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Brasília Volume 14 Número 104 Out. 2012/Jan. 2013

104

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Presidenta da República

Dilma Vana Rousseff

Ministra-Chefe da Casa Civil da Presidência da República

Gleisi Helena Hoffmann

Subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil e

Presidente do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência

Ivo da Motta Azevedo Corrêa

Coordenadoras do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência

Mariana Barbosa Cirne

Paula Albuquerque Mello Leal

Revista Jurídica da Presidência / Presidência da República

Centro de Estudos Jurídicos da Presidência – Vol. 1, n. 1, maio de 1999.

Brasília: Centro de Estudos Jurídicos da Presidência, 1999-.

Quadrimestral

Título anterior: Revista Jurídica Virtual

Mensal: 1999 a 2005; bimestral: 2005 a 2008.

ISSN (até fevereiro de 2011): 1808-2807

ISSN (a partir de março de 2011): 2236-3645

1. Direito. Brasil. Presidência da República, Centro de Estudos Jurídicos da Presidência.

CDD 341

CDU 342(81)

Centro de Estudos Jurídicos da Presidência

Praça dos Três Poderes, Palácio do Planalto

Anexo II superior - Sala 204 A

CEP 70.150-900 - Brasília/DF

Telefone: (61)3411-2047

E-mail: [email protected]

http://www.presidencia.gov.br/revistajuridica

© Centro de Estudos Jurídicos da Presidência – 2012

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É uma publicação quadrimestral do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência voltada à divul-

gação de artigos científicos inéditos, resultantes de pesquisas e estudos independentes sobre

a atuação do Poder Público em todas as áreas do Direito, com o objetivo de fornecer subsídios

para reflexões sobre a legislação nacional e as políticas públicas desenvolvidas na esfera federal.

Equipe Técnica

Conselho Editorial

Claudia Lima Marques

Claudia Rosane Roesler

Fredie Souza Didier Junior

Gilmar Ferreira Mendes

João Maurício Leitão Adeodato

Joaquim Shiraishi Neto

José Claudio Monteiro de Brito Filho

Luis Roberto Barroso

Maira Rocha Machado

Misabel de Abreu Machado Derzi

Vera Karam de Chueiri

Fotografia da Capa

Evolução, Haroldo Barroso, 1971.

Acervo do Palácio do Planalto.

Fotógrafa

Bárbara Gomes de Lima Moreira

Revisão de Idiomas

Ana Gloria Santos Moreira de Souza

Daienne Amaral Machado

Daniel Mendonça Lage da Cruz

Daniele Kleiner Fontes

Dario Carnevalli Durigan

João Vitor Rodrigues Loureiro

Manuela Oliveira Camargo

Revista Jurídica da Presidência

Coordenação de Editoração

Paula Albuquerque Mello Leal

Gestão de Artigos

Laís Maranhão Santos Mendonça

Paula Albuquerque Mello Leal

Projeto Gráfico e Capa

Bárbara Gomes de Lima Moreira

Diagramação

Bárbara Gomes de Lima Moreira

Vicente Gomes da Silva Neto

Revisão Geral

Laís Maranhão Santos Mendonça

Maria Laura Brandão Canineu

Paula Albuquerque Mello Leal

Regis Anderson Dudena

Apropriate articles are abstracted/indexed in:

BBD – Bibliografia Brasileira de Direito

LATINDEX – Sistema Regional de Información

en Linea para Revistas Científicas de América

Latina, el Caribe, España y Portugal

ULRICH’S WEB – Global Serials Directory

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Colaboradores da Edição 104

Pareceristas

Adrualdo de Lima Catão Universidade Federal de Alagoas

Andityas Soares de Moura Costa Matos Universidade Federal de Minas Gerais

Antonio Carlos Mendes Universidade de São Paulo

Belinda Pereira da Cunha Universidade Federal da Paraíba

Carla Bonomo Universidade Estadual de Londrina

Élcio Trujillo Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

Fernando Basto Ferraz Universidade Federal do Ceará

Francisco Emílio Baleotti Universidade Estadual de Londrina

Girolamo Domenico Treccani Universidade Federal do Pará

Hugo de Brito Machado Universidade Federal do Ceará

Iara Menezes Lima Universidade Federal de Minas Gerais

José Carlos de Oliveira Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

José Cláudio Monteiro de Brito Filho Universidade Federal do Pará

José Ernesto Pimentel Filho Universidade Federal da Paraíba

Katya Kozicki Universidade Federal do Paraná

Lourival José de Oliveira Universidade Estadual de Londrina

Marcelo Andrade Cattoni Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais

Marcus Alan de Melo Gomes Universidade Federal do Pará

Marcus Orione Gonçalves Correia Universidade de São Paulo

Roberto Baptista Dias da Silva Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Robson Antão de Medeiros Universidade Federal da Paraíba

Sebástian Borges Albuquerque Mello Universidade Federal da Bahia

Tânia Lobo Muniz Universidade Estadual de Londrina

Tarsis Barreto Oliveira Universidade Federal de Tocantins

Tereza Cristina Sorice Baracho Thibau Universidade Federal de Minas Gerais

Vitor Salino de Moura Eça Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

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Autores Convidados

Vera Karam de Chueiri

BRASIL – Curitiba/PR

Doutora e Mestre em Filosofia pela New

School for Social Research – Estados Unidos.

Mestre em Direito pela Universidade Federal

de Santa Catarina (UFSC). Professora e vice-

-diretora da Faculdade de Direito da Univer-

sidade Federal do Paraná (UFPR).

Co-autoria

Diego Motta Ramos

BRASIL – Curitiba/PR

Aluno-pesquisador de iniciação científica

do curso da Universidade Federal do Paraná

(UFPR). Bolsista da Fundação Araucária do

Paraná.

Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho

BRASIL – Salvador/BA

Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

Mestre em Direito Social pela Universidad de

Castilla-La Mancha – Espanha.

Professor de Direito da Universidade Salvador

(UNIFACS) e Professor Adjunto da Graduação

e Pós-Graduação Stricto Sensu da Universida-

de Federal da Bahia (UFBA). Juiz do Trabalho

da 1a Vara do Trabalho de Salvador.

Co-autoria

Renato da Costa Lino de Goes Barros

BRASIL – Salvador/BA

Mestre em Direito Privado e Econômico pela

Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-

-graduado em Direito e Processo do Trabalho

na Faculdade Baiana de Direito em parceria

com a JusPODIVM. Advogado.

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Breno Baía Magalhães

BRASIL – Belém/PA

Mestre e Doutorando em Direito pela Univer-

sidade Federal do Pará (UFPA). Professor Da

Faculdade de Belém (FABEL). Bolsista CAPES.

[email protected]

Daltro Alberto Jaña Marques De Oliveira

BRASIL – Rio de Janeiro/RJ

Mestrando em Direito Constitucional e Te-

oria do Estado pela Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). Especia-

lista em Direito do Estado pela Universidade

do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Espe-

cialista em Direito e Processo do Trabalho

pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).

Analista Judiciário do TRT/RJ.

[email protected]

Edmilson Alves Do Nascimento

BRASIL – Manaus/AM

Pós-graduando em Direito Público em Direito

do Trabalho pelo Centro Universitário Leonar-

do da Vinci (UNIASSELVI). Analista Judiciário

do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

[email protected]

Elisabete Maniglia

BRASIL – Franca/SP

Doutora em Direito pela Universidade Esta-

dual Paulista (Unesp). Mestre em Direito pela

Universidade de São Paulo (USP). Professora

da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

[email protected]

Autores

Gladstone Leonel Da Silva Júnior

BRASIL – Brasília/DF

Doutorando em Direito pela Universidade

de Brasília (UnB). Mestre em Direito pela

Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Especialista em Sociologia Política pela

Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Professor de Direito da Universidade de

Brasília (UnB).

[email protected]

Margareth Vetis Zaganelli

BRASIL – Vitória/ES

Doutora em Direito pela Universidade

Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em

Educação pela Universidade Federal do

Espírito Santo (UFES). Professora de Direito

e vice-diretora do Centro de Ciências Jurídi-

cas e Econômicas da Universidade Federal

do Espírito Santo (UFES).

[email protected]

Patrícia Précoma Pellanda

BRASIL – Manaus/AM

Mestranda em Direito Ambiental pela

Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

Bacharel em Direito pela Pontifícia Universi-

dade Católica Do Paraná (PUC/PR). Bolsista

da Capes.

[email protected]

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Regina Maria Ferreira Da Silva

PARAGUAI – Cidade do Leste/Alto Paraná

Mestranda em Ciências da Educação na

Universidad Internacional Tres Fronteras

(UNINTER - Paraguai). Pós-graduanda em

Direito Constitucional na Universidade

Anhanguera (UNIDERP). Professora da Facul-

dade de Ensino Regional Alternativa (FERA).

Advogada.

[email protected]

Robledo Moraes Peres De Almeida

BRASIL – Vitória/ES

Pós-graduado em Gestão, Educação e Segu-

rança de Trânsito pela Faculdade Cândido

Mendes (UCAM). Bacharel em Direito pela

Universidade Federal do Espírito Santo

(UFES). Graduado pela Escola de Formação

de Oficiais da Polícia Militar do Espírito

Santo (PMES). Professor da Polícia Militar

do Espírito Santo (PMES). Chefe da Seção

de Polícia Administrativa e Judiciária Militar

(BPTRAN).

Thiago Lemos Possas

BRASIL – Franca/SP

Mestrando no Programa de Pós-graduação

em Direito da Universidade Estadual Paulista

(Unesp). Bacharel em Direito pela Universida-

de Federal de Minas Gerais (UFMG).

Bolsista da Reitoria da Universidade Estadual

Paulista (Unesp).

[email protected]

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Editorial ________________________________________________________________ 549

Autores Convidados ________________________________________________ 551

1 Liberdade de expressão, constitucionalismo e democracia: meios de comunicação de massa e regulaçãoVera Karam de Chueiri - Diego Motta Ramos _____________________________ 553

2 A distinção do assédio moral de figuras afinsRodolfo Mário Veiga Pamplona Filho - Renato da Costa Lino de Goes Barros __ 581

Artigos _________________________________________________________________ 609

3 Tutelas constitucionais relacionadas ao assédio moral na relação de trabalhoEdmilson Alves do Nascimento ___________________________________________ 611

4 Direito ao desenvolvimento, sustentabilidade, e a Constituição da República de 1988Elisabete Maniglia - Thiago Lemos Possas ________________________________ 635

5 Ações afirmativas e direito fundamental à educaçãoRegina Maria Ferreira da Silva ___________________________________________ 655

6 A utilização combativa do direito a partir das lutas sociais e políticas das comunidades tradicionaisGladstone Leonel da Silva Júnior _________________________________________ 681

7 Efeito vinculante: o que ele não éBreno Baía Magalhães ___________________________________________________ 707

Sumário

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8 Antinomias jurídicas e previsões legais esparsasPatrícia Précoma Pellanda ________________________________________________ 731

9 Terceirização no serviço público e a responsabilidade da AdministraçãoDaltro Alberto Jaña Marques de Oliveira _________________________________ 757

10 Meios de prova de embriaguez alcoólica do condutor de veículo automotorMargareth Vetis Zaganelli - Robledo Moraes Peres de Almeida ___________ 783

Normas de submissão _____________________________________________ 809

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Cara leitora, caro leitor,

A Revista Jurídica da Presidência (RJP) chega à sua edição de número 104, en-cerrando seu 14o volume. O esforço empreendido nos últimos anos, para o alcan-ce da excelência na publicação deste periódico, permanece e se reflete no sempre crescente número de leitores: não apenas assinantes, mas internautas que podem fazer download gratuito de todas as edições já publicadas. Durante o 14o volume, re-visamos nossas normas de submissão, as disponibilizamos em três novos idiomas – francês, espanhol e inglês – e ampliamos o nosso quadro de colaboradores doutores.

Nesse último aspecto, é imperioso citarmos a frutífera parceria da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República com 28 instituições de ensino de reconhecida competência acadêmica. Tal colaboração, no último ano, foi repactu-ada com diversas das citadas instituições e ampliada: tanto no número de parcerias quanto no número de professores doutores indicados. Tal corpo prestigiado de re-visores garante a avaliação imparcial cega dos artigos científicos (blind peer review) e a qualidade do conteúdo disponibilizado ao público pela RJP.

Como já se tornou tradição, abrimos a edição 104 com um artigo de um membro do nosso Conselho Editorial. A professora e vice-diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Vera Karam de Chueiri, em co-autoria com o seu orientando, o pesquisador Diego Motta Ramos, reflete sobre a liberdade de ex-pressão e os meios de comunicação de massa, com foco nas políticas públicas de informação e comunicação e na atuação do Estado na execução dessas políticas. O artigo exala atualidade, ao analisar o caso da Fairness Doctrine da experiência norte-americana e a lei de acesso à informação da experiência brasileira.

Outro convidado dessa edição é o juiz do trabalho, professor da Universidade Federal da Bahia e consultor da RJP Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho que, em parceria com o professor e advogado Renato da Costa Lino de Goes Barros, elucida, em seu artigo, as diferenças entre o assédio moral e outras figuras afins, com base nas jurisprudências e na doutrina mais modernas. Sobre o mesmo tema, Edmilson Alves do Nascimento desdobra o assédio moral sob a perspectiva constitucional e a violação das garantias dos trabalhadores.

Elisabete Maniglia e Thiago Lemos Possas destrincham a relação entre direito ao desenvolvimento, sustentabilidade e a Constituição Brasileira, avaliando dife-

Editorial

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rentes abordagens conceituais do termo desenvolvimento. Regina Maria Ferreira da Silva nos apresenta uma pesquisa sobre o acesso de negros e índios à educação no Brasil, com ênfase no ensino superior. Ademais o artigo analisa a constitucionalida-de do sistema de cotas nas universidades públicas, ancorando-se nos aspectos histó-rico e cultural. Já Gladstone Leonel da Silva Júnior, numa perspectiva emancipatória, analisa e sugere instrumentos de construção de direitos étnicos e coletivos às comu-nidades tradicionais. O escopo deste exercício é propor uma utilização combativa do Direito, mais especificamente, no cenário das lutas sociais.

Partindo da obra de Celso de Albuquerque Silva, Breno Baía Magalhães provoca o leitor ao apresentar o que não é o Efeito Vinculante, valendo-se de três princípios substantivos: igualdade, legalidade e democracia.

Patrícia Précoma Pellanda analisa a legislação brasileira sobre biossegu¬rança e biotecnologia, apontando para a existência de um arcabouço de normativos es-parsos, o que, segundo a autora, acarreta em antinomias jurídicas relativas à com-petência da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio. Daltro Alberto Jaña Marques de Oliveira, em seu artigo, também trabalha com a colisão de normas e entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, ao analisar a terceirização no serviço público e a responsabilidade da Administração.

Por fim, Margareth Vetis Zaganelli, também membro de nosso Conselho de Con-sultores, e Robledo Moraes Peres de Almeida realizam um escorço das recentes altera-ções legislativas e das atuais decisões dos Tribunais Superiores em relação aos meios de prova de embriaguez alcoólica de condutores de veículos automotores.

Do panorama apresentado, percebe-se a pluralidade de temas e perspectivas abordados nesse número da RJP, todos eles guardando consonância com a linha editorial da Revista e identidade com o propósito de refletir sobre políticas públicas e sobre a legislação em âmbito federal.

Agradecemos a todos os que contribuíram para a realização desta Revista. Às autoras e aos autores que escolheram este veículo para a publicação de seus traba-lhos, aos revisores que conosco colaboraram, à incansável equipe da Revista Jurídica da Presidência e aos colegas da Subchefia para Assuntos Jurídicos o nosso sincero agradecimento. Esperamos que, você leitor(a), experimente a mesma satisfação que nós nessa jornada. Ótima leitura!

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Autores

Convidados

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Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 14 n. 104 Out. 2012/Jan. 2013 p. 553 a 579

553

1 Liberdade de expressão, constitucionalis-

mo e democracia: meios de comunicação

de massa e regulação

VERA KARAM DE CHUEIRI

Doutora e Mestre em Filosofia (New School for Social Research). Mestre em

Direito (UFSC). Professora e vice-diretora da Faculdade de Direito (UFPR).

DIEGO MOTTA RAMOS

Aluno-pesquisador de iniciação científica (Direito/UFPR).

Bolsista da Fundação Araucária do Paraná.

SUMÁRIO: 1 Liberdade de expressão e igualdade: a tradução (im)perfeita do constitucionalismo e da democracia 2 Meios de comunicação de massa: entre o público e o privado 3 Conclusão 4 Referências.

RESUMO: O artigo trata da liberdade de expressão no contexto do constituciona-lismo e democracia contemporâneos. Discute o referido direito fundamental em re-lação às políticas públicas de informação e comunicação tendo em vista o caráter privado e público dos meios de comunicação de massa. Ainda, analisa o papel do Estado na execução das políticas de comunicação e informação, através da sua in-tervenção, como no caso da Fairness Doctrine da experiência norte-americana e na Lei de Acesso à Informação da experiência brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Liberdade de expressão Meios de comunicação de massa Regulação.

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Liberdade de expressão, constitucionalismo e democracia: meios de comunicação de massa e regulação

Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 14 n. 104 Out. 2012/Jan. 2013 p. 553 a 579

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Freedom of speech, constitutionalism and democracy: mass media and regulation

CONTENTS: 1 Freedom of speech and equality: the (un)perfect traduction of constitutionalism and democracy 2 Mass media: among public and private 3 Conclusion 4 References.

ABSTRACT: This article deals with freedom of speech in the context of contempo-rary constitutionalism and democracy. It discusses the fundamental right to free-dom of speech regarding policies of information and communication and consider-ing the private and public nature of mass media. Moreover, it analyses the role of state in implementting policies of information and communication through its intervention in cases such as the north-American Fairness Doctrine and the Brazilian Lei de Acesso à Informação (Access to Public information Act).

KEYWORDS: Freedom of speech Mass media communication Regulation.

Libertad de expresión, constitucionalismo y democracia: medios de comunicación

de masas y regulación

CONTENIDO: 1 Libertad de expresión e igualdad: la traducción (im)perfecta del constituciona-lismo y de la democracia 2 Medios de comunicación de masas: entre ló público y lo privado 3 Conclusión 4 Referencias.

RESUMEN: Este artículo trata de la libertad de expresión en el contexto del consti-tucionalismo y de la democracia contemporáneos. Discute el derecho fundamental a la libertad de expresión respecto a las políticas públicas de comunicación e infor-mación, teniendo en cuenta la naturaleza pública y privada de los medios de comu-nicación de masas. Por otra parte, el artículo reflexiona sobre el papel del Estado en la implementación de las políticas de comunicación e información a través de su intervención en casos como la Fainess Doctrine estadounidense y la ley brasileña sobre el acceso a la información.

PALABRAS CLAVE: Libertad de expresión Médios de comunicación de masas Regulación.

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Vera Karam de Chueiri - Diego Motta Ramos555

1 Liberdade de expressão e igualdade: a tradução (im)perfeita do constitucionalismo

e da democracia

O tema aqui tratado não é original, pois democracia e constitucionalismo estão em pauta desde o surgimento do Estado moderno numa relação nem sempre

linear, com mais ou menos constituição e autogoverno do povo, porém sempre con-flituosa. Da mesma maneira, o direito à liberdade de expressão também não é as-sunto novo e desde as primeiras cartas e declarações modernas de direitos se coloca como fundamental para o cidadão em sua comunidade. O que talvez seja interes-sante na relação entre constitucionalismo, democracia e liberdade de expressão diz respeito às demandas contemporâneas que revigoram o debate teórico e chamam por novas práticas. Assim, mirando nas controvérsias e demandas contemporâneas é que será enfrentado o tema proposto. Discurso do ódio, pornografia e regulação dos meios de comunicação social são algumas dessas demandas. Ver as controvér-sias atuais sobre liberdade de expressão como uma mera repetição do passado é equivocado, na medida em que elas alcançam algo mais profundo que diz respeito à relação entre constitucionalismo e democracia e seu complexo arranjo, vale dizer, entre liberdade e igualdade e o papel do Estado (se é que lhe é dado algum) na proteção das ditas liberdades fundamentais (FISS, 1999, p. 12). Isto, pois, no passa-do os debates se colocavam de forma maniqueísta, ou seja, ou o Estado se opunha totalmente ao indivíduo e sua liberdade e qualquer atuação daquele em relação a estes deveria ser rejeitada ou o Estado intervia de maneira absoluta.

Entretanto, as demandas contemporâneas nos mostram que a ação do Estado sobre a liberdade não deve, necessariamente, ser limitada, pois há circunstâncias em que o Estado promove a liberdade. Mas que liberdade é essa que o Estado pode ser chamado a promover? Segundo Fiss (1999, p. 12), deve ser uma liberdade de caráter público e jamais uma liberdade de caráter individual.

A liberdade de expressão tal qual a Constituição Brasileira assegura em seu artigo 5, IV (é livre a manifestação do pensamento), IX (é livre a expressão da ativi-dade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença), tem tanto uma dimensão privada e portanto não deve sofrer intervenção, como uma dimensão pública e aqui a intervenção é necessária para sua promoção. O que isto traz de novidade (se é que traz) é que, em ambos os casos, a liberdade de expressão (como direito) requer uma teoria e uma prática democráticas. Conforme Fiss (1986, p. 1409-10) “the purpose of free speech is not individual self-actualization,

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Liberdade de expressão, constitucionalismo e democracia: meios de comunicação de massa e regulação

Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 14 n. 104 Out. 2012/Jan. 2013 p. 553 a 579

556

but rather the preservation of democracy and the right of a people, as a people, to decide what kind of life wishes to live.”1

Ainda, o artigo 220 da Constituição ao tratar das políticas de comunicação social reafirma em seu caput que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição” (BRASIL, 1988). O parágrafo 1o do artigo 220 remete ao próprio artigo 5o, IV, V, X, XIII, XIV afirmando que nenhuma lei pode conter dispositivo que constitua embaraço à liberdade de informação jornalística seja qual for o veículo de comunicação social. O parágrafo 2o veda a censura e o parágrafo 3o dispõe sobre a competência legislativa para regular manifestações culturais e de comunicação como espetáculos públicos, como também, a proteção das pessoas diante de programas e programações que não observem os princípios constitucionais, os valores éticos e sociais e que não promo-vam a cultura nacional e regional. Na sequência, o artigo 222 regula a propriedade de empresas de comunicação, não sem fazer novamente referência aos princípios constitucionais que norteiam a liberdade de expressão/comunicação. Por fim, o arti-go 223 trata da competência do poder executivo na outorga de concessão, permissão e autorização de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, ressalvando a complementariedade entre os sistemas privado, público e estatal (BRASIL, 1988).

Vale dizer, a forma como a Constituição brasileira trata da liberdade de expres-são em amplo sentido corrobora este entendimento sobre a sua dimensão pública e privada tornando o seu arranjo democrático-constitucional delicado, difícil, porém, possível. Sobre essa possibilidade é que este artigo se debruçará.

Para tanto, é preciso estabelecer, desde o início, algumas premissas, quais se-jam: (i) constitucionalismo e democracia são ao mesmo tempo antagônicos e com-plementares. Vale dizer, são categorias e práticas que no Estado democrático de direito se co-constituem ainda que de forma tensa; (ii) traduzindo isso para a lin-guagem dos direitos, liberdade e igualdade são ambos essenciais um para o outro, entretanto numa relação quase sempre tensa e provisória; (iii) o caráter contingen-te (necessário e inevitável) dos arranjos produzidos (decisões políticas e judiciais) acerca dos direitos, em particular da liberdade e da igualdade; (iv) a liberdade de expressão é importante para a autodeterminação coletiva e deve ser compreendida como uma questão de soberania popular.

1 “O propósito da liberdade de expressão não é a auto-realização individual, mas a preservação da demo-cracia e o direito de um povo, enquanto povo, de decidir que tipo de vida deseja viver.” (tradução nossa)

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Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 14 n. 104 Out. 2012/Jan. 2013 p. 553 a 579

Vera Karam de Chueiri - Diego Motta Ramos557

Ditas essas premissas, a liberdade de expressão, a partir do que diz a Constitui-ção brasileira no seu art. 5o, IV, IX e seus desdobramentos, deve estar comprometi-da com o que afirma o caput do referido artigo: “Todos são iguais perante lei, sem distinção de qualquer natureza [...]” (BRASIL, 1988). É expresso na Constituição o estreito vínculo da liberdade com a igualdade ainda que a interpretação do que isso significa seja controversa e varie de tempos em tempos, especialmente em nosso Supremo Tribunal Federal.

No famoso caso Ellwanger, HC 82425/RS, o Ministro Gilmar Mendes (BRASIL, 2003) afirma em seu voto que “a discriminação racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de expressão compromete um dos pilares do sistema democrático, a própria idéia de igualdade”. Sem entrar no mérito da estrutura da decisão do Minis-tro Gilmar Mendes, baseada na ideia de ponderação de valores (como se houvesse dois em questão – liberdade de expressão e igualdade, quando o que havia era racismo)2, da qual discordamos, o que nos interessa aqui é a relação que ele afirma entre a liberdade de expressão e a igualdade.

Fiss (1999, p. 22) cita o caso do discurso do ódio (que muito se aproxima do caso Ellwanger) como um tipo em que pode requerer a intervenção do Estado para limitar a liberdade de expressão em nome da dignidade dos afetados. Também a pornografia, relativamente às mulheres, pois, conforme algumas feministas, a liber-dade de expressão neste caso deve ser limitada não por razões morais ou religiosas, mas porque diminui a mulher deixando-a numa situação de desvantagem social.

Outro exemplo remete ao caso em que o diretor de teatro Gerald Thomas mos-trou as nádegas ao público que vaiou seu espetáculo e que foi julgado em 2004 pelo STF no HC 83996/RJ (BRASIL, 2005) e no qual o Ministro Gilmar Mendes não viu ato obsceno ou pornográfico, mas exercício da liberdade de expressão. O fato é que em tais casos alguns argumentos trazidos pelos julgadores reconhecem a for-ça da igualdade, mas decidem em favor da liberdade afirmando que este princípio prevalece ao outro no Estado liberal (argumento mais simplista), outros reconhecem que a existência do debate livre e aberto é pré-requisito para a igualdade (argumen-to mais articulado), outros, ao contrário, afirmam que a democracia só se alcança quando as condições de igualdade tenham sido satisfeitas. Ou seja, o que tais casos

2 O uso da liberdade que prejudica e finalmente destrói a liberdade de outros não está protegido pelo direito fundamental. Se faz parte dos fins de um direito assegurar as condições para uma democracia, então o uso dessa liberdade que elimina tais condições não está protegido pelo direito fundamental. (KRIELE, 1980, p. 475)

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Liberdade de expressão, constitucionalismo e democracia: meios de comunicação de massa e regulação

Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 14 n. 104 Out. 2012/Jan. 2013 p. 553 a 579

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(as demandas contemporâneas) sobre liberdade de expressão revelam é a impossi-bilidade de se ter um “método”, uma “fórmula” para decidi-las.

Segundo Fiss (1999, p. 14), é na democracia que as pessoas têm o direito de eleger o modo de vida que desejam levar e tal eleição ocorre no contexto de um debate público desinibido, vigoroso e aberto. Ou seja, as nossas escolhas não podem ser egoístas se nos comprometermos democraticamente com nossa comunidade, como também, em nome da comunidade, não pode o Estado prejudicar o debate livre e aberto; ao contrário, deve promovê-lo! O tipo de obrigações que temos em comunidade é associativo diz (1997, p. 196), requer reciprocidade, fraternidade e integridade. Nesse sentido, uma forma proposta por Fiss (1999, p. 27) para os casos de liberdade de expressão, como uma batalha entre o que ele chama de valores transcendentais, é ver na intervenção do Estado medidas de promoção da liberdade de expressão. Assim, o que à primeira vista parecia um conflito entre liberdade e igualdade pode ser pensado em termos de uma articulação entre ambos.

Retomemos o caso do discurso do ódio ou da obscenidade/pornografia para pensar se as expressões aqui ameaçam ou não a liberdade. Se a disseminação de obras com conteúdo racista e discriminatório faz com que os discriminados não pos-sam participar da discussão, então mais expressão será certamente pior. Para Fiss (1999, p. 39) há um outro fator a ser considerado, que é o efeito silenciador deste tipo de discurso quando ele diminui a dignidade das pessoas e faz com que suas vozes não tenham qualquer valor. O mesmo se aplica à pornografia quando denigre a mulher e minimiza ou aniquila sua expressão.

Portanto, há nesses casos a necessidade de o Estado intervir para fomentar o debate livre e aberto, de forma a garantir que todos os afetados dele participem e, em se tratando de um particular (como Ellwanger), que publica obras discriminató-rias e racistas, é preciso que ele intervenha (como fez o STF). O Estado, ao fazê-lo, reafirma a promoção do constitucionalismo e da democracia, na medida em que as-sim estabelece as condições para o autogoverno do povo, assegurando que todos os pontos de vista sejam expostos a todos, respeitando as diferenças, vale dizer, quem tem menos voz – as minorias – requerem espaços contramajoritários para serem ou-vidas de forma igual às maiorias e seus espaços. Daí a importância do Poder Judiciá-rio para promover a liberdade de expressão e assim o próprio processo democrático. Nesse sentido, o velho esquema liberal de que o Estado é inimigo natural da liber-dade é superado pela ideia de que o Estado é hoje amigo da liberdade. Conforme Fiss (1986, p. 1407), o Estado deve assegurar que haja um debate público robusto

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reafirmando a liberdade de expressão sem exercer o controle sobre o conteúdo da expressão e o resultado do debate3. No caso das publicações racistas do Sr. Elwan-ger, além da identificação do tipo penal de crime de racismo, seria interessante que o STF dissesse que esta forma de expressão em nada colabora com o debate público robusto, pois ela provoca um efeito silenciador sobre as vítimas.

A liberdade de expressão é um dos direitos que está no coração da Constituição e a vitalidade da comunidade depende muito dele e tem a ver com sua ligação com o princípio democrático. Isso significa que a liberdade de expressão está num lugar especial na nossa escala de direitos. Vale dizer, todos os direitos fundamentais im-portam e merecem proteção, mas os direitos vinculados à liberdade de expressão e à igualdade devem ser objeto de uma proteção ainda mais especial. Diante desse panorama, superada a visão do Estado como a grande ameaça às liberdades, tem-se que a ele, na defesa da liberdade de expressão e da igualdade, cabe: (i) restringir a liberdade de expressão abusiva (em razão do conteúdo ou da amplitude do discur-so); (ii) promover a pluralidade de opiniões no espaço público; (iii) se comprometer com a permanente construção de um espaço de debate público amplo e robusto.

Tais deveres envolvem a ação do Estado ora restringindo o abuso, ora promo-vendo o debate público, amplo e robusto. É claro que tal ação é articulada de forma que a promoção da pluralidade envolve, muitas vezes, a restrição do discurso (abu-sivo) sem que isso signifique intervenção no exercício da liberdade de expressão. Consideramos, ainda, que os espaços (rádio, TV, jornal) são (e devem ser) temporal ou materialmente limitados4. A promoção da pluralidade de opiniões se mostra ainda mais complexa do que a simples limitação de um discurso reputado abusivo. Nesse sentido, fazemos as seguintes indagações: qual discurso será limitado? Em qual medida haverá a restrição? Até quando ele será restringido? Quais as informações/opiniões (reputadas mais plurais) serão divulgadas? Como será feita esta escolha? O que justifica que essas e não outras opiniões sejam divulgadas? Há espaço para todos?

3 As qualidades de “desinibido, robusto e aberto” relativas ao debate público foram atribuídas pelo Juiz da Suprema Corte americana, William Brennan, no caso New York Times Co v. Sullivan, 376 U.S. 254, 270 (ESTADOS UNIDOS, 1964).

4 O jornal é limitado pelo espaço das páginas, enquanto as emissoras de rádio ou televisão são limita-das pelo tempo, de modo que a restrições à liberdade de expressão devem levar em consideração as limitações do meio de comunicação. A restrição ao discurso abusivo em razão da amplitude decorre do fato de que a simples inclusão da pluralidade de opiniões na programação ou na interpretação de uma notícia poderá ser soterrada caso o discurso abusivo (pela amplitude) seja ampliado propor-cionalmente. Por isso, se faz necessária a diversificação em conjunto com a limitação do discurso abusivo, sob pena da inclusão da diversidade não surtir qualquer efeito.

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Essas são apenas algumas perguntas que refletem a complexidade da construção de um espaço de debate plural em sociedades complexas compostas por muitas eti-cidades. À delicada situação de restrição à liberdade de expressão, ainda que abusiva (já que não raro é tênue a linha que distingue o abuso), soma-se a diversidade de opi-niões, visões de mundo e modos de vida, o que torna ainda mais complexa a tarefa de escolher quais os discursos/opiniões que devem ser promovidos pelo Estado.

Diante dessas dificuldades, faremos, na sequência, alguns apontamentos sobre a liberdade de expressão (em sentido amplo) e sua regulação, discutindo o papel dos meios de comunicação de massa, entre o público e o privado, nos Estados cons-titucionais democráticos. Não por acaso o capítulo V, do Título VIII, da Constituição Brasileira, fala em comunicação social e no seu artigo de abertura, o art. 220, indica que o princípio da liberdade enseja autonomia em relação ao Estado e a intervenção deste quando a comunicação é, assim, social.

2 Meios de comunicação de massa: entre o público e o privado

Com a expansão mundial do sistema capitalista desde o século XIX e a formação das sociedades de massa criou-se, segundo Fábio Konder Comparato (2009, p. 13),

[...] um relacionamento impessoal e coletivo, mediante o envio de men-sagens homogêneas a destinatários anônimos, para consumo em bloco e sem possibilidade de diálogo. É o que se denominou [...] mass media comu-nication; ou seja, um sistema englobando a grande imprensa, o cinema, o rádio e a televisão.

O autor identifica nesse sistema de comunicação a produção em série de algo para consumo padronizado, própria da racionalidade do capitalismo. O fato é que a comunicação de massa, nesses termos, não colaborou para a democratização da sociedade relativamente à participação popular na tomada de decisão. Ela, de um lado, potencializou a ação do mercado e das relações privadas para obtenção de determinadas vantagens e, de outro, serviu à propaganda dos regimes totalitários e autoritários concentrando a comunicação nas mãos das autoridades políticas sem qualquer controle popular. No Brasil, por exemplo, “há pelo menos meio século, com a criação de um poderoso oligopólio empresarial de imprensa, rádio e televisão” (COMPARATO, 2009, p. 16), temos as duas situações acima descritas.

Comparato (2009, p. 17) ressalta ainda que o povo é apenas admitido à cena política no momento das eleições. O fato é que o sufrágio tem se mostrado um meio insuficiente para o diálogo entre os representantes eleitos e os demais cidadãos

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e uma consequente deliberação democrática. A interação entre a população e os seus representantes acontece, na maioria das vezes (se não unicamente), no perío-do eleitoral, no qual a possibilidade de discussão sobre as questões que afetam a Cidade, o Estado ou o País – e que nos afetam como membros dessas comunidades – frequentemente aparece reduzida aos debates promovidos pelas emissoras de rádio e televisão.

Roberto Gargarella (2007, p. 128) aponta que o sufrágio nasceu como a pro-messa de constituir a grande ferramenta de controle da população sobre os gover-nantes. Todavia, a confiança no sufrágio, enquanto a grande ferramenta de controle dos governantes, desestimulou a utilização de outras formas de controle popular.5

Em certa medida, os déficits do sufrágio podem ser amenizados ou agravados a depender do grau de democratização dos meios de comunicação social, que em sociedades complexas exercem o papel de mediação das relações que ocorrem no espaço público. Como assinala Alexandre Ditzel Faraco (2009, p. 9-32), a interação política geralmente ocorre entre pessoas que não se conhecem, não dialogam em tempo real, de modo que não possuem outro vínculo além da cidadania.

Dessa forma, os meios de comunicação em massa constituem uma significativa fonte de informação, a mais atrativa e a que alcança o maior número de pessoas, de modo que não há como negar a influência que tais meios exercem na formação da “opinião pública”. É nessa perspectiva, que Faraco (2009, p. 10), consciente do poder econômico e político dos meios de comunicação em massa, reconhece que regular a concentração e o exercício desse poder é um imperativo democrático6.

5 “Más bien, y por el contrario, el sufragio nació y se quedó entre nosotros bajo la promesa de constituir una herramienta de control excepcional – la gran herramienta – sobre nuestros dirigentes. Dicha promesa es la que há permitido recortar y no desarrollar muchos de los otros instrumentos de control externo o popular sobre los representantes, que en su momento fueron reclamados por los sectores más radicales de la socie-dad. Dicha promesa es la que há legitimado una operación que dejó encerrados gran parte de los controles institucionales que todavía existen, en mecanismos externos o endógenos, como los que son propios de las estructuras de ‘frenos y contrapesos” (Gargarella, 2007).

6 Os meios de comunicação é que criam um referencial comum em relação ao qual se pode idealizar a existência de um debate. É principalmente através deles que vozes, opiniões e visões de mundo podem pretender ultrapassar os estreitos limites da realidade na qual cada indivíduo se encontra. É possível, consequentemente, influenciar o exercício do poder político a partir do controle de tais meios. Por tal razão afirma-se, aqui, que esse controle é representativo não apenas de poder econô-mico. O seu acúmulo e concentração representam, num sentido mais amplo, concentração de poder político, capaz de desvirtuar o funcionamento e a própria existência do espaço público de uma de-mocracia. Regular a concentração e o exercício desse poder (assim como de qualquer outra fonte de poder social) é, assim, um imperativo democrático.

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Essa regulação deve ser orientada pelos compromissos democráticos assumidos desde a Constituição brasileira de 1988 para a consolidação de um espaço de de-bate público amplo e robusto. Porém, a escolha da melhor forma de regulação dos meios de comunicação, e dos modos pelos quais se pode promover a construção de um debate plural e desinibido, não é pacífica, nem precisos os limites em que essa regulação se legitima.

Comparato é mais ousado em seus diagnóstico e proposição. Segundo o autor, “por obra e graça do sistema autocrático de imprensa, rádio e televisão” (2009, p. 18) o Brasil tem uma democracia fraca que convive com um regime de despotismo doce e envolvente. Nesse sentido, afirma que a tarefa hoje

[...] consiste em elaborar e instituir outra forma de relacionamento coleti-vo, pela qual os homens possam verdadeiramente se comunicar; isto é, por um sistema de ideias, sentimentos e opiniões. Sem isso, é inútil pretender ensaiar um verdadeiro regime democrático, pois ele pressupõe a capacida-de do povo soberano de discutir entre si as grandes questões de âmbito nacional ou internacional, sobre as quais deve decidir, e de interpelar cons-tantemente os agentes estatais sobre as justificativas de suas condutas. (COMPARATO, 2009, p. 18-19)

Portanto, para que se possa refletir sobre os efeitos da regulação, bem como analisar qual o melhor modo de democratizar os meios de comunicação social, ini-ciaremos o estudo de algumas tensões, externas e internas aos meios de comunica-ção social, e que são determinantes do que será veiculado.

2.1 Regulação e participação popular

A imprensa surge em meados do século XVIII como imprensa de opinião, cujas principais características foram a presença literária e o estilo polêmico. Após, na se-gunda metade do século XIX, a imprensa é marcada pela natureza comercial e pela vinculação à publicidade (BUCCI, 2000, p. 194). Tal estado de coisas não se alterou significativamente, ainda que os meios tenham, radicalmente, por força da tecnolo-gia, se transformado, se sofisticado e se multiplicado.

Atualmente, os meios de comunicação em massa permanecem marcados pela publicidade como a principal fonte de receita, o que, em certa medida, os torna comprometidos com interesses alheios ao dever de informar. É nessa perspectiva que devem ser equilibrados a busca do lucro pela empresa e os deveres decorrentes da responsabilidade social que possui. Tal equilíbrio será sempre precário, entretan-

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to, de um lado a regulação (em sentido amplo) e, de outro, a participação popular podem e devem desempenhar um papel mais do que estratégico, pois fundamental para aquilo que Comparato chamou de a “verdadeira” comunicação.

Uma das mais intensas e atuais discussões diz respeito à regulação do conteúdo do que é transmitido pelas emissoras. A busca do lucro, diretamente influenciada pela audiência, repercute na programação da emissora, de modo a condicionar o que é transmitido às preferências dos telespectadores. Em razão deste condicionamento, tem-se, por exemplo, a predominância de programas de entretenimento, significati-vamente mais lucrativos7.

Ainda, pode ocorrer o conflito entre os interesses dos anunciantes e a preferên-cia do público. Como bem analisa Faraco (2008, p. 15), os anunciantes:

[…] visam não apenas espaço para seus anúncios em momentos com gran-de audiência, mas também programas que possam estimular o espectador a consumir seus produtos. Um eventual documentário sobre uma crise humani-tária, que possa provocar mais um movimento de compaixão do que de con-sumo, não seria um espaço preferencial para anúncios de cerveja (os quais, por outro lado, são uma presença constante nos grandes eventos esportivos).

Podemos identificar, portanto, pelo menos três fatores distintos que podem (e devem) influenciar na programação a ser transmitida: (i) interesse dos espectadores; (ii) interesse dos anunciantes; e (iii) interesse público na construção de um debate público amplo e robusto.

Os fatores (i) e (ii) são pressupostos do funcionamento do meio de comunicação social privado. A relação entre a publicidade (interesse dos anunciantes) e a audiên-cia (interesse dos espectadores) é uma via de mão dupla. Os anunciantes somente terão interesse em divulgar seus produtos se a publicidade alcançar um número significativo de consumidores em potencial. Por sua vez, a audiência possui relação direta com o conteúdo transmitido e com o horário de transmissão, vale dizer, tanto o horário quanto o conteúdo “filtram” quantitativa e qualitativamente os espectado-res (consumidores em potencial).

7 Ao contrário de certos programas de entretenimento, noticiários e reportagens, em regra, não têm como gerar receitas adicionais àquelas decorrentes dos anúncios. Já alguns formatos de entretenimento, como novelas, filmes, minisséries e sitcom, podem ser vendidos para outras emissoras, nacionais ou estrangei-ras, reapresentados em outros horários e comercializados como DVDs (FARACO, 2008, p. 16).

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É exatamente por isso que, por exemplo, na televisão aberta a transmissão dos programas infantis é, em geral, realizada pela manhã8. Do mesmo modo, o ideal é que a publicidade seja condizente com o possível perfil dos espectadores, o que, por sua vez, pode encontrar no conteúdo da programação uma espécie de “filtragem”. Não é por outro motivo que canais voltados especificamente ao público infantil possuem grande anúncio de brinquedos.

A relação entre a audiência e a publicidade não é necessariamente ruim. Em verdade, na medida em que as emissoras funcionam, em boa parte, sob a lógica privada, o lucro obtido com uma produção de elevada audiência poderá ser inves-tido na produção de outras obras, sejam elas de entretenimento, jornalísticas ou educativas. Para que esse ciclo seja viável, é necessário que, no mínimo, o conteúdo da transmissão seja interessante o suficiente para que o indivíduo não desligue o aparelho e vá fazer outra coisa9.

Na base da relação entre a audiência e a publicidade está a tensão entre capita-lismo e democracia. Ou seja, os interesses econômicos determinam, em boa parte, a informação a ser veiculada pelos meios. Daí a importância da intervenção do Estado.

Assim, em relação ao conteúdo que é transmitido, temos que pode haver o con-flito entre: (i) a preferência dos espectadores (específicos tipos de entretenimen-to ou informação) e o interesse dos anunciantes (a transmissão de conteúdos que direta ou indiretamente estimulem o consumo dos seus produtos); (ii) o interesse da mídia-empresa (perspectiva de lucro, preponderância de programas de entre-tenimento) e a responsabilidade social da mídia (programas de informação rele-vantes, veracidade da informação, pluralidade de opiniões, etc); (iii) o interesse dos anunciantes (publicidade e propaganda) e o interesse público na construção de um espaço de debate público amplo, robusto, plural e desinibido; (iv) o interesse de espectadores, individualmente considerados, e o interesse público na informação,

8 Pressupõe-se que no período da manhã há predominância de espectadores infantis, enquanto que à noite, por exemplo, o público é constituído predominantemente por adultos. Estas menções são meramente exemplificativas, sendo certo que há inúmeras outras formas de se “filtrar” o perfil dos potenciais consumidores por meio do conteúdo da programação.

9 Como afirma Alexandre Ditzel Faraco (2008, p. 15): a busca de programas com um ‘mínimo denomina-dor comum’ é possível, como destacado por Beebe, porque o comportamento das pessoas não é o de assistir somente aquilo que melhor corresponda à sua principal preferência pessoal. O programador da televisão ou rádio, ao tentar maximizar a audiência potencial de um programa, pode procurar apenas oferecer algo suficientemente atraente para evitar que o espectador ou ouvinte desligue o aparelho e vá fazer algo diverso.

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na pluralidade de opiniões, no debate, enfim, na construção de uma democracia efetivamente participativa.

Para além do conflito entre entretenimento e informação, o conflito entre inte-resses privados e a função social da mídia é transposta para o espaço interno das atividades de informação. Exemplo desta transposição é a influência de interesses privados na atividade jornalística. Por interesses privados, entenda-se tanto o inte-resse dos anunciantes, do poder econômico de grupos que concorrem fortemente no mercado, quanto os interesses internos da própria empresa jornalística e dos seus empregados.

Uma grande tensão se coloca no que se refere à necessidade de conciliação en-tre os dois primeiros fatores (interesse dos espectadores ou ouvintes e o interesse dos anunciantes) com o interesse público na construção de um debate público amplo e robusto. A existência de emissoras privadas, que funcionam (ou deveriam funcionar) com independência do Estado e, especialmente, do governo de turno, é interessante à democracia na medida em que viabiliza o conhecimento, pela população, dos atos praticados pelos três poderes da república, o que permite a discussão, a manifestação e, nos casos de irregularidades, exige do poder público uma resposta, que em muitos casos não seria dada se não houvesse a pressão decorrente da exposição pública. É nesse sentido que a mídia é frequentemente apontada como um quarto poder.

A mídia possui o poder de expor fatos, exigir respostas, cobrar as autoridades, levar ao conhecimento destas as necessidades da população, expor as omissões do poder público, promover verdadeiras discussões sobre fatos importantes à Cidade, ao Estado-Membro e ao País, enfim, a mídia pode ser verdadeiramente a mediadora das relações que ocorrem no espaço público, a grande ponte entre os representantes e os representados. Por outro lado, do mesmo modo que a mídia tem o poder para expor, denunciar e cobrar o poder, também pode se omitir, calar, destruir ou desviar a atenção da população.

Em razão da racionalidade privada (e capitalista) da mídia, especialmente a busca do lucro, o ideal de independência, especialmente dos meios de comunica-ção em massa, parece comprometido. Não há como a mídia fomentar a discussão sobre temas relevantes, informar adequadamente, cobrar as autoridades, enfim, ser a ponte entre representantes e representados, se a sua racionalidade de atuação for pautada exclusivamente na obtenção do lucro, pois é certo que o poder político (fragilmente democrático), ao qual a mídia deve controlar, anda, muitas vezes, de

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mãos dadas com o poder econômico, fonte (real ou potencial) dos lucros almejados pela mídia-empresa.

Diante disso, deixar que a mídia funcione exclusivamente segundo a raciona-lidade privada compromete a independência, vicia o debate, desestimula ou condi-ciona a investigação a interesses privados, compromete a informação, enfim, afeta, negativamente, a própria democracia.

Quando falamos em regulação, partimos do pressuposto que diz respeito ao nexo interno entre o poder popular e o exercício de direitos que está na base da ação do Estado e dos particulares. Ou seja, a regulação não significa uma inter-venção qualquer do Estado nos meios de comunicação, mas a internalização pelo próprio Estado, seus agentes, bem como pelos particulares, daquele nexo interno. Regular os meios de comunicação significa, desta perspectiva, criar condições de efetiva participação popular nas decisões que afetam a todos, entre essas, as que di-zem respeito à expressão/comunicação como direito fundamental e política pública.

O resultado financeiro da atividade econômica da mídia-empresa (eufemistica-mente dizendo) deve ser mera consequência da qualidade do conteúdo transmitido, do bom exercício da função social da mídia, associada à credibilidade obtida pela mídia-empresa em razão da competência, da seriedade no ato de informar, da plu-ralidade de pontos de vistas expostos na informação e da veracidade das informa-ções.10 De fato, a racionalidade privada da mídia-empresa deveria se submeter aos critérios públicos de fiscalização desde a concessão dos serviços pelo Estado até a própria atividade econômica, vale dizer, sobre o lucro derivado da exploração da atividade de comunicação deveria incidir uma série de condições para sua admissi-bilidade em sociedades comprometidas com o constitucionalismo e a democracia.

A empresa de comunicação tem um caráter público e privado, ou seja, híbrido que não mais se encaixa na tradicional dicotomia público-privado. Assim, a regula-ção deve levar em conta esse caráter híbrido.

Comparato (2009, p. 19) propõe uma agenda de reformas a começar pela supe-ração da carência legislativa que há no Brasil. Isso, pois, ainda permanece em vigor

10 Fábio Martins de Andrade (2007, p. 61-62) afirma que “embora a noção de mídia seja atualmente indissociável à ideologia capitalista, é necessário que os órgãos da mídia não funcionem como qual-quer outra corporação deste injusto modo de produção. Deve, assim, zelar pela sua independência, como meio de exercício da sua atividade. O fim almejado é a credibilidade perante o grande público. O lucro da empresa mercantil não passa de mera consequência. Apesar de conhecido o fato de que as empresas jornalísticas são empresas privadas, não se deve jamais olvidar de que o serviço que prestam aos seus consumidores e usuários é público”.

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o Código de Telecomunicações de 1962, com várias disposições revogadas e muitas que estão em vigor, porém, são, sistematicamente, descumpridas. Cita como exemplo os artigos 38, h e 124 que fixam o tempo mínimo para transmissão da informação e o máximo para a publicidade comercial. Ainda, o fato de normas constitucionais sobre comunicação social não terem sido regulamentadas como os artigos 220 e 221. Some-se a isto a decisão, por maioria, do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 130/2009, que declarou a inconstitucionalidade da lei de imprensa de 1967.11

Em relação ao rádio e à televisão afirma que suas emissões dependem de um espaço que é público, vale dizer, não pode ser apropriado por ninguém: nem pelo Estado nem pelos particulares. Não por acaso a prestação serviço de radiodifusão de sons e imagens depende de autorização, concessão ou permissão da autoridade administrativa, nos termos do artigo 21, XII, a, da Constituição da República. Sugere, assim, que a gestão desse espaço público seja verdadeiramente pública. Para tanto, Comparato (2009, p. 20) entende que:

[…] importa criar em todas as unidades da federação, um órgão regula-dor das atividades de comunicação social, composto por representantes de entidades públicas, como o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil, ou as universidades públicas. Da mesma forma, a utilização do espaço público de comunicação há de ser reservado preferencialmente a entidades públicas, vale repetir, nem estatais nem privadas. 12

Na esteira do seu argumento sugere, ainda, que a concessão do serviço público de comunicação social seja dada, preferencialmente, às rádios comunitárias e que as empresas de rádio, televisão e jornal tenham um conselho de administração compos-to, cinquenta por cento, de representantes dos profissionais de comunicação que nela trabalham. Por fim defende o exercício do direito de defesa de interesses coletivos e di-fusos das associações ou fundações, além do tradicional direito de resposta. Também o direito de antena às entidades representativas dos grupos mais vulneráveis que teriam a prerrogativa da livre utilização do rádio e da televisão em tempo e horário fixados

11 O professor Comparato sugeriu ao Conselho Federal da OAB que ajuizasse uma Ação Direta de Incons-titucionalidade por Omissão relativamente às disposições constitucionais sobre comunicação social.

12 Alexandre Faraco (2006, p. 28-31) afirma que “o artigo 221, ao mesmo temo em que cria um dever para o controlador do meio de comunicação e parâmetros sob os quais receberá a delegação da ativi-dade do poder público, cria um direito para o cidadão e a coletividade de acesso a uma programação que respeite as condições estabelecidas em seus incisos. Ademais, cabe lembrar que a União Federal é titular da atividade de radiodifusão, normalmente concedendo sua exploração a terceiros. Ora, é inerente a qualquer regime de concessão a existência de sanções aplicáveis pelo próprio poder conce-dente na hipótese de violação do respectivo contrato ou da legislação específica aplicável à atividade.”

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pela autoridade administrativa reguladora, direito este que no Brasil apenas é dado aos partidos políticos na época das campanhas eleitorais (COMPARATO, 2009, p. 21).

Vimos falando em regulação da comunicação em um sentido amplo, vale dizer, como meio de (re)afirmação da nossa democracia e do nosso constitucionalismo e, em sentido estrito, através da criação de instituições e procedimentos adequados que impliquem na participação de todos os afetados e não se restrinjam aos gover-nantes ou aos controladores privados dos meios. Isto é, só haverá um debate públi-co, amplo, robusto e desinibido quando rompermos o círculo vicioso (e perverso) dos favores estatais aos grupos privados de comunicação e vice-e-versa. Para tanto não é preciso “mão” forte, mas povo forte. Isso significa vincular teórica e praticamente a regulação à democracia. Como afirma Owen Fiss (1999, p. 71):

[…] para ejercer esta prerrogativa soberana, los ciudadanos dependen de de-terminadas instituciones para que les informen acerca de las posiciones de los diversos candidatos a ocupar los cargos públicos, y para que analicen y evalúen las políticas y prácticas del gobierno. En las sociedades modernas, la prensa organizada, incluida la televisión, es quizás la principal institución que desempeña este cometido, y para poder cumplir con estas responsabilidades democráticas, necesita un cierto grado de autonomía respecto del Estado.13

Essa autonomia deve ser tanto de opinião quanto econômica e jurídica. Entre-tanto, a sua afirmação não deve significar, paradoxalmente, a sujeição ao mercado, isto é, ao proprietário da empresa de informação. Vale dizer, é desejável que os meios de comunicação sejam jurídica, política e economicamente autônomos em re-lação ao Estado, porém essa autonomia também deve valer em relação a outras for-ças como a do mercado. Os empresários de comunicação, como afirma Fiss (1999, p. 73) “quieren obtener un beneficio, y sus decisiones acerca de qué debe ser objeto de información y como debe informarse están determinadas en gran medida por este deseo”14. A obtenção de lucro leva os empresários de comunicação a trabalharem com a lógica da maximização daqueles com a minimização dos custos não impor-

13 “[...] para exercer esta prerrogativa soberana, os cidadãos dependem de determinadas instituições que lhes informem sobe as posições dos diversos candidatos para ocupar os cargos públicos, e para que analisem e avaliem as políticas e práticas do governo. Nas sociedades modernas, a imprensa organizada, incluída a televisão é, talvez, a principal instituição que desempenha esta tarefa, e, para poder cumprir com estas responsabilidades democráticas, necessita um certo grau de autonomia em relação ao Estado” (tradução nossa).

14 “querem obter um benefício e suas decisões acerca do que deve ser objeto de informação e como deve se informar estão determinadas em grande medida por este desejo” (tradução nossa).

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tando se o resultado disso é uma informação determinada pelo mercado a despeito de uma informação democrática.

2.2 Fairness Doctrine nos Estados Unidos da América

Na experiência norte-americana de regulação, Fiss (1999, p. 78) cita o caso da Fairness Doctrine criada pela Federal Communications Comission (FCC) para exigir das emissoras a cobertura de temas de importância pública de maneira equilibra-da, apresentando os vários lados do assunto em pauta. De maneira subsidiária, a Fairness Doctrine dava aos candidatos a oportunidade de responder aos editorais políticos hostis e também dava o direito similar de réplica a quem tivesse sido pessoalmente atacado. Tal legislação foi duramente atacada pelos meios de co-municação que a consideraram inconstitucional, pois, na opinião destes, violava a liberdade de expressão. De fato, a discussão sobre sua constitucionalidade chegou à Suprema Corte, especialmente através do caso Red Lion Broadcasting v. FCC, de 1969, no qual um escritor havia sido chamado de comunista pela emissora de rádio da rede Red Lion, simplesmente por ter em seu livro criticado um determinado senador e, portanto, reivindicava o seu direito de responder à emissora com base na Fairness Doctrine. A decisão da Suprema Corte foi pela constitucionalidade da legislação. O autor da decisão foi o juiz Byron White cuja tese foi a seguinte:

[…] la autonomía permitida a la prensa no era absoluta, sino que reflejaba siempre un compromiso entre intereses contrapuestos, una síntesis de valor y contravalor. En este caso, el interés aducido por el Estado en apoyo de su regulación – el derecho público a ser informado adecuadamente sobre asuntos de importancia pública – era de un peso especialmente elevado. De hecho, estaba ligado al mismo valor que se promueve a través del reconocimiento de la autonomía: el fomento de un debate “desinhibido, vigoroso y abierto” sobre asuntos de importancia pública.15 (FISS, 1999, p. 79)

Quase duas décadas depois do caso Red Lion, em 1987 e de maneira inusitada, a própria Federal Communications Comission (FCC) revogou a decisão e declarou a Fairness Doctrine inconstitucional. Além da matéria em questão, o processo de revo-

15 “[...] a autonomia permitida à imprensa não era absoluta, mas refletia sempre um compromisso entre interesses contrapostos, uma síntese de valor e contravalor. Neste caso, o interesse aduzido pelo Estado em apoio à sua regulação – o direito público a ser informado adequadamente sobre assuntos de importância pública – era de um peso especialmente elevado. De fato, estava ligado ao mesmo valor que se promove através do reconhecimento da autonomia: o fomento de um debate “desinibido, vigoroso e aberto” sobre assuntos de importância pública” (tradução nossa).

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gação e declaração de inconstitucionalidade foi muito interessante. Isso, pois a de-cisão sobre a revogação e consequente inconstitucionalidade foi em uma instância administrativa, através de uma nova resolução. O fato foi posteriormente judiciali-zado e teve a sua confirmação pela Corte de Apelação do Distrito de Columbia que disse que a resolução do FCC era válida e, sobre o mérito, nada disse com base no princípio da discricionariedade administrativa. Entretanto, o Legislativo entendeu diferente e aprovou uma lei que impunha como exigência a Fairness Doctrine, a qual foi vetada pelo presidente da república na época, sob o argumento da sua inconsti-tucionalidade (FISS, 1999, p. 81)16.

Em 1992, o Congresso americano, a despeito de regular a indústria das transmissões a cabo, restaurou os princípios da Fairness Doctrine e, em 1994, a Suprema Corte afirmou a constitucionalidade de tal legislação no caso Turner Broadcasting System v. FCC. A Suprema Corte norte-americana, desde o caso Red Lion, foi estabelecendo uma série de entendimentos sobre o sentido da regu-lação da comunicação através do FCC, como também, uma série de distinções entre os meios de comunicação de rádio-difusão, como o rádio e a televisão, e a imprensa escrita e a consequente aplicação diferenciada da Fairness Doctrine em relação aos referidos meios. Ou seja, houve decisões que consideraram válida a intervenção do órgão estatal para regular a comunicação na televisão e no rádio (Red Lion) e outras que não consideraram como no caso do jornal Miami Herald v. Tornill (Estados Unidos, 1974). Neste caso, se reafirmou a tradição de autonomia da imprensa escrita norte-americana e a consequente contenção da ação regu-latória estatal.

A atividade dos meios de comunicação social, mais especificamente a atividade jornalística, possui grande influência na formação da opinião pública e construção do que se considera como “verdade”. As informações que podem ser objeto de uma notícia são muitas e estão dispersas na sociedade, de modo que a veiculação da

16 Para Fiss (2009, p. 83), ao repudiarem o precedente do caso Red Lion o presidente Reagan e a FCC apenas deduziram as consequências lógicas da doutrina que a Suprema Corte Americana havia de-senvolvido nos anos imediatamente anteriores à esta decisão. Fizeram, portanto, o que a Suprema Corte não teve a oportunidade ou a coragem de fazer.

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notícia envolve um processo de seleção mais ou menos arbitrário sobre o que, de que modo, em qual local e com qual destaque será divulgada uma ou outra notícia.17

A relevância dessas questões diz respeito ao fato de que tanto o processo de seleção acerca do que deve virar notícia, quanto o modo pelo qual a notícia é veiculada e as opiniões expressadas influenciam a formação da vontade geral, bem como as crenças e comportamentos individuais. Há experiências interessan-tíssimas sobre a influência de um agente na formação ou, mais propriamente, na declaração da opinião.

Uma dessas experiências foi realizada por Muzafer Sherif18 – que verificou e comparou o comportamento individual e comportamento de grupo quando os par-ticipantes eram questionados sobre questões difíceis. Outra experiência interessan-

17 Sobre a seleção da notícia, Francisca Ester de Sá Marques (1999, p. 6-7) afirma: “Assim é que depois de analisar todos os acontecimentos emergentes na realidade para determinar quais são factíveis de se tornarem notícias, o jornal passa a ser o responsável único e difuso de um agendamento que propõe não só em que pensar, mas o que pensar e como pensar, ou seja, não só seleciona os acontecimentos, mas os enquadramentos e as categorias para pensar esses acontecimentos. É um agendamento fundamentado na projeção de recortes da realidade para construção de um pseudo--ambiente, cujo princípio de obrigatoriedade em função da concorrência e da exigência do interlo-cutor neutraliza, ao mesmo tempo, a relatividade dos valores e fatos em questão, e a arbitrariedade dos fundamentos utilizados para justificá-los. Enfim, um agendamento que constitui um esquema de seleções e de conhecimentos para dar sentido aquilo que é proposto a ser observado, a ser lido, a ser interpretado eticamente, pois é a seletividade que torna o improvável em provável”.

18 No experimento “as pessoas eram colocadas em uma sala totalmente escura, na qual um pequeno e insignificante ponto de luz estava posicionado a alguma distância delas. A luz estava, na realidade, imóvel, mas em virtude de ilusão de ótica, ela parecia mover-se. Em cada uma das experiências, Sherif pediu às pessoas para estimarem a distância em que a luz teria se movido. Quando indagadas indivi-dualmente, as pessoas não concordavam umas com as outras e as suas respostas variavam significa-tivamente em cada experiência. Isso não é surpreendente; como a luz não se movimentara, qualquer julgamento sobre distância era um simples palpite. Mas Sherif atingiu alguns resultados impressio-nantes quando as pessoas eram convidadas a atuar em pequenos grupos. Nesse caso, os julgamentos individuais convergiam e se desenvolvia rapidamente um padrão grupal estabelecendo a distância correta. […] Quando Sherif acrescentou um colaborador disfarçado – aliado a ele, sem o conhecimen-to dos participantes do experimento -, algo a mais aconteceu. Especialmente quando o colaborador expressou-se de modo confiante e firme, seu julgamento teve um efeito enorme. Mais especificamente, a avaliação do colaborador disfarçado, tipicamente muito mais elevada ou muito mais reduzida do que aquela feita pelos demais, auxiliou a produzir julgamentos correspondentemente mais elevados ou mais reduzidos dentro do grupo. A grande lição é que, especialmente em casos envolvendo difíceis questões de fato, os julgamentos ‘podiam ser impostos por um indivíduo destituído de poder coercitivo e sem qualquer pretensão de conhecimento especializado, mas apenas uma proposta de ser consisten-te e não hesitante em face da incerteza dos demais” (SUSTEIN, 2006, p. 72-73).

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te foi realizada por Solomon Asch (2006)19 – que verificou se as pessoas estariam dispostas a ignorar uma percepção própria confiável, facilmente apreendida pelos sentidos, em favor da orientação do grupo. Ambas as experiências foram analisadas por Cass R. Sunstein (2006, p. 66) que concluiu que há dois fatores que influenciam as crenças e comportamentos individuais: (i) “se um número de pessoas parece acre-ditar que uma proposição é verdadeira, existe razão para acreditar que essa proposi-ção é de fato verdadeira”; (ii) há um “generalizado desejo humano de provocar uma boa opinião nos demais”.

As comprovações de Solomon Asch e Muzafer Sherif são relevantes, pois reve-lam o potencial dos meios de comunicação social para engendrar consenso, inde-pendentemente da veracidade dos fatos ou da coerência dos argumentos. Nas socie-dades complexas, quase que toda a informação que chega à população é produzida pelos meios de comunicação social, de modo que estes podem determinar tanto quais serão os temas dominantes do momento, quanto a ideologia e os argumen-tos que serão predominantemente conhecidos (e fatalmente aderidos) por grande parte da população20.

A verdade é que, em razão dos custos informacionais, é inviável à grande maio-ria da população buscar, por si e fora da mídia televisiva ou imprensa escrita, as

19 “Nesses experimentos, o sujeito era colocado em um grupo composto por sete a nove pessoas, apa-rentemente outros participantes na experiência, mas que eram realmente colaboradores disfarçados de Asch. A tarefa ridiculamente simples era ‘combinar’ uma linha específica, mostrada numa grande cartolina branca, com uma dentre três ‘linhas de comparação’ que era idêntica em comprimento à primeira. As duas linhas destoantes eram substancialmente diferentes, com uma diferença variando de 4,45 cm a 1,90 cm. Nas duas primeiras etapas do experimento, todos concordam quanto à res-posta correta. […] Mas ‘subitamente essa harmonia é destruída na terceira etapa’. Todos os demais membros do grupo fazem algo que obviamente é, para o participante e para qualquer pessoa razoá-vel, um grande erro, identificando a linha em questão com outra que é evidentemente mais longa ou mais curta. Nessas circunstâncias, o participante tem uma escolha: ele pode manter seu julgamento independente ou, ao contrário, aceitar o ponto de vista da maioria unânime. […] Quando convocadas a decidirem por si mesmas, sem presenciar o julgamento dos demais, as pessoas erram menos do que 1% das vezes. Mas em etapas em que a pressão do grupo apoiava a resposta incorreta, as pesso-as erram 36,8% das vezes. Mais ainda, em uma série de doze questões, não menos do que 70% das pessoas acompanhou o grupo e desafiou as evidências dos seus próprios sentidos pelo menos uma vez” (SUSTEIN, 2006, p. 75-76).

20 Exemplo disso são as “discussões” colocadas sobre os altos índices de criminalidade. Na verdade ra-ramente há um verdadeiro debate acerca de temas de grande relevância, sendo que o espaço públi-co, no qual deveria haver um verdadeiro debate amplo, robusto e plural, frequentemente é ocupado por frases de efeito como as leis brasileiras são muito brandas, a redução da maioridade penal para a prisão dos bandidos mirins, que não levam ao público a riqueza das diversas opiniões, argumentos e lados inerentes ao debate.

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informações do seu interesse. Essa prática parece viável, na melhor das hipóteses, quando a busca gira em torno de informações esportivas locais, mas apresenta gran-de dificuldade quando se trata de questões relativas à política nacional ou estadual ou aos grandes problemas da nação.

Pois bem, vimos na experiência norte-americana os arranjos institucionais entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e interessante papel deste, não só em matéria de “revisão judicial” das leis regulatórias da comunicação, mas na atribuição de sentido, de um lado, da liberdade de expressão da Primeira Emenda da Constitui-ção norte-americana e, de outro, da política pública de comunicação. Sentido este que variou da total autonomia tutelada pela Primeira Emenda, como um fim em si mesma, à promoção dos valores democráticos, participativos subscritos pela Bill of Rigths e traduzidos na expressão we the people. Como bem diz Fiss (1999, p. 110), a ironia dessa experiência é que o Estado “pode ser tanto un amigo como un enemigo de la libertad de expresión; que pode hacer cosas terribles para socavar la democracia, pero también cosas maravillosas para fomentarla”21.

2.3 Lei de Acesso à Informação no Brasil

O Estado brasileiro, através da Lei no 12.527, de 18 de novembro, regulou, em 2011, o acesso à informação previsto nos artigos 5o, XXXIII (direito ao arquivo aber-to), 37, parágrafo 3o, II e 216, parágrafo 2o da Constituição da República. Trata-se de submeter a esta lei os órgãos públicos da Administração ireta dos três poderes da União, o Ministério Público, como também as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controla-das direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Tam-bém as entidades privadas sem fins lucrativos que recebam recursos públicos dire-tamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres. Foi um passo interessante na regulação da informação, relativamente ao acesso aos docu-mentos produzidos ou guardados pelo poder público que revelem a verdade sobre a atuação do Estado, através das suas instituições, no exercício das suas competências.

Essa medida legislativa, a um só tempo, colabora com a política de memória e verdade que está sendo realizada pelo Estado brasileiro, sobretudo em relação ao seu passado autoritário, como também em relação ao seu presente e a efetivação da

21 “Pode ser tanto um amigo como um inimigo da liberdade de expressão; que pode fazer coisas terrí-veis para minar a democracia, mas também coisas maravilhosas para fomentá-la” (tradução nossa).

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participação popular no acompanhamento e controle das políticas públicas. Nessa perspectiva, o artigo 3o da Lei de Acesso à Informação estabelece os princípios que devem nortear o dever de informar do Estado, a saber: (i) observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; (ii) divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações; (iii) utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação; (iv)  fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública; (v) desenvolvimento do controle social da administração pública.

Ao estabelecer tais princípios, o legislador atribuiu ao Estado o dever positivo de transparência, independentemente de requerimento do particular. Essa postura legislativa contribui para a superação da visão liberal do Estado como o inimigo das liberdades, e o torna fomentador dos pressupostos que viabilizam a participação popular e a realização de um debate público adequado e informado. Nesse sentido, a criação de uma fonte confiável, que torna acessível e transparente as ações do Es-tado, contribui para a ampliação da participação popular na medida em que permite a cada cidadão avaliar a atuação dos seus representantes.

