaferida, de que ainda tenho cicatriz.  Receei  que odardo estivesse envenenado; assim, tendo remadofortemente,   pondo­me   fora   do   alcance   dosinimigos, tratei de espremer bem a ferida e depoisliguei o joelho conforme pude.

Estava seriamente embaraçado; não me atrevia avoltar   ao   sítio   onde   fora   atacado   e,   como   eraobrigado   a   tomar   o   rumo   norte,   tornava­se­mepreciso   remar   sempre,   porque   tinha   o   vento   denordeste. No momento em que lançava uma vistade olhos para todos os lados, a fim de descobriralguma coisa, reparei, ao nordeste, numa vela que,momento a momento, crescia a olhos vistos. Nãosabia se devia ou não caminhar para ela. Por fim, ohorror   que   concebera   por   toda   a   raçados Yahus fez­me   tomar   a   resolução   de   virar   debordo e remar para o sul, a fim de voltar a essamesma baía de onde saíra de manhã,  preferindoexpor­me   a   toda   a   casta   de   perigo   a   vivercom Yahus. Aproximei a canoa da praia o mais queme   foi   possível   e,   quanto   a   mim,   ocultei­me   aalguns passos, por trás de uma pequena rocha que

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estava perto do regato a que já me referi.

O   navio   avançou   quase   meia   légua   pela   baía   emandou o escaler com tonéis para se fornecer deágua.  Este   local  era conhecido e visitado muitasvezes pelos viajantes,  em virtude daquele  regato.Os   marinheiros,   ao   desembarcarem,   viramprimeiro   a   minha   canoa   e,   principiando   aexaminá­la,   sem   grande   trabalho   notaram   queaquele a quem pertencia não estava longe. Quatrodeles,   bem   armados,   procuraram   por   todos   oslados e por fim encontraram­me escondido com aface   voltada   para   o   chão   por   trás   da   rocha.   Aprincípio   ficaram   surpreendidos   com   o   meuaspecto, minha roupa de peles de coelho, os meussapatos   de   pau   e   as   minhas   meias   forradas.Presumiram logo que não era daquele país, ondetodos   os   habitantes   andavam   nus.   Um   delesordenou   que   me   levantasse   e   perguntou­me   emlíngua portuguesa quem eu era. Fiz­lhe um grandecumprimento e nessa mesma língua, que entendiaperfeitamente,   respondi   que   era   umpobre Yahu expulso do país dos huyhnhnms e quelhe   pedia   que   me   deixasse   passar.   Ficaramadmirados   de   me   ouvir   falar   a   sua   língua   ecalcularam,   pela   cor   do   meu   rosto,   que   eraeuropeu; não sabiam, porém, o que eu queria dizercom   as   palavras Yahu e Huyhnhnm;   e,   nãopuderam,   simultaneamente,   deixar  de   rir   com aminha acentuação, que se assemelhava ao relinchode cavalo.

Percebi, pelo seu aspecto, movimentos de tédio, eestava já na disposição de voltar­lhes as costas edirigir­me para a canoa, quando puseram as mãosem mim e me obrigaram a dizer­lhes qual a minha

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naturalidade,   de   onde   vinha   e   outras   perguntasidênticas. Respondi­lhes que nascera na Inglaterra,de onde partira havia quase cinco anos e que, porentão,  reinava a paz entre  aquele país e  o meu;que, assim, esperava que tivessem a bondade denão me tratar como inimigo, pois lhes não queriamal algum, e que era um pobre Yahu que buscavauma ilha deserta onde pudesse passar na solidão oresto da minha desafortunada existência.

Fiquei   a   princípio   surpreendido,   quando   mefalaram, e julguei ver um prodígio. Isto parecia­metão extraordinário, como se ouvisse falar um cãoou uma vaca na Inglaterra. Responderam­me comtoda a humanidade e delicadeza possíveis, que menão apoquentasse, e que estavam certos de que ocapitão quereria embarcar­me a bordo e levar­megrátis para Lisboa, de onde poderia passar para aInglaterra; que dois deles iriam naquele momentoter com o capitão para o informar do que tinhamvisto   e   receber  as  suas  ordens;  mas,  ao  mesmotempo, salvo se lhes desse a minha palavra de nãofugir, me ligariam. Disse­lhes que fizessem de mimtudo o que julgassem a propósito.

