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ISSN 2176-8765 Translatio Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga Vol. 4 (2012) - 01 - THOM, Paul. The Logic of the Trinity: Augustine to Ockham (G. B. Vilhena de Paiva) - 13 - PASNAU, R., Metaphysical Themes: 1274-1671 (M. A. Oliveira da Silva) - 20 - BATES, T. Duns Scotus and the Problem of Universals (V. M. F. R. Bragança) - 26 - BIARD, Joël. Science et nature. La théorie buridanienne du savoir (R. Miquelanti) - 35 - LIZZINI, O. Fluxus (fayd). Indagine sui fondamenti della metafisica e della fisica di Avicena (M. C. Sousa) Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ) Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) • Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo (UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu Mazzola Verza (UFMG) Revisão: Gustavo Paiva

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Page 1: Translatio 4 (2012)

ISSN 2176-8765

Translatio

Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval

e a Recepção da Filosofia Antiga

Vol. 4 (2012)

- 01 -

THOM, Paul. The Logic of the Trinity: Augustine to Ockham (G. B. Vilhena de Paiva)

- 13 -

PASNAU, R., Metaphysical Themes: 1274-1671 (M. A. Oliveira da Silva)

- 20 -

BATES, T. Duns Scotus and the Problem of Universals (V. M. F. R. Bragança)

- 26 -

BIARD, Joël. Science et nature. La théorie buridanienne du savoir (R. Miquelanti)

- 35 -

LIZZINI, O. Fluxus (fayd). Indagine sui fondamenti della metafisica e della fisica di Avicena

(M. C. Sousa)

Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma

publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação

Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).

Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ)

Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) •

Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo

(UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu

Mazzola Verza (UFMG)

Revisão: Gustavo Paiva

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 Translatio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN  2176-­‐8765  Vol.  4  (2012)  

THOM, P. The Logic of the Trinity: Augustine to Ockham, New York:

Fordham University Press, 2012, 236 p.

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________

I.

Em uma famosa passagem do segundo prefácio à sua Crítica da razão pura, Kant

defende que a lógica seguiu, desde seu surgimento com Aristóteles, a via segura

da ciência. Isso porque, em todo esse tempo, ela não deu nenhum passo atrás

(ou seja, ela não apresentou o desnorteamento típico dos conhecimentos que

ainda não seguem a via segura) e, por outro lado, também não deu nenhum

passo adiante (o que aponta para o seu acabamento e sua completude). Decerto,

pode-se dizer que houve, na lógica, “a remoção de sutilezas dispensáveis ou a

determinação mais clara do exposto”. Talvez possamos até contar isso como

“efetivos melhoramentos”, porém eles “pertencem mais à elegância do que à

segurança da ciência” (BVIII)1. Não é difícil perceber que, se seguirmos a opinião

de Kant, não sobra muito espaço para uma história da lógica. Que, de fato, era

essa a sua posição fica claro no seu próprio curso de Lógica, onde a história da

disciplina aparece mais como um adendo do que como algo necessário para a sua

compreensão2.

Com isso, vemos que a possibilidade de narrar uma história da lógica não

é exatamente um dado, mas uma conquista teórica. Essa conquista pressupõe a

afirmação de que houve mudanças relevantes e mapeáveis nos diversos

tratamentos que a lógica recebeu nos milênios de sua existência como disciplina.

Havendo admitido que haja importantes mudanças teóricas na lógica que

justifiquem a narrativa de uma história da lógica, restam, porém, vários problemas

metodológicos, alguns comuns a qualquer estudo histórico e outros mais típicos                                                                                                                          * Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES. 1 KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. e notas de Fernando Costa Mattos. Bragança Paulista/Petrópolis: Editora Universitária São Francisco/Vozes, 2012, p. 25. 2 KANT, I. Logik. Ein Handbuch zu Vorlesungen. Königsberg: Friederich Ricolovius, 1800, pp. 17-9.

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2  THOM,  P.  The  Logic  of  the  Trinity  

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desse campo preciso. Dentre os primeiros, talvez o mais urgente seja a

necessidade de decidir (i) o escopo de um estudo de história da lógica, tanto no

que diz respeito à temática como no que tange ao corpo textual utilizado (dois

problemas claramente relacionados). Já um problema que parece ser mais

característico de uma história da lógica é (ii) a decisão acerca da necessidade de

se recorrer ou não à formalização do conteúdo lógico estudado e, caso

recorramos a ela, a decisão sobre o tipo de formalização a se utilizar. Essa última

questão se torna particularmente patente quando nos deparamos com estudos

atuais sobre textos que se utilizavam de uma linguagem lógica muito distinta da

nossa contemporânea simbologia lógico-matemática.

Dito isso, é precisamente pelo ponto de vista da resolução desses

problemas que avaliarei o livro The Logic of the Trinity: Augustine to Ockham,

publicado em 2012 por Paul Thom3. Assim, abordaremos primeiramente a

maneira como Thom responde àquele problema (i) de caráter mais geral – a

saber, a definição do escopo e das fontes de um estudo da história da lógica. Ao

fazê-lo, teremos a oportunidade de seguir, resumidamente, os passos da

argumentação de Thom no decorrer do seu livro. Nesse momento, estaremos

em posição de ver como o autor busca lidar com o problema (ii) – isto é, a

decisão acerca da formalização do conteúdo lógico. Com efeito, o central no

livro de Thom parece ser este último ponto. Ainda assim, as maiores dificuldades

de sua obra surgem precisamente aí, pois não é fornecida ao leitor uma

concepção de formalização bem definida, como veremos mais adiante.

II.

Como fica claro pelo próprio título de seu livro, Thom espera fazer um estudo

histórico dos recursos lógicos utilizados, durante os mil anos que separam o

século IV do XIV, nas diversas tentativas de compreensão do dogma cristão da

Trindade, principalmente tal como ele foi compreendido pelos católicos, isto é,

como uma distinção, no Deus uno, entre três pessoas: o Pai, o Filho gerado pelo

                                                                                                                         3 A partir desse ponto, citarei sempre as páginas ou capítulos de The Logic of the Trinity entre parênteses no corpo do texto, reservando as notas de rodapé para demais referências.

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Pai e o Espírito Santo, procedente do Pai e do Filho4. Disso decorre que, ainda

que o autor discuta outras concepções da Trindade presentes no início do

cristianismo – dentre estas, as posições de Ário e Sabélio (caps. 1 e 2) –, ele, em

geral, deixa de lado as formulações da Trindade outras que não a católica. Em

particular, ele dispensa pouca atenção à conhecida polêmica do filioque, que

ecoava ainda no século XIII5, a qual é apenas rapidamente mencionada em seu

texto (pp. 12-3 e 164-5). Em poucas palavras, a Trindade a que Thom se refere é

aquela da Igreja Católica. Dito isso, é preciso ressaltar, entretanto, que o seu

interesse claramente não é religioso e, nem mesmo, diz respeito diretamente a

uma história da religião. Antes, ele pretende estudar as ferramentas lógicas de

que vários autores, desde Agostinho até Guilherme de Ockham, se utilizaram

para expressar coerentemente o dogma da Trindade em sua versão católica.

Nesse caso, podemos perguntar: qual é a legitimidade de se fazer um estudo de

lógica tomando por tema a Trindade?

Thom responde engenhosamente a essa questão, ao abrir se livro nos

lembrando de que “[t]he history of logic is not just a history of logic books. All sorts of

writings provide a fitting context for logical theorizing” (p. xv). Com efeito, não há

nenhum problema em se utilizar de obras voltadas para outras disciplinas –

digamos, a teologia – como uma fonte para o estudo da forma lógica utilizada

nesses textos. Mas, se for assim, é necessário mostrar que há neles “teorização

lógica”. De fato, podemos dizer que o principal objetivo de Paul Thom em seu

livro é justamente mostrar o quão densamente envoltas por temas lógicos foram

as discussões acerca da Trindade. Para tanto, ele escolhe um aspecto bem

determinado da lógica desenvolvida na Antiguidade Tardia e na Idade Média, a

saber, a temática das categorias – em particular, tal como ela foi posta nas

próprias Categorias de Aristóteles. Assim, o argumento de Thom em seu livro é,

basicamente, que toda a discussão sobre a Trindade desde Agostinho até

                                                                                                                         4 Essa é a formulação encontrada no Credo niceno-constatinopolitano, ainda hoje adotado pelo Catecismo da Igreja Católica. Edição típica Vaticana, São Paulo: Edições Loyola, 2000, pp. 58-9. 5 Como exemplo, citemos o Tratado sobre a procissão do Espírito Santo de Mateus de Aquasparta (MATTHAEUS AB AQUASPARTA. Tractatus de processione Spiritus Sancti. In: Id. Quaestiones disputatae de fide et de cognitione. Cura Pp. Collegii S. Bonaventurae. Florentiae: Typographia Collegii S. Bonaventurae, 1957, pp. 407-32).

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Guilherme de Ockham foi permeada de um conteúdo lógico, porque todos esses

autores, em suas tentativas de descrever racionalmente a doutrina da Trindade,

se reportavam às Categorias (p. 18). Para demonstrar sua tese, Thom estuda a

concepção de Trindade tal como ela surgiu em diversos autores, se guiando pela

ordem cronológica de suas obras.

Para ser mais preciso, o método pelo qual Thom espera provar sua

hipótese é apontar como os vários autores por ele abordados se utilizam, de

uma maneira ou de outra, para compreender a Trindade, das ferramentas lógicas

estabelecidas por Aristóteles nas Categorias. Sendo assim, o próprio livro se inicia

por um estudo dos diversos temas implicados na discussão medieval sobre a

Trindade, sendo nesse começo reservado um espaço especial para uma

apresentação das Categorias à luz de algumas das suas interpretações

neoplatônicas. Dentre aquelas ferramentas lógicas dessa obra de Aristóteles que

viriam a ser relevantes nos trabalhos sobre a Trindade, se destacam as noções de

substância, de acidente (com especial atenção para a qualidade e a relação), bem

como as relações – denominadas por Thom “ontológicas” (p. 15) – que

conectam, por um lado, a substância primeira e a substância segunda e, por

outro, a substância e o acidente (cap. 1). Como veremos mais adiante, todas

essas noções e relações ontológicas são definidas pelo que Thom chama de

“análise formal” (“formal analysis”) das Categorias (pp. 13-8). Por ora, notemos

que, definidos esses conteúdos fundamentais das Categorias, Thom acredita poder

mostrar que toda a discussão sobre a Trindade, como foi dito, remete a eles em

alguma medida.

