no rastro de lisbeth salander

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  • 8/2/2019 No Rastro de Lisbeth Salander

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    Foto: Nordlsk Film/The Kobl Collection/AFP

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    MenteAberla

    Por volta das 18 horas, um homemde 50 anos, culos grandes no ros-to mope e afvel, os cabelos fartose claros impregnados do cheiro dosMarlboros que fumava razo de 60por dia, chegou diante do elevador e,com ele parado, decidiu pegar os de-graus da escada estreita e ngreme direita. Estava indo para o 7e andar,o ltimo, rumo minirredao daExpo,a revista que fundara em 1995com o intuito de vigiar os passos daextrema-direita da Sucia.O homem no chegou ao destino.O esforo realizado naescada,in-comum para um sedentrio clssi-co que, no bastasse a ausncia deexerccios, alternava cigarros e cafsem grandes doses, foi demais paraseu corao submetido a uma roti-na massacrante. Sua jornada de tra-balho estava girando em torno de14 horas dirias. AIi nos degraus, natarde fria de Estocolmo, ele desabou,vtima de um ataque cardaco. Foisocorrido, mas morreria poucas ho-ras depois sem jamais haver recupe-rado a conscincia. Era um jornalistade esquerda, neto e filho de comu-nistas, e no tinha nada ao morrer,O apartamento tmido em que mo-rava com a arquiteta Eva Gabrielssonfazia30 anos era alugado.Os documentos em seu bolso tra-ziam o nome do morto: Karl Stig-112.: POC. 29 de maro de 2o1O

    Erland Larsson. Ou, como ele assi-nava seus artigos inflamados, StiegLarsson. Stieg, e no Stig, embora osom seja o mesmo, porque tinha umamigo homnimo, que acabaria vi-rando tambm escritor. Ele dizia quea alterao fora decidida, entre osdois Stigs, num aremesso de moe-da. Vivo, Larsson foi um caso raro dejornalista que, na meia-idade, con-serva os ideais igualitrios e os so-nhos tpicos da juventude, entre osquais o de escrever romances,Morto, virou o protagonista au-sente de uma das histrias mais ex-traordinrias de sucesso na litera-tura moderna,Quando morreu, Larsson estavana iminncia de ver enfim nas livra-rias o primeiro fruto de uma em-preitada literria pca a que vinhase entregando, em horas tardias,desde meados da dcada de 90. Ovolume inicial da chamada trilogiaMillennium, recusada pela primeiraeditora que ele procurou, seria lan-ado pouco depois. Foi. O que ocor-reu de l para c foi um fenmenoem escala global, uma improvvel eirresistvel "millenniumania". Ini-ciada na pequena Sucia, espalhou-se com o vigor de um viking pelomundo, primeiro na forma de livrose mais recentemente tambm nocinema. Acaba de chegar ao maior

    mercado cinematogrfico do mun-do, o americano, o filme do primei-ro livro da srie, A menina com a ta-tuagem de drago.Falado em sueco num pas emque legendas nos cinemas costu-mam ser abominadas, o filme foirecebido com entusiasmo quasejuvenil pela crtica, pelo pblico epela prpria comunidade dos dire-tores de cinema. Um deles lamen-tou no ter os atributosparafazera refilmagem hollywoodiana de umfilme de ao e se disse obcecadopelos livros de Larsson. O crticodo The Washingto n Pos defi niu-ocomo um dos raros filmes de duas

    ?4*qx*4*-4L*&"*Mikael Blomkvist(MichaelNyqvisD, aolado de LisbethSalander(Noomi), vive ojornalista a/ferego de StiegLarsson ho lado,em foto de 1994)

    Fotos: divulgao e Monica Schmidtz/Scanpir

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    horas e meia em que voc no ficaolhando para o relgio. No Brasil, aestreia est prevista para 23 de abril.Tnto no livro quanto no filme, foimantido no Brasil o ttulo do ori-ginal de Larsson, Os homens queno amayam as mulheres. O nomemais provocativo, com a tatuagemde drago, foi uma deciso da edi-tora da verso em ingls.Sob um ttulo ou outro, a obra deLarsson vem fascinando pessoas detodas as partes. At aqui, foram ven-didos 25 milhes de exemplares em42 paises. Se possvel chamar al-gum de milionrio pstumo, ocaso de Larsson. Ele morreu com a

