mariana villaca - engajamento politico cinema cubano

18
    !   "    #    $    %   &   '   )   )   *   +   '    ,   '   -   )   *    $   .   /   .    0    #    $    %   &   .   *   .   &    %   *   )   -   '   &   1    2   '   *   .   3   !   "   #   $    %    &   $   (    )    &   *    &    +   (   #    %   (    !   "   #    $   "   &    '   (   )    $   *   +   ,   -    $   *  ,$-&$.$ ,$-+&.# /&))$0$ Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor a da Facul- dade Teresa Martin, de São Paulo. Autora de Polifonia tropical: experimentalismo e engajamento na música popular (Brasil e Cuba, 1967-1972). São Paulo: Humanitas/ FFLCH-USP, 2004. [email protected]    !    "   #   $  %   '   #   (   '   #   $    )   $   *   +   ,    -    "   ,    .   $    /    0   $   ,   ,   $  1    4   '   5    $   '   &    %   )   "    $   .   /   1   *    $   .  1    2    3    4    5  1

Upload: marcos-arraes

Post on 01-Nov-2015

6 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Cinema Cubano

TRANSCRIPT

  • Cr

    tica

    e eng

    ajam

    ento

    polt

    ico

    no c

    inem

    a cu

    bano

    :ou

    sadi

    a e

    lim

    ites

    de

    Has

    ta c

    iert

    o p

    un

    to

    Mariana Martins VillaaDoutora em Histria Social pela Universidade de So Paulo (USP). Professora da Facul-dade Teresa Martin, de So Paulo. Autora de Polifonia tropical: experimentalismo eengajamento na msica popular (Brasil e Cuba, 1967-1972). So Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 2004. [email protected]

    Lin

    a, e

    ncen

    ada

    por M

    irta

    Ibar

    ra. H

    asta

    cier

    to p

    unto

    . 198

    3.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006226

    Crtica e engajamento poltico no cinema cubano:ousadia e limites de Hasta cierto punto

    Mariana Martins Villaa

    Si yo quisiera/ podra cortarle las alasy entonces sera ma/ pero no podra volary lo que yo amo es el pjaro1

    O Sonho de caro de um cineasta

    Toms Gutirrez Alea (1928-1996), o Titn, alm de ser consideradoo mais renomado cineasta cubano do perodo ps-revolucionrio, possuiuma produo ficcional muito diversificada, marcada pela ambigidadeideolgica, e cuja anlise nos permite entrever as principais transforma-

    R E S U M O

    O artigo analisa Hasta cierto punto

    (1983), do diretor Toms Gutirrez

    Alea, luz dos dilemas vividos pelos

    cineastas cubanos no contexto de acir-

    ramento da crise econmica em Cuba

    nos anos 80. Com o objetivo de propor

    uma reflexo sobre certos comporta-

    mentos e valores vigentes na socieda-

    de socialista, o filme aborda diversas

    questes como a ineficincia da econo-

    mia, o machismo, o papel do intelec-

    tual, o paternalismo governamental

    em relao aos trabalhadores e a ne-

    cessidade da conscincia revolucion-

    ria. Examinamos os limites e ousadi-

    as da inteno crtica latente nessa

    obra, as alteraes impostas pela dire-

    o do Instituto Cubano del Arte e

    Industria Cinematogrficos, bem como

    o sentido poltico ambguo presente na

    composio dos personagens, na fuso

    intencional de documentrio e fico

    e nas metforas construdas pela nar-

    rativa flmica.

    PALAVRAS-CHAVE: cinema cubano; po-

    ltica cultural; revoluo cubana.

    A B S T R A C T

    This article analyses Toms Gutirrez

    Aleas film Hasta cierto punto in the light

    of the dilemmas facing Cuban directors

    due to the economic crisis of the 1980s.

    With the aim of reflecting on the behaviour

    and values present in a socialist society

    the film raises several issues such as the

    inefficiency of the economy, machismo, the

    role of the intellectual, governmental

    paternalism towards workers, and the ne-

    cessity of a revolutionary conscience. I

    examine the boldness and the limitations

    of the critical approach of this film, the al-

    terations that were imposed by the Insti-

    tuto Cubano del Arte e Industria Cinema-

    togrficos (Cuban Institute of Art and

    Cinematography), as well as the politi-

    cally ambiguous attitudes of the films

    characters, the deliberate mixture of docu-

    mentary and fiction, and the metaphors

    created by the films narrative.

    KEYWORDS: Cuban cinema; cultural policy;

    Cuban revolution.

    1 Estrofe da cano basca Txo-ria Txori, interpretada pelacantora M. Labon, citada noscrditos iniciais do filme, queserviu de tema musical para atrilha sonora composta por LeoBrouwer e argumento para ofilme.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006 227

    his

    t

    ria

    & c

    ine

    maes polticas no pas, bem como os conflitos e negociaes que se estabe-

    leceram, em torno da poltica cultural, entre os cineastas e a direo doIcaic Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematogrficos, do qualAlea foi um dos fundadores.

    Ainda que no fosse comunista, sua atitude poltica desde semprefoi de apoio ao governo institudo aps a Revoluo (1959) e ao regimesocialista (1961), o que contribuiu para garantir-lhe lugar de destaque erecursos para a produo de seus filmes no Icaic. Como funcionrio doEstado posio sine qua non para a sobrevivncia de um cineasta aps1959 , Alea sustentou a condio paradoxal de intelectual crtico eengajado, problematizando os rumos tomados pelo socialismo cubano eexpondo os chamados erros da Revoluo atravs de metforas, alego-rias e narrativas em forma de parbola, ao longo de sua trajetria cinema-togrfica.

    Hasta cierto punto2, que abordamos neste trabalho sob a perspectivada anlise histrica, considerado por ele e por vrios pesquisadores decinema uma de suas realizaes cinematogrficas menos bem-sucedidas,o que no o impediu de se tornar alvo de algumas discusses e assuntorecorrente em entrevistas3. Aps uma sucesso de trs filmes de temticahistrica (Una pelea cubana contra los demnios, 1972; La ltima cena, 1977 eLos sobrevivientes, 1978), Alea buscou se reportar de maneira mais explcitaa questes contemporneas relativas ao papel do intelectual cubano, temaque abordara diretamente em Memrias del Subdesarrollo (1968), sem conse-guir atingir, entretanto, o aprofundamento alcanado naquela obra para-digmtica da cinematografia dos anos sessenta.

    Uma parte do assumido fracasso de Hasta cierto punto se deu em vir-tude de alteraes feitas no roteiro devido censura da direo do Ins-tituto, que vetou determinados personagens e conflitos. Procuramos, aqui,expor as razes para tais proibies e salientar o papel do filme comocrnica e representao do momento poltico e social que Cuba atravessa-va. Alm disso, buscamos adentrar os dilemas polticos vividos pelos inte-lectuais cubanos, focando o caso de Alea, dividido entre a atitude de crti-ca diante dos problemas do socialismo, a crena na validade do processorevolucionrio e a necessidade de atender s exigncia do governo paraque sua obra fosse produzida e divulgada.

    Partimos da premissa, anunciada por Marc Ferro, de que o cinema,em sua condio de obra de arte polissmica, mesmo estando sob osauspcios e formas de controle estatais, no expressa diretamente os pro-jetos ideolgicos que lhe do suporte, uma vez que todo filme possui umatenso prpria. Tambm consideramos, como destaca Eduardo Morettin,a importncia de que essa tenso seja considerada, no filme, como umdado intrnseco sua prpria estrutura interna, a fim de que possam seridentificados os pontos de adeso ou de rejeio existentes entre o proje-to ideolgico-esttico de um determinado grupo social e a sua formataoem imagem4. Na obra em questo, veremos que o conflito entre os perso-nagens masculinos e o desencontro de expectativas vivido pelo par ro-mntico nos oferecem, respectivamente, elementos para interpretarmosas discordncias do cineasta com o status quo (bem como seu grau deadeso ao projeto encampado pelo Icaic), e sua necessidade de reiterarvalores que alimentem sua f, abalada, no processo poltico desencadeadopela Revoluo cubana.

    2 Hasta cierto punto. Cuba, 1983.68, 35 mm, colorido. Estria: 23/02/1984. Direo: Toms Gu-tirrez Alea. Assistente de dire-o: Guillermo Torres. Roteiro:Juan Carlos Tabo, Serafn Qui-ones, Toms Gutirrez Alea.Baseado em argumento de Alea.Produo: Humberto Hernn-dez. Fotografia: Mario GarciaJoya. Cenografia: Jos M. Villa.Trilha Sonora: Leo Brouwer.Som: Germinal Hernndez. Edi-o: Miriam Talavera. Atores:Mirta Ibarra, Oscar lvarez,Omar Valds, Coralia Veloz, Ro-gelio Blain, Ana Via, CludioA. Tamayo, Lzaro Nez, ElsaMedina, Pedro Hernndez. Pr-mios recebidos: Gran PremioCoral e prmio de atuao femi-nina (Mirta Ibarra) no V Festi-val del Nuevo Cine Latinoame-ricano, La Habana, 1983; Makhi-la de Prata (prmio especial doJri) no Festival de Cine Ibricoy Latinoamericano, Biarritz,1984; terceiro prmio no IV Fes-tival de Cinema de Damasco,Sria, 1985.

