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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP LUIZ ANTONIO PALMA E SILVA RESSONÂNCIAS DO MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO: PSICANÁLISE, ARTE E POLÍTICA São Paulo 2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP

LUIZ ANTONIO PALMA E SILVA

RESSONÂNCIAS DO MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO:

PSICANÁLISE, ARTE E POLÍTICA

São Paulo

2013

LUIZ ANTONIO PALMA E SILVA

RESSONÂNCIAS DO MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO:

PSICANÁLISE, ARTE E POLÍTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial de obtenção do título de Doutor em Psicologia Social sob orientação da Prof. Dra. Miriam Debieux Rosa.

São Paulo

2013

LUIZ ANTONIO PALMA E SILVA

RESSONÂNCIAS DO MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO:

PSICANÁLISE, ARTE E POLÍTICA

Banca Examinadora

_____________________________________________________

_____________________________________________________

_____________________________________________________

_____________________________________________________

Para as pessoas que compreenderam o

afastamento necessário do som do mundo que este

trabalho me impôs.

Também para aquelas que sequer se importam

quando não estamos por perto porque o coração

desconhece a distância.

AGRADECIMENTOS

Reconheço agradecido a importância que muitos professores e professoras

da PUC tiveram para o meu desenvolvimento intelectual. E agradeço-lhes, ainda

mais, pelo convívio sempre amigável e prazeroso dos encontros em sala de aula,

nos núcleos e nas divagações do café. Iniciei este percurso de doutoramento no

segundo semestre de 2009 quando apresentei uma ideia de projeto de tese para o

professor Salvador Sandoval, a quem agradeço pelo incentivo e o acolhimento no

Núcleo de Psicologia Política naquela oportunidade. Entretanto, no desenvolver do

projeto deparei-me com questões da psicanálise e percebi a necessidade de uma

reorientação teórica. Aproximei-me do Núcleo de Psicanálise e Política e procurei a

orientação da professora Miriam que, com apreço, aceitou a demanda. Suas

orientações precisas e os temas discutidos no NPP me propiciaram ampla abertura

para as questões políticas da subjetividade. A arte, uma questão ainda latente no

projeto, embora nuclear na minha história de vida, surpreendeu pela atualidade e

pela beleza dos vínculos que mantêm com a psicanálise e que no núcleo vicejava.

Logo, agradeço com alegria e afeição a oportunidade de ter recebido a orientação

acadêmica da psicanalista Miriam Debieux Rosa, desfrutando de um estimulante

convívio intelectual e, mais ainda, por compartilhar de sua amizade.

Sou grato ao amigo e professor Odair Sass pelo reencontro na PUC e pela

boa vontade de orientar-me na qualificação e ainda aos questionamentos que

certamente me fará na banca.

Agradeço à professora Inês Loureiro por ter me incentivado durante a

qualificação e pela presença na banca de defesa.

Agradeço ao professor Oscar Cesarotto pela disponibilidade e simpatia com

as quais recebeu meu convite para a banca.

Com um acento especial, agradeço o professor Ricardo Ibarlucía do Instituto

de Altos Estudos Sociais da Universidad Nacional de San Martín e do Centro de

Investigaciones Filosóficas de Buenos Aires, primeiro pela cordialidade com que me

recebeu e me orientou em Buenos Aires e, depois, por ter aceitado participar da

banca examinadora, desde o exame de qualificação e, na fase conclusiva, dispondo-

se vir a São Paulo.

Agradeço ao apoio institucional da FUNDAP – Fundação do Desenvolvimento

Administrativo, para que eu pudesse dedicar parte do período de trabalho aos

estudos que ora concluo.

Aos velhos e novos amigos e camaradas dos núcleos comunicantes de

psicanálise da PUC e da USP minha gratidão por tudo que fizemos juntos e pelo que

ainda poderemos fazer seguindo os passos da chuva e o canto da subjetividade. Ou

gritando na multidão.

RESUMO

O mosaico da fragilidade humana se revela na obra O Mal-estar da Civilização de Freud pela precária e finita existência, pelas agruras e ameaças advindas da natureza e a ambiguidade das relações com o outro. Dessa injunção, o sujeito freudiano, subsumido e insurgente no campo da cultura, perturbado pelo ruído das pulsões e os tons sombrios da opressão do princípio de realidade, é confrontado indefinidamente com o desejo e as exigências da realidade externa. O tema é desenvolvido a partir de noções da psicanálise presentes na obra acima referida em articulação e diálogo com campos da filosofia social, problematizado por dois registros simbólicos da expressão humana, a política e a estética. A questão principal localiza-se nos vínculos entre civilização e cultura que determinam um complexo e sufocante sistema de necessidades para o sujeito, de modo a vislumbrar as faces do mal-estar contemporâneo. A hipótese central é que a despeito da complexidade que engendra o mal-estar e a ampla força adaptativa que o impulsiona, sua configuração social não é impermeável ao telos dialético da história e suas propriedades: coerção e revolta; subjugação e emancipação. A partir da hipótese, duas perspectivações: as possibilidades de superação da auto-reprodução da política que determina sobrepesos ao princípio de realidade; e o alcance da subversão da experiência, qualidade inerente à arte e a função estética, como trilha emancipatória. O percurso reflexivo e analítico da tese pautou-se pela clareza de que os processos de subjetivação não estão desvinculados da produção histórica, em outras palavras, é o processo histórico real que constitui o sujeito no estado presente das coisas.

Palavras-chave: subjetivação; repressão; vicissitude pulsional; princípio de realidade; injunções da cultura e civilização; função estética; arte; emancipação.

ABSTRACT

The mosaic of human frailty is revealed in Freud‟s Civilization and its discontents through the precarious and finite existence, the hardships and threats arising from Nature and the ambiguous relations with the other. Given this injunction, the Freudian subject, subsumed and insurgent in the cultural field, disturbed by the noise of the drives and the dark tones of the oppression of the reality principle, is endlessly confronted with the desire and the demands of external reality. The theme is developed from notions of psychoanalysis present in the work above in liaison and dialogue with the fields of social philosophy, questioned by two symbolic registers of human expression, politics and aesthetics. The main question lies in the bonds between civilization and culture that determine a complex and oppressive system of needs for the subject in order to glimpse the faces of the contemporary malaise. The central hypothesis is that despite the complexity that engenders unease and the wide adaptive force that impels it, its social configuration is not impervious to the dialectical telos of history and its properties: coercion and rebellion, subjugation and emancipation. From the hypothesis, two perspectivations arise: the possibilities of overcoming the self-reproduction of the politics that overweighs the reality principle, and the scope of the subversion of experience, a quality inherent in art and the aesthetic function, as an emancipatory path. The reflective and analytical course of this thesis was based on the clarity that subjectivation processes are not separated from their historical production; or in other words, it is the real historical process that constitutes the subject in the present state of things.

Keywords: subjectivation; repression, instinctual vicissitude; reality principle; injunctions of culture and civilization; aesthetic function; Art; emancipation.

LISTA DAS ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Tela 1 - Eros ............................................................................................. 19

Figura 2 - Tela 2 -Transgressão ................................................................................ 40

Figura 3 - Tela 3 - Fuga ............................................................................................. 58

Figura 4 - Tela 4 - Revolução .................................................................................... 89

Figura 5 - Tela 5 - Imprudência ............................................................................... 106

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................... 11

1 O MAL ESTAR DO SUJEITO NA MODERNIDADE ................................ 20

2 SOB O DOMÍNIO E O ALÉM MAIS DO PRINCÍPIO DA REALIDADE....41

3 RESSONÂNCIAS DA CULTURA: ARTE E ESTÉTICA .......................... 59

4 RESSONÂNCIAS DA POLÍTICA ............................................................. 90

4.1 CULTURA E CIVILIZAÇÃO ................................................................ 91

4.2 SUPERAÇÃO E UTOPIA ................................................................... 95

4.3 EMANCIPAÇÃO E ARTE ................................................................. 101

CONCLUSÔES ............................................................................................ 107

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 109

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .................................................................. 111

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INTRODUÇÃO

O mosaico da fragilidade humana, tal como se apresenta na obra O Mal-estar

da Civilização1, de Freud, é composto pela precária e finita existência, pelas agruras

e ameaças advindas da natureza e pelo paroxismo das relações com o outro. Trata-

se de uma conjugação reveladora do desamparo e das perturbações que sofre o

sujeito no campo da cultura, que para o autor inclui as relações sociais, políticas e

econômicas.

Esse é o âmbito no qual enunciamos o problema da nossa tese, pois

depreendemos que aqui se encontra o torvelinho da sociabilidade, uma vez que a

vida psíquica é pressionada simultaneamente pela dinâmica pulsional e as

aspirações sociais promovidas por uma larga difusão de requisitos civilizatórios.

Essa delimitação que chamamos de âmbito permite que o tema da tese possa

manter-se localizado sem necessariamente prescindir da amplitude teórica que nos

acompanhou durante a trajetória desta pesquisa. Ao invés da circunscrição do foco,

preferimos a imagem de um vale e suas encostas a delinear um horizonte. De um

dos lados das inclinações que conformam essa topografia encontram-se as noções

da psicanálise às voltas com as questões da cultura e da civilização. De outro lado,

a inclinação é marcada por conceitos da política e da estética. Trabalhamos nossas

reflexões como peças reconstituídas da imagem, mais precisamente, com o

espelhamento das encostas do vale sobre o rio. Para os enunciados e as

proposições dos comentaristas cabe como representação o fluxo e as substâncias

que a água do rio conduz. Com estes acréscimos, embora o texto venha a ser

impregnado por apropriações e torções conceituais, não obstante, segue um curso.

Complementarmente, cabe dizer que nossa ambição intelectual para esta tese tem

por objetivo a extensividade, de modo a ampliar inter-relações conceituais, sem

perder a dimensão do tema definido.

O tema localiza-se no campo dos enunciados freudianos presente na obra

elegida, assim como nas referências conexas de outras produções suas,

1 O texto "Mal-estar...” que trabalhamos compõe as Obras Completas de Freud, obra publicada pela

Companhia das Letras, de 2010, com tradução de Paulo César de Souza a partir do original: Gesammelte Werke, 1948, 1940 e 1950.

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considerando como questão relevante dois registros simbólicos da organização

social humana, a política e a estética.

O primeiro registro, preliminarmente entendido como princípios e regras

históricas de ação e convivência humana, ou seja, a ordenação política da vida

social, cujas características principais na sociedade contemporânea, conforme

identificadas por Marcuse, são a dominação e a invisibilidade de suas estruturas: “o

poder se eclipsa e converte-se em racionalidade administrativa” (ROUANET, 1998,

p. 201).

Do segundo registro, a dimensão estética para percorrer sua amplitude,

pareceu-nos fundamental compreender as categorias kantianas definidoras da

imaginação estética: “intencionalidade sem intento” e “legitimidade sem lei”,

articuladas por noções interpretativas da arte e da filosofia por Marcuse (2007,

p.160) e, em seguida, ampliar o fluxo teórico, tal como concebemos o método, às

noções de estética como identificação e pensamento das artes presentes nos textos

de Rancière (2012, p. 11) “de pensar os estudos estéticos de Freud como marcas de

uma inscrição do pensamento analítico da interpretação no horizonte do

pensamento estético”. Partindo destas proposições, procuramos aquilatar as

funções da estética e suas operações “entre prazer, sensualidade, beleza, verdade,

arte e liberdade – uma associação revelada na história filosófica do termo estético”.

(Marcuse, 2009, p.156).

A questão central do nosso texto localiza-se nos vínculos entrelaçados da

civilização e da cultura que determinam um complexo e sufocante sistema de

necessidades para o sujeito.

De modo a vislumbrar uma das faces desse mal-estar, pois este se insinua

sempre cambiante, recorremos a uma reflexão de Bauman (1998, p. 33) que, ao

elencar um conjunto de fatores que acentuam a sensação de incerteza da vida

contemporânea, enfatiza o fato de que vivemos em uma atmosfera de medo

ambiente. Algo como uma bruma de incertezas que emana da incessante desordem

do mundo e sua desregulamentação universal. Refere-se o autor aos métodos

anódinos da atividade política subordinada à desatada liberdade concedida ao

capital, á fragilização das redes coletivas de solidariedade e à ampla conexão de

indivíduos em rede social tecnológica com suas peculiaridades de anonimato e

solidão.

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A hipótese nuclear com a qual trabalhamos é a de que a despeito da

complexidade que engendra o mal-estar e toda a ampla capacidade adaptativa e de

autorregulação que o impulsiona, sua configuração social não é impermeável ao

telos2 dialético da história e suas propriedades: coerção e revolta; subjugação e

emancipação.

A partir dessa hipótese, alinhamos duas perspectivações como perguntas

exploratórias para a reflexão acerca do tema:

1. Quais seriam os caminhos para a superação do mecanismo gestional-

produtivo que captura a ação humana e marca a política na atualidade com a

insígnia da autorreprodução?

2. Ao percorrer a hipótese de subversão da experiência como qualidade

inerente à arte, em oposição ao princípio de realidade, como reconhecer e valorizar

a função estética nos encaminhamentos políticos de superação e emancipação?

Em atenção à epistemologia, localizamos os termos “política” e “estética”

como dimensões distintas para retomá-los nos capítulos ulteriores a partir de noções

e conceitos clássicos, assim como de escritas interpretativas derivadas, visando

aproximações que nos permitam fazer nexos de compreensão entre o mal-estar

contemporâneo e as possibilidades e os horizontes de sua superação.

Esse “olhar o contemporâneo” nos impôs a necessidade de um

posicionamento inicial sobre temporalidade, sem o qual não poderíamos reconhecer

com clareza de onde falamos, ou seja, onde estamos na história. De modo a abrir

esta questão, ascendemos ao filósofo italiano Giorgio Agamben, que deixa o claro-

escuro do tempo cronológico para almejar à noção histórica de contemporaneidade,

na forma de uma claridade dilatada:

[...] o compromisso que está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente no tempo cronológico é [...] algo que urge dentro deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade, o anacronismo que nos permite apreender o nosso tempo na forma de um “muito cedo” que é, também, um “muito tarde”, de um “já” que é, também, um “ainda não”. “E,

2 TELOS: rubrica - filosofia que indica o ponto ou estado de caráter atrativo ou concludente para o

qual se move uma realidade; finalidade, objetivo, alvo, destino (HOUAISS; FRANCO, 2009).

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do mesmo modo, reconhecer nas trevas do presente a luz, que sem nunca poder nos alcançar, está perenemente em viagem até nós” (Agamben, 2009, p. 65-66).

Este posicionamento não nos alivia de inflecções, pois o tempo histórico

sempre surpreende.

A problemática do sujeito, assim como a compreendemos, é indissociável do

campo social e nossa démarche considera fundante a história antropológica

freudiana marcada por registros conflituosos entre as pulsões e as contingências da

civilização. Portanto, mantivemos presente a noção do conflito do sujeito no campo

social sem subtrair de sua singularidade a capacidade de transgredir e romper com

as verdades e os sistemas instituídos.

O caminho teórico para refletir sobre a sinuosidade da política na atualidade

inicia-se por analisar o conceito de sociedade unidimensional marcuseano e

desdobra-se por outras acepções clássicas e da filosofia atual.

O lugar da crítica à democracia é movediço, podendo ensejar ambiguidades e

distorções de compreensão, pois afinal, quê? Criticar a democracia? O melhor termo

será a superação. Ver através da figura consensual-democrática de governo que a

domina e afeta, edificada sobre o minimalismo da participação individual expresso

por meio do voto universal. Observar a relativização das instâncias organizadas de

participação e demanda social no jogo do poder. Compreender que essa ordenação

compromete o valor da democracia por esvaziá-la de conteúdo e do conflito legítimo

que a constitui, tornando-a um simulacro. Basta ouvir o seu discurso político

propagandístico que justifica o pragmatismo do possível com os números da lógica

econômica excludente, diante da miséria material e espiritual crescentes.

Sob outra perspectiva, encontram-se os traços constitutivos da subjetividade

do sujeito dentre os quais procuramos distinguir a presença de sinais indicativos de

potenciais campos de emancipação. Referindo-se à condição do mal-estar do sujeito

contemporâneo, o psicanalista brasileiro Joel Birman (2009), autor de um ensaio

sobre o mal-estar na atualidade, cunhou a expressão gestão do desamparo, com um

sentido que nos pareceu desafiador. Diz respeito à emergência de outro conceito de

sublimação que, ao superar as contradições do conceito inicial, abre novo caminho,

refere-se o autor a noção reinterpretada por Freud: “o processo de sublimação

consistiria na transformação da pulsão de morte em pulsão sexual, de maneira que o

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erotismo e o trabalho de criação se tornariam possíveis” (FREUD, 1932 apud

BIRMAN, 2009, p.131).

A ideia baseia-se na sublimação não mais como um ato de espiritualização

ascendente de razão civilizatória, mas como experiência de lateralização e, sob essa

compreensão, ao não se desprender de seu registro corpóreo o sujeito mantém suas

ligações com outros sujeitos nos laços sociais, sem a oposição erotismo e

sublimação, em implicação estreita com o registro ético e político. Estas seriam as

bases para a superação do desamparo.

Cabe a nós ressaltar que foi durante a preparação do projeto, com a

orientação de Miriam Debieux Rosa, que optamos por iniciar o desenvolvimento

deste trabalho examinando as aporias presentes em duas obras emblemáticas do

século XX: O Mal Estar na Civilização (1929/1930) de Sigmund Freud, e Eros e

Civilização (2009) de Herbert Marcuse, que dialoga criticamente com as noções

freudianas sobre as possibilidades de uma ordem não-repressiva na qual a tensão

entre Eros e Thanatos se dissolveria na unidade de uma configuração regida por um

novo princípio de realidade. Com esta opção procuramos também consubstanciar

um fluxo comunicante com ensaístas da atualidade que repõem e reescrevem as

questões centrais apresentadas por Freud e Marcuse, com novas perspectivas a

convocar outros e novos conceitos.

Compreendemos que a aproximação e a leitura simultânea de obras afins

aportam ao pesquisador, além de conhecimento e revelações, nem sempre

esperados pelo autor, outras pistas para a compreensão da díade humanidade e

sociedade. „‟

Toda investigação teórica ou aplicada necessita de aporte metodológico para

a compreensão dos conceitos e observação da realidade, algo como um ajuste de

lentes que precede as etapas de reflexão e interpretação. Respondemos a essa

necessidade com a escolha e a mentalização de um dos princípios do sistema

filosófico deleuziano que se faz de relações entre elementos heterogêneos:

Em primeiro lugar, há conceitos oriundos ou extraídos da própria filosofia [...]. Em segundo lugar, há conceitos suscitados ou sugeridos pela relação entre conceitos provenientes de domínios exteriores à filosofia: por exemplo, o que faz Proust com meios propriamente literários, Bacon com meios pictóricos, Godard com meios cinematográficos, mas também a linguística de Hjelmslev. (MACHADO, 2009, p. 18).

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Assim como fizemos uma mediação com a interpretação de Agamben sobre o

contemporâneo, diante das muitas possibilidades para a acepção histórica de

modernidade, optamos por fazer referência a Hegel e comentadores de sua obra,

que reconhece a modernidade a partir dos eflúvios da Reforma, do Iluminismo e da

Revolução Francesa.

Entretanto, não se trata apenas de uma caracterização determinada por

eventos históricos, pois importava ao filósofo estabelecer todo o sistema das

condições de vida, e assim descortinar o princípio daquele novo tempo numa figura

filosófica: a subjetividade3.

A modernidade caracterizada pela filosofia hegeliana está alicerçada na cisão

entre o transitório e o eterno. Nela, a inteligência desperta para o finito, e busca uma

conciliação com o presente no sentido de que o mundo passa a ser julgado segundo

seus próprios critérios, adotando a razão como árbitro. Desse modo, a subjetividade

torna-se o princípio e a autoconsciência, que concebe a religião, a ciência, a arte e o

poder como entidades apartadas do homem, concebidas apenas na sua forma de

pensamento filosoficamente puro, ou seja, abstrato cujo movimento alcança o saber

absoluto4.

Nessa etapa da Modernidade, diferentemente do que fora observado durante

a Antiguidade e a Idade Média com o escravismo e o feudalismo, Marx, nos ensaios

que reuniu sobre o título de Manuscritos econômico-filosóficos em 1844, dialoga

com a dialética e a filosofia de Hegel a partir da economia política e reconhecendo

nessa forma organizativa da sociedade, a alienação do homem como o problema

central. Fruto da imediata relação entre trabalho e produção:

3 Segundo Musse (2012, p.4), Habermas distingue no termo subjetividade, empregado por Hegel,

quatro conotações: “[...] (a) individualismo: no mundo moderno as individualidades [...] infinitamente particulares podem fazer valer suas pretensões; (b) direito à crítica: o princípio do mundo moderno exige que aquilo que cada um deve reconhecer lhe apareça como algo justificado; (c) autonomia da ação: é próprio dos tempos modernos querer estar de acordo com aquilo que fazemos; (d) finalmente, a própria filosofia idealista: Hegel considera como o produto dos tempos modernos que a filosofia atinja o saber de si da ideia”. 4"Essa última figura do espírito – o espírito que, ao mesmo tempo, dá ao seu conteúdo perfeito e

verdadeiro a forma do Si, e por isso tanto realiza seu conceito quanto permanece em seu conceito nessa realização – é o saber absoluto. O saber absoluto é o espírito que se sabe em figura de espírito, ou seja: é o saber conceituante. A verdade é o conteúdo que na religião é ainda desigual na sua certeza, mas tem também a figura da certeza de si mesma: ou seja, é no ser-aí quer dizer, para o espírito que sabe, na forma do saber de si mesmo. A verdade é o conteúdo que na religião é ainda desigual à sua certeza. Ora, essa igualdade consiste em que o conteúdo recebeu a figura do Si. Por isso, o que é a essência mesma, a saber, o conceito, se converteu no elemento do ser-aí, ou na forma da objetividade para a consciência. O espírito, manifestando-se à consciência nesse elemento, ou, o que é o mesmo, produzido por ela nesse elemento, é a ciência” (HEGEL, 2002, p.537).

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Já que o trabalho alienado aliena a natureza do homem, aliena o homem de si mesmo, o seu papel ativo, a sua atividade fundamental, aliena do mesmo modo o homem a respeito da espécie; transforma a vida genérica em meio da vida individual; depois, muda esta última na sua abstração em objetivo da primeira, portanto, na sua forma abstrata e alienada. [...] A vida revela-se simplesmente como meio de vida (MARX, 2011, p. 116).

Ao refletirmos a respeito das consequências dessa alienação, vemos os

conceitos de reificação e fetichismo concebidos como operações em que a força de

trabalho impregna o objeto de modo que este passaria a determinar a ação de seu

produtor.

Algo como se os objetos se portassem como sujeitos enquanto os antigos

sujeitos, os trabalhadores tornar-se-iam seres objetificados. Assim compreendidos,

tem-se uma relação social estabelecida entre os homens como forma

fantasmagórica de uma relação entre coisas, simplesmente porque encobre as

características sociais do próprio trabalho, apresentando-as como características

materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho.

Voltando ao diálogo com o Hegel da Fenomenologia, o grande mérito desta,

reconhecido por Marx, é a dialética da negatividade, mas essa operação como

veremos chega a um impasse:

[...] a dialética da negatividade, enquanto princípio motor e criador – reside em primeiro lugar, no fato de Hegel conceber a autocriação do homem como processo, a objetivação como perda do objeto, como alienação e como abolição da alienação: e no fato de ainda apreender a natureza do trabalho e conceber o homem objetivo (verdadeiro, porque homem real), como resultado do seu próprio trabalho. A orientação real, ativa, do homem para si mesmo enquanto ser genérico ou a fixação por si próprio como ser genérico real, quer dizer, como ser humano, só é possível à medida que ele realiza todos os seus poderes específicos – o que, por sua vez, só é possível através da ação coletiva dos homens e como resultado da história – e trata estes poderes como objetos. Mas isto só é viável na forma de alienação. (MARX, 2011, p.178).

Sob outra perspectiva, mas que no nosso entender reforça a conceituação

que vimos brevemente com Hegel, a modernidade, para o historiador alemão

Koselleck (1999 apud GAIO 2009), teria sua formação marcada pela distinção entre

espaço de experiência e horizonte de expectativa, através da transformação e

sentido dos conceitos, ou seja, como passamos a entender e a nos relacionarmos

com a história. Para este autor, a história tem um tempo próprio, imanente, e esse

18

tempo depende das experiências concretas dos homens, mais especificamente,

depende da maneira pela qual articulam em cada presente a dimensão do passado,

sua “experiência” acumulada, e a dimensão do futuro, suas “expectativas”,

esperanças e prognósticos5.

Com base nestas sínteses sobre as chaves da modernidade, o passo

seguinte será o reconhecimento das noções freudianas e o tom interrogativo que

aplicam às operações de renúncia de prazer urdidas diante da organização da vida

social e política, os desdobramentos e as consequências para o sujeito.

O nosso apreço pela abordagem aberta reflete, além de tudo, um dado

biográfico recorrente, o de criar livremente colagens em um ateliê de arte

transgredindo campos estéticos e perímetros de conhecimento, com um olhar no

horizonte e sobre a palma da mão o astrolábio6. E por que não trazer para este

trabalho acadêmico a compreensão da colagem agora como analogia dos domínios

dadaístas sugerida por Deleuze7 como um estilo extemporâneo de pensamento na

filosofia?

Vamos crer que sim, que pode ser um além-método, uma postura sem

esforço a disposição dos vínculos da nossa experiência com a criação artística, e a

partir dessa articulação esperemos que se torne mais compreensível a presença das

imagens na abertura dos capítulos.

5 "Espaço de experiência” (Erfahrungsraum) e “horizonte de expectativa” (Erwartungshorizont) são

duas das categorias que Koselleck emprega como condições de possibilidade da história; elas “remetem a um dado antropológico prévio, sem o qual a história não seria possível, ou não poderia sequer ser imaginada” (KOSELLECK 1999, p. 308). 6 Instrumento náutico antigo, em forma esférica ou de círculo graduado, com haste móvel, usado

para observar e determinar a altura do Sol e das estrelas e medir a latitude e a longitude do lugar onde se encontra o observador. Usado pelos gregos desde 200 a.C. Pela sua força emblemática, o Astrolábio passou a nomear a partir de 1984 meu ateliê de artes visuais em São Paulo (nota nossa). 7 Machado (2009, p.30) comenta esta alusão à colagem como procedimento na filosofia deleuzeana:

“Falar de colagem a respeito do pensamento filosófico significa dizer que o texto considerado é muitas vezes extraído do seu contexto, ou melhor, que os conceitos – considerados como objetos de um encontro, como um aqui e agora, como coisas em estado livre e selvagem – são utilizados como instrumentos, como técnicas, como operadores, independentemente das inter-relações conceituais próprias do sistema que pertencem”.

19

Figura 1 - Tela 1 - Eros

Fonte: Luiz Palma, 2002. Colagem. Medida: 0,48 x 0,60. Foto: Marcos Muzi.

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1 O MAL ESTAR DO SUJEITO NA MODERNIDADE

Fazer nascer a obra, oblitera o esquecimento primal. Gritar-criar é um ato de antinascimento, então de antimorte. Chegar a fazer gritar a obra, é tê-la criado contra a morte que grita nela. René Passeron (2001, p.12)

Nossa intenção é ler o texto freudiano8 sob uma perspectiva ajustada aos

objetivos a que nos propusemos, ou seja, buscar a compreensão e o sentido

atribuídos pelo autor naquele contexto histórico para o embate entre as pulsões e as

exigências da civilização que estariam na gênese do mal estar na modernidade.