Assim, começando com um estudo dos primeiros oito livros do De

Trinitate de Agostinho, Thom discute, nessa ordem, as posições de Boécio, Pedro

Abelardo, Gilberto de Poitiers, Pedro Lombardo, Boaventura de Bagnoregio,

Alberto Magno, Tomás de Aquino, João Duns Escoto e Guilherme de Ockham,

dedicando a cada autor um capítulo. Em cada capítulo, o teor é sempre o

mesmo: são apresentadas as teses do autor em estudo sobre a Trindade,

mostrando em que momentos ele se utiliza do material contido nas Categorias e

de que maneira ou em que medida esse instrumental é por ele modificado para

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se conformar às suas próprias teses. Em linhas gerais, Thom parece considerar

que as discussões sobre a Trindade se utilizam diretamente do material lógico e

filosófico fornecido por Aristóteles, porém reinterpretado para se conformar à

maneira pela qual Agostinho descreveu a unidade e trindade de Deus. Podemos

dizer que o que mais chama a atenção nos autores é o esforço conceitual para

introduzir relações e qualidades que viabilizem a manutenção, simultaneamente,

da unidade e da trindade de Deus sem, entretanto, prejudicar a concepção de

Deus como algo sumamente simples e infinito. Desse ponto de vista, o livro de

Thom parece ser interessante ao apontar certas fontes históricas –

nomeadamente, as obras de Aristóteles e Agostinho, mas também, e em menor

medida, as de Boécio e Pedro Lombardo – como o foco dos debates sobre a

Trindade na Idade Média. Ainda assim, esse não é um resultado novo ou

inesperado.

Feitas essas observações, um grande problema de The Logic of the Trinity é

o fato de que ele não apresenta as bases históricas suficientes para um estudo da

envergadura almejada pelo autor. Com isso quero dizer que, ao abordar onze

autores tão complexos como aqueles supracitados, Thom deveria se utilizar de

uma grande bibliografia de apoio que lhe fornecesse as ferramentas

historiográficas necessárias não somente para relacionar os autores estudados

entre si, mas também para interpretá-los com a acuidade requerida. Infelizmente,

não é isso o que ocorre. Três exemplos bastam para apontar esse fato.

Em primeiro lugar, o estudo feito acerca de Agostinho (cap. 2) é

sintomático a esse respeito. São utilizados somente textos do próprio Agostinho,

com remissão a pouquíssimos intérpretes do bispo de Hipona. As únicas

referências secundárias são à introdução de Edmund Hill à sua tradução do De

Trinitate (p. 20)6, a um artigo de Alain de Libera sobre Boécio (p. 22-3)7 e a um

livro contemporâneo de teologia (p. 27)8. O resultado desse desconhecimento

                                                                                                                         6 AUGUSTINE. The Trinity (De Trinitate). Translated by Edmund Hill. Hyde Park: New City Press, 1991. 7 DE LIBERA, A. “L’onto-théo-logique de Boèce. Doctrine des catégories et théorie de la predication dans le De Trinitate”. In: BRUUN, O., CORTI, L. (ed.). Les Catégories et leur histoire. Paris: Vrin, 2005, pp. 175-222. 8 MILLER, B. A Most Unlikely God. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1996.

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da bibliografia secundária sobre o tema é o fato de que Thom nem mesmo chega

a problematizar seriamente a maneira pela qual Agostinho teria tomado contato

com os textos filosóficos gregos. Decerto, Agostinho admite ter lido ainda novo

as Categorias em um trecho das Confissões citado pelo próprio Thom (p. 22)9. Ele

faz, inclusive, remissões diretas a elas no De Trinitate, segundo os editores

contemporâneos deste texto10. Além disso, o bispo de Hipona também afirma

ter lido “quosdam libros Platonicorum” traduzidos para o latim por Mário

Vitorino11. Isso aponta para o fato de que as Categorias a que Agostinho se refere

poderiam ser aquelas traduzidas para o latim pelo mesmo Mário Vitorino. Essas

questões deveriam ser centrais em uma análise da influência das Categorias na

obra de Agostinho, porém Thom não dedica atenção a nenhuma delas. Com

efeito, este é um problema recorrente em seu livro: ele simplesmente ignora

qualquer questão relativa à transmissão e tradução dos textos em estudo, uma

vez que descreve o conteúdo das Categorias com base na edição de L. Minio-

Paluello12 e na tradução de J. Ackrill13 para, posteriormente, comparar todos os

demais autores estudados a essa descrição inicial do texto de Aristóteles14. É

como se todos esses pensadores tivessem lido as Categorias em grego, em uma

edição crítica contemporânea.

Um segundo exemplo é o estudo de Thom acerca de Boaventura (cap. 7).

Não há nenhuma literatura secundária utilizada, com a exceção de uma tese de

doutorado defendida em 197415 (p. 113). E isso quando há estudos de qualidade

sobre a doutrina da Trindade em Boaventura16! Essa mesma desatenção à

bibliografia secundária leva a um grande problema no trecho acerca de Duns                                                                                                                          9 AUGUSTINUS. Confessionum IV, 16, 28, 1-7 (CCSL 27, p. 54). 10 AUGUSTINUS. De Trinitate V, 4, 24-32; 7, 21-45 (CCSL 50, pp. 210; 213). 11 AUGUSTINUS. Confessionum VIII, 2, 3, 1-9 (CCSL 27, p. 114). 12 ARISTOTELES. Categoriae et Liber De Interpretatione. Ed. L. Minio-Paluello. Oxford: Clarendon Press, 1993. 13 ARISTOTLE. Categories and De Interpretatione. Trans. by J. Ackrill. Oxford: Clarendon Press, 1966. 14 Para maiores detalhes sobre esse método utilizado por Thom, ver a parte III, mais adiante. 15 GELBER, H. G. Logic and the Trinity: A Clash of Values in Scholastic Thought 1300-1335. PhD thesis, University of Wisconsin, 1974. 16 Como exemplo, cito BÉRUBÉ, C. De l’homme à Dieu selon Duns Scot, Henri de Gand et Olivi. Roma: Collegio S. Lorenzo, 1983, pp. 81-112. Além disso, há o livro SÉPINSKI, A. La psychologie du Christ chez Saint Bonaventure. Paris: Vrin, 1948, inteiramente dedicado ao estudo da segunda pessoa da Trindade.

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Escoto (cap.10), nosso terceiro exemplo, onde Thom inadvertidamente cita uma

passagem, atribuída por ele a Duns Escoto, da Reportatio parisiensis I, d. 33, q. 2,

publicada em 1639 na edição de Lucas Wadding das obras do Doutor Sutil (p.

154). Entretanto, se ele estivesse a par da bibliografia contemporânea acerca de

Duns Escoto, saberia que esse texto é tido, desde o começo do século XX,

como um conjunto de anotações do secretário deste último, Guilherme de

Alnwick, não editadas pelo próprio Duns Escoto e, por isso, hoje denominadas

Additiones magnae. Nesse caso, Thom poderia ter consultado a edição

contemporânea da Reportatio parisiensis I-A, produzida por Allan Wolter e Oleg

Bychkov entre os anos de 2004 e 200817 e mais corretamente atribuída a Duns

Escoto (essa última edição, entretanto, nem mesmo consta na bibliografia de The

Logic of the Trinity). O mais interessante é que Thom poderia ter percebido

facilmente o seu equívoco pela simples consulta da introdução de Thomas

Williams ao Cambridge Companion to Duns Scotus18 (nesse caso, um livro que está

na sua bibliografia).

Com esses três casos, quero apenas chamar atenção para o fato de que

um estudo com a abrangência objetivada por Thom deveria ser acompanhado de

um aparato de literatura secundária muito mais amplo e arrojado. Com efeito,

somente com uma base teórica muito bem estabelecida se poderia fazer a

conexão ali buscada entre os diversos autores, pois isso seria possibilitado por

um tratamento bem mais acurado de cada autor individualmente, do que se

seguiria uma melhor compreensão das relações entre eles. Como vimos,

entretanto, esse não é o caso em The Logic of the Trinity, o que é, com efeito, uma

pena, dado que a tese de Paul Thom acerca do uso das Categorias de Aristóteles

nas discussões sobre a Trindade mereceria um detalhado estudo histórico.

No entanto, esse exíguo recurso à bibliografia especializada disponível

sobre cada autor abordado aponta para o caráter do livro de Thom. Ele não é

exatamente uma história da discussão latina sobre a Trindade; com efeito, a bem                                                                                                                          17 JOHN DUNS SCOTUS. The Examined Report of the Paris Lecture. Reportatio I-A. Latin text and english trans. by A. W. Wolter and O. V. Bychkov. 2 vols. St. Bonaventure: The Franciscan Institute, 2004-8. 18 WILLIAMS, T. “Introduction”. In: Id. (ed.). The Cambridge Companion to Duns Scotus. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 1-14.

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dizer, ele nem mesmo soa como uma história da lógica utilizada nos discursos

sobre a Trindade. Para ser preciso, seu livro acaba se apresentando como um

estudo que se utiliza da história de uma discussão filosófica e teológica como a

ocasião para o desenvolvimento de um exercício lógico, a saber, a formalização

de diversas doutrinas acerca da Trindade. O que nos leva ao problema (ii)

descrito acima, que diz respeito à decisão acerca da formalização de um

conteúdo lógico.

III.

Como foi dito, o capítulo inicial, no qual Paul Thom constrói as bases de sua

argumentação sob a forma de uma apresentação das Categorias, se encerra por

aquilo que é denominado de “análise formal” desse texto de Aristóteles19.

Igualmente, todos os outros capítulos do livro se encerram por uma análise

formal das posições defendidas por cada autor estudado. Em particular, Thom se

utiliza desse recurso para mostrar, em cada caso, em quais trechos da sua

argumentação um autor em questão se afasta ou se aproxima das Categorias de

Aristóteles. Essas avaliações são feitas sempre no formato de uma comparação

entre determinadas regras e definições utilizadas e/ou introduzidas por um

pensador em particular com aquelas regras e definições que podemos encontrar,

segundo Thom, nas próprias Categorias. A dificuldade nesse ponto, porém, é que

Thom não define precisamente o que ele quer dizer com “formal” e, nem

mesmo, com “lógica”, o que torna a sua tentativa de formalização das posições

dos autores tardo-antigos e medievais um tanto quanto incompleta. Para

estudarmos mais atentamente esses problemas, comecemos com um exemplo

simples que, no entanto, deixa bem clara essa dificuldade de The Logic of the

Trinity.

Ao fim do livro, em um apêndice (pp. 181-3), Thom apresenta os diversos

“sistemas ontológicos” (“ontological systems”) que ele afirma ter encontrado nos

                                                                                                                         19 Já vimos que, para esse estudo, Thom se utiliza da edição de L. Minio-Paluello e da tradução de J. Ackrill das Categorias (ver notas 12 e 13, acima), relacionando os resultados obtidos a todos os outros autores considerados em seu livro. Ele o faz, porém, sem problematizar qualquer aspecto da transmissão histórica do texto de Aristóteles.

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diversos autores que estudou. O sistema ontológico de Aristóteles, por

exemplo, é composto por 4 relações, 4 definições e 10 regras. Todos os outros

(de Agostinho, Boécio e cada um dos demais autores estudados) se compõem de

algumas das regras e definições de Aristóteles somadas a regras ou definições

incluídas pelos próprios autores (por vezes, no lugar de alguns dos elementos

das Categorias). O problema aqui é simples: não está nem um pouco claro o que

Thom quer dizer com “sistema ontológico”. Em outras palavras, o que faz de

cada uma dessas posições um sistema? E o que torna esses pretensos “sistemas”

ontológicos? Essas perguntas são simplesmente ignoradas e, assim, por falta de

uma definição que torne coesas as listagens de definições e regras aceitas por

cada autor, cada sistema ontológico parece ser somente uma série de

proposições que nem mesmo podem ser tomadas, em algum sentido, como uma

consideração completa sobre o mundo, dado que, segundo Thom, as relações

que unem seus elementos são, em todos os casos, indefinidas (pp. 181-3). Essa

dificuldade aponta para um problema recorrente no livro, a saber, a falta de

definições precisas dos termos utilizados.