    3 Ver OROZ, Silvia. Toms Gu-tirrez Alea, os filmes que no fil-mei. Rio de Janeiro: Anima, 1985,p. 178; VORA, Jos Antonio.Toms Gutirrez Alea. Madrid:Ctedra/Filmoteca Espaola,1996, p. 191; RUFFINELI, Jorge.Doce miradas (y media miradams) al cine de Gutirrez Alea.Cinemais, n. 12, jul.-ago., 1998,p. 186, e MACBEAN, James Roy.A dialogue with Toms Gu-tirrez Alea on the dialects of thespectator in Hasta cierto pun-to. Film Quartely, v. 38, n. 3, Uni-versity of California Press,spring 1985, p. 28.

    4 MORETTIN, E. V. O cinemacomo fonte histrica na obra deMarc Ferro. Histria: Questes &Debates (dossi Imagem em mo-vimento: o cinema na histria),ano 20, n. 38, Curitiba, Editorada UFPR, jan.-jun., 2003, p. 15.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006228

    5 Cf. OROZ, Silvia, op. cit., p. 176. Em 1982, dois anos antes da estria, Toms Gutirrez Alea iniciou asfilmagens de Hasta cierto punto, que ento tinha como ttulo Labirinto e jhavia sido idealizado no final dos anos 60. Nessa poca, aps o sucesso deMemrias del subdesarrollo (1968), Alea convidara o ator Sergio Corrieri, quehavia atuado como protagonista desse filme, para interpretar um persona-gem que, dessa vez, seria o oposto do intelectual angustiado de Memrias:um roteirista bem-intencionado, afinado com os ideais do governo e deci-dido a contribuir com seu trabalho para melhorar a sociedade. O desenvol-vimento da trama, entretanto, colocaria esse roteirista frente a uma pro-blemtica inesperada, que modificaria essencialmente sua percepo darealidade. Corrieri recusou o convite em funo das atividades que entodesenvolvia como diretor do Grupo de Teatro Escambray, e por preferirno se arriscar a ficar estigmatizado com mais um personagem envolto emdilemas ideolgicos sobre o papel do intelectual e os problemas da socie-dade cubana. Nesse momento, outros projetos surgiram para Alea e Labi-rinto acabou sendo engavetado, vindo somente a se realizar mais de umadcada depois.

    Nos anos oitenta, o roteiro foi ento retomado, a seis mos, e tratavada histria de um roteirista que era convidado, por um renomado diretordo Icaic, a elaborar um roteiro para um longa-metragem de fico queteria como tema o machismo na sociedade cubana. A partir desse mote, sedesenvolve a narrativa: diretor e roteirista comeam a realizar entrevistascom trabalhadores do porto de Havana, um reduto essencialmente mas-culino, a fim de recolher o material necessrio construo dos persona-gens e conflitos. No decorrer da pesquisa de campo, o roteirista se dconta do quanto eram equivocadas suas concepes prvias sobre os tra-balhadores e passa a querer dar um rumo diferente ao argumento imagi-nado pelo diretor, entrando em forte atrito com este. Complicando mais asituao, o roteirista se envolve com uma porturia, com quem vive umadelicada relao amorosa que o divide emocionalmente e pe em evidn-cia seu comportamento machista.

    O filme revela trs choques simultneos. Num plano geral, temos osproblemas cotidianos dos trabalhadores nos anos oitenta, relacionados aouniverso industrial que ganhara importncia em Cuba: questes como pro-dutividade, ineficincia e lentido da burocracia, falhas de planejamento,m administrao, abandono do trabalho (o ausentismo), escassez ma-terial, falta de conscincia revolucionria da populao etc. Todos essesfatos, revelados ao espectador atravs da filmagem das entrevistas com ostrabalhadores, contrastam com a perspectiva otimista e celebrativa da pro-paganda poltica difundida pelo governo cubano na poca.

    Um segundo choque resulta na tomada de conscincia do roteiristaaps seu contato com a realidade do povo, que o leva a questionar a vali-dade de suas certezas e seu papel de intelectual. O terceiro choque trans-mitido ao espectador por intermdio das personagens femininas: a portu-ria, que se torna amante do roteirista, e a esposa. Ambas descobrem nelecomportamentos e fragilidades que as decepcionam, e o espectador, aolongo do filme, se apercebe dos limites morais e ideolgicos do persona-gem que, a princpio, parecia ser o heri.

    No resultado final do filme, o romance entre o roteirista e a portu-ria acabou se tornando o eixo principal da obra, o que no constava doprojeto original5. Essa mudana acarretou no empobrecimento da inteno

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006 229

    his

    t

    ria

    & c

    ine

    macrtica do projeto inicial, uma vez que o interesse de Alea era problematizar

    a permanncia de comportamentos e valores condenveis numa socieda-de socialista, e comuns classe trabalhadora, aos dirigentes e intelectuais.Ainda assim, mesmo relegado ao segundo plano, em favor do melodra-ma, e sem o humor custico que marcara La muerte de un burcrata (1966),percebemos o foco de Alea sobre questes que o incomodavam profunda-mente: a ineficincia dos planos econmicos, certos favoritismos dentrodas empresas estatais, o paternalismo dos intelectuais e do governo emrelao ao povo, o machismo e outros problemas que se traduziam emimpasses para o desenvolvimento de Cuba.

    A envergadura das asas

    Nos crditos inicias verificamos que o filme dedicado a Sara Gmez,uma das poucas cineastas do sexo feminino (e negra) do Icaic. Ela foiassistente de direo de Alea nos anos sessenta, participou da tentativa deorganizao de um movimento negro de intelectuais cubanos6 e faleceuprecocemente, aos 31 anos, em 1974. A aluso ao ltimo filme de Sara, Decierta manera terminado por Alea e Julio Garca Espinosa em 1977, expl-cita no ttulo e na temtica abordada em Hasta cierto punto, bem como nasentrevistas de poca. O filme daquela cineasta, que priorizou em sua traje-tria abordar questes relacionadas marginalizao na sociedade cuba-na, tratava da difcil adaptao da populao de periferia s mudanasproporcionadas pela revoluo e pela reforma urbana. Misturandodocumentrio e fico, a cineasta mostrava a reurbanizao do bairro deMiraflores, em 1962, e suas conseqncias para a populao local, queencontrava dificuldades em adaptar-se aos novos hbitos e comportamen-tos exigidos pelo governo. Temas como o machismo, a tenso entre astradies religiosas afro-cubanas e o marxismo, o racismo, o incentivo delao e a falta de conscincia poltica das camadas menos favorecidaseram abordados a. A problematizao dessa realidade, pouco freqentenum contexto de permanente cobrana e mobilizao poltica contra asameaas internas e externas a Cuba, tornou o filme de Sara, assim como aobra de Alea, excees dignas da ateno de pesquisadores da cinemato-grafia cubana.7

    O eixo condutor de De cierta manera dado pelo romance entre M-rio e Yolanda, um operrio e uma professora de boa famlia; ele, mulatopobre, e ela, morena clara, de hbitos refinados. O ponto forte reside naambigidade sugerida principalmente pela figura de Mario: machista, cominclinaes malandragem, e ao mesmo tempo revolucionrio. O especta-dor, nos anos setenta, experimentava a dubiedade causada pela identifica-o emocional com o personagem, muito carismtico, e o julgamento mo-ral de que este era um sujeito inadequado sociedade socialista. Tal con-cluso era reiterada pela narrao, off, em tom pessimista, que atestava alentido da mudana da mentalidade popular e do processo deinteriorizao da ideologia revolucionria.

    Em Hasta cierto punto, Alea retoma a constatao, registrada por Sara,do abismo existente entre o discurso poltico e a realidade social atravsdas complicaes de uma histria de amor vivida tambm por um casalde classe e formao diferentes. Como Sara, que parece identificar-se comYolanda, ele recria seus dilemas na figura de Oscar. Por meio dele, trata o

    6 Junto com o cineasta NicolsGuilln Landrin e uma srie deintelectuais negros que foramreprimidos de diferentes formas,em 1968, sob a acusao de pre-tenderem divulgar um manifes-to negro. H a suspeita de que amorte de Sara tenha sido suic-dio. Ver MISKULIN, Silvia. Osintelectuais cubanos e a polticacultural da Revoluo (1961-1975). Tese (Doutorado em His-tria) FFLCH USP, So Pau-lo, 2005, p. 166.