Embora possa parecer evidente, não podemos deixar de enfatizar que temos como

ponto de referência uma problemática da ordem da subjetividade e de seus

impasses sócio-históricos, o que não significa impor ao texto freudiano

considerações sociológicas, mas sintonizar o próprio cerne sociológico do discurso

psicanalítico sem desfigurá-lo, pois compartilhamos com Rouanet (1998) a seguinte

interpretação:

[...] as pulsões não têm qualquer existência independente de sua expressão cultural. O que não significa dissolver a virulência do desejo num sociologismo difuso, mas deixar explícita sua radicalidade, numa cultura que não pode aceitar todas as interpretações [...] – mas somente aquelas que sejam compatíveis com a normatividade estabelecida. (p. 327).

Este capítulo objetiva apor às análises apreendidas da escrita freudiana as

modalidades de subjetivação presentes no campo do mal-estar contemporâneo.

O Mal-estar na Civilização (Das Unbehagen der Kultur) é tido por

psicanalistas e pesquisadores das ciências sociais como um dos importantes

trabalhos de Freud no campo da cultura. Escrito e publicado em 1929, em um

contexto político e social marcado pelas atrocidades da 1ª Guerra Mundial, a

primeira edição rapidamente se esgotou, tendo sua tradução para o inglês sido

lançada em Londres em 1930 sob o título Civilization and its Discontents. Abalado

8 A edição traduzida do alemão na qual nos baseamos para esse trabalho traz uma observação

quanto à tradução para o português dos termos técnicos empregados: “[...] os leitores e psicanalistas que empregam termos diferentes, conforme suas abordagens e percepções da psicanálise devem sentir-se à vontade para conservar suas opções. [...] apenas precisarão substituir mentalmente “instinto” por “pulsão”, “instintual” por ”pulsional” [...]". Por essa razão e por orientação de abordagem, optamos por manter a forma usada pelo tradutor na obra apenas nas citações ipsis litteris.

21

pelas perseguições em geral, agressões e desaparecimento de familiares e amigos,

além de gravemente enfermo, Freud deixa Viena em 1938 seguindo para Londres

onde morreu em 1939, ano da eclosão da Segunda Guerra Mundial9.

A opção pelo termo civilização em muitas traduções do “Mal Estar...” faz-nos

indagar sobre o sentido que Freud quis imprimir quando utilizou o termo Kultur.

Em O futuro de uma ilusão, Freud comenta que não se preocuparia com essa

distinção, sublinhando que seu uso desse termo referia-se ao conhecimento

acumulado pelo homem a fim de controlar as forças da natureza e com isso extrair

suas riquezas para a satisfação das necessidades. O autor também tinha em conta

a importância dos princípios e regulamentos necessários para ajustar as relações de

convivência de uns com outros e a distribuição da riqueza disponível.

Todavia, há uma distinção clássica entre os termos civilização e cultura, em

que se atribui ao primeiro termo a organização da vida material, sobretudo a

produção de bens e de recursos que possam sustentar as condições de subsistência

e desenvolvimento da espécie humana.

O termo cultura, por sua vez, compreende as expressões do espírito humano,

cujas manifestações aspiram ao conhecimento do ser, às revelações da

religiosidade, da filosofia e da arte e outras formações. Certamente para Freud não

faltaram tais definições e alguma lógica deve ter orientada essa aparente indiferença

entre uma e outra:

Freud entende situar-se numa perspectiva em que ambas se articulam entre si, pois em conjunto constituem o índice que diferencia o homem dos animais. Mas o advento da cultura representa o índice de uma ruptura entre o homem e seus ancestrais, da qual é preciso dar conta. Descritivamente, os “dois aspectos” da civilização – a organização social e o universo das representações coletivas – apresentam-se como diferentes, mas na verdade estão intimamente relacionados. (MEZAN, 1985, p. 483).

De acordo com a visão do historiador e psicanalista Peter Gay (1998), autor

de uma das mais importantes biografias sobre Freud, é possível ver o texto

freudiano como uma leitura política:

9 A crítica erudita busca explicar a obra pelo autor e dessa perspectiva situa a amargura de Freud nos

seus últimos textos como uma espécie de contingência da sua própria história: a marca duradoura do traumatismo causado pela Grande Guerra, os lutos familiares que sofreu, o abandono dos seus melhores discípulos, sua luta cotidiana contra o câncer, o conjunto como pano de fundo da crise europeia e da ascensão fulgurante do nazismo (REY-FLAUD, 2002, p. 5-6).

22

A contribuição específica de Freud à reflexão sobre a política consiste na ideia das paixões reprimidas pela cultura. Essa perspectiva dá a O Mal-Estar na Civilização sua força e originalidade: trata-se de uma teoria psicanalítica da política, formulada de maneira sucinta. Freud não era teórico político, assim como não era historiador das religiões ou arqueólogo. Era um psicanalista que aplicava os recursos de seu pensamento às diversas manifestações da natureza humana. Os maiores teóricos políticos, desde Platão e Aristóteles, haviam feito exatamente o mesmo. Mas Freud fundou sua análise da vida social e política numa teoria da natureza humana muito própria. (p.495-496).

Birman (2009), por sua vez, tem como compreensão dessa obra freudiana um

enfoque que nos parece analiticamente refinado:

[...] considerei que o que estava em questão neste desenvolvimento teórico era menos a relação de antinomia insuperável entre os polos da pulsão e da civilização em geral, do que o esforço para circunscrever o sujeito na modernidade. Era o estatuto do sujeito no mundo moderno o que o instigava em suas indagações ainda hoje perturbadoras. Dessa maneira, pode-se não apenas inscrever historicamente a obra de Freud no horizonte da modernidade como também encontrar nesta a matéria-prima para a construção do discurso psicanalítico. (p.17).

Uma vez ajustados os pré-requisitos para a leitura do texto freudiano,

definimos um conjunto de noções que facultam a articulação entre os processos

individuais e sociopolíticos e nos abrem possibilidades para a proposição de

questões nos campos da política e da estética. Com este entendimento, as noções

de necessidade, desamparo, identificação, sublimação, princípio de prazer e

princípio de realidade compõem o conjunto. Complementarmente, trabalhamos

outros enunciados10 (JAPIASSU; MARCONDES, 2001) do campo da psicanálise e

da filosofia social.

Após suas considerações sobre o “sentimento oceânico11” (FREUD, 2010, p.

15) em resposta à carta de seu amigo Romain Rolland sobre as fontes da

religiosidade, o ponto inicial do enunciado de Freud detém-se nos aspectos da

10 ENUNCIADO (lat. enunciatio) 1. Proposição que não afirma nem nega, mas que é apresentada

como hipótese ou definição. [...] 2. Também é considerado um enunciado o conteúdo de uma proposição independentemente da consideração de seu valor de verdade ou do ato de fala (afirmação, negação, ordem etc.) que se realiza. 11

“Eu próprio não consigo divisar em mim esse “sentimento oceânico”. Não é fácil trabalhar cientificamente os sentimentos”.

23

constituição do sentimento do Eu12 (p.17) face aos prolongamentos internos e

difusos cuja entidade psíquica, o inconsciente impregnado por pulsões, encontra-se

nas primeiras etapas da instauração do princípio de realidade.

Podemos perceber no texto a ênfase que o autor atribui ao conflito incessante

do sujeito, demarcado pelo princípio de prazer e pela realidade, frente aos

obstáculos do percurso para se alcançar a satisfação, dificuldades estas impostas

pela fragilidade e o efêmero do corpo que comporta dor e medo, bem como os

limites e as ameaças inexoráveis da natureza e o padecimento das contradições nas

relações humanas13 (p.43).

A economia libidinal freudiana é descrita por operações substitutivas e por

variações entre os impulsos objetais e os obstáculos culturais, que convertem o

princípio do prazer em um modesto princípio de realidade, portanto afetando à plena

satisfação “em geral a tarefa de evitar o sofrer impele para o segundo plano a de

conquistar o prazer” (Freud, 2010, p. 31).

Dentre os deslocamentos libidinais que permitiriam, segundo Freud, mitigar o

sofrimento pela substituição das metas pulsionais e se livrar da frustração a partir do

mundo externo, a sublimação como possibilidade para um determinado tipo de

satisfação traz uma abertura ainda por melhor compreender:

A satisfação desse gênero, como a alegria do artista, ao dar corpo a suas fantasias, a alegria do pesquisador na solução de problemas e na apreensão da verdade, tem uma qualidade especial, que um dia poderemos caracterizar metapsicologicamente. (FREUD, 2010, p. 35).

12 “A patologia nos apresenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu ante o

mundo externo se torna problemática [...]; casos em que partes do próprio corpo, e componentes da própria vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem como alheios e não pertencentes ao Eu [...]. Logo, também o sentimento do Eu está sujeito a transtornos, e as fronteiras do Eu não são permanentes”. 13

Cabe assinalar que essas restrições são reiteradas em articulações crescentes no texto freudiano, como, por exemplo, no capítulo III: “Nunca dominaremos completamente a natureza, e nosso organismo, ele mesmo parte dessa natureza, será sempre uma construção transitória, limitada em adequação e desempenho”.

24

Nas reflexões sobre o princípio do prazer, em que o autor reconhece avanços

alcançados como frutos de árduas investigações teóricas e observações

psicanalíticas, seu fundamento consolida-se como uma constante e irrealizável

demanda. Trata-se de uma pulsão que impõe ao sujeito uma condição permanente

de mobilização e irrefutável apelo para direções contraditórias entre um conteúdo

positivo das metas de prazer e a recusa ao desprazer ─ com remota possibilidade

de alcançar pleno êxito em qualquer das vias. “Algo de fundamental, portanto,

processou-se entre 1908 e 1929 para que se produzisse uma transformação radical

de perspectivas na leitura freudiana sobre a inscrição do sujeito na civilização.”

(BIRMAN, 2009 p. 129).

Para esse autor, o que estaria em questão nos dois ensaios era a relação

entre os registros da pulsão e da civilização. No entanto, no primeiro, o conflito

ensejava alguma mediação a ser alcançada entre os polos. No segundo ensaio, a

relação conflitual entre esses registros passa a ser compreendida por Freud como

estrutural, isto é, “o conflito jamais seria ultrapassado.” (p.209).

Porém, a forma de encarar o conflito vista por Freud passa a requerer do

sujeito uma interminável lida uma vez que este não poderá se deslocar da posição

originária de desamparo. Para Birman (2009), a mudança de perspectiva reafirmaria

no discurso freudiano a dimensão ética e política sobre o conflito.

No texto freudiano em questão, outras possibilidades para a vida harmoniosa

e plena são identificadas nas formas oferecidas pela tradição e pela religião, embora

o autor, com algum ceticismo, perceba nesses caminhos mais promessas e

renúncias do que propriamente uma realização.

O encadeamento da obra segue por etapas, organizando uma interpretação

para a história humana como uma epopeia movida por forças contraditórias, que

reafirma uma busca ambivalente:

[...] uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres. No sentido mais estrito da palavra, “felicidade” se refere apenas à segunda. Correspondendo a essa divisão das metas, a atividade dos homens se desdobra em duas direções, segundo procure realizar uma ou outra dessas metas – predominantemente ou exclusivamente. (FREUD, 2010, pág. 30).

Ao avançar nas contradições entre meta civilizatória e desvios pulsionais,

Freud por vezes reage contra as posições críticas ao processo civilizatório que se

25

estabelecem com frequência. Seu argumento é o de que nossa miséria tem origem

na evolução cultural que nos impôs desafios e limites com modos de viver que não

se apresentavam nas condições sociais anteriores. Seu posicionamento

interpretativo a esse respeito é de que a própria permanência do estado

civilizacional e seus desdobramentos geram acúmulos duradouros de renúncia

pulsional, ainda que nos confiram benefícios e proteção contra as ameaças de

sofrimento. No entanto, acentua que o propósito da satisfação não é absolutamente

abandonado: “Como se vê, é simplesmente o programa do princípio do prazer que

estabelece a finalidade da vida. [...] mas o seu programa está em desacordo com o

mundo inteiro, tanto o macrocosmo como o microcosmo” (p. 30).

Nem os avanços da ciência e suas aplicações técnicas com o progresso

material extraordinário, nem o controle ou a defesa premeditada em relação às

forças naturais escapa a uma avaliação de que a cada superação ou nova

descoberta caberiam ao homem e sua sociedade problemas de novo tipo.

Dentro desse percurso social em transformação constante, desde os

domínios alcançados pela ciência sobre os elementos básicos da natureza até suas

últimas realizações, às quais Freud se refere, incluem-se as possibilidades e os

meios disponíveis para as longas viagens, assim como as novas formas de

comunicação. Assim, em uma era plena de conhecimento, ciência e arte, o homem

tornou-se um ser criador; suas máquinas admiráveis propiciam satisfações

inatingíveis em outros tempos, quando mal corporificava suas crenças por meio de

construções divinas. Estas considerações evidenciam a aproximação que Freud fez

entre civilização e cultura e os laços e impactos dessa saga quando asseverou que

os próprios órgãos humanos, motores e sensoriais foram afetados e agora, como um

criador, esse ser infla-se de devaneios de um semideus, isto é, “Todo esse

patrimônio ele pode reivindicar como aquisição cultural.” (2010, p. 51-52).

Mas como o próprio autor diz, demandamos mais da civilização, além do que

nos é proveitoso e útil. Suas reflexões avançam para as possibilidades de fruição da

vida que se abrem a partir do campo estético: o prazer propiciado pela beleza das

formas e dos gestos humanos, das criações artísticas propiciadas pela fantasia do

artista e do receptor. De mesma cepa, continua o seu raciocínio, dizendo que, assim

como uma espécie de evocação da aura do universo por um sentido de beleza, o

26

homem é levado a desenvolver uma atitude estética aplicada à produção dos seus

próprios bens e objetos de uso.

Freud faz menção a uma ciência da estética, ainda inconclusa segundo ele,

que estaria às voltas com a origem e os meios da expressão artística, mas arremata

que per se seria insuficiente para nos defender do sofrimento, embora

prodigiosamente compensatória e de peculiar qualidade sensorial.

Para nós, o interessante desse período da escrita freudiana é perceber o

valor atribuído à criação e às obras artísticas, referenciadas em muitos dos seus

textos e às vezes até como exercício interpretativo específico, como é o caso da tela

Santa Ana a virgem e o menino, cuja interpretação alcança o próprio artista,

Leonardo Da Vinci, em busca da função que sua fantasia original teria

desempenhado na criação dessa obra. Não se trata de retomar a natureza dessa

interpretação, pois ela é polêmica e persiste como questão, mas seria essa a

relação mais fecunda entre arte e psicanálise?

Mezan (1985) enfatiza que, em A Interpretação dos Sonhos, cultura e arte são

temas significativos e, embora esse fato se dê como a primeira incursão em texto

publicado por Freud, não se pode imaginar que se encontra aqui o elo inicial dessa

fecunda ligação:

O complexo de Édipo não é ilustrado pela peça de Sófocles; sua elaboração por Sófocles é um momento decisivo da invenção do conceito por Freud, fornecendo-lhe não apenas um nome para designá-lo, mas um componente absolutamente fundamental de todo o conceito, a saber, a universalidade. Eis porque Freud considera tão importante o estudo psicanalítico das produções culturais. (2010, p.139).

A presença da arte nos textos da psicanálise se mantém como uma constante

e podemos atribuir-lhe vários sentidos. Por exemplo, quando são aplicadas suas

noções à análise ou à interpretação literária e às obras plásticas, tem-se mais do

que o objetivo aparente, qual seja, o de tomar essa produção exclusivamente como

objeto de aplicação da capacidade analítica de interpretação das formas culturais:

Elas são os testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante. [...] se Freud interpreta fatos “anódinos”, desprezados por seus colegas positivistas, e pode fazer com que esses “exemplos” sirvam à sua demonstração, é porque eles são em si mesmos testemunhos de um determinado inconsciente. (RANCIÈRE, 2009, p.10-11).

27

O princípio do prazer e o princípio de realidade são noções constantes nas

aproximações e embates entre o processo de evolução individual e cultural,

matizadas por contradições entre essas forças e em cada uma delas. A

complexidade dessas operações entre as pulsões e a inibição do prazer e a maneira

mesma como se expressam e, mais ainda, a dificuldade inerente às próprias

noções, remete a questão ao próprio teorema da psicanálise:

Os detalhes do processo pelo qual a repressão transforma uma possibilidade de prazer numa fonte de desprazer ainda não são bem compreendidos ou não podem ser claramente expressos, mas certamente todo desprazer neurótico é desse tipo, é prazer que não pode ser sentido como tal. O essencial é, provavelmente, que prazer e desprazer, como sensações conscientes, acham-se ligados ao Eu. (FREUD, 2010b, p.167).

Freud sempre demonstrou especial apreço às figuras literárias e artísticas

aproximando-as e, de certa forma, consubstanciando-as a partir da experiência

clínica e de suas formulações científicas e filosóficas. A passagem a seguir é

reveladora desse seu tributo ao conhecimento e a arte:

De todas as partes que gradualmente se desenvolvem na teoria psicanalítica, a teoria dos instintos foi a que tateou mais penosamente o seu caminho. [...] No completo desnorteio inicial, uma frase do poeta-filósofo Schiller, segundo o qual a fome e o amor sustentam a máquina do mundo, forneceu-me o ponto de partida. A fome poderia representar os instintos que querem manter o ser individual, enquanto o amor procura pelos objetos; sua função principal, favorecida de toda a maneira pela natureza, é a conservação da espécie. (FREUD, 2010a, p. 84).

Um dos impasses da teoria psicanalítica, situado em torno de 1920, parece

ter sido desencadeado por uma mudança de enfoque do reprimido para o que

reprime ou, mais precisamente, das pulsões objetais para o Eu. Conforme vamos

depreendendo do texto, uma nova elucidação só se tornaria possível com a

introdução do conceito de narcisismo e então pari passu é introduzida uma

especulação sobre o conceito de pulsão de morte, que poderia pôr em questão o

próprio conceito de libido tal como concebido. Neste ponto, o que nos importa é

iluminar o que sucede e como Freud, surpreendentemente, parece refletir consigo

mesmo o que se deu: “Mas me restava uma quase que certeza, ainda a ser

28

fundamentada, segundo a qual os instintos não podiam ser todos da mesma

espécie”. (FREUD, 2010, p. 85).

A questão é apresentada como uma fundamentação com a qual trabalhou em

Além do Princípio do Prazer (1920) sobre a compulsão de repetição e do caráter

conservador das pulsões:

[...] deveria haver, além do instinto para conservar a substância vivente e juntá-las em unidades cada vez maiores

14, um outro a ele contrário, que

busca dissolver essas unidades e conduzi-las ao estado primordial inorgânico. Ou seja, ao lado de Eros um instinto de morte. Os fenômenos da vida se esclareceriam pela atuação conjunta ou antagônica dos dois. Mas não era fácil mostrar a atividade desse suposto instinto de morte. (p. 85- 86).

Essa dualidade das pulsões introduziu muitas ampliações na força e dinâmica

da economia libidinal, tornando ainda mais complexas as pulsões primárias de

agressão e destruição, as operações reativas que vêm a desencadear, as

vicissitudes, satisfeitas ou retornadas após recalque:

[...] podemos suspeitar que as duas espécies de instintos raramente – talvez nunca – surgem isoladas uma da outra, mas se fundem em proporções diferentes e muito variadas, tornando-se irreconhecíveis para nosso julgamento. (p. 86)

Pelo estilo como Freud vai apresentando as questões, ora enunciadas de

forma direta, outras vezes por analogias, achamos interessante trazer o comentário

interarticular para avançarmos mais nessa questão que nos parece também de

fundamental importância para a compreensão do desenvolvimento da psicanálise:

Ora, na verdade Freud não demonstrou o que se propusera demonstrar – a existência de um representante psíquico da pulsão de morte – mas sim a possibilidade de uma aliança entre ela e as pulsões eróticas; o que, porém, longe de dar xeque-mate à sua especulação, abre um leque de possibilidades ainda mais amplas. (MEZAN, 1985, p. 446).

Em alguns períodos do Mal-estar..., Freud deixa transparecer o cuidado como

conduz suas investigações, levando em conta o sentido de advertência que faz logo

14 "A oposição que aí surge, entre a incansável tendência expansionista de Eros e a natureza em

geral conservadora dos instintos, é algo que chama a atenção e que pode vir a ser ponto de partida para outras indagações" (FREUD, 2010 a, nota de rodapé, p. 85).

29

na segunda frase dessa obra, qual seja, a de que haveria sempre um risco de

subestimarmos a variedade do mundo humano e sua vida psíquica. Muitas vezes

percebemos essa cautela em sua escrita, como que para nos aliviar das águas

profundas do inconsciente, quando o autor retoma os fios mais aparentes do comum

da vida e refere-se a “determinações do destino” ou “escolhas pessoais”, quer dizer,

parece que seu intuito é fazer um afastamento da linguagem técnica e erudita para

melhor fazer-se entender.

Em uma dessas situações, ao tratar de uma alternativa para a satisfação, faz

um rodeio para nomear o que apenas insinua um método para manter a felicidade

e a distância do sofrer, algo ainda não mencionado, mas que seria impossível

esquecê-lo – uma forma com combinações muito características para escapar dos

volteios do destino e que quase nunca se dá por satisfeita em só evitar desprazer. A

satisfação desse afeto tem origem nos processos psíquicos operados pelos

deslocamentos de libido sem, no entanto se afastar do mundo exterior, uma vez que

se prende aos seus objetos e desfruta de uma relação com eles:

[...] não se dá por satisfeita com evitar o desprazer – uma meta, digamos, de cansada resignação – mas ignora isto e se apega ao esforço original, apaixonado, por uma realização positiva da felicidade. Talvez ela realmente se aproxime mais dessa meta do que qualquer outro método. Estou falando, claro, daquela orientação de vida que tem o amor como centro, que espera toda satisfação do amar e ser amado. (FREUD, 2010, p. 38-39)

Soa simples e poético o amor assim introduzido e fala tão perto das nossas

experiências. E mais, ainda que chamado de atitude psíquica, é logo potencializado

pelo reconhecimento da forma tocante do amor sexual, como diz Freud ser este:

[...] a mais forte experiência de uma sensação de prazer avassaladora, dando-nos assim o modelo para nossa busca da felicidade. Nada mais natural do que insistirmos em procurá-la no mesmo caminho em que a encontramos primeiro. (FREUD, 2010a, p. 39).

Mas, como já sabemos, a psicanálise não opera com ideais e Freud nem

sequer faz pausa, pois logo nas linhas seguintes uma grave fragilidade é atribuída

ao amor. “E assim não fora porque haveríamos de buscar por felicidade em outros

caminhos incertos?”. Para Freud ainda há muito por dizer e o mal-estar que põe em

evidência já antecipa as dificuldades para a nossa compreensão:

30

Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor. Mas com isso não encerramos [...] haverá muito mais a dizer sobre isso. (2010a, p. 39).

No campo psíquico demarcado pelo impulso de prazer e medo ao desprazer,

a satisfação irrestrita se apresenta como um fascínio de consequências paradoxais

que não tardaram a emular preceitos a que Freud denominou de “escolas de

sabedoria de vida”, de métodos variáveis que, no entanto, mantém a mesma

finalidade – evitar o desprazer. Esse percurso da satisfação nos ajuda a

compreender a moderação e a cautela como metas negativas, ou seja, substitutivas,

uma vez que deixamos a busca dos fortes prazeres numa tentativa de fugir da dor e

do desprazer.

Os caminhos derivativos para o alcance da felicidade e as escolhas

substitutivas para afastar o sofrimento ou o desprazer são perfilados pelo autor, que

nos parece fazê-los com alguma ironia. Isto ocorre, por exemplo, quando este

sugere o isolamento voluntário como tarefa individual para evitar o sofrimento que

advém do convívio humano e assim proporcionar, pela via da quietude, certa

felicidade a esse individuo15. Outros caminhos podem visar o bem-estar da

comunidade humana e uma dedicação é fortemente dirigida ao desenvolvimento de

técnicas científicas ou à construção de modelos organizativos para proteção contra

os ataques da natureza e, desta forma, como uma satisfação altruística, a satisfação

encontra-se com a felicidade coletiva.

Outra via relatada é um método tido como mais primário, mas muito eficaz,

alcançado por adição de substâncias químicas e, consequente, uma intoxicação

capaz de gerar imediatas sensações de prazer. Um exemplo é o consumo de álcool

e de entorpecentes, que de maneira geral é valorizado tanto por indivíduos como por

muitas culturas. São práticas associadas a um prazer imediatista e a certo

afastamento da infelicidade por recuo a si mesmo. Assim como as demais

possibilidades, essas também comportariam um grau de nocividade e perigo e, em

muitas circunstâncias, não fazem mais do que drenar do crédulo indivíduo grandes

quantidades de energia.

15 Aqui Freud refere-se ao domínio das fontes internas de necessidade, como apregoado pela

sabedoria oriental e como prática do yoga.

31

A complexa organização da vida psíquica é permeada por muitas influências,

razão pela qual não poderíamos esperar que agir diretamente sobre as fontes

internas da necessidade pudesse nos livrar do sofrimento. Sob essa perspectiva, o

próprio organismo poderia realizar algo semelhante, como antevia Freud e, de sua

experiência clínica relata os estados maníacos como uma analogia à embriaguez

sem necessidade de adições.

Outras formas possíveis e mais moderadas dessa “sabedoria da vida” lidam

com uma espécie de controle pulsional, ou seja, com a possibilidade de ajustar

instâncias psíquicas, consideradas mais elevadas, ao princípio de realidade, não se

abstendo totalmente nessa operação do propósito da satisfação. Seria uma atitude

protetora, pois caso a satisfação não se dê, esta não será necessariamente sentida

como dor ou frustração insuportável, como aquela das pulsões não inibidas. Mas

sempre será outra coisa, conforme nos diz o autor:

A sensação de felicidade ao satisfazer um impulso instintual selvagem, não domado pelo Eu, é incomparavelmente mais forte do que a obtida ao saciar um instinto domesticado. O caráter irresistível dos impulsos perversos, talvez o fascínio mesmo do que é proibido, tem aqui uma explicação econômica. (FREUD, 2010a, p. 35).

Para Freud, a cada nova possibilidade trazida pela sabedoria da vida e

aventada como técnica ou método de bem viver, a invariante é o desejo, o que

significa dizer que a circunstância externa pressiona ou seduz, mas será a dimensão

psíquica do indivíduo o fator decisivo para mobilizar as forças que ele se atribuirá

para empreender modificações.

Tanto a natureza das inclinações de alguns indivíduos como o grau de

sublimação que lhes for possível marcarão seus objetivos. Uma constituição

especialmente desfavorável é a daqueles que não realizaram transformações no

trabalho libidinal em etapas de passagem, pois encontrarão grandes dificuldades em

obter satisfação através de seu meio externo, sobretudo, em exigências mais altas.

Para Freud, caberá à neurose, sobretudo no indivíduo jovem, prover alguma

satisfação substitutiva. Em idades posteriores, o fracasso diante dos esforços

empreendidos pode levar os indivíduos a buscar como consolo as intoxicações

crônicas e, no limite máximo, até mesmo a psicose. E ainda, para uma observação

sobre este ponto cabe trazer ipsis litteris:

32

Sinto que devo apontar ao menos uma das lacunas da exposição acima. Uma consideração das possibilidades humanas de felicidade deveria levar em conta a relação do narcisismo com a libido objetal. Necessitamos saber o que significa para a economia libidinal depender essencialmente de si mesma. (FREUD, 2010, p. 42).

Mais do que uma inclinação ou mera tendência, a agressividade está na base

da constituição do Eu e na sua relação com seus objetos. Ela pode ser sublimada,

pode ser recalcada, e não precisa ser exclusivamente atuada, pois o sujeito conta

com a mediação simbólica. A agressividade surge sem propósito sexual, ligada a

um prazer narcísico excepcionalmente poderoso a pressionar o Eu com seus

desejos arcaicos de onipotência.