Tinham muita vontade de saber a minha vida e asminhas aventuras; mas dei­lhes poucas satisfaçõese todos concluíram que as minhas desgraças mehaviam   perturbado   o   espírito.   Ao   cabo   de   duashoras,   a   chalupa,   que   fora   levar   água   doce   aonavio,   voltou   com   ordem   de   me   conduzirimediatamente   a   bordo.   Prostrei­me   de   joelhospara pedir que me deixassem à vontade e que nãoquisessem tolher­me a liberdade, mas foi em vão;fui   ligado   e   metido   no   escaler,   e   nesse   estadoconduzido a bordo e ao camarote do capitão.

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Chamava­se Pedro Mendes e era um homem muitogeneroso e delicado. Pediu­me, em primeiro lugar,que lhe dissesse quem era e depois perguntou­mese queria comer ou beber. Garantiu­me que seriatratado como ele próprio e, enfim, disse­me coisastão obsequiosas, que fiquei admirado de encontrartanta bondade num Yahu. Tinha, no entanto, umaspecto   sombrio,   sorumbático   e   rígido,   e   sórespondi a todas as suas amabilidades que a bordoda minha canoa ainda tinha de comer. Ordenou,porém, que me servissem um frango e me fizessembeber   excelente   vinho;   e,   enquanto   se   esperava,mandou   arranjar   uma   boa   cama   num   quartomuito cômodo. Quando aí fui conduzido, não quisdespir­me, e deitei­me na cama conforme estava.Ao fim de meia hora, enquanto toda a tripulaçãoestava no jantar, fugi do quarto no desejo de melançar a nado, a fim de não ser obrigado a vivercom Yahus. Mas   fui   detido   por   um   dosmarinheiros,   e   o   capitão,   sendo   informado   daminha tentativa, ordenou que me encerrassem noquarto.

Depois do jantar, D. Pedro veio ter comigo e quissaber qual o motivo que me tinha levado a formara   empresa   de   um   homem   desesperado.Assegurou­me,   ao   mesmo   tempo,   que   só   tinhaempenho  em dar­me  prazer,   e   falou­me de  umaforma   tão   cativante   e  persuasiva   que   comecei   aolhá­lo como animal um pouco razoável. Referi­lhe,em poucas palavras, a história da minha viagem, ainsurreição da tripulação do navio de que eu era ocapitão, e a resolução que tinham tomado de medeixar sobre um ponto ignorado; declarei­lhe quepassara  três anos com os huyhnhnms,  que eramcavalos falantes e animais raciocinantes. O capitão

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tomou tudo isso por visões e mentiras, o que memelindrou em extremo. Disse­lhe que esquecera amentira   desde   que   deixara   os Yahus da   Europa;que nos huyhnhnms não se mentia, nem mesmo àscrianças   ou   criados;   que,   quanto   ao   mais,acreditaria o que lhe conviesse, mas estava prontoa responder  a   todas as  dificuldades  que poderiaopor e me orgulhava de lhe poder fazer conhecer averdade.

O   capitão,   homem sensato,   depois   de  me  haverdirigido outras perguntas,  e ter visto que tudo oque dizia era justo, e que todas as partes da minhahistória   se   relacionavam   umas   com   as   outras,começou   a   formar   melhor   opinião   da   minhasinceridade,   tanto   mais   que   me   confessou   quehavia   tempo   se   encontrara   com   um   marinheiroholandês   que   lhe   disse   que,   com   mais   cincocamaradas, havia desembarcado numa certa  ilhaou   continente   ao   sul   da   Nova­Holanda,   ondetinham tomado aguada; que haviam descortinadoum   cavalo   levando   diante   de   si   um   tropel   deanimais   perfeitamente   semelhantes   aos   que   lhedescrevera e a que eu dava o nome de Yahus commuitas   outras   particularidades,   que   disse   teresquecido,   e   de   que  não   se   dera   o   trabalho   deguardar de memória, tomando­as como mentiras.