Isso se torna ainda mais grave quando é somado a contradições do

próprio texto de Thom. Assim, ainda no prefácio, é dito: “I will not attempt to

deploy the machinery of mathematical logic, with its formalized syntax and semantic

models” (p. xv). Diz-se aqui, claramente, que não se trabalhará com uma “sintaxe

formalizada”, um recurso que Thom parece atribuir ao “maquinário da lógica

matemática”. Ora, como foi dito acima, cada capítulo do livro é encerrado por

um item denominado justamente “formal analysis”. Isso torna muito difícil

compreender o que exatamente Thom entende por “formal”, dado que

inicialmente qualquer análise formal é descartada do âmbito da obra, para em

seguida se tornar um de seus pilares. Poder-se-ia afirmar que Thom descarta o

uso de uma análise formal matemática, mas se utiliza de alguma outra. Nesse

caso, qual seria a outra? Ele simplesmente não diz. Essa falta de clareza na

concepção de “formalização” adotada no livro leva a uma desproporção na

utilização da simbologia lógica em seu decorrer. Assim, a análise formal das

Categorias de Aristóteles (pp. 13-8) recorre constantemente a elementos de

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simbologia lógica, enquanto que a análise formal das posições filosóficas de

Alberto Magno possui somente um diagrama (pp. 127-8). Por todo texto

encontramos afirmações do seguinte tipo: “Rule 1.9 (‘a correlative’s correlative is

the original relative’) is satisfied” (p. 41), sem qualquer demonstração lógica

associada a ela. Por fim, há casos em que a “análise formal” parece simplesmente

se afastar demais do texto em estudo – isso fica patente logo na primeira

tentativa de análise formal, a saber, sobre o próprio Aristóteles. Com efeito,

Thom afirma que a primeira definição que devemos isolar nas Categorias diz

respeito à noção de “universal” (“katholou”). Ora, a palavra “universal” não surge

nas Categorias como tema central e, ainda que seja utilizada no livro (12a27),

dificilmente se poderia afirmar que ela é a base de toda a lógica aí desenvolvida

por Aristóteles. Como se vê, mais do que facilitar o estudo dos autores em

questão, a análise formal proposta por Thom arrisca nos afastar deles.

A meu ver, essas imprecisões se seguem de uma falta de clareza com

respeito àquilo mesmo que se está entendendo por “lógica” em The Logic of the

Trinity. Como vimos há pouco, o autor parece se dispor a formalizar as doutrinas

da Trindade de autores tardo-antigos e medievais sem se utilizar de recursos

formais matemáticos, mas também sem explicar o que exatamente ele entende

por “formalização”. Fica a pergunta: de que lógica ele está se valendo para essa

formalização? Ele se utiliza de recursos obtidos pelas lógicas heterodoxas

contemporâneas ou se limita a um uso estrito das lógicas clássicas? Em qualquer

dos casos, como os recursos lógicos de que ele se vale remetem aos pensadores

e, em particular, a Aristóteles? Todas essas perguntas ficam sem resposta,

mesmo porque não há uma utilização precisa da silogística. Um exemplo disso é

o fato de que nenhum dos argumentos avançados por quaisquer autores é, de

fato, representado formalmente. Dessa maneira, essa “formalização” acaba

ficando restrita somente ao enunciado de regras e definições, não se estendendo

aos próprios raciocínios desenvolvidos por Agostinho, Boécio e os outros

pensadores estudados. Todas essas dificuldades nos levam ao último ponto que

destacarei: a aparente incompreensão da lógica medieval por parte de Thom.

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Logo após o trecho citado acima – a saber, aquele em que o autor ora

resenhado afirma que não se utilizará de recursos matemáticos –, são apontados

os elementos que farão parte de sua análise: “I will use notions that the medieval

themselves had at their disposal – basic semantic notions such as the distinction

between language and nonliguistic world, and the idea that between these two there

are relations of naming or being-true-of, as well as metaphysically charged notions such

as the distinction between what a term is true of and what it is essentially true of, and

the distinction between the concrete and the abstract” (p. xv). Ou seja, Thom

pretende se utilizar não de recursos matemáticos em suas análises, mas dos

recursos que os medievais tinham a sua disposição, isto é, noções semânticas

básicas. Pois bem, me pergunto o que exatamente se quer dizer com “básico”

aqui. Se “básico” quiser dizer “simples” ou “simplório”, em oposição a

“complexo”, pergunto como autores que tiveram pleno acesso à silogística de

Aristóteles e a levaram aos mais altos graus de complexidade (como é o caso da

maior parte dos autores estudados no livro) podem ser descritos como

utilizadores de recursos lógicos e semânticos meramente “básicos”? Se, por

outro lado, Thom estiver dizendo que, embora os medievais possuíssem

recursos extremamente complexos de raciocínio lógico, ele próprio vai se limitar

às noções básicas utilizadas por estes últimos (sem se remeter àquelas mais

complexas), pergunto por que se limitar ao mais básico? Por que seria isso uma

boa estratégia para expressar um raciocínio complexo?

***

Enfim, The Logic of the Trinity parece apresentar interessantes hipóteses

históricas que, ainda que não sejam exatamente novas, certamente mereceriam

um estudo cuidadoso. Entretanto, Paul Thom se vê impossibilitado de

desenvolver seriamente as suas hipóteses em razão das graves falhas

metodológicas de que seu projeto é vítima – desde o parco recurso à bibliografia

secundária até a falta de clareza quanto às noções de “formalização”, de “sistema

ontológico” e, mesmo, de “lógica” utilizadas na sua obra. Dessa maneira, ainda

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que o livro apresente esporadicamente interpretações instigantes dos

pensadores estudados e se volte para um tema de clara importância para a

história da filosofia e da lógica, não podemos considerar que ele seja bem

sucedido em sua empreitada. Como dizíamos acima, a possibilidade de se

escrever uma história da lógica não é um dado, mas uma conquista. Sendo assim,

ela vem acompanhada de graves problemas metodológicos – como, aliás,

qualquer narrativa histórica. Thom se arrisca a colocá-los. Não o faz, no entanto,

de maneira clara. Por isso mesmo, ele não fornece nenhuma resposta para eles;

antes estes o enredam em um labirinto sem fim.

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PASNAU, R., Metaphysical Themes: 1274-1671, Oxford/New York:

Oxford University Press, 2011, xiii + 796p.

Marco Aurélio Oliveira da Silva* ___________________________________________

Robert Pasnau elegeu seis temas para investigar o desenvolvimento ocorrido na

história da filosofia entre o final do século XIII e o século XVII. Estes temas

organizam as seis partes do livro: matéria, substância, acidentes, extensão,

qualidade e, por fim, unidade e identidade. O diferencial da obra é a tentativa de

ser exaustiva quanto aos filósofos analisados, sem distinguir autores “canônicos”

e autores de menor relevância. Há, com efeito, várias referências a Tomás de

Aquino, Guilherme de Ockham, Descartes e Locke, mas também a inúmeros

outros autores, como João Crisóstomo Magnem, Paulo de Veneza e Henry

More, para não citar todos.

A primeira parte do livro, contudo, mostra-se, senão a mais importante, pelo

menos a que teve maiores consequências para os demais temas abordados na

obra. O norte do autor é demonstrar a evolução da concepção física

aristotélico-escolástica, dependente da noção de matéria-prima, até o surgimento

da filosofia mecanicista no período moderno. O A. apresenta o modelo

corpuscular de explicação dos corpos físicos – que os toma como constituídos

de corpúsculos indivisíveis – como central para a rejeição do hilemorfismo

aristotélico.

Contudo, como salienta o A. (pp. 8-9), as discussões sobre o

corpuscularismo não são uma inovação absoluta do período moderno, já

podendo ser observadas em autores como Alberto Magno (c. 1200-1280), Egídio

de Roma (1243/7-1316), Nicolau de Oresme (c. 1320-1382) e Alberto da

Saxônia (c. 1316-1390).

                                                                                                                         *  Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).  

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Quanto à noção de matéria-prima, o A. dedica-se a explicitar o problema,

ou seja, como poderia existir algo sem ter alguma característica (p. 36)? O

problema central, neste caso, é a distinção entre a matéria e a categoria da

quantidade, uma vez que, para muitos autores escolásticos, a extensão (ocupar

lugar no espaço) adviria da quantidade, e não da matéria-prima.

A noção de matéria-prima esteve longe de uma posição unânime na

Escolástica. Tomás de Aquino (1224/5-1274) a tomava como uma pura

potencialidade, sem, portanto, nenhuma existência em ato. Em contrapartida,

Guilherme de Ockham (c. 1287-1347) a toma como dotada de extensão, o que o

leva, dentro de seu projeto de redução ontológica, a considerar a quantidade

uma categoria desnecessária (pp. 66ss.).

Para ilustrar ainda mais a discussão sobre a qual se debruça o A., depois de

este analisar a teoria de Paulo de Veneza (c. 1369-1424) sobre a ausência de

extensão da matéria-prima, passa a analisar a posição averroísta. Na página 62,

ele relata a importância de um livro de Averróis denominado De Substantia Orbis,

tratando-se de um texto pouco estudado recentemente, mas muito influente no

séc. XIV, principalmente quando trata da matéria-prima como algo dotado de

extensão, ou seja, entendida como uma matéria já quantificada.

Além disso, na discussão sobre que tipo de entidade seria a matéria-prima,

há também a distinção entre nominalistas e realistas, não acerca dos universais,

mas acerca das categorias – principalmente a categoria da qualidade –

notadamente nos anos 1400's (p. 83ss.).

A segunda parte da obra é devotada ao tratamento das formas substanciais. O

problema central é entender como se pode ter um conhecimento adequado de

formas substanciais de espécies naturais, uma vez que sensivelmente apreende-se

apenas propriedades acidentais.

Neste sentido, o A. apresenta a importância da tese da univocidade do ser,

seja dito da substância, seja dito do acidente. Partindo da concepção de Duns

Scotus (1265/6-1308), dado que só conhecemos a partir dos acidentes recebidos

sensivelmente, poderemos ter uma compreensão intelectual da substância, uma

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vez que o ser desta se diria no mesmo sentido em que seria dito o dos acidentes

(p. 126).

Contudo, além desta crítica de Scotus à posição tomasiana, o A. (pp. 128-

9) assinala a existência de autores céticos acerca da existência da substância em

geral, como Guilherme de Crathorn (fl. c. 1330) e Nicolau de Autrecourt (c.

1298-1369), para os quais haveria apenas distinções acidentais entre as coisas

sensíveis.

Neste ponto, o A. acusa de espantalho a argumentação utilizada por

autores modernos, como Locke (1632-1704), que acusava os autores

escolásticos de realistas ingênuos, por pretensamente julgarem poder conhecer

diretamente as formas substanciais, ao passo que os medievais saberiam que as

espécies naturais eram conhecidas apenas por suas características acidentais.