No final do capítulo VI de O mal-estar na civilização, o autor se mostra

generosamente didático ao nos expor essa síntese magistral:

Portanto, em tudo o que segue me atenho ao ponto de vista de que o pendor à agressão é uma disposição de instinto original e autônoma do ser humano, e retorno ao que afirmei antes, que a civilização tem aí o seu mais poderoso obstáculo. No curso desta investigação, impôs-se nos a ideia de que a cultura é um processo especial que se desenrola na humanidade, e nós continuamos sob o influxo dessa ideia. Acrescentemos que é um processo a serviço de Eros, que pretende juntar indivíduos isolados, famílias, depois etnias, povos e nações numa grande unidade, a da humanidade. Por que isso teria de ocorrer não sabemos; é simplesmente a obra de Eros. Essas multidões humanas devem ser ligadas libidinalmente entre si; a necessidade apenas, as vantagens do trabalho em comum não as manterão juntas. Mas a esse programa da cultura se opõe o instinto natural de agressão dos seres humanos, a hostilidade de um contra todos e de todos contra um. Esse instinto de agressão é o derivado e representante maior do instinto de morte, que encontramos ao lado de Eros e que partilha com ele o domínio do mundo. (FREUD, 2010, p. 90).

E o processo civilizatório, indaga Freud, como se defronta com essa

agressividade e o que alcança aferir contra ela? E nesse ponto a questão

emblematicamente não é vista pelo ângulo externo e sim no âmbito da dinâmica

interna, uma vez que a agressividade é reconduzida ao seu ponto de origem, ou

seja, internalizada, volta-se contra o próprio Eu. Parte desse Eu a acolhe e põe-se

em oposição ao que persiste, reordenando-se nessa recepção como superego,

como consciência16·. E, com a mesma força da agressividade original que o Eu

16 Gewissen, no original. Recordemos que a palavra portuguesa pode significar duas coisas: a

percepção que o indivíduo tem de seus atos e sentimentos e a capacidade de fazer distinções

33

buscava satisfazer, o Super-eu o pressiona rigorosamente. A essa tensão

denominou-se consciência de culpa, manifesta como necessidade de punição: “A

civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao

enfraquecê-lo, desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu

interior [...]”. (p. 92).

Essa reorganização de forças não é um mecanismo espontâneo, pois em

determinado momento a agressividade foi inibida porque algo se interpôs a esse

propósito. Mas ao conter o impulso e impedir o ato, o propósito permaneceu

equiparado a uma realização, uma vez que enseja culpa e necessidade de punição.

Esse confronto e suas consequências para o sujeito e a civilização parecem

comportar boa parte da magnificência dos axiomas da psicanálise:

Primeiro, que o “mal-estar na cultura” não deriva tanto da repressão da sexualidade, porém, mais profundamente, da repressão da agressividade; segundo, que esta se dá por meio da instalação no psiquismo de “barreiras” destinadas a tolher as manifestações agressivas. Sexualidade e agressividade, aliás, não se apresentam jamais isoladamente; esta é um fator associado àquela, sob a forma das pulsões parciais ou como atividade destinada a assegurar o encontro e a fruição do objeto; igualmente, mesmo na fúria destruidora mais intensa, o componente narcisista inerente à afirmação da força e do poder não pode ser eliminado. É que estamos diante de fenômenos de fusão pulsional; a cultura se revela assim não só como poder de coerção, mas igualmente como espaço de manifestação e de satisfação, dentro dos limites variáveis, das duas pulsões. (MEZAN, 1985, p. 507).

Mas Freud insiste em reconhecer que o sacrifício imposto é mais poderoso do

que as possibilidades de satisfação oferecidas pela cultura. Para o Eu, embora uma

pulsão satisfeita na sua meta proporcione grande prazer, a contenção que a ela se

opõe identifica a realização como algo repreensível. Assim sendo, resta indagar

sobre a existência de uma determinação externa, que julga o que é mau ou

repreensível, mas não se trataria disso:

É lícito rejeitar uma capacidade original por assim dizer natural, para distinguir entre o bem e o mal. Com frequência o mal não é, em absoluto, uma coisa nociva e perigosa para o Eu, mas, pelo contrário, algo que ele deseja e que lhe dá prazer. (FREUD, 2010a, p. 93).

morais; em alemão, usa-se Bewusstsein no primeiro caso, e Gewissen, no segundo. É possível recorrer a uma paráfrase (“consciência moral”) para verter Gewissen (N. do T., p.88).

34

E por que motivo se submeteria tal consciência à culpa e à necessidade de

punição indiferentemente do alcance de uma meta ou do simples propósito? A

resposta vem do fundo do ser – do desamparo e da dependência do outro,

sentimento que Freud designa como “medo da perda do amor”. Essa perda

comporta castigo e exposição aos perigos que lhe impõem os agravos da

desproteção desse outro, poderoso e ameaçador. Essa constante ameaça da perda

de um bem insustentável, enigmático, a exigir abstenção de desejar e de realizar,

furta cores das ambivalências de amor e ódio, prazer e desprazer, bem e mal e, por

fim, descortina o inevitável sentimento de culpa. Obra de uma complexa operação

que movimenta etiologias e determinações culturais:

Chamamos a esse estado má consciência, mas na realidade ele não merece esse nome, pois nesse estágio a consciência de culpa não passa claramente de medo da perda do amor, medo social. Na criança pequena não pode ser outra coisa, mas em muitos adultos também não há diferença, exceto que o lugar do pai, ou de ambos os pais, é tomado pela grande sociedade humana. (FREUD, 2010, p. 94).

Uma importante mudança ocorre quando a autoridade é internalizada e,

assim como as próprias determinações do sujeito, a civilização impõe também

graves e importantes exigências, através do mecanismo denominado na psicanálise

freudiana de superego da cultura, com equivalências relativas de punições que se

manifestariam mediante “angústia de consciência”. Ademais, sua existência nos

ajudaria a compreender os processos psíquicos, uma vez que são mais acessíveis à

consciência quando determinados pela sociedade do que o seriam quando gestados

pelo próprio indivíduo. Sim e não, pois curiosamente, nesse estágio a consciência

demonstra uma peculiar diferença em relação ao estágio anterior (medo da perda de

amor). Trata-se de um paradoxo, pois a medida de grandeza da virtude que

determinado indivíduo comporta faz aumentar o grau de desconfiança e severidade

de sua consciência. Mas pode-se objetar ou compreender isso como dificuldades

inerentes ao ser moral, cuja consciência tem como características o rigor e a

vigilância para consigo mesma.

Dentre os valores humanos que concernem às relações sociais, almejados

em todos os tempos, encontra-se a ética, um trabalho civilizacional que busca

afastar um terrível inimigo da cultura:

35

[...] o pendor constitucional dos homens para a agressão mútua e por isso mesmo nos interessamos especialmente por aquele que é o mais jovem dos mandamentos do superego cultural que diz: “Ama teu próximo como a ti mesmo. (FREUD, 2010, p. 118).

As considerações ulteriores sobre esse preceito buscam responder, pareceu-

nos com fina ironia, à desproporcionalidade dessa exigência e sua inexequível

consigna só possível de ser tangenciada pela satisfação narcísica, quando o

indivíduo se considera superior aos outros ou pela força inquestionável do

mandamento divino cuja recompensa não se deve esperar neste mundo. Sob essa

perspectiva, a ética poderia ser vista como um ponto frágil de defesa da cultura ao

sustentar-se na relatividade de bem e mal e exigir respostas adequadas aos

desígnios da civilização a um Eu de domínio restrito sobre suas pulsões:

Que poderoso obstáculo à cultura deve ser a agressividade, se a defesa contra ela pode tornar tão infeliz quanto ela mesma! A chamada ética natural nada tem a oferecer aqui, salvo a satisfação narcísica de o indivíduo poder se considerar melhor do que outros. [...] Acho que, enquanto a virtude não compensar já nesta vida, a ética pregará em vão. (p. 119).

Mas poderia haver um ponto de saturação determinado pela exigência de

sacrifício e pelos fins do empenho cultural? Para Mezan (1985) parece haver sempre

duplicidades e conflito a espreita com desdobramentos de distintas ordens:

Dadas estas condições, o sentimento de culpabilidade também cresce em espiral, e, em virtude do mecanismo que preside à formação das massas, pode vir a encontrar na submissão absoluta ao líder uma válvula de escape, a qual, entretanto, devido às mesmas circunstâncias, pode também atuar em sentido contrário: expiada parcialmente a culpabilidade pelo masoquismo inerente à cega submissão, a agressividade retorna ao primeiro plano e se desencadeia por exemplo contra aqueles que o líder ou a doutrina que este prega apontam como inimigos. Como não ver no horizonte de um texto como O Mal-estar na Cultura, a sombra das hostes nazistas?

17” (MEZAN, 1985, p. 511-512).

Deparamo-nos nesse texto freudiano com um profícuo embate entre noções

psicanalíticas e conceitos trazidos de troncos importantes da ciência, da experiência

sensível, e de surpreendentes indagações e formulações. Estamos diante de uma

17 Em seu artigo Freudian Theory and the Pattern of Fascist Propaganda, Theodor W. Adorno mostra

com clareza de que forma os conceitos analíticos podem se revelar fecundos numa análise propriamente política, que, é preciso convir, jamais é efetuada por Freud (MEZAN, 1985, nota 70, p. 512).

36

grande obra sustentada por argutas interrogações à saga humana que, Freud

reconhece, poderiam advir de críticos de variadas correntes. Quase como uma

confissão, declara que se esforçou durante esse trabalho para manter à distância

um preconceito entusiasta concernente ao fato de que a civilização é o que temos

de mais precioso e nos conduziria indubitavelmente à perfeição.

Birman (2009) assinala que essa formulação enunciada nas páginas do Mal-

estar... está fundamentada na segunda teoria das pulsões em Além do Princípio do

Prazer, de 1920, e baseia-se particularmente no desamparo do sujeito diante da

pulsão de morte, cuja modalidade não supõe representação e inscrição no circuito

de satisfação pela mediação de um objeto.

Para esse autor, o desamparo a que se refere Freud expõe a contingência do

sujeito no mundo, um ser frágil e mortal, que talvez por isso seja levado a criar

artifícios para o tamponamento das suas marcas de vaidade, suposta

autossuficiência e onipotência: “[...] algo da ordem originária, marcando a

subjetividade humana para todo o sempre, de maneira indelével e insofismável”

(Birman, 2009, p. 37). Percebida como uma questão axial da psicanálise, para esse

autor, Freud afasta-se a partir daqui das possibilidades e da crença iluminista no

ideal de felicidade prometido pela ciência.

Bauman (1998) analisou praticamente no limiar deste século as exigências

impostas pela civilização aos indivíduos, contrapondo as demandas e os sacrifícios

da modernidade com a atualidade, à qual denomina pós-modernidade. Nossa

justificativa para trazer suas ideias com ênfase quase no final deste capítulo é que

suas argutas observações comportam causalidades históricas, conceitos filosóficos

e noções analíticas próprias que apontam valores em transição e imprimem sentido

para o mal-estar da atualidade. E, mais importante, as categorias do seu ensaio

sociológico mantém implicações com noções psicanalíticas, além do que sua análise

articula-se com os elementos de nossa pesquisa. Assim como outros autores,

psicanalistas ou filósofos, afirmar sua compreensão sobre o enquadramento da

crítica freudiana da cultura se faz necessário:

Só a sociedade moderna pensou em si mesma como uma atividade da “cultura” ou da “civilização” e agiu sobre esse autoconhecimento com os resultados que Freud passou a estudar; a expressão civilização moderna é, por essa razão, um pleonasmo. (BAUMAN, 1998, p.7).

37

A conjunção que imbricaria o sujeito ao mal-estar, para este autor teria se

deslocado da renúncia à liberdade sem restrições em favor da segurança coletiva,

para uma vontade individual de liberdade e prazer que desdenha da própria

segurança. Sacrifica-se a segurança pela liberdade:

[...] quando é a vez de a segurança ser sacrificada no templo da liberdade individual, ela furta muito do brilho da antiga vítima. Se obscuros e monótonos dias assombravam os que procuravam a segurança, noites insones são a desgraça dos livres. Em ambos os casos a felicidade soçobra. (p.10).

Coerentemente, insistimos na noção do contemporâneo de Agamben (2009)

para melhor compreender essa asserção e indagar se é possível pensar esse

deslocamento da segurança para a liberdade independentemente das dimensões de

passado e presente. E, ainda, não atribuí-los à história, pois as determinações

históricas para necessidade e vontade parecem ser complementares, quando se

trata de insistir, ainda que criticamente, nas noções da psicanálise:

Assim como um planeta circula em volta do seu astro central, além de rodar em torno do seu próprio eixo, também um ser humano participa do curso evolutivo da humanidade, enquanto segue o seu caminho de vida. Para nossos olhos obtusos, no entanto, o jogo de forças do céu parece fixado numa ordem imutável: na vida orgânica vemos ainda como as forças lutam entre si, e os resultados do conflito mudam constantemente (FREUD, 2010, p. 115).

Quase ao final deste capítulo, é preciso dizer que encontramos no texto

freudiano questões para o âmbito da tese com as perspectivas e o horizonte

almejados. Trouxemos, conforme anunciado, as contraposições de comentadores de

modo a evidenciar os traços e a configuração da subjetividade. Em muitos períodos

do texto foi possível encontrar na reflexão freudiana um ser oxidado pela renúncia

de suas pulsões em nome do coletivo civilizacional, a vagar pelas possibilidades

abertas por Eros, visto pelo autor, ao lado de Ananké, como o patrono da cultura

humana.

Compreendemos essa condição, chamada por Birman (2009) de condição

trágica do sujeito no mundo moderno, à luz das questões filosóficas da

modernidade, ou seja, longe de qualquer determinismo ou destino:

38

[...] a definição da tragédia a partir da contradição ou do antagonismo se deve a Schiller [...] profundamente imbuído da ética e da estética kantianas, pensa a tragédia a partir da dualidade entre a vontade humana e os instintos, a vontade livre e a determinação natural, a liberdade moral e a necessidade natural. (MACHADO, 2006, p. 50).

Entre as vias de acesso para alcançar a configuração do mal-estar e

reinterpretá-lo, como já afirmadas, a política e a arte são as dimensões que

elegemos.

Interessa-nos pensar a política a partir de caminhos para a emancipação, ou

mais especificamente, de superação de uma realidade e de um pensamento de

dimensão única, do consenso integral e das formas e técnicas que concernem à

gestão do Estado mercantilizado sobre a população:

Ao contrário do que existia em etapas passadas do capitalismo, em que as promessas da ideologia eram refutadas pela realidade da miséria quotidiana, a realidade, hoje é a realização concreta daquelas promessas. As necessidades materiais são atendidas de uma forma impensável há algumas gerações. Se assim é, houve um deslocamento no lugar social da mistificação, que passa a exercer-se, agora, a partir do próprio aparelho produtivo. (ROUANET, 1998, p.208).

Não é difícil observar como o estágio atual do capitalismo viceja de fetiche e

requinte ao faturar em grande estilo com as bugigangas tecnológicas duvidosas no

mercado dos assistidos por programas governamentais, assim como em todos os

níveis de renda e consumo. É o domínio sobre a falsa necessidade, como explica

Marcuse:

A democracia capitalista de massa torna-se capaz de apoiar-se, não sobre o terror e a penúria, mas sobre a opulência e a eficácia, e sobre a vontade geral de uma população oprimida e administrada. (1969 apud ROUANET, 1998, p. 209).

Do texto de Marcuse (2009), o conceito de mais-repressão, observado no

princípio de realidade servirá como fio condutor para a compreensão dos derivativos

pulsionais e as disjunções repressivas que operam no sujeito. Intuímos que, com

essa abordagem, a porosidade do sujeito à alienação como força que repõe a

reprodução contínua do empobrecimento da vida possa ser examinado

politicamente.

39

Quanto à arte e seu potencial político percebido criticamente por Marcuse

(2007), nossa aproximação com o texto freudiano se fará pelos domínios da estética

e seus planos:

[...] sob o nome de estética, se opera uma identificação entre o pensamento da arte e o pensamento efetuado pelas obras de arte – e certa noção de conhecimento confuso: uma ideia nova e paradoxal, já que, ao fazer da arte o território de um pensamento presente fora de si mesmo, idêntico ao não-pensamento, ela reúne os contraditórios: o sensível como ideia confusa de Baumgarten e o sensível heterogêneo à ideia de Kant. (RANCIÈRE, 2012, p. 13).

Retomando em seu texto Eros e Civilização as qualidades da imaginação

tangenciadas por Freud no Mal-estar..., Marcuse nos impulsiona para a abordagem

interpretativa e analítica pretendida. Para esse autor, o caráter afirmativo da arte

está no Eros:

[...] a afirmação profunda dos Instintos de Vida na sua luta contra a opressão instintiva e social. A permanência da arte, a sua imortalidade histórica ao longo dos milênios de destruição, dá testemunho deste empenhamento. (2009, p. 20).

Ao final do texto de Freud, sem nenhuma inclinação para profecias ou

provisões de consolo para crentes ou revolucionários, este mantém aberta como

questão decisiva a perturbação destrutiva dos instintos humanos para o sujeito e a

sociedade, bem como a consideração realista de que já dominamos forças naturais

suficientes para o extermínio total e que, conscientes, sofremos essa dor.

Antes da singela pergunta com a qual encerra o texto, Freud ainda reflete

sobre as possibilidades de o eterno Eros nos redimir sobrepondo-se na luta contra

seu adversário igualmente imortal, e conclui: “Mas quem pode prever o sucesso e o

desenlace?” (2010a, p. 122).

40

Figura 2 - Tela 2 -Transgressão

Fonte: Autor - Luiz Palma, 2002. Óleo s/ tela. Medida: 1,10 x 1,35. Foto: Marcos Muzi

41

2 SOB O DOMÍNIO E O ALÉM MAIS DO PRINCÍPIO DA REALIDADE

Noite, para que eu não durma. Água, para que eu não beba. Ontem, para que eu não lembre. Fresta, para que eu não veja. Nada, para que eu não seja. Fruta, para que eu não coma. Pão, para que eu não morda. Halo, para que eu não veja. Cores, para que eu não veja. Rosa, para que eu não queira. Linha, para que eu não teça. Nuno Ramos (2002, p.53)

A trajetória intelectual de Marcuse inicia-se por uma consistente formação

filosófica na Alemanha dos anos 20 do século passado em Berlim e Friburgo, e por

ter sido aluno de Heidegger e Husserl. Seu pensamento filosófico-político legou-nos

uma vasta produção cuja singularidade contempla uma apreensão que vai além do

explicativo e do teórico sobre a realidade social. No início dos anos 30 integra, a

convite de Horkheimer, o quadro de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Social

de Frankfurt. Essa sua vinculação contribuiu para o aprofundamento da Teoria

Crítica, núcleo principal das investigações que ali se produziram, fortemente

influenciado pela afirmação da práxis política e que, a despeito da coerência de

fundamento, teve na sua própria história importantes divergências teóricas entre

seus membros. Para melhor compreender essa história é necessário destacar uma

de suas especificidades na abordagem de um número importante de temas,

principalmente quanto ao:

[...] movimento freudo-marxista dos anos 20 e 30. Essas primeiras tentativas de aproximar o pensamento de Freud e Marx tiveram como pano de fundo dois marcos históricos – a revolução bolchevista, em 1917, e a chegada de Hitler ao poder, em 1933. Esses dois fatos condicionaram a forma e as características da recepção de Freud pelos e Marxistas. Os dois episódios têm em comum a valorização do fator subjetivo da história. (ROUANET, 1998, p. 13).

Essa explicação também se sustenta pelo fato de a psicanálise ter construído,

de modo inovador, um sistema explicativo do funcionamento psíquico que denotava

oferecer os instrumentos para a compreensão da ideologia burguesa que havia

impregnado a consciência proletária: “Seria porque derivava sua força de persuasão

de mecanismos afetivos, irredutíveis à argumentação racional, mas acessíveis, em

sua estrutura profunda, às categorias explicativas da psicanálise?” (ROUANET,

1998, p. 14).

42

Entre outras abordagens de seus estudos e pesquisas, Marcuse destacou-se

por examinar as relações entre arte e transformação social, vistas sob uma

perspectiva de unidade de opostos em que a arte, ao obedecer a uma necessidade

que lhe é originária, potencializaria a liberação do homem.

Reagindo à identificação plana e distorcida da obra de Marcuse com a

contracultura e para demonstrar tal equívoco, Maar apud Borges (2002, p.11) faz

uma a periodização de sua obra, a qual Borges (2002, p. 13) organiza para fins

didáticos em três fases consideradas emblemáticas de seu pensamento, e nas quais

se alinham os artigos e os livros mais marcantes de cada período.

O primeiro período, de 1928 a 1933, denominado de fenomenológico, reúne

os seguintes textos: Contribuições a uma fenomenologia do materialismo histórico

(1928), Sobre a filosofia concreta (1929), A ontologia de Hegel e os fundamentos de

uma teoria da historicidade (1932), Novas fontes para a fundamentação do

materialismo histórico (1932) e Fundamentos filosóficos do conceito econômico-

científico de trabalho (1933).

Os textos da segunda fase, demarcada pelo período fankfurtiano inicial de

Marcuse entre os anos de 1934 e 1955, são: O combate ao liberalismo na

concepção totalitária do Estado (1934), Sobre o conceito de essência (1936),

Estudos sobre autoridade e família (1936), Filosofia e teoria crítica (1937), Sobre o

caráter afirmativo da cultura (1937), Para a crítica do hedonismo (1938), Uma

introdução à filosofia de Hegel (1939), Algumas implicações sociais da tecnologia

moderna (1941), Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social (1941) e O

Existencialismo (1948).

O terceiro período estaria, para o pesquisador brasileiro, centrado na Teoria

Crítica da Sociedade: Eros e Civilização: uma crítica ao pensamento de Freud

(1955), Obsolescência da Psicanálise (1963), A ideologia da sociedade industrial

(1964), Industrialização e capitalismo na obra de Max Weber (1964), Ética e

revolução (1964), Comentários para uma redefinição de cultura (1965), O fim da

utopia (1967), Contra-revolução e revolta (1972) e A dimensão estética (1977).

Os conceitos da psicanálise expostos no Mal-estar... e as análises que

Marcuse realiza sobre o problema da civilização a partir do enunciado freudiano

trazem proposições autorais do filósofo. Isso significa que noções fundamentais da

psicanálise passaram por uma torção, ou seja, uma modificação, sem se afastarem

43

de alguns fundamentos, como por exemplo, o do inconsciente, das pulsões e suas

vicissitudes e dos princípios de prazer e realidade.

É um texto elaborado trinta anos depois do ensaio freudiano que, como não

poderia deixar de ser, traz o peso e as transformações perspectivadas da sociedade

industrial da segunda metade do século 20. Evidentemente, os aspectos trabalhados

por Marcuse são muitos e não poderíamos dispensar a mesma atenção a todos

eles.

Tampouco poderíamos deixar de observar com atenção uma nova introdução

que Marcuse fez, uma década após a publicação de Eros e Civilização, no prefácio

da edição desse ano, a qual denomina Prefácio Político, 1966.

O texto ecoa como um alerta à crescente complexidade do sistema de

dominação e os possíveis rebatimentos sobre os pressupostos de emancipação por

ele desenvolvidos nessa mesma obra. Encontramos aqui um tom mais sombrio

quanto às possibilidades de realização humana diante da expansão do modelo de

sociedade industrial, a qual particularmente referia-se como “sociedade afluente” e

suas consequências.

Dentre as reflexões que empreende, o autor acentua o fato de que aplicara

um princípio otimista, ou mesmo equivocado, em suas análises, ao considerar a

questão da riqueza social como uma condição favorável para se empreender uma

luta conjunta das pulsões vitais contra os provisores da morte. Seu ponto de partida

anterior foi a hipótese de que, com as realizações culturais, teríamos, de certa

forma, alcançado um patamar favorável para levar adiante a reversão dos binômios

produtividade e destruição e liberdade e repressão:

Negligenciei ou minimizei o fato desse fundamento lógico “obsoleto” ter sido amplamente reforçado (se não substituído) por formas ainda mais eficientes de controle social. As próprias forças que tornaram a sociedade capaz de amenizar a luta pela existência serviram para reprimir nos indivíduos a necessidade de tal libertação. (MARCUSE, 2009, p. 13).

Na introdução original de 1955 o autor faz uma extensa digressão sobre a

hermenêutica da psicanálise pela via de suas próprias noções e termos,

reconhecidos no texto freudiano como sócio-históricos, e posiciona-se dentro desses

limites para indagar:

44

A relação entre liberdade e repressão, produtividade e destruição, dominação e progresso, constituirá realmente o princípio de civilização? Ou essa inter-relação resultará unicamente de uma organização histórica especifica da existência humana?. (p. 28).

Esse posicionamento inicial interroga de forma crítica e direta o revisionismo

neofreudiano daquele período, sobretudo o deslocamento operado nas obras de

Erich Fromm, Karen Horney e Harry Stack Sullivan, nas quais a profundidade do

conflito entre o indivíduo e sociedade, ou seja, a estrutura pulsional e o domínio do

consciente estariam próximos de um nivelamento pré-freudiano. O ponto de inflexão

teórica comum a esse grupo revisionista está demonstrado, segundo Thompson

(1976 apud MARCUSE, 2009, p. 213), quando se opera o deslocamento “do

passado para o presente, do nível biológico para o cultural, da constituição do

indivíduo para o seu meio.”.

Embora mantenha certa distância do que chamou de disciplina técnica da

psicanálise, Marcuse põe sua ênfase interpretativa a serviço das implicações

filosóficas e sociológicas do texto de Freud, lido, portanto, como uma construção

teórico-filosófica que pretende compreender o âmago da constante e enigmática

perturbação social. No entanto, não deixa de centrar-se nos conceitos

psicanalíticos, principalmente em relação à repressão imposta pela sociedade ao

homem e por determinar importantes diferenças, como veremos adiante no texto.

Para o autor, sua estratégia de análise prevê um caminho que contorna os

argumentos terapêuticos para centrar-se em uma construção teórica que propicia

uma leitura sobre uma determinada perturbação geral. Propõe em seguida algumas

explicações sobre o emprego de certos termos:

Civilização é usada permutavelmente como cultura – tal como em O mal-estar da civilização, de Freud. Repressão e repressivo são empregados na acepção não-técnica para designar os processos conscientes e inconscientes, externos e internos, de restrição, coerção e supressão. “Instinto”, de acordo com a noção freudiana de Trieb, refere-se aos “impulsos” primários do organismo humano que estão sujeitos a modificação histórica; encontram representação tanto somática como mental. (MARCUSE, 2009, p. 30).

Para a reinterpretação dos princípios analíticos freudianos que corresponde

em grande medida à distinção entre os processos inconscientes e conscientes, o

autor recorre à imagem de um sujeito cuja existência se daria em duas diferentes

45

dimensões mentais, com processos independentes e permeados por constantes

conflitos. As tensões, com consequências traumáticas expõem o embate entre

pulsões que buscam prazer irrestrito e o princípio de realidade.

As evidências da reprodução expansiva do sistema sobre a quase totalidade

das dimensões da vida faz transparecer a complexidade que está posta para a

superação da sofisticação repressiva gestada desde muito por uma determinada

forma de administração científica das necessidades pulsionais – fator vital da

reprodução do sistema:

[...] a mercadoria que tem que ser comprada e usada traduz-se em objetos da libido; e o inimigo nacional, que tem de ser combatido e odiado, é destorcido e inflado a tal ponto que pode ativar e satisfazer a agressividade na dimensão profunda do inconsciente. (MARCUSE,2009, p.14).