Acrescentou que,  embora eu  fizesse  profissão  deter grande amor à  verdade, quis que lhe desse aminha palavra de honra de ficar com ele durantetoda a  viagem,  sem pensar  em atentar  contra  aminha   existência;   que,   em   caso   contrário,   meencerrariam   até   que   chegasse   a   Lisboa.Prometi­lhe o que exigisse de mim, mas protestei,ao   mesmo   tempo,   que   preferia   sofrer   os   mais

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desagradáveis tratos a consentir em voltar a vivercom os Yahus do meu país.

Nada   se   passou   de   notável   durante   a   nossaviagem.   Para   testemunhar   ao   capitão   quantoestava   sensibilizado   pelas   suas   bondades,conversava   com ele   algumas   vezes  por   gratidão,quando me pedia instantemente que lhe falasse, etentava,  então,  ocultar  a  minha misantropia  e  aminha   aversão   por   todo   o   gênero   humano.   Noentanto,   escaparam­me,   por   vezes,   alguns   ditossatíricos   e   mordentes,   que   escutava   comogentil­homem ou aos quais fingia não dar atenção.Passava, porém, a mor parte do tempo só e isoladono   meu   camarote,   e   não   queria   dar   palavra   atripulante algum. Tal era o estado do meu cérebro,que  a  minha   convivência   com os huyhnhnms meenchera de idéias sublimes e filosóficas. Sentia­medominado   por   uma   extraordinária   misantropia,semelhante   a   esses   espíritos   sombrios,   a   essesferozes   solitários,   a   esses   meditativos   censoresque,   sem   terem   freqüentado   os huyhnhnms, semelindram por   conhecer  a   fundo  o   carácter  doshomens e por possuir um soberano desprezo pelahumanidade.

O   capitão   pediu­me,   várias   vezes,   que   medespojasse das peles de coelho, e ofereceu­se parame emprestar tudo o que fosse necessário para mevestir  dos  pés  à   cabeça;  agradeci­lhe,  porém, osseus oferecimentos, sentindo horror em envolver omeu   corpo   com   o   que   tinha   sido   usado   porum Yahu. Consenti   apenas   em   que   meemprestasse   duas   camisas   brancas   que,   sendomuito   bem   lavadas,   não   me   podiam   sujar.Chegámos a Lisboa a 15 de Novembro de 1715. O

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capitão forçou­me então a vestir a sua roupa, paraevitar que a escumalha nos apupasse pelas ruas.Levou­me para sua casa e quis que permanecessecom   ele   durante   a   minha   estada   nessa   cidade.Pedi­lhe instantemente que me alojasse no quartoandar,   num  sítio   afastado,   onde   não   convivessecom pessoa alguma. Solicitei­lhe também o favorde  não  contar   fosse  a  quem  fosse  o  que  eu  lhenarrara   acerca   da   minha   permanêncianos huyhnhnms, porque, se a minha história fosseconhecida,   seria   em   breve   importunado   comvisitas, com uma infinidade de curiosos e, o queseria   pior,   talvez   lançado   às   fogueiras   pelaInquisição.

O   capitão,   que   não   era   casado,   só   tinha   trêscriados, um dos quais, o que me levava as refeiçõesao quarto, tinha boas maneiras comigo e pareciater   tão   bom   senso   para   um Yahu que   a   suacompanhia   não   me   desagradou,   e   conseguiu   demim   que,   de   vez   em   quando,   chegasse   a   umafresta para tomar ar; em seguida persuadiu­me adescer ao andar de baixo e a deitar­me num quartocuja   janela   dava   para   a   rua;   mas,   a   princípio,retirei tão depressa a cabeça quanto a deitara defora;   o   povo   feria­me   a   vista.   Contudo,   fui­mepaulatinamente   habituando.   Oito   dias   depoisfez­me descer para um andar mais baixo; por fim,triunfou   tão   bem   da   minha   fraqueza,   que   meconvidou a ir sentar­me à  porta para ver os quepassavam e,  em seguida,  acompanhá­lo  algumasvezes pela rua.

