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António Nóvoa
Apostar na Educaçãopara reinventar Portugal
"Confiança" e "vima visão de futuro", reclama António Nóvoa para o país sair da crise, numa entrevista em que o prof.universitário e historiador da Educação, recentemente distinguido com o Prémio Universidade de Coimbra 2014 e o títulode reitor honorário da Universidade de Lisboa, aponta os grandes desafios que Portugal tem pela frente, entre eles "apostarna cultura escolar e científica" e "reinventar a democracia, o desenvolvimento e a integração de Portugal na União
Europeia e num mundo globalizado"
Carolina Freitas
r
EÉ um otimista, por natureza e
convicção. Não foge dos problemas,mas prefere perseguir soluções.Interessa-lhe o passado, mas semprenuma perspetiva de futuro. Numaatitude de "construção" que acreditaser o dever de um "homem de ação",como se considera. "Agir com sen-tido de futuro" é o que tem procuradoao longo da sua vida, diz AntónioNóvoa. Quer entre 2006 e 2013, "numtempo de grandes dificuldades,quando tudo parecia impossível",como reitor da Universidade de Lis-boa (UL), em que promoveu com o daUniversidade Técnica, António CruzSerra, a fusão de ambas as institui-ções, em 2012. Quer em desafios mais
recentes, como a preparação de umprograma de formação de professo-res, no Brasil, país em que é especial-mente (re)conhecido e prestigiado,de que agora se ocupa.Em visita a Portugal, para come-morar os 40 anos do 25 de Abril- "o meu dia", como gosta de lhechamar -, António Nóvoa fala, ao
JL/Educação, do seu olhar sobre o
atual estado da Educação e do país.Um momento de "retrocesso" e
em que "tudo parece bloqueado",afirma. E apresenta o que pensa sera 'chave' para o futuro: "Apostarna cultura escolar e científica"e "reinventar a democracia, o
desenvolvimento e a integração de
Portugal na União Europeia e nummundo globalizado". Porque, acre-dita, "há sempre uma saída".Professor catedrático do Instituto de
Educação da UL e reitor honorárioda mesma instituição, António Nó-voa, 59 anos, tem-se especializadonas áreas de História da Educação e
Educação Comparada, sendo autorde cerca de duas centenas de títulossobre o tema, entre livros e artigos.Doutor em Ciências da Educaçãopela Universidade de Genebra e emHistória pela Sorbonne, lecionouem importantes universidades
portuguesas e estrangeiras e foi
presidente da ISCHE - AssociaçãoInternacional de História da Educa-
ção (2000-2003).JL/Educação: Está, atualmente, noBrasil como consultor da UNESCOe também como professor visitanteda Universidade de Brasília. Comotem sido essa experiência?António Nóvoa: Muito interessante.O meu trabalho como consultor daUNESCO incide essencialmentesobre a formação de professores,
que é um enorme problema noBrasil. Existem mais de dois milhõesde professores, muitos deles comformação deficiente. E há hoje umaclara consciência de que as grandesmudanças educativas no Brasil vão
depender de uma melhoria das con-dições de trabalho dos professorese do seu nível salarial, mas tambémda sua qualificação. Estou a traba-lhar no desenho de um programa de
formação de professores, que teráde ser aprovado pelo governo. Isso
tem-me levado a viajar pelo país, aouvir muitas pessoas e entidades, o
que tem sido bastante enriquecedor.
É, aliás, um dos temas a que mais se
tem dedicado.Precisamente. Este trabalho dácontinuidade ao que vinha desen-volvendo no domínio da formação de
professores, enquanto na Universi-dade de Brasília (Unß) 'retomo', de
certo modo, o que fazia como reitorda Universidade de Lisboa (UL).Estou a trabalhar junto do reitor, o
prof . Ivan Camargo, no seu projeto d<
'transformar' a Unß naquilo que elechama uma Universidade do Futuro.