Ao adentrar o corpo do texto, Marcuse chama a atenção para o fato de que a

abordagem freudiana comporta uma irremovível dualidade conflituosa, dialética,

enunciada na tese segundo a qual a história social do homem é a história da sua

repressão. A face oposta dos presumíveis bens culturais se revelaria nas barras da

coerção da vontade humana pré-condição para uma construção social e sua

preservação duradoura.

Essa transformação da regência dos princípios sobre a vida, que sobrepõe o

princípio de realidade à satisfação pulsional, toca profundamente a natureza humana

quando o indivíduo renuncia ao prazer momentâneo, incerto e ilimitado, pela

postergação ou substituição da finalidade pulsional. Para o autor, estas são

modificações expressas na teoria psicanalítica como vicissitudes da pulsão, noção

presente nos conceitos de sublimação, identificação, projeção, repressão e

introjeção.

Cabe retomar, de nossa parte, que nos textos freudianos com amplitude

social tais como Atos obsessivos e práticas religiosas (1907) e Moral sexual

civilizada e doença nervosa moderna (1908), que antecedem O mal-estar..., as

vicissitudes já estavam presentes como mecanismos de modificação dos impulsos

sexuais através da sublimação em ações não-sexuais e culturais.

Essa modificação ou variação de objetivos, ou mesmo a inibição de anseios

por que passam os instintos primários sob a influência da realidade externa, é parte

da origem e da permanente tensão do mundo sócio-histórico:

46

Filogeneticamente, ocorre primeiro na horda primordial, quando o pai primordial monopoliza o poder e o prazer, e impõe a renúncia por parte dos filhos. Ontogeneticamente, ocorre durante o período inicial da infância, e a submissão ao princípio da realidade é imposto pelos pais e outros educadores. (MARCUSE, 2009, p. 36).

Nessa dinâmica biológica e social, que Marcuse (2009, p.41) identifica como o

centro da metapsicologia freudiana, onde as hipóteses decisivas avançaram no

conhecimento com permanente dificuldade durante vários estágios da concepção da

teoria psicanalítica das pulsões, encontra-se o aparato mental, espesso e pleno de

opostos: “do inconsciente e das estruturas conscientes; dos processos primários e

secundários; das forças herdadas constitucionalmente determinadas, e das

adquiridas; da realidade psicossomática e da externa”.

A partir de 1920, como pudemos ver nas etapas percorridas, a teoria

freudiana das pulsões faz uma reordenação de fundo que impacta toda a teoria

psicanalítica, fato a que Marcuse também atribui grande importância. Sua crítica

retoma os estágios desde o curto período intermediário em que a concepção

dualista teria sucumbido à hipótese de uma forma libidinal onipresente, chamada

narcisista.

Todavia, essas modificações preservavam a libido como lugar predominante

na estrutura pulsional, de acordo com a concepção de que os processos mentais

primários seriam governados pelo princípio do prazer e sob tal regência lhe caberia

sustentar a vida, o que corresponderia à pulsão de vida. No entanto, nessa

reformulação última de Freud, surge como acontecimento dominante a tendência

regressiva em toda a vida instintual.

A tese marcuseana sustenta ser da maior importância o fato de Freud ter

repetidas vezes enfatizado que à natureza comum das pulsões precediam suas

diferenças operativas. Esse dado mais uma vez reforça a ideia de que foi inesperado

constatar a existência de um despercebido atributo universal das pulsões, qual seja,

uma compulsão de retroação ou uma espécie de inércia constitutiva da vida

orgânica. Para Freud (1950 apud MARCUSE, 2009, p.43), as dúvidas ainda

persistiam vinte anos depois como consequências dinâmicas do impacto da

realidade externa sobre o organismo:

47

O princípio de prazer, portanto, é uma tendência atuando a serviço de uma função cuja tarefa é libertar inteiramente o aparelho mental de excitação ou manter constante a quantidade de excitação nele existente ou, ainda, mantê-la tão baixa quanto possível. Não podemos ainda decidir-nos, com completa certeza, em favor de qualquer dessas alternativas.

Com essa estrutura primária, a pulsão de morte surge como análoga a Eros e,

em disputa permanente, estabelece a denominada dinâmica primordial. Marcuse

contrapõe a essa configuração a questão da natureza comum conservadora, ou

seja, regressiva, das pulsões, que opera em oposição à concepção dualista e desse

modo repõe o estado de incerteza na metapsicologia freudiana. Em seguida propõe

uma orientação dizendo ser imperativo buscar a fonte comum dos dois instintos

básicos, e observa que Fenichel (1935) apud Marcuse (2009) identificou um avanço

nessa direção quando Freud percebeu a possibilidade da presença de uma “energia

deslocável, que em si mesma é neutra, mas capaz de aliar-se quer a um impulso

erótico, quer a um destrutivo” (apud Marcuse, 2009, p. 46), ou seja, com a pulsão de

vida ou de morte. Mas assevera, ao continuar na mesma linha de raciocínio, nunca

“a morte fora tão coerentemente admitida na essência da vida; mas também a morte

jamais se aproximara tanto de Eros”. (MARCUSE, 2009, p. 46).

Ao prosseguir com as especulações sobre a importância de reconhecer como

antítese desses instintos básicos a diferenciação de uma raiz originalmente comum,

deduz que, assim sendo, os fenômenos agrupados como pulsão de morte poderiam

expressar um princípio para todas as demais pulsões que, no curso de seu

desenvolvimento, por influências externas, poderiam passar por modificações. O

argumento é que a compulsão de regressão na vida orgânica busca uma imobilidade

integral e, se o princípio do Nirvana está na base do princípio do prazer, a

necessidade destrutiva se apresenta sob outro contexto, em que a pulsão de morte

move-se para alcançar alívio de tensão, ou seja, empreende uma fuga inconsciente

forçada pelos agravos do sofrimento e não em função do apelo ou da compulsão ao

aniquilamento. Sob essa perspectiva, a pulsão de morte mantém a eterna luta contra

o sofrimento e a repressão, “é destrutividade, mas não pelo mero interesse

destrutivo, mas pelo alívio de tensão. E [...] parece ser afetado pelas transformações

históricas que influem nessa luta.” (Freud, apud MARCUSE, 2009, p. 46).

Para compreender a teoria freudiana sob essa perspectiva histórica, Marcuse

repõe no texto as noções de estrutura mental de id, ego e superego a partir de sua

interpretação. A primeira camada, o id, a mais remota e fundamental, é domínio do

48

inconsciente, o lugar das pulsões primárias que responde ao princípio do prazer e

por satisfação das necessidades pulsionais. Indiferente à autopreservação e a

contradições, ignora o tempo e os valores, ou seja, está isento das formas e

princípios que constituem o indivíduo consciente e social.

A outra camada da estrutura mental, assim se refere o autor, tem sua

formação gradualmente organizada pela influência do mundo externo, em área do id

constituída especificamente por elementos de recepção e proteção contra estímulos,

e que viria assim, a constituir-se no ego. Essa configuração é a que topologicamente

estaria no limiar do mundo externo, na qual a sua menor e mais superficial parcela

tem a percepção e o conhecimento consciente para preservar sua existência,

ajustando-se a realidade e modificando-a, de forma a conservar uma imagem

apropriada. Da perspectiva do id, tratar-se-ia de uma instância derivativa, ou seja, é

aquela responsável pelos processos secundários de alteração e regulação de

impulsos, funções de extrema importância, pois fazem a mediação das gratificações

pulsionais com a realidade. Os desvios forçados pelo princípio de realidade, ainda

que alcancem gratificação, são gratificações modificadas. Sob a permanente

exposição entre forças pulsionais primárias e as pressões da realidade, a defesa do

ego se dá, portanto, em duas frentes, quando “destrona o princípio de prazer, que

exerce indiscutível influência sobre os processos do id, e substitui-o pelo princípio de

realidade, que promete maior segurança e êxito” (MARCUSE, 2009, p. 48).

O desenrolar dessa segunda instância empreende a formação de outro

componente psicológico, o superego, cuja origem remonta às relações infantis entre

os pais e o entorno familiar, organizando-se prematuramente em um núcleo

constante de influências culturais e sociais, como um guardião da moralidade,

responsável pelas repressões efetuadas pelo ego. As restrições externas, primeiro

impostas pelos pais e depois advindas do âmbito social, uma vez introjetadas pelo

ego constituem-se na sua consciência.

Desde aí, as transgressões ou o desejo em transgredir os limites impostos

suscitam o sentimento de culpa e a necessidade de punição, sobretudo na fase

edípica, contaminando toda a vida psicológica. Essa armação repressiva logo se

torna inconsciente, assim como grande parte do sentimento de culpa.

Essa modificação do estado de consciência para a inconsciência do

sentimento de culpa e da operação repressiva tem importantes consequências para

49

a civilização. Trata-se de um desdobramento que recrudesce a severidade punitiva

ao indivíduo, jovem ou adulto, ao operar de forma automática ou inconsciente, como

se o padrão das pulsões se mantivesse fixado no período infantil. Em outras

palavras, um sobrepeso repressivo é imposto ao individuo, desconsiderando suas

potencialidades racionais da maturidade, individual e social, uma vez que: “o

superego impõe não só as exigências da realidade, mas também de uma realidade

pretérita” (MARCUSE, 2009, p. 50).

O filósofo retoma a dinâmica do princípio do prazer primordial para assinalar

que o id conduz para o presente e o futuro os vestígios de memória de um status

quo ante de liberdade, de carências e de necessidade, para um superego de

severidade igualmente extemporânea. A argumentação conclui que esse

determinismo, superado historicamente, impõe um presente punitivo incompatível

com a realidade e o homem civilizados. A ligação entre liberdade e necessidade fica,

desta forma, soterrada por uma aceitação da necessidade de não-liberdade ─ a

própria memória se submete ao princípio da realidade.

As possibilidades trazidas a seguir por Marcuse encetam uma via de

compreensão que supera a intransigência de grupos diversos que desde o princípio

da psicanálise até os dias de hoje, seja por incompreensão ou reação, insistem em

opor a teoria de Freud sobre as pulsões à organização histórico-social da vida

humana. Para ele, a confrontação do ego com o mundo externo em qualquer etapa

de sua evolução se dá pela regência de uma realidade histórica e social que

influencia as estruturas mentais.

A argumentação contrária a que acima nos referimos, no entanto, insiste em

que o conceito freudiano de princípio de realidade impede que essas influências

mútuas se dêem ao converter as contingências históricas em necessidades

biológicas. A coação dos instintos impelida por esse princípio negaria a forma

histórica tornando-o uma realidade estática e inabalável.

De todo modo, a crítica se põe aceitável, embora insuficiente para Marcuse,

uma vez que na teoria freudiana a civilização desenvolveu-se como uma dominação

filogeneticamente organizada, uma vez que a concebe como sucedâneo do

despotismo patriarcal, do parricídio da horda primordial para o arbítrio internalizado

do clã fraterno. Sem distorcer a noção de princípio de realidade em questão,

50

reconhece nos conceitos freudianos uma história e busca lhes revelar o seu próprio

conteúdo.

Assim posto, Marcuse anuncia o que chamou de extrapolação das noções e

proposições da teoria de Freud e introduz uma duplicação de conceitos que,

segundo o autor, revelaria o histórico-social até então implícito:

a) Mais-repressão: as restrições requeridas pela dominação social. Distingue-se da repressão (básica): as “modificações” dos instintos necessários a perpetuação da raça humana em civilização. b) Princípio de desempenho: a forma histórica predominante no princípio de realidade. (p. 51).

Retomamos, então, a construção do princípio de realidade freudiano cujo fator

fundante mantém preservada a Ananké (carência) do estado de natureza primordial,

desprovido de condições para satisfazer de forma ampliada as necessidades

humanas. Essa coação de realidade impõe severas e desproporcionais renúncias de

prazer ao indivíduo, circunscrevendo-o em uma luta impiedosa por satisfação.

Essa noção deixa claro que suprir carências e buscar satisfação, como se

pode ver em muitas passagens do texto freudiano analisado, envolve sacrifício e

labuta e, consequentemente, a postergação do prazer mediante as pressões do

princípio de realidade. Mas como bem aponta a crítica de Marcuse, são pressões

possíveis de superação, pois no estágio atual da civilização, essa realidade poderia

ser organizada de modo a regular a distribuição coletiva de bens. Ou seja, há uma

imposição calcada pela violência bruta dos primórdios da civilização e depois, sem

abdicar desta modalidade, um quantum de repressão imposto por mecanismos

racionais de poder:

Contudo não importa averiguar até que ponto foi útil essa racionalidade para o progresso do todo, o fato é que se manteve como racionalidade da dominação e a gradual conquista da escassez ficou inextricavelmente vinculada e modelada pelos interesses da dominação. (MARCUSE, 2009, p. 52).

Ao seguir essa perspectiva, veremos que a dominação do homem e da

natureza como fator constitutivo do princípio de realidade se deu em períodos e

circunstâncias temporais diversos. Desse modo, podemos vê-los como fatores

históricos que compõem e expressam, através de um conjunto de instituições e

51

relações sociais, seus valores e leis, e é esse o ethos que às pulsões impõe limites,

cerceamentos e modificações. Essa conformação do princípio de realidade difere de

acordo com os estágios existentes em um mesmo ciclo civilizacional embora, em

todos os casos, comporte sempre teores repressivos de grau e âmbito variáveis

sobre as pulsões.

Mas a sua questão vai além, e o problema que lhe coube nos apontar para

ajustar sua análise ao termo derivativo do conceito freudiano do princípio de

realidade, apresenta-se com uma sinuosidade de percurso, uma vez que “os

interesses específicos de dominação introduzem controles adicionais acima e além

dos indispensáveis à associação humana” (MARCUSE, 2009, p.53). As inflexões

sobre a vida coletiva e individual a exigir desvios pulsionais para a imposição e

permanência da família patriarcal-monogâmica, a edificação do trabalho espoliativo

e alienado, assim como o controle público sobre a existência privada do indivíduo,

são para o autor as pressões que moldam o princípio de realidade de mais-

repressão. Dessa mesma ordem advém a severidade organizativa para a função

humana procriadora e a repressão da sexualidade.

As pulsões sexuais em uma ordem não-repressiva, ou seja, sob condições

sociais e existências transformadas, poderiam alcançar o que Marcuse chamou de

racionalidade libidinal, por sua própria dinâmica fundariam relações eróticas duráveis

entre os indivíduos, ampliando-as e conduzindo-as para formas superiores de

liberdade em sociedade.

No entanto, para identificar e esclarecer a extensão e os conteúdos

repressivos que prevalecem na sociedade contemporânea torna-se necessário

empreender um exame avaliativo sobre o princípio de realidade “específico” que

preponderaria nos elementos constitutivos desde a origem e prosseguir por sua

evolução.

A argumentação do autor destaca o fato de que, sob esse domínio, a

sociedade industrial contemporânea, demarcada pelo embate concorrencial entre os

seus elementos constitutivos, se estratificou. A dominação do homem e da natureza

resulta de formas históricas de realidade e, portanto, carregam diferenças de

finalidade e de grau nos modos de repressão, observáveis em períodos temporais

diversos e na constituição dos sistemas econômicos então vigentes. Esse ponto é

essencial na ponderação de Marcuse, porque o princípio de realidade comportará

52

mais ou menos pressões e, ainda, com distintas qualidades, de acordo com a ênfase

do sistema produtivo social:

[...] toda e qualquer forma do princípio de realidade deve estar consubstanciada num sistema de instituições e relações sociais, de leis e valores que transmitem e impõem a requerida “modificação” dos instintos. (p.52).

Sob essa perspectiva, Marcuse privilegia o parâmetro economicista,

identificado como um dos princípios históricos de realidade, designando-o por

princípio de desempenho, cujo processo formativo demandou um longo

desenvolvimento a par de uma sociedade impulsionada pela acumulação material e

o antagonismo, em expansão constante de dominação e com perversas

consequências: “o controle sobre o trabalho social reproduz agora a sociedade

numa escala ampliada e sob condições progressivas”. (p. 58).

O mecanismo dessa compressão social encontra-se na própria constituição

do trabalho quando os interesses de dominação aproximam a produção lucrativa do

sistema às necessidades dos indivíduos, ou seja, inocula o germe do trabalho

alienado, vivido como labuta duradoura e almejada por amplos segmentos

populacionais e pela maioria dos indivíduos. Sua sustentação se dá pelo desvio da

libido para o desempenho utilitário do sistema, em funções que raramente coincidem

com aspirações humanas genuínas ou o próprio desejo. E, paradoxalmente, esses

indivíduos sentem a repressão como liberdade de escolha:

A repressão desaparece na esplêndida ordem objetiva de coisas, que recompensa mais ou menos adequadamente os indivíduos cumpridores e obedientes, e que, ao fazê-lo, reproduz de modo mais ou menos adequado a sociedade como um todo. (MARCUSE, 2009, p. 59).

O princípio de desempenho alcança uma condição de naturalização, pois faz

coincidir uma exigência externa a uma vontade: “a autoridade social é absorvida na

consciência e no inconsciente do indivíduo, operando como seu próprio desejo, sua

moralidade e satisfação”. (p. 59).

Superar a cultura repressiva requer outra relação entre pulsão e razão, de

forma que a libido possa extravasar os limites institucionalizados desse princípio de

realidade acentuado pela mais-repressão:

53

A moralidade civilizada é invertida pela harmonização da liberdade instintiva e da ordem: libertos da tirania da razão repressiva, os instintos tendem para ralações existenciais livres e duradouras, isto é, geram um novo princípio de realidade. Na ideia de Schiller de um estado estético, a visão de uma cultura não-repressiva é concretizada no nível de civilização madura. (MARCUSE, 2009, p. 174).

A ideia trazida da estética considera que, com essa organização, a pulsão se

converte em uma questão política, uma vez que os processos de conflitos psíquicos

entre o ego e o superego e, entre o ego e o id, tornam-se simultaneamente conflitos

do indivíduo com a sociedade.

Entre as muitas considerações políticas de Marcuse, vamos retomar as

considerações iniciais que o autor faz sobre a democracia. Essa forma de governo

consagrada como virtuosa e que, no entanto, lhe interessa examinar criticamente, ou

seja, a partir de suas propriedades negativas, parece-nos parece instigante, pois ele

ilumina a desídia rebarbativa que a desfigura:

[...] o próprio escopo e eficácia da introjeção democrática suprimiu o sujeito histórico, o agente de revolução: as pessoas livres não necessitam de libertação e as oprimidas não são suficientemente fortes para se libertarem. Essas condições redefinem o conceito de Utopia: a libertação é a mais realista, a mais concreta de todas as possibilidades históricas e, ao mesmo tempo, a mais racionalmente, mais eficazmente reprimida – a possibilidade mais abstrata e remota. (MARCUSE, 2009, p. 16).

Essa forma democrática teria engendrado uma resignação diante da realidade

hegemônica de poder e exercício de governo cuja eficácia transcende a defesa do

território, a gestão da economia e a provisão de bens e cuidados para com a

população:

E a ordem estabelecida é suficientemente forte e eficiente para justificar essa adesão e garantir a sua continuidade. Contudo, o próprio vigor e eficiência dessa ordem podem se tornar fatores de desintegração. (p. 21).

O argumento prossegue na direção de que a desordem seria alimentada por

investimentos crescentes de recursos financeiros para suportar a criação de

empregos e serviços desnecessários, de forma a preencher o vácuo deixado pela

automação e, concomitantemente, manter a perpetuação e a iniquidade do trabalho

integral de base obsoleta.

54

Seguindo a mesma lógica, dar-se-ia uma intensificação dos investimentos

para a expansão do setor militar destrutivo em permanente e interminável

preparação para a possibilidade da conflagração final, ao lado da manutenção de

sucessivas guerras e ações violentas por toda parte como operações contingentes

da administração total. Suas consequências, para além da destrutividade e da

perversidade perpetradas, fazem derribar o grau de moralidade e ética de que, entre

outros haveres, a sociedade depende.

Nesse afã de criar novos tipos de trabalho e uma emulação de atividades

empreendedoras, no geral em desacordo com as reais necessidades sociais e de

significado miserável para o vivente, a sociedade afluente segue manipulando “o

desejo de beleza”, “os anseios da comunidade” e o “contato com a natureza”, como

falsas proclamações. Não por acaso, são promoções apresentadas sob formas de

atividades socioculturais, às vezes com conclamação política, quase sempre

segmentadas por público e interesse específico, e patrocinadas por governos e

grandes corporações, a penetrar a alma das massas.

Assim crível nessas aspirações não se encontrará Eros e sua força de

transformação autônoma, pois desse modo concebido realiza as expectativas do

próprio sistema sem nenhum enfrentamento aos meios repressivos:

Se essas finalidades tiverem de ser satisfeitas sem um conflito irreconciliável com os requisitos da economia de mercado, deverão ser satisfeitas dentro de um quadro estrutural de comércio e lucro. Mas este gênero de satisfação equivaleria a uma negação, pois a energia erótica dos Instintos de Vida não pode ser libertada sob as condições desumanizantes da afluência lucrativa. (MARCUSE, 2009, p. 22).

Essa repressão nos graus que a caracteriza como mais-repressão engendra

desdobramentos sucessivos e complexos da alienação. Nas múltiplas redes de

paradoxos que entrelaçam desejo e repressão, necessidade e satisfação, a

alienação prossegue em contiguidade com o progresso científico e tecnológico e

com a perpetuação de uma desigualdade estúpida se e quando comparada com a

ampla riqueza produzida mundialmente. Compõe tal situação um excesso plasmado

de determinado vigor regressivo que persiste sobre o poder cultural de Eros.

Para a filosofia marcuseana, superar o domínio da necessidade, ou seja,

empreender a eliminação da escassez e da pobreza predominantes no mundo,

assim como as formas de trabalho alienado, é tarefa humanamente possível. Uma

55

obra de redirecionamento monumental da civilização, que tenderia a um processo de

reconciliação da sexualidade com Eros e que, consequentemente, elevaria à

patamares superiores as relações humanas e a expansão da vida, modificando a

ordem e a configuração da sociedade.

A libido recomposta como força de autossublimação se viabilizaria como

fenômeno social, com o poder de impulsionar genuinamente formações de cultura

vinculadas às necessidades humanas e ao enriquecimento dos instintos de vida.

Marcuse recupera da teoria freudiana a hipótese de que toda a diminuição

dos obstáculos sociais impostos às pulsões sexuais poderia conduzir a sociedade às

fases pré-civilizadas, contra-argumentando que não seria assim, pois a abolição da

mais-repressão e a libertação das pulsões envolveriam muito mais do que uma

simples descarga, já que ocorreria uma transformação da libido. Isso difere da

liberação da sexualidade reprimida, uma vez que se dá a propagação e não a

explosão de libido, processo ao qual denominou dessublimação repressiva da

sexualidade, e que, no contexto de uma realidade transformada, encaminha-se para

a forma de autossublimação da sexualidade. E a libido, quando a alcança, o faz

como fenômeno social, quer dizer, como força irreprimível em direção às formações

altamente culturais.

O reconhecimento da força das transformações sócio-históricas sobre as

pulsões surge como base para pensar a transformação da libido como resultado de

um jogo de necessidades e faculdades individuais. Sua hipótese é que o corpo,

ressexualizado, deixaria de ser tributário à supremacia genital e à sua funcionalidade

instrumental para o trabalho, vindo a alcançar um tipo de renascimento erótico, no

sentido de que transformada em Eros, a sexualidade implicaria uma ampliação

qualitativa e quantitativa, significando que a pulsão assumiria por domínio e objeto a

própria vida. Essa superação pela expansão da autossublimação da sexualidade

abriria finalmente as possibilidades para as formas imanentes da liberdade.

Seus argumentos afirmam-se na concepção de Freud apud Marcuse (2009,

p.184-5) da sublimação não-repressiva de Eros como empreendedor da luta “para

formar a substância viva em unidades cada vez maiores, para que a vida possa ser

prolongada a um desenvolvimento superior” de construir unidades cada vez maiores

e de conservar e ampliar a vida:

56

O impulso biológico converte-se num impulso cultural. O princípio de prazer revela a sua própria dialética. A finalidade erótica de sustentar todo o corpo como sujeito-objeto de prazer requer o contínuo refinamento do organismo, a intensificação de sua receptividade, o crescimento de sua sensualidade. (MARCUSE, 2009, p. 185).

Ao mesmo tempo, a amplitude de sua tese afasta-se da ideia freudiana de

que a liberdade contra a repressão se põe na esfera do inconsciente, do passado

sub-histórico ou dos processos biológicos e mentais primordiais que, vista por esse

prisma, lançaria a questão da realidade não-repressiva para uma ordem regressiva:

Que tal princípio pudesse converter-se numa realidade histórica, uma questão de desenvolvimento consciente, que as imagens da fantasia pudessem referir-se a um futuro inconquistado da humanidade, em vez do seu (pessimamente) conquistado passado – tudo isso parece a Freud, na melhor das hipóteses, uma bela utopia. (p.137).

Marcuse prossegue, argumentando que a sublimação passa a ter outra

complexidade numa sociedade transformada, quando se torna, portanto, não-

repressiva, e reconhece no próprio conceito freudiano, no qual persistem a inibição

da meta sexual e o redirecionamento para outras finalidades, importantes derivações

às quais Freud (1949 apud MARCUSE, 2009) denomina de pulsões sociais: “Não

abandonaram suas finalidades diretamente sexuais, mas são sustados por

resistências internas que os impedem de as atingir; ficam contentes com certas

aproximações da satisfação” (p.181). São as relações afetivas entre pais e filhos, os

sentimentos de amizade, os vínculos emocionais no casamento e, pois, são modos

de sublimação nos quais os impulsos sexuais não precisam ser descritos como

sublimados.

Percebemos com clareza na formulação conceitual marcuseana a

possibilidade da sublimação não-repressiva, ou seja, a gratificação pulsional em

atividades e relações não genitais, mas sexuais no sentido erótico.

Ora, para o autor, ao abreviarem-se as longas horas e a energia consumidas

no trabalho e não sendo manipulado o tempo livre, a repressão sobre a satisfação

pulsional consequentemente se reduziria e a regulação que impede a formação da

“mais-repressão” não eliminaria o trabalho e nem atentaria contra a civilização. No

entanto, uma vez aliviada dos requisitos de dominação, a redução quantitativa de

tempo e energia para o trabalho levaria a existência a uma mudança qualitativa e o

tempo livre passaria a ser o diferencial. Superado o antagonismo entre a esfera

57

corporal e a dimensão espiritual do homem, fratura esta forjada na longa repressão

histórica, surge como tendência a ideia estética de uma razão sensual: “diferente da

sublimação, na medida em que a esfera espiritual se torna o objeto direto de Eros e

continua a ser um objeto libidinal. (MARCUSE, 2009, p. 185.)

Trata-se de uma torção nos domínios do princípio de realidade que afetaria os

frágeis liames entre o desejável e o razoável e, para Marcuse, em última instância,

entre os mecanismos pulsionais e a razão.

58

Figura 3 - Tela 3 - Fuga

Fonte: Luiz Palma, 2003. Óleo s/ tela. Medida: 0,80 x 1,00. Foto: Marcos Muzi.

59

3 RESSONÂNCIAS DA CULTURA: ARTE E ESTÉTICA

Seria o interesse crescente dos psicanalistas pelas diversas manifestações artísticas a busca de um novo lugar para a psicanálise na arte? Para a teoria da arte, que assiste hoje a uma tendência paralela de aproximação da psicanálise, gerando uma incorporação de noções lacanianas e freudianas, a ênfase da psicanálise na questão do desejo talvez seja, da mesma forma, um convite a deriva, ao movimento, posto que o desejo não se localiza ou nomeia, mas se esquiva sempre e ressurge em outra parte. Tania Rivera (2006,p.68)

A cultura fora objeto de crítica mordaz do jovem Marcuse, que a denunciava

como ideologia e mistificação, produtora de falsa consciência ao transferir para o

plano espiritual um conceito irrealizável para as condições sociais existentes. Para o

filósofo, essa cultura idealista cobria como um véu a revelação totalizante dessa

condição, servindo muito mais a sua perpetuação. Era preciso, portanto, superar o

plano imaginário da cultura e realizar suas promessas, ou seja, transformar a arte

em vida. Mas ele retoma a distinção entre cultura e civilização anos depois, não

mais para denunciar seu caráter idealista, mas a perda de sua autonomia, forjada

pelas implicações da sociedade unidimensional.