    conta bancria seca. Calcula-se queos direitos autorais da trilogia j te-nham rendido ao esplio cerca deUS$ 30 milhes. Como foi lana-do apenas o primeiro filme da s-rie, esse dinheiro vai aumentar con-sideravelmente. Hollyr,vood fazendosua verso ter um efeito multiplica-dor. A lei sueca pune heranas comuma taxao de 50o/o. Mesmo assim,sobrar um patrimnio exuberantepara os herdeiros.No chega a ser surpresa, dadasas cifras, a guerra que se trava na]ustia sueca pela fortuna geradapelo suor e pela imaginao de StiegLarsson. Ele e Eva, embora juntos

    desde a adolescncia, jamais chega-ram a se casar formalmente. A leisueca no protege cnjuges nessasituao. Em caso de morte de umdeles, o outro est habilitado basica-mente ao pesar e ao luto, mas no aoesplio. A no ser que haja um tes-tamento. Larsson feztmna casa dos20 anos. Nele deixava tudo - que eranada - a uma agremiao comunis-ta de sua cidade. O documento nocumpre exigncias burocrticas sue-cas, o que significa que os conterr-neos comunistas de Larsson perma-necero mngua.EIe no fez, posteriormente, ne-nhum outro testamento. fac;l

    Gorirao video daentrevista coma atrz NoomiRapace emepoca.com.br. r o r-.o d- 2C, u pOC .113

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    Trilogia desucessoOs trs romances da serie Millennium oram lanados pela Companhia dasLetras a partir de 2OOB e j venderam mais de 2BO mil exemplares no Brasil

    nema, os trechos em itlico em pas-sagens que o autor quer destacar, astramas menores paralelas em meio trama principal. Mesmo assim, outalvez por isso mesmo, uma obraque enfeitia e pode at viciar. Noexistem classifi caes intermedirias:ou as pessoas so do bem ou so domal. uma paisagem em branco epreto a que Larsson pintou. O tra-dutor francs da trilogia chegou acompar-lo aBalzac com sua Co-mdiahumana, mas isso vale apenasem parte. Como na Comdiahuma-

    na, p esonagens da trilogia Millen-niumpulamde um livro para outro.Mas as criaturas deBaTzac,ao con-trrio das de Larsson, podem oscilarentre a grandezae a misria moral,ao sabor das circunstncias.EmBalzac, como na vida, o malmuitas vezes triunfa. Em Larsson,o bem liquida o mal. A tiros, rema-das, por meio de chamas ou o quefor. Para o leitor, um conforto.Bastam as injustias da vida coti-diana. Outro ponto que aproximaLarsson deBalzac a capacidade de

    azer vocvirar apgina para vero que vai acontecer em seguida. um atributo de grandes contadoresde histria. A diferena vital, a, que Balzac aliava ao enredo mag-neizador uma prosa de gnio. No o caso de Stieg Larsson, como no o de outros autores de livros desuspense, como Dan Brown e fohnGrisham. O que no um problema.O essencial, nos best-sellers, umahistria que faa voc se agarrar aolivro com ardor. O escritor perua-no Mario Vargas Llosa escreveu queencontrou nos livros de Larsson omesmo prazer que, jovem, tivera aofolhear os romances aventurescosde Alexandre Dumas.O que distingue Stieg Larsson deoutros campees de venda do gnero a motivao, o objetivo, arazo deinventar uma histria e cont-la aosoutros. Larsson, e a est o principalmotivo de ele ter virado um semi-deus entre os suecos, criou sua sagapor uma causa, no pelo dinheiro,como to comum. Ele mostroudominar as tcnicas do romance desuspense com a competncia de umprofissional consagrado, mas noperdeu o esprito amador, ou idealis-ta, ao longo de toda a vida. Larssonentregou-se literatura sem adian-tamento, sem garantia nenhuma deque o mundo turbulento que criavanas madrugadas frias de Estocolmoseria exposto um dia ao pblico etraria ao criador alguma espcie derecompensa material.Ele no ganhava nada, tambm,pelo trabalho na Expo, como todosos demais jornalistas da revista. Aminscula redao composta devoluntrios, como a editora KajsaLindohf. Ela fala de Larsson com

    0shomensquanoamav,,mdmrrlhees2005O jornalista Mikael Blomkvistinvestiga o desaparecimenoda integrante de umpoderoso cl. Ao lado dahacker Lisbeth Salander,Blomkvist percebe que ocaso se relaciona com umasrie de assassinatos

    Amenlnaquebrtncaracomogo2006Acusada de trsassassinatos, Lisbeth estforagida. Blomkvist tentalimpar o nome da hackere acaba conhecendo opassado traumtico dela.Mais tarde, ele descobre queLisbeth est envolvida emcrimes da indstria do sexo

    Prontos os doisprimeiros volumese com o terceiroem andamento,procura uma editora.A primeira,Piratfrlaget, recusa.A Nordstedts fechacontrato paratrs livrosFotos: PerJarl/Scnpix e djvulqao (3)