O conhecimento dos atos do poder público, especialmente daqueles que decor-rem da ação direta ou indireta dos agentes políticos, é condição sine qua non para a existência de um processo eleitoral legítimo, em outras palavras, uma democracia representativa só tem significado quando os atos dos representantes possam, a par-tir de uma fonte confiável, pública e transparente, ser conhecidos e avaliados pela população. Assim, não basta que as informações de interesse da população sejam publicadas, é necessário facilitar o acesso e a compreensão do que é veiculado. Esta exigência, por conseguinte, requer algumas cautelas, como por exemplo, a utilização de um vocabulário que possa ser compreendido pela maioria da população, inde-pendentemente de qualquer conhecimento técnico de direito, economia, adminis-tração, etc. Quando a utilização de termos técnicos se mostrar inevitável, é impres-cindível a explicação do seu significado, sob pena de se ter uma informação pública e acessível, porém incompreensível aos seus principais destinatários, descumprindo os princípios elencados no artigo 3o, da Lei no 12.527/2011 e a própria Constituição.

Consciente dessa necessidade, o legislador tratou de exigir que as informações sejam fornecidas “mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão” (art. 5o, Lei 12.527/2011), principal-mente no que diz respeito à “administração do patrimônio público, utilização de re-cursos públicos, licitação, contratos administrativos” (art. 7o, VI). A mesma exigência

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é repetida no artigo 8o, com o acréscimo do §2o que exige a divulgação em sítios oficiais da internet (BRASIL, 2011).

O direito ao arquivo aberto (art. 5o, XXXIII), ao qual a Lei no 12.527/2011 conferiu concretude, exige uma postura ativa e transparente do Estado na divul-gação de informações que possam interessar ao cidadão, especialmente no que se refere às despesas públicas. Tal exigência tem estreita ligação com o princípio repu-blicano, que segundo J. J. Gomes Canotilho (2000, p. 224):

significa uma comunidade política, uma unidade coletiva de indivíduos que se autodetermina politicamente através da criação e manutenção de insti-tuições políticas próprias assentes na decisão e participação dos cidadãos no governo dos mesmos.[…]A República assume-se como res publica-res populi para excluir qualquer título de legitimação metafísico. Esta rejeição de legitimação metafísica abrange não apenas as tradicionais justificações de domínio de caráter dinástico-hereditário, divino ou divino-dinástico, mas também as experi-ências modernas de condução dos povos assentes na vontade do chefe (Führerprinzip), na vanguarda do partido único (leninismo) ou na vontade de deus (fundamentalismo). A República é ainda uma ordem de domínio - de pessoas sobre pessoas -, mas trata-se de um domínio sujeito à delibe-ração política de cidadãos livres e iguais. Precisamente por isso, a forma republicana de governo está associada à ideia de democracia deliberativa.

O princípio republicano não pode ser dissociado da efetiva participação do povo no governo, que é do povo, feito pelo povo e para o povo. Para que a participação seja viável é necessário que a Administração seja transparente, a fim de que o cida-dão possa saber como os seus representantes estão utilizando os recursos públicos cuja gestão lhes foi confiada, pois é certo que o conhecer antecede o fiscalizar e o participar. Em vista desse objetivo, a Lei no 12.527/2011 avança ao estabele-cer que o acesso à informação será assegurado mediante a “realização de audiên-cias ou consultas públicas, incentivo à participação popular ou a outras formas de divulgação” (art. 9o, II) (BRASIL, 2011).

Embora a Lei de Acesso à Informação represente um avanço para a concreti-zação do artigo 5o, XXXIII, e para a construção de práticas democráticas, a exigên-cia de transparência na utilização de recursos públicos, decorrentes não apenas da Lei no 12.527/2011, mas também da promulgação de leis estaduais e municipais semelhantes, tem gerado alguns conflitos, especialmente no que diz respeito à di-

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vulgação da remuneração dos servidores públicos e eventual ofensa ao direito à privacidade e à intimidade.

Do enfrentamento dessa controvérsia surgem algumas indagações: (i) a exposi-ção da remuneração dos servidores públicos promove o princípio republicano?; (ii) tal exposição é compatível com o regime democrático?; (iii) há interesse público na divulgação da remuneração, com a discriminação do nome, vencimento, subsídio, provento e lotação dos agentes públicos?; (iv) qual a natureza (pública ou privada) da informação acerca da remuneração dos agentes públicos?; (v) quais as possíveis soluções para o conflito?

Ao se deparar com situação semelhante (SS 3.902), na qual o Município de São Paulo, com base na Lei Municipal no 14.720/2008 e no Decreto no 50.070/2008, determinou a divulgação, no sítio eletrônico da Prefeitura, de lista com o nome de todos os servidores municipais, os respectivos cargos efetivos, cargos em comissão, remuneração bruta mensal, lotação, endereço completo e jornada de trabalho, o Mi-nistro Ayres Britto (voto vencedor), em decisão polêmica, entendeu que as informa-ções divulgadas eram de interesse coletivo ou geral, de modo a afastar a alegação de ofensa à privacidade ou intimidade dos servidores, in verbis:

[…] não cabe sequer falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquan-to agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo ‘nessa qualidade’ (§6o do art.37). E quanto à segu-rança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e fa-miliar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. Estado que somente por explícita enunciação legal rimada com a Constituição é que deixa de atuar no espaço da transparência ou visibilidade dos seus atos, mormente os respeitantes àquelas rubricas necessariamente enfeixadas na lei orçamentária anual, como é o caso das receitas e despesas públicas.

Portanto, a Lei no 12.527/2011 de acesso à informação representa um grande avanço em direção à transparência Administrativa, à viabilização do controle, da participação popular e da construção de práticas democráticas, ainda que algumas situações práticas se mostrem problemáticas e controvertidas.

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3 Conclusão

Pois bem, não há outra possibilidade para o constitucionalismo e a democracia senão articular as liberdades básicas, entre essas a liberdade de expressão e todas suas manifestações, com a igualdade e todas suas manifestações. Todos, indistinta-mente, merecem ser tratados com igual respeito e consideração e todos tem igual direito de intervir na resolução dos problemas que lhes afetam em sua comunidade. O Estado, de um lado, deve respeitar a autonomia dos seus sujeitos no sentido da afirmação das suas identidades (que são plurais) e, de outro, deve intervir para que essa autonomia não signifique desrespeito com o outro, ódio, preconceito e discrimi-nação, isto é, abuso. Ainda, deve intervir para promover o necessário debate público e robusto em torno das questões que afetam os seus sujeitos, de forma que todos possam participar justa e igualmente do processo decisório. Essa intervenção pode se dar por meio da execução de políticas públicas, cujo sentido se infere do com-promisso declarado pela Constituição com os direitos fundamentais, entres esses a liberdade de expressão e a igualdade.

As políticas públicas de informação e comunicação exigem a atuação do poder executivo, mas não só. Vimos que na experiência norte americana, através da Fair-ness Doctrine o órgão administrativo enfrentou o Congresso norte-americano, como também a Suprema Corte, promovendo não só um grande debate institucional como complexos arranjos entre os três poderes. No Brasil não tem sido diferente. Desde a Constituição da República de 1988, a execução de políticas de informação e comu-nicação enfrentam o legado autoritário de duas ditaduras, sobretudo a mais recente, civil-militar e, nesse sentido, os arranjos institucionais têm sido complexos e desa-fiadores. As decisões citadas do nosso Supremo Tribunal Federal (caso Ellwanger e caso Gerald Thomas), a omissão legislativa em relação à Lei de Imprensa e a recentíssima Lei de Acesso à Informação nos dão uma amostra do atual estado da arte da liberdade de expressão e sua regulação, como também suas contradições e ironias (para emprestarmos a expressão de Owen Fiss). Este artigo pretendeu, dessa maneira, colaborar com esse instigante e provocador tema, trazendo algumas das inquietações que ele causa, sublinhando mais essas do que, propriamente, as suas possíveis respostas. Isso, pois, acreditamos que a relação entre o constitucionalismo e a democracia é histórica e aberta, apresenta, por isso, avanços e retrocessos e não pode, como diz Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti (2010, p. 41-42), lançar mão de fundamentos absolutos para legitimar o seu sistema de direitos. Há um excesso racionalista no constitucionalismo e na democracia que, por isso

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mesmo, torna-se irracional quando acredita em fundamentos últimos, definitivos e imutáveis. Percebemos, cada vez mais, que permanente é aquilo cujo significado se renova na medida da transformação da sociedade.

4 Referências

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2 A distinção do assédio moral

de figuras afins

RODOLFO MÁRIO VEIGA PAMPLONA FILHO

Doutor e Mestre em Direito (PUC/SP). Mestre em Direito Social (Universidad

de Castilla-La Mancha – Espanha). Professor de Direito (UNIFACS/BA).

Professor da Graduação e Pós-Graduação Stricto Sensu (UFBA).

Juiz do Trabalho (1a Vara do Trabalho de Salvador/BA).

RENATO DA COSTA LINO DE GOES BARROS

Mestre em Direito Privado e Econômico (UFBA). Pós-graduado em Direito e

Processo do Trabalho (JusPODIVM/Faculdade Baiana de Direito). Advogado.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Aspectos configurativos do assédio moral 3 Atitudes que não configu-ram o assédio moral 4 Conclusão 5 Referências.

RESUMO: O assédio moral é um fenômeno destrutivo das relações de trabalho. Para se configurar, deverá apresentar a totalidade dos seus elementos caracterizadores, quais sejam: a abusividade da conduta dolosa, a repetição e prolongamento dessa conduta e o ataque à dignidade psíquica. Nessa linha, outras ocorrências comuns no ambiente laboral como o estresse, o conflito intersubjetivo, a gestão por injúria, as agressões pontuais, as más condições do trabalho, as imposições profissionais, o legítimo exercício do poder disciplinar e o burn out não se confundem com o assédio moral diante da falta desses elementos caracterizadores.

PALAVRAS-CHAVE: Assédio moral Aspectos configurativos Elementos caracterizadores.

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A distinção do assédio moral de figuras afins

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The difference between moral harassment and related figures

CONTENTS: 1 Introduction 2 Formal aspects of moral harassment 3 Attitudes that does not shape according to moral harassment 4 Conclusion 5 References.

ABSTRACT: Moral harassment is a destructive phenomenal of labor relationships. To be featured, it may present the totality of its characteristic elements, which are: the abusiveness from deliberated behavior, the repetition and the spread of this conduct and the attack to psychic dignity. Following this thought, other common incidents in labor environment like the stress, the intersubjective conflict, the injure by manage-ment, the punctual aggressions, the bad working conditions, the professional imposi-tions, the true exercise of disciplinary power and the burn out syndrome does not mis-take themselves with moral harassment towards the lack of characteristic elements.

KEYWORDS: Moral harassment Configurative aspects Characteristic elements.

Diferencia entre el acoso moral y figuras afines

CONTENIDO: 1 Introducción 2 Aspectos configurativos del acoso moral 3 Actitudes que no cons-tituyen acoso moral 4 Conclusión 5 Referencias.

RESUMEN: El acoso moral es un fenómeno destructivo de las relaciones laborales. Para configurarse, todos sus elementos caracteristicos deben estar presentes; son ellos: el carácter abusivo de la conducta dolosa, la repetición y extensión de dicha conducta y el ataque a la dignidad psíquica. Sin embargo, otras situaciones frecuen-tes en el ambiente laboral como el estrés, el conflicto intersubjetivo, la gestión por injuria, las agresiones puntuales, las precarias condiciones de trabajo, las imposicio-nes profesionales y la práctica legítima del poder disciplinar no deben confundirse con el acoso moral dada la falta de estos elementos caracteristicos.

PALABRAS CLAVE: Acoso moral Aspectos configuradores Elementos caracterizadores.

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1 Introdução

O assédio moral vem sendo estudado de maneira intensa nos últimos anos. Por se tratar de um tema multidisciplinar, o assédio moral é alvo de análise

por diversas áreas do saber, dentre essas o Direito. No mundo jurídico, diariamente, diversas pretensões são formuladas e julgadas

acerca da ocorrência desse fenômeno social tão devastador para os trabalhadores.Muito embora seja objeto de análise constante, tem-se percebido que, em mui-

tos casos, figuras afins são tidas como condutas assediadoras, fato esse que carece de maior reflexão.

Nessa linha, propõe-se este estudo a fazer uma análise dessas figuras afins, no intuito de diferenciá-las das condutas assediadoras.

Para tanto, este estudo apresenta um balizamento conceitual do que é o assédio moral, fazendo, em seguida, um comparativo com as outras ocorrências também comuns no ambiente laboral.

2 Aspectos configurativos do assédio moral

Neste tópico, analisar-se-ão os aspectos configurativos do assédio moral, para delimitar conceitualmente os limites caracterizadores do instituto, para, somente após, tecer considerações acerca de figuras análogas, mas distintas.

2.1 Conceito do assédio moral

O assédio moral é um tema que tem despertado grande interesse social em razão das graves repercussões decorrentes de sua ocorrência.

Inúmeros são os trabalhos e as pesquisas que vêm surgindo sobre a presente temática, bem como reportagens e denúncias veiculadas na imprensa. Entretanto, o assédio moral é pouco compreendido e discutido nas organizações brasileiras, sendo bastante corriqueira a confusão com outros fatos sociais também comuns no ambiente laboral.

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Para a vitimóloga1 francesa Marie-France Hirigoyen2 (2001, p. 65), o assédio moral seria:

Toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por compor-tamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à perso-nalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, por em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho.

De semelhante conteúdo e clareza foi o conceito elaborado por Sônia A. C. Mas-caro Nascimento (2004) quando diz que:

O assédio moral se caracteriza por ser uma conduta abusiva, de natureza psicológica, que atenta contra a dignidade psíquica, de forma repetitiva e prolongada, e que expõe o trabalhador a situações humilhantes e cons-trangedoras, capazes de causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica, e que tenha por efeito excluir a posição do emprega-do no emprego ou deteriorar o ambiente de trabalho, durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções.

Complementando os conceitos acima elecandos, contribui Guedes (2003, p. 32) ao evidenciar que “o assédio moral, na verdade, decorre de atitude deliberada de um perverso cujo objetivo é destruir a vítima e afastá-la do mundo do trabalho”.

Sintetizando tais entendimentos, para este estudo, o assédio moral será consi-derado como sendo um conjunto de condutas abusivas e intencionais, reiteradas e prolongadas no tempo, que visam à exclusão de um empregado específico, ou de um grupo determinado desses, do ambiente de trabalho através do ataque à sua dig-nidade, podendo ser comprometidos, em decorrência de seu caráter multi-ofensivo, outros direitos fundamentais, a saber: o direito à integridade física e moral, o direito à intimidade, o direito ao tratamento não discriminatório, dentre outros.

Procura-se, desde já, extrair, de tal definição, elementos caracterizadores que servirão em análises subsequentes, haja vista o corte epistemológico do presente estudo. Dentre eles, destacam-se: (a) abusividade da conduta intencional; (b) repe-tição e prolongamento; e (c) ataque à dignidade do trabalhador. Cada um desses elementos será aprofundado no tópico seguinte.

1 Guedes (2003, p. 28) ensina que o objetivo da ciência denominada “vitimologia” consiste em analisar as razões que levam um indivíduo a tornar-se vítima, os processos de vitimação, as consequências a que induzem e os direitos que podem pretender.

2 Autora do best-seller que mais contribuiu para a divulgação e denúncia do fenômeno em todo o mundo.

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2.2 Elementos caracterizadores

Cabe dizer que, neste estudo, considerar-se-á apenas assédio moral aquilo que preencher a totalidade dos elementos caracterizadores já evidenciados.

O rigor acima apresentado é posto em consonância com o entendimento de Marie-France Hirigoyen (2002, p. 75) quando diz que “a vitimação excessiva termina por prejudicar a causa que se quer defender”. E complementa: “se, com ou sem razão, enxergamos o assédio moral a todo o instante, o conceito corre o risco de perder a credibilidade”3.

Diante da proposta de configurar o assédio moral, bem como do entendimento de que existem peculiaridades em sua reparação, como será visto adiante, o rigor empreendido é utilizado a todo o momento neste estudo.

Analisem-se, pois, os três elementos configurativos básicos.

2.2.1 Abusividade da conduta intencional

Por abusividade de conduta intencional, entende-se como sendo aquela que extrapola os poderes de chefia, visando, exclusivamente, denegrir o trabalhador na sua esfera pessoal.

Muito se tem discutido a respeito desse elemento, tendo a doutrina dividido--se, basicamente, em duas correntes: (a) a subjetiva, que considera a intenção como elemento constitutivo do assédio moral; (b) a objetiva, que considera a in-tenção como um elemento acessório, não sendo esse indispensável para configu-ração de sua existência.

3 Sobre o risco deste descrédito, esclarece Rodenas (2005, p. 10) que: “La indefinición jurídica del concepto de mobbing y las distintas acepciones del término son la causa de que los distintos informes elaborados acerca de su incidencia social presenten resultados harto dispares, hasta el punto de que como acertadamente se ha señalado puede existir el peligro de que un fenómeno que es a todas luces real se trivialice de tal manera que acabe por resultar irrelevante, bien por saturación o abuso, bien incredulidad o subestimación de su alcance efectivo, bien por incom-prensión del mismo ante el cariz moralista y personalista – intimista – que adquiere en los tra-bajos dominantes (…); este desencuentro o falta de convergencia en cuestiones fundamentales, está llevando a una decantación judicial del comportamiento prohibido que puede generar una frustración extrema, y de nuevo peligroso en las personas afectadas, con pérdida irreparable para miles de ciudadanas y ciudadanos”.

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Nesse sentido, esclarece Rodenas (2005, p. 14):

En la actualidad se aprecian claramente dos concepciones diferenciadas del concepto de acoso moral en el trabajo, una subjetiva y otra objetiva en función a considerar la internacionalidad como elemento constitutivo del acoso moral en el trabajo, o a entender que la intencionalidad supone en realidad un elemento accesorio del concepto de acoso moral en el trabajo, cuya concurrencia no resulta imprescindible para apreciar su existencia4.

Filia-se, entretanto, este estudo à corrente subjetiva5, entendendo ser o assédio moral uma conduta intencional6, logo dolosa, sendo capaz de constranger a vítima, ao explicitar sentimentos de humilhação e inferiorização.

Destaca Guedes (2003, p. 33), acerca dessa conduta dolosa, que:

Com efeito, estamos tratando daquelas atitudes humilhantes, repetidas, que vão desde o isolamento, passam pela desqualificação profissional e terminam na fase do terror, em que se verifica a destruição psicológica da vítima. As razões de natureza pessoal podem ser a inveja que um colega desperta em outro ou podem revelar uma forma de o chefe esconder sua limitação intelectual ou profissional. Mas existe ainda aquela espécie de assédio moral desencadeada pela própria empresa que acredita nesse tipo de perversão, seja para aumentar a produção, seja para se livrar daqueles empregados incômodos.

Sobre esse elemento, Luiz de Pinho Pedreira da Silva (2004, p. 102) destaca a relevância jurídica representada pela conduta em razão da “ilícita finalidade de dis-criminar, marginalizar ou, de qualquer outro modo, prejudicar o trabalhador”.

4 Atualmente, são claramente vistas duas concepções diferenciadas do conceito de assédio moral no trabalho, uma subjetiva e uma objetiva em função de se considerar a intenção como um elemento constitutivo de assédio moral no trabalho, ou de se entender que a intenção é realmente um elemen-to acessório do conceito de assédio moral no trabalho, cuja ocorrência não seja imprescindível para a sua existência (tradução nossa).

5 Esclarece Rodenas (2005, p. 15) que, pela corrente objetiva, o assédio moral é definido como: “un com-portamiento atentatorio a la dignidad de la persona, ejercido de forma reiterada, potencialmente lesivo y no deseado, dirigido contra uno o más trabajadores, en el lugar de trabajo o por consecuencia del mismo”.

6 Segundo Piñuel (2003, p. 72): “El mobbing es un proceso de destrucción deliberado e intencional contra una persona, la víctima, que es seleccionada y resulta el objetivo de todas las agresiones psicológicas mencionadas. Por lo tanto el acoso psicológico no es aleatorio o casual sino plenamente intencional o causal. Se puede verificar esto último en los rasgos de selección de la víctima que atraen a los acosadores”.

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Assim, o assédio moral pode ser entendido como um conjunto de atos que, in-tencionalmente, pressionam o trabalhador a abandonar o seu trabalho7, em razão de ver-se denegrido no ambiente laboral.

Sobre o tema, pontua Callejo (2008, p. 81):

A mi modo de ver, la esencia del mobbing, la tendenciosidad de este compor-tamiento abyecto, es la denigración laboral que busca provocar la autoelimi-nación del trabajador (abandono laboral o en su defecto la baja médica). Este elemento teleológico, me parece fundamental tener-lo siempre presente em toda definición de mobbing, pues si algo caracteriza a éste es el objetivo: que la persona se elimine laboralmente, mediante su ataque psicológico. De aqui se extrae, que el repudio por parte de la conciencia social laboral, deriva de dos vias, tanto por buscar la denigración laboral, como por buscar la autoeli-minación8.

De grande relevância mostra-se, pois, esse primeiro elemento.

2.2.2 Repetição e prolongamento dessa conduta

Há, ainda, a necessidade de que a conduta seja prolongada e reiterada no tempo, afinal, por ser um fenômeno de natureza psicológica, não há de ser um ato isolado ou esporádico capaz de trazer lesões psíquicas decorrentes do assédio moral à vítima9.

7 Adiante, sobre a extensão da intencionalidade, posiciona-se Rodenas (2005, Pág. 27): “Por ello, sea cual fuere la intencionalidad, aun siendo evidente que siempre habrá alguna, hay que estimar la existencia de acoso moral en el trabajo siempre que se produzcan conductas atentatorias a la dignidad de la persona, susceptibles de causar un daño y ejercidas de forma reiterada, y ello con independencia de cual sea la finalidad que persiga el acosador, de forma que el concepto de acoso moral habrá de ser ampliado a otros supuestos de violencia psíquica que tengan una finalidad distinta a la destrucción de la víctima, siempre que se trate de comportamientos atentatorios a la dignidad del trabajador y que concurran el resto de los elementos definidos anteriormente como constitutivos de acoso moral”.

8 “ Em minha opinião, a essência do assédio moral é a degradação laboral que busca provocar a auto-eli-minação do trabalhador (abandono do trabalho ou seu afastamento por licença médica). Este elemento teleológico, parece-me fundamental tê-lo sempre presente em toda definição de assédio moral, porque se alguma coisa caracteriza-o é o seu objetivo: que a pessoa seja eliminada do trabalho, por meio do ataque psicológico. Daqui se extrai que o repúdio por parte da consciência social laboral, decorre de duas vias, tanto por buscar denegrir o trabalho, quanto por buscar a auto-eliminação” (tradução nossa).

9 Reformando uma sentença, pela inexistência do assédio moral, fundamentou o E. Tribunal Regional do Trabalho da 5a Região que: “No caso em questão, não vislumbra este Juízo ad quem qualquer comprovação acerca da intensa violência psicológica sobre a Obreira, nem tampouco um conjunto de práticas perpetradas pela Recorrente que tenham se prolongado no tempo, e que fossem hábeis a acarretar dano psíquico à Recorrida ou sua marginalização no ambiente de trabalho” (BRASIL, 2007).

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Para Luiz de Pinho Pedreira da Silva (2004, p. 102), esse seria o principal elemen-to característico da ilicitude do mobbing, “devendo a perseguição ter uma frequência quase que diária”.

Sobre o tema, Guedes (2003, p. 27) destaca que:

No começo de 1984 Heinz Leymann publica, num pequeno ensaio cien-tífico, o resultado de uma longa pesquisa pela National Board of Occupa-tional Safety and Health in Stokolm, no qual demonstra as conseqüências do mobbing, sobretudo na esfera neuropsíquica, sobre a pessoa que é ex-posta a um comportamento humilhante no trabalho durante certo lapso de tempo, seja por parte dos superiores, seja pelos colegas de trabalho. Os estudos de Leymann se desenvolveram, sobretudo na Suécia, para onde se transferira em meados dos anos cinqüenta, e evidenciam que em um ano 3,5% dos trabalhadores, de uma população economicamente ativa de 4,4 milhões de pessoas, sofreram perseguição moral por um período superior a 15 meses. Leymann estabeleceu que, para caracterizar a ação como de mobbing, era necessário que as humilhações se repetissem pelo menos uma vez na semana e tivessem a duração mínima de seis meses. A esse tipo de violência ele denominou de psicoterror.

Em seguida, pontua ainda Guedes (2003, p. 34) que:

É fundamental, segundo os especialistas, para que se possa falar de assé-dio moral, o requisito da duração do tempo. A violência psicológica deve ser regular, sistêmica e durar no tempo. Segundo os suecos, pioneiros no tratamento deste fenômeno, é necessário que os ataques se verifiquem pelo menos uma vez na semana e a perseguição dure pelo menos 6 meses.

Nesse sentido, foi decidido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 6a Região:

DANOS MORAIS. ASSÉDIO MORAL. NÃO CONFIGURADO. INDEVIDA INDE-NIZAÇÃO REPARATÓRIA. O assédio moral decorre de tortura psicológica atual e continuada consubstanciada no terror de ordem pessoal, moral e psicológico, praticado contra o empregado, no âmbito da empresa, poden-do ser exercitado pelo superior hierárquico, por grupo de empregados do mesmo nível e pelos subordinados contra o chefe, isto é, pode ocorrer no sentido vertical, horizontal e ascendente, tem como fito tornar insuportá-vel o ambiente de trabalho, obrigando-o a tomar a iniciativa, por qualquer meio, do desfazimento do contrato de trabalho. (...). Tratamento grosseiro, autoritário, de caráter impessoal e descontinuado, em período inferior a três meses, hipótese sub judice, não autoriza condenação em danos morais lastreado em terror psicológico. (BRASIL, 2003)

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Fundamentando a sua decisão, após fazer referência à obra “Terror Psicológico no Trabalho” de Márcia Novaes Guedes, o referido juiz relator dispôs que:

Por outro lado, o tempo em que a recorrida trabalhou com o Sr. Sérgio Vilar, aproximadamente dois meses e meio, não autoriza o deferimento de inde-nização por danos morais decorrentes de assédio moral, porquanto, con-forme entendimento doutrinário, necessário um prazo mínimo de 06(seis) meses para a sua configuração. (BRASIL, 2003)

Muito embora os argumentos trazidos pela aludida decisão, filia-se o presente trabalho à posição adotada por Hirigoyen (2001), que entende não ser necessária essa regularidade e esse prazo para que o fenômeno seja reconhecido, sendo evi-dentemente indispensável o prolongamento no tempo por meio de mais de um ato.

Afinal, exigir-se um prazo determinado, com uma frequência mínima semanal de ocorrências, mostra-se desarrazoável, pois desconsidera as peculiaridades do caso concreto10.

E, sobre o prolongamento no tempo da conduta assediante, dispõe Callejo (2008, p. 80) que:

Dicho plan requiere de uma permanencia em el tiempo: para que pueda hablar de um comportamiento “tendente a”, es necessário que tales manifestaciones de voluntad se repitan a lo largo de um período, pues de lo contrario estarí-amos ante um hecho pontual y no ante uma situación de mobbing. En este punto me parece importante rechazar de forma franca la exigencia de um con-creto plazo temporal para poder hablar de mobbing, pues una cosa es que se lleguen a apreciar casos especialmente graves o finales, y otra cosa es decir que hasta que no se llega a esse punto, no estamos ante uma situación de mobbing. La presión laboral tendenciosa se produce trás um cierto tiempo que requiere todo plan, pero sin necesidad de un tiempo concreto, el cual por cierto, estará en funcion entre otros motivos, de la intensidad del concreto hostigamiento.11

10 Sobre o tema, entende Peduzzi (2012): “A doutrina fixou o prazo, inicialmente de seis meses, como suficiente para caracterizar o assédio moral, mas eu já vi que a jurisprudência é muito flexível em relação a isso. Pode ser um prazo até um pouco menor, mas tem que haver uma continuidade, não é um ato isolado”.

11 “Este plano requer um tempo de permanência: para que se possa falar em um comportamento “ten-dente a”, é necessário que tais manifestações de vontade se repitam durante um período, caso con-trário, estaríamos diante de um fato pontual e não de uma situação de assédio. Neste ponto, parece--me importante rejeitar a exigência de um prazo específico para poder-se falar em assédio moral, porque uma coisa é que se aprecie casos especialmente graves, e outra coisa é dizer que até que se chegue a este ponto, não estamos diante de situação uma assédio moral. A pressão intencional no trabalho ocorre depois de certo tempo que se requer no plano, porém sem necessidade de um tem-po específico, o que vai depender, entre outras razões, da intensidade de assédio” (tradução nossa).

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Isso não quer dizer, todavia, que o dano decorrente de um único ato não venha a ser ressarcido, afinal, é sabido que o trauma psicológico decorrente de uma violência não precisa de repetição para se efetivar, entretanto essa conduta danosa não pode ser tida como assédio moral.

O assédio moral caracteriza-se por ser um processo12 no qual há um verdadeiro massacre psíquico ao trabalhador, que, na maioria das vezes, reflete na sua autoestima.

Pode-se dizer, portanto, que é propriamente um conjunto de atos, interdepen-dentes entre si, para persecução de sua finalidade destrutiva do trabalhador, alvo desse desumano processo.

Essa repetida humilhação interfere na vida do assediado de modo direto e oca-siona graves danos à sua saúde mental e física, que podem evoluir para a incapaci-dade laborativa, o desemprego, ou mesmo a morte por doença ou suicídio.

Nas palavras de Hirigoyen (2002, p. 17), “cada ataque tomado de forma isolada não é verdadeiramente grave; o efeito cumulativo dos microtraumatismos freqüen-tes e repetidos é que constitui a agressão”.

Conclui-se, então, que o arco temporal deverá ser tal que cause um impacto real de verdadeira perseguição pelo assediador.

2.2.3 Ataque à dignidade do trabalhador

Pode-se dizer, sinteticamente, que a dignidade do trabalhador decorre do prin-cípio constitucional que tutela os valores pessoais dos trabalhadores, sejam eles religiosos, morais, dentre outros.

Como já tratado, tal arcabouço protetivo é denominado de direitos e garantias fundamentais que, nas palavras de Alexandre de Moraes (2002, p. 60), “são, em re-gra, de eficácia e aplicabilidade imediata”.

12 Segundo Guedes (2003, p. 51-52), o assédio moral é um processo articulado no qual é possível distin-guir situações e acontecimentos sucessivos. Diante disso, tanto Leyman quanto Harald Ege estabele-ceram fases distintas; destaca-se, dentre estas, a proposta de Harald Ege, pois foi aplicada à situação italiana que, frise-se, tem semelhança cultural com os demais povos de origem latina. Previu esse es-pecialista as seguintes fases: (1) condição zero: presença de condições favoráveis ao desenvolvimento do mobbing; (2) fase um: individuação da vítima; (3) fase dois: vontade consciente já evidente, entre-tanto a vítima ainda não apresenta sintomas da doença de tipo psicossomático; (4) fase três: surgem os primeiros sintomas – insegurança, ânsia, insônia, distúrbios digestivos; (5) fase quatro: objetividade e publicidade do fenômeno; (6) fase cinco: sério pioramento das condições da vítima, que começa a sofrer depressão com mais ou menos gravidade e a fazer uso de psicotrópicos e terapias com escasso ou quase nenhum resultado; (7) há exclusão da vítima do ambiente do trabalho, seja por demissão “vo-luntária”, dispensa, afastamento, para tratamento de saúde ou mesmo com o ato extremo do suicídio.

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Destaca-se que o art. 5o, incisos V e X, da Constituição Federal prevê o direito à indenização por dano material e moral decorrente da violação da imagem, bem como da intimidade, da vida privada e da honra, consagrando ao ofendido a total reparabilidade em virtude dos prejuízos sofridos.

A título exemplificativo, tem-se que uma conduta muito comum, em processo de assédio moral, é a discriminação13.

Tal discriminação, no entender de Joaquim B. Barbosa Gomes (2001, p. 19) seria:

[...] qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos polí-tico, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública.

Nesse sentido, aliada à finalidade de exclusão do trabalhador do ambiente de trabalho, torna-se evidente que a discriminação14 atinge diretamente a dignidade do trabalhador, principalmente no que concerne ao desrespeito em relação ao direito ao tratamento igualitário, conduta essa que certamente trará danos ao empregado.

Alexandre de Moraes (2002, p. 77) lembra que “como decidiu o Superior Tribu-nal de Justiça, sobrevindo, em razão de ato ilícito, perturbações nas relações psíqui-cas, na tranqüilidade, nos sentimentos e nos afetos de uma pessoa, configura-se o dano moral, passível de indenização”.

3 Atitudes que não configuram o assédio moral

13 Diante de uma conduta discriminatória comprovada, já entendeu o TRT da 17a Região: “INDENIZA-ÇÃO POR ASSÉDIO E DANOS MORAIS. CONDUTA DISCRIMINATÓRIA. É vedada pelo ordenamento jurídico pátrio a discriminação contra empregado pelo fato de ter exercido o direito de ação asse-gurado no art. 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal, o que implica violação ao princípio da digni-dade da pessoa humana e ofensa aos direitos da personalidade do cidadão trabalhador, ensejando, assim, a indenização por danos morais (BRASIL, 2006).”

14 Segundo Rodenas (2005, p. 62): “El artículo 37. cinco de la Ley 62/2003 incluye como nueva causa de despido disciplinario el acoso por razón del origen racial o étnico, religión o convicciones, discapacidad, edad u orientación sexual al empresario o a las personas que trabajan en la empresa [art. 54.2 g)ET], de forma que tipifica como causa de despido lo que hemos venido calificando como acoso moral discrimina-torio, es decir, el que aparece vinculado a los comportamientos discriminatorios expresamente recogidos en la nueva causa de despido, más habida cuenta que dichos comportamientos hostigadores no agotan los supuestos de discriminación, habrá de admitirse que los restantes supuestos de acoso moral en el trabajo, mediando o no discriminación, deberán ser sancionados por el empresario acudiendo a lo esta-blecido en los apartados c) y d) del art. 54.2. ET, como venía ocurriendo con anterioridad a la entrada en vigor de la Ley 62/2003”.

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Por ser um fenômeno complexo, muitas vezes, acontecem pequenas confusões decorrentes da imputação a outros fenômenos do status de assédio moral.

Veja-se, no entanto, que não haverá mais qualquer tipo de equívoco caso seja per-quirida, nesses fenômenos, a presença dos elementos caracterizadores do assédio moral.

Como se trata do corte epistemológico deste artigo, observe-se, em tópicos separados, cada uma destas figuras análogas, constantemente confundidas, de forma injustificada.

3.1 Assédio sexual

A finalidade maior do assédio moral é a exclusão das pessoas assediadas do meio de trabalho. Para tanto, estas pessoas são expostas a situações de desigualda-des propositadamente.

Tal situação de tratamento diferenciado também ocorre no assédio sexual, em que o assediador escolhe o indivíduo que vai constranger, tratando-o diferente-mente dos demais.

Muito embora haja tal semelhança, o assédio moral configura fenômeno di-verso do assédio sexual. Veja-se.

Inicialmente, cumpre asseverar que o “assédio” é a terminologia adotada para designar toda a conduta que cause constrangimento psicológico ou físico à pessoa.

Nas palavras de Marie France Hirigoyen (2002, p. 15) assediar é “submeter sem trégua a pequenos ataques repetitivos”.

Acerca da diferenciação do assédio sexual em relação ao assédio moral, diz Peduzzi (2012):

O assédio sexual tem como finalidade obter vantagem, mas o objetivo no assédio moral é desestabilizar a pessoa, fragilizando e levando-a a pedir demissão, ou aderir ao PDV, ou requerer aposentadoria ou uma transfe-rência. Então o objetivo é desestabilizar para pôr fim ao vínculo. Isso é a construção, porque ainda não existe a tipificação, mas essas foram as características que a doutrina e a jurisprudência desenvolveram. Foi muito comum o empregado que não queria aderir ao PDV e colocar fim ao con-trato, sendo mais fácil desprezá-lo do que lhe dizer que havia perdido o emprego. Ou seja, se a pessoa não é instruída, ela diz, deixa para lá, até que se canse e peça para ir embora, arrume outro emprego. Isso ocorre muito, um representante qualquer, principalmente em grandes organizações.

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Diferentemente do assédio moral, o assédio sexual caracteriza-se pela conduta de natureza sexual, a qual deve ser considerada repetitiva, sempre repelida pela vítima e que tenha por fim constranger a pessoa em sua intimidade e privacidade.

Rodolfo Pamplona Filho (2001, p. 36) definiu o assédio sexual como sendo “toda conduta de natureza sexual não desejada que, embora repelida pelo destina-tário, é continuadamente reiterada, cerceando-lhe a liberdade sexual”. Analisa ainda que, por força “de constituir em uma violação do princípio da livre disposição do próprio corpo, essa conduta estabelece uma situação de profundo constrangimento e, quando praticada no âmbito das relações de trabalho, pode gerar consequências ainda mais danosas”.

Exige-se, pois, para configuração do assédio sexual, a perseguição sem trégua, sob a forma de pressão direta ou psicológica, com o uso do poder, objetivando obter do assediado os favores íntimos que ele efetivamente não quer conceder.

Em tópico anterior, tratou-se dos conceitos, bem como dos elementos caracteri-zadores do assédio moral. Desse modo, a despeito de inexistirem dúvidas acerca da diferenciação dos institutos, perante o caso concreto a distinção entre assédio sexu-al e moral nem sempre é clara, pois muitas vezes tais práticas aparecem imbricadas.

A psicanalista e vitimóloga francesa Marie-Francie Hirigoyen (2001, p.101) ana-lisa, como exemplo, o filme Assédio Sexual (Disclosure, no original), de Barry Levinson. Diz a autora:

No filme Assédio Sexual, de Barry Levinson, vemos como uma empresa tor-na possível uma tentativa de destruição de um indivíduo por outro. A his-tória desenrola-se em uma empresa de Seattle, especializada na fabricação de material eletrônico. Quando se dá a fusão com outra firma que trabalha com programas, é preciso nomear um responsável. Meredith (que tem no papel de Demi Moore) obtém essa inesperada promoção, em detrimento de Tom (representado por Michael Douglas), que tinha, no entanto, mais ex-periência, profissionalismo e competência no caso. Poderíamos pensar que ela saborearia tranqüilamente a sua vitória... Nada disso: ela quer também a cabeça de seu rival, pois acima de tudo ela tem inveja da felicidade dos outros. Tom é homem saudável, feliz junto a uma mulher meiga e dois fi-lhos encantadores. Meredith, que já havia sido sua amante, não pode tomar esta simples felicidade e resolve destruí-lo. Para isso, ela se serve do sexo como uma arma. Faz-lhe propostas, que ele rejeita. Ela se vinga acusando-o de assédio sexual. A agressão sexual não passa de um modo de humilhar o outro, de trata-lo como objeto, para finalmente destruí-lo. Se a humilhação sexual não se mostra suficiente, ela encontra outros meios de “demolir” a sua vítima. (grifo no original)

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Pertinente a esse caso é a ponderação feita por Guedes (2003, p. 41) ao dizer que “o assédio sexual pode muito bem constituir a premissa para desencandear uma ação de abuso moral, transformando-se na vingança do agressor rejeitado”.

O TRT da 17a Região, enfrentando esta questão, assim entendeu:

INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL E ASSÉDIO SEXUAL INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. O assédio sexual é conduta tipificada no artigo 216-A do Código Penal, como crime contra a liberdade sexual. No entanto, sob o prisma do Direito do Trabalho o assédio sexual deve ser visto de forma mais ampla, levando em conta a prática de reiteradas condutas repelidas pelo empregado que violem a sua liberdade sexual. Destarte, desvinculada da figura penal, a doutrina trabalhista tem aponta-do duas espécies distintas de assédio sexual, quais sejam, o assédio sexual por chantagem (assédio ‘quid pro quod’) que se traduz numa retribuição do favor sexual por uma vantagem, geralmente evidenciado por um abuso de poder do superior hierárquico e, também, o assédio sexual ambiental ou por intimidação que pode ocorrer tanto em sentido vertical como horizon-tal, traduzido num processo intimidatório de hostilização. Se de um lado afigurem-se ambos de difícil comprovação, de outro por vezes se apre-senta como sutil a sua distinção do assédio moral propriamente dito, por vezes revelado em gracejos de ordem sexual, com indesejáveis liberdades físicas através de abraços e beijos, criando situações ofensivas de abuso. Hipótese em que restou demonstrada a prática de assédio moral e sexual à reclamante pelo gerente do estabelecimento da reclamada. Configurada violação ao art. 5o, X, da CF/88. [...] (BRASIL, 2010)

Ainda sobre essa questão esclarece Pamplona Filho (2006):

Todavia, a diferença essencial entre as duas modalidades reside na esfera de interesses tutelados, uma vez que o assédio sexual atenta contra a liber-dade sexual do indivíduo, enquanto o assédio moral fere a dignidade psí-quica do ser humano. Embora ambos os interesses violados sejam direitos da personalidade, não há que se confundir as duas condutas lesivas, embo-ra seja possível visualizar, na conduta reiterada do assédio sexual, a prática de atos que também atentam contra a integridade psicológica da vítima.

Essa coexistência de processos de assédio sexual e assédio moral pode fazer-se presente em todos os meios profissionais e em todos os escalões de hierarquia. É sempre difícil de provar, a menos que apareçam testemunhas, pois o agressor nor-malmente nega a ocorrência.

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3.2 O estresse no ambiente laboral

O estresse é um estado de tensão decorrente de fatores variados, dentre os quais destaca-se o receio diante de novos desafios profissionais. O indivíduo, frente a essa situação, sente-se pressionado, fato que faz com que se estabeleça uma an-siedade para resolução do objeto gerador dessa tensão.

O reflexo do estado de estresse normalmente extrapola o ambiente profissional, interferindo em toda a vida social do indivíduo.

Por essas características, sinteticamente expostas, pode-se observar que o es-tresse por si só não configura assédio moral, afinal não há qualquer dos elementos caracterizadores evidenciados.

Entretanto, cabe dizer que, assim como no assédio sexual, o estresse pode vir acompanhado da intenção de assediar moralmente, sendo um instrumento deste processo de perseguição.

Nessa situação, presente a intenção de humilhar e excluir, através de condutas hostis, reiteradas e prolongadas, que causem dano à integridade psíquica-emocional, restará evidenciado o assédio moral.

3.3 O conflito intersubjetivo no ambiente de trabalho

O conflito é ato bilateral e explícito. Neste, há a discordância incontestável en-tre as partes que tentam convencer o outro de sua posição.

Pode-se dizer que essa modalidade de conflito laboral representa um campo favorável à dialética, em que tese e antítese se conformam com o intuito de chegar a uma síntese. Nesse sentido, expõe Guedes (2003, p. 35):

O conflito foi sempre visto pelos seus aspectos negativos. Moldada pela disciplina militar que herdou do exército, a fábrica (e ainda hoje, a moder-na organização produtiva) prima por evitar o conflito. Temido, o conflito é afugentado, abrindo espaço para a hipocrisia. Estamos de acordo com Do-menico De Masi, que, apoiado em Half Darendorf, afirma que o conflito no interior de uma empresa não é um fator negativo, mas positivo, o conflito impulsiona, escancara as adversidades, dando oportunidade para todos se posicionarem. O conflito, quando bem administrado, favorece a criatividade e a mudança em sentido positivo. Ao contrário, o culto de relações pouco transparentes, ambíguas, dissimuladas, pode favorecer o desenvolvimento do assédio moral.

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É evidente que dentro do conflito poderá haver atos hostis, entretanto, a evi-dência desses favorece o seu combate imediato, afinal, nessas situações, ambas as partes têm a oportunidade de se manifestar sobre tudo.

Ou seja, o simples desentendimento não ensejará o direito de pleitear indeni-zação por danos morais. Nesse sentido, já decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 5a Região:

ASSÉDIO MORAL. INDENIZAÇÃO. NÃO CONCESSÃO. A existência de simples desentendimento ou discussão entre empregado e empregador, que gera ofensas mútuas, não pode dar causa ao pagamento de indenização por dano ou assédio moral. Compete ao julgador investigar se, de fato, ocor-reu o dano alegado e se ele atingiu, através de atos sucessivos, a honra, a imagem ou a vida privada do ofendido, sob pena de fomentar a chamada “indústria do dano moral na Justiça do Trabalho”, por meio de proposituras de reclamações, consideradas verdadeiras aventuras judiciais, nas quais se visa, em verdade, encobrir sob o manto da compensação pelo dano sofrido, o nítido propósito da parte de enriquecer-se ilicitamente. (BRASIL, 2006)

Já, no assédio, há o não falado, o escondido. Segundo Menezes (2002, p. 12), o assédio moral “de regra é sutil, pois a agressão aberta permite um revide, desmas-cara a estratégia insidiosa do agente provocador”. São atitudes que visam, exclusi-vamente, humilhar e denegrir a imagem do ofendido. Não dão, em hipótese alguma, oportunidade de crescimento e aprendizado pessoal.

Por todo o exposto, constata-se que o conflito não deve ser totalmente evitado dentro de uma empresa, pois é instrumento de aperfeiçoamento. Ao contrário disso, o assédio moral, instrumento destrutivo, deve ser preventivamente extirpado das práticas de cultura de gestão.

3.4 Gestão por injúria

Nas palavras de Hirigoyen (2002, p. 28), a gestão por injúria “é o tipo de com-portamento despótico de certos administradores, despreparados, que submetem os empregados a uma pressão terrível ou os tratam com violência, injuriando-os e insultando-os, com total falta de respeito”.

A questão, nesses casos, incide no despreparo do gestor na busca por resul-tados satisfatórios.

A ânsia por crescimento positivo das organizações faz com que os dirigentes “suguem” todas as forças dos seus trabalhadores. Para tanto, muitas vezes, exacer-bam seus poderes diretivos.

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Nesses casos, a ofensa é explícita, diferentemente da ofensa que se verifica no assédio moral, que normalmente é velada. Além disso, toda a coletividade dos em-pregados é atacada na gestão por injúria, o que de fato não poderia caracterizar o animus doloso e excludente do assédio moral.

Nesse sentido, já decidiu o E. Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região que:

DANO MORAL – ASSÉDIO MORAL – PERTURBAÇÃO PSÍQUICA DO EMPREGADO – CONFIGURAÇÃO. ASSÉDIO MORAL. INDENIZAÇÃO. CARACTERIZAÇÃO. O assé-dio moral pressupõe agressão continuada e grave, a ponto de causar per-turbação na esfera psíquica do trabalhador. Revela também discriminação, pois é especificamente dirigida e concentrada na pessoa daquele indivíduo determinado. Serve, ainda, a algum propósito eticamente reprovável. Hipó-tese em que, porém, a indicação é de encarregada que se dirigia a todos, indistintamente, de forma grosseira e inadequada. Ausência de propósito específico e de agressão grave e individualizada à dignidade da trabalha-dora. Conduta que, embora reprovável, não serve, tecnicamente, à carac-terização do assédio moral. Recurso da ré a que se dá provimento, nesse aspecto. (BRASIL, 2007)

Mesma linha seguiu o E. Tribunal Regional do Trabalho da 6a Região ao dispor que:

DANOS MORAIS. ASSÉDIO MORAL. NÃO CONFIGURADO. INDEVIDA INDENI-ZAÇÃO REPARATÓRIA. O assédio moral decorre de tortura psicológica atual e continuada consubstanciada no terror de ordem pessoal, moral e psico-lógico, praticado contra o empregado, no âmbito da empresa, podendo ser exercitado pelo superior hierárquico, por grupo de empregados do mesmo nível e pelos subordinados contra o chefe, isto é, pode ocorrer no sentido vertical, horizontal e ascendente, tem como fito tornar insuportável o am-biente de trabalho, obrigando-o a tomar a iniciativa, por qualquer meio, do desfazimento do contrato de trabalho. [...]No caso dos autos, as atitudes relatadas pela recorrida não eram de cunho pessoal, mas dirigida a todos os gerentes subordinados ao Sr. Sérgio Vilar, demonstrando a inexistência de perseguição a determinado funcionário. Não havia uma “vítima” escolhida e isolada do grupo sem explicações, pas-sando a ser hostilizada, ridicularizada, inferiorizada, culpabilizada e desa-creditada diante dos pares. Quanto muito, poderia se falar em uma admi-nistração autoritária, atingindo arbitrariamente os funcionários do corpo gerencial da instituição financeira. (BRASIL, 2003)

Em contrapartida, a conduta assediadora é dirigida a um empregado ou a um grupo determinado deles, e nunca à sua coletividade indiscriminadamente.

Postas as diferenças, dois aspectos merecem ser pontuados.

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Primeiro, nessa situação de ataque coletivo, um empregado é solidário ao outro, afi-nal, ambos são vítimas, sendo que tal cooperação ajuda a reduzir as mazelas dessa ofen-sa. No assédio moral, só para relembrar, na maioria das vezes, o colega de trabalho não se aproxima do indivíduo atingido com medo de represálias por parte do assediador.

Segundo, o fato dessa conduta não configurar assédio moral não quer dizer que está aquém de eventuais ressarcimentos. Muito pelo contrário, nesses casos, vale destacar, nas palavras de Menezes (2002, p. 13), “o estímulo que deve ser dado à presença do Ministério Público e das entidades sindicais através da ação civil públi-ca e da tutela coletiva em substituição processual, sempre que presente o interesse coletivo ou individual homogêneo”.

3.5 Agressões pontuais

Como já dito anteriormente, o assédio moral15 caracteriza-se por ser uma série de condutas hostis, repetidas e prolongadas.

Deve-se entender que o processo de assédio tem como escopo desestabilizar a vítima. Nas palavras de Menezes (2002, p. 12), “consiste em um processo continuado, ou seja, um conjunto de atos e procedimentos destinados a expor a vítima a situa-ções incômodas e humilhantes”.

Entretanto, inquestionável é o fato de que a agressão pontual, em si mesma, possa trazer danos ao agredido, os quais mereçam ressarcimento.

Sobre este aspecto, destaca Rodenas (2005, p. 24):

El concepto de acoso moral implica la existencia de una conducta reiterada por parte del sujeto agresor, hasta el punto de que sin reiteración no hay acoso. La ausencia de repetición permite descartar como acoso aquellas agresiones al trabajador que se producen de forma aislada y cuya protección jurídica habrá de obtenerse mediante los mecanismos ordinarios que facilita el ordenamiento jurídico. La existencia de una agresión física, los insultos, las amenazas más o menos veladas, incumplimientos contractuales de cualquier naturaleza por parte del empresario, etc. si no son reiterados no pueden configurar el acoso

15 Segundo Callejo (2008, p. 80): “Dicho plan precisa de uma reiteración de comportamientos: ya se ha expresado que una de las diferencias entre el conflicto laboral simple y el mobbing, es que el primero es puntual y el seguno reiterado. La reiteración de comportamientos no es mas que la consecuencia lógica de um plan, de uma actitud tendente a un resultado, pero será em el caso concreto, y solo em él, donde se analizará esa reiteración de comportamientos como evidenciadores de dicho fin”.

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moral y ello sin perjuicio de que buena parte de estas conductas tampoco reu-nirían otros elementos constitutivos de la figura de acoso moral en el trabajo.16

Nesses casos, cabe ao agredido buscar a via judicial para receber o respectivo montante ressarcitório, bem como as verbas rescisórias com o reconhecimento da justa causa do empregador (despedida indireta).

3.6 Más condições do trabalho

É evidente que as condições do trabalho influenciam na qualidade de vida do empregado. O empregador, inclusive, deve oferecer um ambiente salutar17 ao seu obreiro, para que este desempenhe o seu labor de forma digna18.

A preocupação com um meio ambiente saudável, diante de sua relevância, tem sede constitucional, dispondo seu art. 225 que “todos têm direito a um meio am-biente ecologicamente equilibrado, bem como de uso do povo e essencial à sadia

16 O conceito de assédio moral compreende a existência de uma conduta reiterada por parte de um sujeito agressor, sendo que se não existir repetição não há assédio. A ausência da repetição permite descartar como assédio aquelas agressões ao trabalhador que se dão de forma isolada e cuja prote-ção jurídica será obtida pelos mecanismos comuns do sistema jurídico. A existência de uma agressão física, de insultos, de ameaças mais ou menos veladas, quebra de contrato de qualquer espécie por parte do empregador, etc. se não são reiteradas não podem configurar assédio moral sem prejuízo de que muitos desses comportamentos tampouco reunirão outros elementos constitutivos da figura de assédio moral no trabalho (tradução nossa).

17 Diante de um confessado bom ambiente de trabalho, já entendeu o TRT da 17a Região: “ASSÉDIO MO-RAL. DANO MORAL. AUSÊNCIA DE LESÃO A DIREITO DA PERSONALIDADE. DESCABIMENTO. Não cabe indenização por dano moral sob a alegação de que o reclamante foi assediado no emprego no período da estabilidade provisória adquirida após a reintegração judicial, tendo em vista que ele próprio, em depoimento prestado nos autos em que se discutiu a reintegração, afirmou que havia bom ambiente de trabalho” (BRASIL, 2009).

18 Sobre o ambiente do trabalho, em relação ao assédio moral, entende o TRT da 5a Região que: “O assédio moral contra o empregado se configura justamente quando ele é vítima de reiterado abuso emocional no local de trabalho, pelo empregador ou seus prepostos, de forma maliciosa (sem co-notação sexual ou racial), por meio de intimidações, humilhações, descrédito, ameaças ou mesmo isolamento, causando-lhe constrangimento físico ou psicológico. A empregadora tem por obrigação oferecer aos seus empregados um ambiente de trabalho isento de acontecimentos dessa natureza, em que impere o respeito mútuo e onde o trabalhador se sinta dignificado e não, como sói ocorrido, seja constrangido por não atender aos reclamos ilícitos de um seu preposto. Cabe-lhe, portanto, a fiscalização do meio ambiente de trabalho, a fim de reparar as possíveis distorções e excessos que possam resultar em dano. Com isso, previne doenças derivadas do mal-estar dos trabalhadores e também afasta a culpa derivada de sua negligência” (BRASIL, 2006).

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qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defen-dê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 1988).

O parágrafo primeiro do mesmo artigo, no seu inciso V, ainda diz que “para as-segurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (BRASIL, 1988).

Entretanto, nem sempre isso ocorre. Deslocando o foco da presente análise, têm-se situações em que, muito em-

bora a natureza da atividade não clame pela má condição, os empregados são submetidos a esta.

Nessa hipótese, poder-se-á, inclusive, configurar assédio moral caso essas con-dições destinem-se a uma pessoa-alvo, com intuito de desmerecê-la.

São exemplos dessa prática a retirada dos instrumentos de trabalho da vítima (tais como mesas, computadores, telefones e carros), ou, até mesmo, quando a pes-soa é isolada do grupo, colocada em sala com péssimas instalações.

Essa prática repugnante, aparentemente distante, foi bem noticiada através de depoimento colhido em reportagem publicada na Revista Veja de autoria de Edward (2005, p.108):

A empresa em que eu trabalhava foi privatizada e passei a ser pressiona-da a aderir a um plano de demissão voluntária. Como resisti, fui passada de funções executivas para o preenchimento de formulários. Eu e outros colegas fomos abandonados num prédio antigo. Sem cadeiras, sentávamos em latões de lixo. No prédio novo, fomos postos em exposição numa sala de vidro (Maria Aparecida Berci Luiz, 50 anos, ex-gerente de uma empresa).

Entretanto, faz-se necessária uma análise precisa do caso concreto, pois, exem-plificadamente, caso tenha sido adotada alguma conduta legítima para redução de gastos, esta não pode ser entendida como uma conduta assediadora. Nesse sentido, já entendeu o Tribunal Regional do Trabalho da 5a Região:

ASSÉDIO MORAL. INOCORRÊNCIA. Se a prova oral revela que o desliga-mento das luzes e do ar-condicionado atingia a todos os empregados, pois tinham como objetivo a redução de gastos, não resta caracterizado o assé-dio moral alegado pelo empregado. (BRASIL, 2009)

Ademais, necessária também essa análise, pois, muito embora se possa alegar uma situação desumana de trabalho, esta deverá ser demonstrada diante da subje-tividade desta condição. Nesse sentido, mais uma vez, decidiu o TRT da 5a Região:

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DO DANO MORAL / ASSÉDIO MORAL. Não restou demonstrado nos autos a prática de ilícito por parte da empresa de modo a ficar caracterizado o dano ao empregado, no tocante às condições desumanas de trabalho, nem quan-to ao rigor excessivo no tratamento dado pelo seu superior hierárquico. (BRASIL, 2009)

Imprescindível, portanto, a análise das especificidades do caso em concreto.

3.7 As imposições profissionais e o poder disciplinar

Diz Hirigoyen (2002, p. 34-35):

O assédio moral é um abuso e não pode ser confundido com decisões le-gítimas, que dizem respeito à organização do trabalho, como transferência e mudanças de função, no caso de estarem de acordo com o contrato de trabalho. Da mesma maneira, críticas construtivas e avaliações sobre o tra-balho executado, contanto que sejam explicitadas, e não utilizadas com um propósito de represália, não constituem assédio. É natural que todo o trabalho apresente um grau de imposição e dependência.

As situações acima relatadas são juridicamente legítimas. A título de exemplo, cumpre destacar que se tem reconhecido como previsível o desgaste emocional de-corrente da destituição da função de confiança, fruto de uma opção do empregador. Nesse sentido, já decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 5a Região:

DANO MORAL. A reversão ao cargo efetivo, implicando em perda de poder, diminuição de atribuições, consequentemente, o desempenho de funções menos relevantes e a retirada de poderes ao trabalhador, em função da destituição de função de confiança, haveria de produzir desgaste emo-cional ou o sentimento de frustração, perfeitamente previsíveis, eis que vinculados ao sentimento de perda gerado pela destituição do cargo de confiança, não se reconhecendo daí assédio moral se inexistentes provas cabais e consistentes à sua configuração. (BRASIL, 2006)

Acerca da cobrança por produtividade, já decidiu também o Tribunal Regional do Trabalho da 5a Região que:

ASSÉDIO MORAL - INOCORRÊNCIA. Não se reconhece a existência de as-sédio moral capaz de gerar efeito reparatório, quando a alegada pressão do empregador por metas e objetivos, além de genérica, não vai além de cobrança por padrões mínimos de produtividade. (BRASIL, 2007)

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Ademais, sobre o legítimo interesse do empregador em exigir a produtividade de seus funcionários, decidiu o E. Tribunal Regional do Trabalho da 10a Região que:

Dano moral – assédio moral – elementos caracterizadores – exegese - As-sédio Moral. Elementos caracterizadores. O assédio moral está ligado às condições hierárquica e de autoridade do empregador, mais especificamen-te aos desvios no uso destas faculdades, não se confundindo com a ‘pres-são’ psicológica resultante do recrudescimento do mercado de trabalho no qual se insere a atividade do empregado, tampouco com o simples ‘receio de perder o emprego’. O empregador detém legítimo direito de exigir pro-dutividade dos seus empregados, porque assume os riscos da atividade econômica (CLT, art. 2o). Inexistem nos autos elementos que apontem no sentido de a empregada ter sido exposta a situação humilhante ou cons-trangedora, ou mesmo sofrimento psicológico, por ter sido afastada do lo-cal de trabalho ou por ter sido remanejada para outro departamento. Sim-ples desconforto não caracteriza assédio moral e não justifica indenização pretendida. (BRASIL, 2005)

É fato que, em vários contratos de trabalho, existem cláusulas de objetivos a serem atingidos, que terminam por pressionar os empregados. Seria um “assédio clausular”, como evidencia Hirigoyen (2002, p. 35), que, de fato, implicaria a sujeição permanente do obreiro.

Evidentemente, que uma situação de excesso não deverá ser admitida. Nesse sentido, já decidiu o E. Tribunal Regional do Trabalho da 17a Região que:

ASSÉDIO MORAL INSTITUCIONAL. DANO MORAL. Constatado que o recla-mado abusou de seu poder diretivo impondo metas excessivas, bem como exigindo trabalho em desvio de função, colocando em risco a vida do em-pregado, ao exigir que fizesse pessoalmente cobrança de cliente inadim-plente, além de transferir-lhe o risco do negócio ao descontar-lhe do sa-lário valores relativos à inadimplência de clientes e, por fim, despedindo a autora sem justa causa quando seu filho estava doente e ela não podia corresponder às expectativas de produtividade, caracterizado está o assé-dio moral institucional passível de reparação. (BRASIL, 2010)

Em outras situações, deve-se ponderar acerca da motivação praticada pelos ge-rentes e mal recebida pelos funcionários – ou seja, ponderar sobre a comunicação entre os níveis hierárquicos.

Nesses casos, o que se vê é que o dirigente, buscando incentivar, é visto como assediador. Em alguns casos, o equívoco está na forma de se comunicar com os obreiros, porém, outras vezes, o problema está na forma como ele é interpretado.

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Hirigoyen (2002, p. 36), sobre o tema, conclui seu pensamento ao dizer que:

Estamos convictos de que podem contestar que a diferença entre a pres-são legítima de um superior hierárquico para fazer seus empregados tra-balharem e um comportamento abusivo não aparece sempre de maneira evidente. A resposta que se pode dar é que os executivos devem aprender a transmitir suas mensagens de um modo respeitoso e levando em conta a personalidade do empregado.

Outro ponto que merece destaque é acerca do poder disciplinar do empregador, que é inerente à estrutura hierarquizada das empresas.

Trata-se, na realidade, de um verdadeiro poder de punir o empregado, após uma análise unilateral das condutas adotadas por esse.

É evidente que, diante da natureza desse instituto, abusos podem efetivamente acontecer. Entretanto, é lógico que a empresa que atua dentro dos limites do poder disciplinar, apenas punindo aqueles que desrespeitam as normas estabelecidas, não pode ser responsabilizada pela prática de um suposto ato ilícito. Nesse sentido, mais uma vez, decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 5a Região:

ASSÉDIO MORAL - DANO - PUNIÇÕES POR PARTE DA EMPRESA - A empresa que age dentro dos limites do seu poder de direção e mando ao aplicar punições ao empregado que não se atém às normas internas exaradas, nem às tarefas inerentes à sua função, não pratica assédio moral, não havendo ilícito nem conseqüente dano a ser reparado, com base na prova colhida. (BRASIL, 2006)

Nessa linha, somente estar-se-ia diante de uma situação assediadora, caso hou-vesse esse poder diretivo extrapolado os seus limites, no intuito de causar intencio-nalmente um prejuízo ao trabalhador.

3.8 Síndrome de desgaste pessoal ou burn out

A expressão burn out é atribuída a H. Freudenthal, que a definiu como uma síndrome de desgaste físico e mental intenso, produzindo verdadeiro esgotamento, decorrente de um stress laboral crônico.

Como se pode ver, não há como confundi-la com o assédio moral, embora possa fazer parte do conjunto de consequências por ele desencadeadas.

Sobre o tema, observam José Vicente Rojo e Ana Maria Cervera (2005, p. 44-45):

Lo que ahora importa dejar claro es que, de manera general, se entiende que el ‘síndrome de desgaste personal’ no proviene de ningún ataque o acoso

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intencionado, sino de una mala política de gestión empresarial en la que no hay intención alguna de provocar el apartamiento de uno de los componen-tes de la organización.19

Vale destacar, inclusive, que, é sintomático que, na Espanha, a expressão seja traduzida como “síndrome del quemado”, termo muito ilustrativo da dramática situ-ação que acarreta.

4 Conclusão

O assédio moral, como amplamente tratado, é um fenômeno destrutivo das re-lações de trabalho.

Observou-se que o assédio moral, para se configurar, deverá apresentar a totali-dade dos elementos caracterizadores, quais sejam: a abusividade da conduta dolosa, a repetição e o prolongamento dessa conduta e o ataque à dignidade psíquica. Caso não atenda a todos, assédio moral não o é.

Essa rigidez faz-se necessária, a fim de que o instituto não seja banalizado, entendendo-se apenas como assédio moral aquele fenômeno em que se possa visu-alizar os aludidos elementos.

Ou seja, o assédio sexual, o estresse, o conflito intersubjetivo, a gestão por injú-ria, as agressões pontuais, as más condições do trabalho, as imposições profissionais, o exercício do poder disciplinar e o burn out não se confundem com o assédio moral.

É verdade que esses fenômenos afins podem também acarretar a ocorrência de um dano à dignidade do trabalhador, entretanto não podem esses ser tratados como se assédio moral fossem, fenômeno que ainda carece de maior proteção pelo ordenamento jurídico pátrio.

19 “O que agora importa deixar claro é que, de maneira geral, se entende que a “síndrome do desgaste pessoal” não provém de nenhum ataque ou assédio intencional, mas de uma má política de gestão empresarial, na qual não há intenção alguma de provocar a retirada de um dos componentes da organização” (tradução nossa).

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5 Referências

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A distinção do assédio moral de figuras afins

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Artigos

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3 Tutelas constitucionais relacionadas ao

assédio moral na relação de trabalho

EDMILSON ALVES DO NASCIMENTO

Pós-Graduado em Direito Público e do Trabalho (UNIASSELVI).

Bacharel em Direito (UFPB). Analista Judiciário (TRF 1a Região).

Artigo recebido em 26/07/2011 e aprovado em 20/12/2012.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Do princípio da dignidade da pessoa humana no trabalho 3 Do direito ao meio ambiente do trabalho saudável 4 Do direito à honra do trabalhador 5 Do direito à imagem do trabalhador 6 Do direito à privacidade do trabalhador 7 Conclusão 8 Referências.

RESUMO: O presente artigo trata de tutelas constitucionais relacionadas ao assédio moral na relação de trabalho. O assédio, na maioria das vezes, decorre de práti-cas repetitivas de ações humilhantes pelo empregador ou seus prepostos, as quais afrontam a dignidade do trabalhador. Assim, analisaremos entendimentos, conceitos e características de algumas garantias constitucionais estabelecidas em favor dos trabalhadores que, quando violadas, se associam na configuração do assédio moral, tal como o princípio da dignidade da pessoa humana no trabalho, o direito ao meio ambiente do trabalho saudável, a proteção da honra, da imagem e da privacidade. Em conclusão, apontamos que a Organização Internacional do Trabalho tem dado relevância ao tema, pois é uma conduta ilícita que refoge aos interesses sociais por violar direitos fundamentais do trabalhador, devendo os Poderes Públicos, as empre-sas em geral, a sociedade e o Ministério Público se empenharem com mais afinco na aprovação de lei específica coibindo tal prática.

PALAVRAS-CHAVE: Tutelas constitucionais Relação de trabalho Meio ambiente laboral Dignidade humana Assédio moral.

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Tutelas constitucionais relacionadas ao assédio moral na relação de trabalho

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Constitutional protections against moral harassment at work

CONTENTS: 1 Introduction 2 The dignity of the human person 3 The right to a healthy work environment 4 The worker’s right to reputation 5 The worker`s image rights 6 The worker’s right to privacy 7 Conclusion 8 References.

ABSTRACT: This paper deals with the constitutional protection against moral ha-rassment at work. This conduct has often taken the form of the repeated humilia-tion of employees perpetrated by employers themselves or their proxies. Firstly, we intend to examine theoretical perspectives on the constitutional guarantees regard-ing workers, such as the dignity of the human person, the right to a healthy work environment and the protection of the worker’s reputation, image and privacy. Sec-ondly, we indicate how the International Organization of Labor (IOL) has dealt with moral harassment at work, a theme which has increasingly called the Organization’s attention. Finally, we present our argument on the need to adopt legal measures capable of reducing moral harassment at work.

KEYWORDS: Constitutional protections Work relationship Work environment Dignity of the human person Moral harassment.

Las garantías constitucionales contra el acoso moral en el trabajo

CONTENIDO: 1 Introducción 2 El principio de la dignidad humana y las relaciones de trabajo 3 El derecho al entorno laboral saludable 4 El derecho al honor 5 El derecho a la imagen 6 El derecho a la privacidad 7 Conclusión 8 Referencias.

RESUMEN: En este artículo se abordan las garantías constitucionales contra el aco-so laboral, que se manifiesta frecuentemente como la humillación causada por el empleador o sus representantes al empleado. Se analizarán las perspectivas teó-ricas cerca de las garantías constitucionales de que gozan los trabajadores, como el principio de la dignidad de la persona humana y los derechos al entorno laboral saludable, al honor, a la imagen y a la privacidad. Además, se examinará como la Organización Internacional del Trabajo (OIT) ha tratado el acoso laboral, un tema que ha llamado cada vez más la atención de la OIT. Finalmente, presentaremos nuestra opinión respecto la necesidad de aprobarse una ley específica contra la práctica del acoso laboral.

PALABRAS CLAVE: Garantías constitucionales Relaciones de trabajo Entorno la-boral El principio de la dignidad humana Acoso moral.

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1 Introdução

Embora a sociedade ainda disponha de pouco conhecimento sobre o assédio moral na relação de trabalho, o fenômeno não é novo. No decorrer do século XX

– principalmente no período pós-guerra, pelos idos de 1945 – o assédio moral nas relações de trabalho começou a despertar as mentes e as consciências para uma visão protetiva da essência espiritual do trabalhador, algo compreendido em uma dimensão superior à proteção do valor físico ou social do trabalho. A doutrina nos informa que somente na virada deste século é que o tema passou a receber tratamento jurídico, quer por meio da legislação, quer por meio da jurisprudência, embora se afirme que já havia trabalhos sobre o assunto desde os anos 70, sem, contudo, definir o que seria o assédio moral, apenas estudando-o juntamente com o estresse e a saúde laboral.