O conceito de sociedade administrada e unidimensional começou a ser

fundamentado quando Marcuse e pesquisadores da Escola de Frankfurt

reconhecem a integração da classe operária no sistema produtivo e a introjeção dos

valores do capitalismo como fatores decisivos para essa homogeneização. E, ainda,

como dado mais determinante, o fato de que parte desse segmento, ou seja, o

estamento gerencial e de chefias da produção industrial amplia seu ganho salarial,

ao mesmo tempo em que se entranha na organização sindical. O fato é que se

realiza a partir daí uma integração objetiva e não apenas ideológica, embora a

classe trabalhadora tenha permanecido na centralidade do processo produtivo como

agente histórico de transformação. No entanto “se continua sendo uma classe

revolucionária „em si‟, não o é mais „para si‟, isto é subjetivamente” (ROUANET,

1998, p.202). Esse deslocamento fechou o espaço para a contestação radical e

influenciou todas as demais formas de integração que caracterizam a sociedade

unidimensional. Da mesma forma a cultura, premida pelos desígnios da expansão

da sociedade industrial, sofreu um processo de relativização de sua autonomia.

Embaralharam-se os valores espirituais da esfera cultural com o mundo da

necessidade e da reprodução material em um jogo de mistificação em que “arte e a

60

filosofia foram, não negadas, mas absorvidas pelo universo instrumental. Seus

valores, outrora críticos, constituem hoje elementos de coesão social. (ROUANET,

1998, p.204).

A sociedade assim regida e administrada tenderia, como demonstrado pela

Teoria Crítica18, a uma forma de organização unidimensional comprometedora de

todo o universo político-social e, consequentemente, produtora de uma pletora de

indivíduos de espírito reificado, e paradoxal quanto às possibilidades de

emancipação. A civilização tecnológica secundariza os objetivos transcendentes da

cultura ao privilegiar os seus fins estabelecidos, eliminando ou reduzindo sua força

original de antagonismo.

A assimilação sem embate de trabalho e descanso, de renúncia e deleite, de

arte e automação mudou a função tradicional desses elementos culturais, assim

tornando-os afirmativos, ou seja:

[...] servem para consolidar a violência do existente sobre o espírito, aquele

mundo existente que tornou acessíveis os bens culturais aos homens e levaram a reforçar o grau daquilo que é em face do que pode ser e do que

deve ser do que deveria ser, se os valores culturais contiverem verdade. (MARCUSE, 2001, p. 84).

Para enfrentar novamente a questão da cultura, Marcuse precisou revisitar e

criticar suas posições anteriores e retomar como dado constitutivo a alienação, que

comporta cultura e arte, mas atribuindo-lhe uma positividade, uma alienação que

testemunha contra a alienação objetiva da realidade.

Em seu último ensaio19 Marcuse afirma seu objetivo de contribuir para a

estética marxista mediante a impugnação de sua ortodoxia, para a qual a concepção

básica de transformação e autenticidade da arte residiria na ênfase ideológica. O

eixo principal de seu argumento é axiomático: “o potencial político da arte baseia-se

apenas na sua própria dimensão estética. A sua relação com a práxis é

inexoravelmente indireta, mediatizada e frustrante” Marcuse (2007, p.11).

18 Na acepção mais geral dois princípios orientaram a Teoria Crítica a despeito das diferenças

teóricas dos membros da Escola de Frankfurt: o estudo, à luz de uma emancipação, das tendências estruturais do capitalismo e dos arranjos históricos em que esta lógica se expressa. E a teoria como expressão de um comportamento crítico quanto ao conhecimento produzido e as condições sociais capitalistas, tendo como fonte a reflexão orientada para a emancipação relativamente à dominação: “a teoria crítica não pode se confirmar senão na prática transformadora das relações sociais vigentes” (NOBRE, 2011, p.11). 19

A Dimensão Estética (The Aesthetic Dimension) de 1977.

61

Quando uma obra de arte apresenta claramente uma visão crítica ou um

posicionamento concreto, isso pode facilitar seu acolhimento ou mesmo fortalecê-la

esteticamente tornando-a mais real, mas de modo algum será o seu fator

constitutivo por excelência. Ao desenvolver essa argumentação, o autor rejeita a

conexão arte e classe social como possibilidade para determinar seu potencial

transformador, e critica o que considera ainda mais grave, coincidir conteúdo

revolucionário e qualidade estética. E ao fazê-lo, reforça a autonomia da arte

perante as relações sociais, mas não a deixa estéril ou indiferente aos processos de

superação das formas de exploração.

Para Marcuse, a arte pode vir a situar-se no cerne dessa oposição quando,

em virtude da configuração estética, apresentar a opressão existente e a libertação

como transcendência e abertura a um horizonte que permitiria romper com a

realidade mistificada. Sua potência residiria no poder de cindir o monopólio da

realidade estabelecida para definir o que é real. Nesta ruptura, a qual denomina

formação estética, o mundo imaginário da arte apareceria como a verdadeira

realidade:

A consciência e a figuração de verdades que aparecem como abstratas em relação ao processo de produção estabelecido também são funções ideológicas. A arte é uma destas verdades. Como ideologia, opõe-se à sociedade existente. A autonomia da arte contém o imperativo categórico: “as coisas têm de mudar” (MARCUSE, 2007, p. 22).

O contraditório com os estetas marxistas sustenta-se com a premissa da

existência de uma universalidade da arte que não se poderia radicar na imagem de

uma determinada classe social, uma vez que a arte articula a humanidade concreta,

regida por um pathos que não se poderia dissolver: “tecido inexorável de alegria e

de tristeza, celebração e desespero, Eros e Thanatos [...]. (MARCUSE, p. 24).

A emancipação da humanidade, ou seja, a condição para uma vida com

autonomia, pressupõe uma transformação radical das pulsões e necessidades, um

desenvolvimento orgânico dentro do sócio-histórico. Marcuse pondera

freudianamente que a solidariedade teria um fundamento muito escasso sem os fios

da estrutura pulsional do sujeito. Nesse campo, homens e mulheres são

confrontados com forças psicogênicas, e não escapam de sua naturalidade; é o

âmbito das pulsões primárias, da energia libidinal e destrutiva.

62

A percepção do potencial transformador dessa dimensão foi negligenciada

durante muito tempo pelo marxismo e, segundo o autor, aqui residiria uma primeira e

decisiva etapa para a mudança no sistema de necessidades, compreendida como

[...] o sinal de uma sociedade socialista como diferença qualitativa. A sociedade de classes conhece apenas a aparência, a imagem da diferença, do poder ser outro; esta imagem divorciada da práxis tem sido preservada no domínio da arte. (MARCUSE, 2007, p. 25).

A arte está atravessada pela dissociação do trabalho mental e material como

resultado das relações dominantes do processo de produção. Não obstante, tal

cisão mantém-se potencialmente como expressão de denúncia do poder e lócus de

visibilidade às formas dissimuladas da subordinação.

É preciso ter-se em conta que, no mundo autônomo da arte, a sociedade se

manifesta primeiro, como representação estética de caráter histórico, apreendida

como matéria passada ou presente: “é a historicidade do material conceptual,

linguístico e sensível que a tradição transmite aos artistas e com o qual ou contra o

qual têm de trabalhar” (MARCUSE, 2007,p. 25). Só depois disso se manifesta como

campo aberto de possibilidades de luta e libertação.

Se a arte pode apresentar-se como força progressista, essa contribuição para

a luta libertária não está necessariamente vinculada às origens do artista e ao seu

horizonte ideológico, nem pela presença de sinais da opressão em suas obras.

Quando uma situação social degradante estiver presente na obra, o caráter

progressista, se houver, será dado pelo conjunto, ou seja, naquilo que expressa e

como é apresentado. Isso só é possível quando a forma estética revelar dimensões

de realidade interditas e reprimidas como aspectos da emancipação. Sob esta

perspectiva é possível trazer como exemplo extremo a poesia de Mallarmé, à

medida que:

[...] os seus poemas evocam modos de percepção, audição, gestos – uma festa de sensualidade que destrói a experiência de todos os dias e antecipa um princípio de realidade, uma sensibilidade, radicalmente diferentes. (MARCUSE, 2007,p. 26).

Nas obras literárias, o afastamento da práxis é particularmente perceptível e,

de certa forma, parece impor uma barreira contrária:

63

Walter Benjamin rastreou isso nas obras de Poe, Baudelaire, Proust e Valéry. Elas exprimem uma consciência de crise (Krisenbewusstsein): um prazer na decadência, na destruição, na beleza do mal; uma exaltação do antissocial, do anômico – a rebelião secreta da burguesia contra sua própria classe. (MARCUSE, 2007, p.26)

O vigor contestatório dessa literatura que, de certa forma opera em um

registro hermético quanto às contradições sociais emuladas no texto, é introduzido

por meio das forças erótico-destrutivas primárias que desregulam o universo da

comunicação e do comportamento. No entanto, em termos de práxis política, essa

literatura pode ser taxada de elitista e decadente e nada significar para a superação

da opressão social:

[...] exceto ao desvendar as zonas interditas da natureza e da sociedade em que mesmo a morte e o diabo se incluem como aliados na recusa de se submeterem à lei e à ordem de repressão. [...] A arte não pode abolir a divisão social do trabalho que veda aos explorados o acesso a esta dimensão, mas também não se pode popularizar, sem tornar inofensivo ou ocultar todo o âmbito da emancipação. (MARCUSE, 2007,p. 27).

As qualidades críticas e autônomas da arte afirmam-se, assim como na forma

estética, fora do domínio da práxis e da produção material. Na forma estética a arte

tem a sua linguagem própria que ilumina a realidade, seja afirmativamente ou em

negação, compondo uma dimensão que não se pode ordenar relativamente ao

processo produtivo ou mesmo à episteme20.

Quando um roteirista adapta um clássico de uma obra de Shakespeare e

transfere as ações dos conflitos da nobreza e da corte para as situações da vida

cotidiana de gente comum, pretendendo manter o propósito do texto original de

mediar a verdade que abala e compreende a realidade, o fundamental é que essa

tradução mantenha o alcance estético da obra. Os personagens podem falar a

linguagem do contexto popular, mas o que será determinante, além da construção e

qualidade dos diálogos, é que cada frase tenha seu ritmo e consequência,

manifestando enfim o elemento universal naquele particular social. Imprescindível

20 A arte tem tanto que ver com o prazer assim como com o conhecimento: não é o passatempo de

um público passivo, que se contrapõe à ciência, lugar do conhecimento fundado em demonstrações e experimentos. Como expresso por Nelson Goodman, o filósofo que com maior ênfase recusou esta distorção: “Alcançar a compreensão de uma pintura ou de uma sinfonia em um estilo nada familiar, reconhecer o trabalho de um artista ou de uma escola, e ver ou escutar de maneiras novas, constitui um desenvolvimento cognitivo semelhante a aprendera a ler, escrever ou a somar” (IBARLUCÍA, 2012, p. 66) (tradução nossa).

64

será o componente subjetivo em todo o plano objetivo. A força que revoluciona tem

os seus limites e resíduos nessa permanência fixada no radical da arte:

[...] não como uma posse, não como um pedaço de natureza inalterável, não como uma recordação de algo que do contrário seria reprimido: recordação de uma vida entre ilusão e a realidade, entre a falsidade e a verdade, entre a felicidade e a morte. (MARCUSE, 2007, p. 30).

O que sucede é que o denominador social específico da obra de arte,

compreendido como o mundo da vida dos protagonistas, é precisamente o universo

que transcende – “tal como os burgueses de Stendhal transcendem o mundo

burguês, os pobres de Brecht o mundo do proletário” (Marcuse, p. 30). Ocorre uma

superação a partir da colisão com o seu mundo da vida pela via dos acontecimentos

nos contextos sociais particulares, ao mesmo tempo em que ela revela outras forças

não pertinentes a essas condições.

A arte, na forma estética, segue afirmativa por meio de suas verdades trans-

históricas e universais, a evocar a consciência humana, dos seres humanos

enquanto seres genéricos21, convocando todas as suas faculdades de valorização

da vida. Essa autonomia da arte afirma-se de uma forma extrema e intransigente

neste aspecto. A própria obra de arte pode surgir como elitista ou alienada, ou ainda

como sintoma de decadência, mas isso por si só não anula sua verdade e não

contraria a sua promessa. As estruturas econômicas, no entanto, “afirmam-se a si

próprias. Determinam o valor de uso (e com ele o valor de troca) das obras, mas não

que elas são e o que dizem” (MARCUSE, 2007, p. 35).

Marcuse se acerca criticamente da estética marxista para questionar as

possibilidades de uma arte revolucionária de filiação ideológica de classe, mas o faz

reafirmando o poder subversivo da arte de atingir uma consciência coletiva, e, mais

especificamente, de indivíduos ligados por uma consciência da necessidade

universal de superação, independentemente de posições de classe. No discorrer de

suas teses, o autor faz inumeráveis referências a autores e obras artísticas e

21 Em muitos ensaios, Marcuse usa este conceito referindo-se a determinação do homem como ser

genérico tomando como referência o conce

mas também na medida em que se relaciona consigo mesmo como gênero vivo, presente, na medida em que se relaciona consigo mesmo como um ser universal, e, portanto livre” (MARX, 1844 apud MARCUSE, 1972, p.22).

65

filosóficas, e nesse ponto ilustra sua argumentação sobre a universalidade da arte

com a epígrafe de Nietzsche no Zaratustra: “Für Alle und Keinen (Para todos e

ninguém), que também se pode aplicar à verdade da arte.” (MARCUSE, 1972, p.

35).

Mas se tiver ainda alguma significância falar de uma base de massa para a

arte no capitalismo avançado, é possível, com alguma ironia, referir-se à arte pop e

aos best-sellers. Isto porque, nesse estágio da sociedade capitalista, a regência

tácita do sistema é monopólio de uma classe mercantil-financeira que encaminha

nesse universo administrado a primazia dos seus interesses. Na totalidade das

necessidades arquitetadas encontram-se contempladas as aspirações manipuladas

da classe trabalhadora, e, mais adequadamente podemos dizer, da classe popular,

ou seja, do povo. A arte pop é tributária da estética publicitária, esse mimo-de-vênus

sofisticado e aprimorado constantemente pelos estrategistas de produtos culturais e,

ainda assim, isso não a esvazia de sua verdade de tornar consciente a necessidade

de mudança. O problema é que, em algumas modalidades, seus artistas, embora

mantenham o espírito criativo e qualidades originais, quase sempre são elevados ao

poder de guia estético e moral das massas e, a partir dessa metamorfose, o autor

posto em cena pode esterilizar a força de sua arte. Sujeito às mesmas vicissitudes, o

best-seller, produto midiatizado da indústria editorial literária, frequentemente

impregnado por um discurso tematizado e merdoso, ainda assim comporta o

paradoxo de uma perturbadora ironia.

De outra ordem, as posições de uma determinada burocracia de esquerda

que insiste em condenar a abertura radical para a transformação da subjetividade,

da imaginação e da razão, radicalizada pelos movimentos sociais dos anos 60, são

criticadas por Marcuse. Essa ampla manifestação contestatória de caráter existencial

e político, operada como revolução cultural, segundo o autor teria permitido o

ingresso de valores da superestrutura na base22. Esta posição esquerdista teria

como fundamento a insistência regressiva à figura paternal coletiva do proletariado

que, compreensivelmente, nem sequer mostra interesse por essa questão: uma arte

proletária orientada para o povo. A palavra povo como designação de trabalhador,

22 Marx e Engels utilizaram a metáfora do edifício para apresentar a ideia de que a estrutura

econômica da sociedade, a base ou infraestrutura, condiciona a existência e as formas do Estado e da consciência social, a superestrutura (MARX, 1859).

66

uma expressão, ou melhor, uma denominação há muito apropriada por todas as

correntes políticas populistas:

[...] falar do povo em vez de proletariado [...] exprime o fato de, sob o capitalismo monopolista, a população explorada ser muito maior do que o proletariado e de compreender uma grande quantidade de estratos [...]. Se o povo é incorporado no sistema prevalecente de necessidade, então só a ruptura com este sistema pode transformar o povo num aliado contra o barbarismo. (MARCUSE, 2007, p. 39).

Para Marcuse, é fundamental insistir que superar a ordem estabelecida

demanda uma ampliação da consciência política, uma vez que a transformação do

sistema de necessidades dependerá das operações e das propriedades da

sensibilidade, imaginação e razão emancipadas, qualidades estas do reino da

estética.

Esta emancipação e as vias que a ela conduzem, subtraem-se à propaganda. Não são traduzíveis de forma adequada para a linguagem da estratégia política e econômica. A arte é uma força produtiva qualitativamente diferente do trabalho; as suas qualidades essencialmente subjetivas afirmam-se contra a dura objetividade da luta de classes. (MARCUSE, 2007, P. 39).

Mesmo quando o artista desdenha da forma estética e prioriza a comunicação

de sua obra com o proletariado, ainda assim permanecerá à margem da classe,

independentemente de sua extração social ou cultural. A questão fundamental deste

problema diz respeito ao conflito intermitente entre arte e práxis política. O período

revolucionário do surrealismo não tardou a provocar os cânones do realismo político

que, por sua vez, em determinado momento, de arte foi elevado à condição de

propaganda.

Um brado da teoria marcuseana é então lançado como desafio que remete

diretamente a uma das nossas perspectivações enunciada como hipótese derivada:

A possibilidade de uma aliança entre “o povo” e a arte pressupõe que os homens e as mulheres administrados pelo capitalismo cosmopolita desaprendam a linguagem, os conceitos e as imagens desta administração, que experimentem a dimensão da mudança qualitativa, que reivindiquem a sua objetividade, a sua interioridade. (MARCUSE, 2007, p.40).

A rejeição do indivíduo como conceito burguês sofre de um reducionismo

ideologizado e vulgar que, de forma errática, atinge o potencial antagônico da

67

subjetividade na sociedade capitalista, segundo Marcuse. Uma advertência expressa

por Marx adverte sobre a impropriedade de jogar com a sociedade como grandeza

independente contra indivíduos isolados: “É preciso evitar, acima de tudo, fixar a

sociedade novamente como abstração em contraposição ao indivíduo. O indivíduo é

o ser social”. (MARX, 1844 apud MARCUSE, 1972, p. 41).

Esse conceito de indivíduo burguês, desfigurado como sujeito econômico

competitivo e autoritário, tornou-se o contraponto do indivíduo que se desenvolve

livremente em solidariedade com outros, e que só poderia tornar-se realidade em

uma sociedade socialista: “Mas, o período fascista e o capitalismo monopolista

mudaram decididamente o valor político destes conceitos.” (MARCUSE, 2007, p.

40).

A subversão da experiência propiciada pela arte como força e curso para a

emergência de outro universo requer a dilatação e a recuperação do espaço da

interioridade e a da subjetividade como valores transformadores da consciência

política e social.

Temos, portanto, que enfrentar algumas questões, tomando-se em conta a

arte e suas qualidades transformadoras diante do princípio da realidade

estabelecida. Um ponto fundamental seria o enfrentamento preliminar da dificuldade

em traduzir esse potencial que reside na transcendência radical da arte para a práxis

política, supondo uma representação na obra de arte como um fator de

transformação da consciência.

Essa questão leva a mais reflexões do que propriamente a respostas e

avança com outras e novas perguntas. Ocorre que, ao preservar sua autonomia, o

diferencial qualitativo da arte não constitui a si mesmo e não pode avançar sobre

áreas da cultura desintegradas da totalidade existente. O exemplo de ativismo nessa

direção seria a tentativa de a arte de ocupar-se com os temas da obscenidade e da

pornografia como campos não-conformistas. Seja ingenuidade ou voluntarismo, aqui

não há ativismo político, uma vez que são temas mercantilmente integrados que

mediatizam o existente. Não há vazio temático para a ocupação de resistência pela

arte. Basta ver que a publicidade já explora esse território e, voltamos a insistir, sua

potência é de outra natureza.

A autonomia na arte é abstrata, ilusória e vai muito além da questão de tema,

assunto ou estilo. É ato de livre criação e descompromisso, que não se manifesta

68

por causa da técnica e do conteúdo, sendo, em princípio, forma sem matéria. No

entanto, o imaginário estético se move em efervescência e rompe os próprios limites.

Para o criticismo kantiano, o material empírico apreendido pela sensibilidade

com suas visões deambulantes e imagéticas estaria de acordo com o seu sistema

conceitual, coercitivamente contingenciado. No entanto, na compreensão

marcuseana, a atemporalidade desses limites é superada pela historicidade:

O mundo sensível é um mudo histórico, e a razão consiste na capacidade de manipular e interpretar esse mundo por meio dos conceitos. O poder do imaginário é assim circunscrito por esses dois limites, que são repressivos na medida em que todos os sistemas de organização social até agora vigentes estiveram subordinados às exigências da dominação. (ROUANET, 1998, p. 248).

Se o imaginário foi assim limitado, isso se deveu aos imperativos da razão

instrumental e por uma experiência sensível mutilada pelas realizações da mesma

razão, constituindo um imaginário estético reprimido, autorizado nos limites da

repressão.

Ao se insistir nessa autonomia abstrata esvazia-se a realidade própria à arte

que, ainda assim, mesmo na forma de negação, continuará não tributária ao

existente. O imaginário só pode apontar para uma ordem compatível com a

liberdade humana quando a sensibilidade não se esgotar na sua função

epistemológica e ajustar-se como sensualidade, e assim, em dupla dimensão,

sensibilidade e sensualidade, convergir para uma razão não instrumental, fonte de

produção de uma nova consciência.

E existe a materialidade da arte, os seus elementos de ligação com o mundo

real, pela palavra, cor, som que, por muito que subvertam os significados normais, a

transfiguração ainda será um dado material. Essa demarcação para a autonomia

estética é a condição sob a qual a arte pode tornar-se um fator social, ainda que

inevitavelmente enredada no concreto. E é a partir dessa pertinência que a arte

pode insurgir-se contra a realidade existente, contradição que só pode ser resolvida

na forma estética, ao atribuir para o conteúdo e a experiência comum o poder de

afastamento que, em última instância, afirma a qualidade e a verdade da obra de

arte.

O potencial libertador da forma estética é afirmado como variação

sublimatória que mantém a inconformidade com a realidade ao não operar com

69

vicissitude, fazendo-se acompanhar por uma dessublimação, que ocorre na

percepção dos indivíduos – nos seus pensamentos, juízos e sentimentos –,

invalidando as normas, as necessidades e os valores dominantes.

A intensificação da percepção, a subversão da consciência pela mimese que

intensifica a experiência até a ruptura, o ponto de distorção das coisas de modo que

o indizível possa ser dito, o invisível se torne visível e o insuportável exploda. Aí

estão as funções da estética que aludem às normas do princípio da realidade

estabelecida, operando a dessublimação na base da sublimação original e,

consequentemente, fulgurando a dissolução de tabus e as referências totêmicas do

mal-estar. Toda realidade histórica pode tornar-se denúncia e ao mesmo tempo

celebração daquilo que resiste à injustiça e ao terror, e do que ainda se pode salvar:

A denúncia não se esgota a si mesma no reconhecimento do mal; a arte é também promessa de libertação. Esta promessa é também uma qualidade da forma estética [...]. A promessa arrancada da realidade estabelecida. Conjura a dominação do poder, a aparência (Schein) da libertação. (MARCUSE, 2007, P.47).

O desentranhamento dos mundos da arte e da realidade permanece em

questão, dado que um mundo não pode cumprir suas promessas e outro, a

realidade, não opera com promessas, mas com possibilidades. A ilusão, a

aparência, o conceito por excelência da arte tradicional apressadamente

compreendida como estética burguesa, compreende a manifestação da realidade

como verdade sensível. Embora despojada de pretensão de realidade concreta, a

arte tradicional mantém, no seu limite, duas realidades, ou seja, duas verdades.

Nessa operação, a cognição e a aparência são antagonicamente divididas, visto

que, como ilusão, comporta um conteúdo e uma função cognitiva, verdade que

rompe com a realidade e persiste como mimese, ou melhor, como representação. E,

como representação transformadora da realidade, isto é, a sua qualidade utópica

afirmativa: “a infelicidade e a servidão ainda se refletem na mais pura imagem da

felicidade e da liberdade” (MARCUSE, 2007, p. 48). Tratar-se-ia de uma sujeição

que afirma o protesto frente à realidade que a desarticula23.

23 Marcuse (1972, p.47) faz observações que bem ilustram esta assertiva, referindo-se ao final feliz

como contrário a arte e exemplifica a sutileza: “Onde, no entanto, aparece, como em Shakespeare, como na Efigênia de Goethe, como no final do Fígaro, como em Falstaff, como em Proust, parece ser negado pela obra em seu conjunto” (grifo nosso).

70

Temos aqui uma operação reguladora da estética, algo como uma linha que

se mantém direcionada para a superação ou apontada na direção de um mundo

melhor, um olhar que persiste como autenticidade mesmo na catástrofe, embora

livre da ideia de progresso inexorável e contrária às idealizações da humanidade

perfeita. Não fora assim, a obra de arte e sua pretensão de verdade seriam falsas.

Mas essa posição da arte permanece problemática uma vez que se põe

acima da mera fantasia ao conter elementos da realidade como as ações,

pensamentos, sentimentos, sonhos sem, contudo, alcançar o mundo concreto. É um

mundo irreal, ou seja, uma realidade fictícia acabada. E não é irreal porque é

inferior, mas porque é qualitativamente diferente da realidade por conter mais

verdade.

Sob essa perspectiva, a realidade concreta, esta sim, conteria o plano das

mistificações que faz da necessidade humana uma escolha e da alienação uma

auto-realização. E o que permanece afirmativo nesse mundo ilusório é o fato de as

coisas parecerem o que são e o que podem ser, uma verdade cuja representação

sensível cabe unicamente à arte.

Assim formulado, o mundo aparece invertido por uma verdade derivada de

uma percepção audaz, o que, em análise minuciosa, revela um contraditório, uma

vez que o discurso lógico passa a ter um formato de descrição do olhar em que a

realidade comum é que surge como ilusória. Desse modo, tendo a arte se afirmado

como aparência da verdade e a realidade quotidiana como realidade fragmentada e

ilusória, Marcuse repõe a pertinência da tese idealista como provocação:

[...] toda a esfera da realidade interior e da realidade exterior empíricas se deve chamar, num sentido mais forte do que o reservado à arte, o mundo da mera ilusão e amarga decepção, e não mundo da realidade. A verdadeira realidade só se encontra para lá da imediatidade da sensação e dos objetos externos. (Hegel, 1927 apud MARCUSE, 2007, p. 53-54).

De fato, uma provocação para próprio autor que não se deixa embalar pela

sutileza do enunciado e repõe a questão da seguinte perspectiva: a lógica da

dialética hegeliana pode oferecer um significado e apresentar uma justificação no

reino do conceito, e prosseguir como verdade materialista24 assente na análise

24 Muitos estudos sobre a obra de Hegel e a crítica de Marx dirigida ao sistema idealista hegeliano

demonstram a presença do conceito dialético como fundamento metodológico e teórico na obra, O

71

marxista da aparência da sociedade mercantil. No entanto, essa confrontação da

arte com a realidade deixa de pressupor que a decepção, a ilusão e a aparência

sejam qualidades da realidade e não da arte: “os Auschwitz e My Lai de todos os

tempos, a tortura, a fome e a morte poderá supor-se que todo este mundo não

passe de mera ilusão e amarga decepção?” (MARCUSE, 2007, p. 54).