    7 Ver PICK, Zuzana. The dia-lectics of race and class: one wayor another (De cierta manera).In: The new latin american cinema:a continental project. Austin:University of Texas Press, 1993,p.130-137, e PARANAGU, P.(org.). Cine documental en Am-rica Latina. Madrid: Ctedra,2003, p. 179-186.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006230

    8 Trilha instrumental bastanteintimista, composta por LeoBrouwer a partir da melodia dacano basca, e executada pelaOrquestra Sinfnica Nacional,dirigida por Manuel DuchezneCuzn. Tem destaque no filme,alm do tema instrumental cita-do, uma cano de Ramiro Gu-tirrez, Presencia simplemen-te, com Pablo Milans, que pra-ticamente substitui o dilogonuma cena do casal protagonis-ta no restaurante La Torre. Emoutra passagem, na qual a letrada cano serve de contradis-curso cena, ouvimos o bordodanante Djate de atrevimien-to, mulata, interpretado belabanda Irakere numa cena emque Oscar procura disfarar seumachismo.

    9 COLINA, Enrique. Hasta ciertopunto. Cine Cubano, n. 108, 1984,p. 89-90. Ver tambm COLINA,Enrique. Entrevista a TomsGutierrez Alea sobre Hasta ciertopunto. Cine Cubano, n. 109,1984.

    machismo como um fenmeno generalizado da sociedade cubana, umaestratgia indireta para abordar questes mais profundas como a inefici-ncia da economia, a dupla moral, o autoritarismo encoberto e outros pro-blemas pouco assumidos publicamente. A investigao de campo que (re-almente) realiza no porto de Havana, as entrevistas e conversas com osporturios servem para legitimar sua abordagem diante da direo doIcaic. No casualmente, esse o filme de fico de Alea em que h maiorinsero de documentrio.

    Os personagens principais de Hasta cierto punto so trs. Arturo (OmarValds) o diretor, um intelectual limitado, com idias esquemticas arespeito da realidade dos trabalhadores e do documentrio sobre machismoque pretende filmar. Em tom de brincadeira, no filme, se autodefine comopedante e muito auto-suficiente (crtica de carter ideolgico, em Cuba),justificando-se, em tom de autocrtica, que no era perfeito. Oscar (Oscarlvarez) um escritor de peas de teatro e roteirista, inquieto, mais flex-vel que Arturo em suas concepes (que, entretanto, tambm padecem decerta mitificao) e que busca realizar uma discusso ampla sobre as rela-es de poder na sociedade a partir do tema do machismo. Tal busca deaprofundamento o leva a se envolver com a porturia Lina (Mirta Ibarra),uma me solteira que havia tido seu filho aos 17 anos com um colega deescola negro (para escndalo da famlia). Lina, apelido de Laudelina, semostra bastante inteligente, articulada e batalhadora, personificando o idealda conscincia revolucionria. Tanto assim que escolhida por Oscar, per-sonagem que conduz a narrativa, para ser a figura inspiradora da protago-nista do filme, a ser interpretada justamente por sua mulher, Marian(Coralia Veloz). A trama se constri, portanto, sobre um tringulo amoro-so que se estabelece quando Oscar, apaixonado por Lina, se v incapaz dedecidir entre esta e Marian, mentindo para ambas e complicando-se tam-bm na finalizao do roteiro.

    Apesar do carter evidente de melodrama, enfatizado pela trilhasonora8, pelas cenas de amor de Lina e Oscar, e pelos dilemas que ambosenfrentam, poderamos dizer que Alea se preocupou em nuanar o climaromntico com certo naturalismo: algumas cenas evidenciam dificuldadescotidianas e situaes de tdio e estranhamento. Mais de uma vez, ambosparecem no ter o que dizer um ao outro, como se j estivessem conscien-tes do esgotamento do relacionamento. Ainda assim, a abordagem do ro-mance peca por certa superficialidade. Na poca da estria, o crtico Enri-que Colina reclamava do predomnio do plano amoroso no filme, da faltade equilbrio entre a intriga amorosa e a investigao social. Alm disso,considerava os intelectuais do filme algo esquemticos: o roteirista pecavapela ingenuidade sentimental, o diretor, por certo maniquesmo en suautosuficiencia y en la expresin demasiado evidente de su estrechez men-tal, e at Lina, a porturia, no era bem caracterizada como mulher dopovo. Ainda assim, o prprio Colina deixava entrever outros significadosna obra ao admitir que Alea havia possibilitado o reconocimiento de umuniverso con imperfecciones, cuyas aristas humanas alcanzan por igual atodos los sectores.9

    Quando questionado sobre as falhas do filme, Alea as atribuiu suaprpria incompetncia de solucionar o desequilbrio entre a trama amoro-sa e o argumento central (a crtica ao machismo), bem como atuaodeficiente dos atores, que ele havia selecionado mal e que se mostraram

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006 231

    his

    t

    ria

    & c

    ine

    ma

    10 Apud MACBEAN, James Roy,op. cit., p. 29.

    11 Apud OROZ, Silvia, op. cit., p.177 e 186.

    12 Apud CHANAN, Michael.Toms Gutirrez Alea. Encuen-tro de la Cultura Cubana, n. 1,summer 1996, p. 76.

    13 Festival realizado em Hava-na, anualmente, desde 1979.Sobre a premiao, ver GON-ZLEZ ACOSTA, Alejandro.Un festival de la fuerza. CineCubano, n. 108, 1984, p. 8-14.

    14 Apud GARCA BORRERO,Juan Antonio. Gua crtica del cinecubano de ficcin. La Habana:Arte y Literatura, 2001, p. 165.

    15 Apud OROZ, Silvia, op. cit., p.178.

    incapazes de conferir maior profundidade aos conflitos previstos no rotei-ro. Importante ressaltar que o cineasta afirmava, ainda, para a imprensaestrangeira, que em Cuba havia total liberdade para escolher os temas aserem filmados, e que argumentos nunca eram encomendados oficial-mente10. Desmentia a existncia de um rgo de censura, apesar de sesaber da existncia, na ilha, de uma Comisin Clasificatoria de Pelculas,mas admitia que razes polticas e alguma discordncia entre pontos devista pudessem impedir a realizao de projetos no Icaic11. De fato, quan-do Alea admitia explicitamente ter encontrado dificuldade na aprovaodo filme (fato que s teria acontecido uma vez, em sua carreira, segundoele), se colocava tambm como indiretamente culpado. Nesse caso, a cul-pa consistia em haver se proposto a discutir o paternalismo do Estado eoutras questes polticas e no ter conseguido realizar tal discusso deforma consistente12. A compensao oficial por essa lealdade de Alea aoregime cubano no tardou: o filme, apesar das fragilidades apontadas pelacrtica, obteve o principal prmio no V Festival Internacional del NuevoCine Latinoamericano.13

    Juan Carlos Tabo, co-autor do roteiro, mostrou-se mais direto nassuas explicaes:

    Fue un proyecto que sufri cierta castracin. Inicialmente abordaba un puntoque era clave: el pragmatismo del obrero. En aquel momento se consider que noera oportuno reflejar esa necesidad legtima del obrero de luchar por tener mejorsalario, mayores estmulos materiales. Haba una visin de que el obrero era unser anglico, alejado de los apetitos materiales y terrenales, y la pelcula tuvoque reducirse a una visin un tanto idlica y casi exclusivamente al conflictomachismo, de la relacin hombre-mujer.14

    O roteirista salienta a importncia das temticas que ficaram implci-tas nessa obra, uma vez que, na verso final, como vimos, a trama amoro-sa ganhou relevncia maior do que se pretendia, decepcionando Alea, queproclamou, posteriormente, seu grande desencanto com o filme.15

    O ttulo do filme esclarecido antes dos crditos iniciais, num en-graado depoimento de um trabalhador negro que diz, ao ser entrevistadosobre o machismo, que j havia mudado suas atitudes em relao mu-lher, como exigia o novo momento histrico, em cerca de 80%, podendotalvez chegar, com o tempo, a 87%. Alertava, porm, no pretender ultra-passar essa cifra, visto que admitia que a igualdade entre homem e mu-lher era o correto, porm... hasta cierto punto. A expresso, pouco triun-falista e politicamente ambga (tal como de cierta manera), definia a in-teno crtica do filme e acabou sintetizando tambm, involuntariamente,o resultado deste como obra cinematogrfica. Assim, apenas at certoponto que o romance do casal se desenvolve, que a discusso pretendidase faz, que o filme alcana os resultados esperados. Nas entrelinhas, se en-tendia que tambm era limitada a eficcia do governo, a disposio doscidados em sacrificarem-se, bem como a viso dos intelectuais sobre asociedade cubana. Mesmo os mais bem-intencionados e crticos no eraminfalveis.

    Ao efetuar essa desmistificao do intelectual como conscincia cr-tica da sociedade, Alea reiterava, propositalmente ou no, a tese do pe-cado original difundida por Che Guevara. Para o guerrilheiro, os intelec-

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006232

    16 Cf. GUEVARA, Che. O socia-lismo e o homem em Cuba (Mon-tevidu, marzo/1965). In: Ernes-to Che Guevara: poltica e ideo-loga. La Habana: Editorial deCiencias Sociales, 1990, p. 242-244.

    tuais no eram revolucionrios autnticos devido sua formao e heran-a burguesas, e, sendo assim, deveriam abdicar de sua condio privile-giada e se igualarem aos trabalhadores do povo para tornarem-se verda-deiros homens novos16, homens de ao (e no de letras), prontospara se sacrificarem pelas causas coletivas e pela Revoluo. Ao envere-dar por essa crtica, Alea, ao mesmo tempo em que se auto-emulava, poracreditar que os intelectuais tinham realmente que rever muitos de seusparadigmas diante da nova realidade poltica e social, tambm optava porum caminho seguro, aprovado pelo governo (a crtica ao papel do intelec-tual), por saber que um filme que no dialogasse com a perspectiva oficialno teria futuro em Cuba.