Que retrato faz do atual estado daEducação no Brasil?Além de uma débil formação dos
professores, o Brasil tem outrogrande problema: a fragmentaçãoentre as escolas públicas e privadas.Regra geral, a privada é boa e a pú-blica bastante má. Curiosamente,no Ensino Superior, é exatamenteao contrário. Há universidadespúblicas muito boas - de quali-dade idêntica à de Portugal -, e as
privadas são, geralmente, muitomás. Acontece que apenas 20% dos
alunos universitários brasileirosestão no público, os restantes 80%frequentam o privado, o que sig-nifica que a maioria está a ter umaformação superior insuficiente.Existe vontade política pararesolver essa situação?Sim, o Brasil tem, hoje, consciên-cia de que se não reforçar a escola
publica, se não construir uma escola
'republicana' - inclusiva e de quali-dade -, não conseguirá cumprir os
projetos de desenvolvimento que tempela frente. É uma ideia que não exis-tia há dez anos, mas que é hoje muitonítida. E dentro dessa nova escola
pública, há pelo menos três pilaresque são, para eles, fundamentais.
Quais?Desde logo, apostar na formaçãodocente. Depois, na valorização dos
professores, que têm níveis salariaismuito baixos. E finalmente, namelhoria das infra-estruturas esco-lares, que estão muito degradadas.
É, portanto, um momento demudança.Sem dúvida. Na Educação, e não só.
Numa imagem simplista, podemosdizer que a grande mudança do
Brasil, nos últimos dez anos, é que o
país tinha sido desenhado para dezmilhões de habitantes. Era como se
os outros 190 milhões não existis-sem: não tinham acesso à Saúde,à Educação, à Cultura. E a grandetransformação, que deve muito ao
Presidente Lula da Silva, foi a tomadade consciência de que o país tem200 milhões de pessoas e que todostêm os mesmos direitos. O que na
Educação se traduz na ideia de quesem apostar numa escola pública de
qualidade, o Brasil não conseguirádar o salto de desenvolvimento que a
sua riqueza material permite.Essa 'consciência' aliada aocontexto económico favorável podefazer a diferença?Pode. No entanto, é muito inte-ressante que quando me 'queixo'da situação que se vive em Portu-gal - a crise, o desinvestimento naEducação, etc. -, e a comparo com a
do Brasil - que todos os anos cresce,aumentamos salários, etc. -, a
resposta dos brasileiros é muitasvezes a mesma: quem nos dera estarno vosso lugar.
Porquê?Apesar dos cortes, Portugal já per-correu um caminho que, no Brasil,está ainda por fazer. Apostámos naEducação, na Ciência, na Investiga-ção; na construção de uma boa redeescolar. Enquanto os brasileirostêm as condições económicas, masestá quase tudo por fazer. No fundo,há a perceção de que, apesar deestarem a crescer, ainda falta muito
para chegar onde nós estamos no
que diz respeito à escola pública, à
cultura escolar e científica.Essa 'consciência' parece estartambém na população, a avaliarpelas muitas manifestações que têmacontecido nos últimos anos.Está. Mas é preciso dizer que o mal-estar que se sente no Brasil é muitodiferente do de Portugal. O nossoé o de um país que está a recuar, de
pessoas que estão a perder direitos,liberdades, garantias. O do Brasilé de quem já ganhou consciênciade certos direitos, sabe que algunsestão a ser conquistados, mas quehá ainda muito pelo que lutar. São
processos muito distintos, con-fundi-los seria absurdo.
PARA LÁ DOS CORTESSão processos distintos tambémno que toca à Educação, com oBrasil a investir e Portugal a cortarna escola pública. Como vê essedesinvestimento?É verdade que tem havido umretrocesso do ponto de vista do
investimento - o orçamento para a
Educação baixou para níveis de há 20anos -, mas preferia não falar disso.
Intencionalmente. Isto é: para não'ouvir' a resposta habitual de queestamos num momento de crise e
que, por isso, os cortes são inevitá-veis. Preferia pôr de lado essa questãoe analisar as políticas deste governoque nada têm a ver com o contextoeconómico. São políticas que esteExecutivo seguiria mesmo que nãohouvesse necessidade de cortar.Está a falar da natureza ideológicadas medidas?Exatamente. A atual política para a
Educação faz parte da matriz ideo-lógica deste governo, que nada tema ver com a crise, e que podemosilustrar com quatro 'E': Escolha,Excelência, Empregabilidade e
Empreendedorismo.