A mistificação não pode ser vista como uma característica exclusiva da

sociedade capitalista e não se poderia tampouco imaginar a arte que caberia ocultá-

la: o revés sim, tornar a mistificação evidente. As possibilidades de emancipação e

libertação permanecem fiéis à história real. Quando a tragédia surge na obra

satírica, que a segue sempre e em toda a parte:

[...] talvez abale a fé no progresso, mas também pode manter viva outra imagem e outro objetivo da práxis, nomeadamente a reconstrução da sociedade e da natureza sob o princípio do aumento do potencial humano de felicidade e da diminuição do sofrimento. Aqui se situa talvez o mais profundo parentesco entre arte e revolução. (MARCUSE, 2007, p. 55).

Mas a arte não se situa sob a lei da estratégia revolucionária, o que não

impede que algo de sua verdade inerente ali venha a se manifestar, argumentação

que faz ecoar o coerente pensador da Teoria Crítica.

Esse mundo da arte, em que o autor reconhece a inevitabilidade da hybris, ou

seja, do desafio, do excesso e do ultraje, a provocar os deuses e à ordem

estabelecida, como expressa este termo grego, não cabe à realidade. É o lugar do

mundo fictício, reafirma Marcuse (2007, p. 55) mais uma vez, “embora como tal

visione e antecipe a realidade”. A esperança apresentada na arte não deve e nem

pode permanecer como um ideal ou imperativo categórico, uma vez que a realização

lhe é exterior.

A ideia do Belo, é preciso reafirmar, foi rejeitada firmemente pela estética

marxista como categoria central da estética burguesa. Ademais, a beleza tem sido

sistematicamente violentada pela força mercantil que a refaz à sua semelhança

como forma sintética e sexualidade plástica que, desfigurada de sua base estético-

Capital (1867). Porém, ao contrário de Hegel, Marx irá desenvolver a dialética segundo a concepção materialista e não idealista. Conforme o próprio Marx na obra A Ideologia Alemã, enquanto a dialética de Hegel desce do céu à terra, sua dialética vai da terra ao céu. Consultar sobre desenvolvimento deste raciocínio: CÉSAR,C.T.M. Os filósofos através dos textos. De Platão a Sartre. São Paulo: Paulus, 1997. p. 253-254.

72

erótica, adentra como objeto as relações de troca. Mas o potencial radical do Belo

persiste nos domínios de Eros como princípio do prazer, cuja linguagem libertadora

sobrevive em contraste com a variação conformista. Ao contrapor-se ao princípio de

realidade, essa expressão invoca imagens libertadoras da sujeição da morte e da

destruição, clama pela vida e, certamente, aqui se encontrará o elemento

emancipatório da afirmação estética. Entretanto, há uma face de aparente

neutralidade que o impregna, que pode se manifestar como qualidade de uma

tonalidade social regressiva ou progressiva. O cinema pode acentuar os traços

ornamentais de beleza que envolve uma festa fascista, mas essa neutralidade

revela-se como decepção ao dar reconhecimento ao que está suprimido. Esse

reconhecimento pode ser bloqueado na apresentação visual e vir a reprimir a

imaginação, mas não o será na literatura, porque a palavra não silenciada pela

imagem em mediação com o conhecimento conduz à denúncia. Em obras clássicas

de Brecht, Sartre, Günter Grass e Paul Celan25, a mimese transformadora acaba por

revelar a infame realidade cotidiana do fascismo sob sua manifestação histórica

mundial. Aqui está um momento de triunfo da forma estética, o terror, que, chamado

pelo seu nome, é evocado a testemunhar para se denunciar. Trata-se apenas de um

momento, mas a forma capturou-o e lhe deu permanência:

[...] estas obras contém a qualidade de Beleza na sua forma talvez mais sublime: como Eros político. Na criação de uma forma estética, em que o grito sobre o horror do fascismo não se asfixia – apesar de todas as forças de repressão e obliteração, as pulsões vitais rebelam-se contra a fase global sadomasoquista da civilização contemporânea. (MARCUSE, 2007, p. 60).

Com esta análise do Belo e a interpretação das obras citadas por Marcuse,

encontramo-nos diante da clareza que a presença, ou melhor, o retorno do

recalcado na obra de arte pode produzir como intensificação na corrente da

consciência.

Tomemos esta asserção de Marcuse (2007, p. 61) como um exercício de

lógica sobre a grande arte: “a obra de arte é bela na medida em que opõe a sua

própria ordem à da realidade – a sua ordem não-repressiva, onde a própria maldição

é proferida em nome de Eros”.

25 As obras citadas, pela ordem dos autores no texto são: A Resistível Ascensão de Arturo Ui e

Terror e Miséria no Terceiro Reich; Os Sequestrados de Altona; Anos de Cão; e Fuga da Morte.

73

Pois bem, parece-nos haver duas questões a compreender, uma diz respeito

às imagens de libertação, quando a obra de arte perpetua a memória do prazer no

belo momento que se reagrupa e se dissolve constantemente, e, ao passar, invoca a

chegada de outro momento que suspende a desordem e a necessidade de tudo

fazer para continuar a vida. Entretanto, nesse reagrupar e dissolver dos belos

momentos, ao findar de cada volteio o Belo torna-se parte da catarse reconciliadora.

Mas advém como paradoxo a questão seguinte, a de que a substância sensível do

Belo é preservada na sublimação estética, na relação da arte com o tempo. O que é

experimentado através da sensibilidade é presente que só se revela como passado,

ou seja, aquilo que se torna forma na obra já aconteceu - é a mimese que traduz a

realidade para a memória e, nesse ato, reconhece o que é e o que poderia ter sido,

dentro e fora das condições sociais. Esse conhecimento a arte subtrai da esfera do

conceito abstrato e implanta-o no domínio da sensualidade.

Essa contradição, no entanto, não expressa debilidade, ou ainda, seu poder

cognitivo é extraído desse mesmo domínio que mantém a força sensual do Belo

como promessa viva, memória da felicidade passada que busca retornar:

Enquanto a arte preservar, com a promessa de felicidade, a memória dos objetivos inatingidos, pode entrar, como uma ideia reguladora na luta desesperada pela transformação do mundo. Contra todo o fetichismo das forças produtivas, contra a escravidão contínua dos indivíduos pelas condições objetivas (que continuam a ser as do domínio), a arte apresenta o objetivo derradeiro de todas as revoluções: a liberdade e a felicidade do indivíduo”. (MARCUSE, 2007, p. 64).

A arte alcança a autonomia na sociedade opressiva pela via do contrapelo, do

desacordo radical, expresso na função estética diante da gravidade e do mal, e,

ainda que seu universo esteja permeado pela morte recusa-se a tentação de dar a

ela um significado “Mesmo em Tristão26, a morte não deixa de ser um acidente, um

duplo acidente da poção do amor e do ferimento. O hino à morte é um hino ao

amor.” (MARCUSE, 2007, p. 63).

26 História lendária sobre o trágico amor entre o cavaleiro Tristão, originário da Cornualha, e a

princesa irlandesa Isolda (ou Iseu). De origem medieval, a lenda foi contada e recontada em diferentes versões ao longo dos séculos. Dante retratou Tristão no segundo círculo do Inferno, lugar dos luxuriosos, em sua Divina Comédia. Para maiores detalhes, consultar: WIKIPEDIA. Tristão e Isolda. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Trist%C3%A3o_e_Isolda>. Acesso em: 12 ago. 2013.

74

No entanto, uma mera negação do princípio da realidade seria obscura. Na

grande arte, a verdade vem pela sua preservação transcendente em que passado e

presente projetam sua sombra como autentica utopia ao combater a reificação e

fazer “falar, cantar e talvez dançar o mundo petrificado”. (2007, p. 66).

Na realidade repressiva, ao retornarem os sofrimentos do passado e também

sua felicidade, a arte põe a vida em estado de superação, restabelece o desejo do

prazer contra o princípio da realidade. Ocorre que essa vontade pode ser impotente

diante da opressão, uma vez que a felicidade está conectada com a dor. Será que é

inelutável, reflete Marcuse, e pondera: “O horizonte da história ainda está aberto.” (p.

67).

A abordagem que Rancière (2009) propõe sobre as noções do inconsciente

estético não se orienta pela aplicação da teoria freudiana do inconsciente ao

domínio da estética, nem sequer pela psicanálise da arte ou pelas numerosas e

expressivas contribuições que historiadores e filósofos da arte alcançaram a partir

das teses freudianas e lacanianas27.

O autor não se interessa por saber como os conceitos freudianos se aplicam

à análise e à interpretação dos textos literários ou das obras plásticas. A questão a

que se propõe é saber por que a interpretação desses textos e obras é tomada

como evidência e pertinência das noções e conceitos de interpretação analítica. Ao

encarar as coisas por outro ângulo, não tem como intenção retornar a questão como

pergunta sobre os exemplos, como a história da vida de Leonardo da Vinci, o Moisés

de Michelangelo ou a Gradiva de Jensen e tantos textos e personagens literárias

que sustentam demonstrações na Interpretação dos Sonhos, mas saber para que

servem de prova tais obras e o que lhes permite servir de prova.

Em termos gerais, diz Rancière, essas figuras servem para provar a

existência de sentido no que parece não ter, algo de enigmático no que parece

evidente. Ou seja, uma carga de pensamento no que parece ser um detalhe

anódino:

Tais figuras não são o material com que a interpretação analítica prova sua capacidade de interpretar as formações da cultura. Elas são os testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-

27 Esse texto resulta de duas conferências realizadas na Escola de Psicanálise de Bruxelas, em

janeiro de 2000, a convite de Didier Cromphout.

75

pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível, do involuntário no pensamento consciente e do sentido naquilo que parece insignificante. (RANCIÈRE, 2009 p. 10-11).

Assim enunciada a questão, é possível dizer que a teoria psicanalítica do

inconsciente tem sua formulação assentada em algo preexistente fora do campo

clínico. Trata-se de determinada identificação de uma forma do pensamento

inconsciente no terreno da produção artística compreendida como locus desse

inconsciente.

A partir dessa apreensão, seu interesse é raciocinar sobre a ancoragem da

teoria freudiana nessa configuração do inconsciente localizado no mundo da arte,

que se formou e desenvolveu de modo predominante na dimensão estética, ou seja,

“pensar os estudos estéticos de Freud como marcas de uma inscrição do

pensamento analítico da interpretação no horizonte do pensamento estético.” (p.11).

Para Rancière, a estética não designa a ciência ou a disciplina que se ocupa

da arte. Designa um modo de pensamento que se desenvolve sobre as coisas da

arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas do pensamento.

Na sua argumentação, o autor demonstra que a palavra estética remete à

obra de mesmo nome de Baumgarten (1750) e a Kant em Crítica da faculdade de

julgar (1790). Na primeira, não designa nenhuma teoria da arte, mas o domínio do

conhecimento sensível, o conhecimento claro, mas ainda confuso que se opõe às

noções explícitas da lógica. A posição de Kant nesse tratado lhe parece igualmente

problemática, pois recusa o que em Baumgarten aparecia como a ideia do sensível

como inteligível confuso, e recua da possibilidade de uma estética pensável como

teoria para ficar com o conceito de adjetivo estético que designaria um tipo de

julgamento e não um domínio de objetos.

A estética só passará a designar o pensamento da arte no contexto do

romantismo e do idealismo pós-Kant com Schelling, os irmãos Schlegel, e Hegel,

sem, no entanto abdicar da sua problematização e mesmo da impropriedade do

termo. A partir daí se opera uma identificação entre o pensamento da arte –

efetuado pelas obras de arte – e certa noção de pensamento confuso:

Uma ideia nova e paradoxal, já que, ao fazer da arte o território de um pensamento fora de si mesmo, idêntico ao não-pensamento, ela reúne os contraditórios: o sensível como ideia confusa de Baumgarten e o sensível heterogêneo à ideia de Kant. Isto é, ela faz do “conhecimento confuso” não

76

mais um conhecimento menor, mas propriamente um pensamento daquilo que não pensa. (RANCIÈRE, 2009, p. 13)

A partir dessa rearticulação, reflete Rancière, a estética deixa de ser um nome

para designar o domínio da arte e se tornar uma configuração específica desse

domínio, uma vez que marca uma transformação no regime de pensamento da arte

que outrora respondia ao conceito geral de poética e doravante engendra uma ideia

específica do pensamento.

Sua hipótese quanto ao pensamento freudiano do inconsciente é de que ele

torna-se possível com base nesse regime do pensamento da arte e da ideia do

pensamento que lhe determina, factível pela operação da passagem do domínio das

artes do âmbito da poética para o da estética.

Alguns objetos e modos de interpretação posicionados pela teoria freudiana

vinculam-se a essa transformação estética do pensamento da arte. Édipo,

personagem poético central na elaboração da psicanálise, é tomado pelo filósofo

francês como ponto de partida para sua interpretação. Referido por Freud como um

material lendário na Interpretação dos sonhos e possuidor de uma dramaticidade e

conformidade universais, esse mito é assim fundamentado sob duas óticas.

De um ponto de vista, como explicitação dos desejos infantis universais e

universalmente reprimidos e, mais, como maneira de revelação de um segredo

oculto. De outro olhar, como revelação que se faz através de uma regência de arte,

progressiva e dramática, em que o desenrolar da trama do texto de Édipo Rei é

comparável a um processo psicanalítico de análise. Dessa forma nos diz Rancière:

“[...] na mesma afirmação de universalidade são englobadas três coisas: uma

tendência geral do psiquismo humano, um material ficcional determinado e um

esquema dramático considerado exemplar” (RANCIÈRE, 2009, p. 15).

Apoiando o roteiro edipiano, o autor retoma as bases do que chamou de

revolução estética e diz que esta se deu fundamentalmente pela abolição de um

conjunto ordenado de relações entre o dizível, o saber e a ação, a atividade e a

passividade. No caso da psicanálise, para que Édipo fosse o herói da revolução

77

psicanalítica foi preciso ficar com um Édipo atado ao pensamento trágico de

Sófocles e não àqueles de Corneille28 e de Voltaire29.

Assim afirmado pelo drama original, dois traços o caracterizam e o reatam

com a ideia testemunhada pela tragédia grega, a saber, Édipo é testemunha de uma

imprecisa selvageria existencial do pensamento, onde o saber deixa de ser ato

subjetivo de apreensão ou idealidade objetiva para definir-se como um determinado

afeto ou paixão, carregado de enfermidade. Um saber como transtorno, assim

desvelado por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia sobre a história edipiana:

Essa encenação filosófica da equivalência trágica entre saber e sofrimento [...] pressupõe que seja reunida a grande trilogia dos doentes do saber aproximem a grande trilogia dos doentes do saber: Édipo e Hamlet – que dialogam na Interpretação dos Sonhos, como já o faziam nos Cursos de

estética de Hegel e Fausto, que também está presente aí. A psicanálise é inventada nesse ponto em que filosofia e medicina se colocam reciprocamente em causa para fazer do pensamento uma questão de doença e da doença uma questão de pensamento. (1992, p.26).

Essas aproximações são solidárias no regime de pensamento das produções

da arte. Édipo é um herói exemplar porque sua figura ficcional responde aos

requisitos que a revolução estética atribui a essas produções; o personagem é

aquele que sabe e não sabe, que age e que padece absolutamente. Essa identidade

em contraditórios aproxima-se da definição de arte que surge na revolução estética.

Para o autor, a genialidade kantiana resume essa dualidade, pois Édipo é uma força

viva da natureza e a contrapõe indiscriminadamente a qualquer regra ou modelo, ou

mais precisamente, transmuta-se em norma. Ao mesmo tempo, é aquele que não

sabe o que faz e é incapaz de responder pelos seus atos.

28 Corneille o adapta em 1659, remodelando o esquema de culpabilização de Édipo e as cenas que

poderiam abalar a delicadeza de suas plateias. Para o dramaturgo, o horror dos olhos furados de Édipo e a ausência de interesse amoroso na trama original, assim como o abuso dos oráculos, deixavam transparecer demais a chave do enigma. Cria assim novas personagens, modifica a própria trama e mantém o suspense até o desenlace. Rancière (2009) trata destas adaptações realizadas na obra de Sófocles, por razões e autores distintos, no capítulo denominado O defeito de um Tema, p. 17 a p. 23. 29

Sessenta anos mais tarde, o jovem Voltaire contrapõe-se mais abertamente do que Corneille ao drama de Sófocles, denunciando as inverossimilhanças da intriga, chamando a atenção para um defeito do “tema” e, assim, o corrige, criando outra personagem para o assassínio de Laios. Para ambos, havia no roteiro uma relação defeituosa entre o que é visto e o que é dito, entre o que é dito e o que é ouvido.

78

O regime estético faz preponderar essa ordenação de um agir e um padecer

que radicaliza em modelo de contraditórios a claridade confusa de Baumgarten e

assim formaliza o modo de ser da arte.

A figura de Édipo como universalidade tem antecedente e pode ser vinculada

às palavras de Vico no século XVIII, quando na sua obra Ciência Nova questiona

Aristóteles e a tradição representativa, a partir do que denomina o verdadeiro

Homero. Rancière então a contextualiza para sua argumentação ao afirmar que Vico

não tinha a teoria da arte como questão, mas enfrentava o problema teológico-

poético estabelecido a respeito da sabedoria dos egípcios e os hieróglifos. Como

linguagem críptica, achava-se que havia ali a simbolização de um pensamento

religioso vedado ao profano e Vico estendia sua indagação às antigas fábulas

poéticas como expressões alegóricas de um pensamento filosófico.

Seu intento é desfazer a ideia de uma sabedoria oculta nas escritas

imagéticas e nas fábulas poéticas e, para tanto, propõe uma hermenêutica que

relacione a imagem às condições de produção e não mais aos sentidos subjacentes.

Sua demonstração é instigante, pois revela que Homero não é o poeta inventor de

fábulas e imagens, uma vez que recebia e transmitia história oral. Seus tipos,

Aquiles, o valente, Ulisses, o astuto e Nestor, o sábio, não são caracteres

individualizados, mas abstrações em imagens, condição para um pensamento,

naquela altura, figurar virtudes como coragem, inteligência, sabedoria ou justiça.

Portanto, Homero não é o inventor de metáforas ou imagens brilhantes

porque nem pensamento e imagem, e nem concreto e abstrato, se diferenciavam.

Suas imagens são o modo de falar dos povos de seu tempo, testemunha de uma

forma de linguagem em que a palavra era idêntica ao canto. Pois assim o verdadeiro

Homero é testemunho de uma infância da linguagem, do pensamento e da

humanidade: “Homero é poeta graças à identidade do que ele quer e do que não

quer, daquilo que sabe e daquilo que ignora, do que faz e do que não faz

(RANCIÈRE, 2009, p. 30).

Temos assim que, como tema universal, a figura trágica de Édipo comporta

como antecedente essa figura hermenêutica do verdadeiro Homero, que prevê um

regime de pensamento da arte em que o relevante dela é ser um procedimento

consciente de uma produção inconsciente, de uma ação voluntária e de um

79

processo involuntário: “a identidade de um logos e de um pathos. Essa identidade

doravante dá testemunho do fato da arte” (p. 30).

Para Rancière, a configuração da arte pode ser pensada ainda sob dois

ângulos opostos: como instância do logos no pathos, quer dizer, do pensamento no

não-pensamento, ou inversamente, como imanência do pathos no logos. Sob a

primeira perspectiva apresenta-se nos textos seminais do modo estético de

pensamento e, em detalhes, nos Cursos de Estética de Hegel. Em seguida, o autor

traz como outro elemento comprobatório à sua tese, o de que a arte é a odisseia de

um espírito fora de si mesmo. Na sistematização hegeliana, esse espírito é

manifesto para si mesmo por intermédio da matéria que lhe é oposta:

[...] na compacidade da pedra erguida ou esculpida, na espessura da cor ou na materialidade temporal ou sonora da linguagem. Ele busca a si mesmo na dupla exterioridade sensível da matéria e da imagem. Se procura e se perde ( 2009, p. 31).

Sob um ângulo inverso a essa odisseia, como imanência do pathos no logos,

o autor traz como exemplo o movimento que em Schopenhauer recua da bela

aparência estética e da ordem causal da representação para o território subterrâneo

do incognoscível e sem sentido, o mundo do querer-viver nu, insensato, de uma

vontade paradoxal, uma vez que “sua essência é precisamente não querer nada,

recusar o modelo da escolha de fins e da adaptação dos meios aos fins que confere

a essa noção seu significado usual” (RANCIÈRE, 2009, p. 32).

Rancière recupera para seu argumento a identificação da arte como

polaridade da bela aparência, o apolíneo e a pulsão dionisíaca e suas cargas de

alegria e sofrimento, que emergem nas próprias formas que intentam negá-la tal

como a polarização nietzschiana.

No âmago desse contramovimento suscitado por Schopenhauer e pelo jovem

Nietzsche, que prevalecia também na literatura de Zola, Maupassant, Ibsen ou

Strindberg, algo como puro sem-sentido da vida e ao encontro das forças obscuras,

encontrar-se-iam as condições para o surgimento de uma determinada ideia de

pensamento e escrita. Não apenas por influências de uma época, mas pela abertura

de uma ideia de pensamento e escrita cujo espaço fermentava a revolução sem

ruídos da estética, sinalizando que:

80

[...] existe pensamento que não pensa, pensamento operando não apenas no elemento estranho do não-pensamento, mas na própria forma do não-pensamento. Inversamente, existe não-pensamento que habita o pensamento e lhe dá uma potência específica. Esse não-pensamento não é só uma forma de ausência do pensamento, é uma presença eficaz de seu oposto. (p.33-34).

Aqui se encontra uma ideia de escrita que não corresponde exatamente à

expressão da palavra, ou seja, da palavra e de sua potência intrínseca. Para Platão,

como o interpreta o autor, a escrita é o logos mudo, palavra que só pode dizer do

seu modo sem cessar. Não responde pelo que profere e não busca ou escolhe

aqueles aos quais convém. A essa palavra, muda e eloquente, contrapõe-se uma

palavra em ato, levada por um significado a ser transmitido e um efeito a ser

alcançado. Palavra viva na ordem da representação clássica, pois é vinculada à

palavra que se faz ato e também concebida como a palavra daquele que perturba e

persuade, cria e arrebata as mentes e os corpos. E, como concepção, é ainda a

palavra do herói trágico a persistir nas suas paixões.

A revolução estética impõe à representação, que até então regulava a palavra

viva, o modo contraditório de uma palavra que simultaneamente fala e se cala, sabe

e não sabe o que diz, ou seja, à escrita, e o faz segundo duas imagens opostas,

pensamento e não-pensamento. Polaridades que constituem o espaço de um

mesmo domínio “o da palavra literária como palavra do sintoma” (RANCIÈRE, 2009,

p. 35).

Em uma primeira apreensão, a escrita muda é a palavra que as coisas

comportam como potência de significação fixada em si mesmas. É o fenômeno que

enseja o “tudo fala” de Novalis, como explica Rancière, prática do poeta

mineralogista para o qual em tudo há sinais subjacentes. Assim sendo, toda a forma

sensível, desde a pedra ou concha, seria falante. Ou ainda, como se estabelece na

escrita literária que se faz decifração, e reescrita em A pele do asno, em que Balzac

apud Rancière (2009, p.35) descreve emblematicamente a loja de antiguidades

como uma mitologia da acumulação das ruínas do consumo.

Nesse período Rancière observa o surgimento do artista que se embrenha

nos labirintos e subsolos do mundo social e repõe nos detalhes menores da prosa

do mundo a potência poética. Nas figuras dessa mitologia faz-se pressentir o destino

de um indivíduo ou de um povo. E tem-se, ademais, que na noção do tudo fala,

81

[...] as hierarquias da ordem representativa foram abolidas. A grande regra freudiana de que não existem detalhes desprezíveis, de que, ao contrário, essas nos colocam no caminho da verdade se inscreve na continuidade direta da revolução estética. (p. 36).

O poeta arqueólogo, em certo sentido faz o que fará Freud de A interpretação

dos sonhos, com uma condição paradoxal dessa hermenêutica, pois antes de

qualquer interpretação, para que o comum ou banal aporte alguma revelação, deve

antes ser mitologizado. Se uma casa ou qualquer objeto revela nos seus traços e

marcas algo do verdadeiro, assim como o sonho ou o ato falho e a própria

mercadoria marxiana, isso só será possível porque previamente foram figurados

como elementos de uma mitologia ou de uma fantasmagoria.

A escrita muda das coisas revela na sua fala propriedades de uma civilização

ou de um tempo que recobre o cenário anterior e glorioso da palavra viva, agora não

apenas cena oratória ou o discurso linear e suas movimentações. O naturalista

Balzac é também o sintomatologista que detecta o mal-estar na vida privada e na

fulgurante sociedade. Em sua obra ela recebe o nome de vontade, expressão de

uma doença do pensamento que quer se transformar em realidade e arruína

criaturas e padrões sociais. Para Rancière, a

[...] sintomatologia literária mudará então de estatuto nessa literatura das patologias do pensamento, centrada na histeria, no “nervosismo” ou no peso do passado, nessas novas dramaturgias do segredo velado, em que se revela através de histórias individuais, o segredo mais profundo da hereditariedade e da raça e, em última instância, do fato bruto e insensato da vida. (p. 39).

Trata-se da literatura que aciona outra forma de palavra muda, que já não

está inscrita diretamente nos corpos, mas submetida a uma decifração. Aqui está o

solilóquio, aquela que não fala ao outro e a ninguém, dá-se às condições impessoais

e inconscientes da palavra que comporta.

Rancière prossegue nos seus argumentos referindo-se agora ao poeta e

escritor Maeterlinck30, coetâneo de Freud que, segundo ele, tratou em profundidade

30 Maurice Maeterlinck (1862-1949) ─ Rancière (2009, nota do autor 13), em nota, cita obras desse

autor onde estão suas fontes “Introduction à une psychologie des songs et autres écrits” [1890] e “Le trésor des humbles” [1913]. E comenta: “Naturalmente, não ignoro que Maeterlinck, por sua vez, tem como referência Emerson e a tradição mística, e não o niilismo schopenhaueriano. Mas o que me interessa aqui – e que, de resto, provoca a confusão das duas tradições – é esse mesmo estatuto da palavra surda, expressão de um “querer” inconsciente do ser”.

82

essa segunda forma da palavra muda, do discurso inconsciente, ao analisar nos

dramas de Ibsen o diálogo de segundo grau. Uma forma que não se detém mais

nos pensamentos ou sentimentos dos personagens, mas no pensamento que ronda

o diálogo e confronta as potências anônimas e insensatas da vida, chamado assim

de o terceiro personagem, ou o confronto com o desconhecido

[...] linguagem da tragédia imóvel transcreve os gestos inconscientes do ser que passa suas mãos luminosas através das ameias da muralha artificial onde estamos presos, os golpes da mão que não nos pertence e que bate às portas do instinto. Não se podem abrir essas portas diz em substância Maeterlinck, mas podem-se ouvir os golpes atrás da porta. (RANCIÈRE, 2009, p. 39-40).

Essa tessitura homóloga ao regime estético da arte consubstancia o

inconsciente estético como manifestação inerente à polaridade dessa dupla cena da

palavra muda, quando escrita nos corpos e possível de restituição à sua significação

de linguagem pela decifração e reescrita. E como palavra surda, de potência sem

nome que prossegue subjacente à consciência e ao significado:

[...] à qual é preciso dar uma voz um corpo, mesmo que essa voz anônima e esse corpo fantasmagórico arrastem o sujeito humano para o caminho da grande renúncia, para o nada da vontade cuja sombra schopenhaueriana pesa com toda força sobre essa literatura do inconsciente. (p.41).

A partir desse percurso de tradições e rupturas na história do pensamento e

da literatura, Rancière propõe-se a assinalar as relações de cumplicidade e de

conflito que se estabelecem entre o inconsciente estético e o inconsciente freudiano.