Neste sentido, não seria garantido ao intelecto humano o conhecimento de

outras formas substanciais que não a própria forma humana, que seria conhecida

por um certo ato de reflexão.

Na terceira parte da obra, o A. trata dos acidentes. O pano de fundo é a

discussão sobre as posições deflacionárias acerca da existência dos acidentes. A

discussão tem em vista os autores modernos que rejeitam a existência

independente dos acidentes, incluindo o da qualidade, tomando-os como modos

da substância. Um bom exemplo é Thomas Hobbes (1588-1679) em seu De

Corpore (esp. 8.3 apud p. 181). Em contrapartida, o desenvolvimento da questão

na Escolástica giraria em torno da consequência teológica da doutrina

deflacionária dos acidentes. Pois parece haver uma inconsistência entre tomar os

acidentes como modos da substância e a explicação dada ao mistério da

Eucaristia.

A posição crítica de Scotus à visão deflacionária sobre os acidentes, por

exemplo, decorre de sua doutrina sobre a univocidade do ser, com relação à

substância e aos acidentes. Neste sentido, Scotus, contra Tomás de Aquino,

pensa que o acidente tomado em abstrato (albedo, brancura) tem mais existência

do que o acidente tomado em concreto (albo, branco) (p.196).

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Em seguida, ao tratar da inerência dos acidentes (p. 200), o A. apresenta

como a posição de Scotus tornou-se predominante ao longo do século XIV. Em

contrapartida, as posições de autores divergentes, como Pedro Auréolo (c.

1280-1322), tiveram uma recepção negativa, sendo rejeitadas dogmaticamente.

Auréolo, com efeito, toma a brancura como um modo do pão (pp. 217-220). A

pergunta que se colocava por consequência era como explicar a mudança

substancial na Eucaristia ao se tomar os acidentes nestes termos? Portanto, ao

longo dos quatro séculos analisados pelo A., a doutrina dos acidentes tem mais

repercussões teológicas do que filosóficas; observe-se que mesmo Ockham

manteve o realismo da qualidade, embora tivesse rejeitado o realismo de todos

os demais acidentes.

Por fim, o A. apresenta o entendimento de Francisco Suárez (1550/1-1618)

e de Descartes (1596-1650), os quais elaboraram teorias sobre os modos da

substância, considerando que o modo tem um menor grau de ser do que a

substância.

Na quarta parte do livro, o A. aborda a extensão dos corpos. Este capítulo é o

ponto alto da obra, particularmente ao abordar a relação entre as substâncias

imateriais (as mentes) e o lugar no espaço, explicando como os escolásticos se

contrapunham à tese segundo a qual a mente – embora real – não existiria em

lugar algum.

Ao abordar a distinção entre extensão e mente, o A. trata do papel que o

abandono do hilemorfismo no séc. XVII teve para tornar mais difícil a explicação

do que é imaterial, como Deus e alma humana. Neste sentido, o A. afirma que

quando os autores do século dezessete colocaram em dúvida a distinção forma-

matéria, em detrimento de uma visão na qual apenas as substâncias (e talvez os

modos) existem, eles deram o primeiro passo para solapar a distinção padrão

entre o material e o imaterial. Pois, agora, em vez de um mundo divido em

forma, matéria e o composto dos dois, temos apenas um mundo de substâncias.

Como saberemos quais destas substâncias devem contar como materiais e quais

não devem? (p. 324)

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Observe-se que com o auxílio do hilemorfismo é possível “localizar” a

mente na sua relação com o composto hilemórfico do qual é forma. Em seguida,

o A. apresenta o papel que Descartes teve ao delinear a distinção entre mente e

corpo, definindo-os como, respectivamente, pensamento e extensão, rompendo

com o pensamento medieval sobre o hilemorfismo e sobre a distinção entre

quantidade e extensão (p. 324).

O A., partindo de um neologismo proposto por Henry More (1614-1687),

“holenmeric” (p. 337), explica que os escolásticos tomavam extensão em um

sentido muito preciso – o de ter parte exterior a outra parte – e não apenas o

de ocupar lugar no espaço. Neste sentido, as substâncias imateriais estariam

como um todo em cada uma das partes do espaço as quais ocupam. Portanto,

mentes não teriam extensão no sentido escolástico (pars extra partem), mas é

falso afirmar que a mente não se encontra em lugar algum. O A. considera ainda

(p. 322) que a crença de que a mente não está em lugar algum, comumente

atribuída a Descartes, surge da consideração do cartesianismo abstraído de seu

contexto histórico, ou seja, sem levar em consideração os autores contra os

quais e com os quais estava dialogando.

Na quinta parte, o A. se prende a questões históricas para explicar o que ele

considera um demorado desenvolvimento histórico no sentido de promover

uma explicação reducionista do acidente da qualidade. Por exemplo, é ressaltado

o papel da condenação eclesiástica à tese de João de Merecourt (fl. 1344-7)

sobre a redutibilidade da qualidade, na Igreja de Paris em 1347. O A. chega a

considerar que o declínio da Escolástica coincide com o declínio do realismo

sobre a categoria da qualidade (p. 418), vista como fundamental para a explicação

da transubstanciação no mistério da Eucaristia, e com a redescoberta e releitura

do atomismo.

Daí, outro dado histórico fortemente ressaltado pelo A. é a descoberta do

De Rerum Natura de Lucrécio, em 1417, que foi reimpresso 36 vezes até 1620,

além das cartas de Epicuro, acessíveis na tradução latina de 1420 de A vida dos

Filósofos de Diógenes de Laércio (p. 418).

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No período moderno, o A. tematiza a distinção entre qualidades primárias

e secundárias por Locke, pontuando que este tem em mente que será conhecida

de seu leitor a discussão de Aristóteles no livro II do Geração e Corrupção,

quando este deriva das quatro qualidades básicas (quente, frio, úmido e seco) a

existência dos quatro elementos (terra, água, fogo e ar) (pp.459ss.).

Na última parte do livro, por fim, o A. se dedica à explicação da unidade e

identidade da substância ao longo do tempo. Quando trata da unidade, o A.

parte de Marsílio de Inghen (c. 1340-1396), em seu comentário ao Geração e

Corrupção, para propor que sem a admissão de formas substanciais não haverá a

distinção entre alteração (mudança qualitativa) e geração (p. 553), pois esta seria

redutível àquela.

Outra discussão proposta pelo A. é o problema sobre a pluralidade de

formas substanciais (pp. 574-6), opondo a visão unitária de Tomás de Aquino à

visão pluralista de Henrique de Gand (c. 1217-1293), Duns Scotus e Guilherme

de Ockham. Por exemplo, deveríamos admitir em Sócrates apenas uma forma

substancial (humanidade) ou várias (humanidade, animalidade, corporeidade,

etc.)?

Estas considerações são uma pequena amostra do rico apanhado de problemas

filosóficos apresentados pelo A. referentes aos quatro séculos abordados.

Quanto ao livro de um modo geral, seu maior mérito é o esforço de abordar

autores pouco estudados. O A. trata como fonte primária 100 autores e o

Collegium Conimbricense; arrisco-me a dizer que para alguns filósofos abordados,

Pasnau tornou-se a única literatura secundária disponível, já que o mesmo

assinala a exiguidade ou inexistência de comentadores nestes casos (p. 12).

Chamo atenção ao fato de que muitas das obras de literatura primária por

ele citadas encontram-se digitalizadas e disponíveis na Internet, o que permitiu

que um trabalho deste porte tenha sido realizado no interior do Colorado.

Contudo, espero francamente que este trabalho de Pasnau estimule outros

pesquisadores a enveredarem por autores tantos, tão profundos e tão pouco

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estudados.

Em suma, Metaphysical Themes. 1274-1671 é um livro a ser lido o quanto

antes, não só por medievalistas, mas também por estudiosos da filosofia do

século XVII.

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BATES, T. Duns Scotus and the Problem of Universals, Londres:

Continuum, “Continuum Studies in Philosophy”, 2010, x + 166 p.

Vitor Mauro F. R. Bragança* ___________________________________________

O livro é o resultado de uma série de modificações formais e materiais

operadas por Todd Bates sobre sua tese de doutorado, defendida em 2003 na

Universidade da Pensilvânia. Os objetivos centrais, no entanto, permaneceram os

mesmos desde a defesa e são distintos em número e natureza: demonstrar tanto

a tese exegética de que o realismo essencialista de Scotus é mereológico, quanto

a conclusão metafísica de que o realismo escotista assim caracterizado consiste

em uma postura filosoficamente palatável mesmo nos dias atuais e que não

precisa ser tratada com “mero interesse antiquário” (p. 2).

Na cartografia filosófica, o realismo de Scotus é uma dentre as várias

localidades que constituem o mapa daquele que chegou a ser considerado o mais

representativo dentre os problemas filosóficos do medievo, ou seja, o problema

dos universais. Uma compreensão precisa dos objetivos acima listados, por

conseguinte, está intimamente atrelada ao delineamento nítido dos contornos

desse problema. Levar a cabo tal tarefa é justamente um dos papéis do primeiro

e introdutório capítulo, espirituosamente intitulado “Scotus Recidivus?” – um

malabarismo com uma palavra latina mais recorrente na literatura, “redivivus”. O

capítulo é dividido em três seções, além de uma pequena inserção inicial na qual

o autor cita, visando ilustrar o ônus da tarefa a que se propõe, passagens

depreciativas de grandes nomes da filosofia analítica dirigidas a Scotus e seu

aparato conceitual. As subsequentes três seções tratam de delinear noções

básicas dos meandros do texto: primeiramente, a superfície e o núcleo do

problema dos universais; posteriormente, diferenças fundamentais entre

ontologias com raízes aristotélicas, como a de Scotus e fregeanas; finalmente, a

                                                                                                                         *  Doutorando do PPGLM/UFRJ.  

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pequena seção III indica de modo sumário aspectos básicos do realismo de

Scotus e a estrutura geral dos capítulos seguintes. No que toca o conteúdo dessa

parcela do livro, é digno de nota que há na seção II certa confusão por parte de

Bates quanto ao fundamento da diferença entre os dois tipos de ontologia

abordados. De início, tem-se a impressão – ocasionada pelo próprio título da

seção – de que o diferencial das ontologias opostas a de Scotus é que elas

tomam eventos como seus itens básicos. Na realidade, porém, os argumentos do

texto acabam por se dirigir não somente a ontologias de eventos, mas a qualquer

ontologia que tome a noção de instanciação como tendo preponderância sobre

as noções de constituição e do par parte/todo – e é evidente que podem haver

ontologias não comprometidas com uma noção irredutível de eventos, mas nas

quais essências sejam propriedades instanciadas. Além da supradescrita confusão,

é também bastante inadequada a presença nessa mesma seção II – pertencente à

introdução – de uma análise pormenorizada do argumento de Scotus contra a

tese de que naturezas são universais em ato. O que torna esse arranjo ainda mais

surpreendente é que em sua tese de doutorado Bates situava tal trecho em um

capítulo posterior e não-introdutório.