A atual política paraa Educação faz parteda matriz ideológicadeste governo, quenada tem a vercom a crise, e quepodemos ilustrarcom quatro 'E':
Escolha, Excelência,Empregabilidade e
EmpreendedorismoConseguimos criaruma escola onde estãotodas as criançase jovens, mas nãoconseguimos aindauma escola ondetodos aprendem.Ou seja, ganhámos abatalha da presença,mas falta ganhar a da
aprendizagem. É umdos grandes desafios
que temos pela frenteHá que construir umademocracia mais
participativa,de maior proximidade.Os cidadãos estão
hoje muito maisinformados e não
querem apenas votarde quatro em quatroanos e depois deixarque decidam por eles.A democraciade Abril temde ser reinventadaPortugal precisade uma outra visãosobre a democracia,o desenvolvimentoe a integração naEuropa e no mundoglobalizado, e deunir dois pilaresfundamentais: oconhecimento e oterritório, a ciênciae a sociedade,as universidades
e as empresasComecemos pelo primeiro.É a famosa ideia da 'liberdade deescolha' que, no fundo, é um eufe-mismo para falar não da liberdade,que é o combate da minha vida,mas da privatização da Escola. NoGuião da Reforma do Estado, há pelomenos sete medidas que têm a vercom a privatização do ensino, e queeste governo vai buscar às políticasda era de George W. Bush, nos EUA.Não é para poupar dinheiro. O queestá em causa é um ataque à escola
pública tal como foi construída de-pois do 25 de Abril. Depois segundo'E', de Excelência, que tem subja-cente ideia de um ensino seletivo.Em que sentido?E preciso lembrar que, antes de ser
ministro, Nuno Crato afirmou quenem todos os alunos podiam tersucesso na escola, que isso era umaideia romântica, e que se algunstivessem sucesso parcial já nãoseria mau. Infelizmente, o discursoda Excelência é, quase sempre, umdiscurso contra a inclusão. Preci-samos de reforçar a cultura de ava-liação, mas subjacente a medidascomo a introdução de mais examesestá a ideia de uma seleção feita deexclusão. Curiosamente, estas duasideias - a privatização e o ensino de'excelência' - fôramos dois grandespilares da política educativa dosmandatos de Bush. Vale a penaler, a este propósito, dois livrosescritos pela principal consultorade Bush na área da Educação, Diane
Ravitch, em que ela explica porqueé que toda essa política se revelouum embuste: The Death and Life ofthe Great American School System(2010) e lhe Reign of Error (2013).E o que representa o 'E' de
Empregabilidade?Uma visão estreita do ensino, pre-sente em políticas que, no Secun-
dário, e agora também no Básico,
apostam no 'célebre' ensino voca-cional/profissional, e, na Universi-dade, na criação de ciclos curtos noEnsino Politécnico; de vagas só paraos cursos que têm saídas profissio-nais, etc. No fundo, está em causaum afunilamento do olhar sobre
a Educação, que é obviamente umprocesso muito mais amplo e com-plexo do que a preparação para umemprego. E não deixa de ser curioso
que quanto mais se fala de emprega-bilidade, menos emprego existe. O
Empreendedorismo - o quarto 'E' -traduz, por sua vez, uma redução daCiência: só interessa se for imediata-mente 'útil', aplicável. Como se saberMatemática ou Física, e por maioriade razão História ou Filosofia, fosse
completamente inútil e desnecessá-rio. O Empreendedorismo despreza a
ciência como cultura, para valorizar
apenas a sua imediata 'utilidade'.
É, então, um crítico em relação a
esses quatro 'E'?As palavras não têm culpa. E emabs trato, ninguém terá nada contra a
Escolha, a Excelência, a Empregabi-lidade e o Empreendedorismo. Mas a
forma como estes conceitos têm sidotraduzidos em políticas corresponde
António Nóvoa "A pior notícia para Portugal seria as pessoas desistirem da Escola, porque se há um valor
que marca os 40 anos de Abril é a crença na Educação"
a um enorme retrocesso. O pri-meiro em relação à escola pública; o
segundo ao princípio da inclusão; oterceiro a uma formação mais geralde base científica e humanista; e o
quarto à Ciência como cultura. Este
enorme retrocesso vai deixar marcas
para os próximos anos.