Uma nova visão do fenômeno ganhou força, com ingredientes oriundos da Re-volução Tecnológica, tais como desemprego decorrente da automação da produção e extrema competição entre os dois polos da relação de trabalho, empregado e em-pregador. Isso sinalizou para o surgimento de determinados valores fundamentais do homem (dignidade, honra, imagem, privacidade, intimidade, igualdade), mais impor-tantes do que o valor material e os valores sociais do trabalho já consolidados em normas jurídicas, sob o manto do princípio da proteção, como metas de prioridade máxima do princípio da proteção. Esses valores fundamentais do homem alcançaram consolidação definitiva pela contínua absorção nas constituições modernas, sendo in-titulados de direitos e garantias fundamentais do cidadão, coincidindo com valores do trabalhador. A partir de então, irradiaram-se para a legislação infraconstitucional.

No mundo, as primeiras investigações sobre as hostilidades sofridas pelo tra-balhador no ambiente laboral foram desenvolvidas no século passado, na década de 80, por Heinz Leymann, psicólogo alemão radicado na Suécia (SOUZA JÚNIOR; AMARAL, 2004, p. 34).

Internacionalmente, outras pesquisas de vulto sobre este fenômeno foram de-senvolvidas. Na França, a psicanalista e escritora francesa Marie-France Hirigoyen é autora de dois livros sobre o assunto: “Le Harcèlement moral: la violence perverse au quotidien” (Assédio moral – A violência perversa no cotidiano) e “Mal-estar no trabalho – Redefinindo o assédio moral, trouxe grande colaboração para ampliação do conhecimento sobre o assédio moral” (SOUZA JÚNIOR; AMARAL, 2004, p.35).

Em nosso país, o debate teve como marco inicial a tradução para o português, no ano de 2000, da obra acima citada “Le Harcèlement moral: la violence perverse au quotidien” e a pesquisa elaborada pela médica do trabalho e professora Margari-

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da Barreto, em sua dissertação de mestrado denominada “Jornada de Humilhações”, defendida em maio daquele ano na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Após a consagração da dissertação de mestrado sobre o assunto, a profes-sora Margarida Barreto, em sua tese de doutorado “Assédio moral: a violência sutil”- PUC/SP – 2005, conduziu uma pesquisa com 42.000 trabalhadores em todo o país, concluindo que um quarto deles relatou já ter passado por algum tipo de humilha-ção ou situação vexatória. Essa pesquisa ressalta que a humilhação do chefe a seus subordinados é mais prejudicial à saúde do que se imagina. São significativos os efeitos no profissional e vão desde a baixa autoestima a problemas de saúde como depressão, angústia, estresse, distúrbios do sono, hipertensão, alteração da libido e pensamentos ou tentativas de suicídio.

No Brasil e no mundo, esse fenômeno maléfico vem ganhando atenção especial da sociologia, da psicologia, da medicina do trabalho, dos administradores e dos juristas. Seja no ambiente de trabalho público ou privado, projeta-se como assunto de suma importância para ser pesquisado no meio acadêmico do Direito. A violência moral ao trabalhador, além de colocar em perigo o emprego ou degradar o ambiente de trabalho, tem levado inúmeras lides aos tribunais. Cotidianamente, esse fenôme-no que assusta pela sua capacidade de destruição física e psíquica do assediado, tem se alastrado. Através de livros, revistas, televisão, jornais, internet etc, tomamos conhecimento dos impactos desse comportamento na sociedade.

A relevância do estudo das tutelas constitucionais relacionadas ao assédio mo-ral nas relações de trabalho se revela inequívoca, visto que o assédio ao trabalhador constitui fato sobre o qual se deparam os operadores do direito, notadamente advo-gados, juízes e promotores de justiça, merecendo, por isso, desenvolvimento especí-fico sobre as tutelas constitucionais que são violadas por tal prática. Nesse sentido, almeja-se colaborar com o estudo do fenômeno, tomando por fundamento o fato de que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) trouxe em seu bojo a proteção a direitos fundamentais da pessoa humana, seguindo a tra-jetória das constituições modernas de outros Estados com inspiração em princípios delineados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, alcançando, assim, a tutela da dignidade da pessoa humana, do meio ambiente do trabalho, da honra, da imagem e da privacidade das pessoas, tutelas essas extensivas ao trabalhador, contudo, muitas vezes violadas pela prática do assédio moral na relação de trabalho.

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2 Do princípio da dignidade da pessoa humana no trabalho

A origem do princípio da dignidade da pessoa humana, segundo Miranda (2000, p. 177), teve sua acolhida nos preceitos oriundos das religiões judaico-cristãs de que “todos os homens são filhos de Deus e no amor ao próximo”.

No âmbito internacional, o organismo com competência e legitimidade para es-tabelecer normas internacionais do trabalho com reconhecimento na promoção dos direitos fundamentais do trabalho é Organização Internacional do Trabalho (OIT). É a única agência do sistema das Nações Unidas com uma estrutura tripartite, onde participam, em situação de igualdade, representantes de governos, de empregado-res e de trabalhadores nas atividades de seus diversos órgãos.

A OIT adota princípios e direitos consonantes com as Cartas Encíclicas elabora-das pelos Papas Leão XIII - Rerum Novarum, datada de 15 de maio de 1891, sobre a condição dos operários; João XXIII - Pacem in Terris, datada de 11 de abril de 1963, que almejava a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liber-dade; João Paulo II - Laborem Exercens, datada de 14 de novembro de 1981, sobre as condições de trabalho humano.

Na Carta Encíclica Rerum Novarum, percebe-se o interesse da Igreja na sua de-dicação à doutrina social, bem como a dificuldade em conciliar os interesses que circundam a relação capital e trabalho, discorrendo sobre as obrigações entre ope-rários e patrões, apontando que o trabalhador tenha consciência de seus deveres e preste de modo fiel e integral o trabalho que se comprometeu livremente mediante contrato, sem que lese o seu patrão. Já em relação ao patrão, no cumprimento de suas obrigações, não deve este tratar os seus operários como escravos e, sobretudo, tem o dever de respeitar-lhes a dignidade humana, com a proibição de trabalhos superiores as suas forças ou em descompasso com os fatores de idade e sexo. Nesse sentido, pontua na Encíclica (LEÃO XIII, 1891):

1. A sede de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril, devia, tarde ou cedo, passar das regiões da po-lítica para a esfera vizinha da economia social. Efectivamente, os progres-sos incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final um temível conflito.

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2. Em todo o caso, estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situ-ação de infortúnio e de miséria imerecida. [...] os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência desenfreada.

Cabe enfatizar que a Carta Encíclica apregoa a intervenção do Estado a fim de pôr limites à força e à autoridade das leis, de modo que, para reprimir os abusos e afastar os perigos, não se deve empregar nada além do necessário. Destaca Barreto (2007, p. 19) que o texto “proteger os bens da alma”, constante na Encíclica Rerum Novarum, guarda larga pertinência com a prática do assédio moral na relação de trabalho, ante o respeito da dignidade da pessoa humana:

23. Muitas outras coisas deve igualmente o Estado proteger ao operário, e em primeiro lugar os bens da alma. [...] A ninguém é lícito violar impunemente a dignidade do homem, do qual Deus mesmo dispõe, com grande reverência, nem pôr-lhe impedimentos, para que ele siga o caminho daquele aperfei-çoamento que é ordenado para o conseguimento da vida interna; pois, nem mesmo por eleição livre, o homem pode renunciar a ser tratado segundo a sua natureza e aceitar a escravidão do espírito; porque não se trata de direitos cujo exercício seja livre, mas de deveres para com Deus que são absolutamente invioláveis. (Grifos nossos)

Na Carta Encíclica Pacem in Terris (JOÃO XXIII, 1963), enfatizou-se a importância do respeito à dignidade humana, levando-se em consideração o momento histórico de inovações técnicas e de progresso científico, no qual se pretende que o homem não seja vítima de sacrifícios no ambiente de trabalho, mas que seja capacitado sujeito do progresso e goze dos resultados em seu favor:

12. Todo o ser humano tem direito natural ao respeito de sua dignidade e à boa fama; direito à liberdade na pesquisa da verdade e, dentro dos limites da ordem moral e do bem comum, à liberdade na manifestação e difusão do pensamento, bem como no cultivo da arte. Tem direito também à infor-mação verídica sobre os acontecimentos públicos. [...]62. É, pois, função essencial dos poderes públicos harmonizar e discipli-nar devidamente os direitos com que os homens se relacionam entre si, de maneira a evitar que os cidadãos, ao fazer valer os seus direitos, não atropelem os de outrem; ou que alguém, para salvaguardar os próprios direitos, impeça a outros de cumprir os seus deveres. Zelarão enfim os po-deres públicos para que os direitos de todos se respeitem eficazmente na sua integridade e se reparem, se vierem a ser lesados.

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É patente a relação das preocupações expostas na Encíclica com a discussão a respeito do assédio moral. Filiando-se a tais preocupações, “aquele que agride a dignidade do seu semelhante”, tendo presente a questão do assédio moral, seja a prática verificada na verticalidade ou na horizontalidade dos relacionamentos, “en-tre superiores e subordinados hierárquicos, ou entre colegas de trabalho do mesmo nível”, seja na escola ou qualquer agrupamento social, o assediador “haverá de assu-mir a responsabilidade por suas próprias ações” (BARRETO, 2007, p. 21). E o poder público deverá estar presente, manter a segurança jurídica e inspirar credibilidade em suas ações e decisões.

A Carta Encíclica Laborem Exercens (PAULO II, 1981) renovou para o mundo a aten-ção dispensada pela Igreja com a questão social, ao mencionar a preocupação com os impactos das transformações no mundo do trabalho e da produção, ao persuadir para que estejam presentes o respeito à dignidade e aos direitos dos homens no trabalho:

II. O TRABALHO E O HOMEM[...] 9. Trabalho e dignidade da pessoaPermanecendo ainda na perspectiva do homem como sujeito do trabalho, é conveniente tocar, ao menos de maneira sintética, alguns problemas que de-finem mais de perto a dignidade do trabalho humano, porque isso irá permitir caracterizar mais plenamente o seu valor moral específico. [...] É sabido, ainda, que é possível usar de muitas maneiras do trabalho contra o homem, que se pode mesmo punir o homem com o recurso ao sistema dos trabalhos forçados nos lager (campos de concentração), que se pode fazer do trabalho um meio para a opressão do homem e que, enfim, se pode explorar, de diferentes ma-neiras, o trabalho humano, ou seja, o homem do trabalho. Tudo isto depõe a favor da obrigação moral de unir a laboriosidade como virtude com a ordem social do trabalho, o que há de permitir ao homem “tornar-se mais homem” no trabalho, e não já degradar-se por causa do trabalho, desgastando não apenas as forças físicas (o que, pelo menos até certo ponto, é inevitável), mas sobretudo menoscabando a dignidade e subjectividade que lhe são próprias.

A OIT, na condição de agência integrante do sistema das Nações Unidas, a fim de assegurar reconhecimento universal na promoção dos direitos fundamentais, esta-belece convenções internacionais de trabalho aplicáveis aos países que as ratificam. Nesse sentido, Canotilho (2003, p. 522) aponta que a proteção internacional de alguns direitos econômicos, sociais e culturais advém também “do cumprimento, através de ratificação pelos órgãos políticos competentes e posterior execução, das convenções da Organização Internacional do Trabalho, sobretudo no que respeita à política social, ao direito de trabalho, ao direito à segurança e à igualdade de tratamento”.

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Tutelas constitucionais relacionadas ao assédio moral na relação de trabalho

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Além disso, é importante o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, por meio do qual se garante o catálago de direitos sociais, econômicos e culturais, impondo-se (art. 16o) o dever de os Estados-Partes apresentarem relatórios sobre as medidas adotadas com vistas a assegurar os direitos reconhecidos no Pacto.

O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do qual o Brasil se tornou signatário, foi aprovado pelo Decreto Legislativo no 226, de 12 de dezembro de 1991, assinado em 24 de janeiro de 1992, entrando em vigor em 24 de fevereiro de 1992 e promulgado pelo Decreto no 591, de 6 de julho de 1992. Destaca, em seu preâmbulo, a sua conformidade com os proclamas da Carta das Nações Unidas, visto que considera o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis que cons-tituem o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. O Pacto requer que os países vinculados comprometam-se com a promoção do respeito e com a efetividade dos direitos relativos à dignidade humana. No que diz respeito ao as-sédio moral, requer a elaboração legislativa sobre a questão, no sentido de tipificar e penalizar esse tipo de conduta que degrada o ambiente de trabalho. E isso pode ser visualizado no texto de algumas convenções da OIT, v. g., na Convenção no 161 - fruto da Assembléia Geral da OIT, realizada em 7 de julho de 1985, ratificada pelo Brasil em 18 de maio de 1990, que dispõe sobre os serviços de saúde no trabalho:

Parte I. Princípios de Uma Política NacionalArtigo 1 Para os efeitos do presente Convênio: a) a expressão serviços de saúde no trabalho designa uns serviços investi-dos de funções essencialmente preventivas e encarregados de assessorar o empregador, os trabalhadores e a seus representantes na empresa sobre:i) os requisitos necessários para estabelecer e conservar um meio ambiente do trabalho seguro e sadio que favoreça uma saúde física e mental ótima em relação com o trabalho;ii) a adaptação do trabalho às capacidades dos trabalhadores, tendo em conta seu estado de saúde física e mental; [...]

Cabe aqui mencionar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada em 10 de dezembro de 1948, pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) no Palais de Chaillot em Paris e tomada como fundamento da maioria das constituições modernas que, nos art. I e XXIII, dispõe que todas as pessoas são iguais em dignidade e têm direito ao trabalho e à existência compatível com a dignidade humana.

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Tais direitos nem sempre foram respeitados. A globalização e a evolução das relações de trabalho tornaram o ambiente de trabalho cada vez mais desumano e competitivo. As crescentes pressões pelo aumento da produtividade incidem direta-mente no meio ambiente do trabalho e trazem repercussões na relação de trabalho. Desse modo, o direito a um ambiente de trabalho digno e saudável, garantido pela Constituição Federal, é atingido frontalmente.

A convivência em um ambiente hostilizante degenera a relação de trabalho, pois atinge diretamente a dignidade e a saúde do trabalhador, dando ensejo ao sur-gimento do que os estudiosos chamam de assédio moral. O assunto carece de uma atenção especial, principalmente por parte de médicos, psicólogos e juristas.

A dignidade da pessoa humana “é vista por Canotilho e Moreira como uma refe-rência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana, enquanto princípio, constitui, ao lado do direito à vida, o núcleo es-sencial dos direitos humanos” (GRAU, 2003, p. 176-177). Nesse sentido, coadunando--se ao alinhamento com as demais constituições modernas e às opiniões expostas por notáveis doutrinadores, conforme mencionado, a CRFB/88, art. 1o, III aponta, como um dos fundamentos da República, a dignidade da pessoa humana (BRASIL,1988).

Indubitavelmente, a prática do assédio moral é considerada uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana tendo em vista que repercute de modo prejudicial na saúde do trabalhador. A dignidade é algo inerente ao ser humano, e como tal, deve ser respeitada e valorizada em qualquer tipo de relação. Prova disso é que a CRFB/88 traz como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa, conforme enfatizado acima. Abordando o assunto, Moraes (2003, p. 128) afirma que a dignida-de da pessoa humana “é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se mani-festa singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fun-damentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. Igualmente sobre o assunto, leciona Carvalho (2004, p. 355) que a dignidade da pessoa humana significa:

[...] não só um reconhecimento do valor do homem em sua dimensão de li-berdade, como também de que o próprio Estado se constrói com base nesse princípio. O termo dignidade designa o respeito que merece qualquer pes-soa. [...] A dignidade da pessoa humana decorre do fato de que, por ser ra-cional, a pessoa é capaz de viver em condições de autonomia e de guiar-se

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pelas leis que ela própria edita: todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas, já que é marcado, pela sua própria natureza, como fim em si mesmo, não sendo algo que pode servir de meio, o que limita, conseqüentemente, o seu livre arbítrio, consoante o pensamento Kantiano.

Vê-se, pelo já exposto, que, ao se estabelecer uma relação do princípio da dig-nidade da pessoa humana no trabalho com o assédio moral na relação de trabalho, é de fácil percepção nas conceituações apresentadas ao primeiro que a prática do assédio moral configura um desrespeito a um direito que é próprio do ser humano, qual seja, o respeito por parte das outras pessoas. Isso porque o assédio vai fron-talmente de encontro ao princípio da dignidade do trabalho humano, haja vista que o agressor trata o operário como se ele fosse uma mera peça descartável de uma máquina, um objeto obsoleto, a atrapalhar a empresa na sua busca incessante pela qualidade total. O assediador “se esquece que antes de tudo o trabalhador é um ser humano, mesmo que este não tenha o perfil desejado por aquele, não pode ser tra-tado como um cancro a ser violentamente extirpado” (PRATA, 2008, p. 206).

Vale ressaltar, no entanto, que a prática do assédio moral não se trata de uma mera lesão a um direito da personalidade. O assédio moral é, antes de tudo, um atentado contra os direitos fundamentais do trabalhador, porque “afeta a seu direito à integridade moral, à sua dignidade e ao direito de não sofrer discriminação e pode afetar em determinados casos outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e de opinião, ou a intimidade” (PRATA, 2008, p. 206).

A ofensa à dignidade da pessoa humana no trabalho constitui quebra do caráter sinalagmático do contrato de trabalho, gerando uma indenização maior e consequên-cias mais significantes no que tange às verbas trabalhistas decorrentes da resolução da relação por justa causa do empregador em favor do empregado, conforme se afigura exemplificativamente no julgado:

EMENTA: ASSÉDIO MORAL - RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO POR JUSTA CAUSA DO EMPREGADOR - INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL - CABIMENTO. O assédio moral, como forma de degradação deliberada das condições de trabalho por parte do empregador em relação ao obrei-ro, consubstanciado em atos e atitudes negativas ocasionando prejuízos emocionais para o trabalhador, face à exposição ao ridículo, humilhação e descrédito em relação aos demais trabalhadores, constitui ofensa à dig-nidade da pessoa humana e quebra do caráter sinalagmático do Contrato de Trabalho. Autorizando, por conseguinte, a resolução da relação empre-gatícia por justa causa do empregador, ensejando inclusive, indenização por dano moral. (BRASIL, 2003a)

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3 Do direito ao meio ambiente do trabalho saudável

As nações, quando discutem questões ambientais, geralmente restringem-se a questões que dizem respeito aos recursos naturais em processo de escassez, à pre-servação da natureza, às políticas sobre desenvolvimento sustentável, ao aqueci-mento global e suas consequências. Contudo, a necessidade de manutenção de um meio ambiente do trabalho saudável nem sempre é enfrentada no cotidiano desses estudos e reflexões. Sobre esta opinião partilha Fernandes (2004, p. 1):

Não obstante o caráter unitário do conceito de meio ambiente, uma vez que se rege por princípios e diretrizes comuns, torna-se imperioso conferir--se maior efetividade às normas e princípios do direito ambiental ao meio ambiente do trabalho, pois, se por um lado, a conscientização da sociedade na preservação principalmente do meio ambiente natural – ar, água, solo, fauna, flora - artificial e cultural, atingiram um nível elevado nos últimos anos, o mesmo não se pode dizer em relação à proteção do meio ambiente do trabalho. Com efeito, mesmo entre os operadores do direito, vê-se certa incompreensão e até antipatia com as normas de medicina e segurança do trabalho, relegando-se a tais normas uma importância menor em compa-ração com as demais normas que compõem o ordenamento jurídico traba-lhista, ligadas à obtenção de conquistas no plano material.

Mas, ainda que timidamente, o meio ambiente do trabalho, nos dias atuais, tem despertado o interesse de estudiosos de psicologia e sociologia, médicos do traba-lho e operadores do direito e da comunidade internacional. A Declaração de Estocol-mo aponta, em seu princípio no 1, que o homem tem o direito fundamental à liberda-de, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presen-tes e futuras. E ainda, sobre princípios do meio ambiente do trabalho dispõe:

Princípio 8O desenvolvimento econômico e social é indispensável para assegurar ao homem um ambiente de vida e trabalho favorável e para criar na terra as condições necessárias de melhoria da qualidade de vida.[...]Princípio 19É indispensável um esforço para a educação em questões ambientais, dirigi-da tanto às gerações jovens como aos adultos e que preste a devida aten-ção ao setor da população menos privilegiado, para fundamentar as bases de uma opinião pública bem informada, e de uma conduta dos indivíduos,

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das empresas e das coletividades inspirada no sentido de sua responsa-bilidade sobre a proteção e melhoramento do meio ambiente em toda sua dimensão humana. É igualmente essencial que os meios de comunicação de massas evitem contribuir para a deterioração do meio ambiente humano e, ao contrário, difundam informação de caráter educativo sobre a necessida-de de protegê-lo e melhorá-lo, a fim de que o homem possa desenvolver-se em todos os aspectos.[...]Princípio 25Os Estados devem assegurar-se de que as organizações internacionais reali-zem um trabalho coordenado, eficaz e dinâmico na conservação e no me-lhoramento do meio ambiente. (ONU, 1972, grifos nossos)

Vê-se, assim, que, encravado no vasto campo ambiental, está o problema do meio ambiente do trabalho que, embora tenha a função de gerar riquezas, quando não administrado de forma equilibrada, pode gerar conflitos e sofrimentos.

O processo de desenvolvimento da industrialização dos países e da globali-zação da economia deu ensejo a impactos ambientais e também desencadeou o surgimento de uma consciência em torno da necessidade de preservação do meio ambiente e, nesse contexto de estudo, do meio ambiente do trabalho. Dessa forma, é relevante informar que o meio ambiente do trabalho representa todos os elementos, interrelações e condições que influenciam o trabalhador em sua saúde física e men-tal, o comportamento e os valores reunidos no lócus do trabalho, “caracterizando-se, pois, como a soma das influências que afetam diretamente o ser humano, desem-penhando aspecto chave na prestação e performance do trabalho” (ROCHA, 1997, p. 127). Também sobre o conceito de meio ambiente do trabalho, ensina Fiorillo (2004, p. 21-23) ser este:

o local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais, sejam re-muneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independente da condição que ostentem (homens ou mulheres, maiores ou menores de idade, celetistas, servidores públicos, au-tônomos etc).

O meio ambiente do trabalho não se restringe apenas a elementos físicos como máquinas, matéria-prima, elementos químicos, mão-de-obra, temperatura, entre ou-tros. Há um elemento de extrema importância que está diretamente ligado à ocor-rência das psicopatologias, que são as relações interpessoais.

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A CRFB/88, coadunando-se com as preocupações da sociedade internacional com a viabilidade da vida no planeta, tratando do meio ambiente, aponta em seu art. 225 que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se, ao Poder Público e à coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Disso, resta patente a evidência de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado alcança o meio ambiente do trabalho. Ao comentar este dispositivo, enfatiza Padilha (2002, p. 32):

[...] claro que quando a Constituição Federal, em seu art. 225, fala em meio ambiente ecologicamente equilibrado, está mencionando todos os aspec-tos do meio ambiente. E, ao dispor, ainda, que o homem para encontrar uma sadia qualidade de vida necessita viver nesse ambiente ecologicamente equilibrado, tornou obrigatória também a proteção do ambiente no qual o homem, normalmente, passa a maior parte de sua vida produtiva, qual seja, o trabalho.

Ao tratarmos do direito a um ambiente de trabalho seguro e saudável, o artigo 1o, caput, da Constituição de 1988 apresenta, como um dos fundamentos da Repú-blica, a dignidade da pessoa humana. Também o artigo 5o, caput, fala dos direitos à vida e à segurança, e o artigo 6o, caput, qualifica como direitos sociais o trabalho, o lazer e a segurança. O artigo 225, caput, garante a todos um meio ambiente ecolo-gicamente equilibrado e o inciso V incumbe ao Poder Público o dever de controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. O art. 200, inciso VIII, consagra a proteção ao meio ambiente, nele compreendido o do traba-lho. Da análise sistemática de todos esses dispositivos da Constituição da República extrai-se que o Estado deve repudiar as atividades que ponham em risco a vida, a integridade física e a segurança dos trabalhadores.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Decreto Legislativo no 226/91 e Decreto no 591/92 – determina, no art. 12.1, que os Esta-dos-Partes reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental. A Convenção no 155 da OIT, em seu art. 3o, alínea e, estabelece que a saúde, com relação ao trabalho, abrange não só a ausência de afecções ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene do trabalho.

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A médica do trabalho e pesquisadora do assunto Margarida Barreto demonstra em estudo que a violência moral no trabalho é uma causa agravante de problemas de saúde ocorridos no Brasil. A respeito, Thome (2008, p. 85) afirma que:

[...] o assédio moral no ambiente de trabalho pode gerar graves danos à saúde física e mental do trabalhador, podendo evoluir para uma doença do trabalho como estresse, síndrome de burn-out, depressão, distúrbios cardí-acos, endócrinos e digestivos, alcoolismo, dependência de drogas, tentativa de suicídio ou, ainda, sua consumação. Se a vítima de assédio moral ficar exposta aos atos agressores durante muito tempo, poderá desenvolver estresse pós-traumático, podendo acarretar os seguintes sintomas: lem-branças obsessivas, pesadelos, nervosismo, depressão, bem como casos de estados esquizofrênicos e paranóicos.

O direito à integridade psíquica manifesta-se pelo respeito, a todos imposto, de não afetar a estrutura psíquica de outrem, seja por ações diretas, seja por ações indiretas, seja no ritmo comum da vida, seja em tratamentos naturais ou experimen-tais ou, ainda, repressivos. O assédio moral é uma afronta à integridade psíquica. À coletividade e a cada pessoa “prescreve-se então a obrigação de não interferir no aspecto interno da personalidade de outrem, como conjunto individualizador de ser, com suas ideias, suas concepções e suas convicções” (BITTAR, 2000, p. 115-116).

Conclui-se, consequentemente, que a vítima de assédio moral “acaba por ter que escolher entre a saúde de seu corpo e mente e o direito ao emprego, única fonte de sobrevivência” (GUEDES, 2005, p. 31). Desse modo, fica evidente que a CRFB/88 tutela o meio ambiente do trabalho saudável e adequado como um direito funda-mental do trabalhador. Assim, ante a sua violação, deve o empregador indenizar o empregado por danos materiais, morais e estéticos. Destaque-se que o mais impor-tante não é a indenização em si, mas a sua finalidade: compensar as vítimas, punir os infratores da lei e alertá-los para prevenirem os riscos à saúde do trabalhador decorrentes de assédio moral.

4 Do direito à honra do trabalhador

Tradicionalmente, a honra é estudada sob duas perspectivas que se completam: objetiva e subjetiva. De um lado, a honra subjetiva, que diz respeito à autoestima, ao sentimento da própria dignidade, ao conceito havido pela própria pessoa, ao seu amor-próprio, ao decoro, à dignidade. Compreende-se assim, o que ela pen-sa a respeito de seus atributos morais, intelectuais, físicos, etc. De outro, a honra

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objetiva refere-se à reputação, ao conceito que o homem goza perante a sociedade, tanto do ponto de vista pessoal quanto profissional. A proteção à honra resguarda o bom nome, a consideração social da pessoa nos ambientes profissional, comercial, familiar e outros, bem como a consciência da própria dignidade. No sistema jurídico vigente, conforme art. 138 e seguintes do Código Penal Brasileiro, a defesa da honra não ocorre apenas no interesse do indivíduo, pois proteger a honra é um imperativo da vida em sociedade.

O conjunto de qualidades capazes de individualizar o indivíduo, acarretando seu destacamento dentro da sociedade, pode-se denominar honra. Está ligada, des-sa forma, às características que, de modo geral, a sociedade atribui a determinada pessoa, ou seja, são os conceitos e juízos que se tem dela, a fama que goza, como se divulga a sua existência no seio da sociedade. Indo mais adiante, busca-se estabe-lecer qual o conceito ou o quanto sua comunidade a considera, no que diz respeito aos aspectos morais, intelectuais, profissionais. Noronha (1999, p. 110) bem a define como “(...) o complexo de ou conjunto de predicados ou condições da pessoa que lhe conferem consideração social”.

A dignidade de que goza a pessoa torna notório o seu caráter de probidade, de princípios e de retidão moral. Nesse sentido, Jesus (1994, p. 177) enxerga-a, sob um “aspecto benéfico (boa-honra), como o conjunto de atributos morais, físicos, intelec-tuais e demais dotes do cidadão, que o fazem merecedor de apreço no convívio so-cial”. Todavia, a todos é assegurado o direito a um respeito social mínimo, descaben-do dizer que, dados os atributos negativos de determinado criminoso ou de pessoa “indecente”, excluam-lhe os direitos fundamentais basilares, incluindo sua honradez. Desse modo, mesmo que verdadeira a atribuição a determinado sujeito de um fato ofensivo a sua reputação, surge a ofensa a sua honra, punível por diversos ramos do Direito. Corroborando tal entendimento, Bitencourt (2002, p. 537) menciona que “a notoriedade é inócua, pois é irrelevante que o fato difamatório imputado seja falso ou verdadeiro e ninguém tem o direito de vilipendiar ninguém”.

A CRFB/88, no art. 5o, inciso X, garante que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Cabe destacar significativas conceituações desenvolvidas por Jesus (1994, p. 177), que, além da distinção entre essas duas categorias (honra-dignidade e honra--decoro), subdivide a honra subjetiva do seguinte modo: honra-decoro e honra-dig-nidade. A primeira é o conjunto de atributos físicos e intelectuais da pessoa. A se-

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gunda é o conjunto de atributos morais do cidadão. Desse modo, se chamo alguém de cafajeste, estou ofendendo a sua honra-dignidade; se o chamo de analfabeto, ofendo-lhe a honra-decoro.

Aponta-se também para a distinção entre honra comum e honra profissional. A primeira “diz respeito à pessoa humana enquanto ser social; a segunda refere-se à atividade exercida pelo indivíduo, seus princípios ético-profissionais, a representati-vidade e o respeito profissional que a sociedade lhe reconhece e lhe atribui” (BITEN-COURT, 2002, p. 518). No assédio moral no trabalho “é a honra do trabalhador que é mais vilipendiada, por meio de atos de desqualificação capazes de destruir a sua au-toestima a ponto de ele ser levado até mesmo ao suicídio” (PRATA, 2008, p. 318-319).

5 Do direito à imagem do trabalhador

Assim como ocorre com a honra, o direito à imagem é inviolável, conforme prevê o texto constitucional na redação do inciso X, do artigo 5o, da CRFB/88. Trata-se de as-segurar o aspecto físico que há de ser igualmente resguardado contra violações para que a proteção à vida seja cabal. Isso porque, na sociedade atual, a proteção à imagem deve ocorrer, inclusive, quanto aos meios de comunicação, pois esses se aperfeiçoaram, criando uma diversidade de mídias e indo muito além dos jornais, “compreendendo, hoje, revistas, rádio e televisão, internet, a filmagem e o monitoramento de cidadãos nas ruas ou em ambientes fechados, todas elas sujeitas e possíveis veiculadoras de desonras ou degradações da imagem do ser humano” (GUERRA, 2009).

O direito à imagem pode ser visualizado de duas maneiras, quais sejam, a ima-gem-retrato e a imagem-atributo. A imagem retrato se expressa por meio da repro-dução gráfica da figura humana, v. g., fotografias, desenhos, filmagens, esculturas e outros meios. Tal imagem é lesada quando é utilizada indevidamente ou sem autori-zação. A imagem-retrato “refere-se à faculdade que a lei confere a alguém para deci-dir quando, por quem e de que forma podem ser captados, reproduzidos seus traços fisionômicos reconhecíveis” (ALONSO, 2004, p, 79). Já o direito à imagem-atributo está umbilicalmente ligado ao direito à honra, isto é, com maior exatidão, à honra objetiva. A imagem-atributo é o conjunto de atributos identificadores de uma pessoa no meio social. Desse modo, a imagem deixa de ser a forma exterior, a aparência da pessoa, para se transformar em um conceito que a sociedade faz dela, uma espécie de retrato moral, v. g., fulano é um bom pai de família, honesto, de bom caráter etc. Esse conceito de fulano é sua imagem-atributo, uma noção que a sociedade tem de uma pessoa.

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O assédio moral na relação de trabalho pode constituir uma afronta tanto à própria honra, à imagem-atributo, quanto à imagem-retrato.

No que diz respeito ao direito à imagem, a CRFB/88 assegura proteção específi-ca. Nesse sentido, destaca Gonçalves (2003, p. 169) que a Carta Magna foi explícita em assegurar ao lesado o direito à indenização por dano material ou moral decor-rente da violação da intimidade, da vida privada, da honra, e da imagem das pessoas. Assim, nos termos do art. 20 do Código Civil (CC), a reprodução de imagem para fins comerciais, sem autorização do lesado, enseja o direito à indenização, ainda que não lhe tenha atingido a honra, a boa fama ou a respeitabilidade.

O direito à imagem encontra-se em estreito contato com o direito à intimidade, bem como com o direito à identidade e à honra, não se encontrando, todavia, localizado no contexto de um desses direitos, visto que há situações nas quais ocorre a violação do direito à imagem sem, contudo, ferir outros direitos da personalidade. O direito à imagem comunga de características comuns aos direitos da personalidade, sendo, as-sim, inalienável, impenhorável, absoluto, imprescritível, irrenunciável e intransmissível, posto que não se dissocia de seu titular. Mas cabe destacar que apresenta uma caracte-rística que lhe é peculiar: a disponibilidade, ou seja, o indivíduo dispõe da possibilidade de usar livremente a sua própria imagem ou impedir que outros a utilizem. Dessa feita, é de vital importância a ação protetiva do Direito do Trabalho para coibir que injustiças sejam perpetradas pela força do capital sobre a pessoa do trabalhador. É fundamental a proteção jurídica à imagem, pois defende concomitantemente os componentes da personalidade e o patrimônio. O desrespeito aos limites impostos para proteção da imagem, quando ultrapassados, pode ferir o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, expresso no inciso III, art. 1o da CRFB/88, acabando por constituir uma limitação à liberdade individual, tutelando o indivíduo contra si próprio.

O CC, no art. 104 e incisos (BRASIL, 2002), dispõe que os contratos, como con-dição de validade, deverão possuir objeto lícito e em conformidade com a ordem pública, a moral e os bons costumes. O empregador que, durante a relação contra-tual, tenha violado o direito de imagem do empregado, submetendo-o ao ridículo, a tratamento degradante ou, ainda, levando-o a agir contra a sua vontade ou a sua consciência ou o assediado moralmente, será condenado a reparar os danos morais e materiais, os quais, conforme a Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça, são passíveis de cumulação quando oriundos do mesmo fato. É imperioso estar ciente das repercussões jurídicas advindas da violação do princípio da dignidade da pes-soa humana, sob pena de ter-se um objeto não lícito e um ato jurídico inválido. Tal

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fato ocorre porque está em risco o mais importante direito e a precípua obrigação contratual do empregador inerente ao contrato de trabalho que não tem natureza patrimonial. E é, justamente, “o dever de respeito à dignidade moral da pessoa do trabalhador, aos direitos relativos à personalidade do empregado, cuja violação sig-nifica diretamente violação de direito e obrigação trabalhista” (CARPES, 2009).

Quando se fala em assédio moral no trabalho, nos referimos “à reputação pro-fissional, que deriva do direito fundamental à própria honra e à imagem-atributo” (CALEJO apud SILVA, 2004, p. 79). A maior parte dos comportamentos de assédio moral “implica uma exposição da vítima ante os demais como alguém inadaptado, incompetente ou conflituoso, culpado da própria situação de marginalização a que está sendo conduzido” (THOME, 2008, p. 79). Cabe mencionar também que o assédio moral no trabalho pode consistir em ataque à imagem-retrato da vítima, quando, v. g., esta vê a sua fotografia (ou mesmo uma caricatura) estampada na imprensa sem a sua autorização, em situação constrangedora.

6 Do direito à privacidade do trabalhador

A CRFB/88 (BRASIL) assegura no art. 5o, inciso X, que “são invioláveis a intimi-dade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à inde-nização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Também garante no mesmo artigo, inciso XII, que “é inviolável o sigilo da correspondência e das co-municações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer pra fins de investigação criminal ou instrução processual penal” (BRASIL, 1988).

Essa violação, em algumas hipóteses, já constitui ilícito penal. Além disso, “a Constituição foi explícita em assegurar ao lesado o direito à indenização por dano material ou moral decorrente da violação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, em suma do direito à privacidade” (SILVA, 2006, p. 213).

Vê-se, assim, dois elementos distintos: a vida privada - “a vida interior, que se debruça sobre a mesma pessoa, sobre os membros de sua família, sobre seus ami-gos” - e a intimidade - “esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais” (THOME, 2008, p. 210-211). Isso porque os conceitos de “vida privada e intimidade não se confundem, sendo aquela o gênero do qual esta é a espécie, ou seja, a vida privada é mais abrangente que a intimidade, pois tam-bém inclui o âmbito familiar, as amizades íntimas e os relacionamentos em grupos fechados” (SILVA, 2004, p. 66).

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A privacidade volta-se a aspectos externos da existência humana, como reco-lhimento em sua residência sem ser molestado, escolha do modo de viver, hábitos, comunicação epistolar ou telefônica. Já “a intimidade diz respeito a aspectos inter-nos do viver da pessoa, como segredo pessoal, relacionamento amoroso, situação de pudor” (DINIZ, 2005, p. 154). Sobre isso, vale ressaltar que, “o trabalhador, mesmo dentro do local de serviço, deve ter resguardada a privacidade, como a do armário no qual guarda os seus pertences, bem como a das gavetas da escrivaninha na qual trabalha” (SILVA, 2004, p. 69).

No que diz respeito ao direito à intimidade, temos que esse protege o segredo profissional, a inviolabilidade do domicílio e o sigilo de correspondência (art. 5o, XI e XII, da CRFB/88).

No tocante à vida privada, a CRFB/88 tutela o segredo da vida privada e a liber-dade da vida privada, “o segredo da vida privada é condição de expansão da perso-nalidade” (SILVA, 2006, p. 211-212).

A intimidade é o direito de ser deixado só, de ser preservado de qualquer ins-peção ou observação não autorizada e de indagações acerca de si mesmo ou de seus negócios. Contudo, “o direito à intimidade é erga omnes e, como todo direito, não possui caráter absoluto. Fica sujeito aos limites da ordem, segurança e saúde pública” (SILVA, 2004, p. 67).

O assédio moral no trabalho tem como estratégia comum a invasão injustifi-cada da privacidade dos assalariados, ou seja, a monitoração de correspondência, de conta bancária, de e-mails, de telefonemas, bem como a instalação de câmeras no ambiente do trabalho – especialmente nos banheiros e vestiários. Nessa direção aponta acórdão do Tribunal Superior do Trabalho:

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. DANO MO-RAL RECONHECIDO. RATIFICAÇÃO. Nos termos do eg. Regional, revelando--se incontroversa a instalação de equipamentos câmeras de filmagem nas dependências dos banheiros de utilização dos empregados, mais especifi-camente na porta de entrada dos vasos sanitários e mictórios, tal situação, por si só, gera constrangimento moral e social, caracterizando o dano mo-ral. Incólumes, por outro lado, os artigos 818 da CLT e 333, I, do CPC, eis que o v. acórdão atacado, considerando o conjunto fático-probatório, deci-diu em conformidade com os referidos dispositivos legais. Por fim, inserví-veis arestos quando não traduzem o mesmo panorama fático-probatório do caso sub examine (inteligência do Enunciado de no 296/TST). Agravo de Instrumento a que se nega provimento. (BRASIL, 2005)

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Tutelas constitucionais relacionadas ao assédio moral na relação de trabalho

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Não se pode deixar de mencionar, no contexto acima, as famigeradas revistas íntimas, que só devem ser admitidas nos casos em que se façam necessárias, deven-do se dar sempre de forma respeitosa e por pessoa do mesmo sexo do revistado. Assim, só há cabimento para sua realização “com fundamento em suspeita razoável de cometimento de algum delito ou preservação da segurança das pessoas e dos bens situados no local de trabalho nos casos de, v. g., furto, espionagem, tráfico de drogas, porte de armas ou terrorismo” (PRATA, 2008, p. 321). Desse modo, sempre que não houver justificativas razoáveis e o trabalhador não for alertado a respeito de sistema de vigilância, ocorrerá o agravamento da invasão de privacidade:

EMENTA: DANO MORAL VIOLAÇÃO DA INTIMIDADE DO FUNCIONÁRIO. A instalação de câmera no local de trabalho, com prévia ciência dos empre-gados, cientes inclusive onde estão, por medida de segurança patrimonial de todos, não ofende o direito à inviolabilidade da intimidade assegurado no inciso X do art. 5o, da Constituição da República. (BRASIL, 2003)

Na aplicação de qualquer medida de segurança adotada pelo empregador, é im-perioso que se observe o princípio da proporcionalidade entre o direito à intimidade e o direito à segurança dos profissionais e dos bens da instituição.

O assédio moral na relação de trabalho adota comumente a estratégia da in-vasão injustificada da privacidade dos trabalhadores, ou seja, através da monitora-ção de correspondência, de telefonemas, de e-mails e até mesmo a instalação de câmeras no ambiente de trabalho, sem que exista justificativa razoável de proteção de segredo industrial, de segurança ou de investigação de trabalhador suspeito de algum delito, principalmente quando o empregado não é alertado a respeito do sistema de vigilância. Corroborando, conclui-se que, “quando se produz um controle injustificado e desproporcional como parte de uma perseguição do trabalhador, nos encontramos diante de uma manifestação que pode ser o acosso moral no trabalho” (CALLEJO, 2003, p. 97-98).

7 Conclusão

Abordamos, como foco de estudo, as tutelas constitucionais relacionadas com o assédio moral na relação de trabalho, quais sejam: a dignidade da pessoa humana no trabalho, os direitos ao meio ambiente do trabalho saudável, à honra, à imagem, à privacidade do trabalhador. Na análise de cada uma delas, focalizamos a correla-ção da prática do assédio moral no ambiente do trabalho com a violação dessas ga-rantias constitucionais estabelecidas em favor dos trabalhadores. Especificamente,

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verificamos entendimentos sobre conceitos e características de práticas violadoras destes direitos fundamentais que, em regra, estão associadas ao assédio.

A violação dessas tutelas constitucionais ensejando a prática do assédio moral no trabalho tem gerado sérias preocupações. O assédio moral na relação de trabalho tem despertado enorme interesse. Inúmeras publicações, desenvolvidas por profis-sionais de diversas áreas, têm esclarecido a respeito do tema e estudado a matéria.

A OIT relata um prognóstico pessimista sobre o tema, no qual muitos traba-lhadores sofrerão de problemas como insônia, depressão e desejo de suicídio em decorrência do assédio moral no trabalho. Estudiosos, estrangeiros e brasileiros, com fundamento nas pesquisas já realizadas, alertam para a questão. A OIT, em seus periódicos mais recentes, tem reservado grande espaço para a análise desse complexo fenômeno que afeta a relação de trabalho e a dignidade do trabalhador em diversos países.

No Brasil, embora ainda não haja legislação específica sobre o assédio moral na relação de trabalho em âmbito federal, pode o trabalhador buscar uma reparação pecuniária pelos danos materiais e morais que lhe foram causados pelo assediador, em decorrência da violação das tutelas constitucionais que lhe são asseguradas.

O assédio moral na relação de trabalho é uma prática que não deve ser tolera-da, pois se trata de conduta ilícita que refoge aos seus interesses sociais, afronta a dignidade da pessoa humana no trabalho, o meio ambiente do trabalho saudável, a honra, a imagem e a privacidade do trabalhador, devendo, a sociedade, as empresas em geral, o Ministério Público e os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário adota-rem com afinco todas as medidas para coibir o assédio moral na relação de trabalho, em especial, a adoção de lei específica no âmbito da federação, impondo sanção aos responsáveis pela prática do assédio moral na relação de trabalho nas esferas penais, cíveis e administrativas.

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4 Direito ao desenvolvimento,

sustentabilidade, e a

Constituição da República de 1988

ELISABETE MANIGLIA

Doutora em Direito (Unesp). Mestre em Direito (USP).

Professora de Direito (Unesp).

THIAGO LEMOS POSSAS

Mestrando em Direito (Unesp).

Especialista em Direito Público pela (UNIDERP/LFG).

Artigo recebido em 03/01/2011 e aprovado em 02/12/2012.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Sobre o desenvolvimento: os caminhos 3 O Direito ao desenvolvimento e a Constituição da República de 1988 4 Conclusão 5 Referências.

RESUMO: O trabalho trata de algumas das principais abordagens acerca do de-senvolvimento, bem como de suas insuficiências e potencialidades. O enfoque re-cai sobre a concepção de desenvolvimento em intrínseca relação com a liberdade (Amartya Sen), bem como sobre a ideia de desenvolvimento sustentável (mormente consoante a doutrina de Ignacy Sachs). A esta abordagem conceitual junta-se a aná-lise da relação entre o Direito e o desenvolvimento, e de como se dá esta conexão no ordenamento jurídico brasileiro, sob a égide da Constituição da República de 1988. O que se busca, enfim, é a interface entre o direito ao desenvolvimento, a Constituição brasileira (especificamente a Constituição econômica nela presente) e a matriz teórica do desenvolvimento sustentável, como elementos intimamente relacionados, na tentativa de construção de um paradigma mais justo e de concreti-zação dos direitos fundamentais.

PALAVRAS-CHAVE: Direito ao desenvolvimento Desenvolvimento sustentável Constituição econômica brasileira Justiça Social.

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Direito ao desenvolvimento, sustentabilidade, e a Constituição da República de 1988

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Development Law, sustainability and the 1988 Federal Constitution

CONTENTS: 1 Introduction 2 On development: paths 3 Development Law and the 1988 Federal Constitution 4 Conclusion 5 References.

ABSTRACT: This paper is about some of the main approaches on development as well as its insufficiencies and promising potentialities. It refers to the development concept in close connection with the idea of freedom (Amartya Sen) and sustain-able development (especially regarding Ignacy Sachs lessons). To this conceptual approach this paper adds the analysis of the relation between law, development and how the Brazilian legislation deals with it in the 1988 Federal Constitution frame-work. The purpose of this essay is to show the interface between development law, the 1988 Federal Constitution (specifically the economic constitution therein) and sustainable development theoretical matrix as closely related to each other. It aims to establish a fairer paradigm on fundamental rights implementation.

KEYWORDS: Development Law Sustainable development Brazilian economic constitution Social Justice.

Derecho al Desarrollo, sostenibilidad y La Constitución de La República de 1988

CONTENIDO: 1Introducción 2 Sobre el Desarrollo: los caminos 3 El Derecho al Desarrollo y la

Constitución de la República de 1988 4 Conclusión 5 Referencias.

RESUMEN: Este artículo aborda algunos de los principales enfoques para el desa-rrollo, así como sus debilidades y fortalezas. La atención se centra en el diseño de desarrollo en relación intrínseca con la libertad (Amartya Sen), así como la idea del desarrollo sostenible (especialmente de acuerdo con la doctrina de Ignacy Sachs). A este enfoque conceptual se suma el análisis de la relación entre el derecho y el desarrollo, y cómo es esta conexión en el sistema legal brasileño, bajo la égida de la Constitución de1988. Lo que se busca, en definitiva, es la interfaz entre el derecho al desarrollo, la Constitución del Brasil (en concreto, la constitución económica presen-te en ella) y el marco teórico del desarrollo sostenible, como elementos estrecha-mente relacionados, en un intento de construir un mundo más justo y un paradigma de la realización de los derechos fundamentales.

PALABRAS CLAVE: Derecho al desarrollo Desarrollo sostenible Constitución económica brasileña Justicia social.

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1 Introdução

O presente trabalho versa sobre a complexidade que envolve a temática do desenvolvimento, com a abordagem de alguns dos caminhos apontados pela

literatura sobre o assunto.Busca-se esboçar brevemente a variedade de abordagens ligadas à questão do de-

senvolvimento, bem como as eventuais insuficiências e potencialidades das mesmas. O texto passa, após preliminar tratamento conceitual, a enfocar duas relevantes

correntes que tratam com profundidade do tema: a que trata o desenvolvimento em intrínseca relação com a liberdade (Amartya Sen) e o desenvolvimento sustentável (mormente na doutrina de Ignacy Sachs).

A pesquisa se volta, então, para a relação entre o Direito e o desenvolvimento, e de como se dá esta conexão no ordenamento jurídico brasileiro sob a égide da Constituição da República de 1988. Tratar-se-á do direito ao desenvolvimento como direito fundamental de terceira geração, dissertando-se, posteriormente, sobre o tratamento que lhe foi conferido pela Constituição brasileira vigente; e da relação instaurada entre a temática do desenvolvimento e a Constituição Econômica pre-sente no texto constitucional de 1988.

Por fim, o que se buscará é a interface entre o direito ao desenvolvimento, a Constituição Econômica brasileira e a matriz teórica do desenvolvimento sustentá-vel, como elementos fortemente relacionados na tentativa de construção de um pa-radigma mais justo, que altere estruturalmente a sociedade brasileira, e propicie um ambiente de maior bem-estar social com a concretização dos direitos fundamentais.

2 Sobre o desenvolvimento: os caminhos

Ignacy Sachs (2008, p. 25) adverte contra a possibilidade de se “encapsular” o desenvolvimento em fórmulas simples, sendo que “a sua multidimensionalidade e complexidade explicam seu caráter fugidio”.

O início da reflexão acerca do desenvolvimento “começou nos anos 40, no con-texto da preparação dos anteprojetos para a reconstrução da periferia devastada da Europa no pós-guerra”, e o

trabalho da primeira geração de economistas do desenvolvimento foi inspirado na cultura econômica dominante da época, que pregava a prio-ridade do pleno emprego, a importância do Estado de bem-estar social, a necessidade do planejamento e a intervenção do Estado nos assuntos

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econômicos para corrigir a miopia e a insensibilidade social dos mercados (SACHS, 2008, p. 30).

Hodiernamente, segundo José Eli da Veiga (2008, p. 13), há “três tipos básicos de resposta” à questão sobre o que é o desenvolvimento: a primeira é a que iguala o desenvolvimento ao crescimento econômico, sendo bastante a consideração da “evolução de indicadores bem tradicionais, como, por exemplo, o Produto Interno Bruto per capita”; a segunda resposta é a que crê que o desenvolvimento é mera ilusão, ou manipulação ideológica, tese esta divulgada no Brasil através do livro “A ilusão do desenvolvimento”, do italiano Giovanni Arrighi (VEIGA, 2008, p. 13-20); e, por fim, o terceiro caminho para o conceito seria a recusa dessas “duas saídas mais triviais” e a tentativa de se “explicar que o desenvolvimento não tem nada de qui-mérico e nem pode ser amesquinhado como crescimento econômico” (VEIGA, 2008, p. 18), caminho esse escolhido, por exemplo, pelo economista vencedor do Prêmio Nobel Amartya Sen.

Ainda com relação à concepção de desenvolvimento, é pertinente a crítica que se faz ao discurso do desenvolvimento econômico, conforme apostilado por Antonio Negri e Michael Hardt (2010, p. 303-304):

O discurso do desenvolvimento econômico, imposto sob a hegemonia ameri-cana em coordenação com o modelo do New Deal no período do pós-guerra, usa essas falsas analogias históricas como fundamento de políticas econômi-cas. Segundo esse discurso, a história econômica de todos os países segue um padrão de desenvolvimento, cada país a seu tempo, e em velocidades diferen-tes. Países cuja produção econômica não se encontra no nível da dos países dominantes são vistos como países em desenvolvimento. (grifo no original)

Segundo os autores, a ideia consiste em que os países “em desenvolvimento” sigam o caminho traçado pelos desenvolvidos, com a repetição de suas políticas econômicas, para que alcancem o patamar dos países dominantes. O que essa de-turpada visão “desenvolvimentista” não percebe é que “as economias dos chamados países desenvolvidos são definidas não apenas por certos fatores quantitativos, ou por suas estruturas internas, mas também e principalmente por sua posição domi-nante no sistema global” (NEGRI; HARDT, 2010).

Gilberto Bercovici (2005, p. 52) é de opinião semelhante: “O subdesenvolvimen-to é uma condição específica da periferia, não uma etapa necessária do processo de ‘evolução natural’ da economia”. E, prossegue o professor paulista:

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A economia subdesenvolvida não deve também ser considerada isolada-mente do sistema de divisão internacional do trabalho em que está situa-da. A passagem do subdesenvolvimento para o desenvolvimento só pode ocorrer em processo de ruptura com o sistema, interna e exteriormente; afi-nal “em suas raízes, o subdesenvolvimento é um fenômeno de dominação, ou seja, de natureza cultural e política”. (BERCOVICI, 2005, p. 53)

Portanto, superados os equívocos supramencionados, no presente texto traba-lhar-se-á com a perspectiva central do terceiro conceito de desenvolvimento, pois parte-se da premissa de que o primeiro conceito não merece maiores considerações, dados a sua patente insuficiência e o horizonte restrito por ele proporcionado. O segundo conceito parece o mais fiel à realidade vivida em nossos tempos, tendo em vista que o desenvolvimento, mesmo onde é verificado, favorece minorias em detrimento da carência da multidão. Portanto, a abordagem da terceira perspectiva sobre o desenvolvimento é a tentativa de nele vislumbrar um horizonte de mudança estrutural e suas eventuais limitações para a empreitada.

Questão fundamental a ser abordada, para o objetivo proposto, é a relação entre crescimento e distribuição de renda. Simon Kuznets apresentou a primeira contri-buição relevante para a associação mencionada, quando afirmou que havia evidên-cias no sentido de que “a desigualdade de renda tendia a aumentar na fase inicial da industrialização de um país, ocorrendo o inverso em fase posterior, quando este país estivesse desenvolvido” (VEIGA, 2008, p. 42-43). A teoria de Kuznets passou a ser a “base científica” para a tese que sustentava que primeiramente o “bolo” deveria cres-cer para posteriormente ser repartido (VEIGA, 2008, p. 43). O Brasil mesmo foi víti-ma dessa malfadada tese econômica na década de 1970, quando o então Ministro da Fazenda Delfim Neto aplicou-a gerando o conhecido “milagre brasileiro”. Viu-se que o “bolo” não foi repartido, e o Brasil seguiu sendo um “monumento à negligência social”, como o caracterizou o historiador britânico Eric Hobsbawm.

Ocorre que, felizmente, o consenso em torno da hipótese de Kuznets “parece estar sendo substituído por outro: de que a estrutura da distribuição de renda é extremamente persistente, seja qual for o crescimento econômico” (VEIGA, 2008, p. 44). Exemplo disso é que, segundo Veiga (2008, p. 44), “desde a Segunda Guerra Mundial, o crescimento variou muito entre os países, ao passo que a distribuição de renda quase não mudou em termos comparativos”.

Resta claro que o desenvolvimento a ser perseguido no presente momento é o que visa, primordialmente, à distribuição da renda e à promoção do desenvolvimen-to humano em toda a sua amplitude, devendo ser rechaçada qualquer abordagem

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Direito ao desenvolvimento, sustentabilidade, e a Constituição da República de 1988

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economicista (como a do primeiro conceito supramencionado) que ignore os fatores sociais, políticos, ambientais, históricos, por exemplo.

José Eli da Veiga (2008, p. 80) adverte, ainda, que “o desenvolvimento tem sido exceção histórica e não regra geral. Ele não é o resultado espontâneo da livre interação das forças de mercado”, sendo que os países da periferia que tiveram uma performance razoável na “última década do século XX foram exatamente aqueles que se recusaram a aplicar ao pé da letra as prescrições cultuadas no chamado Consenso de Washington”.

Destarte, claro está que o desenvolvimento deve se esquivar das concepções libe-rais extremistas que visam ao crescimento econômico apenas, bem como ter claro que o crescimento econômico não traz consigo, necessariamente, a distribuição de renda.

O desenvolvimento deve buscar abertamente a construção de uma sociedade mais igualitária, e não esperar as sobras do crescimento concentrado da renda: “num mundo de terríveis desigualdades, é um absurdo pretender que os ricos precisem se tornar ainda mais ricos para permitir que os necessitados se tornem um pouco menos necessitados” (VEIGA, 2008, p. 80).

2.1 Desenvolvimento como liberdade

Nesta perspectiva, ganha relevo a ideia de “desenvolvimento como liberdade”, teorizada por Amartya Sen. O autor concebe o desenvolvimento “como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”, e que requer, para tan-to, “que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos” (2000, p. 17-18). Sen (2000, p. 35) entende que há “boas razões para que se veja a pobreza como privação de capacidades básicas, e não apenas como baixa renda”, sendo exemplos dessas privações a morte prematura, a subnutrição, o analfabetis-mo disseminado, entre outras.

Amartya Sen (2000, p. 52) busca compreender “o desenvolvimento como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”, sendo a liber-dade concebida, dessarte, como “o fim primordial” e, ao mesmo tempo, “o principal meio do desenvolvimento”, assumindo os respectivos papéis: o constitutivo e o ins-trumental. Sen (2000) relaciona o “papel constitutivo” com a relevância da “liberda-de substantiva no enriquecimento da vida humana”, sendo que as

liberdades substantivas incluem capacidades elementares como por exem-plo ter condições de evitar privações como a fome, a subnutrição, a mor-

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bidez evitável e a morte prematura, bem como as liberdades associadas a saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter participação política e liberdade de expressão e etc.

Com relação às liberdades instrumentais, o autor destaca alguns de seus tipos (2000, p. 55-57), a saber: liberdades políticas (oportunidade das pessoas escolhe-rem quem deve governar, e baseado em quais princípios, etc.); facilidades econô-micas (“são oportunidades que os indivíduos têm para utilizar recursos econômicos com propósitos de consumo, produção ou troca”); oportunidades sociais (relativas às áreas de educação, saúde, etc., que influem diretamente na liberdade substan-tiva); garantias de transparência (relativos à sinceridade, à clareza, à confiança); e segurança protetora (medidas de segurança social), cabe destacar, também, o papel de complementaridade que o autor lhes confere, reforçando a importância conjunta das mesmas para a liberdade.

Amartya Sen (2000, p. 178) destaca, ainda, a relevância da pressão exercida pela população para que o governo aja em socorro ao seu sofrimento, bem como a imprescindibilidade do gozo dos direitos políticos para esse fim. Esse seria parte do papel instrumental das liberdades políticas e da democracia, para o autor. Mas a liberdade política também apresenta um matiz construtivo (SEN, 2000, p. 180-182), na medida em que os direitos políticos “são não apenas centrais na indução de res-postas sociais a necessidades econômicas, mas também centrais para a conceitua-ção das próprias necessidades econômicas”.

A atuação social na construção das políticas públicas de desenvolvimento é imperiosa no marco do Estado Democrático de Direito. Cabe ao povo formatar seus desejos e, juntamente com o Estado, construir as políticas públicas adequadas à persecução dos mesmos. O próprio Sen (2000, p. 32) destaca

a expansão das “capacidades” das pessoas de levar o tipo de vida que elas valorizam – e com razão. Essas capacidades podem ser aumentadas pela po-lítica pública, mas também, por outro lado, a direção da política pública pode ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades participativas do povo.

E, por fim, Sen (2000, p. 21-22) destaca a importância da contribuição do Mercado para o crescimento econômico, mas adverte que o seu uso amplo deve vir acompanha-do do “custeio social, da regulamentação pública ou da boa condução dos negócios do Estado quando eles podem enriquecer – ao invés de empobrecer – a vida humana”.

Cabe problematizar a importância do Mercado para um desenvolvimento bali-zado pelo povo, e arraigado à liberdade substancial e à democracia. Isso porque o

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Mercado parece se configurar como estrutura intrinsecamente excludente, avessa à in-tervenção estatal (salvo para “sanar” as mazelas causadas pelo excesso de liberalismo que seus próprios atores exigem), e determinada muito mais por poderes econômicos constituídos que propriamente por liberdade de participação e livre iniciativa.

Talvez, na tentativa de compatibilizar o que até hoje se mostrou conflituoso, é que conceitos como o de “desenvolvimento sustentável” tenham surgido, no intuito de dar “face humana” para o sistema que exclui mais de 2/3 da população mundial. Discutir desenvolvimento é de extrema urgência e complexidade tendo-se em vista a situação estrutural gerada pelo capitalismo, com a persistência da fome e das de-sigualdades, e a já denunciada falta de efetiva liberdade.

A discussão não pode ignorar esses pontos, sob o risco de ser inócua, visto que eivada de ingenuidade, ou perversa, se a razão cínica prevalecer inconteste.

2.2 Desenvolvimento sustentável

A despeito da divisão didática operada no presente trabalho entre desenvol-vimento como liberdade, arrimado na teoria de Amartya Sen (2000), e desenvolvi-mento sustentável, em que se utilizará alguns escritos de Ignacy Sachs como marco teórico, os dois caminhos se aproximam na igual tentativa de elaborar um conceito de desenvolvimento que fuja tanto da concepção estreita que o confunde com cres-cimento econômico, quanto da que o rechaça como sendo ilusório (VEIGA, 2008).

Do ponto de vista da análise histórica, tem-se que

Desenvolvimento e direitos humanos alcançaram proeminência na metade do século, como duas idéias-força destinadas a exorcizar as lembranças da Grande Depressão e dos horrores da Segunda Guerra Mundial, fornecer os fundamentos para o sistema das Nações Unidas e impulsionar os processos de descolonização. (SACHS, 2009, p. 47)

E foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano (1972) em Estolcomo “que colocou a dimensão do meio ambiente na agenda internacional” (SACHS, 2009, p. 48):

Ela foi precedida pelo encontro Founex, de 1971, implementado pelos or-ganizadores da Conferência de Estolcomo para discutir, pela primeira vez, as dependências entre o desenvolvimento e o meio ambiente, e foi seguida de uma série de encontros e relatórios internacionais que culminaram, vin-te anos depois, com o Encontro da Terra no Rio de Janeiro.

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O encontro de Founex (1971), bem como a Conferência de Estolcomo (1972), foram divisores de água para a temática, já que

Uma alternativa média emergiu entre o economicismo arrogante e o fun-damentalismo ecológico. O crescimento econômico ainda se fazia neces-sário. Mas ele deveria ser socialmente receptivo e implementado por mé-todos favoráveis ao meio ambiente, em vez de favorecer a incorporação predatória do capital da natureza ao PIB. (SACHS, 2009, p. 52)

Ignacy Sachs (2008, p. 13) traz relevante reflexão, amparado na doutrina de Amartya Sen, de que as questões logísticas da economia ganharam preponderância, atualmente, “a ponto de fazer a ética ser praticamente esquecida. Daí vem a insis-tência de Sen na reapropriação entre a economia e a ética, sem esquecer da política”.

A preponderância da economia em detrimento da ética e da política deve ser recha-çada em favor de uma concepção de desenvolvimento que equalize essas diferentes es-feras, sempre conferindo proeminência à questão social, hodiernamente desprestigiada.

Sobre a promessa de mudança trazida pelo desenvolvimento, disserta Sachs (2008, p. 13):

No contexto histórico em que surgiu, a idéia de desenvolvimento impli-ca a expiação e a reparação de desigualdades passadas, criando uma co-nexão capaz de preencher o abismo civilizatório entre as antigas nações metropolitanas e a sua antiga periferia colonial, entre as minorias ricas modernizadas e a maioria atrasada e exausta dos trabalhadores pobres. O desenvolvimento traz consigo a promessa de tudo – a modernidade inclu-siva propiciada pela mudança estrutural.

Assim, vê-se que a ambição do desenvolvimento é operar uma mudança estru-tural na sociedade, e não meramente reformista com ajustes pontuais na estrutura injusta. Para conseguir corresponder a tamanha empreitada, o conceito de desen-volvimento sustentável trabalhado por Ignacy Sachs teve de se revestir de toda a complexidade necessária, passando a abarcar uma ampla gama de sustentáculos, pertinentes a diferentes setores a serem contemplados.

O autor (2008, p. 15-16), destarte, elenca os cinco pilares do desenvolvimen-to sustentável: social; ambiental; territorial; econômico; e político. Sobre o social, adverte que é “fundamental por motivos tanto intrínsecos quanto instrumentais, por causa da perspectiva de disrupção social que paira de forma ameaçadora sobre muitos lugares problemáticos do nosso planeta”. Com relação ao ambiental, destaca suas duas “dimensões”: “os sistemas de sustentação da vida como provedores de

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recursos e como ‘recipientes’ para a disposição de resíduos”. O territorial relaciona--se “à distribuição espacial dos recursos, das populações e das atividades”. O pilar econômico vem relacionado com a “viabilidade econômica” como “conditio sine qua non para que as coisas aconteçam”. E, por último, o pilar político, já que, para o autor, “a governança democrática é um valor fundador e um instrumento necessário para fazer as coisas acontecerem”.

Em outra obra, Sachs (2009, p. 71) toca em um ponto nevrálgico da temática em comento, que é a confusão que se faz, muitas vezes, entre sustentabilidade e susten-tabilidade ambiental, e pontua que o conceito de sustentabilidade possui diversas outras dimensões, que não somente a ambiental.

Sachs (2009, p. 71-72) as enumera da seguinte maneira, in verbis:

- a sustentabilidade social vem na frente, por se destacar como a própria finalidade do desenvolvimento, sem contar com a probabilidade de que um colapso social ocorra antes da catástrofe ambiental;- um corolário: a sustentabilidade cultural;- a sustentabilidade do meio ambiente vem em decorrência;- a sustentabilidade econômica aparece como uma necessidade, mas em hipótese alguma é condição prévia para as anteriores, uma vez que o trans-torno econômico traz consigo o transtorno social, que, por seu lado, obstrui a sustentabilidade ambiental;- o mesmo pode ser dito quanto à falta de governabilidade política, e por esta razão é soberana a importância da sustentabilidade política na pilota-gem do processo de reconciliação do desenvolvimento com a conservação da biodiversidade;

Resta claro, portanto, a insofismável preponderância do aspecto social no que diz respeito ao desenvolvimento sustentável, não obstante a confusão entre os con-ceitos. O aspecto ambiental é apenas um (importante, mas não único, ou principal) aspecto do complexo conceito de sustentabilidade.

Outra releitura interessante operada no conceito de desenvolvimento que o autor destaca é a influenciada justamente por Amartya Sen: “o desenvolvimento pode ser redefinido em termos da universalização e do exercício efetivo de todos os direitos humanos” (SACHS, 2008, p. 37).

O próprio autor (2009, p. 66) parece incorporar esse discurso dos direitos huma-nos quando afirma: “A centralidade do meu argumento baseia-se no entendimento que o desenvolvimento é o processo histórico de apropriação universal pelos povos da totalidade dos direitos humanos [...]”.

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Assim, “igualdade, equidade e solidariedade estão, por assim dizer, embutidas no conceito de desenvolvimento” (SACHS, 2008, p. 14), e

em vez de maximizar o crescimento do PIB, o objetivo maior se torna pro-mover a igualdade e maximizar a vantagem daqueles que vivem nas piores condições, de forma a reduzir a pobreza, fenômeno vergonhoso, porquanto desnecessário, no nosso mundo de abundância.

Com relação ao criminoso fenômeno da pobreza, é imperioso que o desenvolvi-mento, para fazer jus à denominação, assuma postura de radical e imediata erradi-cação da mesma, sendo esse o ponto principal da temática. Não há desenvolvimento se não houver ataque frontal à pobreza, que persiste como problema de dimensões alarmantes, e que conta com a solene desconsideração dos que poderiam reverter o absurdo quadro.

Ignacy Sachs (2008, p. 89), a esse respeito, consigna que:

no entanto, o objetivo não deve ser tanto a mitigação da pobreza, mas a sua erradicação, por meio da combinação da inclusão social pelo trabalho e da implementação de outros direitos da cidadania, tais como o direito à educação, à proteção da saúde, ao acesso à água potável, ao saneamento, a moradias decentes etc.

Sachs (2008, p. 38) localiza o aspecto central do paradigma de desenvolvimen-to justamente na questão da inclusão:

Podemos dizer, no entanto, que a maioria pobre está praticamente excluí-da do processo de desenvolvimento, entendido como apropriação efetiva da totalidade dos direitos humanos [...]. sob algumas circunstancias, a inclusão justa se converte em requisito central para o desenvolvimento. Se o adjetivo deve colocar atenção no aspecto mais essencial do paradigma de desenvolvi-mento, podemos falar então de desenvolvimento includente. (grifo no original)

Para que o desenvolvimento seja buscado com base nos pressupostos elenca-dos anteriormente, fazem-se necessários um Estado atuante nas esferas econômica e social e uma sociedade politicamente ativa, que participe da construção da mu-dança almejada.

Os próprios autores trabalhados no presente texto ressaltam a importância des-sa comunhão para a construção da ideia e da implementação do desenvolvimento multifacetário rumo a uma sociedade igualitária.

Amartya Sen (2000, p. 71) a esse respeito consigna:

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Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva da liber-dade seja colocada no centro do palco. Nessa perspectiva, as pessoas têm de ser vistas como ativamente envolvidas – dada a oportunidade – na con-formação de seu próprio destino, e não apenas como beneficiárias passivas dos frutos e engenhosos programas de desenvolvimento. O Estado e a so-ciedade têm papeis amplos no fortalecimento e na proteção das capacida-des humanas. São papéis de sustentação, e não de entrega sob encomenda.

Esse ponto já foi destacado quando do tratamento da teoria do “desenvolvi-mento como liberdade”, e a aproxima do desenvolvimento sustentável propugnado por Ignacy Sachs.

O autor (2008, p. 61) realça a necessidade de se elaborar estratégias voltadas às especificidades locais, em detrimento de soluções generalizadas, pois o objetivo é atacar problemas e responder às aspirações “de cada comunidade”. E adverte que, para tanto, “deve-se garantir a participação de todos os atores envolvidos (traba-lhadores, empregadores, o Estado e a sociedade civil organizada) no processo de desenvolvimento”.