    Explorando esses temas, Alea toca numa outra e velha discussosobre a compreenso e a representao da realidade pelo cineasta. O pro-blema da autenticidade, da existncia ou no de uma realidade palp-vel, e a impossibilidade da neutralidade do artista/intelectual haviamocupado os debates do Icaic e as pginas da revista Cine Cubano por maisde uma dcada. Em jogo estava tambm o papel do cinema numa socieda-de socialista, e sobre isso h referncias sutis e explcitas no filme. No nosparece ser aleatria, por exemplo, a recorrncia (sutil) com que os portu-rios demonstram certo espanto quando tomam conhecimento que Arturoe Oscar pretendiam fazer um filme de fico, e no um noticirio oudocumentrio para a TV. A televiso cubana era gerenciada pelo InstitutoCubano de Radio y Televisin, com quem o Icaic, h anos, disputava ver-bas junto ao governo e rivalizava em funo de diferenas polticas. Numapassagem explcita, Lina questiona Oscar sobre a validade da abordagemde problemas no cinema, afirmando que as pessoas, aps um dia cansati-vo de trabalho, querem se divertir, ver algo bonito e agradvel. A respostade Oscar previsvel e muito ao gosto do discurso oficial: convence Linade que os filmes deveriam servir para pensar, e que os problemas, leva-dos ao cinema, passavam a ser do conhecimento de todos. Alea evidencia-va, ento, as tenses polticas que eclodiam no Icaic, ao mesmo tempo emque se expunha ideologicamente, reiterando o compromisso (por ele pro-clamado em seus ensaios tericos) de tornar palpvel o ideal de um cine-ma para pensar e divertir, cobrana implcita na fala de Lina.

    O filme revela a distncia entre as teorizaes e a prtica: Oscar semostra surpreso com os depoimentos que ouve, principalmente ao conhe-cer uma porturia que afirma no ser vtima de machismo no trabalho (oscolegas s haviam lhe importunado um pouco, e no incio, ela conta). Essedado contraria suas concepes sobre a sociedade: Lina a anttese damulher oprimida que esperava encontrar. Paralelamente, acompanhamosas atitudes machistas de Flora, esposa do diretor Arturo, ao aconselharMarian, trada por Oscar, a suportar pacientemente os deslizes do marido.Por outro lado, Lina, a menos culta quem se mostra mais consciente:indaga o porqu da inexistncia de mulheres na equipe de filmagem, ain-da mais sendo o machismo o tema do filme. Oscar fica sem resposta. Alea,dessa forma, questiona o carter (pouco igualitrio) do Icaic (que sem-pre foi um instituto basicamente masculino) e invoca a memria de SaraGmez.

    A desconstruo de esteretipos em torno da questo do machismoprossegue ao longo de Hasta cierto punto: Oscar, que se apresenta comoum homem tmido, sensvel, se volta injustamente contra Lina e faz uma

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006 233

    his

    t

    ria

    & c

    ine

    mapattica cena de cime, ao cruzar, na entrada da casa dela, com o ex-

    namorado, Diego, que saa naquele instante. Prevalece o sentimento demacho trado e Oscar interroga Lina, enfurecido, sem perceber que esta,aos prantos, acabara de ser vtima de violncia sexual. Outros exemplosde machismo acontecem em cenas de Oscar e Arturo com suas esposas, eesse comportamento assumido, sem crise alguma, pelos trabalhadoresentrevistados, num contraponto fala de Lina. Uma conversa de bar entreos porturios e os realizadores (Arturo e Oscar) revela ao espectador aposio unnime de que os homens acham que tm direito infidelidade eque admitem que as esposas trabalhem apenas porque mant-las em casaas torna mais ranzinzas, exigentes e predispostas a procurarem outrasdistraes (amantes)...

    Cabe esclarecer que o machismo, no cinema cubano, foi um temacandente desde os anos sessenta. Passou a ser ainda mais explorado aps1975, quando entrou em vigor um conjunto de leis denominado Cdigo daFamlia, cujo objetivo era determinar a igualdade de direitos e deveres dohomem e da mulher, exortando a colaborao masculina nas tarefas do-msticas. Nesse ano eram aprovadas pelo Partido Comunista as Tesis sobrela cultura artstica y literria e criava-se o Ministrio de Cultura, ao qualtodos os departamentos e instituies (inclusive o Icaic) seriam subordina-dos a partir de 1976. O Cdigo da Famlia era decretado por ser necess-rio, para a sade da economia nacional, que os maridos no fizessem obje-o a que as mulheres trabalhassem fora e, alm disso, cumprissem asfunes designadas pelo governo: trabalho voluntrio, treinamento mili-tar, participao sindical, atuao nos CDRs (Comits de Defensa de laRevolucin), atividades culturais voltadas conscientizao das massas etc.

    Num contexto de acirramento da crise econmica, em que se multi-plicavam as campanhas de mobilizao massiva, era fundamental, para ofuncionamento do Estado, contar com a mo-de-obra e a participao fe-minina. Este passa a ser um tema oficial. Assim, so vrios os filmes doIcaic, nos anos 80, que discutem o chamado machismo-leninisno da so-ciedade cubana17, herdeiros do precursor Luca (1968), de Humberto Solas,particularmente o terceiro episdio. Vale destacar que o mais famoso fil-me sobre as questes presentes no Cdigo de Famlia foi Retrato de Teresa,de Pastor Vega (1979), que resultou em grande sucesso de pblico, almde uma polmica que se arrastou por meses no jornal Granma e ecooupelas ruas de Havana, emissoras de rdio e televiso. A contribuio deAlea na discusso do assunto, em Hasta cierto punto era vincular o machis-mo, comumente associado aos trabalhadores braais, a um intelectualsensvel e revolucionrio. Para alm dessa questo, usava o machismocomo bode expiatrio de outros dilemas do intelectual cubano.

    Alguns detalhes na composio dos personagens tm significadospolticos explcitos: no escritrio de Oscar, vemos, acima de sua mesa,uma pequena foto de Che Guevara, smbolo do idealismo e do romantis-mo revolucionrio (o mito do guerrilheiro incansvel, que no desiste deseu ideal revolucionrio) que se contrape ao suposto castrismo do di-retor Arturo (este, muito bem inserido no sistema, lembra o revolucion-rio que, uma vez no poder, se acomoda, se torna um burocrata, comofizera el mximo lder cubano). Numa cena em que Oscar l em sua cama, olivro que o vemos segurando, por instantes, Dialctica del espectador, ni-ca coletnea de ensaios tericos de Alea, que havia sido publicada recente-

    17 Nos seguintes filmes do Icaich crticas ao machismo e algu-ma referncia ao papel da mu-lher no casamento e na socieda-de: os longas-metragens ficcio-nais Se permuta, Juan CarlosTabo, 1983, 103; Habanera, Pas-tor Vega, 1984, 101; Una noviapara David, Orlando Rojas,1985, 103; Como la vida misma,Vctor Casaus, 1985, 107, e v-rios curtas documentrios, taiscomo Ella vendia coquitos, Ge-rardo Chijona, 13; El Piropo,Luis Felipe Bernaza, 10, ou Ma-m se va a la guerra , GuillermoCenteno, 1984,18.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006234

    18 Cf. PALENQUE, Alberto. Sepermuta: una crtica por unaentrevista. Cine Cubano, n. 109,1984, p. 62-64. Comdia que tra-ta de vrias tentativas malsu-cedidas de troca de casas, pro-cedimento comum na socieda-de cubana (onde no h com-pra e venda de imveis) satiri-zando as dificuldades da popu-lao em conseguir moradia.

    19 Esse movimento foi inspiradono teatro novo sovitico, lana-do em Moscou, em 1973, e con-gregou importantes grupos tea-trais dos anos sessenta: Escam-bray, Conjunto Dramtico de Ori-ente, Tercer Mundo, Los Doce, den-tre outros. Cf. BARQUET, Jess.El teatro cubano en la encru-cijada sociopoltica (1959-1990).La Palabra y el Hombre. Xalepa(Mxico), n. 108, octubre-dici-embre, 1998, p. 63-80.

    20 GONZLEZ, Reynaldo. Cinecubano. Ese ojo que nos ve. SanJuan: Editorial Plaza Mayor,2002, p. 184.

    mente em Cuba. Nessa obra temos suas teses sobre o cinema, dentre asquais a afirmao da importncia de seu carter de diverso e a perspecti-va da no-passividade do espectador. Auto-referncias como essa, sem-pre foram marcas de Alea e, nesse caso, estreitam seu vnculo com o per-sonagem principal.