Ocorre-lhe iniciar pelas sinalizações presentes em A interpretação dos

sonhos31, texto freudiano considerado pelo filósofo francês como inaugural da

psicanálise. O fato é que, nessa obra, a psicanálise conduz um contra-argumento à

ideia prevalente de ciência que molda naquela altura a medicina positivista. Nesse

tipo de abordagem da medicina havia pouco ou nenhum interesse pelas

manifestações mais sutis da mente que não pudessem facilmente ser atribuídas a

causas concretas. É clara a intencionalidade de aproximação de Freud às crenças

populares e à pesquisa sobre o vasto acervo mitológico do significado dos sonhos e

das revelações ocultas. Mas outra ponte é construída por Freud e se apresentará na

31 Publicado em 1899, com a data 1900.

83

sua amplitude no ensaio sobre Gradiva32, um acesso substantivo de aliança com

“Goethe ou Schiller, Sófocles ou Shakespeare, ou outros escritores menos

prestigiados e mais próximos como J. Popper-Lynkeus ou Alphonse Daudet”.

(RANCIÈRE, 2009, p. 44).

Essa aproximação com os grandes nomes da cultura não servirá apenas

como fortalecimento para enfrentar os proeminentes senhores da ciência, mas

também perdurará emblematicamente como guia dos caminhos empreendidos pela

psicanálise.

Um dado mais esclarecedor, conforme Rancière, é que entre a ciência

positivista e o acervo lendário popular, não há vazio, precisamente porque esse é o

domínio do inconsciente estético, a fonte de reordenação das coisas da arte como

modo peculiar de conjunção entre o pensamento pensante e o não pensamento.

Se outra estruturação de medicina ou ciência da psyche torna-se possível

diante desse domínio do pensamento, a própria consistência dessa cena

semiológica e sintomatológica interpõe diferenças importantes entre Freud e os

escritores ou artistas. A literatura à que recorreu trazia uma ideia própria de pathos

de pensamento, uma ideia mesmo de inconsciente e assim, como

[...] domínio do pensamento que não pensa não é um reino no qual Freud seria apenas o explorador em busca de companheiros e aliados. É um território já ocupado, onde um inconsciente entra em concorrência ou conflito com um outro” (RANCIÉRE, 2011, p. 45).

E depois, caberia pensar o lugar de Freud na história da arte, mas não como

analista da arte ou o cientista da psyche que interpreta sua formação e

perturbações. A arte vista sob outra perspectiva, nada que remeta às escolas e

períodos de sua história. Aqui se encontra o regime de pensamento da arte, um

modo de conexão entre práticas e um modo de visibilidade, uma ideia do próprio

pensamento. Então, o que Freud procura e encontra na análise das obras e no

pensamento dos artistas remete à ideia da presença do inconsciente. Sobre essa

aproximação parece haver ainda uma dupla questão em movimento, formulada da

seguinte maneira por Rancière. A primeira a enuncia o próprio Freud quando

32 Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907) foi a primeira análise de literatura feita e publicada

por Freud, com exceção de seus comentários sobre Édipo e Hamlet em A Interpretação dos Sonhos. A obra original "Gradiva, uma fantasia pompeiana" é do escritor alemão Wilhelm Jensen (1837, 1911) (nota nossa).

84

conclama uma aliança entre o psicanalista e o artista poeta ao reconhecê-los como

preciosos aliados em Delírios e sonhos de Gradiva, pois estes teriam um saber

intuitivo superior ao do cientista. E ressaltemos desde já um ponto importante. Diz

Rancière33:

[...] a abordagem freudiana da arte em nada é motivada pela vontade de desmistificar sublimações da poesia e da arte, direcionando-as à economia

sexual das pulsões. Não responde ao desejo de exibir o segredinho bobo

ou sujo por trás do grande mito da criação. Antes, Freud solicita à arte e a poesia que testemunhem positivamente em favor da racionalidade profunda da fantasia, que apoiem uma ciência que pretende, de certa forma, repor a poesia e a mitologia no âmago da racionalidade científica. (RANCIÈRE, 2009, p. 47-48).

Mas, logo, uma precisão se torna importante para Freud, pois é preciso

reconhecê-los como aliados não-incondicionais, porque não lhes importa a

racionalidade dos sonhos e das fantasias e o valor significativo dessas fantasias que

suas obras engendram.

A citação seguinte advém das figuras exemplares selecionadas por Freud,

entre as quais, no espectro da literatura mais contemporânea estão Ibsen e Jensen,

e do período renascentista o gênio de Michelângelo e Leonardo da Vinci. Dos heróis

românticos da tragédia, Édipo, como a testemunha da antiguidade convulsionada

oposta à antiguidade cortês da tragédia francesa

[...] e de um pathos do pensamento oposto à lógica representativa de ordenamento da ação, bem como à sua distribuição harmônica do visível e do dizível; e Hamlet, o herói moderno de um pensamento que não age ou que age por sua inércia. (p. 48-40).

Para além da mimesis aristotélica que mantinha o saber sob domínio da

história e o visível sob o domínio da palavra, numa contenção mútua do visível e do

dizível, sobrepõe-se Édipo e a ruptura que impõe como herói que não sabe o que

sabe e que, no seu agir, padece em emblemático mutismo. Se assim Édipo está no

centro da elaboração freudiana, sua posição é o emblema do regime da arte que

opera e repõe coisas do pensamento, como “testemunhos de um pensamento

imanente a seu outro e habitado por seu outro, escrito em toda parte na linguagem

33 Nota de J. Rancière (2009a, n. 16): “Quanto a este ponto, permito-me remeter ao meu livro Le

partage du sensible: esthétique et politique. Paris: La Fabrique, 2000" [ed. Bras.: A partilha do sensível: estética e política, São Paulo, EXO/Editora 34, 2005].

85

dos signos sensíveis e dissimulado em seu âmago obscuro” (RANCIÈRE, 2009, p.

50).

Mas ainda precisamos ir ao fundo do ensaio de Rancière quando este passa

a indagar as intervenções e interpretações de Freud. Estas insinuam que o objetivo

do analista é afastar, em primeiro lugar, o jogo da ambiguidade entre o real e o

fantástico ou do sentido e sem sentido. Sua interpretação quer afirmar uma vocação

hermenêutica e elucidativa da arte, deixando de lado a recusa ou a negação da

configuração estética. Dois exemplos são apontados como argumentos pelo filósofo

francês. No início de O Moisés de Michelangelo diz Freud que se interessa pelo jogo

de fundo e não pela forma da obra de arte, ou seja, o que importa é decifrar o que aí

se exprime e revela. Outro exemplo encontra-se na abertura de Gradiva, quando

reconhece os escritores e os poetas como aliados valiosos, mas ao mesmo tempo

faz uma objeção à ambiguidade com que conduzem o significado das fantasias da

mente, sem, no entanto, rejeitar a maneira como criam suas obras. Para Rancière,

há uma clara decisão pelo conteúdo rumo à descoberta de uma lembrança

recalcada ou uma angústia infantil, uma designação de causa última que “se dá

geralmente pela mediação do fantasma organizador, da formação de compromisso

que permite à libido do artista, mais ou menos representado por seu herói, escapar

ao recalque e se sublimar na obra, ao preço de nela inscrever seu enigma.” (p. 52).

No primeiro texto estabelece uma adequação entre a atenção visual do

detalhe da obra ao relatar que, por varias vezes, foi rever uma escultura,

introduzindo assim a prerrogativa psicanalítica dos detalhes insignificantes. Esse

método dos detalhes pode ser aplicado em correspondência às duas grandes

formas do inconsciente estético. Pode ser o modelo do rastro no qual se obtém a

inscrição sedimentada de uma história, típico do paradigma indiciário (GINZBURG,

1989 apud RANCIÈRE, 2009, p. 58 ).

Outro modelo percebe no detalhe insignificante não mais o rastro, mas a

marca direta de uma verdade desarticulada que, através da superfície, afeta a lógica

da composição racional dos elementos. Nesse sentido, o detalhe passa a ter uma

concepção de objeto parcial que desarma a ordem da representação para dar lugar

ao que será chamado verdade inconsciente: “que não é de uma história individual,

mas que é oposição de uma ordem a outra: o figural sob o figurativo, ou o visual sob

o visível representado.” (RANCIÉRE, 2011, p. 59). Mas quanto a Freud, o autor não

86

imagina que suas aproximações com a arte tenham enveredado para a leitura da

obra e seu inconsciente da forma como muitos reivindicam pela psicanálise. O que o

interessa no detalhe seria outra verdade da figura pintada ou esculpida: o fantasma

na matriz da criação artística e não a ordem figural inconsciente da arte. Quando

Freud faz a longa análise do detalhe da posição das mãos e da barba de Moisés não

está em busca de decifrar nenhum inconsciente; é a estátua de Michelangelo que o

interessa e a questão do momento bíblico representado, se a fúria de Moisés está

de fato expressa e se a queda das tábuas da lei de suas mãos estaria prestes a

acontecer.

Mais profundamente, para Ginzburg apud Rancière (2009, p.58), a atenção de

Freud ao detalhe leva-o para a lógica da ordem representativa, na qual a forma é

imitação de uma ação narrativa e o tema se confunde com a representação. Não se

trata de interpretar o momento de pregnância atribuído à mão direita e às Tábuas da

Lei, quando um indignado Moisés as atiraria contra os idólatras, mas a ideia de uma

cólera dominada por Moisés. Isso é o que o atrai e esta sua análise é autoral, ou

seja, está fora do texto bíblico:

Freud o acrescenta em nome de uma interpretação racionalista na qual o homem, senhor de si, se impõe ao servo do Deus ciumento. A atenção ao detalhe serve finalmente para identificar a posição de Moisés como testemunho de um triunfo da vontade. (RANCIÈRE, 2009, p. 61).

A possibilidade de essa análise ter sido afetada pela sombra das dissidências

dos discípulos do patriarca da psicanálise, certa tradição a considerou, mas para o

filósofo francês, o mais importante é que a cena põe em causa a era clássica da

representação, que se orienta pelo triunfo da vontade e da consciência heroica

presente nos temas históricos.

Rancière põe em relevo finalmente a interpretação como oposição aos

dissidentes de Moisés, os homens sem obra e mais além:

[...] no alter ego lendário de Michelangelo, Leonardo da Vinci, o homem dos cadernos e dos croquis, o inventor de mil projetos não realizados, o pintor que não chega a individualizar as figuras e pinta sempre o mesmo sorriso [...]. (RANCIÈRE, 2009, p. 62).

Confrontado com os novos desdobramentos do inconsciente, Freud põe em

causa prioritariamente a ideia de objetividade que se resume na ideia de sabedoria

87

da vida e recusa à união final do saber com o não-saber, do agir e do padecer, que

habita o inconsciente estético. Para Rancière, sua interpretação segue e faz valer a

racionalidade do sentimento de culpa. Há uma ambiguidade em choque entre os

dois inconscientes, entre duas ideias, daquilo que está sob a superfície polida das

sociedades e, mais especificamente, concepções diferentes de mal-estar e cura das

civilizações. As interpretações freudianas do Moisés de Michelangelo de 1914 e

outras desse período não estão distantes da obra que reordena o seu pensamento e

impacta as noções da psicanálise contidas em Além do princípio de prazer. A pulsão

de morte é tributária dos estudos sobre a neurose traumática, mas também ecoa o

choque da guerra de 1914 sobre a visão mais otimista que influenciou a primeira

fase da psicanálise34.

Para Rancière, a noção de pulsão de morte responde, ademais, às angústias

e aos temas da filosofia e das grandes ficções literárias do retorno ao inconsciente:

Que os instintos conservadores da vida definitivamente conservam na vida a direção rumo a sua morte e que os guardiões da vida são, assim, os lacaios da morte, é de fato o segredo último de todo grande romance das ilusões da vontade, em que se resume a literatura de todo um século, a literatura da idade estética. (RANCIÈRE, 2009, p. 73)

O autor traz para seus argumentos a ideia de que naquele período houve uma

grande e silenciosa confrontação das noções da psicanálise com a lógica do regime

estético e a entropia niilista que Freud detecta e recusa nas obras de arte, à qual,

todavia, destinará um lugar na concepção da pulsão de morte.

As análises estéticas de Freud foram calcadas na razão que concedia aos

dados biográficos tanto do artista como da ficção, mais como um volteio para impor

sua recusa a atribuir à potência da pintura, da escultura ou da literatura os efeitos do

desamparo do sujeito:

A relação entre os dois inconscientes apresenta, portanto, uma singular permutabilidade. A psicanálise freudiana pressupõe essa revolução estética que revoga a ordem causal da representação clássica e identifica a potencia

34 "[...] primado conferido à morte e não à vida na construção da sociedade e do sujeito foi o que

conduziu progressivamente Freud a reconhecer a autonomia da força pulsional face aos seus representantes no ensaio sobre as pulsões, na Metapsicologia, de 1915. Essa relativa autonomia conferida à força pulsional foi a antecipação do conceito de pulsão de morte enunciado em 1920" (BIRMAN, 2009, p.41).

88

da arte à identidade imediata dos contraditórios, do logos e do pathos (RANCIÈRE, p.76).

Esse pressuposto repousaria sobre a dupla potência da palavra muda e a

opção de Freud. Palavra que comporta simultaneamente a entropia niilista inerente

ao poder da palavra surda e sua outra forma de palavra muda, o hieróglifo, passível

de interpretação e esperança de acolhimento. Frente a esta configuração, Freud

tende inclina-se à representação ao assimilar a obra da fantasia, o trabalho da

decifração, os parâmetros revogados pela revolução estética.

Rancière, no entanto, reconhece na atualidade um freudismo mais radical e

reverente à potência da arte e que deixa o biografismo do mestre para por outro

regime:

[...] da arte que lhe concede seu Édipo, o regime que iguala o ativo e o passivo, afirmando ao mesmo tempo a autonomia antirrepresentativa da arte e sua natureza profundamente heteronômica, seu valor de testemunho da ação das forças que ultrapassam o sujeito e o arrancam de si mesmo. (RANCIÈRE, p. 76-77).

A ancoragem desse freudismo encontrar-se-á justamente em Além do

princípio do prazer e nos textos que o seguem de 1920 para a década de 30,

período no qual se pode observar, segundo Rancière, o deslocamento para “o Freud

admirador de um Moisés liberto da fúria sagrada”. (p77).

A questão que continuará exposta por esse caminho é o da injunção

contraditória do inconsciente estético concernente à polaridade da palavra muda,

irredutível à hermenêutica. Aqui estaria um movimento de retorno nietzschiano que,

em nome de Freud e contra o próprio, recusa a tradição estética e repõe o niilismo

afastado das análises freudianas no domínio do conhecimento sensível da estética

como pensamento da arte.

89

Figura 4 - Tela 4 -Revolução

Fonte: Luiz Palma, 1979. Óleo s/ tela. Medida: 0,30 x 0,40. Foto: Marcos Muzi.

90

4 RESSONÂNCIAS DA POLÍTICA

A utopia está tanto nos grandes movimentos sociais que a história já conheceu, mas também nos pequenos atos que podem revolucionar o dia de qualquer um de nós. Superar o velho hábito confortável que nos conduz à mesma trilha no meio do deserto, dizer o que ainda não se disse, imaginar o que ainda não existe é o que alimenta a esperança. Edson L. A. de Souza (1992, p.17)

A teoria e a prática estão, na origem e no percurso da psicanálise, em

atuação permanente com os elementos constitutivos dos processos individuais e dos

vínculos sociais, em uma germinação de experiências e teorização cujo

empreendimento transborda as fronteiras do conhecimento e da institucionalidade.

Na teoria psicanalítica emerge um sujeito de características singulares inscrito

no campo pulsional que o anima a encontrar satisfação para os seus desejos ao

voltar-se à existência do outro que poderá assegurar-lhe um lugar na ordem

simbólica social. Fruto de um jogo de identificações entre o reconhecimento ou a

recusa, o conflito pulsional se inscreve fundamentalmente como um conflito

identificatório do sujeito dividido entre o seu desejo e o desejo do outro.

Sumariamente, podemos dizer que esse processo conforma duas ordens de

realidade, a realidade psíquica e a realidade social.

A teoria freudiana atribuiu um grande relevo para a cultura na formação da

subjetividade, assim demonstrado por ensaios que trataram de questões históricas e

antropológicas da vida social que não seguiram uma linha de pesquisa única para a

elaboração das diferentes abordagens. Nesse conjunto de obras é possível

reconhecer as bases de uma teoria freudiana da cultura e da história: Totem e tabu,

escrito em 1912 e 1913, Psicologia de grupo e análise do eu, de 1920, O futuro de

uma ilusão, de 1927, O mal-estar..., de 1929 e Moisés e o Monoteísmo, de 1934.

As questões específicas tratadas em cada um dos ensaios de metapsicologia

de Freud não foram objeto desta tese. No entanto, fizemos as conexões, quando

necessárias, a partir de ideias e referências do texto O mal-estar.... No próximo

capítulo buscaremos ampliar as fronteiras interdisciplinares e as interpretações que

propõem caminhos de superação da realidade opressiva pela via da política e

acercarmo-nos das trilhas da emancipação humana latentes na arte e operantes na

função estética.

91

4.1 CULTURA E CIVILIZAÇÃO

Ao incluir no campo da cultura as relações sociais, políticas e econômicas,

Freud justapõe elementos de civilização e cultura, justificando seu entendimento

como distinção geral da superioridade do homem em relação às outras formas de

vida. Essa superação levada a efeito pela espécie humana implica, no entanto,

exigências e sacrifícios ao indivíduo que se traduzem em renúncia pulsional e

interdições ancestrais de natureza cultural e mítica que remetem ao assassinato, ao

canibalismo e ao incesto. Através das suas bases fundantes, a civilização renova e

inclui outras interdições e imposições que progressivamente são internalizadas pelo

sujeito e somadas a uma coação análoga ao superego que Freud chamará de

superego coletivo no Mal-estar..... Ao suportar os sacrifícios exigidos pela ordem

cultural, a expressão pulsional do sujeito, na busca incessante por satisfação, repõe

permanentemente a tensão. A civilização, entretanto, não se faz apenas pelas

renúncias e interdições necessárias a sua sobrevivência, mas funciona também por

satisfações de natureza narcísica despertadas em seus membros por ideais próprios

e coletivamente almejados: “A civilização tenta, por intermédio do reforço narcísico

(logo, por identificação com o grupo portador de ideais e capaz de criação artística),

reconciliar os homens com os sacrifício de suas pulsões.” (ENRIQUEZ, 1996, p. 84).

O texto freudiano não obsta a possibilidade do olhar político para as

formações do princípio de prazer e do princípio de realidade e as colisões operadas

por este conflito. Nesse âmbito, chamado pelo autor de civilização, encontram-se os

nexos para a passagem à política, uma vez que a defesa como função essencial que

ela nos oferece contra a natureza pode ser compreendida em quatro realidades, que

de acordo com Enriquez são:

as forças da natureza (os elementos impetuosos, as doenças), o destino (o que se expressa “no penoso enigma da morte), a relação espontânea (relação predatória e de estupro) que existe nos homens em estado de mera natureza, e a fraqueza humana (que liga-se a seu estado de angustia infantil). (p. 84)

O sujeito freudiano, com esse grau de vulnerabilidade e dependência diante

da natureza para afastar-se do desprazer e auferir algum prazer, encontraria na

civilização uma perspectiva de vida comum e proteção coletiva, ampliadas às

92

necessidades superiores e à conformação de organizações e instituições sociais. Se

o desamparo do sujeito funda a civilização, a edificação e o desdobramento da

cultura couberam a um sujeito social e político.

Entrementes, Freud, em O mal-estar.., não mantém essa possibilidade de

conciliação entre renúncia e promessas de bem-estar coletivo, uma vez que bordeja

a tragédia ao introduzir a hipótese especulativa da pulsão de morte no domínio da

cultura e da civilização. Muitas interpretações e leituras têm reiterado a

dramaticidade da obra como declaração pessimista sobre a história humana e, de

fato, a certa altura, Freud vislumbra a possibilidade destrutiva da espécie no bojo do

processo civilizatório. Entretanto, o mesmo texto convive com a constatação de que

a vida em comum dos homens adquiriu um duplo fundamento: por um lado, a

obrigação do trabalho diante das necessidades exteriores e, de outro, o poderio do

amor, de tal sorte que a cultura tem em Eros e Ananké seus patronos. Mas a

sobrevivência ainda não está segura se considerarmos a preservação e as

manifestações da pulsão de morte nos movimentos pulsionais.

Uma breve reconstituição dos fenômenos de sua manifestação a partir da

interpretação de Mezan (1985) poderá nos reconduzir às possibilidades da política

no processo civilizatório. Sua linha de raciocínio inicia-se por afastar a ideia de que a

expressão de pessimismo do autor pudesse ter sido preponderante para a

convocação de Thanatos. A dedução de sua permanência como pulsão diferencial

deu-se a partir de uma qualidade específica assente na tendência regressiva e nos

fenômenos de repetição que a conduzem a um além do princípio do prazer. É na

origem da vida e na esfera biológica, e não no nível propriamente psíquico, que

Freud vai localizar a fonte primária da tensão e a tendência ao alívio como aspiração

regressiva:

[...] uma pulsão seria uma tendência, própria do organismo vivo, de reconstituição de um estado anterior, o qual, sob pressão de forças externas perturbadoras, o ser animado teve que abandonar; uma espécie de elasticidade orgânica, ou se se quiser, a manifestação da inércia na vida orgânica”. (FREUD, 1920 apud MEZAN, 1985, p. 442).

Esse salto para o plano orgânico significou uma amplitude dessa questão

para todas as formas de vida, e o caráter inorgânico a moveu para um nível ainda

mais arcaico, pois se toda pulsão almeja a quietude, a perturbação do silêncio

93

inorgânico seria a própria vida. No entanto, o dualismo freudiano se mantém e Eros

surge para cumprir a função de conservação da vida. Mas sua força não supera a

tendência à repetição e o que faz categoricamente é assegurar um ciclo vital e, com

isso, ambas as pulsões compõem complexas atividades de assimilação e

desassimilação orgânica.

Esse princípio de atração e repulsão segue modificando-se a cada nível, das

partículas orgânicas à atividade psíquica até à emergência da consciência humana,

agregando pares sexuais, grupos sociais e multidões a evocar o venturoso processo

civilizatório: “apesar da linguagem finalista empregada por Freud, Eros e Thanatos

correspondem à ordem das causas eficientes” (p. 444).

A compreensão dos fenômenos psíquicos a partir dessa reordenação da

teoria das pulsões passa a ser objeto de amplos reexames do aparato conceptual da

psicanálise desde a evocação de observações e postulações anteriores de Freud

aos ensaios que vem a produzir depois. A partir de exemplificações, Mezan nos

conduz a situações típicas de conflitos entre as três instâncias do psiquismo, que

não seriam redutíveis à presença da pulsão de morte. O comentarista localiza fatos

e observações textuais sobre a dificuldade em reconhecer as manifestações de

Thanatos e traz a impressão do próprio Freud de que as pulsões de morte seriam

mudas e que suas investigações revelam, em todos os impulsos pulsionais,

ramificações de Eros.

Entretanto, houve situações, como no caso do sadismo, em que o

representante psíquico da pulsão de morte35 pôde ser localizado por uma complexa

operação de fusão e defusão imputada a esse fenômeno. Mas, segundo nosso

intérprete, a demonstração nesse caso deixa aberta a possibilidade de aliança dessa

pulsão com as pulsões eróticas – fato que abre, contudo, um leque mais amplo de

possibilidades, inclusive para a compreensão do sadismo como um componente

libidinal. De todo o modo, na gênese atribuída ao sadismo, qual seja, no

masoquismo originário, estaria o primeiro representante psíquico da pulsão de

morte. Mas, ainda assim, nem o sadismo e sequer o masoquismo erógeno, serão

suficientes para definir um representante psíquico da pulsão de morte.

35 A hipótese mais admissível é a de que esse sadismo seja realmente uma pulsão de morte, expulsa

do ego sob influencia da libido nascente; de modo que só aparece no objeto” (FREUD, 1920, apud MEZAN, 1985, p.446).

94

Pelo fato de a agressividade ocupar um lugar de relevo na conduta humana

como um registro do processo de natureza destrutiva, Freud então se volta a ela

como um esforço para encontrar os rastros do novo princípio. Ocorre que a

agressividade requer a existência de um objeto para que atue e este, por sua vez,

não será inanimado, mas outro indivíduo humano, e exatamente nesse ponto a

alteridade surge com uma importância crescente na elaboração teórica freudiana:

Munido dos conceitos de Eros como princípio de coesão, e da pulsão de morte como ferramenta de análise dos componentes destrutivos, ele descobrirá que o homem exerce esta agressividade não apena no âmbito erótico, mas também e, sobretudo, no domínio social, nas relações que estabelece com seus semelhantes e que se revelam no que denomina de civilização. (MEZAN, 1985, p. 449)

As manifestações mudas ou quase inaudíveis no nível biológico e no campo

psíquico da pulsão de morte teriam, por fim, conduzido Freud, que tampouco se

importava, a essa altura, com as especulações ascéticas da ciência positiva, a se

aproximar ainda mais das manifestações do campo da cultura.

Seguindo o percurso do comentarista, vemos que os limites da hipótese

especulativa se revelam como uma barreira no campo biológico. Se a meta de Eros

é constituir unidades mais amplas e unidas em oposição ao seu poderoso

adversário, na escala biológica o limite da vinculação recíproca está definido pelos

limites exíguos do corpo vivo.

No nível anímico, a dificuldade também se impõe ao modelo conceptual, pois

o princípio do prazer parece responder às pulsões de morte, uma vez que, ao

reduzir as tensões internas, pode reconduzir a direção da vida para o inorgânico,

ainda que isso pareça ser ação de Eros de proteção do psiquismo às pressões que

se originam no campo externo.

Nós já pudemos constatar que, para Freud no Mal-estar..., cultura e

civilização são termos indistintos, que abarcam em sua proposição a soma integral

de realizações e normas que distinguem a vida humana e atendem a duas

finalidades: a proteção contra a natureza e o ajustamento dos relacionamentos

mútuos. Entretanto, em muitas passagens do texto, outras complexidades e

especificidades são aproximadas dessa sua noção, como as referências ao

progresso material e intelectual e, em particular, aos sistemas religiosos, filosóficos e

das artes que dão testemunho da atividade do espírito.

95

Ao prosseguir nossa linha de argumentação em afirmação ao registro político

que julgamos presente nessa obra freudiana, ora expresso pelo ruído das pulsões,

outras vezes por tons sombrios da opressão do princípio de realidade, o fato é que

os processos, material e de subjetivação, não estão desvinculados da produção

histórica; em outras palavras, é o processo histórico real que constitui o sujeito no

estado presente das coisas.

A história social da humanidade como processo de engendramento de

relações sociais supõe transformações incluindo novas formas de domínio e

exploração que, por sua vez, fermentam o antagonismo da recusa e de novas

proposições e alternativas de superação. Historicidade essa que nos remete ao

problema da continuidade e descontinuidade, da transformação e da permanência

das relações sociais:

Quando o capital absorve a sociedade completamente em si mesmo, quando a história moderna do capital chega ao fim, é então que a subjetividade – como motor de transformação do mundo através do trabalho vivo e como índice metafísico da potencia do ser – nos diz em voz alta que a história não acabou. (NEGRI; HARDT, 2004, p. 30).

Gramsci (1987) refere-se à subjetividade a partir dos termos consciência e

homem. A consciência individual comporta níveis que se ampliam para

autoconsciência que a constitui como consciência coletiva. O sujeito, no interior da

própria lógica dominante, pode vir a alcançar uma visão crítica sobre os processos

históricos e as relações de poder, de modo a reunir condições para a superação.