D. Pedro, a quem explicara a situação da minhafamília e dos meus negócios, disse­me, um dia, queera obrigado por honra e consciência a voltar ao

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meu país e ir viver em minha casa com a mulher eos   filhos.   Ao   mesmo   tempo   avisou­me   de   queestava no porto um navio pronto a fazer­se de velapara  a   Inglaterra  e  assegurou­me que   forneceriatudo quanto eu carecesse para a minha viagem.Aleguei vários motivos, que me desviavam de voltara viver no meu país e que me haviam feito tomar aresolução   de   buscar   uma   ilha   deserta,   ondepudesse   findar  os  meus dias.  Replicou que essailha, que eu desejava procurar, era uma quimera, eque encontraria homens em toda a parte; que, pelocontrário, quando estivesse em minha casa, seriaeu o dono e poderia permanecer solitário as vezesque me aprouvesse.

Por fim, rendi­me, não podendo fazer outra coisa;tinha­me,   então,   tornado   um   pouco   menosselvagem.   Deixei   Lisboa   em   24   de   Novembro,   eembarquei   num   navio   mercante.   D.   Pedroacompanhou­me até o porto e teve a amabilidadede me emprestar a soma de vinte libras esterlinas.Durante   a   viagem,   não   tive   convivência   com   ocapitão nem com os passageiros e pretextei umadoença para poder ficar sempre em meu camarote.A  5   de  Dezembro  de   1715   lançámos   ferros  nasDunas, quase às nove horas da manhã, e às cincoda   tarde   cheguei   a   Redriff   de   boa   saúde   erecolhi­me à casa. Minha mulher e toda a família,ao tornar a ver­me, testemunharam a sua surpresae a sua alegria;  como me haviam julgado morto,entregaram­se   a   transportes   que   não   possoexprimir.   Beijei   e   abracei   todos   friamente,   emvirtude da idéia do Yahu, que não me saíra aindado espírito, e por esse motivo não quis a princípiodormir com minha mulher.

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O   primeiro   dinheiro   que   tive   empreguei­o   emcomprar dois cavalos novos, para os quais mandeiconstruir  magnífica estrebaria,  que entreguei aoscuidados de um palafreneiro de primeira ordem, aquem  fiz  meu confidente  e   favorito.  O cheiro  deestrebaria encantava­me e passava aí quatro horaspor dia a conversar com os meus cavalos, o que mefazia recordar os virtuososhuyhnhnms.

No momento em que escrevo esta relação, há cincoanos que estou de volta da minha última viagem evivo retirado em casa. No primeiro ano, foi a custoque suportei a presença de minha mulher e a demeus   filhos,   e   quase   que   não   pude   comer   emcompanhia deles. As minhas idéias mudaram coma   continuação   e   hoje   sou   um   homem   comum,embora sempre um pouco misantropo.

CAPÍTULO XII

Invectivas do autor contra os viajantes que mentem nas relações — Justifica asua — O que pensa da conquista, que se quisesse fazer dos países que

descobriu.

Dei­lhe, meu querido leitor, uma história completadas minhas viagens durante o espaço de dezesseisanos   e   sete   meses;   e,   nessa   relação,   busqueimenos ser elegante e enfeitado do que verdadeiro esincero.   Talvez   tenha   na   conta   de   fábulas   ehistorietas tudo o que narrei e a que naturalmentenão   encontrou   verossemelhança;   porém   não   meapliquei   a   procurar   rodeios   sedutores   para   darforça às minhas narrativas e torná­las críveis. Seme   não   acredita,   queixe­se   da   sua   própriaincredulidade; quanto a mim, que não tenho gênio

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para ficções e possuo uma imaginação muito fria,relatei   os   fatos   com   tal   simplicidade   que   deviacurá­lo de todas as dúvidas.