    Um aspecto de crnica do momento se evidencia no fato de queOscar um roteirista que tambm escrevia para teatro e que havia sidoconvidado a fazer cinema, por Arturo, devido ao sucesso de sua pea,protagonizada por sua mulher Marian. No filme, a pea consideradauma perfeita crtica construtiva, que ao mesmo tempo divertia e ensinava(como queria Alea). A necessidade de que a crtica fosse construtiva j eraum jargo da poltica cultural da poca, repetido nos comentrios feitos sobras de Alea e comdia, que realmente estava em cartaz, encenada pelogrupo Teatro Poltico Bertold Brecht. A pea, escrita a partir de uma idiade Alea, estava sendo levada ao cinema naquele momento por Juan CarlosTabo (co-roteirista de Hasta cierto punto), que inicia, com essa realizao,sua carreira de diretor de longa-metragens no Icaic. Esse filme estria como nome de Se permuta, em 1984, mesmo ano da estria do filme de Alea18.

    Alm de exibir um trecho da pea (estrelada por Marian), em Hastacierto punto Alea recria, expondo as etapas de planejamento do documen-trio que so executadas pelo diretor e pelo roteirista, alguns procedimen-tos assumidos pelo Movimiento de Teatro Nuevo19, que surgiu oficialmenteem 1977, em Cuba. A valorizao da criao coletiva que pressupunha ainvestigao prvia da comunidade e a participao desta na construoda obra artstica (como buscam Arturo e Omar, em suas incurses peloporto), o didatismo ideolgico, a inspirao em Brecht e o uso de poucosrecursos (uma cmera na mo) so marcas do teatro poltico cubano evi-dentes no filme. Segundo Reynaldo Gonzlez, atravs da intertextualidade,da estratgia de pensar o cinema e o teatro cubanos dentro do filme, Alealanz los dardos a su propio mdio e desnudou o dilema entre el opor-tunismo y su conciencia de creador, mantenida bajo una sordina utili-tria.20

    A metalinguagem outro interessante recurso explorado no filme: areproduo do documentrio real, filmado em vdeo, no porto de Havana,por ele e pelo ator Omar Valds, como se fosse obra de Arturo e Oscar,ameniza a responsabilidade de Alea sobre o contedo tratado nos depoi-mentos. E no so poucas as insatisfaes levantadas pelos porturiosreais e ficcionais: Lina, por exemplo, pergunta assemblia at quandoseria preciso esperar os materiais requisitados para fazer os reparos es-senciais nos barraces do porto, uma vez que j existiam at voluntriospara a tarefa. Essa questo tocava o problema do voluntarismo em Cuba,ou seja, aludia prtica recorrente do governo em apelar para estmulosmorais para tentar resolver as freqentes tarefas emergenciais simples-mente requisitando voluntrios, sem oferecer a esses as condies ou aorientao adequadas, o que resultava em fracassos constantes. Alm des-se, outros erros de administrao so apontados: um porturio (identifica-do como personagem real por ser apresentado ao espectador em vdeoe com razovel sujeira na imagem) reclama que a papelada das requisi-es se perdia sempre na burocracia; outro lembra que os mesmos proble-mas so continuamente levantados, sem soluo, em todos os nveis deassemblia (mensais, trimestrais, em nvel setorial, em nvel nacional etc.);

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006 235

    his

    t

    ria

    & c

    ine

    maoutro ainda denuncia o descaso de colegas... Enfim, h um verdadeiro

    rosrio de reivindicaes que saem da boca do povo, provocando o de-sabafo de Arturo, que no esperava que os porturios fossem toreclames e diferentes dos operrios socialistas que imaginava e quededuzimos serem os celebrados heris positivos, enaltecidos pelo rea-lismo socialista que a poltica cubana endossou nos anos setenta.

    Possivelmente, no escapem ao olhar do espectador diferenas soci-ais, culturais e materiais, ressaltadas no filme, envolvendo o ambiente bur-gus, intelectual, e os lugares freqentados pelos operrios. Entre o dire-tor e o roteirista j existe um certo desnvel: a casa do primeiro (Arturo),supostamente um militante do Partido Comunista, tem piscina e visivel-mente mais suntuosa e moderna que a de Oscar, sbria e condizente comos padres de um escritor. Este, ao contrrio do diretor, no gozava daregalia de fazer viagens ao exterior (ao que, alis, ansiava Marian). A so-briedade e o conforto discreto da casa de Oscar, por sua vez, contrastamenormemente com a simplicidade do quarto-e-cozinha onde mora Lina,de paredes descascadas, de banheiro sem gua encanada, e com a feirado porto e do boteco freqentado pelos trabalhadores.

    visvel o mal-estar experimentado por Lina nos lugares onde levada por Oscar. A cmera, tomando o lugar do olhar da moa, foca umamadame exageradamente arrumada, no restaurante fino em que se encon-tra, e ntido seu embarao diante da formalidade do garom. Tambm hcerto desconforto, da parte de Oscar, ao no ser capaz de danar umasalsa com Lina, ao acompanh-la num show popular da banda Irakere,onde esto todos seus colegas do porto. Dois universos absolutamentedistintos e desiguais da sociedade socialista que tambm se traduzem emcdigos culturais e em perspectivas de ascenso profissional: Arturo eOscar so homens da capital, de carreiras e casamentos bem-sucedidos,famosos, vaidosos, que andam de automvel (o diretor possua um Lada,carro smbolo da burocracia), gosto refinado e que podem contar comviagens eventuais e festivais no exterior (como os cineastas renomados doIcaic). Lina, no outro extremo, havia sido cozinheira no porto, fora promo-vida funo de apuntadora (encarregada de registrar sada e entrada decarga), mas no nada entusiasta do trabalho repetitivo que faz h dezanos: pragmtica, estuda administrao porturia e aspira a um cargo umpouco melhor, e que s poder obter no porto de Santiago de Cuba, suacidade natal, por no haver vagas desse tipo em Havana. Nem tudo paratodos no socialismo, enfim.

    A escolha das locaes e o realce de certos detalhes tambm assu-mem significados polticos. As vrias cenas externas e as tomadas dasruas de Havana do a dimenso dos problemas urbanos de uma cidadeque j sofria com a estagnao econmica. nibus extremamente lotados,longas filas, trnsito catico21, construes interrompidas compem os ce-nrios. At na luxuosa casa de Arturo h cadeiras em torno da piscina queesto quebradas (detalhe verbalizado em dois momentos). Otimismo epessimismo se alternam diante das contradies. Se, por um lado, Linacomenta que seu filho adorou e voltou mais gordo do trabalho no campo(!), onde esteve por trs semanas com a turma da escola, encantado por tervisto um funicular (suposto indcio de desenvolvimento tecnolgico emCuba), por outro lado, pela mesma Lina tomamos conhecimento da quan-tidade de mquinas com problemas, do teto deteriorado dos barraces do

    21 Destacamos a ironia presentenuma rpida cena: ao transita-rem por Habana Vieja, Arturopede cuidado a Oscar, que diri-ge o veculo. Esse alega que estna preferencial, ao que o diretorretruca: Que preferencial, oqu?! Voc pensa que estamosna Sua?

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006236

    porto, da falta de eletricidade, enfim, da realidade que se impe sbenesses do socialismo.

    Lina mora num aglomerado de casinhas pobres do outro lado dabaa de Havana, em Casablanca, bairro com nmero grande de negros, deonde se avista o porto. E porto era um locus que, nos anos 80, aludia aum episdio de trgico significado poltico. Em 1980, haviam partido deHavana para os Estados Unidos, pelo porto de Mariel, mais de 120.000cubanos, aps o impasse poltico provocado pela invaso de 10.000 cida-dos embaixada do Peru em busca de asilo. O xodo de Mariel, comose chamou a sada de todos os que partiram, com a ajuda dos EUA, refle-tiu escandalosamente a insatisfao popular com as condies de vida emCuba. Numa hbil jogada poltica, Fidel Castro tambm exportou, nessaemigrao consentida, centenas de presos comuns, homossexuais, doen-tes mentais e demais desajustados, aliviando o Estado cubano e presen-teando o governo norte-americano com imigrantes indesejveis. Todos osemigrados foram rotulados, em Cuba, de gusanos (vermes) e contra-revo-lucionrios. O susto produzido pelo xodo de Mariel, entretanto, levou ogoverno cubano a flexibilizar um pouco a poltica cultural interna aps1980, possibilitando o surgimento de uma tendncia crtica, principalmen-te nas artes plsticas, que discutia o socialismo e a sociedade cubana. Tam-bm dentro desse contexto podemos pensar Hasta cierto punto e a motiva-o de Alea em fazer um filme que, em muitos aspectos, encara o porto defrente, aborda a questo da liberdade do indivduo personificada em Lina.