CONQUISTAS E DESAFIOSDE ABRILAssinala-se agora o 4O. e aniversáriodo 25 de Abril. Como avalia estas
quatro décadas da Escola emdemocracia?Destaco cinco aspetos, três no Ensino
Básico, um no Superior e outro naCiência. Emrelação ao Básico, conse-guimos criar uma escola onde estão
todas as crianças e jovens, mas não
conseguimos ainda uma escola ondetodos aprendem. Ou seja, ganhámosa batalha da presença, mas falta
ganhar a da aprendizagem. É umdos grandes desafios que temos pelafrente. Por isso, quando me pergun-tampara que serve um professor,respondo: para ensinar os alunos quenão querem aprender. Porque temosainda muitos alunos para os quais aescola não faz sentido. É preciso quea escola tenha um sentido pessoal e
social para todos os alunos, pois só
assim conseguiremos construir a
motivação, o esforço e o trabalho da
aprendizagem.De que forma?Com dois 'movimentos' muito im-portantes: uma Escola centrada naaprendizagem e o reforço do espaçopúblico da educação. Primeiro,é preciso compreender as novas
gerações, que pensam, sentem,comunicam e aprendem de maneiramuito diferente de nós. É precisocompreender estas diferenças econstruir pedagogias coerentes e
adaptadas aos tempos atuais. Umapedagogia tradicional, meramentetrans missiva, em que a pedagogia se
faz num único sentido - do professorpara o aluno - é um anacronismo. É
preciso construir a aprendizagemcornos alunos, construir pedago-
gias da relação, da participação,da comunicação, da partilha. Não
podemos deixar-nos levar pela ideiade que a pedagogia do nosso tempo é
que era boa e exigente.E o segundo "movimento"?É a assunção, por parte da socie-
dade, que a Educação não está
apenas na escola; deve ser tambémda responsabilidade dos pais, das
famílias, das instituições cultu-rais, das autarquias, dos centros de
saúde, de desporto, etc. É o que tenho
designado por Espaço Público da
Educação. É a metáfora da 'cidadeeducadora': as cidades têm hoje umagrande diversidade de instituições edeve haver uma maior partilha das
responsabilidades educativas. Não
podemos continuar com uma Escola
'transbordante', à qual pedimos quefaça tudo e mais alguma coisa.
Qual deve ser, do seu ponto de
vista, o papel do professor nessa
'reconfiguração' ?
As políticas do atual governo vieramreforçar uma visão tradicionalistada escola em Portugal. Claro que os
alunos têm de aprender Portuguêse Matemática! A questão é como.É preciso liberdade pedagógica. É
preciso que cada um construa a suamaneira própria de ser professor. É
preciso acabar como dirigismo doMinistério da Educação, que atingiuníveis impensáveis com este go-verno, o mais doutrinário do pontode vista pedagógico desde o 25 deAbril. O ministro Nuno Crato é quesabe quais são os métodos bons; se
se deve usar calculadora no ensinoda Matemática; a internet e as novas
tecnologias na escola...
É preciso, então, mais autonomia?Sim. Em suma, os três principaisdesafios da Educação Básica são:
conseguir que todos aprendam naescola; desenvolver uma pedagogiacooperativa e participativa, quereforça o papel e a autoridade do
professor; e estabelecer um novo'contrato educativo': o do séculoXX era "A Educação faz-se dentroda escola", o do século XXI terá de
ser "A Educação faz-se em todos os
lugares".E em relação ao Ensino Superior eà Ciência?Fizemos um enorme esforço de
expansão do Ensino Superior, masainda estamos muito longe da médiados países europeus. É preciso, porum lado, continuar essa expansão.Por outro, desenvolver o conceitode 'UniverCidade'. Isto é: que as
universidades se liguem cada vezmais ávida pública, à economia, às
autarquias. Muitas felizmente estão a
f azê-10, mas é preciso ir mais longe. O
mesmo em relação à Ciência. Em vezde um empreendedorismo estreito,é necessário trazer o conhecimentocientífico para a sociedade; que ocaminho percorrido na Ciência sirva
para fertilizar a Economia. Mas são
precisos dois para dançar o tango. As
empresas, as autarquias, etc. têm que'dançar' com a Universidade. Desta
relação depende o futuro de Portugal.CULTURA ESCOLARE CIENTÍFICAParecem grandes desafios paratempos tão difíceis.