O capítulo 2 versa sobre a concepção escotista da estrutura física das

substâncias materiais, constituída basicamente por forma e matéria. Seguindo a

linha de seu antecessor, esse capítulo é composto por três seções e um trecho

inicial onde o autor adianta os temas das mesmas, obedecendo à seguinte ordem:

matéria, forma substancial e distinção real entre ambas. Dentre os pontos ali

desenvolvidos, há alguns que merecem destaque, como por exemplo o de que

boa parte das críticas à noção aristotélica de forma substancial se devem à sua

interpretação por um viés fregeano em detrimento de um viés mereológico. De

modo geral, no entanto, o capítulo é bastante problemático. Primeiramente,

parece um tanto deslocado em relação ao restante da obra, visto que falha

sistematicamente em extrair do hilemorfismo escotista elementos conceituais

que contribuam para a abordagem do tema central do livro. A seção sobre

matéria é bastante emblemática nesse sentido, pois praticamente se restringe a

uma crítica, baseada em Aristóteles, da concepção quadridimensionalista de

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22  BATES,  T.  Duns  Scotus  and  the  Problem  of  Universals  

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mudança, um tema cuja articulação com o problema dos universais parece um

tanto quanto artificial, se é que possível. Além disso, na seção III há um erro

primário na formalização do argumento utilizado para responder a uma crítica de

Richard Cross a Scotus. Para demonstrar a separabilidade total da matéria em

relação à forma, ou seja, que uma porção de matéria pode subsistir sem estar

relacionada a forma alguma, deve-se concluir que1:

◊  (¬ Rab ∧ ¬ Rac)

Bates, no entanto, apenas demonstra o seguinte:

◊ ¬ (Rab ∧ Rac)

Ou seja, a trivialidade de que a matéria pode não estar (simultaneamente)

informada por todas as suas possíveis formas.

Por fim, passa despercebido pelo autor que a assunção da premissa

necessária para conceder a distinção real a Scotus – a contingência distributiva de

uma relação implica sua contingência coletiva – tem consequências graves para a

rejeição por parte do próprio Scotus de naturezas comuns separadas. Com

efeito, cada uma das individuações de naturezas comuns é (distributivamente)

contingente. Ora, dada a premissa acima, concluir-se-ia que a individuação é, em

geral, (coletivamente) contingente e que, portanto, poderiam existir naturezas

comuns não individualizadas ou, em outras palavras, separadas de seus indivíduos.

O capítulo 3 constitui o núcleo do livro, pois se foca na mais importante

ferramenta conceitual de que dispõe Scotus para a solução do problema dos

universais, ou seja, a noção de natureza comum. Também aqui se encontram três

seções e uma introdução na qual são apontadas algumas características da

natureza comum escotista a partir do contraste com seus correspondentes

conceituais em Avicena e Tomás de Aquino. A seção I é composta por duas

partes: na primeira se mostra como Scotus situa a noção de comunidade entre

dois tipos de unidade, a da universalidade e a da singularidade; já na segunda

parte são expostos e defendidos seus argumentos a favor da existência de itens

que apresentem tal unidade intermediária. A seção II tem por função demonstrar

                                                                                                                         1 Supondo que o mundo se restrinja a esses itens, eis o léxico: a = matéria; b = forma¹; c = forma²; R = relação de informar.    

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que naturezas comuns não são ideias platônicas, e para isso se baseia, a despeito

das implicações do capítulo anterior, na inseparabilidade das primeiras em

relação aos indivíduos que constituem. Finalmente, a seção III é dedicada à crítica

mais tradicional da noção de natureza comum, ou seja, aquela formulada por

Guilherme de Ockham e que se apoia na oposição entre as noções de comum e

individual. A qualidade desse capítulo é bem superior à daqueles que o

precedem, tanto na sua articulação com o todo quanto em relação à correção e

alcance da maior parte das análises. Há, no entanto, falta de aprofundamento em

pontos importantes, como no caso dos conceitos de contrariedade e graus de

distinção, centrais para a postulação de naturezas comuns. Além disso, algumas

obscuridades do texto tendem a soar como teses exegética e especulativamente

impalatáveis. Na seção II, por exemplo, defende-se que a comunidade é uma

unidade acidental à natureza comum – algo que encontra suporte na Ordinatio –

mas o modo como é então descrita sua unidade essencial, batizada de

“indiferença”, faz parecer que não se está, na realidade, diante de unidade

alguma. Isso implicaria que ao ser intrínseco da natureza comum não

corresponde uma unidade intrínseca, ou, em outras palavras, que Scotus, no

fim das contas, segue Avicena no abandono de uma convertibilidade total entre

os transcendentais.

O capítulo 4 trata do princípio de individuação, um tema que pode ser

considerado uma extensão imediata do problema dos universais. O trecho

introdutório fornece duas formulações do problema: uma delas visa o princípio

responsável pela indivisibilidade dos indivíduos, a outra aquilo que os distingue

entre si. As seções I e II são responsáveis por analisar as duas linhas

argumentativas que embasam a solução única que Scotus oferece para ambas as

formulações, ou seja, postular a hecceidade. Na seção III encontra-se a resposta

de Bates a uma crítica de Mary Louise Gill que põe em questão a própria

legitimidade do problema da individuação. Ao fim e ao cabo, as duas últimas

seções do capítulo investigam os reflexos do hecceitismo na contemporaneidade,

contrastando várias de suas versões e mostrando como a escotista é imune a

críticas tradicionais dirigidas a doutrinas sob essa denominação. Em

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retrospectiva, as análises e argumentos contidos na seção II, referente ao

problema da distinção entre indivíduos, são um exemplo de excelência filosófica.

Aprofundados e claros, eles percorrem e avaliam todas as possibilidades lógicas

disponíveis. Pelo menos dois graves problemas, no entanto, se fazem presentes

nesse capítulo. Às teorias da individuação via acidentes – célebres no período

escolástico – são dedicados apenas dois pequenos parágrafos. Dado que essa é a

maior dentre as questões da Ordinatio sobre individuação, tem-se como resultado

um indesejável descompasso exegético. Além disso, o segundo desses parágrafos

é finalizado com a explícita admissão de que a única crítica de Scotus que é

apresentada contra tal solução, uma crítica baseada na dependência dos acidentes

em relação à substância, não funciona por entrar em conflito com sua tese de

que certos acidentes, como a quantidade, são separáveis da substância. Por suas

pretensões não serem estritamente históricas, a esperança seria de Bates ou

bem abandonar o hecceitismo escotista em favor da individuação via acidentes –

uma tese ontologicamente mais econômica – ou bem desposar outra linha crítica

contra a mesma. Nada disso ocorre. Mesmo tendo à disposição uma alternativa

elegante e sem falhas assinaladas, o autor se sente confortável em, pelo restante

do capítulo, seguir cegamente Scotus na postulação de mais uma entidade. Não

obstante, é possível que essa curiosa situação se deva a um erro de editoração,

ao invés de uma decisão do próprio autor. Essa hipótese é apoiada pelo fato de a

tese de doutorado que deu origem ao livro conter um aprofundamento

aparentemente bem maior do tema.

A meta do quinto e último capítulo é responder a objeções a uma das

ideias fundamentais do livro, ou seja, a tese de que o essencialismo escotista é

mereológico. Apesar de não haver qualquer divisão em seções, o conteúdo inclui

duas críticas básicas e é a partir delas que se deve compreender a estrutura do

capítulo. Ambas supõem que Scotus está comprometido com a ideia de que uma

substância material é mais do que a soma das suas partes; primeiro, por aceitar

que tais entidades são irredutíveis às suas partes – matéria e forma; segundo por

crer que a constituição de uma pessoa (normal) envolve uma negação de

identidade com qualquer uma das pessoas da Santa Trindade, visto que uma tal

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identidade envolveria a adição de uma característica essencial a mais, a divindade,

e portanto alteraria a essência e identidade daquela pessoa. À primeira crítica

responde-se que um essencialismo mereológico não implica uma redutibilidade

da substância material às suas partes; à segunda que pode-se traçar uma distinção

(escotista) entre pessoa e substância material. O desenvolvimento dessa última

ideia, que inclui uma discussão com outras abordagens da incarnação e da

Trindade, é conduzido com honestidade e invejável esmero conceitual – trata-se

do ponto alto do capítulo. O mesmo, no entanto, não pode ser dito da primeira.

Mesmo que se conceda a Bates que sua concepção não o obriga a subscrever um

reducionismo, ainda assim um antireducionismo como o de Scotus a enfraquece

muito, pois implica que há aspectos da substância material que não podem ser

analisados a partir dos conceitos básicos da mereologia, ou seja, os de parte e

todo. Poder-se-ia até mesmo dar um passo adiante e tomar como essenciais

esses aspectos irredutíveis. Nesse cenário, o essencialismo mereológico seria

incapaz de prestar contas sobre algo que constitui a essência das substâncias

materiais, um resultado insustentável.

De um ponto de vista global, o livro pode ser avaliado de maneira positiva.

Dado o estado quantitativo e qualitativo das publicações sobre Scotus, ele é

certamente uma contribuição de grande valia. Apesar do número de teses e

dissertações ser razoável, poucas delas alcançam as livrarias e o consequente

acesso facilitado. Ademais, trata-se de um estudo que mescla história e filosofia

sistemática, algo raro no atual âmbito do escotismo. Há, como deve ter ficado

claro, problemas das mais variadas ordens: estrutural, conceitual, lógica e talvez

até mesmo editorial. Nada disso, no entanto, é suficiente para sobrepujar os

pontos positivos do livro, como seu arrojo, inventividade, o contexto propício e,

principalmente, a coragem de encarar um tema e autor tão áridos.

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BIARD, J. Science et nature. La théorie buridanienne du savoir, Paris:

Vrin, 2012, 403 p.

Roberta Miquelanti* ___________________________________________

Existe o que podemos chamar de ciência na Idade Média? Numa acepção

estritamente moderna do termo, a resposta parece ser negativa. Este é o

equívoco, dentre outros, que o novo livro de Joël Biard vem esclarecer. Como

bem demonstra o autor, diferentemente do sentido específico que o termo

“ciência” (scientia) adquiriu modernamente, o termo “ciência” é equívoco na

Idade Média. Isso decorre tanto do fato de que o termo “ciência” cobre diversos

domínios no período, que incluem não só a física, cosmologia ou matemática,

mas também a psicologia, as artes da linguagem e mesmo a teologia, como do

fato de que envolve diferentes tipos de abordagem do objeto conhecido.