    O desfecho, um final agridoce, como bem definiu Ruffinelli22, sed quando Oscar procura por Lina em sua casa e no a encontra. Toma abarca que cruza a baa e se dirige aos barraces do porto, de onde observa,ao longe, gaivotas voando. Intercaladas nessa seqncia temos cenas rpi-das de avio decolando, Lina com os cabelos ao vento, uma gaivota e... ofilme acaba abruptamente. Sem que saibamos se as imagens so fantasiasde Oscar ou realidade, fica no ar a suposio de que Lina teria partidopara Santiago de Cuba, como vinha pensando em fazer, uma vez que lpoderia estar novamente com sua famlia e ocupar um melhor posto detrabalho.

    Alea afirmou que sua inteno era que o fim fosse realmente abrup-to e que a possvel continuidade ou no do romance ficasse, literalmente,no ar e por conta do espectador23. Essa soluo, entretanto, no foi apre-ciada pela crtica e nem pelo prprio diretor, que reconheceu, mais tarde,que poderia ter trabalhado mais o final, avaliao com a qual concorda-mos. De toda forma, nos parece louvvel que fique patente, nesse desfe-cho, a sensao de interrupo (provisria ou decisiva) do romance, bemcomo uma aluso interrupo do prprio processo de realizao do fil-me, como evidenciaremos adiante.

    Esse fim de Hasta cierto punto reitera o primeiro final pensado porOscar para seu filme, do qual tomamos conhecimento quando ele conver-sa com Lina enquanto ambos ouvem a cano basca gravada numa fitacassete. Oscar afirma que no final ocorreria a separao do casal, por cau-sa do machismo do marido, que impedia a esposa de trabalhar no porto.Entretanto, ficamos sabendo, pouco antes do final de Hasta cierto punto,que Oscar decide dar outro desfecho, mais complexo, que recusado porArturo, argumentando que seu objetivo era fazer um filme sobre machismo,e no sobre outras coisas como parecia querer o roteirista. Arturo e

    22 RUFFINELI, Jorge. Doce mi-radas (y media mirada ms) alcine de Gutirrez Alea. Cine-mais, op. cit., p. 187.

    23 Entrevista concedida a JamesRoy MacBean, na ocasio daestria do filme no San Francis-co Festival, (EUA) em 1984. Cf.MACBEAN, James Roy, op. cit.,p. 28.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006 237

    his

    t

    ria

    & c

    ine

    maOscar discutem seriamente, e aquele lhe dirige palavras duras, afirmando

    que pretendia educar o povo, que sabia o que fazer e no era, como Oscar,irresponsvel, aventureiro. A essa altura, j sabemos que Arturo no ad-mitia a complexidade da realidade e que, para ele, Oscar confundia muitoa realidade com a fico. Fica a sugesto, no final do filme concebido porAlea, de que ele, cineasta, tambm compactuava desse pecado de Oscar: amistura de fantasia e realidade propositalmente assumida, contrariando odidatismo que se esperava de uma produo do Icaic, com uma claramoral da histria.

    O vo sem pena

    As filmagens levaram cerca de dez semanas e a primeira verso dofilme, aparentemente, tinha a durao de 80 minutos, cortados para 68minutos na verso final24. Causa algum estranhamento um filme to curtode um ficcionista habituado a aproveitar muito bem o lote de negativos etoda a estrutura humana e material necessria a um longa-metragem, va-lorizando os 120 minutos de pelcula to cobiados pelos realizadores25.Essa reduo parece ter ocorrido em virtude de censura, conforme nosleva a supor uma carta de Alfredo Guevara, diretor do Icaic, que compro-va as exigncias de cortes e alteraes de roteiro. Antes de abordarmostais exigncias, necessrio fazer alguns outros esclarecimentos sobre astenses polticas que envolviam o instituto, desde sua fundao, e a rela-o entre Alea e Guevara.

    De 1959 a 1975, o Icaic gozou de razovel autonomia em relao sesferas do controle estatal, bem como de certa abundncia de recursos,por ser considerado o rgo cultural mais importante para a conscientizaopoltica das massas: uma instituio privilegiada26, enfim. A direo doinstituto, desde sua fundao, era exercida por Alfredo Guevara, antigomembro do Partido Socialista Popular (nome do Partido Comunista nosanos 50), do qual haviam sido militantes vrios outros cineastas por eleconvidados a trabalhar no Icaic27. Guevara assume a tarefa de projetarmundialmente a indstria cinematogrfica cubana e, para o cumprimentodesta meta, aglutina inmeros profissionais e convidados estrangeiros, dediversas orientaes estticas e polticas, que ali produzem incessante-mente, sob liberdade assistida. O governo fazia vistas grossas a cineas-tas crticos e irnicos como Alea, mas competentes, de renome internacio-nal e assumidamente revolucionrios em todos os seus depoimentospblicos. Essa tolerncia era compensada, pela direo do Icaic, com ocumprimento, em dia, das metas de produo documental e a realizao,em ritmo acelerado, de curtas-metragens, noticirios e filmes didticoscom a finalidade de difundir as campanhas de mobilizao e as mensa-gens polticas do novo governo populao. Eram poucos os cineastas,como Alea, que tinham o privilgio de realizar essencialmente longas-metragens de fico status obtido, em parte, graas excelente reper-cusso de seus filmes em festivais internacionais.

    Nos anos oitenta, a situao era diferente, e o Icaic j no tinha maistanta autonomia devido dependncia crescente de Cuba em relao URSS, o que levou o governo cubano a tomar medidas de sovietizaoem todos os setores, instituindo o controle rgido das instncias culturais.Em 1975, h o I Congresso do Partido Comunista de Cuba, que, alm das

    24 Ver depoimento de Alea emMARQUS RAVELO, Bernar-do, Hasta (incierto) punto. ElCaimn Barbudo, n. 195, marzo1984. Apud SCHROEDER, PaulA. Toms Gutirrez Alea. The dia-lectics of a filmmaker. New York:Routledge, 2002, p. 96.

    25Alea relata a pequena cota depelcula que lhe foi destinadapara a filmagem, alm das difi-culdades com o equipamento.Vale lembrar que, em mais de 30anos e com o status de melhordiretor de Cuba, Alea conseguiurealizar no Icaic apenas 12 lon-gas-metragens, dadas as condi-es econmicas e a poltica doInstituto que privilegiou os do-cumentrios. Dezenas de proje-tos acabaram ficando na gave-ta. Ver OROZ, Silvia. Toms Gu-tirrez Alea, os filmes que no fil-mei, op. cit., p. 180.

    26 Segundo Raymond Williamsem Cultura. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1992, instituies privi-legiadas seriam organizaesvinculadas ao aparelho estatalque desempenham, porm, suafuno com alguma autonomia.Essa condio favorece a pos-tura de enfrentamento ou ques-tionamento do status quo e, porisso, segundo o autor, tais ins-tituies so mantidas geral-mente apartadas, sob graus dedistncia relativamente fixa-dos, de acordo com o prestgiode seus porta-vozes (intelec-tuais e artistas) junto ao gover-no ou ao partido hegemnico.Em Cuba, alm do Icaic, consi-deramos instituies privilegi-adas a Casa de Las Amricas eo Ballet Nacional.

    27 Guevara e os cineastas JosMassip. Santiago lvarez, l-varo Alonso, Julio Garca Espi-nosa, Jorge Herrera, Pastor Vegae o fotgrafo Jorge Hayd, todosmembros do Icaic, eram mili-tantes, antes do triunfo da Re-voluo, do Partido Comunistada poca, o PSP. Em 1965 foifundado o Partido Comunistade Cuba, consolidando o mono-partidarismo que na prtica jexistia desde a fuso de todasas legendas na ORI (Organiza-cin Revolucionaria Integrada)em 1961.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006238

    medidas de reestruturao do Estado, reafirma a poltica cultural anuncia-da no Congreso de Educacin y Cultura, em 1971, que determinava que a artedeveria ser uma arma da revoluo28. No ano seguinte, passa a existir oMinistrio da Cultura, encarregado de gerenciar e fiscalizar oramentos,gastos, resultados, autorizaes, e todas as decises institucionais no meiocultural. O cinema cubano se encontrava, assim, sob maior controle dogoverno e, alm disso, no momento em que Alea decidia filmar Hastacierto punto, Alfredo Guevara vivia as conseqncias de um recente pro-cesso de desmoralizao e perda de prestgio causado pelo escndalo pro-vocado pelos gastos exorbitantes da produo de Ceclia (1981), deHumberto Sols, que paralisara todas as demais atividades do instituto (oprprio Alea no realizava longas-metragens desde 1978).