Portugal tem que acreditar nacultura escolar e científica, como in-felizmente nunca acreditou: sempreouvimos ideias como 'o meu filho nãotem cabeça para os estudos', 'nemtodos podem ser doutores'; e até quea Ciência não era para ser feita pornós, mas pelos outros povos. Por isso,
Eça de Queirós dizia que a culturae a ciência nos ficavam caríssimas,
pois tínhamos de pagar direitos de
Alfândega. Num tempo de crise - eudiria mesmo, sobretudo num tempode crise - não podemos abrandarneste esforço, que marca o melhor deAbril. Agora, precisamos de trazer a
educação e a ciência para dentro daeconomia e da sociedade, renovandoas empresas e construindo uma novavisão do desenvolvimento.Acaba de sair um estudo, da
Direção- Geral das Estatísticasda Educação e Ciência (DGEEC),que revela que o número dosalunos que pretendem prosseguira sua formação académica,após o Secundário, tem descido
significativamente desde 2008,o início da crise. É um dado
preocupante?É um dos grandes dilemas domomento atual. Como sabemos, aHistória de Portugal faz-se de gran-des ciclos e, nos últimos dois séculos,de ciclos de 40 anos: do Liberalismo à
Regeneração; da Regeneração ao Ul-timato de 1890; da revolta de 1891 ao
fim da República; o Estado Novo; e o
pós-25 de Abril. Estamos a iniciar umnovo ciclo. O problema maior que te-mos para resolver é não desperdiçara geração que temos vindo a formar,e bem, é fazer com que estes jovens
ajudem a renovar o nosso tecido eco-nómico e social. A pior notícia paraPortugal seria as pessoas desistiremda Escola, porque se há um valor quemarca os 40 anos de Abril é a crençana Educação.CONSTRUIR FUTUROSComo olha para o atual estado do
país?É um país muito mais pobre e desi-gual do que antes da 'ajuda externa',e vamos ter que fazer um grandeesforço coletivo para abrir um novociclo. Se a crise já era dura, as políti-cas seguidas ainda a vieram agravar.O governo 'massacrou' as pessoasde tal forma que estas 'aceitaram'
que lhes fossem retirados direitos.Houve uma excessiva dramatizaçãoda crise, que se destinou a legitimarpolíticas que, de outro modo, nin-guém teria aceitado.
Falou em perda de direitos. Acha
que Portugal também vive umretrocesso do ponto de vista dademocracia?A crise não é apenas uma realidadeobjetiva, é também construídaideologicamente. Não tenho dúvidas
que a crise foi aproveitada para criarum Estado de Exceção. Deixámos de
viver num Estado de Direito e passá-mos a viver num Estado de Exceção.Nesse sentido, é legítimo dizer quea liberdade e a democracia têm sido
postas em causa. Não do ponto devista formal - continuamos a ter li-berdade de expressão, eleições, etc.
-, mas no sentido da perda de direi-tos consagrados na Constituição.Ouve-se muito, a esse propósito, o
argumento da "inevitabilidade".Uma coisa é conter as despe-sas, reduzir o défice, equilibraras finanças públicas. Creio queninguém está contra isso. Outra,bastante diferente, é a austeridade.A austeridade é uma política quepartindo daquela constatação,promove medidas atentatórias dos
direitos sociais e do trabalho. É
preciso separar a necessidade dereduzir a despesa da austeridadecomo política. Se não o fizermos,não percebemos nada do que nosaconteceu nos últimos anos, nome-adamente que esta austeridade temuma clara matriz ideológica.
Quais são, para si, as linhas quedevem 'tecer' o novo ciclo de quefalava?