Nesse sentido, a condição da autoconsciência concretizaria a vontade de um sujeito

coletivo, mobilizado na superação real da opressão: “[...] o homem é um processo,

precisamente o processo de seus atos” (p.38).

4.2 SUPERAÇÃO E UTOPIA

Vamos retomar brevemente o contraponto à pulsão de morte e suas

decorrências no domínio social, pela ressonância libidinal de Eros a emular os laços

sociais, e, por conseguinte, potencialmente políticos. Na concepção freudiana, sob a

égide da sexualidade e das tendências à autoconservação, as vicissitudes das

pulsões de vida respondem por quase a totalidade da vida psíquica, ou seja, operam

96

na preservação do indivíduo, assim como para as formações de conjunto e a

expansão para a diversidade. Ocorre, como consequência do dualismo da teoria,

que a economia pulsional não se caracteriza pela adaptação às mudanças

ininterruptas de permanente insatisfação e não são regidas por finalidades

superiores inatingíveis: “Conservação e destruição de si, coesão e desagregação do

múltiplo, formam assim dois pares de correlatos que desenham a dialética de Eros e

Thanatos”. (MEZAN, 1985, p.450).

Trata-se então de vislumbrar uma alternativa para a superação do estado

presente das coisas, e vamos buscá-la inicialmente em companhia do sujeito

freudiano, para o qual toda civilização é a luta contra o caos, contra a força dos

inimigos da cultura, “a animalidade, a natureza, que são figuras do destino, isto é, a

tempestade sem razão, som e fúria que nada significam”, como descrito

dramaticamente por Enriquez (1996, p. 90).

A noção de caos remete a um mundo sem referências em que tudo se torna

possível, o pior possível em um horizonte intransponível, a nos inspirar o medo

ancestral no mesmo solo onde se fundam nossas organizações e as instituições.

Nesse reino, qualquer proteção será bem vinda. Esse cenário aterrorizante é

o mesmo que faz nascerem os dogmas e as crenças que ensejam um grau elevado

de ilusão para que o homem se sinta protegido por uma imagem investida da

capacidade de onipotência ou para se defender de sua própria impotência. Diante de

tal vulnerabilidade, nosso comentador acentua que: “De todas as ilusões, a religiosa

é a mais inexplicável e a mais tenaz, visto ser a única que se funda sobre o amor por

um objeto ausente e invisível, mas cuja luminosidade, portanto, não pode se

embaçar.” (p. 89).

No entanto, Freud tem para sua teoria social que a religião é um estágio que

serviu para revestir a interdição cultural, para bloquear o todos contra todos e o

retorno ao estado de natureza, permitindo ainda mais do que isso, que certas

interdições abrangessem, pela via do caráter sagrado, outras leis e instituições.

Essa constatação não implica para a análise freudiana desconsiderar as

consequências nefastas dessa influência, uma vez que podem acarretar distorções

no campo social, que devem ser superadas.

A rigidez dos dogmas tende a sacralizar as interdições apoiando-se em

reminiscências históricas, tornando-as fontes de resistência às mudanças e às

97

transformações: “a doutrina religiosa nos conta a verdade histórica – submetida

embora, é verdade, a certa modificação e disfarce.” (FREUD, 1974 apud

ENRIQUEZ, 1996, p. 91).

Uma volta a mais neste raciocínio e não imaginamos superar a derivação

conflituosa do sujeito da psicanálise ou destituir-lhe a gênese definidora, uma vez

que “o sujeito do inconsciente é uma produção simbólica e desejante que se delineia

entre os polos da pulsão e da cultura” (BIRMAN, 2009, p. 10). Nesse virar e revirar

de camadas, o palimpsesto insiste em revelar a miríade de possibilidades que nos

repõe sempre diante do que já sabíamos: a poderosa força bifronte do sujeito

freudiano.

De outro ensaio de Marcuse, Contra-revolução e revolta, (1973), as

proposições para a emancipação humana e uma transformação radical da

sociedade têm como pré-condição a ascensão da sensibilidade compreendida como

“o meio em que a mudança social se converte em uma necessidade individual, a

mediação entre a prática política de transformar o mundo e o impulso de libertação

pessoal” (p.63).

Suas hipóteses retomam a natureza como uma força intrínseca de liberdade e

libertação, uma vez que homem e natureza devem superar a opressão da

racionalidade capitalista, noção que se refere “(1) à natureza humana – os impulsos

e sentidos fundamentais do homem como alicerces de sua racionalidade e

experiência; e (2) à natureza externa – o meio existencial do homem, a luta com a

natureza em que ele forma a sua sociedade.” (p. 63).

Aqui está em questão o fato de a natureza constituir-se como parte e objeto

da história e sua libertação não significaria um retorno a um estágio primordial,

porém um deslocamento para realizações civilizacionais sem o abuso destrutivo da

ciência e da tecnologia.

A apropriação e a degradação da natureza pela lógica industrial exploratória

reduziram o meio vital da humanidade, no sentido ecológico e, sobretudo,

existencial. O desamparo ancestral do sujeito freudiano diante da natureza nessa

ode não se encaixaria, a nosso ver, no entanto, à aproximação das dimensões de

humanidade, vista como motriz do sujeito desejante, o que pode levar à catexe

erótica, propiciando o reencontro do homem com si mesmo e o reconhecimento da

natureza como sujeito legítimo de convivência em um universo humano comum.

98

Essa libertação faria desabrocharem forças vivificantes na natureza

rebaixando as demandas artificiais engendradas por desempenhos competitivos

intermináveis do sistema dominante, e assim dar-se-ia uma recuperação das

qualidades estéticas de ordem sensual instituindo uma liberdade renovada.

O próprio autor frankfurteano reconhece o desdém com que o espírito

capitalista rejeita ou ridiculariza tal concepção, imputando à ideia o domínio da

utopia ou da imaginação poética. No entanto, assistimos durante anos crescerem as

lutas que focalizam o vínculo da ecologia com a superação de modelos destrutivos

da natureza, embora o elo de emancipação humana não se revele ainda promissor.

De todo o modo, sua visão foi antecipatória:

A luta contra isso é uma luta política; é óbvio em que medida a violação da natureza é inseparável da economia do capitalismo. Ao mesmo tempo, porém, a função política da ecologia é facilmente neutralizada e serve ao embelezamento do Establishment. Apesar disso, a poluição física praticada pelo sistema deve ser combatida desde já – tal como a poluição mental. (MARCUSE, 1973, p. 65).

O fundamental, no entanto, continua a ser a ruptura com a experiência

embotada do mundo e a superação da sensibilidade mutilada e contida pela

racionalidade. Alçar uma sensibilidade radical significa tornar os sentidos receptivos

e capazes de operar as suas próprias sínteses, que não se esgotam com as puras

formas da intuição, do espaço e tempo, como uma inexorável ordenação kantiana

apriorística dos dados do sentido. Em períodos importantes do texto Manuscritos

Econômicos e Filosóficos, Marcuse observa que o potencial subversivo da

sensibilidade acompanha os temas centrais da libertação: “Marx fala da completa

emancipação de todos os sentidos e qualidades humanos”. (2011, p. 67).

A superação da sociedade capitalista requer a sensibilidade como meio de

reconstrução radical dos novos modos de vida e, nesse sentido, torna-se uma força

na luta política pela libertação. Em outras palavras, isso significa que a emancipação

individual dos sentidos encontra-se no fundamento da libertação universal. A

sociedade livre conecta-se com necessidades pulsionais:

Como é isso possível? Como pode a humanidade, a solidariedade humana como universal concreto (e não como valor abstrato), como força real, como práxis, ter origem na sensibilidade individual? Como pode a liberdade objetiva originar-se nas mais subjetivas faculdades do homem? (MARCUSE, 1973, p. 75).

99

O embate se põe com a dialética do universal e do particular a indagar sobre

as possibilidades de a sensibilidade humana gerar um princípio universal, e a

questão leva o ensaísta Marcuse (1973) à filosofia idealista alemã em busca da

origem do conceito intelectual marxista: “Para Kant: um sensorium universal (as

puras formas da intuição) constitui a estrutura unificada da experiência dos sentidos,

validando assim as categorias universais do entendimento.” (p.75). Mas ainda faltam

romper as qualidades transcendentais kantianas e a passagem seguinte encontra

em outro filósofo dessa tradição alemã:

Para Hegel: a reflexão sobre o modo e o conteúdo do meu sentido imediato certamente revela o Nós no Eu da intuição e da percepção. Quando a consciência ainda irrefletida atingiu o ponto onde se torna cônscia de si mesma e de sua relação com os seus objetos, onde é experimentada como um mundo trans-sensível situado além da aparência sensória das coisas, ela descobre que nós estamos além da cortina de aparência. E esse nós desdobra-se como realidade social na luta entre o Amo e o Servo para reconhecimento mútuo. (p.75).

Essa passagem esclareceria o ponto que leva do esforço kantiano para

reconciliar homem e natureza, liberdade e necessidade, universal e particular para a

resposta materialista que, depurada da concepção transcendental, faz ingressar

homem e história na teoria e na estrutura do conhecimento, soltos da pureza do a

priori, a constituir a materialização da ideia de liberdade.

Marcuse, em uma passagem anterior, havia retomado a Terceira Crítica da

obra de Kant para uma interpretação em que reconhece um potencial emancipador,

que estaria por ser mais bem compreendido, razão pela qual nos pareceu importante

trazê-la para o texto. . Para o autor subjaz a essa ideia um índice que sinaliza o belo

na arte e na natureza e sua qualidade de “natureza como sujeito sem teleologia,

sem plano nem intenção: esta noção condiz bem com a intencionalidade sem

propósito de Kant” (1973, p.70).

A faculdade da imaginação deseja escapar de uma experiência comum

quando remodelamos essa experiência segundo princípios que se situam acima da

razão. Aqui, temos o homem no uso livre da lei da associação que permite uma

reelaboração da matéria da natureza, produzindo aquilo que ultrapassa a natureza.

Assim, a ideia estética apresenta uma aparência positiva da realidade objetiva, sem

que qualquer conceito possa servir de intuição interna.

100

A ideia estética transcende as barreiras da experiência e, através da

imaginação, ousa tornar sensível uma completude que não se encontra na natureza.

A faculdade da imaginação, em sua tarefa de criação, põe em movimento a

faculdade de ideias intelectuais, ou seja, a razão. São representações que acionam

o pensar e o elevam mais do que pode ser apreendido e distinguido.

A imaginação atua subjetivamente ao vivificar as faculdades de conhecimento

e, portanto, está presente indiretamente no conhecimento.

O que Kant denomina de ideia estética é um princípio que vivifica o espírito e

movimenta as forças do ânimo. A ideia estética é uma representação da faculdade

da imaginação sem que qualquer pensamento, ou melhor, conceito, possa ser-lhe

adequado. E, mais do que essa reconciliação entre natureza e espírito, o belo

kantiano “desperta uma ideia necessária da razão que é, enquanto tal, comum à

humanidade” (FERRY, 1994, p.130-131). O juízo de gosto permite que o homem

amplie a esfera da subjetividade pura ao visar uma partilha em comunidade da

experiência estética.

Outra volta nessas ressonâncias da filosofia política e o sujeito desejante da

psicanálise, e sua incalculável potência, não nos parece ausente.

A modernidade não opera com linearidade, o que torna mais compreensível a

noção de Agamben do contemporâneo como tempo não cronológico. Solta do

tempo, a modernidade é a história da permanente e incompleta transformação.

Numa expressão mais concisa, a modernidade, para Negri e Hardt (2004, p.154-

155), pode ser compreendida como uma dialética da resolução transcendental do

conflito contínuo, e, nas palavras dos autores:

[...] a modernidade como um estado de crise a ser sublimado transcendentalmente. Temos de nos referir à metafísica moderna da política, pois esse âmbito nos permite compreender nas suas diversas figuras o caráter não concludente da própria definição de modernidade. Na teoria do Estado que se desenvolveu de Maquiavel a Hobbes, de Espinosa a Rousseau e de Hegel a Marx, a modernidade se apresenta exatamente como uma alternativa entre uma linha que, baseando-se na potencia ontológica do trabalho vivo, vê na democracia (entendida em termos absolutos) a única forma política adequada ao processo de socialização produtiva que se desenvolve na história, e uma outra linha que tenta expropriar em um âmbito transcendental a produtividade viva da cooperação humana.

A ideia força da democracia absoluta é a oposição a todo o comando e à

soberania que, na visão dos nossos comentadores, seria a estratégia para esse

101

quadro de crise da modernidade. O argumento parte do reconhecimento de que o

Estado atual é uma apologia renovada do poder constituído e da soberania, algo que

faz o capitalismo reconhecer o estertor de sua crise sem se importar com os ônus,

ou seja, numa tentativa de evitar as consequências do desastre. Essa contingência,

por seu lado, liberaria: “a força do trabalho vivo, a produtividade de uma cooperação

que encontra na imanência e no imediatismo a força para se desenvolver. Essa é a

autonomia das massas, e, contemporaneamente, uma série de subjetividades

produtivas e políticas”. (p. 156).

Essa liberação como alternativa democrática produtiva e cooperativa, do

ponto de vista de Negri e Hardt, localiza-se em duas explosões que transtornaram o

mundo ocidental e desencadearam a reestruturação capitalista: maio de 1968 na

França e, vinte e um anos mais tarde, a queda do muro de Berlim. Esses episódios,

que precipitaram três quartos de século da história moderna, revelaram a ruptura de

duas alternativas ideais, colocando no primeiro plano a emergência de um novo

sujeito político, um operador social organizado no trabalho imaterial, que se torna

produtivo pela via da cooperação. Sua liberdade é provada na cooperação e na

construção contínua da liberdade coletiva:

Maquiavel descreve o movimento da democracia comunal; Espinosa concebia a democracia como um governo absoluto e completamente imanente; Marx, nos seus escritos históricos, mas, sobretudo em Grundrisse, identificava a nova subjetividade política com a cooperação intelectual de uma força trabalho erguida à hegemonia. Essa concepção, que atravessou século, nunca foi uma utopia: sempre foi localizada em sujeitos reais e sempre foi derrotada. Hoje, aparece como potencialmente vitoriosa. (p. 157 et seq.).

Dessa possibilidade emancipatória restaria a miséria nas dimensões material

e espiritual para a alternativa regressiva. Uma interrogação apoteótica e potente dos

ensaístas que nos apraz: “De que serve o comando quando a multidão é organizada

ontologicamente?”.

4.3 EMANCIPAÇÃO E ARTE

A indagação com que terminamos o item anterior pode ser brevemente

delineada para orientar a argumentação desta quadra final do capítulo. A ontologia a

que se referem Negri e Hardt (2004) como uma alternativa constituinte foi propelida

102

por Foucault, segundo os autores, como uma antologia histórica de nós mesmos, ou

uma genealogia da constituição do ser social que interroga a si mesmo enquanto

sujeito moral da ação. A construção dos nomes da realidade seria o espaço

cognitivo no interior do qual o sujeito desenvolve a passagem do desejo de viver à

cooperação, como união da força viva do ser: “como se o mundo fosse desfeito e

refeito tendo como fundamento uma série de pensamentos, ações e intuições

baseadas na singularidade individual e coletiva, que as organiza no seu desejo e na

sua força”. (p. 60).

Retomemos Rancière (2009) para um diálogo com outros autores, iniciando

pelo seu conceito de partilha do sensível, compreendido como um sistema de

evidências sensíveis que simultaneamente revela um comum partilhado e partes

exclusivas. Na gênese do conceito encontra-se um fundamento da política

aristotélica quanto às definições sobre a quem cabe governar e aos que governados

serão. Mas, para nosso comentarista, há um critério antecedente: quem determina

aqueles que devem tomar parte, o lugar e o que está em jogo. A partir de uma

digressão histórica vamos compreendendo, com o seu raciocínio, que a política se

ocupa do que é visível e daquilo que se pode dizer sobre o que é visto, e de quem

tem competência para ver e qualidade para falar, das propriedades do espaço e das

possibilidades do tempo.

Essa operação expressa a definição de ser ou não visível em um espaço

comum, dotado de uma palavra comum, e do que entra em jogo quando se toma a

política como forma da experiência. Isso se dá pois, na base dessa política, para

Rancière, encontra-se uma estética. E aqui estaria como questão o que chamou de

práticas estéticas, mais precisamente, formas de visibilidade das práticas da arte, ou

a experiência do ato estético que enseja novos modos de sentir e induz novas

formas da subjetividade política.

Em um ensaio sobre a arqueologia da potência em Agamben, Castro (2008),

ao analisar o desenvolvimento do pensamento do filósofo italiano em suas obras, faz

uma reflexão sobre a experiência da arte em O homem sem conteúdo. Conforme o

comentarista, o filósofo parte de uma reflexão da Genealogia da moral de Nietzsche,

que opõe a experiência de uma arte para artistas à concepção kantiana que define a

beleza a partir da perspectiva do espectador, como o que procura um prazer

desinteressado. Ao contrário, na experiência de uma arte para o artista, interessada

103

e perigosa, procura demonstrar como o destino da arte na cultura ocidental e, mais

precisamente, o estatuto da obra de arte na época da estética assinala ao homem o

seu lugar na história. Não se trata, contudo, apenas de uma mudança de perspectiva

a respeito da obra de arte, mas fundamentalmente de uma modificação do próprio

estatuto da obra de arte e de toda a criação do homem. De duas perspectivas que

se abrem para essa interpretação na obra de Agamben trazidas por Castro (2008), a

segunda nos interessa especialmente. Sob essa visão, a questão passa da arte para

o criar humano em geral e os eixos da exposição são os conceitos de poíesis e

práxis, de potência e de ato, de melancolia e história. Como demonstra Castro, para

fazer o desdobramento entre espectadores e artistas, o filósofo recorre ao par

retórico e terrorista de Jean Paulhan (1949)36. Assim como para os retóricos, para o

espectador a obra de arte é vista como um conjunto de elementos sem vida, e para

o artista na figura deste terrorista, a arte é uma realidade vivente. Desse modo, o

ingresso da obra de arte na dimensão da estética alcança seu lugar precisamente

quando adentra com a poíesis e à práxis:

A partir desta perspectiva a arte poética transforma em voluntário tudo o que é involuntário, é concebida como uma práxis superior em que o homem mediante o uso de seus órgãos se torna onipresente, assim como um messias da natureza. Enquanto concerne a Nietzsche, assinala nosso autor, a arte é o que nomina a vontade de potência. (Castro, 2008, p. 23). (Tradução nossa).

Mas o artista só tem em si a poíesis na medida em que ele é o que ele é no

vigorar do ser. A obra de arte opera na medida em que contém em si a poíesis, o

vigorar da phýsis37 enquanto medidação, medida, linguagem: “a phýsis, o surgir e

elevar-se por si mesmo, é uma pro-dução, é poíesis. A phýsis é até a máxima

poíesis. Pois o vigente da phýsis tem em si mesmo o eclodir da produção”.

(HEIDEGGER, 2002, p. 16).

36 Proibindo-se entrar no jardim das Letras com as flores da Retórica, os terroristas enfrentam,

sobretudo, o gênero. Querem novelas não novelescas, teatro não teatral, poesia não poética. Fugindo do conhecido aspiram ao novo e iluminam o monstro contra os mantenedores da retórica. Triunfa o terror das letras, mas a literatura se exaure. Como alternativa, proíbe-se entrar sem flores no jardim da Literatura (nota nossa. Fonte: <http://www.arenalibros.com/Ficha_Flores_Paulhan.htm>). 37

Physis é um conceito fundamental do pensamento pré-socrático, contendo a noção do saber de um ente em sua mais ampla e profunda totalidade. Em sua expressão original, physis designa o processo de surgir e desenvolver-se num constante e permanente movimento vital, confundindo-se com a própria força motriz de tal movimento. É considerada assim a expressão daquilo que é primário, fundamental e persistente, opondo-se ao que é secundário, derivado e transitório (nota nossa a partir de <http://filosofiamg.blogspot.com.br/2012/05/os-pre-socraticos-e-physis.html>).

104

As imbricações da arte como produção estética da vida ressurgem

persistentemente, como se pode ver no discurso modernista da revolução pictorial

como consigna da superfície bidimensional. Aqui, segundo Rancière, a revogação

da ilusão perspectivista da terceira dimensão devolveria à pintura seu domínio

próprio. No entanto, isso teria sido apenas um deslocamento do problema, uma vez

que a superfície não é simplesmente uma composição geométrica de linhas. A

questão que se põe verdadeira para o filósofo francês é a forma de partilha do

sensível. Nessa lógica, o plano não se opõe ao profundo compreendido no sentido

tridimensional, põe-se ao vivo que não se encontra na palavra muda dos signos

pintados. A terceira dimensão pela pintura foi uma resposta a essa partilha, sendo a

profundidade óptica relacionada ao privilégio de participar da história:

[...] no Renascimento, da valorização da pintura, da afirmação de sua capacidade de captar um ato de palavra vivo, o momento decisivo de uma ação e de uma significação. A poética clássica da representação quis, contra o rebaixamento platônico da mimesis, dotar o plano da palavra ou do quadro de uma vida (...). Ela instaurou entre palavra e pintura, entre dizível e visível uma relação de correspondência à distância, dando à imitação seu espaço específico. (RANCIÈRE, 2009, p. 21-22).

Sob essa perspectiva, nosso autor vê os dilemas da pintura dessa fase e suas

questões políticas como partes integrantes de uma visão crítica mais ampla do

homem, isto é, como habitante de novos edifícios cercado por objetos diferentes

cuja planaridade38 faz referências ou mesmo mantém interfaces com a página e o

cartaz. Sua pureza anti-representativa inscreve-se agora no contexto da arte pura

versus arte aplicada, o que lhe conferiria uma nova significação política.

As interfaces criadas entre os diferentes suportes nos laços entre tipografia e

ilustração, o teatro, o grafismo e o poema, que fazem do artista o inventor de uma

nova vida e não “a febre revolucionária ambiente que faz de Malevich, ao mesmo

tempo, o autor do Quadrado preto sobre fundo branco e o arauto revolucionário das

novas formas de vida” (RANCIÈRE, 2009, p. 23).

Essa interface política revoga a dupla política inerente à lógica representativa

que, por um lado, separava o mundo das imitações da arte do mundo dos interesses

vitais, ou seja, das questões sociais. Com isso, o plano da superfície dos signos:

38 No original, “platitude”, que, em francês, não designa apenas a superfície bidimensional, mas

remete também a uma ideia de banalidade ou de indistinção, estabelecendo aqui uma relação entre igualdade dos sujeitos e a indistinção das artes (nota do tradutor).

105

“essa forma de partilha igualitária do sensível estigmatizada por Platão, intervém ao

mesmo tempo como princípio de revolução formal de uma arte e princípio de re-

partição política da experiência comum”. (p.24).

Neste nível encontra-se, para Rancière, a importância do recorte sensível do

comum da comunidade e suas formas de visibilidade, e da disposição que introduz a

relação estética-política, uma vez que se torna possível pensar a partir daqui o que

imaginamos como intervenções políticas dos artistas, sejam estes os deciframentos

literários da sociedade ou os modos contemporâneos da performance, a poética

simbolista do sonho ou a supressão construtivista da arte. É possível pôr em

questão inúmeras histórias imaginárias da modernidade artística e dos intermináveis

debates sobre a autonomia da arte ou sua submissão política.

Nesta altura do capítulo cabe-nos um alinhamento diante das aporias das

hipóteses argumentativas que apresentamos, reconhecendo um campo comum que

se manteve a despeito das diferenças interpretativas, que diz respeito à potência da

arte e das operações estéticas. E nos alinhamos à ênfase e à intensidade do filósofo

quando, por fim, diz:

As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou de emancipação mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível. E a autonomia de que podem gozar ou a subversão que podem se atribuir repousa sobre a mesma base. (RANCIÉRE, 2011, p.26).

E diremos, enfim, que é apreciável o teor de política e arte no cálice da

embriaguez contemporânea.

106

Figura 5 - Tela 5 - Imprudência

Fonte: Luiz Palma, 2002. Óleo s/ tela. Medida: 0,80 x 1,00. Foto: Marcos Muzi.

107

CONCLUSÔES

Procuramos no desenvolvimento de nossa tese seguir a constituição do

sujeito freudiano, tendo como ponto de referência as injunções do campo da cultura

e da civilização. Havíamos definido como questão o exame dos vínculos e das

determinações que engendram o mal-estar contemporâneo, levantando a hipótese

de que o sujeito freudiano não escapa ao telos dialético da histórica, conduzindo

essa indagação a partir dos registros da política e da estética.

Realizada a tese, gostaríamos de assinalar algumas considerações a respeito

das articulações teóricas e das interpretações alçadas em resposta às proposições

iniciais.

a) A imbricação entre os termos civilização e cultura arbitrada por Freud cria

uma sucessão de impossibilidades analíticas, o que requereu uma permanente

acuidade para a reposição dos elementos que as distinguem, como, por exemplo, na

distinção conceitual das determinações dos processos históricos e da pregnância

ideológica das aspirações sociais, políticas e culturais.

b) No sujeito freudiano, as determinações políticas surgem invariavelmente

envoltas por conflitos entre o princípio de prazer e o princípio da realidade e, a partir

da aproximação da pulsão de morte, a complexidade torna-se exponencial uma vez

que, para o próprio autor, não apenas o conceito não parece ser plenamente

convincente, mas também sua presença e formas de manifestações são

escorregadias. Para superar esse impasse, os saltos para as noções da filosofia às

da estética e da arte, empreendidos no texto inicialmente por Marcuse e derivados

para os demais autores a que nos recorremos, foi imprescindível.

c) No nosso entender, as funções da estética trouxeram para o texto uma

claridade filosófica e histórica para a compreensão das origens e dos percursos que

Freud encontrou para fazer avançar suas pesquisas clínicas ao encontro das

representações e dos sentidos do inconsciente.

108

d) Entendemos que a hipótese central da nossa tese encontrou caminhos

confirmatórios por intermédio das ressonâncias da política e da estética ao manter o

sujeito freudiano no arco dos processos sociais de subjetivação. Localizamos o

horizonte de superação do mal-estar e da emancipação das qualidades humanas as

possibilidades abertas pelos processos de produção do trabalho imaterial que

podem vir a engendrar formas de valorização social cooperativas.

e) O ensaio filosófico e a política seguem sendo diferentes. A política propõe-

se a transformar as condições nas quais estão envolvidos determinados grupos. A

filosofia inventa problemas que afetam a todo o mundo e esta criação de problemas

filosóficos é um método distinto e uma forma totalmente diferente de julgar,

comparativamente ao ativismo político. A filosofia pode criar problemas a partir de

situações políticas, mas isso não é suficiente para que se confunda com política. O

pensar filosófico, por isso, às vezes resulta misterioso e incompreensível: “o

verdadeiro compromisso filosófico – que se move na incomensurabilidade, requer a

escolha do pensamento, a encenação das exceções e finalmente cria também

distâncias, sobretudo a respeito das formas de poder – este compromisso, não raro

resulta estranho”. (BADIOU; ZIZEK, 2011, p. 28). (Tradução nossa)

Finalmente para somar à proposição do valor político que vimos no sujeito

freudiano, gostaríamos de terminar estas considerações com as palavras da

psicanalista Maria Rita Kehl:

A psicanálise é um dispositivo político, no sentido mais amplo da palavra: libertador, de uma potência extraordinária. O fato de o final de uma análise ser um compromisso do sujeito com seu desejo expõe uma condição que Lacan chama de trágica, mas que dá para chamar de cômica também. Quando o sujeito se depara com a fantasia que sustenta sua neurose, é como se dissesse: „Nossa, era só isso? Eu estava sofrendo há tanto tempo só por causa disso?‟. Tem uma nota cômica, ou irônica, nesse fim da análise. Você ri um pouco das suas pretensões, do seu superego, da sua escravidão voluntária. (KEHL, 2010, p.2).

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