É­nos dado a nós,  viajantes que vamos a paísesonde   quase   ninguém   vai,   fazer   descriçõessurpreendentes de quadrúpedes, de serpentes, deaves e de peixes extraordinários e raros. Mas queserve   isso?   O   principal   fim   de   um   viajante   quepublica a relação das suas viagens, não deve sertornar   os  homens  do   seu  país  melhores   e  maisprudentes e citar­lhes exemplos estrangeiros, sejapara bem, seja para mal, para os excitar a praticara  virtude  e  a   fugir  do  vício?  Foi   isso  o  que  mepropus   neste   trabalho   e   creio   que   me   devemagradecer.

De   todo   o   meu   coração   desejaria   que   fossedecretado por lei que, antes de qualquer viajantepublicar  a   relação das  suas viagens,   jurasse  empresença   do lord grã­chanceler   que   tudo   o   quemandasse imprimir,   fosse exatamente verdadeiro,ou, pelo menos, que assim o  julgasse.  O mundonão seria talvez enganado como é   todos os dias.Dou antecipadamente o meu voto para essa lei econsinto em que a minha obra só  seja  impressadepois de que ela vigore.

Na   minha   mocidade   percorri   grande   número   derelações com infinito  prazer;  mas,  desde que deiquase volta ao mundo,  e  vi  coisas com os meuspróprios olhos, perdi o gosto por essa espécie deliteratura; prefiro ler romances. Desconfio de que oleitor pensa como eu.

Os   meus   amigos,   julgando   que   a   relação   queescrevi das minhas viagens tinha um certo ar de

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verdade,   que   agradaria   ao   público,   fizeram­meceder aos seus conselhos e consenti na impressão.Sofri muitos desaires na minha vida, mas nuncative   tendência   para   mentir,   seguindo   assim   opreceito de Virgílio na Eneida.

Sei que não há muita honra em publicar narraçõesde viagens; que isto não demanda nem gênio nemciência e que basta possuir uma boa memória outer um diário exato; sei também que os fazedoresde relações se assemelham aos dicionaristas e são,no   fim   de   certo   tempo,   eclipsados,   como   queaniquilados   por   uma   multidão   de   escritoresposteriores,   que   repetem   tudo   o   que   os   outrosdisseram e  acrescentam coisas novas.  Talvez  meaconteça o  mesmo;  viajantes   irão  aos  países  emque estive, inquirirão das minhas descrições, farãocair o meu livro e esquecer,  talvez,  o que nuncaescrevi.   Veria   isso   como   uma   verdadeiramortificação,   se   escrevesse   para   a   glória;   como,porém, escrevo para utilidade do público, nenhumcuidado me dá  e  estou preparado para todas aseventualidades.

Desejaria bem que o meu livro tivesse uma críticasevera; porém que se poderia dizer de um viajanteque descreve países em que o nosso comércio nãotem   interesses   e   em   que   não   se   faz   referênciaalguma   às   nossas   manufaturas?   Escrevi   sempaixão, sem espírito de partido e sem querer ferirninguém; escrevi para um fim mais nobre, que é ainstrução geral do gênero humano; escrevi sem terem vista interesse algum ou vaidade, de maneiraque os observadores, os examinadores, os críticos,os   chicaneiros,   os   tímidos,   os   políticos   e   ospequenos   gênios   intrujões,   os   espíritos   mais

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difíceis e mais injustos nada terão que dizer­me enão encontrarão ensejo para exercer o seu odiosotalento.

Confesso que me fizeram compreender que deviaprimeiro,   como   bom   súdito   e   bom   inglês,apresentar   ao   secretário   de   Estado,   no   meuregresso, uma memória instrutiva concernente àsminhas   descobertas,   visto   como   todas   as   terrasque um súdito descobre, pertencem, de direito, àcoroa.   Entretanto   duvido   que   a   conquista   dospaíses de que se trata seja tão fácil  como a queFernando   Cortez   fez   outrora   de   uma   região   daAmérica, em que os espanhóis chacinaram tantospobres   índios  nus e  desarmados.  Primeiramente,no que diz respeito ao país de Lilipute, é claro quea sua conquista não é coisa que valha a pena, poisnão tiraríamos lucros que pagassem as despesasfeitas com uma esquadra e um exército. Perguntose   haverá   prudência   em   ir   atacar   osBrodbingnagnianos.  Seria  muito   interessante   verum exército  inglês  fazer ali  uma descida!  Ficariacontente,  se  fosse enviado a uma região onde setem sempre sobre a cabeça uma ilha aérea, prontaa   esmagar   os   rebeldes   e   com   razão   maior   osinimigos de fora que quisessem se apoderar desseimpério?   É   verdade   que   a   conquista   do   paísdos huyhnhnms parece   muito   acertada.   Essespovos ignoram o ofício da guerra; não sabem o quesão armas de fogo e armas brancas.