E a participação deverá ser substancialmente equânime, dados o poderio eco-nômico das empresas e o risco de que essa construção conjunta do futuro redunde em mera retórica. Colacionamos a arguta crítica de Leonardo Boff (2011):

Não nos iludamos: as empresas, em sua grande maioria, só assumem a responsabilidade socioambiental na medida em que os ganhos não sejam prejudicados e a competição não seja ameaçada. Portanto, nada de mu-danças de rumo, de relação diferente para com a natureza, nada de valores éticos e espirituais. Como disse muito bem o ecólogo social uruguaio E. Gudynas: “a tarefa não é pensar em desenvolvimento alternativo, mas em alternativas de desenvolvimento”.

Mais apropriado seria acrescentar, além dos exemplos citados, a sociedade “não--organizada” também, que tem muito a falar, como os “excluídos”, que não participam do mercado de trabalho, nem da dita “sociedade civil organizada”, já que represen-tam as demandas mais urgentes de inclusão social e cidadania.

Também é necessário utilizar-se do conceito moderno de planejamento, que é “essencialmente participativo e dialógico, e exige uma negociação quatripartite entre os atores envolvidos no processo de desenvolvimento” (SACHS, 2008, p. 33). É pertinente reiterar a imprescindibilidade de se inserir, na construção dialógica do planejamento, aqueles que ainda estão à margem do desenvolvimento, para que possam integrá-lo juntamente com os demais setores da sociedade.

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Sachs (2008, p. 62) aprofunda a interação entre Democracia e Desenvolvimento quando aponta que o poder conferido às comunidades “e a abertura de espaços para a democracia direta constituem a chave para as políticas de desenvolvimento (John Friedmann) e pressagiam um novo paradigma de economias mistas que funcionam mediante o diálogo [...]”.

Nesse sentido, diagnostica que as prementes mudanças institucionais (nas ins-tituições nascidas em Bretton Woods) e a adoção de um “comércio justo” provavel-mente não virão através da iniciativa dos países ricos, “satisfeitos com o status quo. Ao contrário, virão do diálogo entre países periféricos e das suas discussões com setores progressistas da sociedade civil dos países centrais” (SACHS, 2008, p. 21).

Mas o autor tem consciência de que os Estados soberanos “são e continuarão sendo o locus principal para a promoção do desenvolvimento includente” (p. 64). Portanto, deverá haver a comunhão entre Estado e sociedade, de diferentes países, para a costura do novo paradigma do desenvolvimento.

E esse “encontro”, com vistas à alteração do quadro de desenvolvimento, é ur-gente. É conforme a advertência de Leonardo Boff (2011): “Chegamos a um ponto em que não temos outra saída senão fazer uma revolução paradigmática, senão seremos vítimas da lógica férrea do Capital que nos poderá levar a um fenomenal impasse civilizatório”.

Para Gilberto Bercovici (2005, p. 53),

o grande desafio da superação do subdesenvolvimento é a transformação das estruturas socioeconômica e institucionais para satisfazer as necessidades da sociedade nacional. Para a efetivação deste objetivo, segundo a proposta de Osvaldo Sunkel e Pedro Paz, é fundamental a participação social, política e cultural dos grupos tradicionalmente considerados como “objeto” do desen-volvimento, que devem torna-se “sujeito” deste processo. Podemos afirmar, então, que a democracia também é essencial para o desenvolvimento.

A tentativa de se pensar uma alternativa ao modelo de desenvolvimento ex-cludente e concentrador deve passar pelo crivo do Direito, sendo a Constituição da República de 1988, especificamente no caso brasileiro, um importante instrumento norteador deste esforço teórico.

A seguir, o enfoque passa a ser voltado ao instrumental proporcionado pela Lei Maior brasileira, em uma análise sistêmica, que não descura das idiossincrasias de nossa realidade, bem como de nosso ordenamento.

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3 O direito ao desenvolvimento e a Constituição da República de 1988

Para Paulo Bonavides (2009, p. 569), um mundo cindido entre países desenvol-vidos e subdesenvolvidos, alguns em situação de precário desenvolvimento, redun-dou na necessidade de se buscar outra dimensão dos direitos fundamentais: aquela “que se assenta sobre a fraternidade, conforme assinala Karel Vasak, e provida de uma latitude de sentido que não parece compreender unicamente a proteção espe-cífica de direitos individuais ou coletivos”.

É a partir dessa reflexão que surgem os direitos fundamentais de terceira geração, sobre os quais alguns autores identificaram indicativamente exemplos: o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, o “direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade”, bem como o direito de comunicação (BONAVIDES, 2009, p. 569).

Segundo Peixinho e Ferraro (2008), o direito ao desenvolvimento é “direito de solidariedade”, relativo à terceira geração dos direitos humanos, sendo uma exigên-cia dos Estados em desenvolvimento durante o período de descolonização ocorrido na década de 1960, “que visava a atingir sua independência política através de uma liberação econômica”. E, consoante a “Declaração sobre o Direito ao desenvolvimen-to das Nações Unidas de 1986 e, posteriormente confirmado na Conferência de Viena sobre Direitos Humanos de 1993, o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável”.

A consagração do direito ao desenvolvimento como direito humano inalienável foi realizada expressamente na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas de 1986:

Artigo 11. O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em vir-tude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados. (ONU, 1986)

Outro relevante aspecto da Declaração é a ênfase na “humanização” do desen-volvimento, tanto com relação à participação popular na construção do mesmo, quanto no que se refere aos benefícios a serem auferidos, o que fica evidente no primeiro dispositivo de seu artigo 2: “A pessoa humana é o sujeito central do desen-volvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvi-mento” (ONU, 1986).

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3.1 A Constituição brasileira e o desenvolvimento

O enlace entre o desenvolvimento e a Constituição brasileira passa pelo Direito Econômico e pelo conceito de Constituição Econômica. Sobre o Direito Econômico, leciona José Luiz Quadros de Magalhães (2008, p. 240):

Esse ramo do Direito regulamenta juridicamente a política econômica que deve estar sujeita à ideologia constitucionalmente adotada; portanto, em uma Constituição que, como a de 1988, estabelece como princípios funda-mentais o respeito à dignidade humana, a erradicação da pobreza, a redu-ção das desigualdades sociais e regionais, a prevalência dos direitos hu-manos, o Direito Econômico se transforma em importante e fundamental mecanismo de transformação da realidade econômica e social, através de uma política econômica adequada aos princípios constitucionais citados.

A Constituição brasileira foi influenciada pelo constitucionalismo social do sé-culo XX que, segundo Bercovici (2005, p. 33), marcou a reflexão sobre a Constituição Econômica, dando ensejo a constituições que “positivam tarefas e políticas a serem realizadas no domínio econômico e social para atingir certos objetivos”, ou seja, que pretendem alterar a estrutura econômica, não mais a recebendo passivamente.

No caso brasileiro essa pretensão da Constituição é explícita. O seu art. 3o é exemplo desse caráter “dirigente” identificado por Bercovici, já que elenca os obje-tivos fundamentais da República, dentre os quais figura a garantia do “desenvolvi-mento nacional”. Mas este não é o único objetivo, motivo pelo qual a busca desse desenvolvimento deverá ser cotejado com os demais, a saber: “construir uma socie-dade livre, justa e solidária”; “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”; “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988).

Portanto, por expressa determinação constitucional, o desenvolvimento brasi-leiro, o qual objetiva a República, deverá buscar a construção de uma sociedade mais justa, a erradicação da pobreza, bem como a redução das desigualdades, e a promoção do bem geral, sem qualquer discriminação.

Segundo Bercovici (2005, p. 36),

O art. 3o da CF, além de integrar a fórmula política, também é, na expressão de Pablo Lucas Verdú, a “cláusula transformadora” da Constituição. A idéia de “cláusula transformadora” está ligada ao art. 3o da Constituição italiana de 1947 e ao art. 9o, 2 da Constituição espanhola de 1978. Em ambos os

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casos, a cláusula transformadora explicita o contraste entre a realidade social injusta e a necessidade de eliminá-la.

Além da “cláusula transformadora” inserta no art. 3o, a análise aborda, ainda, Capítulo I do Título VII da Constituição, denominado “Dos Princípios Gerais da Ativi-dade Econômica”. O art. 170, por exemplo, consagra que “a ordem econômica, fun-dada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (BRASIL, 1988) e dentre o cabedal de princípios consta a função social da propriedade, a defesa do meio ambiente, a busca do pleno emprego, a redução das desigualdades regionais e sociais, entre outros.

Todos esses dispositivos citados são centrais para a configuração do modelo de desenvolvimento a ser levado a cabo pelo Estado brasileiro em conjunto com a sociedade, e com os que hoje se encontram (absurdamente) excluídos da mesma. A política de desenvolvimento nacional a ser perseguida deverá atender a cada um dos elementos constantes no texto constitucional, e esses deverão balizar a constru-ção da ideia e o do projeto a ser empreendido.

E, sobre essa “ideia”, cumpre asseverar que

a ideologia constitucional não é neutra, é política, e vincula o intérprete. Os princípios constitucionais fundamentais, como o art. 3o da CF, são a expressão das opções ideológicas essenciais sobre as finalidades sociais e econômicas do Estado, cuja realização é obrigatória para os órgãos e agentes estatais e para a sociedade ou, ao menos, os detentores de poder econômico ou social fora da esfera estatal (BERCOVICI, 2005, p. 110)

Assim, além dos dispositivos mencionados, obviamente a Constituição deverá ser considerada como um todo coerente, e não interpretada com base em apenas alguns artigos. Os direitos fundamentais são essenciais para o desenvolvimento, for-necendo o conteúdo da atuação de Estado-sociedade, bem como as suas finalidades.

Não há que se falar em desenvolvimento que não tenha como horizonte a con-cretização dos direitos fundamentais. Mais uma vez, vale frisar: a política de de-senvolvimento que não atenta para a multiplicidade de fatores da vida social, e se fecha no reducionismo da abordagem econômica, não deve ser levada adiante, sob pena de se atentar contra a Constituição, que estabelece uma plêiade de elementos a serem contemplados, bem como à própria democracia, que não se reduz à esfera econômica dos interesses individuais e imediatistas.

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4 Conclusão

Enfrentamos o terceiro milênio como o irlandês anônimo que, perguntando sobre o caminho para Ballynahinch, refletiu e disse: “Se eu fosse você, não começaria por aqui”. Mas é por aqui que temos que começar. (HOBSBAWM, 2007, p. 115)

Pretendeu-se com este trabalho levantar alguns aspectos imprescindíveis para a reflexão sobre o desenvolvimento nos dias atuais. Para esse intento, faz-se urgente a aproximação entre a ética, a economia e a política (no sentido teorizado por Amartya Sen e Ignacy Sachs), para que não se corra o risco de perpetuação das injustiças e desumanidades provenientes do atual modelo de crescimento econômico e moderni-zação, que deslocam a questão social (ambiental, territorial, etc) para segundo plano.

Deve-se lutar por um paradigma de desenvolvimento teleologicamente com-prometido com a inclusão social e a mudança estrutural (consoante o pensamento de Sachs) prometidas. Para tanto, não se pode descuidar da imprescindibilidade do aspecto social para que se configure a almejada sustentabilidade no que tange ao desenvolvimento.

Sem inclusão social e participação política popular na construção do novo mo-delo, não haverá, provavelmente, mudanças substanciais na estrutura. É que não é conveniente às elites subverterem o status quo que lhes é favorável (novamente, conforme destacado por Ignacy Sachs). Portanto, a participação popular ganha cen-tralidade neste novo paradigma a ser construído.

Outrossim, a apropriação universal de todos os direitos fundamentais (SACHS, 2008) ganha centralidade, e o combate à fome, por exemplo, com vistas à sua erra-dicação, bem como o ataque frontal à pobreza e à falta de dignidade, se converteram em metas primordiais, cujo o descumprimento equivale ao completo fracasso do projeto de desenvolvimento.

A atuação conjunta de Estado e sociedade civil, mormente através dos movi-mento sociais, e dos excluídos, já que representam o contingente com maior ur-gência de demandas, é essencial para a pretendida mudança paradigmática e para a elaboração participativa de ações a serem implementadas por Estado-sociedade em direção à criação de um ambiente mais fraterno, solidário, de concretização dos direitos fundamentais, e de combate às injustiças.

Especificamente no caso brasileiro, deve ser levada em conta a fase do consti-tucionalismo inaugurado em 1988, que traz relevantes instrumentos para o desen-volvimento nos moldes almejados.

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Parece evidente a íntima ligação entre a Constituição Econômica contida no texto constitucional e a ideia de desenvolvimento sustentável. Lado outro, vê-se claramente a existência de um “direito ao desenvolvimento”, textificado na Constituição.

A aproximação entre as temáticas apontadas fica clara na medida em que observamos os dispositivos constitucionais já citados, como o art. 3o que alberga juntamente com o objetivo de “desenvolvimento nacional” o de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, e de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de dis-criminação” (BRASIL, 1988); o art. 170 que estabelece que a ordem econômica funda-se na “valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (BRASIL, 1988), e ainda apresenta como princípios a função social da propriedade, a defesa do meio ambiente, a busca do pleno emprego, a redução das desigualdades regio-nais e sociais, entre outros.

Cotejando esses e outros dispositivos constitucionais com os pilares do desen-volvimento sustentável, verifica-se muitas aproximações. Vê-se que a Constituição alberga os elementos político, ambiental, econômico, territorial e social, apontados por Ignacy Sachs como os pilares do desenvolvimento sustentável.

Fica evidente, outrossim, a existência de um direito ao desenvolvimento na Constituição de 1988, que elege o desenvolvimento nacional como objetivo funda-mental da República, relacionando-o a vários outros aspectos já mencionados, que o aproximam de maneira intensa ao conceito de sustentabilidade, com a proeminên-cia de seu aspecto social.

Assim, cumpre ao Estado brasileiro se juntar à sociedade para a assunção da tarefa constitucionalmente determinada de construir um caminho para o desen-volvimento atento às questões ambientais, sociais, territoriais, políticas e econô-micas, com a destacada posição do elemento social, para a conversão da socie-dade brasileira, absurdamente desigual, em uma sociedade mais livre, fraterna e igualitária.

Uma sociedade que, ao almejar desenvolver-se, ataca frontalmente a fome, a pobreza e as desigualdades (sejam sociais ou regionais), busca a manutenção de um meio ambiente sadio e equilibrado, e que respeita as nuances regionais de seu diversificado povo, é esse o caminho apontado pela Constituição, a ser concreti-zado pelo povo.

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Elisabete Maniglia - Thiago Lemos Possas653

Como na anedota citada como epígrafe desta conclusão, é lamentável que o iní-cio dessa construção tenha que se dar “por aqui”. Inaceitável que os princípios ainda sejam a erradicação da fome e o combate à pobreza, em um mundo de minoria opu-lenta e, em geral, indiferente à sorte da maioria. Já passa da hora de empreender--se um esforço no sentido de construção de uma sociedade não-individualista, que tenha como norte a dignidade humana, e que reparta a riqueza produzida de forma justa, sem amealhar a poucos o que pertence a todos.

Em trecho do conhecido poema “Mãos dadas”, Drummond (2007, p. 59) registra a importância do pertencimento ao mundo presente:

Estou preso à vida e olho meus companheiros.Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.Entre eles, considero a enorme realidade.O presente é tão grande, não nos afastemos.Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

E é de um presente anacrônico e desolador que se é obrigado a partir.

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Direito ao desenvolvimento, sustentabilidade, e a Constituição da República de 1988

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5 Ações afirmativas e direito fundamental

à educação: uma análise à luz das cotas

raciais universitárias

REGINA MARIA FERREIRA DA SILVA

Mestranda em Ciências da Educação (UNINTER - Paraguai). Pós-graduanda em

Direito Constitucional (UNIDERP). Professora (FERA/AL). Advogada.

Artigo recebido em 02/12/2011 e aprovado em 24/09/2012.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Ações afirmativas versus racismo: conceito, origem e escorço histórico 3 A eficácia do direito social fundamental à educação sob a ótica do princípio da igualdade 4 Em defesa das ações afirmativas para negros e índios: igualdade no acesso ao ensino superior público no Brasil 5 Conclusão 6 Referências.

RESUMO: O tema do presente artigo é a efetivação do direito fundamental à edu-cação por meio de ações afirmativas. Neste particular, será pesquisado o acesso de negros e índios à educação no País, com ênfase no ensino superior, abordando-se o aspecto histórico e cultural, de modo que será analisada a constitucionalidade do sistema de cotas nas universidades públicas à luz do princípio da isonomia, a sua viabilidade, observando-se ainda se o êxito almejado pela ação afirmativa das cotas raciais foi ou está sendo logrado pelos jovens brasileiros que integram o sistema em comento.

PALAVRAS-CHAVE: Direito à educação Ações afirmativas Negros e índios Acesso ao ensino superior.

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Affirmative action and the fundamental right to education: an analyze in light of

university’s racial quotas system

CONTENTS: 1 Introduction 2 Affirmative action versus racism: concept, origin and historical foreshortening 3 The effectiveness of fundamental right to education in light of the principle of equality 4 In defense of affirmative action for afro-brazilian and indigenous people: equal access to public higher education in Brazil 5 Conclusion 6 References.

ABSTRACT: The theme of this article is the realization of the fundamental right to education through affirmative action. In particular, access to education for afro--brazilian and indigenous people in the country is thematized, with an emphasis in higher education, addressing its historical and cultural aspects, so that the constitu-tionality of the quota system in public universities under the principle of equality is analyzed. It is also analyzed the viability of quota system, observing if the pursued success of racial quotas’ affirmative action or was or is being achieved by young Brazilians that integrate it.

KEYWORDS: Right to education Affirmative action Afro-brazilian and indigenous people Access to higher education.

Acción afirmativa y el derecho fundamental a la educación: un análisis a la luz del

sistema de cuotas raciales universitario

CONTENIDO: 1 Introducción 2 Acción afirmativa versus racismo: concepto, origen y escorzo his-tórico 3 La eficacia del derecho fundamental a la educación a la luz del principio de la igualdad 4 En defensa de la acción afirmativa para las personas afrobrasileñas e indígenas: la igualdad de acceso al público la educación superior en Brasil 5 Conclusión 6 Referencias.

RESUMEN: El tema de este artículo es la realización del derecho fundamental a la educación a través de la acción afirmativa. En particular, el acceso a la educación para las personas afrobrasileñas e indígenas en el país está tematizado con un énfa-sis en la educación superior, dirigiéndose a su aspecto histórico y cultural, de modo que se analiza la constitucionalidad del sistema de cuotas en las universidades pú-blicas, bajo el principio de igualdad. También se analiza la viabilidad del sistema de cuotas, observando si lo perseguido éxito de la acción afirmativa de cuotas raciales fue o está siendo alcanzado por los jóvenes brasileños que lo integran.

PALABRAS CLAVE: Derecho a la educación Acción afirmativa Afrobrasileños y pueblos indígenas Acceso a la educación superior.

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1 Introdução

A implantação, inicialmente tímida, do sistema de cotas nas universidades pú-blicas brasileiras, vem sendo objeto de estudo para os cientistas e operadores

do Direito, bem como para tantos outros profissionais que se encontram envolvidos direta ou indiretamente nesta novel política.

O tema tem suscitado polêmicas discussões, de sorte que é questionada a cons-titucionalidade dessa medida consubstanciada em uma ação afirmativa.

Alguns defendem que é um meio de se realizar justiça social, em virtude da histórica discriminação enfrentada pelos povos negros e indígenas, quer no âmbito do trabalho, quer no âmbito da educação, quer no convívio com a sociedade.

Por outro lado, questiona-se se é possível identificar de maneira segura a raça a que pertence o cidadão brasileiro que se candidate a prestar vestibular para ingres-sar na universidade por meio do sistema de cotas.

A própria comunidade de estudantes por vezes se vê prejudicada, em razão de parte das vagas ofertadas no vestibular serem reservadas aos alunos negros.

Por conseguinte, este tema demonstra bastante relevância do ponto de vista social e científico, merecendo ser investigado.

No primeiro capítulo, serão conceituadas as ações afirmativas e investigadas a sua origem e a sua expansão pelo mundo, observando-se o histórico do racismo e das ações que surgiram na tentativa de minimizar seus efeitos.

No capítulo subsequente, será estudada a eficácia do direito fundamental à educação, na perspectiva do princípio da igualdade. Ademais, será analisada a juris-prudência do Supremo Tribunal Federal no tocante à decisão proferida em sede da ADPF no 186, que trata da política de cotas para negros e indígenas na Universidade de Brasília, além de um breve estudo acerca do Estatuto da Igualdade Racial.

No último capítulo, serão apresentados os argumentos contrários e favoráveis ao sistema de cotas nas universidades, assim como será apresentado um panorama geral da adoção dessa política nas universidades brasileiras.

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2 Ações afirmativas versus racismo: conceito, origem e escorço histórico

2.1 Conceituando as ações afirmativas

As ações afirmativas podem ser conceituadas, genericamente, como medidas positivas tomadas pelo Estado, com vistas a assegurar a igualdade de oportuni-dades para todas as pessoas, num determinado segmento, impedindo, assim, a discriminação negativa.

Os Estados Unidos da América foram o país pioneiro na adoção dessas medidas, e sua aplicação inicial se deu no âmbito das relações trabalhistas, no século XX, no governo presidencial de John F. Kennedy (década de 1960).

Podem ser conceituadas, ainda, como sendo políticas públicas ou privadas, es-pontâneas ou impostas, com o escopo de erradicar as diferenças de tratamento, co-locando todos os envolvidos num patamar de igualdade de oportunidades, quer seja no campo laboral, na educação ou em sede de qualquer outro direito fundamental ou humano. Elas são medidas especiais e temporárias e visam corrigir discrimina-ções historicamente acumuladas (VILAS-BÔAS, 2003, p. 29).

Além disso, as ações afirmativas podem se revestir de natureza pública ou privada, ou seja, não incumbe apenas ao Estado a prática de tais medidas. Assim, pode-se inferir que:

Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjun-to de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes na discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a edu-cação e o emprego. (GOMES, 2001, p. 40)

Na lição de Guilherme Peña de Moraes (2004, p. 108), as ações afirmativas podem ser definidas como políticas que têm por objetivo conceder algum tipo de benefício a minorias ou grupos sociais que se encontrem em condições de desvantagem em certo contexto social, em virtude de discriminações históricas ou atuais.

Ademais, acrescenta que os meios de se efetivarem as referidas ações são o sistema de cotas ou pontuação, bem como a oferta de treinamentos ou capa-citações profissionais, além da reformulação de políticas de contratação e pro-moção de empregados. Quanto às finalidades, afirma que buscam o estabeleci-

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mento de relações de emprego, a delegação de serviços de comunicação social, a contratação e o dispêndio de recursos públicos e a admissão em instituições de ensino superior.

2.2 Breve escorço histórico das ações afirmativas no Brasil e no mundo

2.2.1 Origem das ações afirmativas (EUA)

A expressão “ação afirmativa” foi utilizada, pela primeira vez, nos Estados Unidos da América, para designar uma ação de inclusão social dos negros no mercado de trabalho norte-americano, no governo de John F. Kennedy (WALTERS, 1997, p. 105).

A expressão teria sido usada por Hobart Taylor, oficial afro-americano na administração de Kennedy, ao descrever a abordagem do Presidente dos Esta-dos Unidos no tocante à Comissão de Práticas de Emprego Justas (Fair Employ-ment Practices Comission – FEPC), em seção do Projeto de Lei dos Direitos Civis, elaborado em 1963.

Outros autores, a exemplo de Guilherme Peña de Moraes, confirmam o uso ini-cial do vocábulo “ações afirmativas” na mesma época aludida por Walters. Ele asse-vera que a expressão foi introduzida no Executive Order no 10.925/63, no qual se impedia a contratação discriminatória por parte do Governo Federal, de forma que critérios como a raça, o credo, a cor ou a nacionalidade não poderiam ser levados em conta (MORAES, 2004, p. 113). Os candidatos aos empregos e cargos públicos deveriam ter condições de acesso igualitárias, sem quaisquer formas de discrímen.

Todavia, antes mesmo de haver uma referência expressa a essa recente termi-nologia, os estudiosos identificam a sua previsão desde o século XIX nos Estados Unidos da América. É possível apontar para a origem das ações afirmativas com a promulgação da Lei dos Serviços dos Libertos, ipsis litteris:

Com pertinência à origem, as ações afirmativas remontam à Lei dos Servi-ços de Libertos (Freedman’s Bureau Act), que instituiu um serviço no Depar-tamento de Guerra dos Estados Unidos da América para dispensar cuidados e proteção aos escravos libertos e realizar a supervisão de terras abando-nadas em 1865. (MORAES, 2004, p. 108)

Ademais, há autores que acusam o seu emprego mesmo antes do governo de Kennedy, como aponta Renata Vilas-Bôas (2003, p. 33), in verbis:

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A expressão affirmative action (ações afirmativas) foi empregada pela pri-meira vez em 1935, no Ato Nacional das Relações do Trabalho1 (Estados Unidos) que proibia o empregador de exercer qualquer forma de repressão contra os membros e líderes dos sindicatos. Nesta ocasião, fora reivindica-da a adoção de medidas visando a recolocação dos trabalhadores, vítimas de discriminação, na posição em que estariam se não houvessem sido dis-criminados.

A ação afirmativa voltada à igualdade de oportunidades no âmbito trabalhista norte-americano teve início com a aprovação do Título VII da Lei dos Direitos Civis, em 1964. Tal título da lei vedava quaisquer formas de discriminação no emprego, seja qual fosse o fundamento: sexo, raça, crença, cor ou origem nacional.

A referida lei estabeleceu princípios para uma longa caminhada em busca da igualdade no ambiente laboral e foi resultado das reivindicações sociais oriundas do Movimento dos Direitos Civis de 1960, conforme esclarece Ronald Walters.

O autor expõe ainda o posicionamento de Martin Luther King, ativista político estado unidense, bastante atuante no governo de John Kennedy, assumido por Lyn-don Johnson, após sua morte. Defendia um tratamento diferencial para qualquer grupo minoritário.

A posição do famoso ativista negro, no tocante à defesa da sua raça, tinha como fundamento as sequelas deixadas pela secular escravização dos negros, que ter-minou privando-os do direito constitucional ao salário, além da longa trajetória de humilhações por que passaram.

Ronald Walters, ao mencionar a declaração feita por Luther King - em entrevista à revista Playboy, em 1965 - na qual o líder político defende o tratamento diferen-ciado para os afrodescendentes, na tentativa de lhes conceder iguais oportunidades no âmbito laboral, afirma que:

A declaração de Luther King já diz muito sobre o passado, mas a condição da pessoa negra na América de 1964 era ainda muito segregada. Os negros viviam em guetos raciais, distantes dos brancos e, na maior parte do país, não podiam usufruir de maneira integral dos bens e serviços públicos, tais como restaurantes, teatros [...] Os negros não podiam usar os mesmos be-bedouros, banheiros e praças dos brancos. (WALTERS,1997, p. 105)

1 Na primavera de 1935, em resposta aos problemas na Suprema Corte, ao crescente ceticismo no Con-gresso, e ao crescente clamor popular, a administração de Roosevelt aprovou diversas importantes ini-ciativas. O National Labor Relations Act (Ato de Relações Trabalhistas Nacionais) fortaleceu a proteção de sindicatos. Ademais, novos programas de assistência social deram apoio à população menos favorecida; criaram-se milhares de vagas de empregos para os desempregados naquele momento histórico.

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Como se pode vislumbrar, o dia-a-dia dos negros residentes nos Estados Unidos, ainda na década de 1960, era um verdadeiro suplício. Os afro-americanos eram submetidos a uma espécie de tortura psicológica, de modo que pagavam os mesmos impostos que os brancos, embora não usufruíssem dos mesmos direitos, bens e ser-viços públicos. Tal situação perdurara injustamente por longas décadas, em virtude da origem escravocrata da raça negra aliada à histórica e ignóbil discriminação racial por parte da população branca.

O esboço das primeiras práticas focadas na igualdade de acesso ao trabalho nos Estados Unidos, para brancos e negros, surgiu com a Comissão de Práticas de Em-prego Justas (Fair Employment Practices Comission – FEPC), instituída pelo Presidente John Kennedy, cuja implementação na via administrativa viria a surgir nas presidên-cias subsequentes (WALTERS, 1997, p. 106).

O debate acerca das políticas de ação afirmativa, atualmente, tanto nos Estados Unidos como também no Brasil, contempla pelo menos duas perspectivas.

A primeira delas, de cunho axiológico e normativo, segundo a qual toda e qualquer pessoa há de ser tratada com base em suas características individuais de desempenho e de mérito, sem levar em consideração o grupo social no qual está inserida (GUIMARÃES, 2009, p. 166).

A segunda vertente, segundo o mesmo autor, é de caráter liberal e consente num tratamento diferenciado para indivíduos integrantes de determinados grupos sociais que sofrem, ou sofreram, alguma espécie de discriminação negativa, aquela que é prejudicial à dignidade da pessoa humana.

2.2.2 Expansão das políticas de ação afirmativa

Apesar de precursores, os Estados Unidos não foram o único país a desenvolver práticas de ação afirmativa. Outros países seguiram o exemplo norte-americano, instituindo políticas de discriminação positiva, com o objetivo de garantir a repre-sentatividade aos membros de grupos minoritários ou discriminados.

A esse respeito, afirma César Moura Brandão (2011, p. 7):

Dentre esses países, destaca-se a Índia, que, após tornar-se independente (1947), adotou com êxito medidas para garantir assento no Parlamento a representantes das castas ditas inferiores (intocáveis) e vários países da Comunidade Européia, que adotaram medidas para reduzir as desigual-dades de gênero.

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A implantação de ações afirmativas na África do Sul adveio da extrema discrimi-nação sofrida pelos negros desde a época do apartheid.

Ocorre que antes mesmo de sua implantação, outros atos de discriminação negativa antecederam esta tão famigerada política de segregação racial, levada a efeito pelos governantes sul-africanos por um período de 46 anos (MORAES, 2004, p. 111), como o Industrial Dispute Prevention Act (1909) e o Native Regulation Act (1911), normas que discriminavam trabalhadores negros, oriundas de disputas en-tre patrões e operários2. De fato, o apartheid vigorou por bastante tempo, trazendo marcas profundas na triste história da civilização da África do Sul, mormente para os negros que viveram naquela época.

Os dois atos citados foram seguidos de outros: o Bantu Labor Act (1953), cujo título resultara do nome dado às tribos nas quais se organizaram os negros segrega-dos pelo sistema do apartheid. Este reduziu o poder industrial dos operários negros e considerava a greve dos agricultores da respectiva tribo uma infração penal; e o Industrial Conciliation Act (1956), todos impregnados de medidas preconceituosas, racistas e excludentes, as quais retiravam dos negros os direitos inerentes à relação de trabalho. Este último ato proibiu o registro de quaisquer novos sindicatos “mistos” e impôs ramos racialmente separados. Não se podia reunir brancos e negros nos sindicatos ou comitês3.

Guilherme Peña de Moraes (2004, p. 112) acrescenta que o propósito das ações afirmativas “seria a neutralização dos efeitos do apartheid”, como uma tentativa de corrigir esse passado horrendo, as quais estavam em conformidade com a Consti-tuição da África do Sul. A Carta Magna previa a igualdade perante a lei, com o gozo pleno e igualitário de direitos e liberdades por todos.

Não se pode olvidar que, além da consolidação de um Estado democrático, as legislações infraconstitucionais da África do Sul, que surgiram sob a égide de sua novel Constituição, garantiram à população negra ações de discriminação positiva, no sentido de se estabelecerem novas relações de emprego.

2 Conforme texto disponível na seguinte página da internet: http://www.nelsonmandela.org.

3 Adaptado de página da internet: http://en.wikipedia.org/wiki/Industrial_Conciliation_Act,_1956.

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A Constituição sul-africana foi um marco do fim da exploração secular dos ne-gros naquele país, tendo a Carta Constitucional entrado em vigor em 19974.

No que diz respeito ao Canadá, pode-se constatar a existência de diferentes normas, constitucionais, legais, de âmbito federalista ou provincial, conforme este-jam voltadas para as relações no setor privado ou público (MORAES, 2004, p. 112).

O Brasil também iniciou sua trajetória no processo de implantação de medidas de discriminação positiva quando, ainda na década de 1960, por meio da norma intitulada Lei do Boi (Lei 5.465/68), trazia o benefício da reserva de vagas para candidatos agricultores ou para os filhos destes, para ingresso nos estabelecimen-tos de ensino médio agrícola e nas escolas de nível superior, cujos cursos eram de agricultura e veterinária (GOMES, 2001, p. 17).

Todavia, passaram-se algumas décadas até que a Justiça e os órgãos governa-mentais manifestassem um maior ou real interesse pelas políticas públicas voltadas à discriminação positiva.

Foi em julho de 1996, segundo o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, que o Ministério da Justiça convocou a Brasília, diversos pesquisadores, brasileiros e americanos, bem como várias lideranças negras do país, para participarem de um seminário internacional intitulado “Multiculturalismo e racismo: o papel da ação afirmativa nos estados democráticos contemporâneos”. Segundo o autor, “foi a pri-meira vez que um governo brasileiro admitiu discutir políticas públicas específicas voltadas para a ascensão dos negros no Brasil” (GUIMARÃES, 2009, p. 105).

2.3 A formação do racismo na sociedade brasileira: apontamentos acerca de uma

discriminação baseada na cultura de escravidão de negros e índios

Pensar em ação afirmativa para corrigir desigualdades históricas e étnico-so-ciais significa pensar também em promover a justiça social para os povos indígenas.

O renomado jurista Dalmo de Abreu Dallari (2007, p. 30) expõe sua opinião acerca desta temática, em capítulo de obra intitulado “O Brasil rumo à sociedade justa”, conforme transcrição ipsis litteris:

4 Quando as eleições de 1994 foram realizadas, nascia, naquele momento, uma nova África do Sul. Nel-son Mandela, líder negro sul-africano que ficou preso por 27 anos, devido ao ideal de acabar com o apartheid, venceu a eleição. Três séculos de soberania dos brancos sobre a maioria negra da população finalmente chegavam ao fim. Esse novo começo para o país chamado de “Rainbow Nation” significava, pela primeira vez, que todas as pessoas da África do Sul, independentemente da cor, credo ou sexo, eram iguais. Em 1997, uma constituição inédita garantiu ao povo esses direitos.

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Desde o início da colonização do território brasileiro pelos portugueses, no ano de 1500, foi estabelecida no Brasil uma sociedade profundamente marcada pela diferenciação entre os novos senhores da terra e os outros. As primeiras vítimas dessa nova sociedade foram os índios. [...] Calculam os historiadores que existiriam no Brasil, no ano de 1500, entre quatro e cinco milhões de índios. Mas eles foram sendo dizimados, ou pelas armas ou por falta do ambiente natural que garantia sua sobrevivência. [...] Hoje restam menos de trezentos mil índios, muito deles vítimas da espoliação e das pressões da sociedade circundante.

Podemos exemplificar a espoliação por que passam os índios no Brasil contem-porâneo com as perseguições levadas a cabo pelos desbravadores da atualidade, a exemplo dos agricultores que com aqueles disputam a demarcação de terras pro-dutivas. César Augusto Baldi (2011, p. 1), também constitucionalista, faz alusão ao confronto entre indígenas e agricultores na reserva indígena Raposa Serra do Sol, região pertencente a Roraima, ao afirmar que:

A polêmica envolvendo a demarcação Raposa Serra do Sol em área con-tínua, com a liminar do STF suspendendo a desintrusão dos arrozeiros das terras já homologadas por Portaria do Ministério da Justiça, colocou a “questão indígena” como matéria de discussão. Não da melhor forma, con-tudo. Primeiro, porque a informação veiculada [...] tem destacado a violên-cia praticada pelos indígenas a outros cidadãos, sem investigar as causas possíveis de tais atitudes, nem salientar eventuais violências praticadas contra as mesmas populações. Como um de lado parecem estar “civilizados” e, de outro, “bárbaros” ou “selvagens”, não há qualquer preocupação de as populações envolvidas serem ouvidas.Segundo, porque elas reatualizam o imaginário político-social que ainda associa índios a incapacidade civil, cooptação, manipulação e necessidade de tutela, num estado de “menoridade”, para qual somente podem ser “ob-jetos de estudo”, nunca “sujeitos de direito”.

O jurista prossegue, afirmando que a inviabilização da escravização dos índios estimulou a escravidão dos negros oriundos da África. Ademais, ressalta que, com a abolição da escravatura no País, os negros foram alforriados, porém, embora livres, não tinham dinheiro, tampouco preparo profissional, razão pela qual passaram a constituir um segmento marginalizado da sociedade brasileira. Afirma que “vivendo na miséria [...], vítimas de um tratamento preconceituoso, passaram a trabalhar nas atividades mais rudimentares e com menor remuneração, o que arrastou muitos deles para a criminalidade, agravando ainda mais os preconceitos” (DALLARI, 2007, P. 30), ainda que se neguem tais discriminações.

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Ainda no que diz respeito à injustiça social dos negros no Brasil, é possível afirmar que:

Na prática os negros brasileiros, em sua grande maioria, continuam a per-tencer às camadas mais pobres da população brasileira. Entretanto, embo-ra com evidente lentidão, os negros vão conquistando lugares nas univer-sidades e nas profissões de mais alta qualificação. A presença de negros nos cargos de representação política também vai aumentando [...]. É muito forte a presença negra nas áreas do esporte e da música popular, mas, nes-ses dois casos, aquele que revela melhores qualidades consegue prestígio social e derruba as barreiras do preconceito. (DALLARI, 2007, p. 32)

Retornando às ações afirmativas em prol dos indígenas, o ilustre constitu-cionalista Walter Claudius Rothenburg (2007, p. 285) afirma que, no âmbito de tais ações, há uma dimensão redistributiva – ainda que não exclusiva –, uma vez que tais ações “reconhecem e almejam expurgar um pecado passado, que tanto prejudicou especialmente determinada parcela da população, quanto beneficiou desproporcionalmente outra, com projeção no presente e na perspectiva futura”, prejuízo este que, no caso dos índios, corresponde à perda de sua moradia, de suas terras para cultivo, de seu ambiente natural, enfim, de suas condições de subsis-tência e da sua própria dignidade humana.

O autor esclarece ainda que também o acesso à universidade pode ser facilitado aos indígenas por meio das políticas de cotas ou outras modalidades de operaciona-lização das ações afirmativas, conforme transcrição a seguir:

O acesso ao ensino superior também pode ser facilitado por meio de mo-dalidades de ação afirmativa, de que a mais conhecida é a reserva de va-gas, mas que pode ter como alternativa ou como conjugação atribuição de pontuação extra para candidatos índios. Refira-se, a propósito, o exemplo da Universidade de Brasília (UnB), a primeira Universidade Federal brasi-leira a realizar vestibular exclusivamente para indígenas. Para tanto, foi firmado um convênio com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em 2004. (ROTHENBURG, 2007, p. 286)

Para efetivar tal medida afirmativa, a Funai indica os cursos que possuem de-manda por parte das comunidades indígenas, assim como é responsável pelo enca-minhamento dos candidatos e pelo apoio, bem como pela manutenção em Brasília dos aprovados no processo seletivo, por meio de concessão de moradia e bolsas de estudo. Para participar do processo de seleção, aos indígenas são exigidos: auto-

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declaração de indígena, carta de recomendação da liderança da aldeia de origem, histórico escolar5 (ROTHENBURG, 2007, p. 286).

3 A eficácia do direito social fundamental à educação sob a ótica do princípio da

igualdade

3.1 O direito à educação: noções preliminares

Para que se compreenda a essência da temática da eficácia da política ou do sistema de cotas para a efetivação do direito à educação de jovens no Brasil, mister se faz conhecer o alcance da expressão direito à educação.

Num aspecto subjetivo, o direito à educação equivale ao direito que todo su-jeito, enquanto cidadão, possui de ter acesso a um sistema educacional de ensino, tanto no âmbito estatal, por meio de escolas públicas, como no âmbito privado, em instituições de ensino que são autorizadas pelo Estado a funcionar. É o direito que todo indivíduo tem de ser inserido no sistema formal de ensino, pois a educação dita informal é aquela que faz parte do meio ambiente cultural e doméstico do estudan-te, a qual é incumbida aos pais ou responsáveis legais.

Ainda no aspecto subjetivo, mas numa maior abrangência, o direito à educação corresponde ao direito que cada sujeito possui de ser capacitado ou qualificado para o trabalho, de aprimorar o seu intelecto e de se desenvolver integralmente, bem como de ser instruído a participar do espaço democrático, por meio do exercício da cidadania. Na realidade, esses são os fins ou objetivos da educação.

Já no aspecto objetivo, o direito à educação compreende um conjunto de nor-mas jurídicas que regulam o sistema educacional brasileiro, o processo de ensino--aprendizagem ou ainda o dever do Estado de prestar o serviço educacional.

Por ora, é pertinente o estudo do direito à educação na sua dimensão subjetiva.O douto constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 326) inclui o direito

social à educação no rol dos direitos prestacionais, que impõem uma prestação por parte do Poder Público. O referido professor leciona que o direito social à educação é direito fundamental, estando insculpido no art. 6o da Constituição Federal, inte-grando, por conseguinte, o catálogo de direitos fundamentais.

Todavia, o referido direito foi exaustivamente detalhado no Título constitucio-nal que trata da Ordem Social, mais precisamente nos arts. 205 a 214 da Constitui-

5 Dados divulgados pela própria Universidade de Brasília.

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ção Federal de 1988, o que gerou uma discussão acerca da fundamentalidade ou não dos preceitos que versam sobre a educação.

Nesse contexto, Emerson Garcia (2011, p. 12) defende que o direito à educação, considerado em sua ampla abrangência, é direito fundamental, afirmando que:

À fundamentalidade recebida do texto constitucional e de inúmeras conven-ções internacionais se associa o fato de o direito à educação estar direta-mente relacionado aos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, em especial com o da dignidade da pessoa humana. [...] A efetividade do direito à educação é um dos instrumentos necessários à construção de uma sociedade livre, justa e solidária; [...] com a redução das desigualdades sociais e regionais; e à promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Nesse ínterim, pode-se afirmar que “a problemática da eficácia do direito fun-damental à educação depende, em muito, da circunstância de se ter, ou não, certeza sobre a fundamentalidade dos diversos preceitos” (SARLET, 2004, p. 326).

O referido autor considera que ao menos os quatro primeiros dispositivos cons-titucionais que tratam do direito à educação são preceitos fundamentais, integrando a essência do direito fundamental à educação, a saber: arts. 205 a 208 da Constitui-ção Federal. Mas, embora fundamental, o preceito constitucional pode não produzir seus efeitos integral e imediatamente, conforme se verá adiante.

3.2 Eficácia do direito social fundamental à educação e o direito à igualdade

A verificação da eficácia de um direito fundamental pressupõe a constatação ou não da produção dos efeitos pretendidos pelo legislador constituinte. Com efeito, quando o legislador prescreve uma determinada norma, originando um direito es-pecífico, ele o faz pensando na sua concretização.

Ocorre que, a depender da natureza da norma, esse direito pode vir a se concreti-zar em sua plenitude tão logo a Constituição seja promulgada (norma de eficácia ple-na); ou, então, a sua eficácia plena pode depender de uma norma infraconstitucional posterior, que é denominada lei integradora (norma de eficácia limitada ou de cunho programático), de modo que essa norma alcança alguns de seus efeitos pretendidos, necessitando de uma ulterior regulamentação para complementar a sua eficácia; ou pode ser que a norma tenha a plenitude de sua eficácia, mas que esteja sujeita à ulte-rior restrição de seus efeitos, por meio de uma norma infraconstitucional subsequente. Este último caso é a hipótese da norma de eficácia contida ou restringível.

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Nas normas de cunho programático, o enunciado constitucional é uma diretriz para a futura concretização do direito. Diz-se norma programática porque enseja um programa ou planejamento para o alcance de metas que venham a consolidar a eficácia plena de determinado direito.

Tal classificação das normas constitucionais quanto à produção de seus efeitos ou à sua aplicabilidade é lecionada pelos constitucionalistas em geral, contudo, a denominação das normas varia conforme o autor. A referida classificação foi es-tudada por José Afonso da Silva, Michel Temer, Maria Helena Diniz, entre outros renomados autores.

Ingo Sarlet leciona que o art. 205 da Constituição (BRASIL, 1988), que enun-cia “[A] educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”, é norma de eficácia limitada ou programática, não viabilizando por si só o reconhecimento de um direito subjetivo, afirmando que:

[...] apenas estabelece fins genéricos a serem alcançados e diretrizes a se-rem respeitadas pelo Estado e pela comunidade na realização do direito à educação, quais sejam, o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (SARLET, 2004, p. 327, grifos nossos)

Já o art. 207, que institui a autonomia universitária, embora seja um princípio, para o consagrado autor “constitui norma plenamente eficaz e diretamente aplicável, atua como limite expresso contra atos que coloquem em risco o conteúdo essencial da autonomia da instituição protegida, atuando, assim, como direito fundamental de natureza defensiva” (SARLET, 2004, p. 328).

No que diz respeito ao objeto de estudo deste trabalho, ações afirmativas materia-lizadas por meio de políticas de cotas para ingresso na educação superior, o dispositivo constitucional que interessa mais de perto é o princípio educacional que trata de igual-dade de condições para o acesso e permanência na escola, previsto no art. 206, I, CF/88.

Embora esse dispositivo faça alusão à escola, pode-se considerar incluso nesse princípio o ensino superior, haja vista que a igualdade de condições para ingressar em uma instituição educacional deve ser priorizada em qualquer nível de ensino. Ademais, a igualdade é princípio constitucional básico, que deve ser respeitado em quaisquer esferas e circunstâncias da vida cotidiana.

Outrossim, as normas contidas no art. 206 da Constituição são de eficácia plena, conforme transcrição a seguir:

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No art. 206 da nossa Constituição, que contém normas sobre os princípios que embasam o ensino, encontram-se diversos dispositivos que inequivo-cadamente são diretamente aplicáveis e dotados de plena eficácia. É o caso, por exemplo, da garantia da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art. 206, inc. I), que constitui concretização do princípio da isonomia. (SARLET, 2004, P. 328)

Destarte, sendo a igualdade de condições para o acesso ao ensino um preceito de eficácia plena, pressupõe-se que deve ser imediatamente assegurado, não depen-dendo de qualquer regulamentação posterior.

Nesse diapasão, cabe indagar se o sistema de cotas para ingresso de negros e índios na universidade pública é medida que assegura a efetivação do direito à educação, na esfera deste princípio educacional previsto na Constituição. Ou seja, convém indagar se a política de reserva de vagas para grupos desfavorecidos, nas universidades estatais, é medida que confere um tratamento isonômico.

Assim, quando se inicia o debate em torno das ações afirmativas é fácil consta-tar a construção de uma polêmica em torno da tão almejada igualdade. Mas qual a igualdade vislumbrada pelos estudiosos ou operadores do Direito, pelos sociólogos, pelos brancos, pelos negros, pelos índios, enfim, pela sociedade civil como um todo?

A igualdade que se busca consistiria numa mera equiparação de natureza formal? Ou será que a igualdade que se pretende atingir residiria numa construção de idên-ticas oportunidades para todos, de maneira que fosse possível desigualar os desi-guais, na medida em que se desigualam? Conforme lição de Aristóteles, reproduzida pelo ilustre jurista Ruy Barbosa, em sua célebre obra Oração aos Moços (1999).

A segunda opção, indubitavelmente, é a mais acertada. Pois, de que vale decla-rar em uma lei ou em qualquer outro texto normativo que os pardos possuem os mesmos direitos que os brancos, se a estes e àqueles não forem oferecidas iguais oportunidades ou recursos necessários para a efetivação desta enunciação norma-tiva? Com efeito, tornar-se-ia a norma jurídica um preceito inócuo, sem o condão de promover a igualdade real.

E, ainda no que diz respeito ao princípio da igualdade, “a concepção de que o homem, em sua essência, possui um status quo segundo o qual todos nós somos ori-ginalmente indistintos consubstanciou-se na igualdade jurídica prevista nas Cons-tituições então surgidas como símbolo do Estado Moderno” (ALMEIDA, 2009, p.86). Porém essa concepção revela uma igualdade meramente formal, sem garantias de qualquer efetivação, uma vez que considera todos os homens em patamar de igual-dade, sem observar as diferenças naturais oriundas do seio da sociedade.

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A igualdade de todos perante a lei, portanto, não faz qualquer espécie de dis-tinção entre os sujeitos, ainda que mínima, causando verdadeiras injustiças e distor-ções da realidade social, mascarando as reais e indiscutíveis diferenças intrínsecas nas relações sócio-culturais. Ainda nesse diapasão, é relevante afirmar que:

A igualdade formal, ou de previsão, não olhava seus destinatários e aparen-tou satisfazer os anseios jurídicos e filosóficos dos pensadores e ativistas sociais, entretanto, ao longo do tempo, não se mostrou suficiente, pois a lei cega não levava em conta os desvios característicos da vida em sociedade, a exemplo da discriminação. (ALMEIDA, 2009, p. 86)

A igualdade material é justamente o oposto da formal. Também chamada de igualdade de execução, ela surge em busca da efetivação da justiça. A autora continua afirmando que “aqui temos uma postura mais ativa do Estado, que deve adotar as me-didas necessárias ao desenvolvimento e proteção de determinados grupos e seus in-divíduos notadamente frágeis e desfavorecidos socialmente” (ALMEIDA, 2009, p. 87).

Os constitucionalistas, de uma maneira geral, lecionam que “o princípio da igualdade, isonomia, equiparação ou paridade, consiste em quinhoar os iguais igual-mente e os desiguais na medida de sua desigualdade” (BULOS, 2010, P. 536), con-forme ensinou Aristóteles muito tempo atrás.

Ocorre que a grande problemática que gira em torno do tema da isonomia é a definição de quais situações são situações de igualdade ou desigualdade.

A esse respeito, a doutrina faz distinção entre as ações afirmativas e as discrimina-ções negativas, atitudes que podem dar ensejo a situações de isonomia ou desigualdade.

Segundo o constitucionalista supracitado, as ações afirmativas, também intitu-ladas discriminações positivas ou desequiparações permitidas, foram consagradas pelo legislador constituinte, o qual não se escusou de conceder um tratamento dife-renciado para determinados grupos, em razão de terem sofrido marginalizações no decorrer da história. Assim Uadi Lammêgo (2010, p. 537) expõe seu entendimento acerca das referidas ações:

Busca-se compensar os menos favorecidos, dando-lhes um tratamento condigno do mesmo modo daqueles que nunca sofreram quaisquer res-trições. Aqui se encontram os idosos, as mulheres, os negros, os pardos, os índios, os homossexuais, os deficientes físicos, os quais nunca tiveram, ao longo da história constitucional brasileira, os mesmos direitos e privilégios dos brancos, ricos, detentores de poder e destaque social.

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Nesse contexto, convém destacar a relevante contribuição do neoconstituciona-lista Ronald Dworkin, exposta por Ferraz, ao sintetizar os ensinamentos desse ilustre constitucionalista em sua célebre obra “A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade”, fazendo alusão à teoria de Dworkin intitulada igualdade de recursos, onde afirma que tal igualdade:

[...] requer uma distribuição sensível às escolhas que as pessoas realizam, porém insensível às circunstâncias. Ou seja, parte-se da posição funda-mental de que, ausentes as diferenças imputáveis às escolhas das pessoas, a distribuição de recursos em uma sociedade em princípio deve ser igual. (FERRAZ, 2007, p. 248)

Destarte, as ações afirmativas se justificariam como medida concretizadora de uma política distributiva, assegurando-se a igualdade na divisão de recursos en-tre os membros da sociedade. Além disso, convém enfatizar que, na concepção de Dworkin, conforme lição de Santos (2005, p. 32), “as políticas sociais que geram um bem-estar coletivo maior têm sua limitação jurídica na garantia do direito individual mais fundamental, qual seja, o direito a um tratamento igual”.

Diante do exposto, infere-se que Dworkin tem uma nítida e louvável preocupa-ção com o bem-estar da coletividade, com a promoção de políticas sociais que apro-ximem a sociedade do ideal de justiça. Busca, pois, uma sociedade mais igualitária e conseguintemente mais justa, apoiando a adoção de políticas de ação afirmativa.

3.3 A constitucionalidade das cotas para negros e índios: breve análise da ADPF no 186

Neste contexto, convém citar trecho da decisão proferida pelo Ministro do Su-premo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes, em sede de medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no 1866, que foi movida pelo Partido Democratas contra a Universidade de Brasília – UnB, em virtude da adoção

6 Resumo da referida decisão em sede da ADPF no 186: Trata-se de arguição de descumprimento de pre-ceito fundamental, proposta pelo partido político DEMOCRATAS (DEM), contra atos administrativos da Universidade de Brasília que instituíram o programa de cotas raciais para ingresso naquela universidade. A petição ressalta, ainda, que a aparência de uma pessoa diz muito pouco sobre a sua ancestralidade (fl. 30). Refere, com isso, que a “teoria compensatória”, que visa à reparação do dano causado pela escravidão, não pode ser aplicada num país miscigenado como o Brasil. Na inicial, é frisado que, nos últimos 30 anos, estabeleceu-se um consenso entre os geneticistas segundo o qual os seres humanos são todos iguais (fl. 37) e que as características fenotípicas representam apenas 0,035% do genoma humano (fls. 41-43). Sustenta-se, ademais, que os dados estatísticos referentes aos indicadores so-ciais são manipulados e que a pobreza no Brasil tem “todas as cores” (fls. 54-58).

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da reserva de vagas no exame de vestibular promovido pelo CESPE (Centro de Estudos e Promoção de Eventos) para os pretos e pardos (negros) e para os indígenas, in verbis:

A questão da constitucionalidade de ações afirmativas voltadas ao objetivo de remediar desigualdades históricas entre grupos étnicos e sociais, com o intuito de promover a justiça social, representa um ponto de inflexão do próprio valor da igualdade. Diante desse tema, somos chamados a refletir sobre até que ponto, em sociedades pluralistas, a manutenção do status quo não significa a perpetuação de tais desigualdades. Se, por um lado, a clássica concepção liberal de igualdade como um valor meramente formal há muito foi superada, em vista do seu potencial de ser um meio de legiti-mação da manutenção de iniquidades, por outro o objetivo de se garantir uma efetiva igualdade material deve sempre levar em consideração a ne-cessidade de se respeitar os demais valores constitucionais. (BRASIL, 2012)

Assim, em que pese a argumentação contrária do Partido Democratas à formula-ção de ações afirmativas baseadas na raça, ou seja, voltada à defesa e promoção da igualdade para as minorias étnicas desprivilegiadas no curso da história brasileira, não é possível negar que a igualdade formal – a igualdade perante a lei – enseja de-sigualdades fáticas, por não ter o condão de corrigir as situações sociais e cotidianas em que se manifesta a desigualdade, a injustiça social. Pois a igualdade meramente formal, conforme apontado anteriormente, não olha para os seus destinatários.

Ademais, a lição do douto Ministro da Excelsa Corte chama à reflexão sobre um ponto muito relevante nesta problemática da promoção ou não da igualdade por meio da política de cotas raciais, a saber: até que ponto, manter a situação sócio--econômica experimentada desde tempos mais remotos (manutenção do status quo) não implica em manter as mesmas desigualdades passadas?

Faz-se necessário tomar uma posição ativa, em que se busque efetivar os direi-tos conquistados por meio das reivindicações e lutas de povos menos favorecidos, no âmbito sócio-político. Não é suficiente a mera declaração de direitos iguais para todos, como os direitos individuais e fundamentais previstos nas Declarações de Di-reitos Humanos e nas Cartas constitucionais vigentes em todas as nações. Imperioso se faz agir de maneira positiva, por meio de instrumentos que venham a concretizar a fruição dos direitos referidos, como por exemplo, o direito à saúde, à moradia, à alimentação e, no que diz respeito a este trabalho, o direito à educação no Brasil.

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3.4 O Estatuto da Igualdade Racial como meio para efetivação do direito à educa-

ção para os afrodescendentes

Nesse diapasão, convém mencionar o Estatuto da Igualdade Racial, instituído por meio da Lei no 12.288, de 20 de julho de 2010. O referido estatuto visa à defesa e à promoção da igualdade e justiça social para os negros, assegurando, inclusive o direito à educação, in verbis:

Art. 2o É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportu-nidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especial-mente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais. (BRASIL, 2010)

Todavia, as normas presentes nessa lei que melhor evidenciam a busca pela efe-tivação da igualdade para os afrodescendentes são as previstas no art. 4o, ipsis litteris:

Art. 4o A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:[...]VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao en-frentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunica-ção de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros. (BRASIL, 2010)

O Estatuto da Igualdade Racial estabeleceu o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), nos seguintes termos:

Art. 47. É instituído o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) como forma de organização e de articulação voltadas à imple-mentação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desi-gualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público federal. (BRASIL, 2011)

Como se pode vislumbrar, o legislador, ao criar o referido Estatuto, o fez com o escopo de resgatar a cidadania e a dignidade dos negros no Brasil, por meio da superação das desigualdades geradas pelas discriminações negativas sofridas por essa raça ao longo dos tempos.

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Além disso, trouxe em seu art. 48, I, o principal objetivo do Sinapir, qual seja: “promover a igualdade étnica e o combate às desigualdades sociais resultantes do racismo, inclusive mediante adoção de ações afirmativas”. Tal dispositivo corrobora o entendimento de que as ações afirmativas são veículos para a correção de desi-gualdades e discriminações históricas, podendo e devendo ser utilizadas em favor de minorias desprivilegiadas, com o fim de promover a igualdade material.

4 Em defesa das ações afirmativas para negros e índios: igualdade no acesso ao

ensino superior público no Brasil

4.1 Argumentos contrários e favoráveis às ações afirmativas no Brasil

Em todos os países nos quais são adotadas ações afirmativas, existem argumen-tos a favor e contrários a instituição de tais políticas públicas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, houve uma forte resistência a essas medidas de discriminação positiva, em virtude da priorização do mérito – meritocracia (GUI-MARÃES, 2009, p. 173), ou seja, criticava-se (e ainda se critica) a reserva de vagas ou cotas para grupos minoritários, socialmente desfavorecidos, a exemplo dos afro--americanos, em virtude do modo como as cotas são introduzidas na concretização das ações afirmativas naquele país. Ocorre que, encerradas as vagas destinadas a determinado grupo (negros, no caso) num sistema de cotas, ainda que existissem negros para disputar as vagas não reservadas, estas lhes seriam vetadas, dado o preenchimento das cotas.

O argumento de que as cotas são instituídas em detrimento do mérito e valor individual de cada pessoa também foi utilizado na crítica à formulação da política de cotas para os pretos e pardos (negros) e indígenas, no Brasil.

O princípio do mérito leva em conta o desenvolvimento individual de cada con-corrente, de sorte que a aferição de suas habilidades por meio de provas, entrevistas, entre outros parâmetros avaliativos, são critérios para consecução de uma vaga, seja na admissão em um emprego ou no ingresso em um curso universitário, por exemplo.

Thaiana Almeida leciona que as ações afirmativas constituem uma variada gama de ações, e que as suas modalidades também são muitas, dentre as quais as cotas se destacam. A autora assevera ainda que:

A cota é vista como uma modalidade radical de discriminação positiva, mas é justamente a que concretiza com maior acuidade a igualdade de resultados, pois os atribui aos sujeitos por ela tutelados, vindo as demais modalidades

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de discriminação positiva apenas a aumentar as possibilidades de se chegar a esses resultados, sem, entretanto, os garantir. (ALMEIDA, 2009, P. 95)

Assim sendo, de acordo com a autora, as cotas para negros e indígenas no ingres-so às universidades públicas seriam o principal vetor para a construção da igualdade e de uma justiça compensatória, de modo que “tem-se por justiça compensatória a promoção pela sociedade de uma reparação ou compensação por injustiças cometi-das no passado a grupos marginalizados, tendo uma natureza puramente restaura-dora” (ALMEIDA, 2009, p. 95).

Mas a resistência ao sistema de cotas não tem como único motivo o rechaço ao princípio do mérito, pois a maior barreira à adoção de tal medida é o fato de a sociedade brasileira negar o preconceito ou a discriminação racial, mascarando a existência da questão racial, o que revela “uma tolerância social à desigualdade em geral” (ALMEIDA, 2009, p. 94).

Nesse sentido também é a lição de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2009, p. 184), quando ele afirma que há por parte da sociedade brasileira a negativa em reconhecer a existência formal da discriminação racial. Esse seria o primeiro argu-mento apontado pelo autor, no tocante à discussão do tema das ações afirmativas no País. Neste argumento podem ser incluídos também os índios, pois, embora se proclame a existência de uma sociedade igualitária e democrática, na realidade, a discriminação contra os índios é um fator real na história brasileira.

Tanto é assim que, no Código Civil de 1916, cujo projeto foi levado a cabo pelo ilustre jurista Clóvis Beviláqua, os índios eram considerados incapazes, não podendo assumir deveres, obrigações, nem adquirir direitos por si só. A Funai os representava em todas as questões, inclusive jurídicas. Mas tal realidade vem sendo modificada ao longo da história, de sorte que muitos índios hoje são considerados aculturados ou civilizados, apenas recebendo assistência de sua respectiva fundação.

Um segundo argumento seria “a defesa do ideal de igualdade de tratamento e de alocação de recursos segundo o mérito, que poderia ser sacrificado por polí-ticas de ação afirmativa” (GUIMARÃES, 2009, p. 185), de origem norte-americana e já comentado acima.

Outro argumento seria, de acordo com o autor, aquele segundo o qual:

As maiores desigualdades raciais, no Brasil, poderiam ser facilmente re-vertidas por meio de políticas universalistas de combate à pobreza, posto que a maioria dos negros está situada na faixa de pobreza. Políticas de educação de massa, saneamento básico, habitação popular, emprego e dis-

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tribuição de terras sem dúvida beneficiariam, proporcionalmente mais os negros que os brancos. (GUIMARÃES, 2009, p. 187)

Por fim, há um argumento contrário de ordem prática acerca de que maneira seria possível implementar políticas de ação afirmativa no Brasil, se não há, entre nós, uma classificação racial (ou de cor) rígida. Tal argumento foi levantado em sede da ADPF no 186, em alegação do Partido Democratas.

O ilustre sociólogo refuta esse último argumento explicando que em nenhum lugar do mundo há a definição de limites rígidos e objetivos entre as raças. Defende a construção social da raça, ou seja, aqueles que se reconhecerem como negros in-tegram esse grupo social (GUIMARÃES, 2009, p. 192).

Contudo, Antonio Sérgio também reconhece o risco real de que, a partir da indefinição de limites raciais ou da ausência de tradição de uma identificação racial, alguns oportunistas possam se aproveitar da situação, o que não pode ser evitado. Ocorre que esse “prejuízo” seria compensado pela efetivação da inclusão social de muitos jovens negros.

Quanto à afirmativa de que a política de cotas fere os direitos constitucionais daqueles que são excluídos em consequência de sua aplicação, Antonio Sérgio ex-plica que não há embasamento legal para demonstrar a inconstitucionalidade das políticas de ação afirmativa (GUIMARÃES, 2009, p. 193).

Pelo contrário, as ações afirmativas vêm efetivar a saudosa frase do jurista Ruy Barbosa (1999), segundo a qual o princípio da igualdade ou isonomia viria a igualar os iguais e desigualar os desiguais na medida da sua desigualdade.

4.2 O sistema de cotas nas universidades brasileiras: uma breve explanação

A respeito da adoção do sistema de cotas nas universidades brasileiras, com base em dados estatísticos do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), é possível inferir que:

Atualmente são 48 as instituições públicas de ensino superior que ado-tam alguma modalidade de ação afirmativa para o ingresso em cursos de graduação para a juventude negra e/ou oriunda do sistema de ensino pú-blico. Nas universidades públicas, as duas principais modalidades de ações afirmativas são as cotas e o sistema de bonificações, o que possibilitou efetivamente um ingresso maior da população negra no ensino superior. (ALMEIDA, 2009, p. 98)

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Essa comprovação corrobora a ideia de que as cotas e quaisquer outras es-pécies de ação afirmativa devem ser mantidas, garantindo a inclusão social dos menos favorecidos.

Ademais, a autora expõe que a polêmica travada nas universidades públicas não pode se basear numa visão puramente egoísta, individual, pois estão presentes inte-resses em confronto: o interesse de jovens negros de baixa renda, sem acesso a uma educação básica de qualidade e, portanto, com mínimas chances de ingressar numa instituição pública; do outro lado, têm-se os estudantes de classes mais favorecidas, com melhores oportunidades de formação e que entendem que, inobstante desfru-tarem de privilégios oriundos de sua melhor posição social, também têm direito a concorrer à totalidade de vagas no vestibular.

Assim Thaiana Almeida encerra seu raciocínio, nesse ponto em particular:

Certamente ambos têm direito a cursar uma universidade, entretanto, dada a impossibilidade de se destinar vagas a todos, tem-se que priorizar uns em relação aos outros, pensando, em primeiro lugar, na importância da edu-cação; em segundo lugar, nas chances que têm os negros de baixa renda de ascenderem profissionalmente sem acesso à educação pública de qua-lidade em comparação com pessoas que, por exemplo, teriam condições de arcar com uma universidade particular. (ALMEIDA, 2009, p. 99)

E, ainda que no Brasil não existam tão-somente negros inseridos na população de baixa renda, de sorte que as dificuldades econômico-financeiras alcançam tanto negros quanto brancos, as estatísticas de órgãos oficiais como o IPEA, supracitadas, demonstram que há muito mais negros fora do ensino superior público do que bran-cos. O mesmo se pode afirmar em relação aos índios, o que legitima a manutenção desse sistema de cotas para esses grupos desfavorecidos.

5 Conclusão

Pelo exposto, pode-se inferir que a problemática desenvolvida em torno das ações afirmativas no Brasil, seja em favor da etnia negra ou dos indígenas, reside, inicialmente, na negação da sociedade em geral em reconhecer a discriminação racial sofrida por esses povos.

Para além disso, outros argumentos se desenvolvem em sentido contrário à adoção das políticas afirmativas, da qual a principal modalidade é o sistema de co-tas para ingresso nas universidades públicas.

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São exemplos de contrapontos: a inexistência de uma definição dos limites para o reconhecimento de uma determinada raça, o que possibilita o oportunismo de al-guns; a possibilidade de se atingir uma justiça compensatória por meio de políticas universalistas, consistentes em um apoio efetivo do Governo nas áreas de saúde, educação, habitação, saneamento básico, entre outras; o prejuízo ao princípio do mérito, desprivilegiando-se o desempenho individual de cada pessoa.

Todavia, as pesquisas de órgãos oficiais comprovam que a população de jo-vens negros ingressantes no ensino superior público é muito inferior ao percentu-al de jovens brancos, o que legitima a implementação das cotas, ainda que ambas as raças venham demonstrar dificuldades de ordem financeira (se enquadrem na população de baixa renda).

Acrescente-se a esse dado estatístico o argumento de que não existe nenhum sistema perfeito, de maneira que qualquer política de ação afirmativa poderia vir a sofrer com a tentativa, por parte daqueles que aparentemente se inserem nos requi-sitos fixados, de tirar proveito dessa política.

Ocorre que o suposto oportunismo de alguns não justifica o sacrifício de muitos, devendo-se proceder à ponderação dos valores e direitos envolvidos na situação em comento e, consequentemente, optar-se pela justiça compensatória, ainda que eventualmente se estendam os benefícios a indivíduos oportunistas.

Quanto à ofensa ao princípio do mérito, é descabido o argumento em sede de ações afirmativas em uma sociedade manifestamente desigual como a brasileira, uma vez que a meritocracia tem lugar para indivíduos que se encontrem efetiva-mente em patamar de igualdade.

Assim sendo, as cotas para negros e índios são, visivelmente, um instrumento de efetivação do direito social fundamental à educação, garantindo a formação e a qualificação para o trabalho, bem como o preparo para o exercício da cidadania, uma vez que possibilitam a justiça social e a concessão de um tratamento isonômico, privilegiando-se a diferença. Na lição de Aristóteles e Ruy Barbosa: desigualando os desiguais, na medida da sua desigualdade. São, portanto, ações revestidas de constitucionalidade e que merecem ser mantidas no sistema educacional brasileiro.

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6 A utilização combativa do direito

a partir das lutas sociais e políticas

das comunidades tradicionais

GLADSTONE LEONEL DA SILVA JÚNIOR

Doutorando em Direito (UnB). Mestre em Direito (Unesp).

Especialista em Sociologia Política (UFPR). Professor de Direito (UnB).

Artigo recebido em 02/02/2012 e aprovado em 01/11/2012.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 A intervenção qualificada da positividade de combate e do uso alterna-tivo do direito na defesa dos povos e comunidades tradicionais 3 Almejando o pluralismo jurídico: o forjar de instrumentos de novo tipo para a garantia de direitos 4 Conclusão 5 Referências.

RESUMO: Este artigo propõe analisar e conceber instrumentos de construção de direitos étnicos e coletivos às comunidades tradicionais. Isso, a partir de uma rea-lidade agrária em que o modelo de desenvolvimento do agronegócio prevalece e recebe o incentivo do Estado brasileiro com o propósito de expansão do capital em detrimento do meio de vida dos povos tradicionais. De forma crítica aos paradig-mas vigentes no direito, vislumbra-se uma forma pluridimensional de manifestação do mesmo com o propósito de conceber uma retórica jurídica garantidora a essas comunidades. Por fim, utilizam-se métodos e instrumentos pautados em uma pers-pectiva emancipatória para possibilitar a efetivação de direitos étnicos e coletivos, potencializando um pluralismo jurídico transformador e que somente se justifica pela dinâmica das lutas sociais.