Peguemos nos três 'D' de Abril:Democracia, Desenvolvimento e
Descolonização. Primeiro, é precisoreinventar a democracia. A que te-mos está esgotada. Percebemos, porexemplo, que a maioria da popula-ção portuguesa já não se revê nestes
partidos políticos. Os partidos são
absolutamente necessários, mastêm de se reinventar.
De que fornia?Há que construir uma democra-cia mais participativa, de maiorproximidade. Os cidadãos estão
hoje muito mais informados e não
querem apenas votar de quatro emquatro anos e depois deixar quedecidam por eles. A democracia deAbril tem de ser reinventada.Assim como o modelo de'Desenvolvimento'?Sim. A ideia que podemos continuarcom este modelo de desenvolvi-
mento, com estes níveis de explo-ração dos recursos e de consumo de
energia, é absurda. Precisamos de
um desenvolvimento em paz comTerra, tema que a crise empurroupara segundo plano. Se continuar-mos a viver como vivemos, o pla-neta não sobreviverá ao século XXI.Está a falar de uma mudança desistema a nível global.Exatamente. O regime capitalista,e o neoliberalismo, em particular,alimenta-se de um consumo desen-freado. Se não for assim, entra emcolapso. Um crescimento perpétuo e
um consumo insaciável são utopiasnegras, descabidas e irrealizáveis.Não sairemos da crise como nela
entrámos, como se tivesse sido umaespécie de interrupção com tudo a
regressar à mesma 'normalidade'.Não. Nunca mais voltaremos à reali-dade anterior. E, num certo sentido,ainda bem. Estamos num momentofulcral, decisivo, para redefinir o
nosso paradigma de desenvolvi-mento. No caso português, esse
novo modelo terá de passar tambémpor um investimento na nossa inde-pendência.Em que sentido?
Portugal tem de apostar no desen-
volvimento de um tecido produtivoe empresarial capaz de dar inde-pendência económica ao país e
continuar a apostar na educação e
na ciência que são fatores decisivosda nossa independência cultural e
política. Muitas vezes desdramatizoa crise dizendo que Portugal temtudo para ser um país com futuro:somos 10 milhões de pessoas; temosboas infraestruturas, boas comuni-cações, uma administração públicacentral e local que melhorou mui-tíssimo, uma população qualificada,bons centros de ciência; somos umpovo acolhedor, com ligações emtodo os continentes; temos a terra,um imenso mar, a Língua Portu-
guesaque temum potencial econó-mico extraordinário... Voltamos aoinício da conversa: quando compa-ramos Portugal com o Brasil, quaseapetece dizer que nós temos tudo o
que ainda falta ao Brasil, apesar docaminho extraordinário que este
país tem feito nos últimos anos.
Então, o que é que nos falta?
Confiança e uma visão de futuro.E aqui entra o terceiro 'D', de Des-colonização, que parece não fazersentido hoje em dia, mas faz. Tema ver com a nossa integração naUnião Europeia (UE).
Como reitor da Universidade de Lisboa "As cidades têm hoje uma grandediversidade de instituições e deve haver uma maior partilha das responsa bilidadeseducativas. Não podemos continuar com uma Escola 'transbordante', à qualpedimos que faça tudo e mais alguma coisa"
44As grandes mudançasno mundo fizeram se
sempre pararesponder a crises e adificuldades. O atualgoverno limitou se acortar, sem estratégiae sem visão. Está tudona mesma, mas maispobre, mais frágil,mais desigual.
Um Presidente daRepública não podefalar apenas do lugarda economia e dos
mercados, tem detrazer dentro de si as
pessoas, a Língua, aCultura, a LiteraturaUm professorpessimista é umacontradição: se eunão acredito quetodos os meus alunospodem ir mais longe,não tenho o direitode ser professor.O mesmo se aplicaà política. Quemestá na vida públicatem a obrigaçãode ser otimista, deconstruir o futuro,de dizer às pessoasque há futuro paraalém da criseO mal estar quese sente no Brasil émuito diferente do dePortugal. O nosso é ode um país que está
a recuar, de pessoasque estão a perderdireitos, liberdades,garantias. O do Brasilé de quem já ganhouconsciência de certosdireitos, sabe quealguns estão a serconquistados, mas
que há ainda muitopelo que lutarTambém é preciso repensá-la?Sem dúvida. Veja-se a questão dos
fundos comunitários. É verdade
que muitos foram mal gastos. E de
quem é a 'culpa' ? É da UE que nosdeu dinheiro para muitas infra-estruturas, mas pouco nos deu paraa Escola e para a Ciência, por exem-plo. Mas também é nossa, porquepermitimos que assim fosse.