Contudo,  se eu  fosse ministro de Estado,  nuncaestaria  disposto  a   fazer  semelhante  conquista.  Asua   elevada   prudência   e   a   sua   perfeitaunanimidade são armas terríveis. Imagine­se, alémdisso,   cem   mil huyhnhnms lançando­se

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furiosamente   sobre   um   exército   europeu.   Quecarnificina   não   fariam   eles   com   os   dentes   e   dequantas   cabeças   e   estômagos   não   dariam   cabocom as suas patas traseiras?

Mas,   longe de pensar em conquistar  o seu país,queria antes que o convidassem a enviar alguns dasua nação  para  civilizar  a  nossa,   isto   é,  para  atornar virtuosa e mais sensata.

Uma outra razão evita que eu seja de parecer daconquista   dessa   região,   e   de   crer   que   venha   apropósito aumentar os domínios de Sua Majestadebritânica com as minhas felizes descobertas; esta éa verdade: a maneira por que se toma posse de umnovo   país   descoberto   causa­me   alguns   ligeirosescrúpulos.  Por exemplo:  um grupo de piratas  éimpelido   por   uma   tempestade   para   uma   regiãodesconhecida. Um marujo, do alto da gávea, avistaterra,   e   ei­los   logo   a   singrar   para   lá.   Aportam,desembarcam na praia, vêm um povo desarmadoque   os   acolhe   bem;   logo   dão   uma   novadenominação à terra e apossam­se dela em nomedo seu chefe. Erigem um monumento que atesta àposteridade esta bela ação. Em seguida, põem­se amatar duas a três dúzias desses pobres  índios etêm a bondade  de  poupar­lhes  outra  dúzia,  quemandam   para   as   suas   cabanas.   É   estepropriamente   o   ato   de   posse   que   o direitodivino começa a fundar.

Depois  se  mandam outros  navios  a  esse  mesmopaís para exterminar maior número dos naturais;submetem os chefes  à   tortura para os obrigar  aentregar os seus tesouros.

Confesso que o que aí   fica não respeita à  nação

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inglesa, que, na fundação das colônias, faz semprebrilhar   a   prudência   e   a   justiça   e   que,   sob   esteponto,  pode  servir  de  exemplo  a   toda a  Europa.Sabe­se qual  o nosso zelo para  fazer conhecer areligião   cristã   nos   países   modernamentedescobertos   e   felizmente   ocupados;   que,   para  aífazer   praticar   as   leis   do   cristianismo,   temos   ocuidado   de   mandar   pastores   muito   piedosos   emuito edificantes, homens de bons costumes e debom exemplo, mulheres e donzelas irrepreensíveise   de   uma   virtude   bem   demonstrada,   valentesoficiais,   juízes   íntegros   e,   principalmente,governadores de uma reconhecida probidade, quefazem consistir a sua felicidade na dos habitantesdo país, que não exercem tirania alguma, que nãotêm avareza,   ambição,   cupidez,  mas  unicamentemuito zelo pela glória e pelos interesses do rei seuamo.

De resto, que interesse teríamos nós em querer nosapoderar   dos   países   cuja   descrição   fiz?   Quevantagens tiraríamos do trabalho de acorrentar ematar os naturais? Nesses países não há minas deouro ou de prata, nem açúcar, nem tabaco.