Biard parte de um estudo da concepção de ciência na obra de um dos

autores mais conhecidos e influentes do século XIV, João Buridan, para

exemplificar essa amplitude do conceito de ciência na Idade Média. Apesar da

extensão de sua obra, Buridan é contemporaneamente conhecido principalmente

devido às obras lógicas, em que temos a apresentação de sua teoria semântica,

em que noções como a de significação e a de suposição (suppositio) são

apresentadas. No entanto, nosso conhecimento a respeito da obra de João

Buridan ainda é deficiente em vários aspectos. O novo livro de Joël Biard, Science

et nature, vem cobrir um desses aspectos, ao tratar da teoria da ciência na obra

do autor. Dando continuidade aos seus importantes trabalhos sobre filosofia

medieval1, Biard nos apresenta um excelente trabalho em que aborda de maneira

                                                                                                                         * Professora Assistente na Universidade Federal de Alagoas e Doutoranda no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. 1 Joël Biard é reconhecido por importantes trabalhos em filosofia medieval, dentre eles os livros Logique et théorie du signe au XIVe siècle, Paris: Vrin, 1989 e Guillaume d’Ockham. Logique et philosophie, Paris: PUF, “collection Philosophies”, 1997, bem como pela tradução, acompanhada de introdução e notas, de importantes textos medievais, como a Suma de Lógica de Guilherme de Ockham (GUILLAUME D’OCKHAM, Somme de logique, 1re partie, Mauvezin: TER, 1988;

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ampla a noção de ciência na obra de Buridan, analisando-a em seus diversos

aspectos, lógicos, semânticos, epistemológicos e psicológicos. A clareza, rigor e

profundidade do texto, bem como o esclarecimento de noções características da

filosofia medieval, tornam-no acessível mesmo àqueles que não têm um

conhecimento prévio da filosofia buridaniana. Biard percorre a extensa obra do

autor, passando desde os tratados lógicos e comentário à Metafísica, até os

tratados de física e ética, para mostrar como o autor concebe a ciência2. A partir

da abordagem ampla da ciência, Biard divide o livro em três partes, cada uma

delas voltada para uma das dimensões que o termo “ciência” assume na obra de

Buridan.

Na primeira parte, Biard analisa a ciência a partir dos seus aspectos

epistemológicos e psicológicos. Apesar do aspecto lógico e linguístico sempre

focado por Buridan, Biard está interessado em mostrar que, para o autor, a

ciência não é apenas uma linguagem, um conjunto organizado de enunciados, mas

ciência designa primariamente uma disposição ou habitus que resulta do

assentimento (assensus) a uma proposição. Assim, a noção de ciência buridaniana

envolve uma dimensão intuitiva, herdada do pensamento agostiniano, que

confere um aspecto “psicológico” à teoria da ciência e, principalmente, sinaliza

uma mudança na concepção de ciência medieval, já iniciada com Duns Scotus,

que passa a basear-se menos nas características dos objetos do que nos atos

mentais. Assim, a questão dos critérios do conhecimento científico torna-se

central no debate científico medieval, envolvendo questões como os graus de

certeza e a evidência do conhecimento, o objeto da ciência e o primeiro

princípio do pensamento. Se a noção de ciência baseia-se no ato de adesão ao

que é proposto, de tomar algo por verdadeiro com base em certas justificações,

então a questão da justificação desse conhecimento torna-se fundamental para

Buridan, pois é preciso distinguir a ciência de outras formas de conhecimento

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             GUILLAUME D’OCKHAM, Somme de logique, 2e partie, Mauvezin: TER, 1996) e dos Sofismas de João Buridan (Jean Buridan, Sophismes, Paris: Vrin, 1993). 2 Além da linguagem clara, o livro é rico em citações em língua francesa de textos buridanianos, acompanhadas pelo texto latino em nota, o que permite que mesmo os não especialistas usufruam o texto.

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que também envolvem adesão, como a opinião e a fé. Como bem coloca Biard, a

complexidade da questão envolve, em Buridan, a dificuldade de articular dois

planos: aquele do objeto de assentimento (a proposição ela mesma considerada

segundo o que ela significa) e aquele do ato de assentimento, que deve possuir

certas qualidades. Biard mostra então que a ciência, enquanto disposição vinda

do intelecto, requer também certeza (certitudo), que não é apenas uma simples

convicção, seja ela fundamentada ou não, mas deve ser produto de uma adesão

justificada. A noção buridaniana de certeza envolve assim a firmeza de

assentimento. Contudo, apenas a certeza não é suficiente, mas deve ser sempre

acompanhada pela evidência, que, para Buridan, não é só firmeza de

assentimento, nem somente a presença de motivos para assentir. Uma das

características da evidência é que ela se impõe ao intelecto, como um tipo de

constrangimento com relação ao espírito, e que faz com que a faculdade

cognitiva seja determinada a consentir a uma verdade. Assim uma das

características da ciência para Buridan é a “certeza da verdade” (certitudo

veritatis).

Biard mostra ainda que se por essa noção de “certeza da verdade” Buridan

pode diferenciar a ciência da opinião, enquanto a evidência distingue a ciência da

fé, já que esta também é certa, isso não impede a ameaça cética: podemos

recusar a evidência do conhecimento natural com base na ideia do poder de

Deus, como, por exemplo, no caso dos milagres. A resposta buridaniana a essa

questão pressupõe a distinção entre certeza e evidência absoluta, que pertencem

apenas a Deus, e certeza e evidência condicionada ou secundum quid, relativos à

ordem do mundo, ordem que supomos regular mesmo se milagres são sempre

possíveis. Com isso, Buridan introduz um elemento hipotético a sua teoria da

ciência, que deve não só determinar quais conhecimentos são evidentes, mas

também quais podem ser reconduzidos à evidência e segundo quais modalidades.

Isso permite que Buridan possa considerar como verdadeiros e suficientemente

justificados uma grande variedade de conhecimentos científicos, mesmo que

repousem em última instância em evidências condicionadas.

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Se a ciência pensada como disposição mental leva Buridan a redefinir os

critérios de certeza, Biard mostra que Buridan também se preocupa em legitimar

a característica científica das proposições e demonstrações sobre o domínio

natural, o que implica em uma redefinição da universalidade e da necessidade da

ciência, duas características tradicionalmente atribuídas à ciência na tradição

peripatética e que continuam no primeiro plano da reflexão epistemológica

durante a Idade Média. Se as proposições rementem, em última análise, a um

mundo feito de coisas singulares e contingentes, como a ciência pode ser

universal e necessária? A resposta buridaniana ao primeiro ponto passa pela

explicação de como se constitui no homem a capacidade de proferir julgamentos

universais. Buridan rejeita o inatismo como explicação da formação de conceitos

na alma humana, e segue uma tradição parisiense dos comentários ao Tratado da

Alma, segundo a qual o conhecimento se elabora sobre a cooperação das

faculdades que levam do sensível ao inteligível. Mesmo se a sensação é tomada

como ponto de partida do conhecimento humano, já que o sentido é

responsável pela apreensão do singular, o que confere um caráter empirista à

epistemologia buridaniana, Buridan reserva ao intelecto a dimensão

universalizante do pensamento, pois somente o intelecto pode apreender o

universal. Com relação à necessidade, Biard mostra que Buridan segue a

revolução semiológica ockhamista, segundo a qual a ciência tem como objetos

proposições, e a questão da necessidade da ciência passa então a ser

interpretada como se tratando de proposições necessárias. O problema desvia-

se então da questão de encontrar realidades necessárias e eternas e passa a ser o

da distinção entre tipos de necessidade que podemos atribuir às proposições em

um mundo radicalmente contingente. Buridan localiza nas proposições a

necessidade requerida pela ciência em um sentido forte. Assim, a exigência de

que a necessidade da ciência seja uma necessidade lógica, que concerne à

linguagem, leva Buridan a formular de maneira mais fina as oposições e relações

entre necessidade lógica e necessidade real. Isso permite ainda que Buridan

postule um tipo de necessidade condicionada, baseado no reconhecimento de

um curso natural da natureza, pois é ele que autoriza o uso de uma evidência

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condicionada na ciência, isto é, de uma proposição resultante de um

constrangimento que se exerce necessariamente sobre o intelecto, mesmo que

de maneira condicional.

Já na segunda parte, Biard concentra-se nos aspectos linguísticos e lógicos

da teoria buridaniana da ciência, em que a ciência é pensada em um duplo

aspecto semântico. Ela é tanto linguagem que em última análise significa os

objetos do mundo ao qual se dirige, como argumentação que desenvolve certas

formas de raciocínio ou demonstrações. Com relação ao primeiro aspecto, Biard

mostra que o domínio conceitual é organizado segundo um esquema linguístico

na filosofia buridaniana. Os conceitos são também portadores de todas as

propriedades semânticas dos termos: suposição, apelação, ampliação, restrição, o

que permite Buridan transpor ao domínio do espírito a maior parte das

distinções morfológicas e sintáticas, assim como as semânticas, produzindo uma

verdadeira teoria do mental. A mediação conceitual é indispensável não só para

se entender as diferentes maneiras de significar, mas por refletir a concepção

parcimoniosa do real de Buridan, segundo a qual não existem senão substâncias:

o real é feito de objetos singulares e os termos gerais remetem a essas coisas

singulares. Assim como a significação, Biard expõe como a suposição também é

fundamental na teoria da ciência buridaniana. Buridan define as condições de

verdade de uma proposição a partir da suposição dos termos: uma proposição

afirmativa é considerada verdadeira se é nas coisas assim como ela significa. Mas

é preciso estender a suposição aos casos onde a verificação, no sentido estrito,

não é possível. Assim, uma das divisões da suposição é de fundamental

importância para a teoria da ciência buridaniana: trata-se da suposição natural. A

suposição natural não está presente nos textos de Ockham e, em geral, é

estranha à tradição inglesa. Em Buridan ela aparece com um sentido diferente,

pois não tem ligação alguma com uma natureza comum, mas com as restrições

temporais. Enquanto a suposição acidental depende das determinações temporais

significadas pelo verbo, assim como do predicado; a suposição natural é

independente do tempo: ela á atemporal, ou mais exatamente, omnitemporal,

pois o termo supõe por todos os supósitos passados, presentes e futuros. Logo,

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o critério de reconhecimento dessa suposição passa pela impossibilidade de

falsificar a proposição em razão das determinações temporais. A suposição

natural é exigida porque frequentemente a suposição se refere a supósitos

passados e futuros como presentes, mesmo o verbo principal estando no

presente. Assim, uma proposição como “Todo trovão é um barulho feito nas

nuvens”, é tomada em suposição natural, pois mesmo que atualmente não exista

uma tempestade, toda vez que tenha havido, haja ou houver uma tempestade, a

proposição será verdadeira. A suposição natural é assim o instrumento

apropriado para a expressão da ciência.

Em seguida, Biard mostra que além de sublinhar o caráter comunitário da

linguagem ao tratar da significação, Buridan também dá atenção especial ao

caráter discursivo de todo raciocínio silogístico em sua teoria da ciência. A

ciência implica linguagem e discursividade e, logo, uma prioridade lógica de uma

proposição sobre outra, o que se manifesta em um desdobramento temporal.

Isso leva Buridan a considerar questões como a da causalidade silogística e dos

princípios do conhecimento, ideia omnipresente na tradição peripatética.

Segundo Biard, o que caracteriza o uso buridaniano é a explosão da noção de

princípio e de “o primeiro dos princípios”. Buridan admite sem discussão que

devemos ter princípios primeiros e indemonstráveis para evitar duas armadilhas:

a circularidade (falta do raciocínio) e a regressão ao infinito (incompatível com a

noção de demonstração). Biard salienta que Buridan não está interessado na

questão de podermos ou não ter certeza dos primeiros princípios da

demonstração, no sentido em que podemos sempre pensar a ameaça cética de

um deus enganador, mas está mais interessado em saber como o espírito

humano, que sempre está no meio das realidades contingentes, pode formular

regularidades, isto é, como não nos enganarmos com relação ao curso comum

da natureza. Nesse sentido, Biard considera Buridan o autor medieval mais

próximo do chamado problema da indução. Segundo ele, Buridan está consciente

das dificuldades da indução, tanto que a coloca não somente como intuição de

uma natureza universal através dos singulares, mas como a passagem de

proposições singulares a uma proposição universal. O que está em jogo não é a

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relação entre fenômenos, mas as relações entre substâncias e acidentes, e a

necessidade dessa relação. Para Buridan, a relação é inválida, pois não podemos

induzir através de todos os singulares, que são infinitos. A indução é sempre ut

nunc e não simpliciter. Mas apesar de a indução não ser formalmente válida, ela

pode ser materialmente válida. Isso quer dizer que, para Buridan, a postulação de

uma ordem natural é suficiente para legitimar a indução, a passagem de

proposições singulares a universais, sem necessidade formal.