Faltou-nos uma visão de futuroprópria?Completamente. E continua a faltarao atual governo. Foi isso, aliás, quelevou a que se cortasse por igualno que estava bem e no que estava
mal, no que era preciso continuare no que era preciso acabar. Hoje,estamos mais longe de ter uma visão
estratégica para Portugal do quehá três anos. As grandes mudançasno mundo fizeram-se sempre pararesponder a crises e a dificuldades.O atual governo limitou-se a cortar,sem estratégia e sem visão. Está tudona mesma, mas mais pobre, mais
frágil, mais desigual. Não fomos
capazes de construir uma visão pró-pria, de assumir opções deliberadas,e de as impor dentro e fora do país,nomeadamente na Europa.No seu entender, por 'onde' deveria
passar essa estratégia de futuro?Por um país com cultura escolar
e científica. Insisto: alguma vezreivindicámos seriamente fundoscomunitários para estas áreas?Raramente. Apanhámos 'boleia' dos
programas comunitários e fomo-nosajustando. Olhávamos para os papéisde Bruxelas e pensávamos 'Ondeé que podemos ir buscar algumdinheiro?' em vez de dizermos 'A
nossa visão para Portugal é esta eé nela que vamos apostar'. E agoraestamos a sofrer as consequências
desta incapacidade, e voltamos a essa
sensação de fragilidade que é o traçomais permanente da nossa história.
Apostar na Educação e na Ciência é
a 'chave' para sair da crise?
Portugal precisa de uma outra visãosobre a democracia, o desenvolvi-mento e a integração na Europa e nomundo globalizado, e de unir dois pi-lares fundamentais: o conhecimentoe o território, a ciência e a sociedade,as universidades e as empresas.E qual deve ser a prioridade nocurto prazo, agora que o programade resgate está a chegar ao fim?Dizer que pagaremos tudo, mas não
em termos inaceitáveis, que nos vãoasfixiar durante muitas décadas.
Precisamos de respirar. Precisamosde nos libertar desta teia de credores
e de interesses na qual insensata-mente caímos e projetar uma novafase da nossa vida coletiva. Temos deestar à altura das nossas responsabi-lidades, mas a Europa também, poiso atual equilíbrio de poderes impedeuma Europa democrática, com coe-são social e uma estratégia de futuro.Foi isso que o levou a assinar,recentemente, o Manifesto
'Preparar a Reestruturaçãoda Dívida para CrescerSustentadamente' ?
Sim. Não aguento mais a lamúria.O olhar para o passado. É tempo d<
construir ideias e alternativas.Tem uma visão otimista em relaçãoao futuro do país, em contraciclocom um certo pessimismogeneralizado. De onde vem tantoentusiasmo?Mia Couto disse, uma vez, que eraotimista porque em Moçambiqueeram pobres demais para se daremao luxo do pessimismo. Sinto o
mesmo face a Portugal. Além disso,alguém que está ligado à Educaçãotem de ser otimista. Um professorpessimista é uma contradição: se eunão acredito que todos os meus alu-nos podem ir mais longe, não tenhoo direito de ser professor. O mesmose aplica à política. Quem está navida pública tem a obrigação de serotimista, de construir o futuro, dedizer às pessoas que há futuro paraalém da crise. Porque sem con-fiança não vamos a lado nenhum.
É o que tem faltado ao Governo e aoPresidente da República?Um Presidente da República não
pode falar apenas do lugar daeconomia e dos mercados, tem de
trazer dentro de si as pessoas, a
Língua, a Cultura, a Literatura, a
Sophia, o Ramos Rosa, o Cesariny,tem de ser a voz dos mais despro-tegidos, tem de ter confiança nos
portugueses e construir com eles os
caminhos do futuro, jl