Se,  no entanto,  a  corte   for  de parecer  contrário,declaro   que   estou   pronto   a   atestar,   quando   meinterrogarem   judicialmente,   que,   antes   de   mim,europeu   algum   pusera   os   pés   nestas   mesmasregiões;   tomo por   testemunhas os  naturais,  cujodepoimento deve fazer fé.  É  verdade que se podefazer chicana com relação a esses dois Yahus quecitei,   e   que,   conforme   à   tradiçãodos huyhnhnms,apareceram sobre uma montanhae  tornaram­se  desde  então  a  vergôntea de   todosos Yahus que   infestam essa   região.  Não  é  difícil,

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porém, provar que esses dois antigos Yahus eramoriundos   da   Inglaterra;   certos   traços   dos   seusdescendentes, certas tendências, certas maneiras ofazem   pressupor.   Quanto   ao   mais,   deixo   aosdoutores   em   matérias   de   colônias   discutir   esteassunto e  examinar  se  não se  funda num títuloclaro e incontestável pelo direito da Grã­Bretanha.

ÍNDICE DOS CAPÍTULOS

PRIMEIRA PARTE — Viagem a LiliputeCapítulo IO autor conta de modo sucinto os principais motivos que o levaram a viajar — Naufraga e salva­se a nado chegando ao país de Lilipute — Prendem­no e conduzem­no para o interior.Capítulo IIO imperador de Lilipute, acompanhado de muitos dos seus cortesãos, veio visitar o autor na sua prisão — Descrição da personalidade e do trajo de Sua Majestade — Sábios nomeados para ensinar o idioma do país ao autor — São­lhe concedidas algumas graças em virtude da sua conduta pacífica — As algibeiras são­lhe revistadas.Capítulo IIIO autor diverte o imperador e os grandes de um e de outro sexo de forma deveras extraordinária — Descrição das diversões da corte de Lilipute — O autor é posto em liberdade, mediante certas condições.Capítulo IVDescrição de Mildeno, capital de Lilipute, e do palácio do imperador — Conversa entre o autor e um secretário de Estado relativa aos negócios do 

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império — Oferecimento que o autor fez ao imperador de servir nas grandes guerras.Capítulo VO autor opõe­se ao desembarque dos inimigos, por meio de um extraordinário estratagema — O imperador concede­lhe um grande titulo honorífico— O imperador de Blefuscu envia embaixadores a solicitar a paz — Incendeiam­se os aposentos da imperatriz — O autor concorre muito para extinguir o incêndio.Capítulo VIOs costumes dos habitantes de Lilipute — Sua literatura — Suas leis e maneiras de educar os filhos.Capítulo VIIRecebendo o autor aviso que iam processá­lo pelo crime de lesa­majestade, foge para Blefuscu.Capítulo VIIIO autor, por um feliz acaso, encontra meio de deixar Blefuscu e após algumas dificuldades volta à sua pátria.

SEGUNDA PARTE — Viagem a BrobdingnagCapítulo IO autor, depois de haver suportado um grande temporal, embarca num escaler para se dirigir à terra e é agarrado por um dos seus naturais — Como foi tratado — Esboço sobre o país e o seu povo.Capítulo IIRetrato da filha do lavrador — O autor é levado a uma cidade onde havia uma feira, e, em seguida, àcapital — Pormenores da sua viagem.Capítulo IIIO autor é mandado para a corte; a rainha compra­o e o apresenta ao rei — Discute com os 

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sábios de Sua Majestade — Preparam­lhe um aposento — Torna­se favorito da rainha — Mantéma honra do seu país — As suas questões com o anão da rainha.Capítulo IVDiversas idéias do autor para agradar ao rei e à rainha — O rei informa­se acerca da Europa, de que o autor lhe faz um relatório — As observações do rei sobre este assunto.Capítulo VZelo do autor pela honra da sua pátria — Faz uma vantajosa proposta ao rei, que a rejeita — A literatura deste povo é imperfeita e limitada — As suas leis, os seus assuntos militares e os seus partidários de Estado.Capítulo VIO rei e a rainha fazem uma viagem à fronteira, onde o autor os acompanha — Pormenor da maneira por que saí desse país para regressar à Inglaterra.