PALAVRAS-CHAVE: Comunidades tradicionais Agronegócio Direitos étnicos e coletivos Pluralismo jurídico Lutas sociais.

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The combative use of law from social and political struggles of traditional communities

CONTENTS: 1 Introduction 2 The qualified intervention of the positivity of combat and the alter-native use of law in defense of traditional peoples and communities 3 Seeking the legal pluralism: forging new type instruments to guarantee rights 4 Conclusion 5 References.

ABSTRACT: This paper aims to analyze and develop tools for the construction of ethnic and collective rights to traditional communities. It considers an agricultural reality in which the model of agribusiness development prevails and receives en-couragement from the Brazilian state with the purpose of capital expansion at the expense of the livelihood of traditional peoples. In order to critique current para-digms, this paper seeks evidence of multidimensional manifestation of law in order to conceive a guarantor legal rhetoric to these communities. Finally it emphasizes legal methods and progressive instruments that enable realization of ethnic and collective rights and also empower an emancipator legal pluralism, all justified only by the dynamics of social struggles.

KEYWORDS: Traditional communities Agribusiness Ethnic and collective rights Legal pluralism Social struggles.

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La utilización combativa del derecho desde las luchas sociales y políticas de las

comunidades tradicionales

CONTENIDO: 1 Introducción 2 La intervención calificada de la positividad de combate y el uso alternativo del derecho en la defensa de los pueblos y comunidades tradicionales 3 La búsqueda de pluralismo legal: la forja de un nuevo tipo de instrumentos para garantizar los derechos 4 Conclusión 5 Referencias.

RESUMEN: Esta ponencia se propone analizar y desarrollar herramientas para la construcción de los derechos étnicos y colectivos a las comunidades tradicionales. Esto, desde una realidad agraria en la que el modelo de desarrollo de agronegocio se impone y recibe el impulso del Estado brasileño con el fin de la expansión del capital a expensas de los medios de subsistencia de los pueblos tradicionales. Con el fin crítico a los paradigmas actuales en el derecho, se vislumbra una manifesta-ción multidimensional de lo mismo con el propósito de diseñar una retórica legal garante a estas comunidades. Por último, se utilizan métodos y herramientas jurí-dico progresistas para permitir la realización de los derechos étnicos y colectivos, que potencializa un pluralismo legal emancipatorio y está justificado sólo por la dinámica de las luchas sociales.

PALABRAS-CLAVE: Comunidades tradicionales Agronegocioo Derechos étnicos y colectivoso Pluralismo legalo Luchas sociales.

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1 Introdução

A complexidade da questão agrária no Brasil é fonte inesgotável de calorosos debates, ousadas ações diretas e grande diversidade de pesquisas e elabora-

ções teóricas sobre o assunto.Certamente, o início da problemática agrária está ligado imediatamente à inva-

são portuguesa a partir de 1500. Nessa época, Portugal inicia o desenvolvimento do mito da Modernidade Ocidental negando o Outro, ou seja, o sujeito que ali habitava e tinha sua peculiar forma de desenvolvimento. Isso decorre da afirmação da Europa como o “centro” de uma história mundial inaugurada e, consequentemente, de uma concepção periférica relegada aos não-europeus, sobretudo, latino-americanos.

Mesmo com a colonização portuguesa, muitas etnias indígenas resistiram e mantiveram, até certo ponto, seus traços culturais marcantes. Tempos depois, agre-gam-se, a situação semelhante a dos índios, os negros escravizados vindos da África. “Nunca na história humana, em tal número e de tal maneira coisificados como mer-cadorias, foram tratados membros de nenhuma raça. Outra glória da Modernidade!” (DUSSEL, 1993, p. 163). Todos esses sujeitos, agregados à sociedade brasileira, fo-ram privados de seus direitos básicos enquanto seres humanos e sofriam todos os tipos de restrição possíveis, inclusive legais.

Nessa mescla de ilegalidade e resistência as, ora denominadas, comunidades tra-dicionais desenvolviam suas culturas próprias e modos de viver peculiares de cada grupo específico em diversas partes do território. Parcela considerável desses grupos formadores da sociedade brasileira ainda são, por esta mesma sociedade, omitidos da história nacional. Todo esse enquadramento político e condicionantes legais de exclu-são geram, até os dias de hoje, uma invisibilidade social desses povos e comunidades.

A partir desse contexto histórico, o agronegócio reafirma a posição do Brasil como eterno possuidor de uma economia capitalista dependente e casada a uma superexploração1 dos próprios trabalhadores com o intuito de garantirem os ganhos da classe dominante nacional e internacional. Assim, sob a inspeção do capital he-gemônico das economias centrais, o agronegócio é um instrumento utilizado para manter essa estrutura social estabelecida, violando todo e qualquer direito funda-mental de agentes que contraponham sua atividade e expansão.

Com o avanço das políticas relacionadas ao agronegócio, crescem também os conflitos fundiários gerados por ele. Esses decorrem principalmente de dois tipos de

1 Termo usado por Ruy Mauro Marini no desenvolvimento da teoria da dependência.

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grupos: comunidades tradicionais e trabalhadores sem terra, sendo estes últimos a população que já ocupou terra e foi expropriada.

O número de conflitos diante das comunidades e povos tradicionais aumenta cada vez mais, pois esses se caracterizam pela forma interativa de convívio com a natureza, assim os recursos ambientais estão, em grande parte, preservados. Isso gera a cobiça exploratória do agronegócio e do Estado em apropriar-se desses recursos e dessas terras. Percebe-se que o conflito de luta pela terra ganha novos contornos.

O direito pode ser um instrumento valioso no fortalecimento dessas comunida-des tradicionais, quando aplicado com o propósito de efetivação de Justiça Social. As lutas desencadeadas por esses povos, advindas da sua organização, possuem legitimidade e legalidade, de acordo com o aparato jurídico que suporta essas co-munidades. Ademais, o reconhecimento dessas lutas fundamenta um direito que extrapola concepções monistas e meramente normativistas, a partir do momento que intencionam transformar a realidade, rompendo com o status quo.

A partir dessas questões, será possível avaliar até que ponto o direito tem o poten-cial de contribuir para lutas emancipatórias de povos que almejam efetivar seus direi-tos fundamentais em uma sociedade marcada pela desigualdade, injustiça e exclusão.

2 A intervenção qualificada da positividade de combate e do uso alternativo do

direito na defesa dos povos e comunidades tradicionais

A abordagem da positividade de combate e do uso alternativo do direito se robustece quando as comunidades tradicionais apropriam-se de um direito, que po-demos conceber como étnico e coletivo.

Tanto a positividade de combate2 como o uso alternativo do direito3 constituem formas de politização das demandas jurídicas. São meios de utilização do direito, os quais acumulam para o rompimento de dogmas com propósito deveras transforma-dor. Aponta a atuação do jurista que se prepara para uma batalha, após ter feito sua opção de classe.

É possível que, a partir deste enfoque jurídico, os conflitos territoriais tornem-se mais perceptíveis e tragam uma leitura diferenciada da concepção de direitos, os quais não alcançavam esses povos. Os fundamentos jurídicos de individualismo dos

2 Consiste na luta jurídica dentro do aparato oficial do Estado com o propósito de efetivação plena das normas com o cunho popular, focado nas classes espoliadas da sociedade.

3 Implica na aplicação de métodos hermenêuticos convenientes, no caso, a uma concepção emancipa-tória do direito.

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institutos, pautados por práticas normativistas e por um modelo formal de aplicação do direito, tendem a perder espaço para uma análise holística, a qual se desenvolve melhor sob uma engrenagem dialética, tratando o direito e seus sujeitos como com-plexos e dinâmicos em um contínuo conflito animado pelas lutas sociais.

O sistema jurídico atual classifica qualquer temática tratada em uma perspec-tiva dicotômica entre o público e o privado. Isso restringe a compreensão do direito em sua amplitude, na qual, muitas vezes, os direitos coletivos são enxertados como públicos ou estatais.

Os direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais não se ade-quam a esse tipo de dicotomia, própria da visão positivista do direito. Em geral, não são terras públicas, tampouco o conjunto territorial vige sob o regime do direito privado. Mesmo que, em determinados grupos, existam títulos de pro-priedade privada dentro do território tradicionalmente ocupado, o uso coletivo da terra prevalece e deve ser respeitado, conforme consta expressamente nos próprios dispositivos normativos. Tais como previstos para os indígenas, os qui-lombolas e os faxinalenses respectivamente:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fa-zer respeitar todos os seus bens. (BRASIL, 1988)[...]Art. 68. Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. (BRASIL, 1988)[...]Art. 4o As práticas sociais tradicionais e acordos comunitários produzidos pelos grupos faxinalenses deverão ser preservados como patrimônio cul-tural imaterial do Estado, sendo, para isso, adotadas todas as medidas que se fizerem necessárias. (PARANÁ, 2007)

Assim, os membros das comunidades tradicionais não podem ser tratados como se meros camponeses fossem, prevalecendo a perspectiva privada de utilização da terra frente à territorial coletiva ou outras. A situação que se apresenta é diversa e, como tal, deve ser analisada.

Diante dessa dificuldade em lidar com um direito próprio das comunidades, devido à formatação imposta pela lógica capitalista e pelo pensar puramente posi-tivista, é que alguns autores sustentam a incompletude do sistema para tratar dos

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direitos dos povos e comunidades tradicionais. Salienta o professor Carlos Marés Souza Filho (2006, p. 67) que:

[...] esta incompletude se dá, não por se tratarem de povos que vivem em sociedade não contemporânea, não burguesa nem capitalista, mas por con-ceberem a vida e a sociedade de forma diferente, e por terem uma cultura e cosmovisão diferentes, relações diferentes e, evidentemente, Direito diferente.

Outros juristas4 vislumbram na Constituição um poderoso e paradigmático instrumento para garantir o desenvolvimento dos direitos peculiares à esses povos tradicionais.

É com base nessas perspectivas que devemos refletir a situação das comuni-dades tradicionais, na qual devem ser reafirmados os direitos próprios (mesmo que extrapolem a dimensão normativa do direito) e, ao mesmo tempo, pautados seus fundamentos de validade e existência no que temos de mais avançado no ordena-mento jurídico vigente. Dessa forma, nessa guerra particular, a norma será uma das espécies de arma do combate, e a hermenêutica um método tático de ingresso na batalha, onde o exército dos povos e comunidades tradicionais tem como objetivo final o exercício da plenitude de direitos e o gozo da vida.

Os direitos coletivos aqui dispostos não pertencem a todos, mas a comunidades tradicionais específicas. Estas terão legitimidade para exercê-los, apresentando uma indivisibilidade entre os titulares do direito diante da violação vivenciada.

A atuação na assessoria jurídica popular nos faz refletir e criar mecanismos próprios para lidar com direitos tão negligenciados no universo jurídico. A lei insiste em homogeneizar uma realidade social que é tão diversa, individualizando conflitos como se não fizessem parte de questões maiores e mais complexas. Nesse contexto, os direitos coletivos possuem dificuldades de serem reconhecidos, acabam sendo recepcionados como uma somatória de direitos individuais.

Era o que ocorria quando alguma violação era praticada dentro dos territórios faxinalenses5. Inúmeras vezes, esses povos, na expectativa de terem seus direitos reparados e verem os responsáveis sofrerem alguma sanção, solicitavam a elabo-

4 Carreados, sobretudo, pela jurista e Vice-Procuradora-Geral da República Deborah Duprat de Britto Pereira.

5 Genericamente situando, os faxinalenses são povos de comunidades tradicionais localizados na re-gião Centro Sul do país, e caracterizam-se por utilizarem a terra de forma coletiva para criação ani-mal, pela policultura alimentar, pelos acordos comunitários, pela preservação das matas nativas e extração sustentável dos seus recursos.

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ração de boletins de ocorrência expondo as infrações cometidas. Então, a tática jurídica pensada foi a de concebê-los no que ficou convencionado como “B.O. Cole-tivo”. Nesse documento, constava o nome de outros faxinalenses que também foram afetados pela prática violadora, não apenas o nome daquele que teve algum direito específico violado. Tudo isso na busca de caracterizar em juízo a violação não a um mero direito individual, mas a práticas coletivas exercidas por toda a comunidade.

A avaliação desses encaminhamentos jurídicos foi realizada posteriormente, constatando uma falha nem tanto pela forma, mas pela intencionalidade do instru-mento. O boletim de ocorrência contribuía para uma maior criminalização de condu-tas e parava por aí. Em juízo, descontextualizava-se a violação cometida e isolava-se o fato ao tipificá-lo e analisá-lo. A caracterização do caráter coletivo da demanda nem sempre era alcançada e as sanções de natureza penal eram pouco eficientes.

É uma tentativa de controle das violações através da tutela penal fomentada por institutos liberais do direito penal. No entanto, essa prática só contribuiu para a in-tensificação do conhecido Estado de Polícia, em que as questões são resolvidas por intermédio do poder punitivo do Estado, em detrimento do Estado de Direito. Em uma perspectiva de reconhecimento de direitos étnicos e coletivos não é o melhor caminho.

No âmbito do direito penal, deveriam ser elaboradas estratégias de desenvolvimen-to de uma política criminal das classes subalternas, como propõe Baratta (2002, p. 202), em uma perspectiva de realização de Justiça concreta à realidade social desigual:

Da crítica do direito penal como direito desigual derivam consequências analisáveis sob dois perfis. Um primeiro perfil refere-se à ampliação e o reforço da tutela penal, em áreas de interesse essencial para a vida dos indivíduos e da comunidade: a saúde, a segurança no trabalho, a integrida-de ecológica etc. Trata-se de dirigir os mecanismos da reação institucional para o confronto da criminalidade econômica, dos grandes desvios crimi-nais dos órgãos e do corpo do Estado, da grande criminalidade organizada. Trata-se, ao mesmo tempo, de assegurar uma maior representação proces-sual em favor dos interesses coletivos.

Dessa forma, o direito penal terá um cunho garantista, algo que não ocorre atu-almente. Neste momento, a medida mais adequada seria a diminuição da prática da criminalização de condutas, contribuindo com um direito penal que, tão só, restrinja o poder punitivo do Estado reduzindo a prática policialesca, e dando possibilidade de desenvolvimento do Estado de Direito. Assim, os povos e comunidades tradicio-nais poderão ter maiores garantias de seus direitos atuando de outra maneira, ao invés de serem criminalizados, mesmo quando proponentes de demandas.

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Essa luta política deverá ser judicializada de outras formas, talvez, em um pri-meiro momento, atuar na reparação de danos civis junto aos agredidos ou em lides que evidenciem de imediato a coletivização de prejuízos, buscando formas de tute-las coletivas. Algumas vezes, resta a opção do ingresso como litisconsortes em ações civis que garantam direitos ligados aos costumes, ampliando, assim, o alcance de direitos, apesar de não configurar, de fato, a coletivização devida desses.

Mesmo administrativamente, visualiza-se a possibilidade de lidar com esses conflitos a partir do protocolo de denúncias, solicitando providências junto às pre-feituras das cidades onde ocorrerem violações de direitos. Essa é uma possibilidade de evidenciar a coletividade da demanda, chamando a atenção das autoridades pú-blicas para a questão e resolvendo o problema antes de judicializá-lo.

Uma vez inerte a Prefeitura, o Governo Estadual ou a União na tomada de de-cisão para sanar as violações, o Ministério Público Estadual ou, em outros casos, o Ministério Público Federal poderá levar em frente a demanda judicializando o caso.

Atualmente, um grande canal de diálogo e compreensão começa a surgir com o Ministério Público, o qual, por competência constitucional, deve zelar pelo bem estar da coletividade e pelo meio ambiente.

Assim está disposto no artigo 129, inciso III da Constituição, como funções ba-silares a serem exercidas pelo Ministério Público:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:[...]III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do pa-trimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;[...]V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas; [...] (BRASIL, 1988)

Da mesma forma, a Defensoria Pública também surge como uma entidade que possibilita o ingresso de ações coletivas a essas comunidades, já que essas consti-tuem parcela da população hipossuficiente materialmente, conforme exigência da instituição. Assim, prevê a Lei Complementar no 80, de 12 de janeiro de 1994:

Art. 4o São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:[...] VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais

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homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes; [...]X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessi-tados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capa-zes de propiciar sua adequada e efetiva tutela; [...] (BRASIL, 1994)

Inúmeras ações civis públicas multiplicam-se, em todo o país, tratando das violações a que estão submetidas as comunidades tradicionais. O estreitamento dos laços entre os Ministérios Públicos Estadual e Federal e os povos e comunidades tradicionais, além de tornar a ação judicial mais legítima, aos olhos do Poder Públi-co, ajuda a fortalecer a organização dessas comunidades, as quais recebem maior resguardo jurídico.

A possibilidade de garantia de direitos no âmbito do Poder Judiciário é real. Qualquer vitória judicial representa um estímulo a uma maior organização e resis-tência dessas comunidades contra o avanço do capital e da desestruturação cultural em seus respectivos territórios.

O fortalecimento dessa luta pode ser sustentado com argumentos pós-positivistas, de acordo com a nova retórica propalada por Chaim Perelman, onde ele defende e ressuscita ideias aristotélicas para produzir decisões razoáveis por intermédio da argumentação.

Os direitos concebidos no âmago dos povos e comunidades tradicionais extra-polam as próprias comunidades, a partir do momento que propiciam a diversidade cultural formadora do povo brasileiro com base em um modo de vida próprio e, em alguns casos, garantem a preservação de recursos ambientais pela forma de repro-dução social que possuem, a qual será necessária ao bem estar das gerações futuras de todo o povo. Assim, o problema do ingresso destrutivo do capital, geralmente por intermédio do agronegócio e seus interlocutores, requer esta tópica-retórica descrita, a qual deve prevalecer para o desenvolvimento sustentável e garantidor de direitos, não só das comunidades tradicionais, mas que interessam a todo o povo brasileiro.

De fato, se o direito é um instrumento flexível e capaz de adaptar-se aos valores considerados prioritários pelo juiz, não será necessário, em tal perspectiva, que o juiz decida em função de diretrizes vindas do governo, mas em função dos valores dominantes na sociedade, sendo sua missão conciliar com esses valores as leis e as instituições estabelecidas, de modo que ponha em evidência não apenas a legalidade, mas também o caráter razoável e aceitável de suas decisões. (PERELMAN, 1998, p. 200)

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Na situação que descrevemos, essas construções teóricas refletem um clamor da sociedade, que não admite mais a lógica destrutiva do capital no campo, que pauta o produtivismo irresponsável acima de qualquer meio de vida diferenciado e dos próprios recursos ambientais necessários a um desenvolvimento sustentável e popular. O funcionamento da justiça é concebido de forma cada vez menos forma-lista, levando em consideração a opinião pública. Não sendo suficiente, e por vezes sendo ilegítima, uma decisão só pautada na lei, é ressaltada a importância de um direcionamento socialmente útil e equitativo. Isso enriquecerá as decisões que se-rão pautadas por uma argumentação consistente, que extrapola o legalismo jurídico afastado da realidade social.

Assim “a lógica jurídica, [...] apresenta-se, como uma argumentação que depen-de do modo como os legisladores e os juízes concebem sua missão e da ideia que têm do direito e de seu funcionamento na sociedade” (PERELMAN, 1998, p. 243). Cabe fortalecer o direito coletivo e próprio dessas comunidades para que sejam apropriados como argumentação dos operadores do direito e impeçam que forças sociais contrárias a uma dinâmica emancipadora prevaleçam.

Hoje, algumas comunidades constituem associações podendo, através destas, manejar a própria ação civil pública ou, quando adequado, o mandado de segurança coletivo para garantir a defesa de todos os que tenham algum direito ou alguma prerrogativa a defender judicialmente.

Esses instrumentos ainda são pouco utilizados, devendo ser aperfeiçoados, sobretudo, a legitimação para a propositura das ações. O sistema jurídico sempre solicita ou a pessoa física individualizada, ou a pessoa jurídica, que nada mais é que uma ficção criada com o propósito de individualizar algo realizado por pessoas físicas. O direito atual tem dificuldade em lidar com direitos coletivos e em reconhe-cer grupos que extrapolem essa classificação de pessoas físicas ou jurídicas, princi-palmente, o Poder Judiciário, impotente para decidir essas questões sem titubear à lógica individualista-formal. O jurista Joaquim Shiraishi Neto (2006, p. 15) aponta de forma objetiva que:

[...] as novas situações oriundas das demandas desses povos impõem a necessidade de se repensar os modelos jurídicos de modo que possam garantir a sua existência enquanto coletivo diferenciado, que não pode ser representado na simples soma dos indivíduos.

Embora, por vezes, reconhecidos os direitos coletivos, o Poder Judiciário en-contra dificuldades em aplicá-los, seja por questões estruturais organizativas, ou

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pelas dificuldades de acesso ao Juízo, ou, até mesmo, por questões ideológicas dos juízes. É certo que “[...] o processo civil, criado e desenvolvido dentro de um rígido formalismo para resolver os conflitos intersubjetivos, sem grande preocupação com a realização material da justiça, serviu e serve aos direitos individuais tradicionais” (SOUZA FILHO, 2006, p. 186). Resta consubstanciar os coletivos.

O Poder Judiciário brasileiro ainda não reconheceu nestes direito a possi-bilidade de serem exercidos fora das ações específicas, por exemplo como defesa nas ações possessórias e reivindicatórias onde se pede a desocu-pação de áreas de terras ou conjunto de apartamentos desocupados de periferias das cidades. Ainda não reconheceu, portanto, que os direitos co-letivos possam se opor a direitos individuais em ações ordinárias e espe-cialmente a direitos de propriedade e posse. (SOUZA FILHO, 2006, p. 188)

Essa nova retórica que emerge na sociedade e transborda pelas reflexões e de-cisões judiciais deve contribuir para argumentações transformadoras e consistentes, que contribuam para a ampliação dos direitos e das ações coletivas. Seguindo o ensinamento de Cappelletti;

Si deve, ripeto, superare la vecchia concezione, troppo ristrettamente individu-alistica, della legittimazione ad agire, si deve superare quel tipo de concezione che rende impossibile al processo di adeguarsi e dare uno spazio a nuovi bi-sogni di tutela di carattere metaindividuale e collettivo. Rimane ferma, tuttavia, l’esigenza di fissare certi requisiti di legittimazione ad agire, anche se si dovrá costruire un concetto di legittimazione del tutto diverso e nuovo, consistente in una relazione o connessione ideologica, anzichè propriamente giuridica, fra la parte e il rapporto dedotto in giudizio.6 (CAPPELLETTI, 1976, p. 199-200)

Essas garantias às demandas coletivas vão muito além de transformações em âmbito jurídico, mas passam também por uma reestruturação ideológica na susten-tação dos paradigmas jurídicos.

Logo, a positividade de combate e o uso alternativo do direito constituem for-mas de politização das demandas jurídicas. São formas de utilização do direito, as quais acumulam para o rompimento de dogmas, com o propósito de transformação.

6 “É preciso, repito, superar a velha concepção, também estritamente individualista, da legitimidade para agir, deve-se superar o tipo de concepção que impossibilita ao processo de adequar e dar um espaço novo e necessário de tutela com caráter meta individual e coletivo. Permanece firme, todavia, a exigência de fixarem certos requisitos de legitimidade para agir, embora tenha que construir um conceito de legitimidade completamente diferente e novo, consistente em uma relação ou conexão ideológica, em vez de propriamente jurídica, entre a parte e o relacionamento criado no Tribunal” (tradução nossa).

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Aponta a atuação do jurista que se prepara para uma batalha, após ter feito sua opção de classe.

A Constituição brasileira se destaca como um grande instrumento, paradigmáti-co, ao versar sobre as comunidades formadoras do povo brasileiro. Isso, porque trata do reconhecimento de direitos coletivos, e não mais de direitos estatais, conforme dispõe o artigo 216 da Constituição. Ali, o patrimônio cultural brasileiro é tratado como tal, destacando os sujeitos formadores da nossa sociedade, constituidores de bens de natureza material e imaterial. Da mesma forma, no artigo 215, §1o, o Es-tado protege as manifestações das culturas populares dos grupos participantes do processo de formação da cultura nacional. A reprodução social desses povos é res-peitada integralmente, garantida nesses dispositivos jurídicos e em seus incisos e parágrafos. Cabe ainda destacar os já citados artigos 231 e 232 (tratam dos direitos indígenas) e artigo 68 da ADCT – Atos das Disposições Constitucionais Transitórias – (trata dos direitos das comunidades remanescentes de quilombos).

Esses dispositivos, ao garantirem as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver dos diversos povos constituidores do Brasil, estão assegurando direitos coletivos das comunidades tradicionais à manifestação de crença, às formas particu-lares de lidar com os recursos naturais, ao uso dos conhecimentos tradicionais, aos benzimentos, entre outros.

Esses são dispositivos que devem prevalecer nas demandas de que fazem parte os povos e comunidades tradicionais, como forma de assegurar e expandir essa concepção de direitos coletivos e próprios. Juntamente com as normas postas, o uso alternativo do direito implica na aplicação de métodos convenientes a essa concep-ção emancipatória do direito.

Assim, os métodos hermenêuticos devem ser melhor trabalhados para atingir esse fim. Uma possibilidade de compreensão mais adequada dos problemas é con-ceber um olhar partindo das comunidades tradicionais para fora, de forma centrífu-ga, e construir, assim, a nova retórica argumentativa de fundamentação nos Tribu-nais. A hermenêutica diatópica é uma possibilidade de exercer essa concepção do direito a partir dos povos.

A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que os topoi de uma dada cultura por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível a partir do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude – um objetivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao

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máximo a consciência de incompletude mútua por intermédio de um diá-logo que se desenrola, por assim, dizer, com um pé em uma cultura e outro em outra. Nisto reside o seu caráter diatópico. (SANTOS, 2006, p. 448)

Nesse exercício hermenêutico, apreende-se a concepção plural difundida na Constituição estabelecendo uma relação com as normas que vão além da mera in-terpretação. Os povos e comunidades tradicionais saem do papel de simples espec-tadores da situação que os vincula diretamente.

[...] o que dizer da lição de Wittgenstein, segundo a qual as normas, vis-tas separadamente das atividades práticas dos seres humanos, são meros itens mentais ou lingüísticos? Como, então, apreender o sentido da norma deslocada de seu contexto de uso? Como, num sistema constitucional que assegura o pluralismo, transformar os agentes e suas práticas em objeto a ser interpretado? (PEREIRA, 2007, p. 17)

Os povos e comunidades tradicionais passam a agentes interventores normati-vos, trazendo a prática cotidiana peculiar ao universo jurídico. “Os critérios de inter-pretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade” (HABERLE, 2002, p. 13).

O jurista alemão Peter Haberle trata o destinatário da norma como participante direto e ativo no processo hermenêutico. É o que deve ocorrer nesses casos, onde a norma e a prática se interpelarão constituindo uma práxis que legitimará o sistema jurídico. “A práxis atua aqui na legitimação da teoria e não a teoria na legitimação da práxis” (HABERLE, 2002, p. 33-34).

Estamos diante de uma perspectiva hermenêutica diferenciada e multifacetada, onde os direitos coletivos, sociais, difusos, humanos devem prevalecer perante os seus legítimos aplicadores. Não mais as autoridades públicas ou os juristas, mas os operadores populares do direito.

Dessa forma, buscar-se-á progredir em uma fundamentação jurídica sedimen-tada e palpável diante da sua legitimidade popular e do seu clamor social, em que os entes ligados às estruturas burocráticas do direito terão condições de sentir toda essa pressão e atuar na busca por concretizações jurídicas transformadoras de uma realidade historicamente desigual. Dar voz a esses novos atores implica na possi-bilidade de acirramento da luta social e jurídica, apresentando os posicionamentos de classe na sociedade, e possibilitando averiguar até onde o direito poderá ter um papel emancipador e garantidor de direitos dos povos e comunidades tradicionais.

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3 Almejando o pluralismo jurídico: o forjar de instrumentos de novo tipo para a

garantia de direitos

O debate em torno do pluralismo jurídico é de suma importância na temática ora discutida, pois trata de desmitificar a propalada completude jurídica diante de situações às quais o sistema jurídico não consegue apresentar respostas adequadas, nem reconhecer grupos responsáveis por formulações jurídicas próprias.

Em uma sociedade diversa torna-se difícil admitir um único direito, ou um direi-to tão só proveniente do Estado como o legítimo. Diferenciadas expressões jurídicas persistirão mesmo que sem o realce do Estado.

Interessante notar que em uma sociedade de classes, situações específicas são reconhecidas pelo Estado com o propósito de conferir celeridade ao mercado. A ex-periência da arbitragem no ramo do direito empresarial é um exemplo.

As partes têm discricionariedade para eleger o Código de Processo Civil, mas também podem criar procedimento próprio ou aderir ao árbitro de uma Câmara arbitral. Ainda podem se valer do advogado, se quiserem, apesar de ser essencial na arbitragem, pois o árbitro deve ser assessorado por advogado para cumprir os princí-pios e procedimentos das sentenças, já que a decisão do árbitro passa a ter valor de título executivo judicial. Valorizam-se situações e forjam-se formas onde as partes envolvidas exigem respostas mais céleres do que as que o sistema judiciário poderia lhes conferir, e o Estado acata as ordens para não inviabilizar o fluxo do capital.

Por outro lado, há uma dificuldade no reconhecimento dos povos e comunida-des tradicionais e dos seus direitos próprios, pois desenvolvidos diante de outros paradigmas de sociedade. Essa demora em implementar e garantir esses direitos gera graves violações, incorrendo em consequências desastrosas, como o assassi-nato de lideranças comunitárias. A morosidade para o reconhecimento dos direitos desses povos e a postura omissiva do Estado em evitar a ocorrência destas situações e ameaças, demonstram a gravidade da questão.

A mesma “mão” com a qual o Estado concede benefícios e cria mecanismos à repro-dução célere do capital é usada para dificultar o reconhecimento dos direitos próprios e fundamentais aos povos tradicionais, mesmo tendo o potencial de evitar tragédias. So-mente a luta encampada pelos povos tradicionais é capaz de forjar novos instrumentos que serão reconsiderados, inclusive no mundo jurídico, como os acordos comunitários realizados pelos faxinalenses, sobre os quais trataremos mais à frente.

Contudo, existe uma correlação de forças sociais organizadas que controlam o Estado na perspectiva de gerenciamento de seus negócios, numa tentativa de

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construí-lo hegemonicamente, dificultando que esse cumpra um papel garantidor de eficácia na realização e respeito aos direitos fundamentais do povo. Contudo, segundo ensinamento de Marilena Chauí, essa hegemonia extrapola a figura do Es-tado e tenta sobrepor-se em toda a sociedade.

Uma classe é hegemônica não só porque detém a propriedade dos meios de produção e o poder do Estado (isto é, o controle jurídico, político e po-licial da sociedade), mas ela é hegemônica sobretudo porque suas idéias e valores são dominantes e mantidos pelos dominados até mesmo quando lutam contra essa dominação. (CHAUÍ, 1994, p. 127)

Daí compreende-se, por exemplo, a contraposição existente entre o modelo do-minante do agronegócio e o uso coletivo e contra-hegemônico da terra seguido por diversas comunidades tradicionais.

A partir do momento que existe um choque entre os próprios povos, dentro de suas comunidades, quando alguns ignoram seus valores para reproduzirem aqueles provenientes do agronegócio dentro de territórios tradicionalmente ocupados, ob-serva-se a força da construção hegemônica de valores sociais pela classe dominante.

Em um primeiro instante, visualiza-se que há uma equivalência econômica de grupos internos que lutam entre si. Assim, o elemento cultural deve ser salientado nesta análise, pois, em um segundo momento ele refletirá nas lutas travadas e em um delineamento de classes. Conforme constata Bourdieu (2010, p. 152-153):

As insuficiências da teoria marxista das classes e, sobretudo, a sua inca-pacidade de explicar o conjunto das diferenças objectivamente provadas, resultam de que, ao reduzir o mundo social unicamente ao campo econô-mico, ela se vê obrigada a definir a posição social em referência unicamen-te à posição nas relações de produção econômica, ignorando com isso as posições ocupadas nos diferentes campos e subcampos – sobretudo nas relações de produção cultural – da mesma forma que todas as oposições que estruturam o campo social e que são irredutíveis oposição entre pro-prietários e não-proprietários dos meios de produção econômica.

A partir do advento do componente cultural atrelado ao econômico, os mem-bros das comunidades tradicionais, contrários ao modo de vida desenvolvido no território que ocupam, passam a representar o interesse do capital dentro daquele espaço social, digladiando-se contra aqueles que buscam manter sua reprodução social. Uma vez constatada essa situação, decorrente do elemento cultural, aí sim, evidencia-se o componente marxista ao apresentar um quadro, a partir de então, da luta de classes.

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Os embates dos povos e comunidades tradicionais organizados ocorrem desde as demandas estruturais até as demandas internas e, por isso, o componente da luta é relevante. É a partir das demandas concretas que o despertar da consciência desses povos brota e o processo de resistência e realização de direitos se inicia. Seguindo os ensinamentos de Marx (1986, p. 36-37) “[...] não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina consciência” . Essa é uma variante válida e cotidiana também para esses povos tradicionais.

É nesse contexto que o pluralismo jurídico advém como possibilidade jurídica de resistência a esse processo de desvalorização humana em benefício da concentração de capital. Aparece em uma realidade em que as comunidades tradicionais cumprem um papel de desenvolvimento próprio, contrapondo-se à dinâmica da propriedade pri-vada e, consequentemente, à expansão do agronegócio. Assim, forja-se uma luta desses agentes sociais contra o modelo de desenvolvimento agrário encampado pelo “grande capital” e seus aliados, inclusive o próprio Estado, que, em determinadas situações, ofe-rece garantias e cria condições à manutenção de direitos dessas comunidades.

Com isso, o que se afirma é que a função do Estado no capitalismo é bem mais complexa do que se depreende da aplicação, por um lado, de que fun-cione como gestor isento da “coisa pública” ou, de outro, de que é um instru-mento de dominação usado verticalmente pela burguesia contra o povo. O Estado surge e é mantido dentro de relações sociais entre partes desiguais, contudo, tais partes influenciam a configuração que esse Estado terá por meio da pressão que exercem concretamente. (MELO, 2009, p. 39-40)

Logo, o Estado torna-se um grande campo de disputa de interesses e projetos entre classes e segmentos sociais organizados.

O Direito constitui campo fértil nessa disputa. Deverão ser apresentadas formas de atuação, as quais criam condições de aglutinarem forças para um projeto de so-ciedade de cunho transformador. Certamente, os agentes sociais e os grupos organi-zados deverão ser protagonistas desse processo, mas o direito pode sim, contribuir para sua celeridade se usado nesta perspectiva emancipatória. Isto é, conceber o di-reito como uma realidade concreta e mutável, a partir da luta de classes. Resta-nos constatar uma coisa: o fundamento de validade dos direitos é a própria luta social.

Não mais se aceita a negação da criação jurídica como um fenômeno me-tajurídico, entendimento tão caro aos herdeiros do pensamento de Kel-sen. Nem é mais possível dizer que o Estado é a única fonte do Direito, como esse pensador entendia. Por outro lado, também não é mais possível trabalhar com a dialética triádica abstrata de Reale, que situa no fato e no

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valor a origem das normas. Da mesma forma, a visão de Cossio, marcada pela influência fenomenológica, não pode mais dar conta do Direito, pois o insere como um interferente na conduta subjetiva. Todas as concepções le-vantadas tem como característica o fato de trabalhar no abstrato, entender o Direito como um fenômeno essencialmente estatal, no máximo conce-dendo ao costume a condição de fonte do direito. [...] O Direito passa a ser o locus onde as contradições, as lutas, os jogos, os debates e as conquistas se dão. Ele sai da condição de corpo normativo conservado criogenicamen-te, para se tornar vivo, comprometido, ideológico, simbólico e conforme as preocupações mais atualizadas da filosofia, da ciência em geral e das ciências sociais em particular. O ser humano concreto, de carne, sangue e sonho toma o lugar da parte, do requerente, do réu. O cidadão substitui o sujeito abstrato dos códigos e o ator processual limitado pelas capas dos autos. Também poderá fazer valer seus direitos positivos, participará das contendas processuais, mas os fundamentos dessas condutas estarão plan-tados na concretude de sua existência, na sua participação na sociedade e na sua organização enquanto cidadão. (AGUIAR, 2002, p. 51)

Mais do que cidadão individualizado, mas como coletivo organizado e detentor de direitos. Mantendo uma dinâmica de lutas, mesmo sabendo que o direito pouco instrumentaliza esses grupos marginalizados exercendo, geralmente, um papel co-ercitivo, de controlador social, e não potencializador de demandas transformadoras.

Mesmo a atual Constituição oferece aparato normativo importante para sus-tentar propostas garantidoras de direitos dos grupos historicamente espoliados na sociedade. O pluralismo jurídico é elevado como princípio fundamental na Consti-tuição brasileira, juntamente com outros tão importantes quanto, como a dignidade da pessoa humana. “A Constituição opta pela sociedade pluralista que respeita a pessoa humana e sua liberdade, em lugar de uma sociedade monista que mutila os seres e engendra ortodoxias opressivas” (SILVA, 2002, p. 143).

Os lutadores do povo, inclusive as comunidades tradicionais, devem se apegar e manejar a Constituição com o propósito de conseguir e efetivar os direitos próprios, de forma cada vez mais intensa. Não ignorando a lição de Hesse (1991, p. 26), em que “[...] a força normativa da Constituição é apenas uma das forças de cuja atuação resulta a realidade do Estado. E esta força tem limites” .

Assim, os enfrentamentos devem ocorrer com a instrumentalização que se apre-senta e com métodos aguerridos, como o positivismo ou a positividade de combate e o uso alternativo do direito, para que a Constituição protagonize transformações e avance no campo do direito. Setor esse que deve ser aproveitado em sua dimensão normativa, mas não se limitar a ela, expandindo-se também em outras dimensões.

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“A Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar trans-formações emancipatórias” (CANOTILHO, 2001, p. XXIX).

A Constituição tida como pluralista cria condições para que o direito estatal seja reconhecido como uma, dentre as várias formas de manifestação jurídica existentes.

O pluralismo jurídico não se confunde, pois, com a defesa do direito não--estatal. Seu principal esforço teórico é explicar a convivência contraditó-ria, por vezes consensual e por vezes conflitante, entre os vários direitos observáveis numa mesma sociedade. (FALCÃO, 1993, p. 111)

Ao tratar de povos e comunidades tradicionais, a concepção monista do direito é insuficiente, e enxergar formas diversas de manifestação jurídica é essencial para a viabilização de respeito e autonomia a esses grupos.

Um exemplo emblemático de manifestação jurídica própria e forjar de instru-mentos, mais uma vez nos remetendo aos faxinalenses, são os acordos comunitários. Esses se procedem através de debates realizados nas comunidades sobre questões que interferem na vida da coletividade faxinalense. A partir do diagnóstico realizado pelo coletivo, são tomadas providências e diretrizes adequadas à comunidade visan-do a uma melhor condição de vida e convivência entre os faxinalenses.

Esses acordos estabelecidos na comunidade são literais formas de manifestações jurídicas, escritas ou não, que extrapolam a emanação do direito estatal. Reconhecê--los é admitir a fluência do pluralismo na órbita jurídica e trazer a realidade concreta ao mesmo tempo em que extirpa dogmas estanques e imutáveis. Mais do que isso, propicia uma nova forma de intervenção jurídica a partir dos seus próprios sujeitos.

De toda forma, ainda assim, esses acordos foram reconhecidos pelas normas po-sitivadas, tal qual a Lei Estadual do Paraná no 15.673, de 12 de novembro de 2007, apresentando uma situação explícita de adequação da norma à realidade concreta, conforme exposto no já citado artigo 4o da referida lei. Nesse dispositivo normativo o direito estatal simplesmente declara uma situação já existente e que possui eficá-cia para os povos e para as comunidades que firmam esses acordos, independente de leis postas. “Assim, veremos que a positividade do Direito não conduz fatalmente ao positivismo e que o direito justo integra a dialética jurídica, sem voar para nuvens metafísicas, isto é, sem desligar-se das lutas sociais, no seu desenvolvimento histó-rico [...]” (LYRA FILHO, 2006, p. 27).

Essas manifestações pluralistas, através dos acordos comunitários, servem como documentos probatórios de singular relevância na instrução de processos que envol-

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vam essas comunidades tradicionais. O direito ali emanado e adequado àquela comu-nidade tem o condão de prevalecer frente a qualquer instrumento legal insensível à realidade local. Estabelecer esse tipo de comando jurídico, possibilitando o apareci-mento de direitos próprios e condizentes com a peculiaridade cotidiana desses povos, traz em destaque o método dialético para lidar com essas situações, visto que trata de relações que enxergam o direito de forma dinâmica e complexa, a partir de um exer-cício jurídico de resistência e que fundamenta uma luta política. Tal como rememora Roberto Lyra Filho (2006, p. 10), nos remetendo a uma lição de Antonio Gramsci:

[...] a visão dialética precisa alargar o foco do Direito, abrangendo as pres-sões coletivas (e até, como veremos, as normas não estatais de classe e grupos espoliados e oprimidos) que emergem na sociedade civil (nas ins-tituições não ligadas ao Estado) e adotam posições vanguardeiras, como determinados sindicatos, partidos, setores de igrejas, associações profissio-nais e culturais e outros vínculos de engajamento progressista.

Outras formas de manifestação de direitos, como os acordos comunitários, de-vem emergir na perspectiva de efetivarem mais garantias a essas comunidades, um direito literalmente “achado na rua”, nas lutas sociais.

[...] O direito passa a ser plural. Não mais um só ordenamento jurídico sacralizado pelo Estado, mas vários ordenamentos em luta, pois os des-possuídos, os dominados, na medida em que se organizam, criam direitos paralelos e forçam o direito hegemônico a se modificar, ou mesmo a desa-parecer, no caso de uma Revolução. (AGUIAR, 2002, p. 53)

Isso ocorrerá desde que o Direito não paire acima do processo histórico e das lutas concretas, mas componha estas. Pois, “como ser social, o direito é produção específica de um povo na história, sendo este responsável por seu próprio ato de criação” (COELHO, 1991, p. 120).

Em algumas oportunidades as classes dominantes buscam deslegitimar as construções populares, inclusive no âmbito do direito. Ao tratar de povos e comu-nidades tradicionais, diversas expressões que constituem construções jurídicas pe-culiares são tratadas como meros costumes. Uma tentativa vulgar de descredenciar manifestações legítimas e ativas. O professor Carlos Frederico Marés Souza Filho chega, inclusive, a “admitir que haja para um território organizado em Estado, um pluralismo de sistemas jurídicos, válidos, com critérios temporais e espaciais con-sensuais de aplicação” (2006, p. 193).

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Constata-se, historicamente, que os povos tradicionais ainda sofrem intensa-mente para manterem seus territórios, existindo situações em que algumas comuni-dades têm, inclusive, dificuldade em reproduzirem o próprio meio de vida. As provas documentais e verbais apontando uma perda de domínio de parte das áreas onde possuíam acesso aos recursos naturais e para a reprodução social são inúmeras, sendo um novo desafio recuperar essas terras.

Mesmo o direito positivado, na sua busca em criar leis que se aproximem das concepções dos povos tradicionais, tratou de esboçar algumas normas, garantindo esses direitos. É o caso do artigo 16 da Convenção 169 da OIT.

Artigo 16 Com reserva do disposto nos parágrafos a seguir do presente Artigo, os povos interessados não deverão ser transladados das terras que ocupam. Quando, excepcionalmente, o translado e o reassentamento desses povos sejam considerados necessários, só poderão ser efetuados com o consenti-mento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão de pro-cedimentos adequados estabelecidos pela legislação nacional, inclusive enquetes públicas, quando for apropriado, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estar efetivamente representados. Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e reassentamento. Quando o retorno não for possível, conforme for determinado por acordo ou, na ausência de tais acordos, mediante procedimento adequado, esses povos deverão receber, em todos os casos em que for possível, terras cuja qualidade e cujo estatuto jurídico sejam pelo menos iguais aqueles das terras que ocupavam anteriormente, e que lhes permitam cobrir suas ne-cessidades e garantir seu desenvolvimento futuro. Quando os povos inte-ressados prefiram receber indenização em dinheiro ou em bens, essa inde-nização deverá ser concedida com as garantias apropriadas. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas e reassenta-das por qualquer perda ou dano que tenham sofrido como conseqüência do seu deslocamento. (BRASIL, 2002, grifos nossos)

Esse é um dispositivo normativo com potencial de interferir na estrutura agrária vigente, construindo possibilidades para o exercício da luta por direitos evidencia-dos no ordenamento.

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As terras tradicionalmente ocupadas as quais foram removidas ou retiradas in-devidamente das comunidades podem ser recuperadas sim, e, quando impossível, os povos tradicionais devem ser indenizados pela perda.

Essas seriam mais algumas das formas de possibilitar a aquisição de novos di-reitos, a partir de comunidades fortalecidas identitária e territorialmente.

4 Conclusão

Na atual dinâmica da economia brasileira, as comunidades tradicionais colo-cam-se em choque com o modelo de desenvolvimento agrário impulsionado pelo agronegócio. Modelo este que é incentivado no Estado capitalista, sobretudo, em um país reconhecido como exportador de commodities agrícolas.

As investidas dos setores ligados ao agronegócio contra as comunidades tradi-cionais são cada vez maiores, pois sabem que uma vez reconhecido o direito desses povos, perderão as terras que utilizam ou especulam frente ao direito territorial legítimo existente. Assim, terão dificuldades em expandir o capital monopolista no meio agrário e em continuar a concentrar renda, gerando o capitalismo dependente e superexplorador a que o país é submetido.

Diante dessa situação de enfrentamento, o direito não poderá repousar em uma estrutura eminentemente liberal, positivista e individualista, tal como ocorre hoje, para dar respostas a esses novos sujeitos de direitos, sujeitos coletivos, dos quais o direito posto nem sempre consegue apreender devidamente as demandas e neces-sidades. Direitos que ainda são pouco compreendidos pelos atuais operadores do direito, por brotarem dos próprios sujeitos, elevados à tarefa de novos operadores de direitos, conforme exemplificado com os acordos comunitários. Um sistema jurídico capenga, que observa a partir de um olhar estanque, difundido pelo método lógico--formal, as relações jurídicas. Assim, demonstra suas debilidades e insuficiências ao enfrentar uma construção jurídica pautada na realidade dinâmica das lutas sociais, alimentada pela relação dialética de um direito, que nos ensinamentos de Roberto Lyra Filho “é, sendo”.

O direito, nessas situações, é compreendido como portador de um caráter pluri-dimensional, extrapola a perspectiva legalista que tentam a ele imputar, mas se apre-senta no aspecto social, ambiental, ético, econômico, normativo, dentre outros. Mesmo reconhecendo que no enfrentamento atual a dimensão normativa é salientada e por isso, como uma das facetas do direito, deve ser bem trabalhada com o propósito de

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garantir direitos fundamentais a essas comunidades. De nada adianta proclamar os direitos progressistas à sociedade e não efetivá-los nas Cortes e nos Tribunais.

Depreende-se com isso, a importância de utilizar os instrumentos disponíveis capazes de contribuírem para a garantia desses povos aos seus territórios e à repro-dução do próprio meio de vida, e, porque não, do próprio direito.

Destaca-se a necessidade de aplicação do direito sob a ótica da positividade de combate e do uso alternativo do direito para a concretização de garantias fun-damentais a essas comunidades e pelo propósito transformador. A prática, tão só, da criminalização de condutas dos violadores de direitos dos povos e comunida-des tradicionais mostra-se insuficiente para assegurar os direitos étnicos e coleti-vos. Essa luta política deverá ser judicializada de outras formas. Em um primeiro momento, conforme já salientado, atuar na reparação de danos civis junto aos agredidos, ou em lides que evidenciem de imediato a coletivização de prejuízos. A ação civil pública é um instrumento que deve ser mais bem utilizado pelo po-tencial que possui, devendo ser manejado em parceria com o Ministério Público e a Defensoria Pública, entidades com o dever institucional de atuar nessas deman-das. Isso facilitará a construção de uma nova retórica argumentativa com conse-quências práticas, a qual pode ser bem apreendida pela sociedade e propiciar que o direito comece a ser vislumbrado como produto dialético proveniente das lutas sociais. Por isso, a utilização dos dispositivos normativos adequados e a difusão da hermenêutica diatópica poderão significar avanços para essas novas concepções jurídicas de cunho coletivo.

Nesse contexto, o pluralismo jurídico viabiliza a resistência, visto que emerge em uma realidade onde os povos tradicionais fomentam desenvolvimentos pecu-liares, contrapondo-se, por vezes, à dinâmica da propriedade privada e, com isso, à expansão do agronegócio incentivado pelo Estado. A Constituição concebida como pluralista cria condições para que o direito estatal seja reconhecido como uma den-tre as diversas formas de manifestação jurídica existentes. A concepção monista do direito não é suficiente, outras formas de manifestação jurídica são fundamentais para a viabilização de direitos aos povos e comunidades tradicionais.

Assim, o Estado ainda é imprescindível, desde que impotente para inviabilizar as manifestações culturais e jurídicas desses povos, e robusto suficiente para impedir as violações que os atingem e impedem de desenvolverem o próprio modo de vida. Essa observação é perfeitamente adequada aos povos e comunidades tradicionais, os quais através das lutas sociais potencializam-se enquanto sujeitos de direitos.

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Contudo, isso só será possível se as mobilizações continuarem e, a essa luta social das diversas comunidades tradicionais, encorparem-se na dinâmica da luta de classes, tendo o direito um papel fomentador dessas lutas, assegurador das garantias aos po-vos e construtor de resistências diante das violações. Caso sucumba em alguma des-sas tarefas, o próprio direito sucumbirá em sua empreitada de romper com os paradig-mas vigentes e reconstruí-los sob os moldes de uma sociedade justa e emancipadora.

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BRENO BAÍA MAGALHÃES

Doutorando e mestre em Direito (UFPA). Professor de Direito (FABEL/PA).

Artigo recebido em 01/01/2012 e aprovado em 23/01/2013.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Inclusão do efeito vinculante no ordenamento jurídico brasileiro e breves considerações teóricas 3 O efeito vinculante explicado por Celso de Albuquerque Silva: exposição sistemática dos argumentos e crítica 4 Conclusão 5. Referências.

RESUMO: O efeito vinculante é um instituto recente na jurisdição constitucional brasileira, o que faz com que muitas dúvidas ainda pairem sobre seu conteúdo e sobre sua justificativa constitucional. Doutrina e jurisprudência vacilam em sua con-ceituação, o que nos impede de tomar uma posição definida e definitiva sobre o tema. Todavia, podemos apontar argumentos que não são fortes o suficiente para justificar sua existência em nossa prática constitucional. No presente artigo, tais argumentos negativos serão construídos tomando por base a obra “Do Efeito Vincu-lante”, de Celso de Albuquerque Silva, na qual o autor se ocupou de estudar o efeito vinculante à luz de três princípios substantivos: igualdade, legalidade e democracia.

PALAVRAS-CHAVE: Efeito Vinculante Jurisdição Constitucional Igualdade Legalidade Democracia.

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Binding Effect: What It Isn’t

CONTENTS: 1 Introduction 2 Inclusion of the binding effect in the Brazilian legal order and brief theoretical considerations 3 The binding effect explained by Celso Albuquerque da Silva: systematic exposition of the arguments and criticism 4 Conclusion 5 References.

ABSTRACT: The binding effect is a recent institute in the Brazilian constitutional ju-risdiction, which means that many questions about its nature and about its constitu-tional justification still remain unanswered. Scholars and constitutional precedents have faltered with its conceptualization, which prevents us from taking a defined and definitive position on the issue. However, we can point out arguments that are not strong enough to justify its existence under our constitutional practice. In this paper, such negative arguments will be built based on the book Do Efeito Vinculan-te, by Celso de Albuquerque Silva, in which the author studies the binding effect in light of three substantive principles: equality, legality and democracy.

KEYWORDS: Binding Effect Constitutional Jurisdiction Equality Legality Democracy.

Efecto vinculante: lo que no lo es

CONTENIDO: 1 Introducción 2 La inclusión de los efectos vinculantes en el ordenamiento jurídico brasileño y breves consideraciones teóricas 3 El efecto vinculante explicado por Celso de Albu-querque Silva: exposición sistemática de los argumentos y críticas 4 Conclusión 5 Referencias.

RESUMEN: El efecto vinculante es un reciente instituto en la jurisdicción constitu-cional brasileña, lo que significa que todavía rondan muchas preguntas sobre su contenido y sobre su justificación constitucional. Doctrina y jurisprudencia están a vacilar en su conceptualización, lo que nos impide tomar una posición clara y defi-nitiva sobre el tema. Sin embargo, señalamos que existen argumentos que no son suficientemente fuertes para justificar su existencia en nuestra práctica constitucio-nal. En este trabajo, estos argumentos negativos se construyen sobre la base de lo libro Do Efeito Vinculante de Celso Silva de Albuquerque, en lo que el autor se ha encargado de estudiar el efecto vinculante a la luz de tres princípios fundamentales: la igualdad, la democracia y la legalidad.

PALABRAS CLAVE: Efecto vinculante Jurisdicción Constitucional Igualdad Lega-lidad Democracia.

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1 Introdução

O sistema de controle de constitucionalidade no Brasil é, sem dúvida, o principal e um dos mais eficazes meios de garantir a proteção das normas constitucio-

nais e, consequentemente, dos Direitos Fundamentais. No entanto, esse mesmo meca-nismo constitucional pode gerar problemas relevantes à proteção daqueles mesmos direitos. Tal situação pode se concretizar pela forma com que o funcionamento desse sistema é interpretado pela doutrina e, especialmente, pelos Tribunais Superiores.

A crescente divergência jurisprudencial entre os Tribunais brasileiros no que diz respeito à interpretação constitucional é preocupante; as demandas processuais no Supremo Tribunal Federal (STF) são enormes e, a todo o custo, buscam-se formas de uniformização de sua jurisprudência, no intuito de reduzir o número de feitos no Tri-bunal, garantir celeridade no seu trâmite e reforçar a autoridade de suas decisões1. Contudo, a adoção de mecanismos uniformizadores da jurisprudência constitucional não está isenta de severas críticas.

A criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e do efeito vincu-lante, através da Emenda Constitucional no 03, de 17 de março de 1993; a extensão daquele efeito à Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI), à interpretação conforme a constituição e à nulidade parcial sem redução de texto, pela lei 9.868, de 10 de novembro de 1999; o aumento dos poderes dos relatores dos tribunais; a repercussão geral e a súmula vinculante, ambos introduzidos por meio da EC no 45, de 30 de dezembro de 2004, por exemplo, espelham alguns desses mecanismos que ensejam obediência aos precedentes do STF e, dependendo de como forem interpretados, podem criar problemas mais graves do que aqueles dos quais inten-cionaram dar conta inicialmente.

O efeito vinculante, epicentro das recentes modificações legislativas, se apre-senta, também, como o principal mecanismo de articulação dos desdobramentos de nosso controle de constitucionalidade (que envolve um modelo difuso, exercido

1 A problemática da uniformização jurisprudencial sempre foi uma constante no cotidiano do STF. Sobre essa questão, sintomáticas são as palavras do ministro Victor Nunes Leal ainda na década de 60: “a eficiente organização do trabalho no Supremo Tribunal é um problema que se desdobra em dois outros: o da relativa estabilidade da nossa jurisprudência e o do imediato conhecimento das nossas decisões. Firmar a ju-risprudência, de modo rígido, não seria um bem, nem mesmo seria viável, a vida não para, nem cessa a criação legislativa e doutrinária do direito. Mas vai uma enorme diferença entre a mudança, que é freqüentemente necessária, e a anarquia jurisprudencial, que é descalabro e tormento. Razoável e possível é o meio-termo, para que o Supremo Tribunal possa cumprir o seu mister de definir o direito federal, eliminando ou diminuin-do dissídios da jurisprudência” (LEAL, 1997, p.29, grifo nosso).

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por todo Poder Judiciário, atuando junto com elementos de concentração, represen-tados pelas ações de competência privativa do STF, cujas decisões são dotadas do sobredito efeito). Assim, se torna pertinente desenvolver considerações acerca da melhor maneira de compatibilizar o referido instituto dentro da prática do contro-le de constitucionalidade brasileiro, ressaltando a importância da interpretação da Constituição feita pelo STF e a proteção dos Direitos Fundamentais.

Fincadas tais premissas neste breve panorama, um questionamento principal ainda espera uma resposta satisfatória: afinal de contas, o que é o efeito vinculante?

O artigo não pretende responder à pergunta formulada logo acima, mas sim apon-tar alguns argumentos sobre o que o efeito vinculante não seria. Para tanto, utilizare-mos como contraponto as considerações teóricas formuladas por Celso de Albuquerque Silva (2005), expostas na obra “Do Efeito Vinculante: sua legitimidade e aplicação”.

2 Inclusão do efeito vinculante no ordenamento jurídico brasileiro e breves consi-

derações teóricas.

De acordo com Roger Stiefelmann Leal (2006, p. 102), várias são as razões para a adoção do efeito vinculante em determinado ordenamento jurídico. Dentre elas, destaca o autor, está a recalcitrância dos demais poderes da República (em especial do Executivo) em aplicar a norma anteriormente expurgada do ordenamento jurídi-co no controle de constitucionalidade.

O autor salienta, ainda, a prática do Legislativo em reiterar o conteúdo material de lei declarada inconstitucional por meio de legislação editada posteriormente, em artifício para mitigar ou tornar ineficazes as decisões proferidas pelos Tribu-nais Constitucionais. Ainda que seja realizada de maneira diversa daquela exercida pelo Legislativo, a recalcitrância judicial se caracteriza pelo cumprimento estrito ao contido na parte dispositiva do julgado, sem atenção às demais imposições da declaração de inconstitucionalidade, como a interpretação conforme a constituição ou outras técnicas decisórias (LEAL, 2006, p. 108-111). Os pressupostos do efeito vinculante, segue o autor, garantem a estabilidade das relações sociais e políticas, eliminam possíveis divergências hermenêuticas surgidas no ato de interpretação das normas constitucionais e conferem à Constituição unidade, proporcionando sua aplicação igualitária a todos (LEAL, 2006, p. 114-115).

A esses argumentos, acrescenta-se, de acordo com o Senador Ronaldo Cunha (1999, p. 28), nas razões da proposta da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no 54/95, tendente a reformular a redação do art. 102 da Constituição (BRASIL, 1988)

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(tal emenda tinha por fim a criação do efeito vinculante nas decisões de mérito em ADI, bem como a introdução das súmulas vinculantes2), que uma das principais ra-zões para a previsão do instituto, no Brasil, era o de acelerar o julgamento do grande número de processos repetitivos julgados pelo STF. Em suma, a principal finalidade do efeito vinculante, de acordo com as razões do Senador, era atribuir maior celeri-dade na prestação jurisdicional do STF, assim como diminuir o volume de processos a serem julgados pelo Tribunal. Portanto, ainda que as razões salientadas por Roger Stiefelmann Leal sejam importantes para caracterizar as experiências estrangeiras de vinculação formal do precedente constitucional no controle concentrado, no Bra-sil, as razões para sua adoção foram, portanto: a redução dos processos julgados no STF, a celeridade processual e a inibição de decisões contrárias ao pronunciamento da Suprema Corte em ADC3.

O legislador constituinte de 1988 optou por não trazer o efeito vinculante na redação original da Constituição, contudo, com base em proposta de Emenda Cons-titucional da lavra do Deputado Roberto Campos (PEC no 130/92), aquele foi intro-duzido no texto da Constituição mediante a Emenda Constitucional no 03/93, para as decisões de mérito em ADC.

Hodiernamente, em função da Emenda Constitucional no 45/04 (BRASIL, 2004), que estendeu sobredito efeito para as decisões de mérito em ADI, a discussão sobre a constitucionalidade da veiculação do instituto através de lei ordinária resta supe-rada4. Quanto à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), o art. 10, § 3o da Lei no 9.882/99 prevê, expressamente, a possibilidade de atribuição de efeito vinculante às suas decisões5.

A constitucionalidade da ADC, bem como do efeito vinculante, foram debatidos no julgamento da Questão de Ordem na ADC no 01 (BRASIL, 1995). Naquela assen-tada, na linha do voto do Min. Moreira Alves, declarou-se a constitucionalidade da nova ação e do efeito vinculante, vencido, nesses pontos, o Min. Marco Aurélio.

2 Esta proposta foi posteriormente apensada à PEC no 96/92, que deu origem à EC no 45/04.

3 Oscar Vilhena Vieira (1994, p. 89-90) conclui que a decisão dotada de efeito vinculante na ADC visa, em última instância, tornar a norma declarada constitucional imune à impugnações por parte dos cidadãos através do Judiciário, que estará, por sua vez, impossibilitado de verificar a legitimidade da norma no caso concreto, bem como considerá-la inconstitucional pelo controle difuso.

4 Ver, no sentido da constitucionalidade do efeito vinculante determinado por lei infraconstitucional, a decisão plenária na Questão de Ordem na Rcl. 1.880/SP (BRASIL, 2002).

5 Sobre a constitucionalidade da atribuição de efeito vinculante à ADPF mediante lei ordinária, ver os debates na Medida Cautelar na ADI no 2.231/DF (BRASIL, 2001).

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Passados quase vinte anos da edição da EC no 03/93, a doutrina constitucional brasileira ainda é vacilante quanto à definição do efeito vinculante. Sua natureza ju-rídica é por demais controvertida, e seu papel na jurisdição constitucional brasileira está em constante debate acadêmico e jurisprudencial.

Por essa razão, as conceituações do efeito vinculante, geralmente, são bastante genéricas e recorrem a expressões que dizem muito pouco a seu respeito como, por exemplo, “plus normativo” (FERRARI, 1999, p. 252) ou “força obrigatória qualificada” (ZAVASCKI, 2001, p. 52-53) do precedente. Quando muito, os autores apenas res-saltam as consequências instrumentais de seu descumprimento, como se fosse o suficiente para delimitar o conteúdo da vinculação que tal efeito impõe, e, por fim, quais as justificações de sua existência.

Ainda que de maneira breve, podemos observar que a doutrina parece criar um atalho muito grande e perigoso para explicar as consequências do efeito vinculante, uma vez que titubeia e hesita na caracterização de seu conteúdo substancial. Seria uma forte razão para considerar que existe uma transcendência dos fundamentos determinantes o fato do nosso efeito vinculante ter sido inspirado no direito alemão (MENDES, 2009, p. 597-608)? Qual a justificativa para essa correlação entre diver-sos institutos constitucionais de países distintos e tradições díspares? Afirmar que o efeito vinculante é um “plus normativo”, imediatamente, faz com que ele não se limite à parte dispositiva do julgado e justifique a propositura da reclamação cons-titucional no caso de seu descumprimento? Parece-nos que não.

Mas nem todas as incursões teóricas foram tão evasivas ou rasas como as, bre-vemente, elencadas acima. Celso de Albuquerque Silva, em importante obra sobre o tema, observou a deficiência apontada até aqui e buscou agregar argumentos substantivos e substanciais para explicar o efeito vinculante no Brasil. Em seguida, exporemos os argumentos do autor e, desconstruindo-os, chegaremos a algumas conclusões sobre o que o efeito vinculante não é.

3 O efeito vinculante explicado por Celso de Albuquerque Silva:

exposição sistemática dos argumentos e crítica

Em obra fruto de seu doutoramento em direito pela PUC-RJ, o autor bus-ca fundamentar o efeito vinculante com suporte em três princípios constitucionais substantivos: igualdade, legalidade e democracia. Em primeiro lugar, temos de elo-giar o autor por perceber que a justificação do efeito vinculante não pode ser feita de maneira apenas semântica, tentando explicar a força de sua vinculação por meio

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de expressões que nada dizem e apenas confundem o intérprete. O autor, por essa razão, busca a justificação do instituto nos princípios constitucionais da legalidade, igualdade e democracia; argumentos que acreditamos serem cruciais para entender o sobredito efeito. Todavia, não podemos concordar com os resultados dos argumen-tos adotados pelo autor.

3.1 O argumento da igualdade

O autor considera que toda e qualquer norma jurídica fornece, em graus di-ferentes, margem para a discricionariedade na sua interpretação, sendo essa uma margem para que o intérprete realize juízos de valor sobre a questão posta, e consi-dera, inclusive, que a coerência com a igualdade se concretiza com o convencimento argumentativo daqueles que devem conhecer do caso6. A falta de uma vinculação ao entendimento das cortes superiores permite que o juiz julgue caso a caso, podendo

6 Nesse momento, não podemos deixar de apontar a confusão teórica e conceitual do autor. Apesar de citar Dworkin para explicar a interpretação jurídica, acaba por afirmar, com base nas teorias da argu-mentação jurídica de Robert Alexy (2007), que a coerência se confirma com o convencimento argumen-tativo. A teoria de ambos os autores é diferente e inconciliável. Dworkin (1999) é contrário, justamente, ao argumento de que a verdade seria uma questão de consenso. O convencimento, por se tratar de uma questão interpretativa advinda dos juízos morais que cada um de nós possui, não se estabelece porque a estes argumentos morais são agregados outros argumentos que, supostamente, se situam em um plano superior ou distinto, mediante o qual podemos valorar e julgar tais argumentos com base em outros argumentos de natureza diferente dos pontos de vista morais e afirmar que são mais fortes que os demais ou que não são possíveis, o que permitiria o consenso ou, ainda, é pouco crível que existam argumentos que possam acabar com uma discussão moral controversa por sua cabal força de persuasão e convencimento. Todavia, ainda que toda a população mundial, com a exceção de uma pessoa, conside-re a escravidão uma prática justa e possível, não a tornará legitima, uma vez que, para Dworkin, podem existir verdades objetivas no campo moral, pela “simples” razão de todos nós argumentarmos dentro desse mesmo campo e não saírmos dele para fazer qualquer declaração. A própria ideia de que não exis-tem verdades morais ou que a verdade se trata de uma questão relativa são posições substantivas do ponto de vista moral como todas as demais. Por outro lado, Alexy parte da ideia de que as considerações morais, ainda que importantes e inevitáveis nos argumentos jurídicos, não são certas nem erradas, pois são prescrições normativas, e apenas podem ser discutidas de maneira procedimental para que, assim, possamos chegar a um consenso, estabelecidas determinadas regras do discurso racional (o discurso moral é uma atividade guiada por regras, que não se limitam a sua linguagem; à descrição de objetos ou de situações empíricas ou não empíricas e a tarefa mais importante de um discurso racional prático é estabelecer quais são essas regras). O argumento da moral é importante na teoria da interpretação e do direito de ambos os autores e a mesma exerce um papel importante nas argumentações de Celso Albuquerque Silva e se o autor conclui que a igualdade é melhor captada pelo consenso, não podemos deixar de observar que se filia às concepções de Alexy sobre interpretação, e não às de Dworkin, tendo de suportar todas as críticas que são feitas às teorias da argumentação. Contra tais teorias, conferir as substanciais e fortes críticas feitas por Streck (2009).

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ser induzido, de maneira volitiva, a decidir de modo distinto uma mesma lide, por meio de uma exclusão arbitrária ofensiva à igualdade de tratamento.

Afirma que o juiz não poderia, em um caso absolutamente novo, antes de romper com a tradição, deixar de utilizar a analogia, cujo fundamento axiológi-co sustenta que, até o limite do razoável, o caso novo deve ser solucionado como foram solucionados pela lei os casos semelhantes, e que o efeito vinculante re-forçaria o princípio da igualdade, coagindo o judiciário a julgar de modo uniforme (SILVA, 2005, p. 20-32).

Como visto acima, para o autor, o ideário da resposta correta7 não pode ser acei-to, pois, para fins de vinculação, basta que a decisão seja emitida pela corte superior para que todos os demais órgãos do Poder Judiciário considerem-na como tal. Por isso, afirma que a existência do efeito vinculante não depende da noção de resposta correta, pois se todos membros do Judiciário compreendessem que devem sempre buscar a resposta correta, desnecessária seria a vinculação. Nesse sentido, como é desnecessário perquirir se a resposta do Tribunal Superior é mais correta, por conta

7 Segundo a interpretação que o autor faz das teorias de Dworkin, o filósofo norte americano compre-enderia que existem princípios que vão permitir a exigência de uma resposta correta naquela hipóte-se em que as regras não determinam uma resposta correta, que seria aquela que melhor pode se jus-tificar por meio de uma teoria que enseja a ponderação de princípios que melhor correspondem com a constituição das regras do direito e precedentes (SILVA, 2005, p. 34). Uma vez mais, a compreensão errada das teorias de Dworkin compromete a argumentação, uma vez que Dworkin (2010), quando tratou da distinção entre princípios e regras não aceitou o argumento de que existe um critério forte apto a sempre distinguir ambos. A ideia da diferença estrutural entre ambas serviu apenas para de-monstrar como seria impossível manter a noção de uma regra de reconhecimento (uma espécie de norma fundamental) para parâmetros normativos que os juristas discordam sobre sua existência e sobre seu conteúdo, que seriam, justamente, os princípios. Nesse passo, não se trata de “utilizar” os princípios quando houver lacunas nas regras, em um reflexo da filosofia da consciência que postula uma compreensão instrumental para os argumentos jurídicos e sobre a interpretação. Quanto ao ar-gumento da utilização dos princípios para a resposta correta, não se trata de uma utilização subsidiá-ria, eles sempre estarão lá e sua utilização apenas serve para refutar as noções positivistas que Celso Albuquerque reproduz, inadvertidamente, uma vez que a ausência de uma resposta correta é uma tese levantada por aqueles que vêem limites na interpretação, acreditam que as regras são lacunosas e que existe uma convenção consensual sobre a autoridade política anterior que determinou o que poderia e o que não poderia ser considerado direito (DWORKIN, 2005).