    Entre Guevara e Alea se interpunham velhas rusgas pessoais, origi-nadas quando ambos eram membros da Sociedad Cultural Nuestro Tiempo,entidade fundada em 1951, voltada promoo e discusso das artes emCuba, bastante ativa durante a ditadura de Fulgncio Batista, e dissolvidaem 1960. Alea no era, como Guevara, entusiasta do marxismo-leninismoe nunca se filiou ao PCC. Desde a dcada de cinqenta, havia uma certadiviso entre artistas e intelectuais comunistas (militantes do ento Parti-do Socialista Popular) e os chamados liberais (no filiados a esse partido,mas que apoiavam a guerrilha empreendida pelo Movimento 26 de Julio,aps 1956). Essa diviso, que continuou existindo dentro do ICAIC, acar-retou calorosos debates sobre a poltica de exibio de filmes estrangeiros,o papel do intelectual e a relao entre arte e poltica em Cuba. A opo dogoverno cubano pelo socialismo (1961) e pelo partido nico (oficializadocomo PCC em 1965) favoreceu a incluso e a nomeao para cargos im-portantes, de comunistas histricos como Alfredo Guevara, aos quaisos demais intelectuais e artistas passaram a se submeter. Atravs de suasobras, muitos cineastas e artistas encontraram vias para expressarem suasidias, que em outros espaos lhes seriam nocivas.

    Guevara sobreviveu como a autoridade mxima do Icaic por maisde vinte anos consecutivos. sua condio de amigo de Fidel e comu-nista histrico somava-se a habilidade poltica de moldar-se s conjuntu-ras: se antes de 1961 condenava o realismo socialista, mostrando-se nodogmtico, aps a deciso do governo cubano em adotar essa linha depoltica cultural e aproximar-se cada vez mais da URSS, em meados dadcada, passou a usar toda sua retrica para justificar princpios que antescondenava.

    Como representava diplomaticamente Cuba em inmeros eventosinternacionais, as seguidas ausncias de Guevara do Icaic e, principalmen-te, as crticas recebidas pelo mal gerenciamento das verbas (evidente noCaso Ceclia) levaram o governo a afast-lo das ferozes crticas do mo-mento e nome-lo representante de Cuba na Unesco, em outubro de 1982,seis meses aps ter escrito uma carta na qual censurava Alea29. Antes deseu afastamento, mesmo desacreditado, Guevara continuou exercendo seucargo com bastante autoritarismo, e assim que reage ao ficar ciente deque Alea iniciara as filmagens de Hasta Cierto Punto sem dar-lhe conheci-mento do roteiro.

    Nessa carta, Guevara mostrava grande indignao, recriminandoJorge Fraga, que teria aprovado o roteiro do filme, com o aval do crticoliterrio Ambrosio Fornet30, e autorizado a filmagem. Guevara ordenava

    28 SERRANO, Pio E. Cuatro d-cadas de polticas culturales.Revista Hispano-Cubana, n. 4,Madrid, mayo-septiembre, 1999,p. 35-54.

    29 Guevara censurou Alea numacarta a Jorge Fraga, escrita por-que seu interlocutor se encon-trava fora de Havana e ele pr-prio tambm viajaria em breve,para participar de uma reunioda Unesco. Ver GUEVARA, Al-fredo. La manipulacin de larealidad desde una aristocraciacrtica. (21/04/1982) In: Tiempode Fundacin. Madrid: Iberau-tor, 2003, p. 422-427.

    30 Fornet tem alguns ensaios so-bre Alea, publicados na colet-nea: FORNET, Ambrosio (org.).Alea, una retrospectiva crtica. LaHabana: Letras Cubanas, 1987.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006 239

    his

    t

    ria

    & c

    ine

    maque esta fosse cancelada imediatamente e alegava que a aprovao de

    Fraga era incompreensvel porque o roteiro do filme estava cargado deambigedades, segundas lecturas y promesas crticas dirigidas inconse-cuentemente, e que era, alm disso, uma ancdota superficial y medo-cre, simplista ao retratar as relaes entre a classe operria, os adminis-tradores e a intelectualidade por meio de jueguitos y alusiones menores,saetazos y bobadas de nios-viejos31. Ao longo da carta, no poupavapesadas crticas obra de Alea, que classificava como vaga e demaggica.Afirmava ainda que o filme poderia comprometer no s o prprio dire-tor, como Fraga, Armando Hart (Ministro da Cultura) e ele prprio (queexercia desde 1975 o cargo de vice-ministro da Cultura, funo que eraautomaticamente acumulada por quem fosse responsvel pela direo doICAIC).

    Guevara confessava que havia experimentado a tentao de deter ofilme e s no o fizera porque esse gesto desautorizaria Fraga. Acusavaeste e Ambrosio Fornet de serem cmplices de Alea, por terem aprovadoo roteiro e aceitar as intenes e subtextos presentes no filme. Diantedessa alegada displicncia, Guevara pedia providncias a Fraga, e avisavaj haver informado o ministro Armando Hart sobre o caso, bem como dehaver solicitado ao cineasta Julio Garca Espinosa, tambm filiado ao PCC,que ajudasse a buscar solues32. Garantia que no permitiria o investi-mento de recursos do Icaic na realizao de um filme que considerava, emltima instncia, uma provocao pessoal de Alea, em relao a quem ale-gava ter poder para atitudes ainda mais drsticas: no estoy dispuesto aaceptar ni jueguitos, ni burlas, ni trampas, ni enmascaramientos, ni permitirpor cobarda que se hagan inversiones en venganzas de pacotilla parasituaciones de pacotilla33. Guevara colocava-se como vtima de Alea econsiderava seu filme vergonhoso:

    La contradiccin que me separa de Titn, es decir, de un viejo amigo, en ltimainstancia le concierne a l, y mucho menos a m. Que la resuelva como quiera. Side veras quisiera hacerlo, yo hara ms de lo que merece la situacin. Pero noaceptar que se inviertan recursos de la revolucin, a mi cuidado, en afinar dar-dos ridculos, canallescos y absurdos, y por dems no slo conscientemente ca-lumniosos y por tanto deshonestos, sino tambin vejatorios.34

    Guevara apontava cinco passagens especficas do roteiro, indicandoas reformulaes que deveriam ser feitas. Criticava primeiramente o ques-tionamento que os empregados do porto faziam administrao, afirman-do que isso estimulava o enfrentamento e no era a melhor maneira dofilme (e, por conseguinte, do Icaic) propor solues para problemas assim.Recomendava que a culpa fosse assumida por todos. Tambm no apro-vava o personagem do diretor (Arturo), e o fato deste ser esquemtico,conservador, em detrimento das qualidades do roteirista (Oscar), de con-cepes mais abertas. Guevara considerava essa relao uma deforma-o desonesta da realidade, uma supervalorizao dos intelectuais (diga-se escritores, roteiristas) e uma crtica injusta aos dirigentes (como ele).Sugeria ainda que essa postura contrariava os princpios do regime cuba-no para o meio cultural: hoy, sa no es la poltica cultural de la revolucinni la actitud de los dirigentes que dan carcter a esa poltica.35

    Estendia sua crtica caracterizao dos chefes de setor e represen-

    31 GUEVARA, Alfredo, op. cit., p.423.

    32 Aqui entendemos que GarcaEspinosa ficaria encarregado depossveis reformulaes no ro-teiro e de usar de suas influn-cias pessoais e polticas comAlea. Vale destacar que a admi-nistrao de Garca Espinosa,assumida em outubro de 1982,encampa a rectificacin deerrores anunciada por Fidel,para todos os setores. Sua ges-to um pouco mais democrti-ca que a de seu antecessor, poiscria trs subgrupos de cineas-tas dentro do Icaic, coordena-dos por Alea, Manuel Pereira eHumberto Sols. Nessa poca,h grande produo de com-dias populares, nem sempre deboa qualidade, que exploramtemas contemporneos.

    33A expresso de pacotilla usada para menosprezar a ati-tude de Alea: insignificante,desprezvel. Ver GUEVARA,Alfredo, op. cit., p. 424.

    34 Idem.

    35 Idem, ibidem, p. 426.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006240

    tantes sindicais: Los cuadros intermedios siempre son vacilantes, incon-secuentes, visten mejor (en algn momento se dice: tienen tipo de fun-cionarios), poseen automviles, mejores casas, y su relacin con la claseobrera se establece a partir de posiciones paternalistas. Nesse sentido,afirmava que Alea havia feito uma generalizacin condenatoria ao apre-sentar, no filme, una capa de mediadores mediocres, burocratizados, va-cilantes, que operava como una especie de nueva clase36. Guevara pro-punha, como soluo para consertar essa equivocada contraposio entreporturios e integrantes de la superestrutura, que se adotasse comoreferncia o filme Moscou no cr em lgrimas. Curiosamente (e essa podeter sido a resposta encontrada por Alea para Guevara), tal obra citadana verso final do filme, quando Oscar comunica a Arturo que a protago-nista ter as caractersticas de Lina, e este pergunta ao amigo se ele estariapensando em algo parecido trama desse mencionado filme sovitico, aoque Oscar responde afirmativamente. Esse detalhe parece confirmar queAlea tomou contato com o teor da carta de Guevara.