Biard mostra ainda que a teoria buridaniana da ciência abre-se à

consideração de formas variadas de raciocínio e de argumentação, que não se

opõem totalmente à ciência, mas que se dispõem em diferentes graus com

relação ao conhecimento humano. A comparação e diferenciação entre

diferentes formas de argumentação é fundamental para sua teoria geral da

inferência, que se apoia não somente na concepção de assentimento enquanto

suscetível de intensificação ou diminuição, mas também sobre a diversificação

dos modos de certeza. Assim, o raciocínio provável também tem espaço na

teoria buridaniana, principalmente nos campos especulativos e práticos. Assim,

Buridan não propõe uma teoria da ciência como ciência total (scientia magna),

mas seu princípio da fragmentação requer analisar o estatuto epistêmico de uma

disposição mental ou enunciado como contribuindo para uma ciência total.

Por fim, na terceira parte, Biard explora a cartografia buridaniana dos

saberes. Se as formas de conhecimento nos reenviam em última análise a um

mundo feito de coisas singulares, e sendo a ciência universal e necessária, a

resposta buridaniana de como podemos chegar ao conhecimento dos singulares

e dos acidentes implica uma redefinição da universalidade e da necessidade das

regras da natureza. Nesse ponto, Biard expõe como Buridan justifica sua rejeição

total de uma universalidade real e sua posição sobre o estatuto do indivíduo.

Várias questões concernentes à epistemologia do singular entram em cena, como

as questões das categorias, o problema clássico da relação entre conhecimento

dos acidentes e conhecimento da substância, de que tipo de conhecimento é

suscetível o acidente, se há uma ciência do acidente. As respostas buridanianas a

essas questões são tanto resultado da concepção semiológica do autor, como do

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contexto de parcimônia ontológica em que Buridan se inscreve: se não há

nenhuma universalidade a parte rei, a universalidade deve ser compreendida e

explicada a partir dos mecanismos da linguagem ou do pensamento.

A revolução semiológica tem reflexos ainda na definição dos critérios de

distinção de cada disciplina. Buridan considera que as disciplinas se definem mais

por seus pontos de vista sobre o mundo do que por um domínio de objetos.

Essa concepção também leva Buridan a propor uma divisão diferente das

disciplinas do saber. Na Idade Média, a questão da divisão das ciências toma uma

forma e importância que ela não tinha em Aristóteles. O problema vem,

principalmente, de se tentar aplicar o modelo dos Analíticos, em que temos uma

concepção estrita de demonstração e exigência de dedução a partir dos

princípios não demonstrados, ao domínio teológico. Buridan parte da tripartição

aristotélica das disciplinas especulativas: metafísica, matemática, física. Mas,

enquanto para Aristóteles uma ciência se define pela natureza do ser de que ela

trata, para Buridan as ciências não se distinguem pelas coisas existentes fora da

alma: são as mesmas coisas que são consideradas por diferentes ciências

especulativas. Dessa forma, as disciplinas só podem se diferenciar em razão dos

seus pontos de vistas sobre o mundo. Para Buridan, as ciências se distinguem

mais por um “ponto de vista” conceitual, uma ratio considerandi sobre os seres,

do que por um campo de objeto: a metafísica estuda os seres em sua razão de

ser (ens), a física enquanto móveis, as matemáticas em sua razão de quantum.

Assim, se ciências especulativas tratam do mesmo mundo, e uma vez descartada

a teologia, a metafísica também não será a ciência de pano de fundo, o que

implica uma reorganização das ciências menos esquemática que a divisão

proposta por Aristóteles.

Biard mostra-nos, assim, a força do pensamento buridaniano, ao pensar do

ponto de vista semântico, epistêmico e argumentativo, uma teoria da ciência

fundada em bases naturalistas, que levam Buridan a reelaborar o discurso da

filosofia natural. A análise lógica exerce um papel fundamental de clarificação

conceitual, na medida em que denuncia a confusão entre signos e coisas, sendo,

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portanto, um elemento essencial para o empreendimento científico. O resultado

desse empreendimento é tanto uma reelaboração da concepção de

conhecimento, seja com relação às modalidades epistêmicas da crença justificada

e evidente, que caracterizam o conhecimento científico, aos procedimentos da

demonstração ou às formas de dedução e de transmissão de certeza, como a

elaboração de uma concepção sofisticada de ciência, que pensada a partir da ideia

de um curso regular da natureza implica em distinções mais refinadas dos tipos

de necessidade, como a necessidade condicional, de causalidade da natureza e de

indução.

A leitura da obra é, assim, indispensável tanto para os interessados em

filosofia medieval, como por historiadores da filosofia. Mesmo sendo um livro

dedicado à noção de ciência de Buridan, tal estudo ajuda a clarificar o que os

filósofos medievais compreendiam por ciência, auxiliando a esclarecer as raízes

da ciência moderna no período medieval. Por outro lado, os interessados em

Filosofia Medieval e, principalmente, em Buridan, poderão entender como as

noções lógicas, linguísticas e epistemológicas articulam-se no interior da filosofia

buridaniana. Assim, com seu novo livro, Biard contribui mais uma vez com a

divulgação do pensamento de Buridan, e nos incita, acima de tudo, a visitar a

obra do autor.

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LIZZINI, O. Fluxus (fayd). Indagine sui fondamenti della metafisica e della

fisica di Avicena, Bari: Edizioni di Pagina, 2011, 679p.

Meline Costa Sousa* ___________________________________________

Apresentando um apêndice esclarecedor acerca dos usos do termo fayd e seus

sinônimos em Avicena, a obra de Lizzini explora a amplitude da discussão ao

percorrer os aspectos metafísico, físico e gnosiológico daquela noção. Temas

caros à filosofia de Avicena, como a distinção entre possível/necessário,

essência/existência, unidade/multiplicidade, anterioridade/posterioridade e

bem/mal, são abordados ao longo dos capítulos de modo a contextualizar as

aparições de fayd.

O ponto de partida da investigação consiste na busca pelas origens do

“patrimônio terminológico” (I.I, p. 27) aviceniano tendo em vista as plotinianas

árabes, especialmente a Teologia de Aristóteles, e as proclianas árabes,

especialmente o Livro sobre o bem puro, editadas pelo círculo de al-Kindi. A partir

desta incursão, Lizzini constata que Avicena, como já era feito pelos autores

neoplatônicos, incorpora os vocabulários e conceitos em torno de fayd à

interpretação das obras aristotélicas e a uma “leitura teológica do mundo” (I.I, p.

35). Uma ressalva a ser levantada, e que a autora sugere em diversos momentos,

vincula-se ao cuidado de não se negligenciar a abordagem original de Avicena,

reduzindo-o à simples assimilação das suas fontes.

Após reconhecer nas obras de al-Kindi uma primeira abordagem filosófica

de criação (ibda'), já apontando as dificuldades de pensá-la em conjunção com o

processo emanativo, o qual assegura a simplicidade do Uno, passando ao Livro

sobre a opinião dos habitantes da cidade ideal, de al-Farabi, no qual a emanação é

“expressão da causalidade universal do Primeiro” (I.4, p. 61), a autora apresenta

observações gerais acerca do uso do termo fayd e das dificuldades teóricas que

                                                                                                                         * Bolsista CNPq e mestranda pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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dele decorrem.

O fluxo explica não apenas o conferir existência a partir do Existente

Necessário como também o fornecimento de formas ao mundo sublunar. Em

vista de explicá-lo, Avicena e outros autores se valeram da analogia com a luz

(nur), aplicada tanto ao mundo supralunar, âmbito ontológico, como também à

relação entre o intelecto agente e os intelectos sublunares, âmbito gnosiológico.

Contudo, a analogia é limitada na medida em que fayd escapa aos fenômenos

naturais, embora alguns comentadores interpretem a analogia misticamente.

Dentre as obras avicenianas, destaca-se o Livro das definições (kitab al-

hudud), no qual fayd é utilizado na predicação de outros termos. Na sua aparição

vinculada ao termo criador (al-bari'), o fluxo é “expressão do ato instaurativo de

Deus” (II.I.1, p. 91). Em confronto com a multiplicidade, a relação (idafa; nisba)

entre Deus e o mundo é mantida pelo vínculo necessário entre quem emana e o

que é emanado, sem qualquer reciprocidade, já que a existência do Criador, ao

coincidir com sua essência, não precisa de nada que lhe seja acrescentado. Em

outras palavras, os existentes criados não compõem a essência divina; a

simplicidade é salvaguardada pela emanação. Sua aparição vinculada ao termo

alma (nafs) acontece no momento em que Avicena atribui a ela o sentido de alma

do todo (nafs al-kull) entendendo, primeiramente, a alma da primeira esfera e,

posteriormente, o conjunto de todas as almas. Independentemente desta

distinção, o fluxo é apresentado como o modo pelo qual a inteligência do todo

('aql al-kull) confere existência à alma do todo e como o que possibilita a

distinção entre o anterior e o posterior.

Lizzini chama a atenção para duas passagens da Metafísica onde são

fornecidas duas definições para fayd no interior da discussão sobre o sujeito

(mawdu') desta ciência. Na primeira, fluxo é utilizado como ponte que liga a causa

primeira aos existentes causados, sendo aquela o princípio da existência destes,

os existentes possíveis. Nas palavras da autora, “ele adquire um caráter

específico de modalidade da ação causal” (II.1.1, p. 113), a qual é fortemente

marcada pela distinção entre causa e causado. Nesta demarcação, critica-se

Avicena por estabelecer uma dependência indissolúvel entre o necessário e o

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possível na medida em que o primeiro não pode ser causa senão de um possível

e a existência deste só pode ser causada por um agente necessário. Assim, o

conceito de fayd é fundamental na compreensão do conceito de possibilidade,

pois a emanação acontece apenas pelo fato de o existente possível ser apto a

possuir a existência em ato: “a possibilidade é a condição da recepção da ação

causal do Primeiro” (II.1.1.c, p. 134). Isto significa dizer que a noção de fluxo

sustenta-se pela distinção entre o possível (al-mumkin) e o necessário (al-wajib).

Tanto a multiplicidade supralunar, marcada pela possibilidade que lhe é

própria, pela necessidade doada a partir de sua causa e pela intelecção da

inteligência anterior, quanto a sublunar, na qual a presença da matéria estabelece

a pluralidade dos indivíduos, adquirem existência por meio da emanação. As

inteligências celestes e os corpos naturais passam de existentes possíveis a

existentes necessários por outro que lhes doa existência, o que gera uma tensão

acerca do estatuto ontológico do existente possível que, não sendo um

inexistente absoluto, não existe sem que haja uma causa de si. Assim, ele só pode

ser pensado em concomitância e, de modo algum, como anterior a tal causa.