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de seu papel na integração da comunidade8 e como órgão ápice do ordenamento, seu precedente deve ser aceito como tal, uma vez que a integração é mais impor-tante que o acerto da decisão, que atribui uniformidade e segurança jurídica à vida em sociedade. Ademais, o respeito à diretriz integradora diz respeito ao sentimento cultural do país de pertencer a uma República que defende os princípios, regras e valores que subjazem o ordenamento, dentre os quais, o da igualdade.

Como podemos observar, o autor afirma que a igualdade é garantida pelo efeito vinculante, pois o mesmo coage os demais órgãos do Poder Judiciário a seguir o de-cidido pelo STF, porquanto sua decisão deve ser, sempre, considerada como a mais correta por conta de seu importante papel na integração da comunidade brasileira, que respeita seus princípios e valores, o que atribui segurança jurídica e uniformi-dade ao ordenamento.

Pensamos que a ideia de igualdade que o efeito vinculante visa resguardar é bastante diversa daquela defendida pelo autor. O efeito vinculante nunca poderá de-fender e garantir a igualdade pressupondo uma suposta coação do STF aos demais órgãos do Judiciário, uma vez que a manutenção de vias abertas para a interpretação

8 A utilização das teorias de Rodolf Smend (1985) para explicar a integração da comunidade e o papel das supremas cortes é, igualmente, improcedente. Smend via na Constituição de Weimar um processo de integração no qual o Estado tem sua realidade vital e os direitos fundamentais, por sua vez, se apresentam com uma ordem de valores determinadas pelo povo. Nesse sentido, a interpretação deve orientar-se ao sentido e à realidade da Constituição que se considera efetiva, o que se perfaz por meio de uma prática mais elástica e diferente das demais do direito, tendo em vista seu papel integrador que apenas pode ser reconhecido através dos métodos das ciências do espírito (lembrar que tal di-ferença é irrelevante se adotamos a teoria de Dworkin, uma vez que os argumentos jurídicos não são diferenciados pelos demais por conta de algum método científico ou critério avaliador externo ao argumento, uma vez que filosofia e direito são a mesma coisa. Portanto, pouco sentido faz se valer de uma suposta metodologia das ciências do espírito ou nossas ciências humanas, que, em nosso país, já incluem o Direito). O problema da teoria de Smend é que tal realidade e sentido são buscados fora da Constituição, ou seja, interpreta-se uma realidade que estaria previamente posta fora dela, das suas decisões fundamentais e de suas normas e o que é importante é o saber intuitivo daqueles, para a compreensão dos estados de consciência, constelações de valores e processos de integração. A teoria de Smend considera que existe um descompasso entre a norma e a realidade, como se a interpretação da norma dela pudesse prescindir. Do mesmo modo, os preceitos sociológicos ganham contorno de validade normativa, que se perfazem como juízos e afirmações sobre a Constituição e com isso, a in-terpretação constitucional é feita sem que se leve o texto normativo constitucional em consideração (BOCKENFORDE, 1993, p. 28-30). Ademais, onde estaria o espírito do povo? Quais os valores do povo brasileiro sobre o papel das cortes superiores? Onde podemos encontrar, de maneira irrefutável, os valores do povo brasileiro? Na Constituição? E se houver divergência sobre a interpretação deles (e sempre há), como interpretá-la? Seria a maioria da população eleitora que dita os direitos fundamen-tais e a interpretação constitucional? E os direitos das minorias? São apenas aqueles reconhecidos pelo espírito do povo, que seria a maioria? Se o autor acata as teorias de Smend, tem que suportar o ônus de refutar tais pontos problemáticos, o que não faz em sua obra.

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das decisões vinculantes do STF deve ser sempre possível9, seja porque a decisão da Suprema Corte pode estar errada, incompleta ou com uma fundamentação deficien-te, seja porque as decisões vinculantes não contêm, de maneira metafísica, todas as respostas a todos os casos que se apresentarem perante a jurisdição constitucional brasileira, o que ensejará a interpretação da decisão vinculante para que, enfim, atinja a igualdade na interpretação do direito. Portanto, as demandas que chegam ao STF buscam uma maior coerência com e uma resposta mais adequada ao orde-namento jurídico brasileiro, e tal busca se finca, justamente, no ideal corretivo do ordenamento jurídico igualitário e coerente.

Ademais, se o STF aceita tais demandas e revê sua jurisprudência por meio de-las, o argumento substantivo da integração parece não ser o melhor para explicar a igualdade no efeito vinculante, uma vez que nossa moralidade política é, talvez, melhor considerada se compreendermos o Judiciário como garantidor de que os mais eficazes meios sejam empreendidos na defesa dos Direitos Fundamentais, o que inclui, pensamos, a possibilidade de o Judiciário demonstrar ao STF que a inter-pretação que realizou não foi a melhor no caso julgado anteriormente10.

Para confirmar tal questão, citamos alguns exemplos. No julgamento da ADI no 3.460/DF (BRASIL, 2007c), ficou assentada a constitu-

cionalidade de ato administrativo que regulamentava a exigência dos 03 (três) anos de atividade jurídica prevista na EC no 45/04 (BRASIL, 2004). Dessa forma, podemos extrair dos fundamentos dos votos vencedores, em especial do Min. Relator, que os três anos de atividade jurídica contam-se da data da conclusão do curso de Direito e que o fraseado “atividade jurídica” é significante de atividade para cujo desempenho se faz imprescindível a conclusão de curso de bacharelado em Direito.

Contudo, esse entendimento, mesmo sendo geral e dotado de efeito vinculante, para ser interpretado, deverá levar em consideração as particularidades do caso concreto trazido perante o juiz, como ocorreu no caso do MS no 26.690/DF (BRASIL, 2008). Em julgamento que excepcionou o entendimento dotado de efeito vinculan-

9 Nesse sentido, podemos pensar na solução institucional criada para o controle dos precedentes vin-culantes por meio da Reclamação, bem como é importante acompanhar os debates travados nos Agravo Regimental nas Reclamações nos 11.427 (BRASIL, 2011) e 11.408 (BRASIL, 2011), que susten-tam a necessidade de se criar um mecanismo que permita ao STF interpretar as decisões ordinárias em Repercussão Geral. O grande ponto da discussão é o seguinte: o STF deve manter as vias abertas para a interpretação da decisão exarada em repercussão geral, tendo em vista que o plenário decidiu que, uma vez julgado o RE com repercussão geral, seria incabível qualquer recurso ao STF?

10 Nesse sentido, ver manifestação do Min. Gilmar Mendes transcrita na nota 19, infra.

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te acima descrito, o Tribunal concedeu segurança à Promotora de Justiça do Estado do Paraná para que a exigência dos 03 (três) anos de atividade jurídica não consubs-tanciasse óbice à habilitação da impetrante ao exercício do cargo de Procuradora da República, para que, assim, tomasse posse no mesmo. No caso, o pedido de inscrição definitiva da impetrante fora indeferido por não ter sido comprovado o período de atividade jurídica exigido pela Constituição no momento da inscrição, conforme o assentado no julgamento da ADI paradigma. O Min. Eros Grau, relator, em face do fato de a impetrante ser Promotora de Justiça do Estado do Paraná, empossada des-de abril de 2005, exercendo atribuições inerentes a esse cargo, inclusive algumas que também são exercidas pelo Ministério Público Federal (conforme a LC 75, de 20 de maio de 1993, artigos 78 e 79), concluiu caracterizar-se uma contradição injustificável a circunstância de a impetrante exercer funções delegadas do Minis-tério Público Federal e, concomitantemente, ser julgada inapta para habilitar-se em concurso público para o provimento de cargos de Procurador da República11.

Mais importante que esse caso, podemos citar o da Medida Cautelar na ADC no 04/99 (BRASIL, 1999), em que foram considerados constitucionais os dispositivos da lei 9.494, de 10 de setembro de 1997, que consolidava limitações à antecipação dos efeitos da tutela em face do poder público, especialmente, aquelas relacionadas a vantagens pecuniárias reivindicadas pelo servidor público. No entanto, em casos de direitos previdenciários reconhecidos constitucionalmente e garantidos pela jurispru-dência do STF, o tribunal determinou que se poderia excepcionar o efeito vinculante da referida medida cautelar. As reclamações e Recursos Extraordinários julgados pelo tribunal foram tantos, que o plenário precisou editar uma súmula para ratificar a exce-ção das matérias previdenciárias à incidência do efeito vinculante (Súmula no 72912, BRASIL, 2003).

Imaginemos se o Judiciário ficasse inerte nos casos acima, mesmo considerando a existências de decisões vinculantes? Nesse sentido, a argumentação de igualdade do efeito vinculante do autor é temerária. A inércia do Judiciário iria, contraditoria-mente ao defendido por Celso Silva, violar Direitos Fundamentais, derrubando o ar-

11 Por oportuno, transcreve-se trecho da ementa do referido acórdão: “[...]. 5. A igualdade, desde Platão e Aristóteles, consiste em tratar-se de modo desigual os desiguais. Prestigia-se a igualdade, no sentido mencionado quando, no exame de prévia atividade jurídica em concurso público para ingresso no Minis-tério Público Federal, dá-se tratamento distinto àqueles que já integram o Ministério Público. Segurança concedida” (MS 26.690/DF, BRASIL, 2008, grifo nosso).

12 A decisão na ação direta de constitucionalidade 4 não se aplica à antecipação de tutela em causa de natureza previdenciária (grifo nosso).

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gumento da integração. O fechamento das vias para a reinterpretação das decisões vinculantes (bem como sua revisão) e a inércia dos demais órgãos do Poder Judici-ário, não interpretando a decisão vinculante, acabariam por perpetuar violações a Direitos Fundamentais que poderiam ter escapado à atenção do STF no julgamento da questão, uma vez que a abstração das vias concentradas não permite que o mes-mo analise todas as questões e situações de violação a direitos que podem ocorrer (nem mesmo hipoteticamente)13.

Desbancando o argumento da igualdade, tal como formulado pelo autor14, o efei-to vinculante não impede que as decisões do tribunal sejam interpretadas pelo Judici-ário, na busca de um julgamento mais coerente com os princípios constitucionais e a posição inerte do mesmo pode acarretar violações de Direitos Fundamentais.

3.2 O argumento da legalidade

Na perspectiva do autor (SILVA, 2005), a legalidade seria uma das facetas do Estado de Direito, uma vez que determina a vontade da lei, ao invés de garantir a vontade dos homens. Todavia, prossegue, a aplicação da lei no país tem sido reali-zada de maneira discricionária e severa em relação aos menos abastados, pois os juízes desconsideram a norma legal quando acatam interpretações distorcidas em

13 Outro exemplo que desbanca o dito pelo autor e reforça o que dissemos se encontra na manifesta-ção do Min. Gilmar Mendes na Rcl. 4374 (BRASIL, 2007a): “O Tribunal parece caminhar no sentido de se admitir que o critério de 1/4 do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão do benefício assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição. Entendimento contrário, ou seja, no sentido da manutenção da decisão proferida na Rcl 2.303/RS, ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93, diante da insuficiência de critérios para se aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, como exige o art. 203, inciso V, da Constituição. A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93 [lembremos que tal artigo foi considerado constitucional, ou seja, dotado de efeito vinculante, na ADI 1232]. Diante de todas essas perplexi-dades sobre o tema, é certo que o Plenário do Tribunal terá que enfrentá-lo novamente” (grifo nosso).

14 Entendemos que o argumento da igualdade é muito importante na compreensão do efeito vinculan-te, mas não de acordo com a feição atribuída por Celso Albuquerque. Acreditamos que aquele efeito serviria como instrumento de harmonização da jurisprudência constitucional, não de uniformização. Todo o Judiciário pode e deve interpretar a Constituição e sua jurisprudência deve se harmonizar com os princípios exarados pelo STF, todavia, isso não significa que não pode realizar uma melhor interpretação do que a Corte Suprema, que poderá rever seu posicionamento, sempre, pois as vias devem se manter abertas para tanto. O que se deve, irredutivelmente, assegurar é uma igualdade na interpretação do direito. Cf., nesse sentido, Maués (2008).

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favor das elites políticas e econômicas dominantes (SILVA, 2005, p. 51-56). O efeito vinculante, por essas razões, evita que algumas pessoas fiquem de fora do alcance da lei. Nesse sentido, a legalidade se relaciona com o efeito vinculante, na medida em que o último maximiza a liberdade de ação do indivíduo ao tornar previsíveis as consequências legais do comportamento dos cidadãos, que podem planejar seu futuro tranquilamente, ou seja, o efeito vinculante garante a não frustração do cida-dão, pois não existe o abandono da história institucional pretérita e confere a todos o mesmo resultado, economizando tempo e dinheiro públicos.

Se o autor compreendeu bem a teoria de Dworkin (2005), sabe que o mesmo, dificilmente, concordaria com tal descrição de nosso sistema jurídico, uma vez que Celso Silva (2005) compreende que vivemos regulados por regras semânticas que esgotam o conteúdo de nossas responsabilidades de acordo com a interpretação de seu texto normativo15. Pensamos que a interpretação feita pelo autor não espelha nossa moralidade política da melhor maneira e não garante, automaticamente, legi-timação ao efeito vinculante.

Para a questão da legalidade, citaremos o exemplo da interpretação do inciso XI, art. 5o da Constituição (BRASIL, 1988). De acordo com o referido texto normativo constitucional: “A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo pene-trar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.”.

Todavia, a jurisprudência do STF, apesar da aparente “clareza” do termo “casa”, sedimentou que, para os fins da proteção jurídica a que se refere o inciso, o conceito normativo de ‘casa’ revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer aposento de habitação coletiva, desde que ocupado, compreende, por exemplo, os quartos de hotel (RHC 90.376, BRASIL, 2007b).

15 O autor parece defender uma teoria de Estado de Direito repudiada por Dworkin (2005, p. 05-32), classificada como uma teoria centrada no texto legal que se baseia na premissa de que, tanto quanto possível, o poder do Estado nunca deve ser exercido contra cidadãos individuais, a não ser quando em conformidade com regras explicitamente especificadas num conjunto de normas públicas à disposição de todos e consensualmente aceitas. Ademais, as regras postas devem ser seguidas até serem modificadas. Ainda que os partidários dessa ideia se preocupem com o conteúdo dos direitos, Dworkin afirma que este ponto se reduz a uma questão de justiça substantiva enquanto ideal di-verso que não faz parte do ideal do Estado de Direito centrado no texto legal, ou seja, não se trata de uma questão a ser discutida nos tribunais. Para tal modelo, os juízes devem decidir os casos controversos tentando descobrir o que está realmente no texto jurídico, pois compreendem o texto legislativo como um veículo de comunicação como a fala, por exemplo, em que devemos buscar apenas o que estaria nas intenções de quem promulgou a lei.

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Se a legalidade constitucional e, especialmente, aquela relacionada aos Direitos Fundamentais é a que justifica o efeito vinculante de Celso Albuquerque, ou seja, a que permite a previsibilidade das ações humanas e a segurança jurídica, como pode-ríamos interpretar o referido precedente acima? Se o STF interpretou o artigo dessa maneira é porque interpretou um princípio que subjaz à proteção da casa como asilo inviolável, qual seja, o direito fundamental à intimidade. Portanto, a noção de previsi-bilidade ínsita à argumentação do autor é problemática, na medida em que o resulta-do da construção teórica jurisprudencial não pode ser captada, somente, pelo recurso às expressões inscritas no texto normativo constitucional de maneira semântica, além de partir da concepção do Direito como simples e mero instrumento regulamentador de expectativas, que existe para servir, justamente, ao que o autor repudia: uma classe burguesa mercantil dependente da previsibilidade do Direito regulamentador.

A necessidade de que os cidadãos, sempre, tenham uma exata noção de suas obrigações demonstra dois pontos importantes: 1) o Direito é considerado um con-junto de regras, que são e devem ser claras e que prescindem de interpretação e são tão detalhadas que ninguém apresenta dúvidas interpretativas sobre seus conteú-dos, extensões e limites, porque todos concordam, consensualmente, sobre o senti-do de seus deveres (e expressões) nelas contidos; e 2) a preponderância da unifor-midade e previsibilidade considera que todos os ramos do Direito operam na mesma lógica empresarial e civilista, porquanto nestas áreas é muito importante, tendo em vista seus fins e princípios, que os sujeitos conheçam seus direitos e obrigações de maneira detalhada para que possam estabelecer relações sinalagmáticas16.

Quando lidamos com casos constitucionais e Direitos Fundamentais, o argu-mento da segurança jurídica e da legalidade como previsibilidade das consequên-cias legais se enfraquece de maneira considerável, uma vez que os textos que car-regam os Direitos Fundamentais estão vazados em conteúdo moral que não indica, de antemão, quais são as melhores interpretações para os casos concretos, devendo

16 Mesmo nesses casos o argumento é frágil, pois existem deveres e obrigações que necessitam de decisões importantes por parte dos tribunais, especialmente no campo da responsabilidade civil, do direito do consumidor e no tocante à relação dos direitos fundamentais com as regulações em-presariais, o que afasta o argumento da singela previsibilidade, também, nas áreas acima citadas, uma vez que o conteúdo das normas empresariais não é extraído apenas de uma leitura do código civil e das leis esparsas. Nesse sentido, conferir o debate que os ministros travaram sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações empresariais e o impacto de tal reconhecimento no regramento societário no RE 201.819/RJ (BRASIL, 2006). Nesse caso, a decisão da demanda dependia da concepção que o Tribunal acatasse sobre a aplicabilidade dos direitos fundamentais no direito societário, ou seja, uma questão nada previsível.

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o juiz constitucional (e todos os intérpretes da Constituição, como o Legislativo e o Executivo) realizar uma leitura moral, a fim de construir a sua melhor interpretação, por meio de decisões que são políticas.

O problema da casa como asilo inviolável e sua interpretação não chegaria ao STF se todos estivessem de acordo com a interpretação de que o inciso apenas protege a casa, domicílio e/ou lar doméstico ou que fosse patente que a proteção constitucional se estende para outras situações. A interpretação do STF poderia ser tanto no sentido restritivo, como no sentido de sua atual jurisprudência. O Tribunal apenas chegou à conclusão atual porque interpretou os princípios de moralidade política da Constituição da maneira que julgou ser a melhor possível, não porque era óbvio que “escritório” ou “hotel” pudessem ser considerados como “casa” para fins de proteção constitucional. Se o argumento fosse da estabilidade, previsibilidade da regra, a decisão seria tida como equivocada.

O argumento da tradição não prospera, porque a interpretação das normas ju-rídicas é uma empreitada que não tem fim, e o STF pode chegar à conclusão de que havia interpretado, anteriormente, equivocadamente a tradição política do país, e, também, porque nem todos os juízes estão de acordo sobre o que a mesma tradição significa e onde podemos encontrá-la. Ora, é muito fácil afirmar, com extrema certe-za, que os juízes podem abandonar a tradição política quando todos, sem exceção, estão de acordo sobre o que ela seja e onde se encontra. Se os ministros do STF divergem quanto à interpretação da Constituição é porque divergem, justamente, sobre o que constitui nossa tradição política e a melhor interpretação que pode ser dada a ela e de que modo o Direito pode interferir nela, portanto, apenas podería-mos violá-la, caso soubéssemos o que ela significa anteriormente17, e o autor não demonstra qual seria a tradição brasileira violada pelas decisões do Judiciário, nem como tal violação ocorre.

Nesse sentido, o efeito vinculante não se justifica, sob o prisma da legalidade, se o instituto for interpretado como meio para garantir a previsibilidade e a estabi-lidade das relações jurídicas, uma vez que a decisão do STF sempre trará dúvidas in-

17 Como vimos, o autor acredita que a tradição já está posta, negligenciando um importante conceito teórico da hermenêutica filosófica: a pré-compreensão. Nesse sentido, Habermas (1998, p. 273) afir-ma que a referência hermenêutica à pré-compreensão determinada por princípios não pode deixar o juiz alheio à história efetual das tradições normativas adotadas pela comunidade, por si mesmas, dotadas de autoridade. Antes, esse recurso lhe obriga a apropriar criticamente de uma história ins-titucional do direito em que a razão prática tenha deixado suas impressões e resíduos. Ou seja, este apropriar criticamente significa que o juiz sempre terá de interpretar o que considera como tradição jurídica de seu país, pois essa nunca será um dado.

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terpretativas e os princípios constitucionais sempre necessitarão ser interpretados, possibilitando que erros na interpretação atribuída à moralidade política brasileira possam ser corrigidos. Ademais, em se tratando de Direitos Fundamentais, o argu-mento da previsibilidade perde muito de sua atração, uma vez que seus conteúdos são históricos, variam no tempo de acordo com as condições políticas do país e não podem se cristalizar em interpretações baseadas na previsibilidade.

3.3 O argumento da democracia

Segundo Celso Silva (2005), o efeito vinculante não é contrário ao princípio democrático. Pontua que o efeito vinculante deve ser entendido como a obriga-toriedade de as cortes inferiores seguirem o entendimento esposado pelas cortes superiores quanto ao sentido da lei em determinado suposto concreto, toda vez que esse suposto for trazido, novamente, à apreciação judicial. Por seu turno, afirma que democracia seria a auto-organização política autônoma de uma comunidade, a qual se constituiu como suporte do sistema de direitos, como uma associação de mem-bros livres e iguais. Nesse sentido, afirma que a regra fundamental e ineliminável da democracia é a da maioria, segundo a qual são vinculatórias para todo o povo as decisões aprovadas, ao menos, pela maioria daqueles a quem compete tomá-las (SILVA, 2005, p. 120-121).

Dessa forma, o efeito vinculante se relaciona com a democracia na medida em que reforça o princípio majoritário, uma vez que, na falta de uma legislação em de-terminada área importante do Direito, as Cortes Supremas mandam um sinal para o Legislativo, no sentido de que o mesmo não pode abdicar de sua função legislativa, quando decidem sobre questões importantes relacionadas à Direitos Fundamentais. Sendo assim, recusando em violar a regra da maioria que pertence ao Legislativo, as cortes podem impor aos cidadãos eleitores o ônus de instar a legislatura a corrigir qualquer interpretação politicamente equivocada ou inconveniente levada a cabo pelo Judiciário. Isto porque, segundo o autor, é o Poder Legislativo o órgão democra-ticamente legitimado a tomar decisões políticas fundamentais no mister de outorgar boa vida a todos. O efeito vinculante, por sua vez, promove a democracia ao reforçar a regra de maioria, pois impede que o Judiciário continue a legislar sobre o mesmo assunto, reinterpretando uma particular norma legal (SILVA, 2005, p. 121-125).

Podemos perceber, diante do exposto logo acima, a concepção de democracia que o autor adota: de cunho procedimental e deliberativa. Ou seja, o Judiciário não pode tomar decisões de substância e, quando o faz, age de maneira não legítima,

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pois a referida decisão serve apenas como exemplo de como o Legislativo não pode agir, ou seja, de maneira omissa. A mensagem “democrática” do Judiciário para o Legislativo seria a seguinte: “é melhor que vocês acordem e legislem sobre o que lhes cabe, ou vamos continuar tomando decisões antidemocráticas (ainda que im-portantes para a comunidade) sobre assuntos que não nos diz respeito e dos quais não podemos tomar partido”.

Será essa a melhor leitura que podemos fazer de nossa democracia e de como tal princípio se relaciona com o efeito vinculante?

Consideremos o caso da ADI 4277 (BRASIL, 2011a) e da ADPF 132 (BRASIL, 2011b), que trataram sobre o reconhecimento das uniões homoafetivas como enti-dades familiares.

De acordo com recente pesquisa feita pelo IBOPE (2011), 55% dos entrevistados declarou ser contra a união de pessoas do mesmo sexo. De acordo com o argumento do autor, a decisão do STF seria antidemocrática, uma vez que foi contra decisão da maioria e que, nesse instante, foi dada a largada para que o Legislativo revogue tal decisão por meio de alguma emenda constitucional. Alguém poderia dizer que o STF agiu de maneira errada? Por que necessitamos de uma lei que afirme que a união homoafetiva é família, se, devidamente interpretada, podemos extrair tal conclusão da Constituição? A maioria pode impor à minoria como deve viver e dispor sobre o conteúdo de seus Direitos Fundamentais?

Trata-se de uma concepção de democracia defendida por importantes autores, como Sunstein (1999) e Bickel (1967), que considera que o Judiciário apenas pode manter as regras da democracia em funcionamento, mas não pode decidir sobre importantes questões de moralidade política, que devem ser decididas sempre por deliberação por parte do Legislativo, o único legitimado para tomar tais decisões. É bem verdade, temos de admitir, que tais autores afirmam, geralmente, que existem direitos que devem ser garantidos pela jurisdição constitucional, como os direitos das minorais e direitos de participação política.

É a velha disputa entre constitucionalismo e democracia (HOLMES, 1988), e o autor acolhe uma teoria que parte da concepção interpretativa de que tais valores conflitam e nega qualquer importância às decisões da jurisdição constitucional re-levantes para a comunidade. Portanto, para refutar a premissa majoritária, devemos considerar que existem teorias importantes sobre democracia que rejeitam a pre-missa majoritária como a essência da democracia. Como exemplo de tal teoria, es-truturada por Ronald Dworkin (1990), o resultado das decisões de uma maioria não

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é uma meta, nem definição do que seria a democracia, pois o objetivo democrático é diferente, qual seja: a de que as decisões coletivas sejam tomadas por instituições políticas cuja estrutura, composição e modo de operação dediquem a todos os mem-bros da comunidade, enquanto indivíduos, a mesma consideração e respeito.

Para que alcance tais objetivos, não se pode negar que precisamos de instituições que identificamos na concepção da democracia calcada na premissa majoritária, ou seja, precisamos que algumas importantes decisões sejam tomadas por representan-tes políticos por meio de eleições periódicas, mas que tais instituições sejam tidas como democráticas por conta do respeito ao princípio da igualdade entre os cidadãos, não por conta de um compromisso com as metas da soberania da maioria.

O exposto no parágrafo anterior não se caracteriza como objeção para que pro-cedimentos não-majoritários atuem em ocasiões especiais nas quais tais procedi-mentos podem, em verdade, proteger ou promover a igualdade, considerada como a essência da democracia. A atuação dos órgãos anti-majoritários (como, por exemplo, o Judiciário) não se configura como causa para um arrependimento moral posterior (como no caso das decisões judiciais substantivas que servem como alerta para que o Legislativo “acorde” para exercer suas “verdadeiras” funções).

Portanto, democracia é o governo do povo guiado por condições, as condições democráticas. As decisões democráticas são observadas quando as instituições polí-ticas (inclusive a jurisdição constitucional) atingem tais condições; seu pressuposto é confirmado por essa razão, mas, quando não atendem, não se pode afirmar que são antidemocráticos os meios procedimentais que garantam e respeitem tais condições.

Tendo em vista que o artigo não visa discutir sobre teorias da democracia, mas apenas demonstrar que, talvez, a interpretação de democracia do autor não seja a que melhor reflita nossos princípios constitucionais, maiores aprofundamentos sobre a teoria comunal de democracia são inviáveis. No entanto, temos de concluir que, de acordo com a concepção acima, a democracia não é contrária ao constitu-cionalismo, mas o reforça, uma vez que a interpretação de seus fundamentos não são antitéticos, mas complementares. Democracia, nesse sentido, não está ligada, somente, à deliberação legislativa, mas ao atendimento de determinadas condições específicas, que garantam decisões importantes que independem de onde tenham partido para que sejam consideradas como democráticas. A jurisdição constitucio-nal, nesse caso, funcionaria como uma instituição política importante na concreção de Direitos Fundamentais e de decisões que reforçam a democracia e não a violam de um ponto de vista moral.

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Portanto, ainda que as descrições teóricas por nós expostas sejam breves e pou-co desenvolvidas, acreditamos que se trata de uma concepção mais interessante a se considerar acerca de nossa democracia. Por conseguinte, a concepção de demo-cracia do autor não espelha a melhor interpretação do princípio democrático brasi-leiro, especialmente quando Direitos Fundamentais estiverem em jogo, uma vez que demonstra que o STF usurpa poderes quando decide sobre eles e retira legitimida-de democrática às decisões da jurisdição constitucional, porque os juízes não são eleitos. Mas a concepção do autor não consegue justificar por que não colocamos em dúvida a legitimidade democrática do Ministro da Fazenda de tomar decisões que podem arruinar nossa economia, se reduzirmos a questão a decisões políticas de agentes que apenas são considerados legítimos pelo voto. E o efeito vinculante não seria importante para o processo democrático por “cristalizar” decisões políti-cas ilegítimas do Judiciário, mas porque os princípios constitucionais precisam de harmonização, desde que interpretados da melhor maneira, e não se pode legitimar uma interpretação judicial dos demais órgãos judiciais que tenha como premissa a ideia de que a jurisdição constitucional viole tais princípios.

4 Conclusão

Podemos afirmar, com conforto, que o efeito vinculante foi criado em nosso país para diminuir o número de demandas repetitivas e o tempo de julgamento dos processos em todas as instâncias e órgãos do Poder Judiciário. Podemos afirmar, também, que, para Celso de Albuquerque Silva (2005), os precedentes dotados de eficácia vinculante constitucional serviriam para tornar a tarefa do intérprete mais “simples”, como se toda decisão datada do referido efeito pré-normatizasse o senti-do do texto, oferecendo critérios absolutos de aplicação aos casos futuros (STRECK, 2009, p. 204), pois, segundo o autor, tratar-se-ia de uma decisão que se apresenta de forma “clara”, sem que fosse preciso, após a decisão do STF, depreendermos maio-res esforços interpretativos para estabelecer o que foi decidido no precedente.

A carga vinculante de um precedente não é medida ou atestada pela simplici-dade e/ou precisão de seus textos, como se a linguagem com que fossem formula-dos pudesse “controlar” sua interpretação. Textos geram normas, que geram novos textos. Mas estes últimos novos textos não são apenas significantes pré-produzidos. Não fosse assim, a simples incorporação ao sistema jurídico da figura do efeito vin-culante constitucional resolveria o problema da multiplicação das demandas e da falta de coerência nas decisões. Os precedentes vinculantes são considerados, de

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acordo com Celso Silva, como prêt-à-porters que emulam a força de lei e, ao serem assim considerados, tais pequenos significantes transformam-se em regras, escon-dendo e impedindo o aparecimento do princípio que subjaz em cada regra, como se pudessem ser “aplicados” por mera subsunção18 (STRECK, 2009, p. 326-329).

Portanto, o efeito vinculante não é um instituto capaz de impedir a interpre-tação da decisão do STF, ou seja, não garante a igualdade porque constrange a interpretação do Judiciário em uma direção, porque a interpretação da sentença constitucional dependerá do caso a ser decidido e da melhor forma de interpretar a Constituição. No mesmo sentido, o efeito vinculante não tem o condão de tornar a decisão do STF mais “clara” para os demais intérpretes, garantindo a legalidade no direito, pois acarreta a previsibilidade das consequências normativas, uma vez que a linguagem moral dos Direitos Fundamentais impõe decisões políticas sobre a melhor interpretação que se pode fazer deles, em decisões políticas frutos de um constante reinterpretar. O efeito vinculante não é corolário de uma democra-cia procedimental, que se fundamenta na apatia judicial para com a interpretação dos Direitos Fundamentais, pois seriam temas mais afetos a arenas deliberativas.

18 Corroborando a conclusão sobre as problemáticas teses do autor (SILVA, 2005, p. 194-214), o mes-mo prefere o que chama de modelo normativo de vinculação de cunho confessadamente formalista, que parte do pressuposto de uma ratio identificável por meio de regras gerais vinculantes deter-minadas, operando da mesma forma que uma norma legislada, e, como tal, deverá possuir uma formulação canônica. As justificativas que aponta são as seguintes: o sistema romano-germânico funciona como um antídoto para a incerteza do direito, na medida em que as regras que os juízes formulam nas decisões judiciais se apresentam explicitamente. O autor, mesmo identificando a holding como um princípio, sustenta que o método abstrato-normativo postula que a interpretação dos precedentes possui semelhanças com a adjudicação de um texto legal, especialmente quando a corte estatui o precedente de forma canônica. Concluindo que os tribunais buscam, na resolução de um caso, formular uma regra geral e abstrata que leva à aplicação de outros casos mais abstratos. Na conceituação do autor se apresentam alguns problemas: ao não explicar o que seriam regras e princípios, o autor acaba por dificultar a crítica ao seu modelo, pois este aparenta uma identidade entre princípios e regras, deixando a impressão de que suas interpretações seriam idênticas. Em seguida, afirma que os tribunais sempre julgam de forma explícita e de maneira quase legislati-va, formulando textos normativos canônicos, como são formuladas as leis. Mesmo que, em função da argumentação, aceitássemos tal premissa, como o autor poderia explicar as diferentes leituras que os tribunais fazem dos precedentes e, o mais importante, como poderia explicar a divergência interpretativa entre os próprios ministros que formularam o mesmo precedente? Continuando nas premissas do autor, onde se encontraria tal regra canônica? Se a resposta for nas ementas, o autor incorrerá no erro de considerar um meio institucional de catalogação e identificação de decisões com os votos dos ministros, como se elas pudessem se autonomizar frente ao caso que devem inde-xar. Caso a resposta seja na fundamentação, sua tese de nada serve, pois não dispensa uma maior atenção sobre como tais fundamentações são formulados pelo tribunal, pois não existe nada de canônico e “claro” nas sentenças constitucionais.

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Isso porque, não se trata da melhor interpretação que podemos oferecer para o funcionamento de nossa democracia, em que as decisões do STF são importantes para a garantia dos direitos e cujo sistema de controle de constitucionalidade está bastante consolidado, com a exigência, justamente, do efeito vinculante.

Por fim, ainda que a premissa do autor deva ser digna de encômios, pois foge da vala comum da doutrina pátria em tentar justificar o efeito vinculante de manei-ra semântica, com conceituações vazias e frágeis, não podemos deixar de divergir sobre a interpretação que o autor atribui aos princípios da igualdade, legalidade e democracia, utilizados para justificá-lo.

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8 Antinomias jurídicas e

previsões legais esparsas:

um enfoque às competências da CTNBio

PATRÍCIA PRÉCOMA PELLANDA

Mestranda em Direito Ambiental (UEA). Bacharel em Direito (PUC/PR).

Bolsista da Capes. Advogada.

Artigo recebido em 17/01/2011 e aprovado em 04/01/2013.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 A incerteza científica dos transgênicos e a importância da análise dos seus riscos 3 Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio 4 Antinomia jurídica e as competências da CTNBio 5 Conclusão 6. Referências.

RESUMO: O artigo tem por base a análise da legislação brasileira sobre biossegu-rança e biotecnologia, a partir de uma abordagem sintética de suas alterações e das previsões legais atualmente em vigor. A pesquisa tem início com a definição de transgênicos e com a citação de afirmações científicas e críticas acerca dos efeitos causados pela produção e pelo consumo desses organismos, com o objetivo de de-monstrar a característica de incerteza científica dessa tecnologia. Na sequência, faz--se a análise da legislação brasileira sobre as competências da CTNBio, verificando--se que tais competências devem ser observadas em leis esparsas e não somente na atual Lei de Biossegurança. Ao final, a pesquisa é concluída com a análise de duas antinomias jurídicas encontradas nas normas que regem a competência dessa Co-missão. Por se tratarem de antinomias aparentes, verificar-se-á a solução mais ade-quada por meio da aplicação da Teoria de Bobbio e da Teoria do Diálogo das Fontes.

PALAVRAS-CHAVE: Transgênicos Lei de Biossegurança Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) Antinomia jurídica Teoria do Diálogo das Fontes.

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Antinomias jurídicas e previsões legais esparsas

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Contradiction of laws and sparse legal provision: an approach to the competencies

of CTNBio

CONTENTS: 1 Introduction 2 The transgenic scientific uncertainty and the importance of the risk analysis of Genetic Modification – GM 3 National Technical Commission on Biosafety 4 Contradiction of laws and the competencies of CTNBio 5 Conclusion 6 References.

ABSTRACT: This article approaches the Brazilian legal provisions on biosafety and biotechnology currently in force and its changes. With the aim of demonstrating the scientific uncertainty characteristic of biotechnology, the essay begins with the definition of transgenics and the citation of scientific claims and criticisms about the effects caused by the production and consumption of these organisms. Further, this article analyzes CTNBio competencies and concludes that such competencies should be observed in sparse legal provisions and not only in the current Biosafety Law. To conclude, the essay analyzes two contradictions of laws governing the com-petencies of this Commission. As they are apparent antinomies, the Theory of Bobbio and the Theory of Dialogue of Sources will be applied to solve this case.

KEYWORDS: Transgenics Biosafety Law National Technical Commission on Bio-safety (CTNBio) Contradiction of laws Theory of Dialogue of Sources.

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Antinomias jurídicas y disposiciones legales dispersas: un enfoque en los poderes

de la CTNBio

CONTENIDO: 1 Introducción 2 La incertidumbre científica de transgénicos y la importancia de analizar sus riesgos 3 Comisión Técnica Nacional de Bioseguridad - CTNBio 4 Antinomia jurídica y los poderes de la CTNBio 5 Conclusión 6 Referencias.

RESUMEN: El artículo se basa en el análisis de la legislación brasileña sobre biose-guridad y labiotecnología, desde un enfoque sintético de sus modificaciones y dispo-siciones legales vigentes. El artículo comienza con la definición de los transgénicos y la citación de las afirmaciones científicas y críticas acerca de los efectos causados por la producción y el consumo de estos organismos, con el objetivo de demonstrar la característica de incertidumbre científica de la tecnología. Además, se hace el análisis de la legislación brasileña sobre los poderes de la CTNBio, verificando que estos poderes deben ser observados en las leyes dispersas y no sólo en la actual Ley de Bioseguridad. Por último, se llega al final con el análisis de dos antinomias jurídicas que se encuentran en normas que regulan los poderes de esta Comisión. Puesto que son antinomias aparentes, la solución más adecuada se verifica con la aplicación de la Teoría de Bobbio y laTeoría del Diálogo de las Fuentes.

PALABRAS CLAVE: Transgénicos Ley de Bioseguridad Comisión Técnica Nacional de Bioseguridad (CTNBio) Antinomia jurídica Teoria del Diálogo de las Fuentes.

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Antinomias jurídicas e previsões legais esparsas

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1 Introdução

Os organismos geneticamente modificados (OGMs), também conhecidos por transgênicos, podem beneficiar diversos setores, como a medicina, a in-

dústria e a agricultura, por meio da alteração genética de plantas, animais e micror-ganismos, a fim de que apresentem características que não poderiam ser obtidas de forma natural. No entanto, esses aparentes benefícios vêm acompanhados de prejuí-zos ao meio ambiente e à saúde humana, como a aplicação excessiva de agrotóxicos em plantas geneticamente resistentes, contaminando águas, solos e a própria saúde de agricultores, além da exposição humana a alergias, através do consumo de ali-mentos compostos por genes desconhecidos.

No Brasil, a legislação vigente sobre o tema é a Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, também chamada de Lei de Biossegurança e Biotecnologia, a qual impõe limitações e determina o procedimento para liberação e controle das atividades e projetos que envolvam transgênicos e seus derivados. Além disso, a legislação dis-ciplina as atuais normas e competências inerentes à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) - instância colegiada multidisciplinar responsável pela aná-lise científica dos pedidos e pela respectiva autorização das atividades e projetos, tanto para pesquisa, quanto para uso comercial de transgênicos e derivados.

A presente pesquisa tem início com o conceito e a exposição de algumas afirma-ções científicas e críticas que demonstram as controvérsias acerca dos reais efeitos, diretos e indiretos, provocados pela produção e consumo humano de transgênicos e seus derivados. Esse panorama apenas confirma a característica de incerteza científica dos OGMs e da importância da avaliação de seus riscos para o meio ambiente e para a saúde humana em longo prazo, no intuito de resguardar os direitos constitucionais à sadia qualidade de vida e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, delineados pelo art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Na sequência, em análise das atuais previsões legislativas no que tange às com-petências da CTNBio verificar-se-á que, para esgotá-las, é necessária a análise de leis esparsas e não somente da Lei de Biossegurança. Ao final, serão apresentadas hipóteses de antinomias jurídicas na Lei de Biossegurança, destacando qual a sua melhor solução, de forma a fundamentá-las a partir da exposição prévia acerca das incongruências que envolvem o tema e do seu caráter de incerteza científica, a fim de garantir a segurança jurídica de toda a coletividade, bem como a integridade da própria CTNBio.

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2 A incerteza científica dos transgênicos e a importância da análise dos seus riscos

A partir do desenvolvimento da biotecnologia moderna surgem os transgêni-cos, com a finalidade de alterar geneticamente plantas, animais ou microrganismos, atribuindo-lhes novas características, a partir da aplicação da tecnologia do DNA recombinante. Os transgênicos trouxeram benefícios em diversas áreas, sendo que as mais beneficiadas foram as da saúde e da medicina, através da manipulação genética na produção de proteínas de alto valor econômico, como a insulina e o hormônio do crescimento (MACHADO, 2006, p. 966) e, ainda, o desenvolvimento de transgênicos para a obtenção de medicamentos.

A tecnologia do DNA recombinante possibilita a separação de um único gene, isto é, de uma sequência de DNA que codifica a formação de um determinado produ-to, do total de genes de um organismo. Esse gene, responsável por uma característi-ca de interesse, pode então ser modificado e novamente colocado no mesmo orga-nismo ou ser transferido para outro, da mesma espécie ou de uma espécie diferente daquele que a originou (RODRIGUES; ARANTES, 2004, p. 24). Em outras palavras, a tecnologia do DNA recombinante pode ser definida como o “resultado da ligação, em laboratório, de fragmentos de DNA oriundos de diferentes vetores, células, organis-mos, espécies, etc.” (BORÉM; VIEIRA, 2005, p. 62).

Em contrapartida, observa-se a ocorrência de inúmeras discussões, polêmicas e controvérsias, pois mesmo com afirmações quanto aos benefícios trazidos por essa tecnologia, a sociedade científica ainda diverge acerca dos exatos malefícios que podem ser causados ao homem e ao meio ambiente, em longo prazo, principalmen-te com a produção e consumo de plantas geneticamente modificadas e demais pro-dutos alimentares fabricados a partir desses organismos ou compostos por esses.

Atualmente, a área mais influenciada pelos transgênicos é a agricultura e, con-sequentemente, o ramo do agronegócio, devido ao grande número de variedades de plantas geneticamente modificadas que já foram aprovadas pela CTNBio e que estão disponíveis no mercado, sendo, portanto, o principal foco de análise desta pesquisa. As principais plantas transgênicas destinadas ao consumo humano hoje são a soja e o milho, cujas plantações se encontram em crescente expansão no país, devido a estimulação da monocultura e do crescimento econômico do agronegócio voltado a essa tecnologia.

Uma das principais obras que denuncia o sistema desenvolvido pelo mercado capitalista para a expansão do agronegócio baseado na produção de transgênicos no mundo é o livro O mundo segundo a Monsanto, da francesa Marie-Monique Robin.

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A autora regressa às origens da empresa norte-americana Monsanto, a partir da análise de suas tecnologias e dos planos de inserção de seus produtos no mercado, ainda que malefícios causados à saúde humana e ao meio ambiente já fossem de conhecimento dos próprios empresários, tendo início com a dioxina, passando pelo agente laranja e, hoje, com os transgênicos (ROBIN, 2008, p. 21-340).

Afirma-se que um benefício para a saúde humana seria a possibilidade de redu-ção do uso de agrotóxicos, através da produção de plantas resistentes aos herbici-das, pesticidas e pragas. Contudo, o argumento de redução na utilização de pestici-das foi válido somente durante os três primeiros anos que se seguiram ao início da cultura dos OGMs, ou seja, variedades transgênicas reduziram o uso de pesticidas somente entre os anos de 1996 e 1998, sendo que depois o uso de pesticidas teve um aumento de 20% em 2007 e 27% em 2008 (BENBROOK, 2009, p. 3).

Além disso, acredita-se na redução do custo da produção para os agricultores e do preço do produto final para os consumidores. Todavia, esse abatimento dos cus-tos foi contestado logo no ano de 2005 no Brasil, quando a multinacional Monsanto estabeleceu a cobrança do valor de R$ 0,88 (oitenta e oito centavos) por quilo do produtor que plantasse a soja RR1, ou seja, um custo adicional de aproximadamente R$ 56,00 (cinquenta e seis reais) por hectare (STEIW, 2005). Nota-se, portanto, que há um grande interesse econômico gerado por esses produtos, pois além de terem uma produção acelerada, sua tecnologia pode ser objeto de patente, garantindo altíssimos lucros às empresas que possuem a propriedade da semente transgênica. Dessa forma, o produtor deve pagar pelo seu uso, não lhe sendo permitido reservar parte daquela produção para reutilizá-la em forma de semente na próxima safra.

A legislação brasileira sobre patentes, Lei n° 9.279, de 14 de maio de 1996, possibilita o patenteamento de microrganismos geneticamente modificados, ao es-tabelecer que:

Art. 18. Não são patenteáveis: [...]III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgêni-cos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade – novidade, ativi-dade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8o e que não sejam mera descoberta.

1 A soja RR (soja Roundup Ready) é um tipo de semente de soja que foi desenvolvida pela Monsanto na década de 80, possui uma característica que a torna tolerante a herbicida à base de glifosato, usado para dessecação pré e pós-plantio, conhecido por sua eficiência em eliminar qualquer tipo de planta daninha.

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Parágrafo único. Para os fins desta Lei, microorganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expres-sem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais. (BRASIL, 1996)

Nesse sentido, em entrevista realizada por Robert Schuman para o Cropchoice News, em 6 de abril de 2001, o agricultor do Mississipi (EUA), Mitchell Scruggs, que sempre assumiu ter conservado suas sementes de soja RR e de algodão Bt, afirmou que guardar as sementes de soja visando sua reutilização na próxima safra se trata de um direito inalienável que ele defende por princípio. Segundo ele, no ano de 2000, cultivou 5.200 hectares de soja, dos quais 75% eram transgênicos, no entan-to, para semear um campo de um acre (0,4 hectare) com a soja RR teve que pagar US$ 24,50 por cada saca, contra US$ 7,50 pela saca da soja convencional (ROBIN, 2008, p. 226).

Já para Doug Parr, cientista-chefe da organização não-governamental Greenpeace, nada deveria sair do controle da mãe-natureza. Segundo o cientista há alternativas naturais viáveis, como ficou provado no Quênia, onde a broca de milho foi eliminada de muitas plantações com a introdução de um capim que, plantado entre os pés do milho, repele o inseto e, ao final da colheita, ainda serve como alimento para os animais (MORAIS, 2000).

O assunto se torna ainda mais polêmico, quando pessoas como Ulisses Capozzoli (2003) afirmam que, com a produção agrícola acelerada através de plantas geneti-camente modificadas, seria possível amenizar a fome mundial, principalmente nos países subdesenvolvidos. Porém, essa afirmação é um tanto equivocada, uma vez que a fome mundial ocorre não pela falta de alimentos, mas sim pela má distribui-ção das riquezas e desigualdades sociais. Esse desequilíbrio foi destacado, inclusive, pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2005).

Alguns pesquisadores argumentam a possibilidade das novas proteínas trans-gênicas atuarem como alergênicos ou toxinas na saúde humana, alterando o me-tabolismo das plantas ou dos animais e a composição nutricional dos alimentos, como ocorreu no ano 2000, quando, nos EUA e em outros países, foram identificados produtos alimentícios derivados de milho Bt (transgênico) liberados somente para o consumo animal, devido ao seu potencial alergênico. Um Comitê Científico (SAP) atuando como parte do Federal Insecticide analisou 34 casos, concluindo que entre 7 e 14 pessoas provavelmente manifestaram reações alérgicas a alimentos contendo variedade de milho Bt StarLink (NODARI; GUERRA, 2003).

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Finalmente, questiona-se a possibilidade de plantas geneticamente modificadas contaminarem plantações convencionais. A contaminação de sementes e de lavouras não transgênicas pode ocorrer de diferentes formas: a) por vias biológicas: pólen e dispersão de sementes; b) por vias físicas: mistura de sementes em máquinas, cami-nhões, vagões e troca de sementes entre agricultores; c) por meio do mercado: dificul-dades e falhas de identificação e segregação de cargas (FERMENT et al, 2009, p. 14).

A preocupação com a ocorrência da chamada polinização cruzada - polinização de plantações circunvizinhas por meio de eventos naturais, como a ação do vento e insetos -, inicialmente, demonstrava-se relevante tão somente no caso do milho trans-gênico, principal exemplo de planta alógama. No entanto, já há evidências de que a soja transgênica também pode polinizar plantações convencionais a certas distâncias, assim como contaminar lagos e rios por meio da chuva e do vento, nos termos abaixo:

Los productos agroecológicos de las fincas que están cerca de otras que culti-van variedades transgénicas de especies de fecundación cruzada, pueden ser contaminados. Incluso en la soya, una planta de autofecundación, está científi-camente demostrado que ha habido cruzamientos entre plantas de una varie-dad trangénica com una variedad convencional ubicadas a una distancias de hasta 8 metros entre sí (Abud et al., 2001). Las aguas también pueden ser con-taminadas con las toxinas o otras proteínas y construcciones genéticas, puesto que la lluvia y el viento cargan polen y restos de cultivos para lagos y ríos.2 (NODARI; GUERRA, 2004, p. 117)

Afirmações controvertidas como as mencionadas acima confirmam a incerteza científica que atividades de pesquisa e de uso comercial de plantas transgênicas representam. Apesar disso, essa tecnologia continua em expansão. Nesse ínterim, afirma-se que “a falta de clareza que envolve essas questões revela que estão em jogo valores, interesses e modos de vida fundamentalmente opostos” (LACEY, 2006, p. 31), isto é, de um lado estão as grandes empresas produtoras de transgênicos que visam a sua expansão e crescimento econômico, e do outro o meio ambiente e a saúde humana, que sofrem os reflexos negativos e são as vítimas diretas dos riscos dessa produção.

2 “Os produtos agroecológicos que estão perto de outras fazendas com variedades transgênicas de fe-cundação cruzada, podem vir a ser contaminados. Inclusive a soja, uma planta de autofecundação, está cientificamente comprovado ter havido cruzamentos entre plantas de uma variedade transgênica com uma variedade convencional, localizadas, entre si, a uma distância de 8 metros (Abud et. al., 2001). A água também pode estar contaminada com toxinas ou outras proteínas e construções genéticas, uma vez que a chuva e o vento carregam o pólen e restos de cultivo para lagos e rios” (tradução nossa).

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Por todo o exposto, verifica-se a importância da análise da avaliação dos riscos e dos efeitos gerados pelos transgênicos e seus derivados, no intuito de resguardar os direitos à sadia qualidade de vida e ao meio ambiente ecologicamente equilibra-do para as presentes e futuras gerações, previstos no art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. As pesquisas e análises minuciosas e em longo prazo, acerca dos efeitos desses organismos e seus derivados, deveriam ser prioritárias à liberação e comercialização dessa tecnologia.

3 Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CNTBio

A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) foi criada pela Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e, inicialmente, regulamentada pelo Decreto no 1.752, de 20 de dezembro de 1995, sendo órgão vinculado à Secretaria Executiva do Ministério da Ciência e Tecnologia. Em seguida, a Medida Provisória n° 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, trouxe algumas alterações em sua estrutura, competên-cias e atribuições.

Instaurada em junho de 1996, a CTNBio teve seu primeiro Regimento Interno estabelecido pela Resolução n° 3, de 30 de outubro de 1996. Após essa normati-zação, foram deferidos cerca de oitocentos pedidos de liberação de OGMs no meio ambiente, entre os anos de 1997 e 1999, a exemplo da soja Roundup Ready da mul-tinacional Monsanto, objeto do primeiro pedido para cultivo em escala comercial de transgênicos no país, e do arroz transgênico resistente ao herbicida Liberty Link, comercializado pela empresa AgrEvo, liberado para teste em campo (MENASCHE, 2000).

As liberações comerciais e para teste são exemplos de decisões que refletem questões incongruentes no âmbito científico e jurídico, conforme o exposto acima, pois mantém reflexo direto sobre a saúde humana e o meio ambiente. No entanto, na década de 90, em apenas dois anos, centenas de pedidos de liberação de trans-gênicos foram deferidos pela Comissão de forma precipitada e imprudente. Conse-quentemente, as decisões da CTNBio passaram a ser alvo de polêmicas e discussões, surgindo inclusive questionamentos acerca dos limites e excessos de competência atribuídos ao órgão.

As críticas à atuação da CTNBio foram, ao longo dos anos, tornando-se mais convincentes e fundamentadas, englobando diferentes questões relacionadas à Co-missão. Além disso, as discussões travadas no Poder Judiciário, em razão da legis-

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lação e das decisões da CTNBio, contribuíram para que a legislação de 1995 fosse revogada (exceto o Decreto no 1.752, de 20 de dezembro de 1995).

As atuais normas que determinam a estrutura, competência e demais disposições sobre a CTNBio, portanto, estão previstas na Lei n° 11.105, de 24 de março de 2005, (Lei de Biossegurança e Biotecnologia) em seu Decreto regulamentador no 5.591, de 22 de novembro de 2005. Essa lei, porém, deve ser observada juntamente com nor-mas esparsas que compõem o ordenamento jurídico brasileiro e que estabelecem normas referentes ao órgão colegiado responsável pela autorização de atividades que envolvam pesquisa e uso comercial de transgênicos e seus derivados no país.

De acordo com a Lei de Biossegurança (art. 10), a CTNBio, integrante do Ministé-rio da Ciência e Tecnologia, é instância colegiada multidisciplinar de caráter consul-tivo e deliberativo. Tem por objetivo prestar apoio técnico e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança (PNB) de OGMs e seus derivados, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e de pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvam pesquisa e uso comercial de OGMs e seus derivados, com base na avaliação de seu risco zoofitossanitário, à saúde humana e ao meio ambiente (BRASIL, 2005).

Devido às alterações legislativas de 2005, os membros da CTNBio, em Reunião Ordinária realizada em 15 de fevereiro de 2006, com o objetivo de revisar o Regi-mento Interno da Comissão (criado em 1996), definiram novas normas de organi-zação e funcionamento, aprovadas pela Portaria n° 146, de 6 de março de 2006, alterada pela Portaria no 979, de 26 de novembro de 2010, e pela Portaria no 373, de 1o de junho de 2011.

As polêmicas e interesses submersos, que caminharam com as mudanças legis-lativas acerca das competências e normas estruturais da CTNBio, resultaram num conjunto de legislações esparsas, conforme já mencionado. Sendo assim, apesar da Lei de Biossegurança ser a principal lei que regulamenta as competências e atribui-ções da CTNBio, ela não deve ser observada sozinha. Além do Regimento Interno3 e das Resoluções e Instruções Normativas que podem ser definidas pela própria CTNBio, o Decreto no 5.886, de 6 de setembro de 2006, que insere a CTNBio como órgão colegiado da estrutura organizacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (art. 2o, inciso V, alínea c - BRASIL, 2006), estabelece a observância das competências

3 Portaria no 146, de 6 de março de 2006, alterada pela Portaria no 979, de 26 de novembro de 2010 e pela Portaria no 373, de 1o de junho de 2011.

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estabelecidas no Decreto no 1.752, de 20 de dezembro de 1995 (art. 36 – BRASIL, 1995). Diante disso, as atuais competências e atribuições da CTNBio não são deter-minadas apenas pela Lei no 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biossegurança), mas pela união de todas as normas supramencionadas.

É importante destacar que as normas criadas pela CTNBio devem ser atendidas por todas as entidades que lidam com organismos geneticamente modificados, pe-los Ministérios envolvidos e pelas autoridades nacionais. A natureza jurídica dessas normas é de instrução normativa que, como tal, está abaixo da Constituição Federal, das leis nacionais, dos decretos e de resoluções do Conselho Nacional do Meio Am-biente (CONAMA), como toda norma dessa natureza (VARELLA, 2005, p. 22).

Apesar de normas esparsas e de alterações legislativas, é incontroverso que, atualmente, a realização de atividades de pesquisa e o uso comercial envolvendo transgênicos e seus derivados dependam de requerimento pelos interessados e de seu respectivo deferimento e autorização pela CTNBio. De acordo com a atual le-gislação brasileira cabe à CTNBio controlar e limitar as atividades de pesquisa e de uso comercial que envolvam OGMs e derivados, objetivando a proteção do meio ambiente e da saúde humana. Diante disso, deve atuar em benefício dos interesses públicos e na defesa de direitos difusos e coletivos.

Ressalta-se que o interesse público se constitui no interesse do todo, isto é, do próprio conjunto social, não se confundindo com a somatória dos interesses individu-ais, peculiares de cada qual (MELLO, 2009, p. 59). Sendo assim, os membros da Comis-são devem atuar manifestando neutralidade na tomada de decisões, no intuito de não deliberar por razões eminentemente econômicas, de caráter individual ou particular.

Há mais de seis anos da publicação da nova legislação de biossegurança, ainda é possível afirmar que a liberação de transgênicos no Brasil vem ocorrendo de forma acelerada, resultando no aumento do número de culturas transgênicas cultivadas e comercializadas no país, principalmente de grãos de larga escala comercial, como é o caso da soja, do milho e do algodão transgênicos.

Esse fenômeno, entretanto, pode gerar consequências desastrosas, causando im-pactos em diferentes aspectos, como na economia, no meio ambiente, nas culturas e nas tradições, bem como na biodiversidade. Diante de todas essas razões, segue-se à análise crítica da legislação brasileira vigente acerca das competências conferidas à CTNBio, destacando-se as hipóteses de antinomia jurídica e sua adequada solução.

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4 Antinomia jurídica e as competências da CTNBio

De acordo com o explicitado acima, as competências da CTNBio não devem ser observadas tão somente na Lei de Biossegurança, pois as competências da Comissão também são encontradas em normas esparsas. Assim, para a análise ora pretendida, destaca-se a previsão legislativa do art. 14, da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, (composto por 23 incisos) e do art. 2o do Decreto no 1.752, de 20 de dezembro de 1995 (composto por 18 incisos). Do rol trazido por esses dispositivos, algumas competências devem ser ressaltadas, as quais resultam em um conflito legislativo, conforme se segue.

Dentre as competências delineadas pela norma de 1995 – ainda em vigor, con-forme determina o Decreto no 5.886, de 6 de setembro de 2006 – estão as compe-tências em destaque:

a) Emitir parecer técnico prévio conclusivo sobre qualquer liberação de OGM no meio ambiente, encaminhando-o ao órgão competente (art. 2o, inciso X – BRASIL, 1995);

b) Emitir parecer técnico prévio conclusivo sobre registro, uso, transporte, ar-mazenamento, comercialização, consumo, liberação e descarte de produto contendo OGM ou derivados, encaminhando-o ao órgão de fiscalização com-petente (art. 2o, inciso XII – BRASIL, 1995).

Em complemento às aptidões destacadas acima, a Lei no 11.105, de 24 de mar-ço de 2005, estabeleceu normas acerca da análise da avaliação de risco e decisão técnica de biossegurança, definindo como competência da CTNBio:

a) Proceder à análise da avaliação de risco, caso a caso, relativamente a ati-vidades e projetos que envolvam OGM e seus derivados (art. 14, inciso IV – BRASIL, 2005);

b) Emitir decisão técnica, caso a caso, sobre a biossegurança de OGM e seus derivados no âmbito das atividades de pesquisa e de uso comercial de OGM e seus derivados, inclusive a classificação quanto ao grau de risco e nível de biossegurança, bem como medidas de segurança e restrições de uso (art. 14, inciso XII – BRASIL, 2005).

Observe-se que a legislação de 1995 (Decreto no 1.752, de 20 de dezembro de 1995), ao utilizar o termo qualquer, não faz distinção de tratamento entre os organis-mos geneticamente modificados e seus derivados, devendo a CTNBio emitir parecer técnico em qualquer caso de liberação de OGM no meio ambiente e, ainda, quando envolver atividades com produtos contendo OGM, sendo estes derivados ou não.

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No mesmo sentido, a lei de 2005 (Lei no 11.105, de 24 de março de 2005), prevê a análise de riscos e a decisão técnica pela CTNBio sobre a biossegurança de OGMs e derivados. Nesse caso, o legislador determinou que a análise e a decisão técnica fossem cumpridas caso a caso, sem estabelecer distinção de tratamento entre trans-gênicos e derivados, mas determinando de forma expressa que esse procedimento deve ser aplicado em ambos os casos. Dessa forma, verifica-se que a intenção do legislador é realizar a análise da avaliação dos riscos e decisões técnicas em todos os casos, isto é, em todas as atividades de pesquisa e uso comercial envolvendo transgênicos e derivados, sem qualquer distinção.

Em visível contradição, a Lei de Biossegurança de 2005 também prevê que “não se submeterá a análise e emissão de parecer técnico da CTNBio o derivado cujo OGM já tenha sido por ela aprovado” (art. 14, §5o - BRASIL, 2005). Há, portanto, a incompa-tibilidade deste dispositivo com aqueles mencionados acima, pois, ao mesmo tempo em que determina que à CTNBio compete proceder a análise dos riscos e decisões técnicas sobre a liberação de todas as atividades e projetos que envolvem organismos geneticamente modificados e seus derivados, também determina a desnecessária de-liberação da Comissão quanto aos derivados de transgênicos já aprovados.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já proferiu decisões em que é possível ve-rificar a interpretação do termo caso a caso adotada pelos tribunais nacionais supe-riores. Ainda que envolvam temas distintos, o sentido empregado ao termo pode ser aplicado, por analogia, ao caso ora analisado, uma vez que o referido termo caso a caso é utilizado de maneira expressa na Lei de Biossegurança. Seguem as decisões:

Agravo regimental no agravo de instrumento. Processual civil. Administrati-vo. Técnico de farmácia. Responsável por drogaria. Interesse público. Súmula 7 do STJ. Súmula 120 do STJ. [...] 4. A Súmula no 120, desta Corte Superior estabelece: ‹O oficial de farmácia, inscrito no Conselho Regional de Farmá-cia, pode ser responsável técnico por drogaria›. 5. Consectariamente, não há que se estabelecer requisitos quanto à responsabilidade do oficial de far-mácia, nem é prerrogativa da Administração analisar caso a caso para decidir se concede ou não a licença sanitária. A jurisprudência sumulada há que ser respeitada. 6. Agravo regimental desprovido. (BRASIL, 2009, grifo nosso)

Penal. Recurso especial. Art. 12, caput, da lei no 6.368/76 (antiga lei de tóxicos). Crime equiparado a hediondo. § 1o do art. 2o da lei no 8.072/90. Redação modificada pela lei no 11.464/07. Regime inicial fechado. Aplica-ção do art. 33, § 4o, da lei no 11.343/2006. Vedação à combinação de leis. Minorante (texto legal vinculado). Princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 5o, inciso XL da CF/88) que impõe o exame, no caso con-creto, de qual regra legal, em sua integralidade, é mais favorável ao recorri-

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do. [...] VI - Em homenagem ao princípio da extra-atividade (retroatividade ou ultra-atividade) da lei penal mais benéfica deve-se, caso a caso, verificar qual a situação mais vantajosa ao condenado: se a aplicação das penas in-sertas na antiga lei - em que a pena mínima é mais baixa - ou a aplicação da nova lei na qual há a possibilidade de incidência da causa de diminuição, recaindo sobre quantum mais elevado. Contudo, jamais a combinação dos textos que levaria a uma regra inédita.[...] Recurso parcialmente provido para afastar a aplicação conjugada das Leis no 6.368/2006 e 11.343/2007. (BRASIL, 2009, grifo nosso)

No primeiro caso, há uma forma negativa de interpretação, em que não se deve fazer a análise caso a caso. A Administração Pública deve apenas verificar o cumpri-mento do requisito estabelecido pela Súmula 120 (STJ), aplicando-o como critério objetivo e geral a todos os casos, não podendo examinar outros atributos, uma vez que a decisão não decorre da análise singular das características do caso concreto pela Administração.

Já na segunda decisão, há uma forma positiva de interpretação, em que deve ocorrer a análise caso a caso. A partir da avaliação do caso concreto será definida e aplicada a lei penal considerada mais benéfica ao réu, no intuito de estabelecer a situação mais vantajosa a ele. Assim, para que seja obtida uma decisão justa e be-néfica, é necessária uma análise singular do caso específico. Todos os casos devem ser analisados, uma vez que o resultado obtido pode variar de acordo com as espe-cificidades do acusado e da avaliação subjetiva do caso concreto pelo examinador.

Aplicando a interpretação acima à previsão legal referente às competências da CTNBio analisadas, nota-se que o legislador pretendeu que fossem verificados os riscos e emitidas decisões técnicas acerca da biossegurança de transgênicos e seus derivados, bem como emitir pareceres técnicos prévios à liberação de OGMs no meio ambiente e sobre seu registro, uso, transporte, armazenamento, comercia-lização, consumo, liberação e descarte, em todo e qualquer caso, indistintamente e sem exceções. Entretanto, o §5o, do art. 14, da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, prevê exceção à análise de riscos e emissão de pareceres técnicos, em clara dissonância com a obrigatoriedade determinada pela legislação.

É possível concluir pela existência de conflitos legislativos, configurando-se em antinomias jurídicas acerca da competência da CTNBio, quais sejam:

a) Art. 14, §5o, da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005 vs. Art. 2o, incisos X e XII, do Decreto no 1.752, de 20 de dezembro de 1995;

b) Art. 14, §5o, Lei no 11.105, de 24 de março de 2005 vs. Art. 14, incisos IV e XII, da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005.

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As antinomias jurídicas geram insegurança e denigrem a reputação dos poderes Legislativo (criador das normas), Executivo (gestor das determinações legais e cria-dor de normas infralegais) e Judiciário (aplicador das leis), pois maculam a eficácia da aplicação de normas, no intuito de obter resultados justos e proporcionais aos in-teresses em lide. Além de contribuir para que cidadãos desacreditem na conduta dos poderes da República e na própria Justiça. Nesse sentido, verifica-se as principais consequências trazidas pela existência de antinomia, devendo esta ser solucionada:

Sem dúvida, o mal maior trazido pelas antinomias ao sistema jurídico radi-ca na insegurança das relações jurídicas quanto à racionalidade estrutural e intersubjetiva do sistema, motivo maior pelo qual se cuida de estabelecer critérios, tácitos ou não, para dar solução às antinomias jurídicas. (FREITAS, 1995, p. 62)

A antinomia jurídica se caracteriza por normas incompatíveis entre si, sendo que, para que ela ocorra, é necessário que as duas normas pertençam ao mesmo ordena-mento jurídico e que tenham o mesmo âmbito de validade: temporal, espacial, pessoal e material (BOBBIO, 1999, p. 86-88). Para Grau (2003, p. 182), a antinomia resulta do conflito entre regras jurídicas, ou seja, de uma situação de incompatibilidade entre regras - desde que ambas pertençam ao mesmo ordenamento e tenham o mesmo âm-bito de validade -, que conduz à necessidade de uma delas ser eliminada do sistema.

Casos de antinomia jurídica podem ser solucionados a partir da teoria de Bobbio (1999, p. 91-105), cujas regras fundamentais se baseiam em três crité-rios: cronológico, hierárquico e especialidade. O critério cronológico soluciona a incompatibilidade entre duas normas sucessivas, prevalecendo a norma posterior. O critério hierárquico soluciona a incompatibilidade entre duas normas em nível diverso, prevalecendo a norma hierarquicamente superior. E o critério da especiali-dade soluciona a incompatibilidade entre uma norma geral e uma norma especial, prevalecendo a norma especial. Contudo há casos em que esses três critérios são in-suficientes na resolução da antinomia, como ocorre nos casos de incompatibilidade entre duas normas contemporâneas, do mesmo nível ou ambas gerais, sendo que o caso mais frequente ocorre com a incompatibilidade entre duas normas gerais que se encontram no mesmo código. Nesse caso, surge um quarto critério, que consiste em estabelecer uma graduação de prevalência entre as três formas da norma jurídi-ca (imperativa, proibitiva e permissiva).

No entanto, esse quarto critério não tem a mesma legitimidade que os três primeiros, sendo que, para resolver a antinomia a partir desse último critério, a

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solução seria confiada à liberdade do intérprete. Sua aplicação resulta em três pos-sibilidades de solução da antinomia: eliminar uma norma, eliminar as duas normas ou conservar as duas normas.

Com base na teoria de Bobbio é possível solucionar as antinomias jurídicas sugeridas acima, sendo consideradas, portanto, antinomias aparentes e não reais. To-davia, tais critérios de solução de antinomias, embora dotados de rigor, podem não proporcionar soluções jurídicas adequadas, sobretudo em casos contemporâneos eivados de incongruências científicas, como ocorre no caso dos transgênicos. Além disso, podem levar à insegurança jurídica e à sensação de injustiça e, ainda, traduzir--se como um dissenso à opinião comum ou à crítica vigente.

Nesse caso, a primeira antinomia jurídica4 levantada pode ser resolvida a partir da aplicação do critério cronológico de Bobbio, uma vez que as normas em conflito são sucessivas no tempo. Prevaleceria, portanto, a norma posterior, ou seja, o art. 14, §5o, da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, cujo dispositivo também pertence à segunda antinomia.