    @Chega aos cinemasna Europa o filmebaseado no romanceinicial, feitona prpria Sucia O ilme estreia nosEstados Unidos, sobaplausos da crticae do pblico, eHollywood se preparapara azer uma versoEETMorre do coraoaos 5O anos, apsdesmaiar ao subir aescada do prdio daExpo. A amigaKalsa Lindoh hoje"**r*tu*--l lanado naSucia o primeirovolume da srie, Oshomens que noamavam as mulheresOs demais foramlanados nos doisanos seguintes

    Arahthadocailelodeat2007Lisbeth planeja suavingana contra o homemque tentou mat-la e ogoverno sueco, que quasearruinou sua vida. Elaprecisa ainda livrar-se dasacusaes de assassinato.Para isso, pede ajuda aoamigo jornalista Blomkvist

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    MenteAberlaedente admirao. Credita as fofo-cas em torno da real capacidade delecomo jornalista ao cime. A bandeirade Larsson continua nela e na equipeda Expo:um olhar agudo, inquisitivo,contnuo a todas as manifestaes deintolerncia entre os suecos, seja con-tra judeus, islmicos, homossexuaisou o que for. A luta de Lisbeth Sa-lander e Mikael Blomkvist contra omal era e e uma espcie de continua-o da luta do prprio Larsson: osinimigos, ainda que amplificados ouat transformados em caricatura nafico, eram os mesmos.A Sucia cruel descrita por Larsson um exagero, mas ele parecia enten-der que e prefervel superestimar afora de radicais como os neonazis-tas e os islamofbicos a subestimla.As taxas de crime da Sucia so dasmais baixas da Europa e a tolernciagenerosa com estranhos e imigran-tes notvel. Um imigrante da So-mlia - que, por muitos anos, diri-giu caminhes de carga pela Europa- diz que em nenhum iugar foi tra-tado com tanta civilidade como naSucia. O estrangeiro em Estocolmo encarado como visita. Recebe infor-maes e ateno com extrema facili-dade em qualquer ponto e a qualquerhora. A hostilidade comunidade is-lmica, to presente na Europa hoje,no se percebe na Sucia.A maior queixa dos imigrantes emrelao ao pas reside no termme-tro. Mesmo em maro, j no limiarda primavera, registraram-se nesteano temperaturas de 20 graus nega-tivos. fuos e lagos congelados so aomesmo tempo deslumbrantes e de-primentes em sua brancura e imen-sido glaciais. A neve que j se des-pediu em maro de pases tambmfrios como a Inglaterra permaneceainda na Sucia. comum ver, nasruas, pessoas de uma certa idade semovendo apoiadas em bengalas paraenfrentar a dificuldade razida pelaneve. Pessoas jovens e vigorosas usamcom frequncia uma espcie de es-peto para se locomover com maisfacilidade. Tinha de surgir num lu-gar como a Sucia um provrbio cli-mtico to sbio: "No existe frio.Existem roupas erradas". uma terra prspera e igualitria,mas no exatamente feliz. Os pasesnrdicos, nas listas de "felicidade",no costumam parecer antes da 50a116 J Poca, 29 de maro de 2olo

    LW#,4

    V-4?;;j"1.253?2't2::?ft.:4iz{}Joakim e ErlandLarsson, irmo e pai deStieg Larsson (acimil.Eles brigam pelaherana milionriacom Eva Gabrielsson,mulher com quem oescritor viveu desde aadolescncia, mas nose casou ormalmente

    *".

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    colocao. Os ndices de suicdio soaltos, a despeito da esplndida redede proteo social estendida para oscidados. Para alguns estudiosos, adisparidade entre a situao econ-mica confortvel e a melancolia detanta gente torna a Suecia e os vizi-nhos como a Dinamarca to prop-cios literatura policial como a deLarsson e de tantos outros escrito-res da regio.Foi nesse mundo em que "muitobem-estar convive com muita de-presso" que Stieg Larsson nasceu,viveu e morreu. "Ele era nico, e suafalta ser sentida terrivelmente pelosque tiveram o privilgio inesquecvelde conhec-lo, trabalhar com e1e e serum de seus amigos e camaradas."As-sim escreveu um jornalista ingls deuma pequena revista de esquerdapara a qual Larsson contribuiu comartigos at sua morte. Era o final de2004, e fazia poucos dias que o ho-mem com cheiro de cigarro e cafencontrara num final de tarde umelevador que no funcionava, no pr-dio da revista que fundara, e decidirasubir as escadas rumo ao 7e andar.

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