    Alm disso, Guevara criticava o final aberto e a crise de valores vivi-da pelo roteirista apaixonado que no consegue, efetivamente, se decidir.Esse tipo de atitude vacilante e o dilema que ficava sem soluo pare-ciam a Guevara indesejveis num filme cubano que tinha por finalidadeser educativo e conscientizador. Temia as citaes metafricas existentesno roteiro, principalmente uma lenda yorub segundo a qual Oloffin, umvelho sbio que havia criado o mundo, diante da constatao de sua situa-o catica, resolvia, para no ter que sujar as mos mandar Ik acabarcom os velhos responsveis por deixarem a desordem chegar quele pon-to, instituindo que os homens no viveriam eternamente a partir de ento.Guevara sugeria que essa lenda poderia ser mantida se sua interpretaofosse encaminhada de outra maneira, mais construtiva: Esta leyenda,en forma metafrica, da la clave para entender la interpretacin que proponela pelcula sobre nuestra sociedad. Conviene reflexionar sobre las posiblesinterpretaciones, tambin metafricas que suponen personajes comoOloffin e Ik, y que, claro, pueden ser varias, recurso que puede hacer deun filme una incitacin constructiva; o de una utilizacin mltiple, segnse quiera y desde posiciones antagnicas.37 A lenda em questo acabouno fazendo parte desse filme, mas foi recuperada em Guantanamera, lti-ma realizao de Alea, finalizada por Juan Carlos Tabo, em 1995.

    Como se v, Guevara cobrava que o filme fosse menos crtico, maisotimista, e, principalmente: cuidadoso ao tratar dos dirigentes e dos pro-blemas da sociedade. O dirigente demonstrava o quanto a carapua lheservia, ao assumir as crticas de Alea como direcionadas a ele (e que, defato, deveriam ser) e contra isso investia seu poder, acionado o mecanis-mo de relaes e influncias pessoais que sempre marcou a cultura polti-ca cubana. Em relao s suas recomendaes podemos supor que, naverso final, alm das supresses realizadas (a lenda yorub), dilogos eironias existentes no roteiro podem ter sido abrandados. O filme estreouem 1984, sem muito alarde, mas com o usual destaque da revista CineCubano, veculo oficial do Instituto, num indcio de que o filme havia sidoavalizado oficialmente.38

    Com falhas e acertos, censuras e concesses, Alea conseguiu fazerdo filme uma metfora de seus prprios dilemas como cineasta naquelesanos oitenta. Essa metfora tambm dava ressonncia vida pessoal do

    36 Idem, ibidem, p. 427.

    37 Idem.

    38 A Cine Cubano, n. 108, de 1984,tem artigo sobre o filme e foto deMirta Ibarra como destaque decapa.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006 241

    his

    t

    ria

    & c

    ine

    madiretor, pois sua identificao com o personagem Oscar se expressava em

    mais de um aspecto: ao ser perguntado, em 1984, sobre o que mais gosta-va no filme, Alea respondeu que era ter conseguido levar s telas, pelaprimeira vez, uma histria de amor. Esse feito talvez tenha sido fruto deseu envolvimento amoroso com a atriz Mirta Ibarra, protagonista do filmecom quem se casou, nessa poca, e que o acompanhou at o final da vida.Nesse sentido, concordamos com Paul Schroeder39, que destaca que Aleavoltou completamente as lentes para si mesmo, nesse filme, deixando delado o distanciamento brechtiano que caracterizara seus trabalhos ante-riores.

    Como na cano basca, o filme sugere que a liberdade deve se so-brepor ao amor que escraviza. Considerando o contexto poltico e os ind-cios da censura que o filme sofreu, fcil constatar que a mensagem defundo visivelmente transcende a moral da cano. Nesse sentido, Alea fazuma homenagem (e um apelo) liberdade, protestando contra todo e qual-quer aprisionamento, ainda que este seja por uma causa nobre (como aideologia, o amor, a ptria). O cineasta declara seu amor ao pssaro,mas assume a deciso e a necessidade de manter-se distncia, pr-condi-o para que possa admirar seu vo. Sob outro prisma, Alea desnudatambm seu relacionamento ambguo com o Estado (e o Icaic), reconhe-cendo-se como amado e possvel prisioneiro.

    O filme revela, ainda, o conflito no qual Alea sempre se debateu eque se tornou mais intenso ao descobrir-se acometido de cncer, na ltimadcada de vida: o limite entre a sensao de cooptao e o senso de res-ponsabilidade, a luta consigo mesmo, com a fidelidade s suas prpriascrenas e expectativas frustradas. Sempre defensor do regime cubano noexterior, ainda que no escondesse as crticas em seus filmes, Alea acumu-lava decepes, mas parecia continuar esperanoso nos anos oitenta. Se oagravamento do autoritarismo ou a precariedade econmica em Cuba nuncaforam fortes o suficiente para faz-lo deixar a ilha, certamente lhe ofertaramboa dose de melancolia. De fato, Alea parece reconhecer, numa perspecti-va talvez um pouco conformista, desiludida e autocrtica, o seu prpriolimite sobreposto aos limites do socialismo em que vive. Em Memriasdo subdesarrollo temos um cineasta que coloca o intelectual (e a si prprio)em cheque-mate, exigindo que este assuma posicionamento poltico di-ante da voracidade dos acontecimentos, mas admitindo a esquizofrenia danova situao deste intelectual, que s passa a ter lugar sendo engajado evinculado ao Estado. Bem diferente Hasta cierto punto, em que Alea cobramenos e relata a gradativa vitria da precariedade e da incompetnciasobre a utopia, vislumbrando alguma remota sada no sentimento huma-no, na vontade individual, na persistncia, na sinceridade. Enfoque hu-manista que vemos, novamente, em Fresa y chocolate (1994).40

    Nesse sentido, bem que poderiam ser suas as palavras de um tra-balhador mulato, de rosto marcado e cabelos grisalhos, que faz um dosdepoimentos mais interessantes, no filme. Ele afirma, circunspecto, queh muita injustia, muita decepo e oportunismo, mas que possua algode muito precioso sua conscincia , e que tratava de continuar fazen-do o melhor que podia. Impossvel captar a sinceridade contida nessaspalavras, uma vez que o discurso parece verdadeiro, o olhar direto, orosto expressa dor, mas o entrevistado est nitidamente aborrecido, can-sado, e Alea no exclui a pergunta final, algo impaciente, feita pelo traba-

    39 Ver SCHROEDER, Paul A, op.cit., p. 102.

    40 Ver BARQUET, Jess. Paz,Gutirrez Alea y Tabo; felicesdiscrepancias entre un cuento,un guin y un film: Fresa y Cho-colate. Fe de Erratas, Chicago , n.10, mayo 1995, p. 83-86.

  • ArtCultura, Uberlndia, v. 8, n. 13, p. 225-242, jul.-dez. 2006242

    lhador e que nos deixa uma sombra de dvida sobre as declaraes, quetalvez houvessem sido enunciadas burocraticamente, para quem as queriaouvir: agora acabou? Aps essa cena, vemos Oscar rasgando seu rotei-ro, incapaz de persistir ou traduzir para o papel sua experincia: para ele,algo havia acabado.

    Segundo Edward Said, um dos desafios do intelectual representaro que professa por meio de seu trabalho e em suas intervenes, sem seenrijecer numa instituio ou tornar-se uma espcie de autmato agudo amando de um sistema ou mtodo41. Acreditamos que Alea procurou per-manecer sempre fiel tarefa que elegeu, de assumir uma postura com-prometida porm crtica, como defendia junto a seus colegas do Icaic:tenemos que afirmar nuestra identidad y nuestra revolucin (...) y al mismotiempo tenemos que criticarla para ayudar a mejorarla (...) creo que esa esuna contradiccin delicada que exige de nosotros una habilidad especial yun gran sentido de responsabilidad42. Entretanto, sua obra no simplesresultado de sua autodeterminao, ou do suposto cumprimento de seusobjetivos e, sendo assim, compartilhamos da opinio do crtico e jornalistaPaulo Paranagu, que usa o termo possibilismo para definir o vis daobra desse cineasta: Alea abraou a causa de fazer um cinema possvel,dentro das condies existentes em Cuba43. Hasta cierto punto realiza acritica poltica, em seu discurso explcito e em suas metforas sugestivas,porm no se pode ignorar as limitaes estticas e ideolgicas des-sa obra, nas quais pesaram, sem dvida, as intervenes sofridas e a ne-cessidade da constante negociao. Como crnica de uma poca e repre-sentao carregada de ambigidade, o filme d a medida dos embatesenfrentados pelos cineastas cubanos. Da podermos afirmar, como conclu-so, que a persistncia (de caro), que marcou a postura desse cineasta, e ahabilidade com que soube aproveitar a polissemia da linguagem flmicalhe permitiram realizar vos nem sempre elegantes, mas indiscutivelmen-te ousados, pelos cus cubanos.

    Artigo recebido em fevereiro de 2006. Aprovado em abril de 2006.

    41 SAID, Edward. Representaesdo intelectual: as confernciasReith de 1993. So Paulo: Com-panhia das Letras, 2005. p. 121.

    42 GUTIRREZ ALEA, Toms.No siempre fui cineasta. CineCubano, n. 14, 1985, p. 52.

    43 Ver PARANAGU, Paulo An-tonio. Toms Gutirrez Alea: r-bita y contexto. Cinemais, n. 01,Rio de Janeiro, set.-out. 1996, p.123-152.