Então, faz-se ressalva à segunda antinomia analisada, sustentando-se que a mesma não poderia ser solucionada por meio dos critérios trazidos por Bobbio, pois haveria dissenso aos preceitos constitucionais, às preocupações geradas pelos transgênicos e às atitudes precautórias que deveriam ser tomadas, conforme defen-dido na presente pesquisa e nos termos da análise a seguir.

Na segunda antinomia5, há um conflito normativo no interior de um único artigo (art. 14), ou seja, há um conflito entre os desmembramentos de um mesmo dispositi-vo legal: incisos e parágrafos. Sabe-se que os incisos e parágrafos não se encontram num mesmo patamar hierárquico, pois tanto o artigo quanto o parágrafo podem ser desmembrados em incisos, todavia o inciso não pode ser desmembrado em parágra-fos. Dessa forma, aplicando-se os critérios trazidos por Bobbio, a antinomia referida poderia ser solucionada pelo critério da especialidade, prevalecendo, portanto, a ex-ceção trazida pelo §5o, preponderando a desnecessária análise e emissão de parecer técnico pela CTNBio no caso do derivado cujo OGM já tenha sido por ela aprovado.

4 Art. 14, §5o, da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005 vs. Art. 2o, incisos X e XII, do Decreto no 1.752, de 20 de dezembro de 1995.

5 Art. 14, §5o, Lei no 11.105, de 24 de março de 2005 vs. Art. 14, incisos IV e XII, Lei no 11.105, de 24 de março de 2005.

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Porém, para que o derivado de OGM seja criado é necessária a existência prévia de um OGM, o qual deve ser aprovado pelo CTNBio. Prevalecendo o §5o, portanto, um derivado transgênico jamais seria submetido à análise e emissão de parecer técnico.

Diante de todos os argumentos e incongruências expostos nesta pesquisa, acredi-ta-se que a resolução dessa antinomia pela aplicação do critério da especialidade não seria a mais adequada ao caso, pois deveriam permanecer no ordenamento jurídico os incisos IV e XII, ambos pertencentes ao art. 14 da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, e não a exceção trazida pelo §5o. Tal exclusão refletiria na dinâmica do sistema jurídico brasileiro, bem como na atuação da CTNBio, que passaria a ser obrigada a fa-zer a análise de riscos e emissão de parecer técnico, inclusive, dos derivados de trans-gênicos já aprovados. Nesta seara, afirma-se que, para a dogmática, o problema das antinomias tem uma relevância prática que não só se refere à dinâmica do sistema em termos da cessação da validade, mas também repercute sobre a questão da eficácia. Assim, mesmo uma norma que não vale ou deixa de valer pode ter produzido efeitos que devem, dogmaticamente, ser considerados no que se refere à questão da nulidade, inexistência e anulabilidade (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 214).

A dinâmica conferida ao ordenamento jurídico é ressaltada por Nader (2001, p. 17) ao concluir que: “apesar de possuir um substrato axiológico permanente, que reflete a estabilidade da natureza humana, o Direito é um engenho à mercê da so-ciedade e deve ter a sua direção de acordo com os rumos sociais”.

Essa conclusão justifica-se pelas incertezas científicas que ainda preponderam nessa temática, bem como a exigência da aplicação do princípio da precaução pela própria legislação, em razão da previsão do art. 1o da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, do art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança. Sendo assim, a segunda antinomia sugerida pode ser solucionada com a aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes, idealizada pelo alemão Erik Jayme e trazida ao Brasil por Cláudia Lima Marques (2004, p. 15-54). Essa teoria traduz-se em um novo método de solução de conflitos normativos, restabelecendo coerência e unidade no sistema jurídico.

A Teoria do Diálogo das Fontes foi aplicada por Marques (2004, p. 15-54) à relação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) de 1990 e do novo Código Civil Brasileiro (CCB) de 2002, concluindo que, para a lógica e coerência do sistema, há que se afastar uma interpretação sistemático-teleológica, aplicando-se o novo tratamento às relações de consumo, ainda que exista norma dispondo ao contrário, específica para o caso. Isso ocorre devido ao CCB dispor, atualmente, de algumas

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normas que outorgam tratamento mais benéfico que aquele dispensado aos consu-midores pelo CDC.

Essa teoria aplica-se aos casos contemporâneos, diante da preocupação com os direitos humanos e do movimento contrário da economia capitalista. Nesse sentido:

(...) se a pós-modernidade, segundo Erik Jayme, é a época do pluralismo, com reflexos no direito na pluralidade de leis especiais, de agentes a pro-teger, de sujeitos de uma relação de consumo, certo é que, segundo este pensador alemão, a este pluralismo se une o Leitmotiv do renascimento dos direitos humanos, do revival da importância dos direitos fundamen-tais, individuais ou mesmo coletivos, contrapondo-se antinomicamente ao movimento de aproximação econômica e de abertura comercial mundial. (apud MARQUES, 2004, p. 32, grifo no original)

Aplicando-se a Teoria do Diálogo das Fontes ao caso antinômico ora analisado, verifica-se que a Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, inter alia, regulamenta os incisos II, IV e V do §1o, do art. 225 da Constituição da República Federativa do Brasil. Nesse sentido, a Lei Federal deve assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbindo ao Poder Público: a) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação de material genético (inciso II); b) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade (inciso IV); c) controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (inciso V) (BRASIL, 1988).

Além disso, transgênicos e derivados de transgênicos não são sinônimos, nem similares e, portanto, podem gerar efeitos diversos. A atual legislação distingue OGM e derivado de OGM, conceituando-os como (art. 3o, Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, e art. 3o, Decreto no 5.591, 22 de novembro de 2005):

a) OGM: é o organismo cujo material genético (ADN/ARN) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética;

b) Derivado de OGM: é o produto obtido de OGM e que não possua capacidade autônoma de replicação ou que contenha forma viável de OGM.

Pesquisas científicas também desenvolveram essa diferenciação de forma mais didática, como é o caso do trabalho de Nodari e Guerra (2004, p. 113), que distinguem os organismos geneticamente modificados de seus derivados da seguinte maneira:

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El grano de la soya RR es uno OGM o transgénico, pues tiene la capacidad de originar una nueva planta. Con las papas ocurre igual, por ello, las papas fritas de variedades transgénicas, son también transgénicas. Sin embargo, el aceite de soya de una variedad transgénica, no puede ser considerado un alimento genéticamente modificado o transgénico, sino un derivado de un OGM. Este aceite puede que no contenga nada de los productos celulares modificados. Tampoco es genéticamente modificada la insulina producida por una bacteria que posee un gen humano introducido por transgenia. En este caso, la bacteria es transgénica, pero el derivado no. Se trata de un producto que es similar a la insulina que nosotros producimos. Se puede identificar aún una tercera clase de alimentos: aquellos en que se adiciona uno o más ingredientes derivados de OGM.6

O fato de que organismos geneticamente modificados e seus derivados não se referem a um mesmo organismo e técnica, já se demonstra relevante para a justificativa de que ambos devem ser submetidos aos mesmos procedimentos de biossegurança e avaliações de risco. Outrossim, cabe ainda observar que a previ-são legislativa da avaliação de risco fixa uma obrigatoriedade de competência da CTNBio, uma vez que os membros da administração pública devem agir de acordo com aquilo que a lei determina, em atendimento ao princípio da legalidade. Isso significa que, no que tange à avaliação de risco, “a discricionariedade da administra-ção refere-se ao juízo sobre a avaliação de risco recebida, não sobre a possibilidade de dispensar a referida avaliação ou substituí-la por outro documento, mesmo que eventualmente similar” (DERANI, 2006, p. 251).

Por conseguinte, a CTNBio está obrigada a realizar a avaliação de risco caso a caso, uma vez que não há discricionariedade por parte da mesma, sendo incabível infligir o §5o do art. 14 da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, com o propósito de estabelecer exceção a tal obrigatoriedade. Em síntese, “qualquer avaliação de risco é o estudo do caso a caso e de suas especificidades ambientais, humanas e econômicas” (DERANI, 2006, p. 255).

6 “O grão da soja RR é um transgênico ou OGM, pois tem a capacidade de originar uma nova planta. Como ocorre com as batatas, por isso, as batatas fritas de variedades transgênicas são, também, trans-gênicas. No entanto, o óleo de soja de uma variedade transgênica não pode ser considerado um ali-mento geneticamente modificado ou transgênico, mas sim um derivado de um OGM. Este óleo pode não conter todos os produtos celulares modificados. Também, é geneticamente modificada a insulina produzida por uma bactéria que possui um gene humano introduzido por transgenia. Nesse caso, a bactéria é transgênica, mas o derivado não. Trata-se de um produto que é similar à insulina que nós produzimos. É possível identificar um terço da classe de alimentos: aqueles em que se adiciona um ou mais ingredientes derivados de OGM” (tradução nossa).

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Os fundamentos do termo avaliação de risco podem ser extraídos do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, o qual integra o ordenamento jurídico brasileiro, de-vido à sua promulgação pelo Congresso Nacional por meio do Decreto no 5.705, de 16 de fevereiro de 2006. O tratado internacional prescreve requisitos para a realização da avaliação de risco, nos termos a seguir:

Artigo 15: AVALIAÇÃO DE RISCO1. As avaliações de risco realizadas em conformidade com o presente Pro-tocolo serão conduzidas de maneira cientificamente sólida, de acordo com o Anexo III e levando em conta as técnicas reconhecidas de avaliação de risco. Essas avaliações de risco serão baseadas, no mínimo, em informações fornecidas de acordo com o artigo 8o e em outras evidências científicas a fim de identificar e avaliar os possíveis efeitos adversos dos organismos vivos modificados na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando também em conta os riscos para a saúde humana. (BRASIL, 2006)

Da mesma forma, a Convenção de Diversidade Biológica (promulgada pelo De-creto no 2.519, de 16 de março de 1998), da qual decorre o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, já fixava a preocupação das partes contratantes na administra-ção e controle de riscos, prevendo que:

Artigo 8 - Conservação in situCada Parte Contratante deve, na medida do possível e conforme o caso:(...)g) Estabelecer ou manter meios para regulamentar, administrar ou con-trolar os riscos associados à utilização e liberação de organismos vivos modificados resultantes da biotecnologia que provavelmente provoquem impacto ambiental negativo que possa afetar a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, levando também em conta os riscos para a saúde humana. (BRASIL, 1998)

A legislação brasileira especificava uma só espécie de estudo, o Estudo de Im-pacto Ambiental - EIA, instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente. Recen-temente, é que a avaliação de risco foi inserida no ordenamento jurídico, como ou-tro instrumento para se estudar previamente o impacto ambiental e, portanto, não substitui o EIA (DERANI, 2006, p. 264).

Diante do exposto, havendo imposição legal à CTNBio para que proceda à ava-liação de risco e à decisão técnica sobre biossegurança, ambas a serem realizadas caso a caso, não pode a própria legislação fazer distinção de tratamento entre trans-gênicos e derivados de transgênicos já aprovados. Todas as atividades de pesquisa e de uso comercial abrangendo transgênicos e derivados, independentemente de

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envolver OGM já aprovado pela CTNBio, devem ser submetidas à análise dos riscos e à decisão técnica de biossegurança, diante das características específicas do caso concreto. Essa preocupação decorre da exposição do meio ambiente aos transgêni-cos e aos variáveis efeitos decorrentes de fatores biológicos e ambientais naturais, como vento, umidade e insetos que possuem especificidades de região para região e, ainda, os diferentes efeitos que podem ser causados à saúde humana a partir do consumo desses organismos.

É certo que OGMs e derivados não possuem as mesmas características e não são utilizados e consumidos de forma idêntica, podendo gerar efeitos distintos tanto para o meio ambiente, quanto para a saúde humana. Dessa forma, deve a CTNBio realizar a avaliação de riscos e emitir decisão técnica de biossegurança em todos os pedidos de liberação de transgênicos e derivados, sem distinção, sendo imprópria a substituição por estudos similares.

Nesse caso, a segunda antinomia jurídica também pode ser solucionada e con-siderada uma antinomia aparente, porém, com fundamento na Teoria do Diálogo das Fontes, devendo haver a observância do conjunto normativo e não apenas da exce-ção trazida pelo §5o, do art. 14, da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, exige-se a análise da avaliação de risco e emissão de decisão técnica sobre biossegurança de todas as atividades e projetos que envolvam OGMs e derivados, conforme determi-nam os incisos IV e XII do art. 14 da mencionada Lei Federal.

5 Conclusão

As tecnologias desenvolvidas pela área da biotecnologia moderna trazem be-nefícios ao meio ambiente e à saúde humana, no entanto, quando relacionadas aos transgênicos, tornam-se uma preocupante realidade enfrentada neste século XXI. Apesar do desenvolvimento das técnicas da engenharia genética e das diversas afir-mações quanto aos benefícios trazidos pelos transgênicos, a sociedade científica ainda convive com as incertezas que podem ser trazidas pela produção e consumo de transgênicos e derivados em longo prazo.

Tratando-se de tecnologia envolta de incertezas científicas para qualquer tomada de decisão acerca de atividades de pesquisa e de uso comercial envolvendo OGMs e derivados, deveria haver a observância ao princípio da precaução, bem como a análise de riscos e prévio Estudo de Impacto Ambiental das atividades e projetos, nos termos da Lei de Biossegurança e do art. 225 da Constituição Federal de 1988.

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A CTNBio é instância colegiada multidisciplinar, responsável por importantes tomadas de decisões como a avaliação de riscos de transgênicos e derivados e a emissão de parecer técnico sobre biossegurança, deliberando acerca da aprovação de atividades e pesquisas que envolvam transgênicos e derivados, tanto para uso comercial, como para teste em campo. Entretanto, as competências da CTNBio não estão previstas em um único diploma normativo, uma vez que devem ser observa-das na Lei de Biossegurança, no Decreto no 1.752, de 20 de dezembro de 1995, no Regimento Interno da CTNBio e nas demais Resoluções e Instruções Normativas definidas pela própria Comissão.

A existência de normas esparsas atribuindo competência ao mesmo órgão pú-blico - CTNBio - contribui para a inexatidão de previsões legislativas, bem como para a existência de antinomias jurídicas, que podem ser observadas inclusive entre dispositivos da mesma norma, qual seja a Lei de Biossegurança. No decorrer da pes-quisa foram analisadas duas hipóteses de antinomia jurídica, a primeira (Art. 14, §5o, Lei 11.105/2005 vs. Art. 2o, X e XII, Decreto 1.752/1995), apenas aparente, pode ser solucionada com a aplicação do critério da especialidade trazida pela teoria de Bobbio, prevalecendo a norma mais atual, isso é, o dispositivo da Lei de 2005.

No entanto, apesar de a segunda antinomia (Art. 14, §5o, Lei 11.105/2005 vs. Art. 14, IV e XII, Lei 11.105/2005), poder ser solucionada pelos critérios da teoria de Bobbio, diante da especialidade do §5o em relação a previsão sui generis dos incisos IV e XII, tal solução não é a mais adequada.

Diante disso, no intuito de manter a segurança jurídica nacional, garantindo a coerência do sistema brasileiro que prevê, constitucionalmente, o controle de ativi-dades que comportem risco à vida, à qualidade de vida e ao meio ambiente, alme-jando a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, suge-re-se que a segunda antinomia jurídica encontrada seja resolvida com fundamento na Teoria do Diálogo das Fontes. Assim, devem ser exigidas a análise da avaliação de risco e a emissão de decisão técnica sobre biossegurança de todas as atividades e projetos que envolvam OGMs e derivados, independente de resultarem de deriva-do de OGM já aprovado pela CTNBio ou não. Afinal, se a exceção prevalecer, jamais haverá derivados de OGM avaliados pela Comissão, uma vez que derivados somente existem após a prévia criação de um OGM.

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9 Terceirização no serviço público e a

responsabilidade da Administração:

a ADC 16 e os novos rumos

da Súmula 331 do TST

DALTRO ALBERTO JAÑA MARQUES DE OLIVEIRA

Especialista em Direito do Estado (UERJ). Especialista em Direito e Processo

do Trabalho (UCAM). Mestrando em Direito Constitucional e Teoria do Estado

(PUC/RJ). Analista Judiciário do TRT/RJ.

Artigo recebido em 07/03/2012 e aprovado em 06/12/2012.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Aspectos gerais sobre terceirização 3 A terceirização pela Administração Pública 4 Conclusão 5 Referências.

RESUMO: O presente trabalho abordará o tema da terceirização, mais especifica-mente a terceirização no serviço público, enfocando a discussão há muito travada acerca da possibilidade de responsabilização do ente público pelas dívidas traba-lhistas inadimplidas pela empresa contratada. Nosso objetivo será trazer à baila opiniões e doutrinas divergentes sobre o tema e, mais importante, analisar as duas normas colidentes que tratam da matéria – a Súmula 331 do TST e o art. 71, § 1o da Lei no 8.666/93. No primeiro caso, temos uma súmula que defende a responsabili-dade subsidiária da Administração Pública, tratada da mesma forma que o emprega-dor particular. No segundo caso, o artigo legal caminha em sentido diametralmente oposto, justamente preconizando a irresponsabilidade estatal. Após anos e anos de debates, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar e colocar um ponto final na celeuma. Com efeito, foi movida a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) no 16, onde se pleiteava o reconhecimento da constitucionalidade do art. 71, § 1o e, por conseguinte, a tese da irresponsabilização. O resultado e as diretrizes dessa decisão também serão objetos de estudo e nos permitirão opinar sobre o atual trato da matéria, dado pela ADC no 16.

PALAVRAS-CHAVE: Administração Pública Terceirização Responsabilidade Tomadora Prestadora.

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Outsourcing in the public service and state’s liability: Declaratory Judgement on

Constitutionality no 16 ADC Precedent 331 from the Superior Labour Court

CONTENTS: 1 Introduction 2 Overview on outsourcing 3 Outsourcing in the Public Administration 4 Conclusion 5 References.

ABSTRACT: This paper addresses the issue of outsourcing. It deals specifically with public sector outsourcing and focuses on the longstanding discussion about the state responsibility for the labour debts of the companies it contracts. The paper’s object is to present the divergent opinions and doctrines on the subject and, more importantly, to analyse two conflicting norms: Precedent 331, from the Superior Labour Court, and article. 71, §1o, of the Federal Law 8.666/93. Whilst the former norm supports the subsidiary responsibility of the public administration, which is treated in the same manner as private employers, the latter defines that the state is not liable for private labour debts. When analyzing the Declaratory Judgment on Constitutionality no 16, the Brazilian Supreme Court decided that the state was not responsible for such debts. By studying the result of this judgement and its main guidelines, we intend to present our opinion on the current treatment of outsourc-ing and state liability in Brazil.

KEYWORDS: Public Administration Outsourcing State liability Labour debts.

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La subcontratación en el servicio público y la responsabilidad de la administración:

la Acción Declaratoria de Constitucionalidad et la Resolución 331 del Superior

Tribunal Laboral

CONTENIDO: 1 Introducción 2 Aspectos generales de la subcontratación 3 Subcontratación en la Administración Pública 4 Conclusión 5 Referencias.

RESUMEN: En este artículo se analiza el tema de la subcontratación, especialmente la subcontratación en el servicio público y la conocida discusión cerca de la asun-ción por el Estado de deudas laborales de empresas que ha contratado. Intentamos presentar las opiniones y las doctrinas divergentes respecto esos temas y, sobretodo, examinar dos normas contradictorias: la Resolución 331 del Superior Tribunal Labo-ral y el artículo 71, §1o, de la Ley Federal 8.666/93. Aquella Resolución había esta-blecido la responsabilidad subsidiaria del Estado, tratado como si fuera empleador privado, mientras que esa ley había prohibido la asunción publica de deudas labo-rales privadas. Tras años de debate, el Supremo Tribunal Federal de Brasil decidió el problema al analizar la Acción Declaratoria de Constitucionalidad 16, en la cual se sostenía la constitucionalidad del artículo 71, §1o, de la Ley 8.666/93. Mediante el examen del resultado de este juzgamiento y de sus directrices, presentamos nuestra opinión respecto el tratamiento actual de la materia en Brasil

PALABRAS CLAVE: Administración Pública Subcontratación Asunción Deuda laboral.

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1 Introdução

A terceirização é um fenômeno já não tão recente no Brasil, mas ainda carente da devida regulamentação. Ainda assim, a prática se tornou praxe na seara

trabalhista, gerando um dos principais nichos de contratação laboral. O crescimento dessa forma de contratação levou à sua adoção no serviço público – onde, como se sabe, o principal meio de captação de mão-de-obra é a via do concurso público. Ain-da assim, consignou-se que, não apenas na iniciativa privada, mas também no setor público, a terceirização não poderia ser realizada nas atividades-fim da empresa, mas tão somente nas atividades-meio. A ideia subjacente a esta disposição, reside no fato de que, ao promover a terceirização das atividades principais da empresa, pública ou privada, ou do órgão estatal, haveria ali uma burla à sistemática tradicio-nal de contratação, o que, no âmbito da Administração Pública, carregaria um déficit maior, que é o de burlar a regra constitucional do concurso público.

Mesmo com essa limitação, a terceirização consolidou-se como um dos me-canismos mais importantes do direito do trabalho na atualidade, pois atende bem às demandas de um mercado cada vez mais dinâmico e pulsante que aspira por ideias capazes de aumentar a produtividade, ao mesmo tempo em que reduz des-pesas e, consequentemente, amplia também a margem de lucros. Apesar de todo o festejo em torno do instituto, o mesmo vem sendo atingido por uma mazela quase que crônica: as prestadoras de serviços - empregadoras diretas dos trabalhadores terceirizados - têm falhado constantemente no cumprimento de suas obrigações trabalhistas. Como consequência, proliferam-se na justiça laboral ações movidas pelos empregados terceirizados em busca dos seus direitos violados.

A constatação de que a prestadora, comumente, não apenas restava inadim-plente com seus empregados, mas também ia à falência ou mesmo sumia sem dei-xar vestígios, acarretou na possibilidade, capitaneada pela Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), de se responsabilizar subsidiariamente a tomadora, em casos de inadimplemento pela prestadora, ou mesmo solidariamente, em caso de falência desta ou comprovada fraude. A Súmula, todavia, não fez distinção entre entes públicos ou privados, o que gerou toda a celeuma. A Administração Pública sempre alegou sua irresponsabilidade, à luz do art. 71, § 1o da Lei no 8.666, de 21 de junho de1993. O imbróglio doutrinário e jurisprudencial permaneceu pululante até o Supremo Tribunal Federal (STF) vir a pacificar a controvérsia, com o julgamento da ADC no 16. Essa discussão e o resultado obtido com o julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) no 16 constituem o tema do nosso trabalho. Ao longo des-

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te, esmiuçaremos os principais argumentos a favor e contra a responsabilização do Estado e daremos, ao final, nossa opinião sobre o acerto, ou não, da decisão proferi-da nos autos da referida ação constitucional.

Assim, no primeiro tópico, faremos uma breve explanação acerca do instituto da terceirização - como o mesmo se desenvolveu no Brasil, as principais regras perti-nentes e alguns de seus elementos e conceitos primordiais. A ideia, nesse primeiro momento, não é descer a minúcias com relação ao tema, mas fornecer subsídios para uma melhor compreensão de suas linhas mestras para, nos próximos tópicos, apro-fundar o estudo e detalhar com mais precisão as questões que têm sido levantadas acerca da terceirização no serviço público e da responsabilidade da Administração.

Já no segundo tópico, falaremos sobre as principais regras pertinentes à tercei-rização no âmbito da Administração Pública, com vistas a estabelecer um panorama geral, para que, ao adentrarmos nas discussões travadas, tenhamos, desde então, fixadas as bases necessárias para uma boa compreensão da batalha travada. Ainda nesse tópico, começaremos a especificar o nosso objeto de estudo, estabelecendo uma ponte entre as considerações iniciais do primeiro e o assunto principal, que virá no terceiro. Com efeito, teceremos alguns comentários sobre a questão da res-ponsabilidade administrativa no que tange à assunção das obrigações trabalhistas inadimplidas pelo empregador direto. Já aqui, analisaremos as opiniões doutrinárias que se desenvolveram, colocando em lados opostos aqueles que defendem a total irresponsabilidade do Estado e os que entendem que não se pode permitir que o trabalhador reste desamparado e, por conseguinte, defendem que a Administração Pública deva responder.

No terceiro tópico, daremos completude à avaliação das questões em debate, pois traremos à baila justamente a decisão definitiva dada pelo Supremo Tribunal Federal relativamente à matéria. Ou seja, nesse momento, iremos discorrer sobre a tramitação da ADC no 16, as premissas levadas em conta para o seu ajuizamento, as opiniões e debates levantados durante o julgamento e, enfim, o entendimento que o STF cristalizou sobre o tema. A partir desse julgamento, analisaremos, também, como a doutrina e, principalmente, a jurisprudência se adequaram à nova realidade. Nesse diapasão, veremos que medidas foram adotadas pelo Tribunal Superior do Trabalho para se adequar à decisão do Supremo.

Por fim, traremos na conclusão nossas considerações pessoais sobre tudo que foi tratado. Entendemos que o assunto é rico em conteúdo, pois carrega consigo nuances que passeiam pelos mais diversos ramos jurídicos – envolvendo aspectos

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próprios do direito do trabalho e processual do trabalho, do direito civil, do direi-to constitucional, do direito administrativo e outros correlatos, fazendo-se mister acompanharmos as discussões que o tema vem suscitando e, de certa forma, ten-tarmos contribuir para o debate. Assim, feitas as necessárias considerações iniciais, passamos ao estudo do tema.

2 Aspectos gerais sobre terceirização

Neste primeiro tópico, nós falaremos um pouco sobre o histórico da atividade terceirizante e delimitaremos algumas de suas linhas mestras. Terceirização, segun-do Maurício Godinho Delgado, é um termo fruto de neologismo cunhado fora do di-reito, no âmbito da administração de empresas, para caracterizar a descentralização empresarial de atividades para outrem, alguém de fora da empresa. Nesse sentido, define, o autor, como terceirização, “o fenômeno pelo qual se dissocia a relação eco-nômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente” (DEL-GADO, 2009, p. 407). Há quem prefira falar em “contrato de apoio empresarial” ou “contrato de atividade de apoio”, como José Augusto Rodrigues Pinto (2007, p. 155), ou em “terciarização” (ROMITA apud TEIXEIRA FILHO, 2005, p. 281); mas, apesar dessas e de outras críticas doutrinárias, fato é que vingou o primeiro termo, que é amplamente utilizado.

No Brasil, a terceirização pode ser vista como um modelo de relação trabalhista deveras recente. O primeiro ato normativo que veio a discipliná-la foi o Decreto-Lei no 200, de 25 de fevereiro de 1967, no seu art. 10, seguido pela Lei no 5.645, de 10 de dezembro de 1970. Posteriormente, o fenômeno ganhou regulamentação também no setor privado, com a edição da Lei no 6.019, de 03 de janeiro de 1974, que dispõe sobre trabalho temporário, e com a Lei no 7.102, de 20 de junho de 1983, que autori-zou a terceirização nas atividades de vigilância, sendo essas em caráter permanente.

Apesar da insuficiência da legislação correlata, conforme foi dito, a terceirização desenvolveu-se sobremaneira a partir dos anos setenta, com profundidade muito além da limitada legislação até então existente. Tal fato exigiu dos operadores do Direito e dos tribunais do trabalho um esforço hermenêutico muito grande, no sen-tido de compreender a dinâmica do processo e de encontrar a ordem jurídica a ele aplicável. Na esteira de tal arroubo interpretativo, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) desenvolveu duas súmulas, consolidando sua jurisprudência dominante. A pri-meira foi editada nos anos oitenta, Súmula 256 do TST. Nesse primeiro momento,

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o Tribunal adotou uma interpretação restritiva quanto às hipóteses nas quais seria cabível a terceirização. Dispunha a súmula:

Súmula 256 - Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis nos 6.019, de 03.01.1974, e 7.102, de 20.06.1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vín-culo empregatício diretamente com o tomador dos serviços. (BRASIL, 1986)

Contudo, o grande número de exceções que restaram fora da previsão sumular, a sua posterior inadequação à vedação constitucional de admissão de trabalhadores por entes públicos sem concurso público – art. 37, inciso II e § 2o, da Constituição de 1988– bem como a nítida afronta ao princípio da licitude do não-proibido, de modo a inviabilizar práticas que, embora não constassem da súmula, tampouco haviam sido rechaçadas pela lei, foram fatores que levaram à revisão da Súmula 256 do TST e, como decorrência, em 1994 foi editada a Súmula 331 do TST, dotada de quatro incisos, a seguir transcrita (redação original):

I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, forman-do-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo o caso de trabalho temporário (Lei n. 6.019, de 3.1.74).II – A contratação de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública Direta, Indi-reta ou Fundacional (art. 37, II, da Constituição da República).III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de servi-ços de vigilância (Lei n. 7.102, 20.6.1983), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e subordinação direta.IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empre-gador, implica na responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que este tenha participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. (BRASIL, 1994)

O inciso IV, em 2000, recebeu nova redação, através da Resolução no 96, de 11 de setembro de 2000, do TST, esclarecendo que a responsabilidade subsidiária pre-vista abrangia também os órgãos da administração direta, das autarquias, das fun-dações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista. Após a decisão do Supremo na ADC no 16, a súmula passou por nova revisão, em 2011, gerando mudança, novamente, no inciso IV e acréscimo dos incisos V e VI – mudança que estudaremos no momento oportuno.

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A terceirização pode ser lícita ou ilícita. Terceirização lícita, basicamente, é aque-la tutelada pela Súmula 331, do TST, de cujo texto podemos extrair quatro situações específicas: contratação do trabalho temporário, prevista na Lei no 6.019/74, ativi-dades de vigilância, atividades de limpeza e conservação e, por fim, as atividades--meio da empresa, que correspondem àquelas que não se ajustam ao núcleo das atividades empresariais do tomador dos serviços, atividades periféricas ou instru-mentais em relação ao tipo de atividade empresarial que o tomador desenvolve.

A terceirização será, portanto, ilícita quando a inserção do empregado vinculado à empresa prestadora de serviços se der no âmbito das atividades-fim da empresa, hipótese não acolhida ou autorizada pela súmula em comento, nem prevista na legislação em vigor – pelo contrário, nos casos de terceirização pela Administração Pública tal situação encontra-se expressamente proibida. Outro fator que conduz à ilicitude da terceirização é a configuração de pessoalidade e de subordinação direta entre o tomador dos serviços e o empregado cedido pela prestadora.

Relativamente aos aspectos processuais atinentes à responsabilidade na tercei-rização, no que concerne ao cumprimento das obrigações trabalhistas, Evaristo de Moraes Filho (2003, p. 294) lembra, nos termos sumulares, que mesmo havendo re-gular contratação, gerando uma relação jurídica de direito comum (entre a prestado-ra e a tomadora dos serviços), a tomadora poderá, ainda assim, ser subsidiariamente responsável pelas obrigações laborais, se a fornecedora as houver inadimplido na qualidade de empregadora, desde que a tomadora (que nesse caso, vale ressaltar, não assume a qualidade de empregadora), haja participado da relação processual e conste do título executivo judicial.

Portanto, após algumas pinceladas dadas a respeito da terceirização, quando vimos alguns dos principais elementos que lhe são peculiares, passamos a discorrer mais especificamente sobre a terceirização no setor público.

3 A terceirização pela Administração Pública

3.1 Características e peculiaridades da terceirização – a formação de vínculo e a

exigência de concurso público

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o ingresso no serviço público passou a ter como requisito constitucional a prévia aprovação em concurso público – art. 37, inciso II e § 2o. Tal requisito é válido para cargos e empregos públicos e, segundo Maurício Godinho Delgado (2009, p. 422), tornou-se expresso obstáculo

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para o reconhecimento de vínculos empregatícios com entes públicos nos casos de terceirização, ainda que constatada a ilicitude na contratação. Veja-se que a previsão constitucional não passou despercebida pela Súmula 331, o que se depreende da previsão do seu inciso II supracitado.

Ainda assim, o que a súmula preconiza é garantir que o trabalhador receba to-das as verbas trabalhistas, legais e normativas, aplicáveis ao empregado ou servidor estatal que exercesse a mesma função do terceirizado, ou pelo menos as verbas devidas à função específica por ele exercida. Por outro lado, não lhe seria devida a retificação da CTPS quanto à entidade empregadora formal – de modo a constar o ente público como tal – pois nesse âmbito é que, justamente, reside a vedação cons-titucional. E afinal, no que concerne à responsabilização, seguir-se-ia o comando previsto na Súmula 331, IV do TST.

A jurista Vólia Bomfim Cassar (2007, p. 523), interpretando a súmula, afirma que a responsabilidade subsidiária prevista, relativamente às terceirizações lícitas, decorre do art. 9o da CLT, que dispõe se considerar fraude à lei todo ato que vise impedir ou desvirtuar a aplicação dos direitos previstos na CLT. Sob a égide da lei juslaboral, o empregador que sonega direitos trabalhistas de seu empregado come-te ato ilícito, e o tomador dos serviços, abuso do direito de terceirizar, pois deveria fiscalizar o cumprimento do contrato e escolher melhor as empresas intermediado-ras de mão-de-obra. Nesse diapasão, segundo o art. 187 do Código Civil de 2002, o abuso de direito equipara-se ao ato ilícito que é o fato gerador da responsabilidade civil – arts. 186 c/c 927 c/c 942, todos do Código Civil de 2002 (BRASIL).

3.2 Responsabilidade do tomador público – a controvérsia legal, doutrinária

e jurisprudencial

A principal celeuma doutrinária e jurisprudencial que configura o ponto central do nosso estudo desenvolveu-se sobre a questão da responsabilização. Ocorre que a Lei no 8.666/93, em seu art. 71, § 1o, afirma que a inadimplência do contrato pelo contratado não transfere responsabilidade à Administração pelo pagamento das dívidas trabalhistas e de outra natureza. Obviamente, tal preceito encontra-se em direta colisão com o que preconiza a Súmula 331, IV do TST, que prevê, nesses casos, a responsabilização subsidiária do ente público. Veja-se que a súmula foi editada em dezembro de 1993, quando já vigorava a lei em comento, o que demonstra que a ju-risprudência laboral não concedeu guarida ao dispositivo normativo nela insculpido.

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Godinho (2009, p. 434) afirma que tal exceção prevista na Lei no 8.666/93 afronta a regra constitucional da responsabilidade objetiva do Estado pelos atos dos seus agentes, prevista no art. 37, § 6o da Constituição. Ousamos discordar do autor nesse ponto, pois a referida previsão diz respeito à responsabilização extracontratu-al, sendo certo que a derivada de um contrato de prestação de serviços é, obviamen-te, contratual. Aprofundaremos mais essa questão linhas à frente. Outrossim, o autor, acredita que, caso não se possa falar em responsabilidade objetiva, não se pode negar a incidência de responsabilidade subjetiva da entidade estatal – aplicável a qualquer pessoa jurídica, inclusive entes públicos, sendo certo que, quanto a isso, a Constituição não fez qualquer ressalva.

Assim sendo, caso a Administração firme contrato de prestação de serviços com empresa inidônea, estará cometendo culpa in eligendo (má escolha do contratante), ainda que o contrato decorra de regular procedimento licitatório. Caso não se reco-nheça essa dimensão da culpa, pode-se, ainda, falar em culpa in vigilando, decorren-te da má fiscalização das obrigações contratuais e seus efeitos. Ademais, segundo Godinho (2009, p. 434), caberia fazer uma interpretação conforme a Constituição do art. 71, § 1o da Lei de Licitações, no sentido de se afirmar que o dispositivo não visa a eliminar a responsabilidade subsidiária da entidade estatal tomadora de serviços, resguardando, tão-somente, a responsabilidade original do empregador terceirizan-te, de modo que, responsabilizado subsidiariamente, possa o ente público exercer seu direito de regresso em face dele. É como também pensa Gustavo Filipe Barbosa Garcia (2012, p. 352).

Já Vólia Bomfim Cassar (2007, p. 526) afirma que, na contratação de empresa prestadora de serviços, está a Administração praticando mero ato de gestão (em contrapartida aos atos de império), havendo entre ambas uma relação jurídica con-tratual. Diferentemente do que ponderou Maurício Godinho, Vólia entende que não há de se falar em culpa in eligendo ou in contrahendo, pois para ela as exigências legais necessárias para a participação de uma empresa numa licitação são muito rí-gidas, de modo que, quando uma empresa vence, significa que ela cumpriu todos os requisitos e superou todos os obstáculos necessários para contratar. Para a profes-sora, portanto, os únicos argumentos plausíveis capazes de gerar responsabilidade para a Administração são a teoria do empregador formal e do real, além da culpa in vigilando (hipótese essa em que concorda com Godinho).

O professor Fábio Rodrigues Gomes (2009, p. 115), por outro lado, entende que a escolha legislativa pela irresponsabilidade estatal no que tange ao paga-

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mento das dívidas trabalhistas não arcadas pela prestadora de serviços, de fato, é a melhor. Para ele, precedeu a referida escolha uma ponderação entre princípios, que apontavam em direções opostas: de um lado, princípios como o da moralidade, impessoalidade e eficiência administrativa, a dizer que não cabe responsabilização; de outro, princípios como o da dignidade da pessoa humana, valor social do trabalho e do direito do trabalho, informando que o trabalhador não pode ficar desamparado quando buscar seus legítimos direitos; e, a rigor, entende ter prevalecido a primeira leva. Outrossim, o autor não vê com maus olhos a terceirização no âmbito da Admi-nistração Pública.

Apesar de toda a fundamentação despendida no sentido da manutenção do art. 71, § 1o, Gomes acredita, afinal, ser possível a responsabilização da Administração, não subsidiária, mas solidária e em casos de fraude ou conluio do administrador com o contratado. E não responsabilidade objetiva, mas subjetiva, decorrente de uma omissão culposa ou mesmo dolosa na fiscalização do contrato.

O professor Jessé Torres Júnior (2002, p. 688) não adentra muito na discussão, limitando-se a afirmar que a regra da Lei de Licitações impede a Administração de aceitar sub-rogar-se, a qualquer título (incluindo eventual compensação ou benefí-cio fiscal), na obrigação de atender aos encargos do contratado, bem como não pode transferir para as verbas do contrato o pagamento desses encargos. As colocações do eminente jurista apontam no sentido de que ele corrobora a tese da irresponsa-bilidade, preconizada no dispositivo em tela.

Marçal Justen Filho (2010, p. 819), apesar de não concordar, ressalta que a jurispru-dência trabalhista formada em torno do tema não permitia que se alegasse, na justiça especializada, qualquer cláusula do contrato administrativo, no sentido de se comprovar que não houve falha da Administração ou que, pelo menos, o contrato foi cumprido à risca. Com isso, o autor percebeu que a melhor solução, para a Administração, seria ado-tar todas as medidas preventivas possíveis, como desclassificar propostas que não com-portassem adequadamente o cumprimento dos encargos trabalhistas, fiscalização exata e preventiva do adimplemento das obrigações laborais e a identificação antecipada de riscos nesse setor. Então, ainda que a prestação esteja sendo executada rigorosamente, de modo perfeito, o poder público deverá adotar procedimentos administrativos para apurar fatos que constituam indicativo de mau cumprimento das obrigações trabalhis-tas pela contratada, sob pena de rescisão do contrato.

A jurisprudência trabalhista, como não podia deixar de ser, consolidou seu en-tendimento em torno da Súmula 331 do TST. Os principais Tribunais Regionais do

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Trabalho do país têm largo elenco de decisões corroborando a obrigação subsidiária da Administração de arcar com as dívidas trabalhistas deixadas pela prestadora dos serviços terceirizados, apesar das recorrentes alegações dos entes públicos de violação da Súmula Vinculante 10, do STF. Vejamos, ilustrativamente, como a juris-prudência se consolidou:

TRT 2ª REGIÃO – SÃO PAULO. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Verificada a não satisfação dos direitos dos empregados envolvidos em esquema de terceirização de serviços relacio-nados à atividade fim, afigura-se impositiva a responsabilização do toma-dor. Na condição de efetivo beneficiário da força de trabalho despendida pelo empregado, deve assumir, ainda que de forma subsidiária, os riscos da contratação sendo-lhe imputada culpa in eligendo e in vigilando. Construção jurisprudencial sedimentada na Súmula 331 do C. TST, que visa garantir o re-cebimento das verbas inerentes à relação de emprego. Outrossim, a alegada natureza jurídica de ente da administração pública não isenta o contratante dos serviços da cota de responsabilidade que lhe cabe. Tampouco se atribui ao ente público prerrogativas distintas da iniciativa privada, porquanto, a opção de contratar adotando procedimento próprio do empregador comum, a este se equipara, relegando a segundo plano qualquer disposição que o eleve a uma possível situação privilegiada. O teor do art. 71, parágrafo 1o da Lei 8.666/93, não exime a Administração Pública de sua carga obrigacional, pois, se assim o fizesse, estaria a ensejar conflito com as disposições consti-tucionais acerca da responsabilidade da administração por atos ou omissões de seus agentes. Ademais, o valor social do trabalho foi elevado à grandeza constitucional, considerado pela Lei Maior um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1o, inciso V), princípio fundamental inerente à ordem econômica social. (BRASIL, 2011a)

TRT 1ª REGIÃO – RIO DE JANEIRO. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. AD-MINISTRAÇÃO PÚBLICA. O art. 71, § 1o, da Lei no 8.666/93 tem em mira exonerar a administração pública da responsabilidade principal ou primá-ria, atribuída ao contratado, afastando a possibilidade de vinculação de emprego em desacordo com o art. 37 da Constituição da República. Não a exime, contudo, da responsabilidade subsidiária, tanto que a Súmula no 331 do C. TST faz expressa menção ao artigo 71 da Lei no 8.666/93, motivo pelo qual não há como acatar a tese da inaplicabilidade da citada súmula aos entes públicos e considerá-lo parte ilegítima no pólo passivo. Recurso ordinário desprovido. (BRASIL, 2011b)

TRT 3ª REGIÃO – MINAS GERAIS. UNIÃO FEDERAL – RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA – SÚMULA 331, IV, DO TST. ART. 71 DA LEI 8.666/93. Com a edição da Súmula 331, IV, do TST, não houve declaração de inconstitucio-nalidade do art. 71 da Lei 8.666/93, mas, apenas, definição do seu alcance

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jurídico, devendo ser interpretada no sentido de que a Administração Públi-ca está exonerada da responsabilidade principal ou primária, sem afastar a responsabilidade subsidiária. (BRASIL, 2010)

Até mesmo o Tribunal de Contas da União já tinha jurisprudência no sentido de acatar a responsabilização da Administração Pública, subsidiariamente, pelas dí-vidas trabalhistas do contratado, nos termos da Súmula 331, IV do TST, tanto que propunha maneiras dos entes estatais se resguardarem, tanto no processo licitatório quanto durante a execução do contrato, justamente com vistas a evitar uma possível responsabilização posteriormente. É o que se demonstra a seguir:

REPRESENTAÇÃO. LICITAÇÃO. CONTRATAÇÃO DE EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS TERCEIRIZADOS COM LOCAÇÃO DE MÃO DE OBRA. DETERMI-NAÇÃO. (...) 2. Trata-se de Representação sobre ação trabalhista movida por ex-empregada da empresa A. M. Administração, Comércio e Representação Ltda., contratada mediante licitação pública para prestação de serviços de limpeza no Banco do Brasil S/A, agência de Criciúma/SC. 3. Na referida ação trabalhista, a empresa foi condenada pelo inadimplemento de obrigações trabalhistas para com sua ex-empregada, Sra. Alessandra da Silva Idalên-cio, sendo o Banco do Brasil condenado subsidiariamente, inclusive quanto às de caráter indenizatório. 4. O Judiciário Trabalhista vem refutando, por inconstitucionalidade, o disposto no art. 71 da Lei no 8.666/1993 (...) 6. As-sim, embora o Banco do Brasil não seja o titular das obrigações trabalhistas em relação aos empregados terceirizados que lá prestam serviços, deve se preocupar com os problemas e mazelas enfrentados pela classe obreira, e tal postura deve ser conduzida em respeito aos entendimentos externados pela Justiça do Trabalho, a qual impõe à Administração Pública, direta e indireta, o ônus da responsabilidade subsidiária (Enunciado 331 do TST). 7. Tal responsabilidade advirá da falta de fiscalização da empresa contratada quanto ao cumprimento das obrigações trabalhistas. Cabe, portanto, deter-minação ao Banco do Brasil para que fiscalize a execução dos contratos de prestação de serviços, em especial no que diz respeito à obrigatoriedade de a contratada arcar com todas as despesas, diretas e indiretas, decorren-tes de obrigações trabalhistas, relativas a seus empregados que exercem as atividades terceirizadas, e adote as providências necessárias à correção de eventuais falhas verificadas, de modo a evitar a responsabilização sub-sidiária da entidade, nos termos do Enunciado/TST no 331. (...) ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão da 1ª Câmara, diante das razões expostas pelo Relator e com fundamento no art. 237, inciso III, do Regimento Interno/TCU, em: 9.1. conhecer da presente Representação para, no mérito, considerá-la parcialmente procedente; 9.2. determinar ao Banco do Brasil S/A que fiscalize a execução dos contratos de prestação de serviços, em especial no que diz respeito à obrigatoriedade

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de a contratada arcar com todas as despesas, diretas e indiretas, decorren-tes de obrigações trabalhistas, relativas a seus empregados que exercem as atividades terceirizadas, e adote as providências necessárias à correção de eventuais falhas verificadas, de modo a evitar a responsabilização sub-sidiária da entidade, nos termos do Enunciado/TST no 331. (BRASIL, 2006)

Depois de tanta celeuma doutrinária e jurisprudencial, o STF foi instado a se manifestar sobre o caso e decidir se o art. 71, § 1o, da Lei no 8.666/93, era ou não constitucional, afim de jogar uma pá de cal sobre o tema. Foi o que a Magna Corte fez, no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade no 16, proposta em 07 de março de 2007. É o que passamos a analisar no próximo tópico.

4 A Ação Declaratória de Constitucionalidade no 16 e a nova Súmula 331 do TST

A Ação Declaratória de Constitucionalidade no 16 foi proposta em 07 de março de 2007 pelo governador do Distrito Federal, com vistas a por fim na controvérsia instau-rada no seio do Judiciário Trabalhista, a partir do antagonismo criado entre o art. 71, § 1o da Lei no 8.666/93 e a Súmula 331, IV do TST. Além de perquirir se o dispo sitivo legal era constitucional ou não, o julgamento da ADC no 16 iria contribuir também para solucionar diversas Reclamações Constitucionais (art. 102, inciso I, “l”, da Cons-tituição), movidas em face de decisões dos Tribunais Regionais do Trabalho que, ao julgar as causas aplicando o enunciado sumular em comento, estariam, indi retamente, declarando a inconstitucionalidade do artigo da lei licitatória, ao afastar a sua aplica-bilidade no caso concreto. Ocorre que, ao declarar tal inconstitucionalidade, não o es-taria fazendo a partir de decisão ple nária do seu Tribunal, em suposta violação do art. 97, da CF/88 (princípio da Reserva de Plenário), e à Súmula Vinculante no 10 do STF.

Inicialmente1, o relator, Ministro Cezar Peluso, indeferiu a ação por falta de interesse objetivo de agir, pois, para ele, não se teria demonstrado controvérsia judicial relevante sobre a legitimidade constitucional da norma, nos termos do art. 14, inciso III da Lei no 9.868, de 10 de novembro de 1999 (Lei da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade). O Ministro Marco Aurélio abriu divergência para admitir a ação e para reconhecer a existência da referida controvérsia. Esse Ministro entendeu que a Súmula 331, IV, do TST, teria gerado uma inconstitucionalidade branca do art. 71, § 1o, da Lei no 8.666/93, justa-mente ao afastar sua aplicabilidade aos casos de terceirização de serviços, enten-

1 Vide informativos do STF nos 519 e 610.

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dimento este que, por estar pacificado na jurisprudência da mais alta corte laboral, estaria gerando, no âmbito dos Tribunais Regionais do Trabalho, diversas decisões no mesmo sentido.

Nesse diapasão, o Ministro Marco Aurélio, ao analisar os precedentes que deram ensejo à súmula, enfatizou que o TST, ao dispor que sempre a Administração Pública responderá subsidiariamente à empresa prestadora pelas dívidas trabalhistas, apli-cou ao caso o previsto no art. 37, § 6o da Carta Magna e no art. 2o, § 2o da CLT, que prevê solidariedade entre empregadores. O Ministro entendeu não ser aplicável à hipótese o artigo constitucional em comento, em virtude de não haver ato de agente do poder público causando danos a terceiros, senão ato do próprio agente tercei-rizante. Com relação ao segundo dispositivo, ele o reputou incabível, pois as pre-missas básicas de validade do texto legal pressupõem a existência de uma mesma administração, direção ou controle das empresas solidárias, o que não há no caso, posto que o poder público, de modo algum, controla ou administra a prestadora de serviços. No mesmo sentido, a Ministra Cármen Lúcia Antunes acrescentou que a responsabilidade objetiva que incide sobre os entes públicos é extracontratual ou patrimonial, e que a hipótese em debate é de responsabilidade contratual.

Outrossim, reconheceu-se que a Administração Pública não poderia ficar total-mente isenta de responsabilidade, de modo a admitir-se que, em caso de omissão do poder público em fiscalizar o fiel cumprimento do contrato pelo contratado, seria cabível responsabilizá-la por culpa in vigilando. Os demais Ministros seguiram o entendimento cristalizado a partir da divergência suscitada pelo Ministro Marco Aurélio e acolheram as alegações colacionadas pelo mesmo e pela Ministra Cármen Lúcia. Apenas o Ministro Carlos Ayres Britto votou no sentido da inconstitucionali-dade do art. 71, § 1o em casos de terceirizações da Administração. Restou vencido, contudo, este Ministro.

Diante do resultado do julgamento da ADC no 16, que pelas regras constitucio-nais e legais tem eficácia erga omnes e força vinculante, o TST se viu obrigado a ade-quar o seu entendimento sumulado aos novos parâmetros impostos pelo STF. Com efeito, através da Resolução no 174/2011, publicada no DEJT em 27, 30, e 31 de maio de 2011, o TST alterou a Súmula 331, acrescentando dois incisos ao seu texto:

SÚMULA No 331, DO TST. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGA-LIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011.(...)

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V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respon-dem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.o 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obri-gações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obri-gações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral. (BRASIL, 2011, c)

Portanto, a jornada de divergências doutrinárias, jurisprudenciais e legais, em tese, chegou ao fim, com a aparente pacificação da jurisprudência dos dois prin-cipais tribunais aptos a julgar a questão: o Supremo Tribunal Federal - através do julgamento da ADC no 16 - e o Tribunal Superior do Trabalho, com a nova redação dada à Súmula 331. É certo que, agora, travar-se-ão batalhas relevantes no seio do Judiciário, no sentido de se apontar (e, principalmente, provar) quando será possí-vel responsabilizar a Administração Pública pelo inadimplemento das obrigações trabalhistas da prestadora de serviços, ao se demonstrar que aquela falhou no seu dever de fiscalizar, incidindo em culpa in vigilando e, portanto, devendo ser respon-sabilizada subjetivamente.

Com o passar do tempo, é possível que surjam alguns parâmetros e padrões aptos a delinear os contornos daquilo que representaria causas de culpabilidade dos entes estatais. Mas a riqueza do ordenamento jurídico e, sobretudo, a complexidade das relações interpessoais, ainda que inseridas no bojo de relações contratuais, sempre trarão novos desafios para o Judiciário, que deverá dar soluções novas e criativas a es-sas novas situações, sem deixar, contudo, de atentar para a jurisprudência posta. A ver.

5 Conclusão

Aproximamo-nos do fim deste trabalho. No primeiro tópico, fizemos um apanha-do geral sobre a terceirização e tentamos descrever, ainda que sucintamente, alguns de seus elementos principais. No segundo, tratamos de alguns elementos relativos à terceirização pela Administração Pública e, no quarto, estudamos a decisão profe-rida na ADC no 16 e as consequências dela decorrentes.

Vimos que a controvérsia judicial que se desenvolveu sobre essa disputa – prin-cipalmente no seio dos Tribunais Regionais do Trabalho que, instintivamente, aplica-vam majoritariamente a Súmula 331 do TST – gerou, perante o STF, o ajuizamento

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da Ação Declaratória de Constitucionalidade no 16. Nessa, o governador do Distrito Federal pretendia ver consolidada a constitucionalidade do art. 71, § 1o da Lei no 8.666/93, com a finalidade de sepultar de vez qualquer controvérsia sobre o tema. O STF, nesse julgamento, consignou ser constitucional o artigo de lei, mas estabeleceu alguns temperamentos quanto à sua interpretação.

Com efeito, não consagrou a tese da irresponsabilidade, mas, outrossim, infor-mou que a responsabilização da Administração Pública pelas dívidas trabalhistas da empresa terceirizante dependeria da comprovação de culpa, notadamente da omissão administrativa em fiscalizar o fiel cumprimento do contrato pela contrata-da – inclusive o adimplemento dos encargos devidos – o que caracterizaria culpa in vigilando da Administração e consequente responsabilidade subjetiva. Diante desse novo quadro, o TST adequou sua jurisprudência às determinações do STF contidas na ADC no 16 – que, como visto, tem força vinculante e eficácia erga omnes – e mo-dificou sua Súmula 331, acrescentando-lhe dois incisos que vieram a dar coerência ao entendimento consolidado dessas duas importantes cortes.

Em nossa opinião, de fato caminhou bem o Supremo Tribunal Federal ao paci-ficar a controvérsia dessa forma. Há vários fatores que nos levam a afirmar isso. Em primeiro lugar, rechaça-se a ideia de que a hipótese é de responsabilidade objetiva. A uma porque, conforme já alertamos linhas atrás, o comando expresso na Carta Magna, art. 37, § 6o, se volta para os danos causados a “terceiros” – o que a doutrina majoritária interpretou como responsabilidade extracontratual. A duas, o texto fala em dano causado por um “agente” da Administração e, no nosso caso, não foi um agente público quem causou o dano - foi a contratada, empresa privada. E a três, ademais, a nosso ver, tal situação representa um claro inadimplemento contratu-al, apto a gerar, por conseguinte, apenas responsabilidade contratual – a qual está atrelada à perquirição subjetiva de responsabilidade, ou seja, é necessário saber se houve culpa na consumação do ato danoso. Neste diapasão, são lapidares e conclu-sivas as palavras de Sérgio Cavalieri Filho (2004, p. 246):

“Terceiro” indica alguém estranho à Administração Pública, alguém com o qual o Estado não tem vínculo jurídico preexistente. Logo, o § 6o do art. 37 da Constituição só se aplica à responsabilidade extracontratual do Estado. Não incide nos casos de responsabilidade contratual, porque aquele que contrata com o Estado não é terceiro; já mantém vínculo jurídico com a Administração, pelo quê, ocorrendo o inadimplemento estatal, a respon-sabilidade deverá ser apurada com base nas regras que regem o contrato administrativo. (Grifos no original)

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Logo, se o Estado não foi o causador do dano, e se o que se propõe é que ele, ainda assim, responda, isso somente é possível porque há uma relação contratual, um contrato administrativo subjacente à lide, o substrato que dá sustentação ao pedido de responsabilidade subsidiária. Portanto, de novo encaramos uma relação contratual a oxigenar todo o debate envolvendo a questão da responsabilidade, o que leva essa a ser, inevitavelmente, subjetiva.

O Supremo afirmou que, havendo omissão por parte do ente público no que tange aos deveres de fiscalização (culpa in vigilando), será possível aplicar a Súmu-la 331 e responsabilizá-lo subsidiariamente. Veja-se: a doutrina administrativista consolidou entendimento de que as omissões da Administração Pública acarretam, essencialmente, responsabilidade subjetiva. Tal proceder deita raízes na doutrina francesa – capitaneada por Paul Duez – da falta do serviço (ou da culpa anônima), segundo salienta Carvalho Filho (2008, p. 495). A omissão estatal apta a gerar-lhe responsabilidade há de estar atrelada a um dever legal de impedir a ocorrência do dano, pois não se pode admitir que toda e qualquer conduta omissiva retrate um desleixo do Estado. Nesse diapasão, a responsabilidade por omissão se concretizará, apenas, se estiverem presentes os elementos que caracterizam a culpa. Nesse sen-tido, afirma Carvalho Filho (2008, p. 509):

Todavia, quando a conduta estatal for omissiva, será preciso distinguir se a omissão constitui, ou não, fato gerador da responsabilidade civil do Estado. Nem toda conduta omissiva retrata um desleixo do Estado em cumprir um dever legal; se assim for, não se configurará a responsabilidade estatal. Somente quando o Estado se omitir diante do dever legal de impedir a ocorrência do dano é que será responsável civilmente e obrigado a reparar os prejuízos. A conseqüência, dessa maneira, reside em que a responsabili-dade civil do Estado, no caso de conduta omissiva, só se desenhará quando presentes estiverem os elementos que caracterizam a culpa. A culpa origina--se, na espécie, do descumprimento do dever legal, atribuído ao Poder Pú-blico, de impedir a consumação do dano. Resulta, por conseguinte, que, nas omissões estatais, a teoria da responsabilidade objetiva não tem perfeita aplicabilidade, como ocorre nas condutas comissivas. (Grifos no original)

Superada a questão da responsabilidade objetiva, há, ainda, outro ponto impor-tante. Numa situação como essa, não podemos aceitar a alegação de que a Adminis-tração Pública esteja investida do seu ius imperii, no sentido de se tornar intangível, sob a alegação de proteção a um suposto interesse público superior. A nosso ver, está a realizar mero ato de gestão, e, nesse contexto, encontra-se em pé de igualda-de com o particular.

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Assim, torna-se possível reconhecer que, tendo o particular responsabilidade primária, é mais do que razoável admitirmos que o poder público assuma respon-sabilidade secundária – no caso, subsidiária – pelo adimplemento dos encargos as-sumidos pela prestadora, notadamente quando se verifica que falhou no seu mis-ter fiscalizatório. Veja-se que, embora o poder de fiscalizar seja considerado uma cláusula exorbitante, uma vantagem para a Administração, tal prerrogativa deve ser encarada muito mais como um poder-dever, segundo Marçal Justen Filho (2010, p. 738 e 739), apta a ser aplicável também em casos como o presente, de uma relação contratual paritária.

É nesse contexto que, como visto, há acórdãos do TCU que sugerem métodos próprios de fiscalização pela Administração, tanto na fase de licitação, quanto pos-teriormente, durante a execução do contrato, com vistas a delimitar um mínimo essencial fiscalizatório que, não atendido, gerará para o poder público responsabili-dade pelas falhas decorrentes dessa falta.

Com isso, deslinda-se mais um ponto relativo à controvérsia instaurada: é poder--dever da Administração fiscalizar o cumprimento dos contratos que firma com os par-ticulares, cabendo-lhe adotar as medidas necessárias para que realize da maneira mais eficiente e abrangente possível essa fiscalização. Caso seja insuficiente, e irregularida-des venham a ocorrer (como o não pagamento das verbas trabalhistas pela contratada aos seus empregados), poderá e deverá ser responsabilizado o ente contratante.

Outro argumento contrário à responsabilização do poder público que podemos rechaçar, e que não macula o acerto na decisão final do STF é o seguinte: muitos afirmam que não se pode responsabilizar a Administração Pública porque o contrato administrativo é firmado após hígido, complexo e criterioso processo licitatório, no qual se escolheu o melhor contratante, aquele que atendeu a contento todos os requisitos objetivos e subjetivos colocados na mesa durante o certame. Portanto, não se pode falar em culpa in eligendo da Administração. Bom, pode até ser. Mas culpa in eligendo não se confunde com culpa in vigilando, nem está atrelada a esta indissociavelmente.

Culpa in eligendo ocorre quando há um erro de origem, quando a culpa decorre de uma opção inicial do sujeito causador do dano, que por ter sido mal planejada ou mal escolhida, acaba por gerar o evento danoso. Já a culpa in vigilando aparece num momento posterior ao da escolha, quando a ela se liga. Na essência, caracteriza -se pela falta de atenção ou cuidado com o procedimento de outrem que estava sob a guarda ou responsabilidade do agente; não há necessariamente uma má “es-

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colha” do agente (CAVALIERI FILHO, p. 57). Portanto, a partir dessas simples noções, percebe-se que não existe um elo inquebrantável entre as duas dimensões de culpa.

Assim sendo, reforçamos o que foi dito: somos da opinião de que, no caso em pauta, a responsabilização estatal não decorre de culpa in eligendo, mas sim de cul-pa in vigilando, apesar de reconhecermos que a afirmação de que o certame licitató-rio afasta a primeira categoria e, por conseguinte, a responsabilidade, é uma falácia. Mantendo-nos na teoria, sem adentrar no mérito quanto à higidez dos procedimen-tos licitatórios que, na prática, pode ser facilmente contestada, percebemos que, ao licitar, o ente público estabelece os critérios (a partir dos parâmetros mínimos que a Lei no 8.666/93 elenca) que entende necessários e aptos a selecionar o melhor can-didato para assumir o contrato proposto. Portanto, criticar os parâmetros de seleção não é suficiente para firmar que o certame não foi adequado.

E veja-se que não estamos afirmando que não é possível responsabilizar, em hipótese alguma, a Administração Pública em virtude de ter agido com culpa in eli-gendo; isso é algo que até pode ser aferido no caso concreto. Com efeito, ao contrá-rio, a exclusão dessa modalidade de culpa pela realização da licitação não permite dizermos que não haverá responsabilidade alguma, já que sempre será possível que o Estado responda por culpa in vigilando; e, ao nosso entender, é esta que, efetiva-mente, determina se o Estado irá, ou não, arcar com as dívidas trabalhistas inadim-plidas pela prestadora de serviços.

Há quem diga, contudo, que a assunção, pelo Estado, das dívidas trabalhistas originariamente devidas pela prestadora de serviços acarreta para o poder público uma despesa extraordinária e imprevista. Com a máxima vênia perante aqueles que defendem tal posição, parece-nos que esta situação de imprevisão não ocorre na prática. A responsabilização do ente estatal decorre, notadamente, de uma prévia condenação do mesmo em um processo judicial, cuja competência para julgamento é da Justiça do Trabalho, no qual, nos termos da Súmula 331, há de figurar o res-ponsável subsidiário como reclamado na petição inicial, bem como há de constar no título executivo judicial.

Em primeiro lugar, nota-se que a Administração Pública, ao se tornar parte no processo judicial em que se discute o pagamento das verbas trabalhistas inadimpli-das pela empresa prestadora de serviços, tem em mãos todas as prerrogativas pro-cessuais devidas, bem como assegurado o direito à ampla defesa e ao contraditório. Por conseguinte, até que seja dado o veredicto final no bojo do processo, há muito a situação litigiosa terá deixado de ser algo novo ou surpreendente.

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Não bastasse isso, há outra constatação. Dentre as várias prerrogativas proces-suais de que goza a Administração Pública, uma delas é o pagamento das suas dívi-das judiciais através do regime dos precatórios – regulado pelo art. 100 da CF/88, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional no 62, de 09 de de-zembro de 2009. Ou seja, uma vez condenado, o ente público devedor goza de um regime especial de execução, que tem por escopo assegurar-lhe tempo hábil para, justamente, planejar-se financeiramente e poder arcar com as novas dívidas. Logo, não se pode, absolutamente, dizer que, nesse processo todo, a Administração Pública foi surpreendida, que não teve chance de se programar adequadamente.

A verdade aponta para caminho diametralmente oposto. Não apenas o ente devedor terá a chance de se defender durante a fase de conhecimento e durante a de execução, ao longo de um processo judicial que, vergonhosamente, dura, não raro, dez, quinze, vinte anos (e às vezes mais), como, ao cabo deste, ainda detém a prerrogativa de pagar através do anacrônico e injusto regime de precatórios – que pela EC no 62/09 ganhou novos ares, mas pouco mudou - um sistema novo de parce-lamento das dívidas de entes em atraso (sim, porque mesmo com todas as regalias ainda há atraso no pagamento!) e um novo sistema de preferências (porque cada vez mais pessoas morriam sem ver a cor do dinheiro; em outras palavras, não lhes era permitido gozar do seu legítimo direito reconhecido judicialmente).

Se o planejamento do ente público, apesar de todas as benesses que lhe são concedidas, é falho, essa é outra história. O que se revela inconteste é o fato de não haver surpresa alguma para ele no que tange à sua obrigação de pagar! Portanto, cai por terra a derradeira alegação em favor da irresponsabilidade estatal, na questão das dívidas trabalhistas deixadas pela empresa prestadora dos serviços, as quais a Administração Pública pode vir a assumir subsidiariamente.

Com isso, chegamos ao fim do nosso estudo. Embora concordemos com a deci-são tomada pelo STF no julgamento da ADC no 16, mais do que repetir aquilo que ficou estabelecido, procuramos fazer uma análise mais detida sobre as principais alegações cabíveis, bem como rebater alguns paradigmas que consolidaram a ideia de irresponsabilidade estatal no âmbito das contratações da Administração Pública e, mais especificamente, no caso das terceirizações no serviço público. No entanto, toda essa construção jurisprudencial em torno do tema, abrindo margem a que o ente público possa ser responsabilizado, revela uma tendência crescente no direito brasileiro, pouco comentada ainda, mas que, realmente, ganha força: a quebra do paradigma da prevalência do interesse público sobre o particular.

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De fato, alguns doutrinadores vêm estabelecendo algumas considerações so-bre o ponto e, igualmente, a jurisprudência tem apontado, em certos casos, nesse sentido. Endossamos a tese e entendemos que o interesse público não pode ser nunca perdido de vista pelo administrador no trato da coisa pública. Contudo, pa-rece-nos não ser mais possível admitir que o interesse público passe como um rolo compressor sobre o interesse privado, desconhecendo direitos legítimos (e, por que não, fundamentais) dos particulares, que acabam sobrepujados em nome desse bem maior. Com efeito, há de se pensar, diante desse conflito de interesses, cada vez mais casuisticamente, pois entendemos ser possível vislumbrarmos situações onde não será possível desconhecer direitos e interesses privados, como se aquela prevalên-cia fosse algo natural e automático.

Há de se ponderar. Por vezes, ter-se-á, sim, de mitigar a aplicação irrestrita do princípio da prevalência do interesse público, pois, do contrário, chegar-se-á a re-sultados injustos e, afinal, contraditórios, pois haverá violações claras, decorrentes dessa postura, a outros princípios constitucionais, tanto protetores de direitos fun-damentais quanto princípios da própria Administração Pública, como moralidade e eficiência. E nos parece que o caso das terceirizações no serviço público caracteriza uma dessas situações. Ou seja, deixar o empregado - que trabalhou, que contribuiu para o bom funcionamento da máquina administrativa, que agiu com presteza e boa-fé, e de cujos serviços a Administração Pública se beneficiou – abandonado a sua própria sorte, no momento que lhe é mais importante, qual seja, de receber a contraprestação pelo seu trabalho, revela-se injusto e cruel.

Não se pode, por óbvio, estimular o mau empregador, dar-lhe a segurança ne-cessária para prosseguir nas suas más práticas, assegurando-lhe que sempre haverá a Administração Pública por trás, dando-lhe respaldo caso venha a falhar; não, não é isso que se defende. Mas existem outros meios de se coibir tal afronta: ampliar o âmbito de fiscalização, estabelecer critérios mais rígidos de contratação, de proce-dimento licitatório, nem que para isso seja necessário modificar a legislação. O que realmente não pode permanecer é essa situação vexatória pela qual passa o traba-lhador na hora de receber seus direitos trabalhistas.

Não chegaremos a dizer que sempre o trabalhador poderá ser considerado um hipossuficiente – seria inocência pensar assim; da mesma forma, não vamos assumir a pecha de que sempre o mesmo estará de boa-fé. Entretanto, devemos admitir, sim, que a Administração Pública, ao terceirizar, possa ser responsabilizada; que a Administração Pública, ao terceirizar, deva agir com diligência e cautela; que se

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possa reconhecer, caso fique demonstrado após escorreito processo judicial, que a Administração Pública incidiu em culpa in vigilando em relação à empresa contra-tada, e que, por isso, deverá responder subsidiariamente pelas dívidas trabalhistas deixadas por ela.

Somos da opinião de que, ao fazê-lo, estaremos caminhando bem. Estaremos caminhando no sentido da justiça, da impessoalidade, da segurança jurídica. Esta-remos homenageando diversos princípios constitucionais e assegurando a quem merece os seus mais basilares direitos fundamentais. Portanto, essa é a conclusão a que chegamos: a Administração Pública pode ser responsável subsidiária pelos encargos trabalhistas deixados pela empresa prestadora de serviços. Tal respon-sabilidade não é objetiva, mas subjetiva, contratual - aferível no caso concreto, em processo judicial no qual se assegure a ampla defesa e o contraditório, bem como o direito de regresso ao poder público em face do responsável original. Essa é a medida que, ao nosso ver, melhor compatibiliza e harmoniza direito do trabalho, direito administrativo e direito constitucional. E que a decisão contida na ADC no 16 sirva como exemplo para diversas outras situações que clamam por uma revisão do paradigma da prevalência absoluta do interesse público sobre o particular.

6 Referências

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Terceirização no serviço público e a responsabilidade da Administração

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10 Meios de prova de embriaguez alcoólica

do condutor de veículo automotor1

MARGARETH VETIS ZAGANELLI

Doutora em Direito (UFMG). Mestre em Educação (UFES). Professora de Direito

(UFES). Vice-diretora do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (UFES).

ROBLEDO MORAES PERES DE ALMEIDA

Pós-graduado em Gestão, Educação e Segurança de Trânsito (UCAM/RJ).

Professor da Polícia Militar do Espírito Santo (PMES).

Oficial da Polícia Militar do Espírito Santo (PMES).