TERCEIRA PARTE — Viagem a Lapúcia, aos Balnibarbos, a Luggnagg, a Glubbdudrib e ao JapãoCapítulo IO autor empreende terceira viagem — É aprisionado pelos piratas — Maldade de um holandês — Chega a Lapúcia.Capítulo IICarácter dos Lapucianos — Opinião a respeito dos seus sábios, do seu rei e da corte — Recepção que foi feita ao autor — Os receios e as inquietações dos habitantes — Carácter das mulheres lapucianas.Capítulo IIIFenômeno explicado pelos filósofos e astrônomos 

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modernos — Os Lapucianos são grandes astrônomos — De como o rei logra apaziguar as sedições.Capítulo IVO autor deixa a ilha de Lapúcia e é levado aos Balnibarbos — A sua chegada à capital — Descrição desta cidade e arredores — É recebido com bondade por um grão­senhor.Capítulo VO autor visita a academia e descreve­a.Capítulo VIContinua­se a descrição da academia.Capítulo VIIO autor deixa Lagado e chega a Maldonada — Faz uma pequena viagem a Glubbdudrib — Como é recebido pelo governador.Capítulo VIIIRegresso ao autor a Maldonada — Faz­se de vela para o reino de Luggnagg — É preso à sua chegadae levado à corte — Como é recebido.Capítulo IXDos struldbruggs ou imortais.Capítulo XO autor parte da ilha de Luggnagg para se dirigir ao Japão, onde embarca em um navio holandês — Chega a Amsterdam e daí passa para a Inglaterra.

QUARTA PARTE — Viagem ao país dos HuyhnhmnsCapítulo IO autor empreende ainda uma viagem na qualidade de capitão de navio — A sua tripulação insubordina­se, prende­o, acorrenta­o e põe­no emterra num ponto desconhecido — Descrição dos Yahus — Dois Huyhnhnms vêm ter com ele.Capítulo II

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O autor é levado à habitação de um huyhnhnm; como é recebido — Qual era o alimento dos huyhnhnms — Embaraços do autor para encontrarcom que se alimentar.Capítulo IIIO autor entrega­se ao estudo de aprender bem a, língua e o huyhnhnm, seu amo, aplica­se em ensinar­lha — Muitos huyhnhnms vêm, por curiosidade, visitar o autor — Faz a seu amo um sucinto relato das suas viagens.Capítulo IVIdéias dos huyhnhnms acerca da verdade e da mentira — As dissertações do autor são censuradas por seu amo.Capítulo VO autor expõe ao amo o que ordinariamente acende a guerra entre os príncipes da Europa; explica­lhe,, em seguida, como os particulares se guerreiam mutuamente — Retrato dos procuradores e juízes de Inglaterra.Capítulo VIDo luxo, da intemperança e das doenças que reinam na Europa — Condição da nobreza.Capítulo VIIParalelo entre os Yahus e os homensCapítulo VIIIFilosofia e costumes dos huyhnhnms.Capítulo IXParlamento dos huyhnhnms — Questão importante ventilada nesta assembléia de toda a nação — Pormenores acerca de alguns usos do país.Capítulo XFelicidade do autor no país dos huyhnhnms — Os agradáveis prazeres que saboreia com as conversasentabuladas com eles — Modo de vida que leva 

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naquela região — É banido desse país por ordem do parlamento.Capítulo XIO autor é atingido por uma flecha que lhe dirige um selvagem — É tomado por portugueses que o conduzem a Lisboa, de onde passa para a Inglaterra.Capítulo XIIInvectivas do autor contra os viajantes que mentem nas relações — Justifica a sua — O que pensa da conquista, que se quisesse fazer dos países que descobriu.

Notas

* — Digo quase porque, comparando o texto digitalizado com a edição do Project Gutenberg, verifiquei que trechos foram omitidos. O leitor que lê Inglês é incentivado a ler o original. Aliás, ler na língua em que a obra foi escrita é sempre melhor. [NE]** — Distrito dos advogados em Londres. No original: “Smithfield blazing with pyramids of law books”, portanto, aqui, refulgindo tem o sentido de “luzindo sob a luz de chamas” [NT](1) — Nem homem forte, nem mulher casta.(2) — Nada desconheço do que diz respeito a cavalos.

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