Artigo recebido em 05/01/2011 e aprovado em 13/09/2012.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 As recentes alterações legislativas sobre a embriaguez na condução de veículo automotor 3 Recusa do condutor em se submeter aos testes de alcoolemia 4 Proposta de lege ferenda de alteração do Código Trânsito Brasileiro 5 Conclusão 6 Referências.

RESUMO: Analisa os meios de prova de embriaguez alcoólica previstos no Código de Trânsito Brasileiro, por intermédio das recentes alterações legislativas, bem como as atuais decisões dos Tribunais Superiores sobre a matéria, ressaltando o direito de não produzir prova contra si, a supremacia do interesse público e a polêmica acerca da obrigatoriedade do condutor de veículo automotor a se submeter a exames para comprovação da embriaguez alcoólica.

PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalidade Embriaguez Legalidade Meios de prova Trânsito.

1 O presente artigo foi submetido à Revista Jurídica da Presidência antes da edição da Lei no 12.760, de 20 de dezembro de 2012.

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Meios de prova de embriaguez alcoólica do condutor de veículo automotor

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Alcoholic evidence on automotive vehicle drivers

CONTENTS: 1 Introduction 2 Recent legislative modifications on alcoholic influence on automo-tive vehicle conductors 3 Driver’s refuse to submit himself to alcohol content tests and exams 4 Lege ferenda proposition to modify Brazilian Traffic Code 5 Conclusion 6 References.

ABSTRACT: This article analyzes the current situation of alcoholic influence evi-dence in accordance with the Brazilian Traffic Code considering recent legislative changes and decisions of Superior Courts. It emphasizes the right to not create incri-minating evidence, the supremacy of public interest and the controversy concerning the obligation to submit drivers to alcohol content tests and exams.

KEYWORDS: Constitutional review Alcohol influence Conformity to law Evidence Traffic.

Los medios de prueba del crimen de conducción en estado de embriaguez

CONTENIDO: 1 Introducción 2 Los recientes cambios legislativos en Brasil respecto el crimen de conducción en estado embriaguez 3 La recusa del conductor de someterse a la prueba de alcoholemia 4 La propuesta de lege ferenda para cambiar el Código de Transito Brasileño 5 Conclusión 6 Referencias.

RESUMEN: En este artículo se analizan los medios de prueba previstos en el Código Brasileño de Transito para demostrar el estado de embriaguez de conductores. Se examinarán los recientes cambios hechos en esta ley y las decisiones de los Tribu-nales Superiores respecto el tema. Además, se analizarán el derecho a no declarar contra sí mismo, el concepto de supremacía del interés público y la polémica cerca de la obligación de someterse a la prueba de alcoholemia.

PALABRAS CLAVE: Constitucionalidad Embriaguez Medios de prueba Transito.

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1 Introdução

No Brasil, a cada ano, ocorrem milhares de acidentes de trânsito, muitos dos quais causados por condutores de veículos em estado de embria-

guez, o que acarreta a perda de milhares de vidas humanas, bem como inúmeras vítimas com sequelas permanentes. Com o objetivo de reduzir o número de aci-dentes e de vítimas, o Estado brasileiro tem alterado constantemente o Código de Trânsito, no sentido de agravar a penalização dos condutores que associam a ingestão de bebidas alcoólicas à direção de veículos automotores. As recentes edições das Leis no 11.275, de 7 de fevereiro de 2006, e no 11.705, de 19 de junho de 2008, constituem tentativas de reduzir tais estatísticas, por meio de um maior rigor punitivo nas hipóteses de acidentes de trânsito provocados por condutores embriagados.

O presente trabalho busca analisar os atuais meios de prova de embriaguez alcoólica, através do estudo da legislação, ressaltando as alterações provocadas pelas Leis no 11.275/2006 e no 11.705/2008. Dessa forma, realça como o Código de Trânsito Brasileiro trata a embriaguez de condutores nos aspectos administra-tivo e penal. O artigo destaca as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, bem como enfoca o direito de não produzir prova contra si, a supremacia do interesse público e a obrigatoriedade ou não do condu-tor se submeter a exames para comprovação da embriaguez alcoólica. Por último, propõe um procedimento a ser adotado pelo agente da autoridade de trânsito diante da recusa do condutor a ser submetido aos testes de alcoolemia, como também propõe alterações no Código de Trânsito Brasileiro.

2 As recentes alterações legislativas sobre a embriaguez na condução de

veículo automotor

Para uma melhor compreensão, será feita a análise da infração administrativa de dirigir sob a influência de álcool de forma separada do crime de trânsito de dirigir embriagado um veículo automotor.

Isso, em decorrência do legislador pátrio ter optado por tratar a condução de veículo automotor após a ingestão de bebida alcoólica sob dois enfoques: infração administrativa e delito penal.

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Meios de prova de embriaguez alcoólica do condutor de veículo automotor

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2.1 Dirigir sob a influência de álcool como infração administrativa

A atual redação do art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) estabelece como infração administrativa de trânsito a conduta de dirigir veículo sob a influên-cia de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependên-cia e classifica a infração como gravíssima. Além disso, impõe a penalidade de multa (cinco vezes) e a suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses, associado ao recolhimento do documento de habilitação e à medida administrativa de retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado 2.

Contudo, para se compreender a redação atual do art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro, é necessária a verificação do texto original do citado dispositivo. Assim, a Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997, estabelecia no art. 165 que, para a consta-tação da infração de trânsito (administrativa) de embriaguez alcoólica e a lavratura do respectivo auto de infração de trânsito, era preciso que o condutor estivesse com uma concentração de álcool superior a seis decigramas por litro de sangue3.

Em 07 de fevereiro de 2006, a Lei no 11.275/06 entrou em vigor e alterou vá-rios artigos do CTB referentes à embriaguez ao volante. Em especial, retirou do art. 165 a parte que determinava o nível mínimo de álcool no sangue para a configu-ração da embriaguez alcoólica, instituindo como infração de trânsito a conduta de dirigir sob a influência de álcool no sangue ou de qualquer substância entorpecente ou que cause dependência física ou psíquica4.

Entretanto, o fato de a Lei no 11.275/06 ter retirado do art. 165 a parte concer-nente ao nível mínimo de álcool no sangue, não implicava que qualquer nível de álcool no sangue fosse suficiente para o enquadramento na infração ali disposta,

2 Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Infração - gravíssima;

Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses; Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento

do documento de habilitação. Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277. (BRASIL, 2008a)

3 Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool, em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica:

Infração – gravíssima; [...]. (BRASIL, 2006)

4 Art. 165 - Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica: (Redação dada pela Lei no 11.275, de 2006)

Infração - gravíssima; [...]. (BRASIL, 2006)

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uma vez que o art. 276 do CTB estipulava a concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue como a que impedia a condução de veículo automotor5.

A Lei no 11.275/06 acrescentou ainda o parágrafo único ao art. 165, estabelecendo que a embriaguez poderia ser apurada também na forma do art. 277 do CTB.

Desse modo, a Lei no 11.275/06 também alterou o caput do art. 277 do CTB e instituiu que todo condutor com suspeita de dirigir sob a influência de álcool, ou envolvido em acidente de trânsito, deveria ser submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou qualquer outro exame que, por meios técnicos ou cien-tíficos, em aparelhos homologados pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), permitam certificar seu estado6.

Além disso, o parágrafo 2o foi acrescentado ao art. 277 com o objetivo de inibir a recusa do condutor à realização dos testes de alcoolemia, dos exames e da perícia previstos no caput, estabelecendo que, nesses casos, a infração poderia ser caracte-rizada por outras provas em direito admitidas, como a prova testemunhal.

Outrossim, deve-se mencionar que o art. 269 do CTB, ainda em vigor, determina que a autoridade de trânsito e seus agentes estão legitimados, entre outras atividades, a realizar o teste de alcoolemia em condutor sob suspeita de ter ingerido bebida alcoólica7.

Ocorre que as modificações ao CTB, por meio da Lei no 11.275/06, não redu-ziram o número de acidentes de trânsito e de mortes provocados por condutores alcoolizados. Dessa feita, o Estado brasileiro editou a Lei no 11.705, de 19 de junho de 2008, conhecida como “Lei Seca”, que alterou vários artigos do CTB concernentes

5 Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277. Art. 276. A concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue comprova que o condutor

se acha impedido de dirigir veículo automotor. [...]. (BRASIL, 2006)

6 Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. (Redação dada pela Lei no 11.275, de 2006) [...]

§ 2o No caso de recusa do condutor à realização dos testes, exames e da perícia previstos no caput deste artigo, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, re-sultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor. (Incluído pela Lei no 11.275, de 2006). (BRASIL, 2006)

7 Art. 269. A autoridade de trânsito ou seus agentes, na esfera das competências estabelecidas neste Código e dentro de sua circunscrição, deverá adotar as seguintes medidas administrativas: [...]

IX - realização de teste de dosagem de alcoolemia ou perícia de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. [...] (BRASIL, 2006)

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Meios de prova de embriaguez alcoólica do condutor de veículo automotor

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à embriaguez alcoólica na condução de veículo automotor, instituindo a chamada “tolerância zero” para a embriaguez ao volante e impondo penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool8.

O referido diploma legal alterou a redação do art. 276 do CTB, retirando a exi-gência de concentração mínima de seis decigramas de álcool por litro de sangue para a configuração da embriaguez alcoólica, passando qualquer concentração a ser suficiente para a configuração da infração tipificada no art. 1659.

Especificamente em relação ao art. 165, a Lei no 11.705/08 manteve a alteração feita pela Lei no 11.275/06, que havia retirado a exigência de nível mínimo de álcool no sangue para a configuração da embriaguez alcoólica e tipificado como infração apenas a conduta de dirigir sob a influência de álcool, não importando o teor10.

Em relação ao aspecto administrativo da embriaguez alcoólica, a Lei no 11.705/08 também modificou o art. 277 do CTB, alterando a redação do § 2o e incluindo o § 3o11.

Assim, a nova redação do § 2o do art. 277 estipulou que a embriaguez poderá ser caracterizada por outras provas em direito admitidas, como a prova testemunhal, ates-tando os notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor que o indivíduo apresentar.

O acréscimo do § 3o ao art. 277 possibilitou a aplicação das penalidades e das medidas administrativas previstas no art. 165 (lavratura de auto de infração de trân-sito, retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação) para os casos nos quais o condutor se negar a ser submetido a qualquer dos testes necessários para a comprovação da embriaguez alcoólica previstos na legislação.

É importante ressaltar que o § 3o do art. 277 dispõe que deverão ser apli-cadas as penalidades e as medidas administrativas previstas no art. 165 para o sujeito que se recusar a se submeter a qualquer dos testes de alcoolemia.

8 Art. 1o Esta Lei altera dispositivos da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, com a finalidade de estabelecer alcoolemia 0 (zero) e de impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool [...]. (BRASIL, 2008a)

9 Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código. (BRASIL, 2008a) [...]

10 Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que deter-mine dependência: [...]

Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277. (BRASIL, 2008a)

11 Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. (BRASIL, 2006)

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Margareth Vetis Zaganelli - Robledo Moraes Peres de Almeida789

Aqui, o vernáculo “qualquer” é muito importante, pois determina a lavratura do auto de infração pelo agente da autoridade de trânsito, caso o cidadão se negue a realizar o teste do “etilômetro”, mesmo que o referido condutor tenha o desejo de ser subme-tido a exame de sangue ou clínico no Departamento Médico Legal. Tal possibilidade é totalmente plausível e legal, já que atende ao princípio da legalidade e está am-parada no poder de polícia estatal.

Assim, diante da recusa do indivíduo envolvido em acidente de trânsito ou alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir embriagado, de realizar os testes de alcoolemia, o Estado pode adotar as penalidades e as medidas adminis-trativas estabelecidas no art. 165 do CTB, qual seja, lavratura do auto de infração, retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação, sem ofensa ao princípio da legalidade, já que o § 3o do art. 277 do CTB determina tal procedimento, passando inclusive a ser ato admi-nistrativo vinculado.

Dessa feita, a análise dos dispositivos supramencionados deixa clara a in-tenção do legislador de capacitar a Administração Pública com meios efetivos de combate à conduta anti-social de dirigir veículo automotor estando alcoolizado, possibilitando que o agente da autoridade de trânsito, em caso de recusa do condutor em se submeter aos testes de alcoolemia, aos exames e à perícia, faça a lavratura do respectivo auto de infração de trânsito com base nos notórios sinais resultantes do consumo de álcool observados pelo agente, o qual deverá relatar tais sinais em documento próprio.

2.2 Crime de trânsito de conduzir veículo automotor estando embriagado

A redação original do art. 306 do CTB determinava como crime de trânsito a condução de veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, exigindo exposição a dano potencial da incolu-midade de outrem12.

Exigia-se para a configuração do delito que o condutor realizasse um ato de condução anormal, exatamente por ter ingerido bebida alcoólica ou de efeitos se-melhantes, colocando em risco a vida de outrem. Não era suficiente a prova de que

12 Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. (BRASIL, 1997)

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o indivíduo dirigia o veículo com um teor mínimo de álcool no sangue. Mesmo que ele se submetesse ao teste do “etilômetro” e fosse constatada a ingestão de bebida alcoólica, não estaria configurado o crime do art. 306 do CTB caso o cidadão esti-vesse dirigindo de forma normal, respeitando as regras de trânsito e sem colocar em risco a incolumidade de outrem, pois, em tese, ele não estaria sob a influência de álcool, mesmo tendo ingerido bebida alcoólica. O agente da autoridade de trânsito poderia apenas tomar as medidas administrativas pertinentes, como a lavratura de auto de infração de trânsito, a retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e o recolhimento do documento de habilitação.

Assim, o CTB não determinava uma concentração mínima de álcool por litro de sangue para a configuração do delito. A simples constatação de que o condutor estivesse dirigindo perigosamente e sob a influência de qualquer quantidade de ál-cool era suficiente para configuração do crime de trânsito de expor a dano potencial a incolumidade de outrem, tendo a coletividade por sujeito passivo. Não se exigia prova de que algum objeto jurídico individual havia sofrido risco de dano. Bastava a probabilidade de dano, a possibilidade de risco à coletividade ou a existência de dano potencial, que já reduziria a segurança no trânsito.

Portanto, era possível a comprovação da embriaguez alcoólica por meio de pro-va testemunhal, pois o art. 167 do Código de Processo Penal (CPP) determina que a prova testemunhal pode suprir a falta de exame pericial13.

Desse modo, o crime previsto no art. 306 do CTB podia ser comprovado por meio de testemunha, a qual relatava os notórios sinais de embriaguez que o condu-tor apresentava, tais como hálito etílico, olhos vermelhos, fala enrolada e falta de coordenação de motora.

Ocorre que a Lei no 11.705, de 19 de junho de 2008, alterou a redação do caput do art. 306 do CTB e instituiu como crime a condução de veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine

13 Art. 167 do CPP: “Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.” (BRASIL, 1941)

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dependência, prevendo pena de detenção de 6 meses a 3 anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor14.

Dessa forma, o ordenamento jurídico passou a exigir um requisito totalmente objetivo para a configuração do crime em tela, isto é, a condução de veículo auto-motor, na via pública, com uma concentração mínima de álcool por litro de sangue (igual ou superior a 6 decigramas), sem a necessidade de comprovar que o indivíduo dirigia “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”, condição subjetiva exi-gida pela redação anterior do art. 306 do CTB.

Assim sendo, não é mais imperativa a prova de exposição de terceiros a risco de dano potencial, bastando a produção da prova material e objetiva de que o con-dutor estava com uma quantidade de álcool no sangue superior à permitida por lei, independente da forma como dirigia o veículo. Nesse aspecto, o delito passou a ser de perigo abstrato, no qual a periculosidade é presumida pela lei.

Portanto, atualmente não basta a mera constatação da “influência de álcool”, nem mesmo a comprovação da embriaguez do condutor por outros meios de prova ou até mesmo exames clínicos, realizados por instituto médico legal oficial (confor-me previsto no art. 277 do CTB). Isso porque em nenhum desses procedimentos é possível a aferição objetiva do grau de concentração de álcool no sangue, requisito imprescindível para a caracterização do crime na atual conformação legal.

Para se comprovar a infração ao artigo 306 do CTB, será indispensável a cons-tatação objetiva de uma concentração igual ou superior a 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue. Para tal comprovação, a realização do teste por aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro) ou de exame laboratorial químico-toxicológico de sangue torna-se prova insubstituível.

Desse modo, o uso de prova testemunhal não será possível, em virtude da necessidade de comprovação real e concreta de um requisito totalmente objetivo exigido pela lei.

Corroborando tal entendimento, a 6a Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do habeas corpus (HC) 166.377 (BRASIL, 2010a), de 10 de junho

14 Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei no 11.705, de 2008)

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alco-olemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo. (Incluído pela Lei no 11.705, de 2008). (BRASIL, 2008a)

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de 2010, entendeu que para a configuração do crime do art. 306 do CTB, antes da Lei no 11.705/08, bastava que o agente, sob a influência de álcool, expusesse a dano potencial a incolumidade de outrem. No entanto, com a nova redação do art. 306 dada pela Lei no 11.705/08, inseriu-se a quantidade mínima exigível por lei, delimitando-se o meio de prova admissível, ou seja, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue, o que não se pode pre-sumir. Assim, para comprovar a embriaguez, objetivamente delimitada pelo art. 306 do CTB, é indispensável a prova técnica consubstanciada no teste do bafômetro ou no exame de sangue15.

Nesse mesmo sentido, a 6a Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julga-mento recente do Recurso Especial 1.113.360/DF (BRASIL, 2010b), de 28 de setem-bro de 2010, asseverou que antes da Lei no 11.705/08 apenas a exposição a dano potencial à incolumidade de outrem era suficiente para a configuração do delito do art. 306 do CTB. Contudo, com o surgimento da “Lei Seca”, introduziu-se no tipo penal uma quantidade legal mínima de álcool exigível, dispensando-se a necessi-dade de exposição a dano potencial. Assim, o legislador delimitou o meio de prova admissível, com a figura típica se perfazendo somente com a quantificação objetiva da concentração de álcool mínima no organismo, não sendo possível presumir a embriaguez, com a dosagem etílica passando a integrar o tipo penal. Logo, não cabe ao magistrado a correção das falhas estruturais do processo legislativo a fim de conferir efetividade e eficácia à norma jurídica, uma vez que o direito penal rege-se pela estrita legalidade e tipicidade. A 6a Turma do STJ concluiu que, atualmente, para

15 EMENTA: HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. AUSÊNCIA DE EXAME DE ALCOOLEMIA. AFERIÇÃO DA DOSAGEM QUE DEVE SER SUPERIOR A 6 (SEIS) DECIGRAMAS. NECESSIDADE. ELEMENTAR DO TIPO. 1. Antes da edição da Lei no 11.705/08 bastava, para a configuração do delito de embriaguez ao volante, que o agente, sob a influência de álcool, expusesse a dano potencial a incolumidade de outrem. 2. Entretanto, com o advento da referida Lei, inseriu-se a quantidade mínima exigível e excluiu-se a necessidade de exposição de dano potencial, delimitando-se o meio de prova admissível, ou seja, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue o que não se pode presumir. A dosagem etílica, portanto, passou a integrar o tipo penal que exige seja comprovadamente superior a 6 (seis) decigramas. [...]. 4. Cometeu-se um equívoco na edição da Lei. Isso não pode, por certo, ensejar do magistrado a correção das falhas estruturais com o objetivo de conferir-lhe efetividade. O Direito Penal rege-se, antes de tudo, pela estrita legalidade e tipicidade. 5. Assim, para comprovar a embriaguez, objetivamente delimitada pelo art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, é indispensável a prova técnica consubstanciada no teste do bafômetro ou no exame de sangue. 6. Ordem concedida. (BRASIL, 2010, a)

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comprovar a embriaguez alcoólica, é indispensável a prova técnica consubstanciada no teste do etilômetro ou no exame de sangue16.

Entretanto, a 5a Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamen-to do recente HC no 117.230, de 13 de dezembro de 201017, decidiu que a com-provação da embriaguez alcoólica deve ser feita preferencialmente por meio de aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro) ou de exame sanguíneo.

16 EMENTA: RECURSO ESPECIAL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. AUSÊNCIA DE EXAME DE ALCOOLEMIA. AFERIÇÃO DA DOSAGEM QUE DEVE SER SUPERIOR A SEIS DECIGRAMAS. NECESSIDADE. ELEMENTAR DO TIPO. 1. Antes da edição da Lei no 11.705/08 bastava, para a configuração do delito de embriaguez ao volante, que o agente, sob a influência de álcool, expusesse a dano potencial a incolumidade de outrem. 2. Entretanto, com o advento da referida Lei, inseriu-se a quantidade mínima exigível e excluiu-se a necessidade de exposição de dano potencial, delimitando-se o meio de prova admissível, ou seja, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue o que não se pode presumir. A dosagem etílica, portanto, passou a integrar o tipo penal que exige seja comprovadamente superior a 6 (seis) decigramas. 3. Essa comprovação, conforme o Decreto no 6.488 de 19.6.08 pode ser feita por duas maneiras: exame de sangue ou teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), este último também conhecido como bafômetro. 4. Isso não pode, por certo, ensejar do magistrado a correção das falhas estruturais com o objetivo de conferir-lhe efetividade. O Direito Penal rege-se, antes de tudo, pela estrita legalidade e tipicidade. 5. Assim, para comprovar a embriaguez, objetivamente delimitada pelo art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, é indispensável a prova técnica consubstanciada no teste do bafômetro ou no exame de sangue. 6. Recurso a que se nega provimento. (BRASIL, 2010b)

17 EMENTA: HABEAS CORPUS. ART. 306, DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO (DELITO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE OU CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR SOB A INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL OU SUBSTÂN-CIA DE EFEITOS ANÁLOGOS. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. FALTA DE EXAME DE CORPO DE DELITO DIRETO (PROVA DA CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL NA CORRENTE SANGUÍNEA POR EXAME PERICIAL). ATIPICIDADE DA CONDUTA DO PACIENTE, ANTE A AUSÊNCIA DE PERIGO CONCRETO. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. ALEGAÇÃO DE DECADÊNCIA, POR FALTA DE REPRESENTAÇÃO OPORTUNA DAS VÍTIMAS. DOSIMETRIA: PENA-BASE FIXADA UM POUCO ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. CONSEQÜENCIAS DO DELITO QUE NÃO SÃO INTRÍSECAS AO TIPO PENAL. ORDEM DENEGADA 1. Segundo o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, configura-se o crime de embriaguez ao volante ou de condução de veículo automotor sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos se o motorista “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência “. 2. Demonstrado pelas competentes vias administrativas que a concentração alcoólica no sangue do condutor de veículo automotor é superior àquela que a lei proíbe, resta configurado o crime de em-briaguez ao volante, o qual, segundo a melhor jurisprudência, é crime de perigo abstrato, “cujo objeto jurídico tutelado é a incolumidade pública, e o sujeito passivo, a coletividade. “ (STF, RHC 82.517/CE, 1.a Turma, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ de 21/02/2003). 3. “A prova da embriaguez ao volante deve ser feita, preferencialmente, por meio de perícia (teste de alcoolemia ou de sangue), mas esta pode ser suprida (se impossível de ser realizada no momento ou em vista da recusa do cidadão), pelo exame clínico e, mesmo, pela prova testemunhal, esta, em casos excepcionais, por exemplo, quando o estado etílico é evidente e a própria conduta na direção do veículo demonstra o perigo potencial a incolumi-dade pública, como ocorreu no caso concreto. “ (STJ, RHC 26.432/MT, 5.a Turma, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe de 22/02/2010). [...]. 6. Ordem denegada. (BRASIL, 2010c)

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Todavia, tal confirmação pode ser suprida pelo exame clínico ou, até mesmo, pela prova testemunhal, quando o estado etílico é evidente e a própria conduta na dire-ção do veículo demonstra o perigo potencial à incolumidade pública.

Dessa feita, percebe-se nítida divergência entre a 5a e a 6a Turma do STJ. Tal situação será apreciada pela Terceira Seção no julgamento do recurso repetitivo no 1.111.566 (Recurso Especial), que deve uniformizar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.

3 Recusa do condutor em se submeter aos testes de alcoolemia

A Constituição Federal de 1988 consagrou o princípio da legalidade em seu art. 5o, inciso II, em que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei18.

Assim, o Estado só pode impor uma obrigação ou limitar o exercício de um direito do cidadão se existir uma lei específica que o autorize a exercer seu poder de polícia para regular e fiscalizar o exercício de tal direito por parte das pessoas, visando à segurança e ao bem-estar coletivo. Do mesmo modo, para se impor ao condutor com suspeita de estar embriagado a obrigação de realizar os testes de alcoolemia, imperio-so será que tal obrigatoriedade esteja prevista no ordenamento jurídico pátrio.

Atualmente, no âmbito administrativo, o Brasil possui essa legislação específi-ca, qual seja, o Código de Trânsito Brasileiro, que autoriza o Estado a exercer o seu poder de polícia para regular e fiscalizar o exercício de um direito por parte dos ci-dadãos, no caso, o de conduzir veículos em vias públicas, tendo em vista a segurança e o bem-estar de todos. Dessa forma, o uso regular do poder de polícia permite que a autoridade pública, ao suspeitar que um condutor esteja dirigindo embriagado, exija que ele se submeta aos testes de alcoolemia previstos em lei. Tais testes estão dispostos no art. 277 do CTB (BRASIL, 1997), conforme já explanado.

Entretanto, na seara criminal essa não parece ser a melhor interpretação, uma vez que o ordenamento brasileiro garante ao cidadão o direito de não produzir prova contra si ou o princípio da vedação à autoincriminação, o qual se origina dire-

18 Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; [...]. (BRASIL, 1988)

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tamente do direito constitucional à ampla defesa e ao contraditório e do direito ao silêncio, dispostos no art. 5o, incisos LV e LXIII, respectivamente, da CF/8819.

Além disso, o art. 1o da CF/88 dispõe que o Brasil se constituiu em um Estado Democrático de Direito, possuindo como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e a cidadania20.

Dessa feita, a interpretação extensiva do direito ao silêncio decorre também do art. 5o, § 2o da CF/88, o qual estabeleceu que os direitos e garantias previstos na Constituição não excluem a inclusão no ordenamento jurídico pátrio de outros direitos e garantias decorrentes dos princípios gerais adotados pela própria Carta Magna, como também não excluem aqueles decorrentes de tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatário21.

Nesse sentido, a interpretação extensiva do direito ao silêncio e o entendimen-to do direito de não produzir prova contra si se originam da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que pre-vê como garantia judicial o direito à não-incriminação, o qual foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto no 678, de 06 de novembro de 1992 (BRASIL).

Contudo, entende-se que o princípio da vedação à autoincriminação possui índole constitucional desde a promulgação da Constituição em 1988 (PIOVESAN, 2003, p. 48), uma vez que o seu descumprimento configura violação da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, previsto no art. 1o, inciso III da CF/88, conforme já citado.

19 Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; [...]

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; [...]. (BRASIL, 1988)

20 Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]

II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; [...]. (BRASIL, 1988)

21 Art. 5: [...] § 2o - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime

e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. [...]. (BRASIL, 1988)

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Outro ponto a ser verificado é que o princípio da vedação à autoincriminação origina-se da tradução do brocardo latino nemo tenetur se detegere, consistindo na prerrogativa do cidadão de não produzir provas contra si mesmo.

A respeito disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem defendido uma interpre-tação bastante ampla do princípio da não-incriminação, consubstanciado na garan-tia do direito de o acusado não produzir nenhum tipo de prova que possa ser utiliza-da contra a sua defesa, abrangendo, inclusive, a recusa à submissão a qualquer teste de alcoolemia, como o etilômetro, bem como o fornecimento de material corporal para exames laboratoriais, como a dosagem de álcool no sangue.

Dessa maneira, o STF tem entendido que é inconstitucional a presunção de embriaguez do condutor que se negue a realizar os testes de alcoolemia, já que no Brasil vigora o princípio da presunção de inocência, consoante o art. 5o, inciso LVII da CF/8822. Esse foi o entendimento da Suprema Corte no julgamento do HC 93.916 (BRASIL, 2008b), proferido em 10 de junho de 2008, no qual o STF decidiu que não se pode presumir a embriaguez de quem não se submeta a exame de dosagem al-coólica, pois a Constituição impede que se extraia qualquer conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma infração penal, exerça o direito constitucional de não produzir prova contra si mesmo23.

Porém, o acórdão citado do Pretório Excelso foi julgado antes da entrada em vigor da Lei no 11.705/08, quando ainda era possível o uso da prova testemunhal, o que ficou impossibilitado com o advento da Lei no 11.705/08.

22 Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; [...]. (BRASIL, 1988)

23 EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBLIDADE DE SE EXTRAIR QUALQUER CONCLUSÃO DESFAVORÁVEL AO SUSPEITO OU ACUSADO DE PRATICAR CRIME QUE NÃO SE SUBMETE A EXAME DE DOSAGEM ALCOÓLICA. DIREITO DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO: NEMO TENETUR SE DETEGERE. INDICAÇÃO DE OUTROS ELEMENTOS JURIDICAMENTE VÁLIDOS, NO SENTIDO DE QUE O PACIENTE ESTARIA EMBRIAGADO: POSSIBILIDADE. LESÕES CORPORAIS E HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO. DESCRIÇÃO DE FATOS QUE, EM TESE, CONFIGURAM CRIME. INVIABILIDADE DO TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. Não se pode presumir que a embriagues (sic) de quem não se submete a exame de dosagem alcoólica: a Constituição da República impede que se extraia qualquer conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma infração penal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo. [...]. 3. Ordem denegada. (BRASIL, 2008b)

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Em contraponto, a 5a Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do HC no 155.069 (BRASIL, 2010, d), de 06 de fevereiro de 2010, entendeu que o crime do art. 306 do CTB é de perigo abstrato, podendo, no entanto, excepcional-mente, ser comprovado por exame clínico ou até mesmo por prova testemunhal, contanto que o estado de embriaguez alcoólica seja evidente e a conduta na direção do veículo demonstre o perigo potencial à incolumidade pública24. Nesse mesmo sentido, recentemente, a referida Turma julgou o HC no 117.230 (BRASIL, 2010d), conforme já explanado.

Do mesmo modo, a 5a Turma do STJ, no julgamento do HC no 151.087 (BRASIL, 2010, e), de 18 de março de 2010, decidiu que a ausência do exame de alcoolemia não induz à atipicidade do crime previsto no art. 306 do CTB, desde que a embria-guez possa ser aferida por outros elementos de prova em Direito admitidos, como o exame clínico (BRASIL, 2010e).

Data maxima venia, tal interpretação parece equivocada, configurando inequí-voca analogia in malam partem, na qual se interpreta uma norma penal de maneira extensiva e prejudicial ao acusado, o que é proibido pelo ordenamento jurídico bra-sileiro. Certamente o tema será objeto de enfrentamento pelo STF no julgamento

24 EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL NO ORGANISMO VERIFICADA POR “BAFÔMETRO”. EXAME ALEGADAMENTE IMPRECISO. TESTE DE SAN-GUE ESPECÍFICO NÃO REALIZADO. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL COM BASE NESSE FATO. NÃO OCORRÊNCIA. MATERIALIDADE COMPROVADA, SEM ESTREME DE DÚVIDAS, POR CRITÉRIO VÁLIDO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. 1. Se-gundo o art. 306 do Código de Trânsito Nacional, configura-se o crime de embriaguez ao volante se o motorista “Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. 2. Realizado o teste do “bafômetro” e verificada concentração alcoólica no ar dos pulmões que corresponde a concentração sanguínea superior ao que a lei proíbe, não se pode falar em ausência de justa causa para a persecução penal. [...]. 4. “A prova da embriaguez ao volante deve ser feita, preferencialmente, por meio de perícia (teste de alcoolemia ou de sangue), mas esta pode ser suprida (se impossível de ser realizada no momento ou em vista da recusa do cidadão), pelo exame clínico e mesmo, pela prova testemunhal, esta, em casos excepcionais, por exemplo, quando o estado etílico é evidente e a própria conduta na direção do veículo demonstra o perigo potencial a incolumidade pública, como ocorreu no caso concreto.” (STJ, RHC 26.432/MT, 5.a Turma, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe de 22/02/2010.) 5. “O crime do art. 306 do CTB é de perigo abstrato, e para sua comprovação basta a constatação de que a concentração de álcool no sangue do agente que conduzia o veículo em via pública era maior do que a admitida pelo tipo penal, não sendo necessária a demonstração da efetiva potencialidade le-siva de sua conduta.” (STJ, HC 140.074/DF, 5.a Turma, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJe de 14/12/2009.) [...]. 8. Habeas corpus indeferido. (BRASIL, 2010, e).

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da pendente Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 4103, em que o Pretório Excelso decidirá sobre a constitucionalidade da Lei no 11.705/2008.

Corroborando o entendimento supracitado, a mais recente decisão do Supe-rior Tribunal de Justiça (STJ), proferida pela 6a Turma no julgamento do Recurso Especial no 1.113.360/DF (BRASIL, 2010b), de 28 de setembro de 2010, confor-me já explanado no capítulo 2, entendeu que para a configuração do crime do art. 306 do CTB será necessária a comprovação da quantidade mínima exigível por lei, delimitando-se o meio de prova admissível à quantificação objetiva da con-centração de álcool no sangue. Assim, a dosagem etílica passou a integrar o tipo penal, o qual exige a comprovação de concentração superior a 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, não se podendo presumir a embriaguez de quem se negue a realizar os exames de alcoolemia.

Dessa feita, em meio às discussões jurisprudenciais nos Tribunais Superiores, é notório o fato de os agentes da autoridade de trânsito, especialmente policiais militares, adotarem o procedimento de condução à autoridade policial judiciária dos motoristas de veículos automotores que se recusam a se submeter aos testes de alcoolemia, principalmente aqueles que se negam a realizar o teste do etilômetro.

Tal condução se baseia no caput do art. 277, do CTB o qual determina que: “todo [...], envolvido em acidente de trânsito ou [...] sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame [...]” (BRASIL, 1997).

Porém, a redação do dispositivo supramencionado é do ano de 2006, quando foi modificado pela Lei no 11.275/06. É importante frisar que o art. 277 está inserido dentro do Capítulo XVII do CTB, que trata das medidas administrativas. Portanto, todas as medidas administrativas ali previstas somente podem ser aplicadas para as infrações administrativas, mas não para os crimes de trânsito.

Outrossim, em 2008, a Lei no 11.705 modificou novamente o art. 277 do CTB, acrescentando o § 3o ao dispositivo, o qual autoriza a aplicação das penalidades e medidas administrativas ao condutor que se negar a ser submetido a qualquer dos procedimentos previstos para a comprovação da embriaguez alcoólica, conforme já explicado. Assim, diante da recusa do cidadão a realizar os testes de alcoolemia, o agente da autoridade de trânsito deve lavrar o auto de infração de trânsito por diri-gir sob a influência de álcool, previsto no art. 165 do CTB.

Se o respectivo auto de infração de trânsito foi lavrado, não há motivo para o encaminhamento à autoridade policial judiciária dos motoristas que se recusam a se

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submeter aos testes de alcoolemia, notadamente os que se negam a realizar o teste do etilômetro, uma vez que o objetivo de tal condução é exatamente a produção de prova (exame laboratorial de sangue) para a lavratura do respectivo auto de infração de trânsito, que já fora confeccionado. Logo, tal condução é inócua (GOMES, 2008).

Além disso, mesmo que o condutor que tenha se negado a ser submetido ao teste do etilômetro seja levado à autoridade policial judiciária, tal condução, na prática, será inútil, pois se ele se recusou a fazer o teste do “bafômetro”, muito provavelmente tam-bém se recusará à coleta de material sanguíneo de seu corpo, procedimento muito mais invasivo que o simples assoprar em um equipamento eletrônico, como é o etilômetro.

Outrossim, mesmo que eventualmente o exame clínico seja realizado por médi-co perito da Polícia Judiciária, não será possível a aferição objetiva e material de que o cidadão conduzia veículo automotor estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, requisito objetivo imprescindível para a configuração do crime de trânsito tipificado no art. 306 do CTB. Tal exigência não pode ser substituída por exame clínico, ainda que realizado por médico perito da Polícia Judiciária, ou por prova testemunhal, pois claramente fere o princípio constitucional da legalidade, já que no aspecto penal, esse princípio é consagrado pela máxima nullum crimen, nulla poena sine lege, isto é, não haverá crime se não houver lei escrita definindo claramente a infração penal e impondo a consequente pena. Assim, pelo princípio da reserva legal, alguém só poderá ser punido se an-teriormente ao fato por ele praticado existir uma lei que descreva claramente a conduta como crime.

No caso do art. 306 do CTB, a conduta típica é conduzir veículo automotor na via pública estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou supe-rior a 6 (seis) decigramas. O legislador não deixou margem para qualquer outro en-tendimento, não sendo possível interpretar uma norma penal de maneira extensiva e prejudicial ao acusado, o que configuraria inequívoca analogia in malam partem, proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Desse modo, após a adoção das medidas administrativas, o condutor deve ser liberado imediatamente, não podendo ser levado coercitivamente à autoridade poli-cial judiciária, uma vez que o objetivo de tal condução seria exatamente a produção de prova (exame laboratorial de sangue) para a lavratura do auto de infração de trânsito, o qual já fora confeccionado.

Outro aspecto a ser enfatizado é que, caso o agente da autoridade de trânsito apresente à autoridade policial judiciária o motorista que se negou a ser submetido

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ao teste do bafômetro, ele estará, na verdade, favorecendo a impunidade, já que com o grande lapso temporal, entre a abordagem policial ou o acidente de trânsito e a apresentação à autoridade policial judiciária e o encaminhamento ao Departa-mento Médico Legal para exames laboratoriais, a concentração de álcool por litro de sangue será certamente muito menor ou até mesmo não poderá mais ser aferida. Tal situação beneficiaria o condutor que ingeriu bebida alcoólica e indiretamente prejudicaria toda a sociedade, a qual tem violado o seu direito a um trânsito seguro. Além disso, incentivaria a impunidade e o comportamento de outros motoristas a se negarem a realizar os testes de alcoolemia previsto em lei.

Por fim, é importante ressaltar a legalidade da conduta do agente da autori-dade de trânsito que se recuse a apresentar à autoridade policial judiciária o ci-dadão que se negou a se submeter ao teste do bafômetro, mas que solicitou a sua apresentação à autoridade policial judiciária. Esse entendimento se baseia no § 3o do art. 277 do CTB, o qual dispõe que deverão ser aplicadas as penalidades e me-didas administrativas previstas no art. 165 do CTB para o condutor que se negar a realizar qualquer dos testes de alcoolemia. Assim, o vocábulo “qualquer” tornar-se muito significativo, pois, a recusa à realização do teste do “etilômetro” por si só, já configura a hipótese autorizada pela lei para a lavratura do auto de infração. Essa possibilidade é totalmente plausível e legal, porque atende aos princípios da legalidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da segurança no trânsito e da supremacia do interesse público.

Dessa maneira, conclui-se que, diante da negativa do condutor de reali-zar os testes de alcoolemia, o agente da autoridade de trânsito deve lavrar o auto de infração de trânsito por dirigir sob a influência de álcool, previsto no art. 165 do CTB, com base no art. 277, § 3o do CTB, o qual autoriza a aplica-ção das penalidades e medidas administrativas ao motorista que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos para a comprovação da embriaguez alcoólica.

4 Proposta de lege ferenda de alteração do Código de Trânsito Brasileiro

É inegável que a atual redação do art. 306 do CTB tem ocasionado visíveis problemas para a segurança do trânsito no Brasil, já que a maioria dos condutores embriagados se nega a realizar os testes de alcoolemia, alegando o seu direito indi-vidual de não produzir prova contra si. Tal comportamento viola o CTB, que de forma

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expressa, em seu art. 1o, § 2o estabeleceu a segurança no trânsito como um princípio e como um direito de toda a sociedade25.

Essa recusa viola também a Carta Magna que consagrou no caput do art. 5o a segurança como um direito fundamental inviolável26.

Dessa feita, é cediço que o interesse público deve prevalecer sobre o direito individual. Em tese, a defesa do direito individual de não produzir prova contra si afrontaria o interesse público, quando o motorista embriagado se nega a realizar o exame do etilômetro. Isso porque essa conduta negativa irá contra o interesse públi-co de punição e de repressão dos motoristas embriagados, os quais expõem a risco a incolumidade física e a saúde de outrem, prejudicando o direito de todos a um trânsito seguro. Dessa forma, na ponderação de qual bem jurídico deve predominar, conclui-se que o interesse público deverá prevalecer frente ao direito individual.

Nesse sentido, Carvalho Filho (2008) ensina que se trata da primazia do interes-se público, na qual o indivíduo tem que ser visto como integrante da sociedade, não podendo os seus direitos individuais prevalecerem em relação aos direitos sociais.

Outrossim, Lazzarini (1999, p.50) ensina que:

[...] deve ser garantida a convivência pacífica de todos os cidadãos de tal modo que o exercício dos direitos de cada um, não se transforme em abuso e não ofenda, não impeça, não perturbe o exercício dos direitos alheios.

Nesse mesmo diapasão, Meirelles (2003, p. 123) escreve

[...] a supremacia geral que o Estado exerce em seu território sobre as pes-soas, bens e atividades, supremacia que se revela nos mandamentos consti-tucionais e nas normas de ordem pública, que a cada passo opõem condicio-namentos e restrições aos direitos individuais em favor da coletividade. [...]

Desse modo, o presente trabalho sugere a inclusão de um parágrafo ao art. 306 do CTB, estabelecendo que a recusa em realizar o teste do etilômetro configuraria o

25 Art. 1o. [...] § 2o O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades

componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito. (BRASIL, 1988)

26 Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasi-leiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igual-dade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] (BRASIL, 1988)

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crime de desobediência previsto no art. 33027 do Código Penal. Tal alteração legisla-tiva objetiva que os condutores embriagados façam o teste de alcoolemia de modo coercitivo, contribuindo para a implementação do direito de todos a um trânsito seguro e para a diminuição do número de acidentes de trânsito.

Certamente a mudança seria questionada no STF, com a Suprema Corte tendo que decidir se na ponderação de interesses deve predominar o direito coletivo a um trânsito seguro ou o interesse individual de não produzir prova contra si.

Acerca disso, o Brasil já possui precedente em que o direito de não produzir prova contra si não foi considerado absoluto, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou, em 18 de outubro de 2004, a Súmula 301, enunciando que: “em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz pre-sunção juris tantum de paternidade” (BRASIL, 2004).

Assim, no caso da ação de investigação de paternidade, o STJ derrogou o princípio de não produzir prova contra si, entendendo que a recusa do suposto pai a fornecer material corporal para a realização de exame de DNA constituiu-se em uma presunção juris tantum, ou seja, uma presunção relativa, que admite prova em contrário. Conse-quentemente, até a produção de prova contrária, presume-se que os fatos alegados são verdadeiros, ou seja, que o cidadão que se negou a realizar o teste de DNA é o pai biológico da criança. Tal interpretação buscou a proteção ao hipossuficiente (a criança), em detrimento do direito individual do pai em não produzir prova contra si.

Outro exemplo de que o direito de não produzir prova contra si não é absoluto está nos aeroportos. Um passageiro portando arma de fogo sem autorização não pode se recusar a passar pelos equipamentos detectores de metais, alegando o seu direito de não produzir prova contra si, já que, caso passe pelo equipamento, ficará provado o crime de porte ilegal de armas. Outrossim, um traficante de drogas ilícitas, suspeito de ter engolido cápsulas de substâncias entorpecentes, não pode se negar a ser submeti-do ao exame de raio X, invocando o seu direito de não produzir contra si.

Da mesma forma, a Lei no 12.037, de 1o de outubro de 2009, regulamenta a identificação criminal do civilmente identificado. Assim, o cidadão preso não pode se recusar a se submeter ao processo de identificação criminal, argumentando o seu direito de não produzir prova contra si, já que tal identificação poderá levar à apuração de outros crimes de sua autoria.

27 Art. 330. Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena - detenção, de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, e multa. (BRASIL, 1940)

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Portanto, é imprescindível que o legislador brasileiro faça uma alteração consti-tucional, autorizando o uso restrito de medidas de intervenção corporal como meio de prova no processo penal, contanto que não cause risco à saúde física e mental do acusado e que não exista outra forma para a eficácia da persecução penal, não sendo afastada a sua presunção de inocência (ZAGANELLI, 2001).

É o caso, por exemplo do etilômetro, em que a exigência para o cidadão assoprar em um equipamento eletrônico mostra-se como uma intervenção corporal extrema-mente pequena, praticamente sem risco para a saúde e a integridade física do condutor.

Dessa feita, conclui-se que o direito de não produzir prova contra si não deve ser considerado como um direito absoluto, mas sim como uma garantia do cidadão contra atos arbitrários do Estado. O brocardo jurídico nemo tenetur se detegere deve ser entendido como um instrumento de defesa do cidadão contra a coercitividade estatal em sua persecução penal. Interpretação muito além dessa pode levar à impunidade e à injustiça, prejudicando o interesse público e a segurança da co-letividade. É o que está ocorrendo atualmente com o suposto direito do condutor embriagado em não se submeter ao teste de alcoolemia.

Assim, a proteção individual de não produzir prova contra si não deve prevalecer diante do direito coletivo da sociedade a um trânsito seguro, já que nenhuma garan-tia constitucional deve ser entendida como absoluta.

Entretanto, esse entendimento somente seria possível para o teste do etilômetro, o qual não atinge a integridade física do cidadão, que deve apenas assoprar em um equipamento eletrônico. Tal argumentação não se aplicaria a outros exames, como o sanguíneo, por serem muito invasivos, atingindo a integridade corporal do cidadão.

Outrossim, é forçoso o reconhecimento de que é muito tênue o limite entre os direitos fundamentais do acusado, notadamente o seu direito de não produzir prova contra si, e o direito e dever do Estado de produzir provas para o esclarecimento de fatos que afetem as relações sociais e jurídicas. Dessa forma, ao se analisar o caso concreto, o operador do direito deverá utilizar o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, como também a teoria dos princípios constitucionais para que seja feita a perfeita justiça (ZAGANELLI, 2001).

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5 Conclusão

O presente artigo objetivou o estudo da legislação sobre a embriaguez alcoólica de condutores de veículos automotores, notadamente a análise da legalidade e da constitucionalidade dos meios de prova de embriaguez alcoólica previstos no Códi-go de Trânsito Brasileiro, focando especificamente as alterações provocadas pelas Leis no 11.275/2006 e no 11.705/2008.

Desse modo, em relação à infração administrativa de trânsito prevista no art. 165 do CTB, entende-se pela legalidade e pela constitucionalidade dos meios de prova de embriaguez alcoólica previstos no art. 277 do CTB.

Já em relação ao crime de trânsito previsto no art. 306 do CTB, percebe-se que os meios de prova previstos no art. 277 do CTB são legais e constitucionais apenas em relação aos exames que produzem prova objetiva, como o teste do etilômetro e o exame laboratorial de dosagem alcoólica em material sanguíneo.

Outrossim, verificou-se inconstitucional e ilegal a tentativa de uso de qualquer prova, seja ela testemunhal ou exame clínico, para a comprovação do crime previsto no art. 306 do CTB, em virtude de ser imprescindível a comprovação material e objeti-va do crime, através da constatação real e concreta de que o condutor dirigia com uma concentração igual ou superior a 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue.

Por fim, especificamente em relação à recusa do condutor envolvido em aci-dente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir embriagado, de se submeter aos testes de alcoolemia, verificou-se a legalidade e a constitucionalidade de o Estado adotar as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 do CTB, em relação à infração administrativa.

No aspecto criminal, no que se refere à negativa do condutor a se submeter aos testes de alcoolemia previstos em lei, notadamente o do etilômetro e o exame la-boratorial de sangue, entende-se pela legalidade e constitucionalidade da recusa do motorista, uma vez que possui o direito constitucional de não produzir prova contra si. Dessa forma, atualmente, qualquer tentativa coercitiva estatal no sentido de forçar o condutor a realizar os testes de alcoolemia é claramente inconstitucional e ilegal.

Entretanto, a atual conformação legal dos artigos 306 e 277 do CTB indubita-velmente tem prejudicado o interesse público e o direito constitucional de todos à segurança, especificamente a segurança no trânsito. Além disso, tal panorama tem inviabilizado a atuação estatal e o exercício do poder-dever do Estado de assegurar a segurança e a paz social, razão de existência do próprio Estado. Desse modo, o

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engessamento estatal tem provocado a impunidade e a injustiça, prejudicando o interesse público, a segurança da coletividade e a confiança da sociedade no Estado.

A melhor solução parece ser uma ampla discussão com todos os seguimentos da sociedade para que se modifique a redação da Carta Magna, na qual haveria autorização constitucional para que o Estado, dentro de estreitos limites, pudesse coercitivamente exigir que o cidadão se submeta aos testes de alcoolemia, assim como a outros meios de prova essenciais para a persecução penal.

Todavia, outro problema surgiria, qual seja, a discussão da constitucionalidade de tal alteração da Constituição, pois se entende que o direito de não produzir prova contra si, por ser um direito e uma garantia constitucional individual fundamental, é uma cláusula pétrea, não podendo ser objeto de deliberação e nem de modificação, consoante o art. 60, § 4o, inciso IV da CF/8828.

Entretanto, o direito à segurança também é um direito constitucional indivi-dual fundamental; portanto, também é uma cláusula pétrea. Dessa forma, volta-se novamente à argumentação de que o direito constitucional de todos à segurança deve prevalecer sobre o interesse individual, bem como que o direito e o dever do Estado em garantir a segurança pública, em especial a segurança no trânsito, possui primazia sobre o direito individual.

Nesse sentido, entende-se que a citada alteração do CTB e da Constituição é possível, haja vista o precedente aberto com a edição da Súmula 301 do STJ, a qual, apesar de ter sido proferida pelo STJ e não pela Suprema Corte Constitucional, concluiu que o direito de não produzir prova contra si não deve ser considerado como um direito absoluto.

Pode-se finalizar esse artigo com a afirmação de que é necessária e urgente uma ampla discussão da sociedade visando à modificação da redação da Constitui-ção Federal de 1988, uma saída constitucional para que o Estado, dentro de estrei-tos limites, possa exercer o seu poder-dever de assegurar a segurança e o bem estar de todos, respeitando os direitos e garantias individuais.

28 Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [...] § 4o - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV - os direitos e garantias individuais. (BRASIL, 1988).

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1.2 Encaminhamento dos artigos: devem ser encaminhados à Coordenação de Editoração da Revista Jurídica da Presidência, pelo formulário disponível no sítio eletrônico: https://www.presidencia.gov.br/revistajuridica.

1.3 Tipo de arquivo: são admitidos arquivos com extensões .DOC, .RTF ou .ODT, observando-se as normas de publicação e os parâmetros de editoração adiante estabelecidos.

1.4 Composição dos artigos: além do texto, os artigos devem conter os seguin-tes itens:

1.4.1 Título 1.4.2 Sumário 1.4.3 Resumo 1.4.4 Palavras-chave 1.4.5 Referências

1.5 Número de Palavras: mínimo de 7.000 (sete mil) e máximo de 9.000 (nove mil) no artigo completo.

1.6 Idiomas: os autores podem encaminhar artigos redigidos em Português, Inglês, Francês e Espanhol.

1.7 Requisitos para o(s) autor(es): a Revista Jurídica da Presidência só admite artigos de autores graduados (qualquer curso superior); graduandos podem subme-ter artigos em co-autoria com graduados.

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2 Traduções obrigatórias para outros idiomas

Os artigos enviados devem ter os seguintes itens obrigatoriamente traduzidos para outros idiomas nas variações especificadas:

2.1 Título 2.1.1 No idioma predominante do artigo (obrigatório); 2.1.2 Em mais dois idiomas: 2.1.2.1 Inglês (obrigatório); e 2.1.2.2 Português, Espanhol ou Francês (obrigatório); 2.1.3 Quando o idioma predominante for o Inglês, o autor deverá escolher

dois outros idiomas dentre os especificados no item 2.1.2.2 (obrigatório).

2.2 Sumário 2.2.1 No idioma predominante do artigo (obrigatório); 2.2.2 Em mais dois idiomas: 2.2.2.1 Inglês (obrigatório); e 2.2.2.2 Português, Espanhol ou Francês (obrigatório); 2.2.3 Quando o idioma predominante for o Inglês, o autor deverá escolher

dois outros idiomas dentre os especificados no item 2.2.2.2 (obrigatório).

2.3 Resumo 2.3.1 No idioma predominante do artigo (obrigatório); 2.3.2 Em mais dois idiomas: 2.3.2.1 Inglês (obrigatório); e 2.3.2.2 Português, Espanhol ou Francês (obrigatório); 2.3.3 Quando o idioma predominante for o Inglês, o autor deverá escolher

dois outros idiomas dentre os especificados no item 2.3.2.2 (obrigatório).

2.4 Palavras-chave 2.4.1 No idioma predominante do artigo (obrigatório); 2.4.2 Em mais dois idiomas: 2.4.2.1 Inglês (obrigatório); e 2.4.2.2 Português, Espanhol ou Francês (obrigatório); 2.4.3 Quando o idioma predominante for o Inglês, o autor deverá escolher

dois outros idiomas dentre os especificados no item 2.4.2.2 (obrigatório).

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Normas de Submissão811

3 Formatação do artigo

Com exceção de quando seja especificado, o artigo deverá ter a seguinte forma-tação geral:

3.1 Tamanho da página: folha A4 (210 mm x297 mm).

3.2 Margens: 3.2.1 Superior: 3 cm 3.2.2 Inferior: 2 cm 3.2.3 Esquerda: 3 cm 3.2.4 Direita: 2 cm

3.3 Fonte: Arial ou Times New Roman 3.3.1 Tamanho: 12 pontos 3.3.2 Estilo: Regular

3.4 Espaçamento entre linhas: 1,5 linha

3.5 Alinhamento: texto justificado

4 Especificação dos itens do artigo

4.1 Título 4.1.1 Posicionamento: Deve estar centralizado no topo da página. 4.1.2 Número de palavras: Deve conter no máximo 15 (quinze) palavras. 4.1.3 Fonte: Arial ou Times New Roman 4.1.3.1 Tamanho: 16 pontos 4.1.3.2 Estilo: Negrito 4.1.4 Espaçamento entre linhas: 1,5 linha 4.1.5 Título e subtítulo do artigo devem ter apenas a primeira letra de cada

frase em maiúscula, salvo nos casos em que o uso desta seja obrigatório. Exemplos:

A suposta permissão do Código Civil para emissão eletrônica dos títulos de crédito

A cultura do controle penal na contemporaneidade

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4.1.6 O título nas duas línguas estrangeiras deve obedecer às mesmas regras do título na língua predominante do artigo. Exemplos:

Argumentação jurídica e direito antitruste: análise de casos

Legal argument and antitrust law: case studiesLa argumentación jurídica y el derecho antitrust:

un análisis de caso4.2 Sumário

4.2.1 Conteúdo: deve reproduzir somente número e nome das seções principais que compõem o artigo.

4.2.2 Configuração: os itens de sumário devem ser antecedidos pelo título “Sumário”.

4.2.2.1 Para início e fim do sumário, adotam-se apenas os termos “Introdução”, “Conclusão” e “Referências”.

4.2.3 Posicionamento: deve figurar abaixo do título. Exemplo:

SUMÁRIO: 1 Introdução - 2 (In)Justiça transicional e Democracia: parale-lismo entre a Espanha e o Brasil - 3 Conclusão - 4 Referências.CONTENTS: 1 Introduction - 2 Transitional (In)Justice and Democracy: parallelism between Spain and Brazil - 3 Conclusion - 4 References.CONTENIDO: 1 Introducción - 2 (In)Justicia Transicional y Democracia: paralelismo entre España y Brasil - 3 Conclusión - 4 Referencias.

4.3 Resumo

4.3.1 Conteúdo: deve ser um texto conciso que ressalte o objetivo e o assunto principal do artigo.

4.3.1.1 O resumo não deve ser composto de enumeração de tópicos. 4.3.1.2 Deve-se evitar uso de símbolos e contrações cujo uso não

seja corrente, bem como fórmulas, equações e diagramas, a menos que extrema-mente necessários.

4.3.2 Número de palavras: até 150 (cento e cinquenta).

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Normas de Submissão813

4.4 Palavras-chave 4.4.1 Número de palavras: devem ser indicados até 5 (cinco) termos. 4.4.2 Configuração: os termos devem ser antecedidos pelo título “Pala-

vras-chave” e ser separados entre si por travessão. Exemplo:

PALAVRAS-CHAVE: Justiça Transicional – Comissão da Verdade – Anis-tia – Memória – Reparação.

KEYWORDS: Transitional Justice – Truth Commission – Amnesty – Me-mory – Repair.

PALABRAS CLAVE: Justicia Transicional – Comisión de la Verdad – Amnistía – Memoria – Reparación.

4.5 Texto

4.5.1 Não deve haver recuo ou espaçamento entre os parágrafos. 4.5.2 Títulos e subtítulos das seções: 4.5.3 Fonte: Arial ou Times New Roman 4.5.3.1 Tamanho: 14 pontos 4.5.3.2 Estilo: Negrito 4.5.4 Espaçamento entre linhas: 1,5 linha 4.5.5 Alinhamento: texto alinhado à esquerda 4.5.6 Numeração: uso de algarismos arábicos. Exemplo:

2 A evolução da disciplina sobre os juros no Direito brasileiro2.1 O Direito colonial e a vedação inicial à cobrança de juros2.2 A liberalização da cobrança de juros e sua consagração

5 Citações

Sempre que é feita uma citação, deve-se utilizar o sistema autor-data (item 5.1) e inserir a referência completa ao final do artigo (item 7). As citações obedecem à Norma 10.520 da ABNT.

5.1 Sistema de chamada das citações: utiliza-se o sistema autor-data, segun-

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do o qual se emprega o sobrenome do autor ou o nome da entidade, a data e a(s) página(s) da publicação de onde se retirou o trecho transcrito.

5.1.1 Citação indireta sem o nome do autor expresso no texto: deve apre-sentar, entre parênteses, a referência autor-data completa. Exemplo:

A criança passa a ocupar as atenções da família, tornando-se dolorosa a sua perda e, em razão da necessidade de cuidar bem da prole, inviável a grande quantidade de filhos (ARIÈS, 1973, p. 7-8).

5.1.2 Citação indireta com o nome do autor expresso no texto: deve apre-sentar, entre parênteses, o ano e a(s) página(s) da publicação. Exemplo:

Duarte e Pozzolo (2006, p. 25) pontuam que a ideologia constitucionalista adota o modelo axiológico de Constituição como norma, estabelecendo uma defesa radical de interpretação constitucional diferenciada da inter-pretação da lei.

5.1.3 Citação direta sem o nome do autor expresso no texto: deve conter o trecho citado entre aspas e apresentar, entre parênteses, a referência autor-data completa. Exemplo:

Mas esse prestígio contemporâneo do Poder Judiciário decorre menos de uma escolha deliberada do que de uma reação “de defesa em face de um quádruplo desabamento: político, simbólico, psíquico e normativo” (GA-RAPON, 2001, p. 26).

5.1.4 Citação direta com o nome do autor expresso no texto: deve apre-sentar, entre parênteses e junto ao nome do autor, o ano e a(s) página(s) da publi-cação. Exemplo:

Pensando no realce à condição brasileira, interessante notar, nos ter-mos propostos por Anthony Pereira (2010, p. 184), que o golpe de 1966 na Argentina foi:

[...] estreitamente associado ao golpe brasileiro. Ambas as intervenções foram descritas como ‘revoluções’ pe-las forças armadas dos dois países.

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Normas de Submissão815

5.2 Recuo das citações 5.2.1 Citações com até três linhas: devem permanecer no corpo do texto,

sem recuo ou realce. Exemplo:

O autor registra ainda que, segundo o artigo 138 do Código Comercial Alemão, “não basta que os juros sejam excessivos, nem também a mera desproporção entre prestação e contraprestação, pois é preciso que o con-trato em seu todo [...] seja atentatório aos bons costumes, ou seja, imoral” (WEDY, 2006, p. 12).

5.2.2 Citações com mais de três linhas: devem ser separadas do texto nas seguintes configurações:

5.2.2.1 Recuo de parágrafo: 4 cm da margem esquerda. 5.2.2.2 Fonte: Arial ou Times New Roman 5.2.2.2.1 Tamanho: 11 pontos 5.2.2.2.2 Estilo: Regular 5.2.2.3 Espaçamento entre linhas: simples 5.2.2.4 Alinhamento: texto justificado 5.2.2.5 A citação não deve conter aspas. Exemplo:

De fato, na consulta organizada por Jacques Maritain a uma série de pensadores e escritores de nações membros da UNESCO, que formaram a Comissão da UNESCO para as Bases Filosóficas dos Direitos do Homem, em 1947, é possível observar que Mahatma Gandhi destacou justamente a dimensão do dever para a preservação do direito de todos:

Os direitos que se possa merecer e conservar procedem do dever bem cumprido. De tal modo que só somos credores do direito à vida quando cumprimos o dever de cidadãos do mundo. Com essa declaração fundamental, talvez seja fácil definir os deveres do homem e da mulher e relacio-nar todos os direitos com algum dever correspondente que deve ser cumprido. (MARITAIN, 1976, p. 33)

Em segundo lugar, essa aceitação se deu porque tanto o esboço chileno [...].

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5.3 Destaques nas citaçõesOs destaques devem ser reproduzidos de forma idêntica à constante do original

ou podem ser inseridos nas citações pelo autor. 5.3.1 Destaques no original: após a transcrição da citação, empregar a

expressão “grifo(s) no original”, entre parênteses. Exemplo:

A escola ocupa o lugar central na educação, enclausurando a criança em contato apenas com seus pares e longe do convívio adulto. “A família tornou-se um espaço de afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos” (ARIÈS, 1973, p. 8, grifos no original).

5.3.2 Destaques do autor do artigo: após a transcrição da citação, empre-gar a expressão “grifo(s) nosso(s)”, entre parênteses. Exemplo:

Em suma, o ambiente de trabalho constitui-se em esfera circundante do trabalho, espaço transformado pela ação antrópica. Por exemplo, uma lavoura,por mais que seja realizada em permanente contato com a terra, caracteriza-se como um meio ambiente do trabalho pela atuação humana. Em outras palavras, apesar de a natureza emprestar as condições para que o trabalho seja realizado, a mão semeia, cuida da planta e colhe os frutos da terra, implantando o elemento humano na área de produção. (ROCHA, 2002, p. 131, grifos nossos)

5.4 Tradução de citação em língua estrangeira: as citações em língua estrangei-ra devem ser sempre traduzidas para o idioma predominante do artigo nas notas de rodapé, acompanhadas do termo “tradução nossa”, entre parênteses.

6 Realces

Destaques em trechos do texto devem ocorrer apenas no estilo de fonte itálico e somente nos seguintes casos:

6.1 Expressões em língua estrangeira. Exemplo:

[...] Contudo, a Lei de Repressão à Usura, de 23 de julho de 1908, mais conhecida por lá como Ley Azcárate, prevê a nulidade de contrato de

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Normas de Submissão817

mútuo que estipule juros muito acima do normal e manifestamente despro-porcional com as circunstâncias do caso (ESPANHA, 1908).

6.2 Realce de expressões. Exemplo:

A terceira parte introduz uma questão relativamente nova no debate jurídico brasileiro: o modelo real das relações entre Direito e Política.

7 Referências

Todos os documentos mencionados no texto devem constar nas referências, de acordo com o disposto na NBR 6023 da ABNT.

7.1 Configuração: 7.1.1 Espaçamento entre linhas: simples 7.1.2 Alinhamento: texto alinhado a esquerda 7.1.3 Destaque: o nome do documento ou do evento no qual o documento

foi apresentado deve ser destacado em negrito. 7.1.4 Eletrônicos: devem ser informados o local de disponibilidade do do-

cumento, apresentado entre os sinais <>; e a data do acesso a esse. Exemplo:

AMARAL, Augusto Jobim do. A Cultura do Controle Penal na Contem-poraneidade. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 12, n. 98, out. 2010/jan. 2011, p. 385-411. Disponível em: https://www4.planalto.gov.br/revistajuridica/vol-12-n-98-out-2010-jan-2011/menu-vertical/artigos/artigos. 2011-02-18.8883524375>. Acesso em: 02 de maio de 2011.

7.2 Livros (manual, guia, catálogo, enciclopédia, dicionário, trabalhos acadêmicos): 7.2.1 Publicados. Exemplos:

ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Trad. Roberto Raposo, rev. Adriano Correria. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto. Responsabilidade social: práticas sociais e regulação jurídica. 1. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.

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7.2.2 Eletrônicos. Exemplos:

CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. Biblioteca Nacional Digital de Portu-gal. 2. ed. 1572. Disponível em: <http://purl.pt/1/3/#/0>. Acesso em: 13 de junho de 2012.

BRASIL. Combate a Cartéis na Revenda de Combustíveis. Secretaria de Direito Econômico, Ministério da Justiça, 1. ed. 2009. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team=%7BDA2BE05D-37BA-4EF3-8B55-1EBF0EB9E143%7D>. Acesso em: 16 de novembro de 2011.

7.3 Coletâneas: 7.3.1 Publicadas. Exemplos:

TOVIL, Joel. A lei dos crimes hediondos reformulada: Aspectos proces-suais penais. In: LIMA, Marcellus Polastri; SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna (Coord.). A renovação processual penal após a constituição de 1988: estudos em homenagem ao professor José Barcelos de Souza. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

AVRITZER, Leonardo. Reforma Política e Participação no Brasil. In: AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

7.4 Periódicos: 7.4.1 Publicados. Exemplo:

MENDES, Gilmar Ferreira. O Mandado de Injunção e a necessidade de sua regulação legislativa. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 13, n. 100, jul./set. 2011, p. 165-192.

SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Fundamentais Sociais na Consti-tuição de 1988. Revista Diálogo Jurídico. Salvador: Centro de Atualiza-ção Jurídica, ano I, v. 1, n. 1, abril de 2001.

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Normas de Submissão819

7.4.2 Eletrônicos. Exemplos:

BARROSO, Luís Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 12, n. 96, fev./mai. 2010, p. 3-41. Dispo-nível em: <https://www4.planalto.gov.br/revistajuridica/vol-12-n-96-fev-mai-2010/menu-vertical/artigos/artigos.2010-06-09.1628631230>. Acesso em: 14 de junho de 2012.

MORAES, Maurício. Anticoncepcional falhou, diz mãe de suposto filho de Lugo. Folha de São Paulo, 27 abr. 2009. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2704200910.htm>. Acesso em: 22 de outubro de 2010.

7.5 Atos normativos. Exemplos:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de ou-tubro de 1988. Brasília, 1988. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 31 de julho de 2011.

________. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Brasília, 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 13 de abril de 2012.

7.6 Projetos de lei. Exemplos:

BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei nº 6.793/2006, versão final. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_most382965&filename=PL+6793/2006 >. Acesso em: 13 de abril de 2012.

________. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei da Câmara dos Deputa-dos nº 41/2010. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/mate-ria/detalhes.asp?p_cod_mate=96674>.Acesso em: 11 de julho de 2011.

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7.7 Jurisprudência: 7.7.1 Publicada. Exemplos:

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula no 14. In: ______. Súmu-las. São Paulo: Associação dos Advogados do Brasil, 1994, p.16.

7.7.2 Eletrônica. Exemplos:

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus no 97.976 MC/MG. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 12 mar. 2009. Diário de Jus-tiça Eletrônico. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurispru-dencia/listarJurisprudencia.asp?s1=((97976.NUME.%20OU%2097976.DMS.))%20 NAO%20S.PRES.&base=baseMonocraticas>. Acesso em: 13 de setembro de 2009.

7.8 Notícias eletrônicas. Exemplos:

RABELO, Luiz Gustavo. Posição do STJ quanto à paternidade é pro-gressista, diz pesquisadora da UnB. In: Portal do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=77404&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=PosiçãodoSTJquantoàpaternidadeéprogressista>. Acesso em: 22 de junho de 2011.

PORTAL UOL. Neymar será pai de um menino. Disponível em: <http://celebridades.uol.com.br/ultnot/2011/05/25/neymar-sera-pai-de-um-meni-no.jhtm>. Acesso em: 12 de julho de 2011.

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Normas de Submissão821

8 Avaliação:

Os artigos recebidos pela Revista Jurídica da Presidência são submetidos ao crivo da Coordenação de Editoração, que avalia a adequação à linha editorial da Revista e às exigências de submissão. Os artigos que não cumprirem essas regras serão devolvidos aos seus autores, que poderão reenviá-los, desde que efetuadas as modificações necessárias.

Aprovados nessa primeira etapa, os artigos são encaminhados para análise dos pareceristas do Conselho de Consultores, formado por professores doutores das res-pectivas áreas temáticas. A decisão final quanto à publicação é da Coordenação de Editoração e do Conselho Editorial da Revista Jurídica da Presidência.

9 Direitos Autorais:

Ao submeterem artigos à Revista Jurídica da Presidência, os autores declaram serem titulares dos direitos autorais, respondendo exclusivamente por quaisquer reclamações relacionadas a tais direitos, bem como autorizam a Revista, sem ônus, a publicar os referidos textos em qualquer meio, sem limitações quanto ao prazo, ao território, ou qualquer outra. A Revista fica também autorizada a adequar os textos a seus formatos de publicação e a modificá-los para garantir o respeito à norma culta da língua portuguesa.

10 Considerações finais:

Qualquer dúvida a respeito das normas de submissão poderá ser dirimida por meio de mensagem encaminhada ao endereço eletrônico: [email protected]

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