Na segunda passagem da Metafísica, o fluxo reaparece como o nome mais

apropriado para explicar um dos sentidos de útil enquanto o que é responsável

por algo inferior adquirir uma perfeição acrescentada à sua própria essência.

Assim, fayd é entendido como uma doação realizada pelo existente mais perfeito

à inteligência que lhe é inferior: “a emanação não é simplesmente doar ou fazer

adquirir, mas doar ou fazer adquirir para aquilo que é inferior” (II.2.1, p. 204).

Este modelo pressupõe certa hierarquia a partir do mais perfeito, resultando na

identificação entre providência e fluxo divino. A providência se manifesta através

do fluxo porque é o único modo pelo qual a unidade se vincula à pluralidade dos

existentes. A dimensão ética é sugerida por Lizzini ao considerar que o bem

justifica a providência divina. Atribuir ao fluxo divino uma necessidade natural,

desconsiderando sua vontade de criar, que é em si mesma bondade, é negar esta

dimensão de ibda'.

Conforme mencionado, subjaz à relação entre fayd e ibda' a noção do

criador como a causa que doa existência e necessidade ao causado. Porém, dada

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sua anterioridade ontológica, é inevitável se questionar como a essência dos

existentes possíveis está no intelecto do criador sem que haja multiplicidade

nele. Para Lizzini, a relação entre as formas e o intelecto divino apenas pode ser

concebida tendo-se em vista o modo pelo qual acontece a criação. Assim, o fluxo

delas a partir de uma causa anterior na existência não compromete a unidade da

causa. Este paralelo entre o primeiro princípio e os existentes é posto em

analogia com aquele mantido pela metafísica e as outras ciências, cuja

investigação, ao se voltar para o que é mais perfeito, mostra-se anterior e

princípio para a realização daquelas.

Especificamente, fayd é delimitado pelo fluxo do criador e das inteligências

celestes. Deste modo, é definido como o provir ou emanar dos existentes que

se dão a partir do princípio segundo: “uma consequência necessária sem

impedimento e sem um custo” (II.3, p. 228). Esta não é uma finalidade divina, no

qual essência e existência coincidem, pois, se se assume um fim diferente de si

mesmo, nega-se a absoluta autonomia divina marcada pela finalidade do fluxo ser

idêntica ao próprio Deus.

Enquanto causa da criação contínua do mundo, o primeiro princípio não

age, mas apenas existe, e dele emanam todas as outras coisas. A eliminação do

agir do âmbito divino deve-se à ausência de intenção e finalidade na relação entre

criador e criado caras à tentativa de Avicena de marcar o caráter absoluto da

criação. A proposta da autora é mostrar que este modo de considerá-la,

enquanto criação absoluta (ibda'), é uma resposta à abordagem teológica. Após

uma incursão na terminologia encontrada no Corão referente à noção de

criação, Lizzini, sem fazer nenhuma distinção específica entre as escolas, aponta

que os teólogos concebem a criação post nihil. Assim, ela é assumida como um

ato pontual posterior à não existência, deduzindo-se disto sua temporalidade.

Avicena, na tentativa de inserir a criação no interior do modelo emanativo,

propõe uma alternativa à interpretação teológica; al-Kindi, no século IX, também

teve semelhante preocupação ao defender a criação ex nihilo e exclusivamente

divina. O fluxo aparece na teoria aviceniana como um substituto para a criação

no tempo de um agente que não agia, mas que decide fazê-lo em um

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determinado momento. “Ao refutar a concepção teológica, Avicena distingue o

sentido filosófico de nada ('adam) daquele que lhe atribuiu a teologia” (III, p. 259),

precisando melhor o significado de não-existência absoluta e suas implicações. É

negado que a inexistência seja um pré-requisito para a criação. Nada pode ser

dito deste ex nihilo, pois a predicação lhe atribui certo tipo de existência, o que é

contraditório tendo em vista se tratar do 'adam. Sendo assim, ibda' não envolve

tempo nem mediação seja de uma matéria, de agentes secundários ou de uma

intenção, mas apenas uma posterioridade essencial em relação ao nada. Portanto,

estabelece-se a distinção entre criação e geração/originação (hudut). Para Lizzini,

há um duplo resultado da refutação da criação teologicamente tomada pelos

teólogos: o fluxo como modo pelo qual Deus cria é fundado sobre a ideia de

anterioridade essencial de Deus e a distinção entre a primeira inteligência criada

e os outros existentes compostos de matéria e forma que são gerados no

tempo.

Para que se compreenda a dimensão ética da criação é necessário, antes,

ter em mente que Deus não age no tempo nem tendo em vista outro fim que

não si mesmo. A princípio, isto inviabilizaria o seu valor ético por não ser o bem

aquilo que norteia a criação. Contudo, Lizzini defende que a definição de vontade

(irada), de generosidade (jud) e de bem absoluto (khayr mutlaq) contradizem isto.

Na medida em que a perfeição divina implica em sua unidade e simplicidade,

vontade, generosidade e bem se identificam com a essência divina e são todos

sua finalidade, pois Deus deseja a si mesmo. Somente neste sentido o mundo é

objeto de sua vontade, enquanto consequente necessário do amor por si: “o

Primeiro possui uma satisfação consciente acerca disto que emana ou flui de si e,

neste sentido, o deseja” (III.2.1, p. 282).

O bem, entendido como aquilo que não é em vista de outro, é chamado

bem em sentido real (bi-l-haqiqa) ao se aplicar ao primeiro princípio. Nele, por

causa da sua perfeição, o bem coincide com sua essência (dat) e sua generosidade

vincula-se à indiferença com respeito à criação. O existente necessário, por meio

do fluxo, doa existência sem receber nada em troca e sem desejar qualquer fim.

Novamente, fayd se mostra importante porque é por meio dele que a bondade

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divina se realiza. É como se Avicena, ao substituir a necessidade do fluxo pela

vontade do fluxo, oferecesse uma solução à acusação de ter caído em um

determinismo com respeito à decorrência necessária de existência a partir do

criador.

Por conseguinte, enquanto fruto da intelecção divina da qual fluem os

existentes, Lizzini aponta a proeminência do momento noético em detrimento

do ontológico. Nada acontece sem que o primeiro princípio intelija a si mesmo.

Contudo, trata-se de uma anterioridade que se mantém “aporética” (III.3, p. 320)

devido à sua concomitância temporal com a dimensão ontológica. Porque a

intelecção de si é contínua, o fluxo de existência também o é: “não apenas a

intelecção é criação, mas a existência do Primeiro consiste na sua própria auto-

intelecção” (III.3, p. 320). É propriamente esta circularidade em torno do

processo que marca a sua unidade fundamental.

Um problema que se põe acerca de fayd é conciliar a universalidade do

fluxo com a individuação dos existentes no mundo. São dois os elementos que o

solucionam: o movimento dos corpos celestes e o mundo sublunar, sendo aquele

a parte ativa, que doa, e este a parte em potência, que recebe. Deste modo, a

física, âmbito da natureza particular, se submete à metafísica, âmbito da natureza

universal. O fluxo compreendido fisicamente, na perspectiva do mundo sublunar,

é responsável pela matéria receber uma forma que não existe sem sua hylé.

Embora Lizzini insista na dependência da matéria com respeito à forma, já que a

primeira é completamente indeterminada antes de se informar e as formas

“pertencem fundamentalmente ao mundo celeste” (IV.1.1.a, p. 354), vale lembrar

que a recíproca também é verdadeira, ou seja, a forma só passa a existir no

mundo sublunar caso haja uma matéria apta a receber, mesmo que esta não seja

causa da existência da forma. É novamente esta circularidade que garante a

unidade dos existentes. Tentar desvincular o que no mundo sublunar é único vai

contra a interdependência das partes que compõe seus existentes.

Retornando à questão da origem da pluralidade, nem a matéria nem a

forma são responsáveis por ela, mas uma “terceira entidade” (IV.I.2.2, p. 371)

que responde pelo fluxo, pois a matéria precisa ser preparada para receber a

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forma para a qual há um substrato próprio. Esta terceira entidade é o intelecto

agente. Em termos de causa, a forma é causada pelo intelecto agente e, ao

mesmo tempo, causa para a matéria. Sendo assim, a forma é “um intermediário

na relação causal” (IV.I.2.2.a, p. 378) entre aquele que emana, dator formarum, e

os corpos que a recebem.

O efeito da intelecção realizada por cada uma das inteligências é um

concomitante necessário (lazim), termo emprestado da lógica. Esta acontece na

medida em que todas as inteligências aspiram à própria perfeição e “disto resulta

o funcionamento do mundo inteiro no qual cada elemento é sempre a realização

de si” (IV.I.3.1, p. 408). A dimensão ética, sobre a qual Lizzini insiste, está ligada,

por um lado, à realização e ascensão da alma e, por outro, à participação dos

existentes na ordem do mundo. Neste sentido, é ética a ação que intenciona algo

cuja existência é mais digna que a não existência, mas tudo isto apenas do ponto

de vista dos causados, já que as inteligências não os possuem como um fim.

A compreensão da relação entre mundo supralunar e a origem da

multiplicidade no mundo sublunar passa pelo movimento das esferas celestes. Os

diferentes movimentos destas se dão devido a dois fatores: cada esfera possui

seu próprio bem desejado, pois cada uma deseja sua própria perfeição, e a

individualidade representada por cada uma delas devido à posição ocupada, que

muda de modo a se repetir infinitamente pelo fato de o movimento ser circular e

eterno. A matéria recebe o influxo incessante das inteligências de modo a

transformá-la a fim de que seja apta a receber a forma do intelecto agente.

“Avicena faz do influxo não apenas o resultado de uma ação celeste que pode ser

apenas recebida, mas também o resultado da interação com as potências do

mundo sublunar” (IV.I.4.1, p. 442). A terminologia empregada aqui muda. Não

mais se trata de conferir existência de modo absoluto e atemporal (ibda'), mas

temporalmente e a partir de uma matéria dada (hudut). Assim, o influxo

enquanto “mecanismo articulado” (IV.I.4.1, p. 444) é expressão de uma

causalidade exclusivamente celeste, vinculada à posição que as inteligências

ocupam, e que interage com os elementos sublunares, preparando-os para

receber (qabila) uma forma.

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A fim de resolver as dificuldades no que tange à ruptura da ordem natural

determinada pelo primeiro princípio, como, por exemplo, as monstruosidades,

Avicena recorre ao reconhecimento dos diversos significados do termo natureza

(tabi'a). Por um lado, é retomada a definição aristotélica de natureza como

primeiro princípio de movimento e repouso, por outro, reconhece-se a

existência de um “princípio vertical” (V.I.1, p. 492) que, pelo fluxo, é causa da

existência dos corpos. Assim, estabelece-se a distinção entre natureza e o que

segue o curso da natureza, sendo este último identificado com “a exigência da

natureza da coisa” (V.I.2, p. 498). Lizzini identifica uma abertura da natureza,

entendida no primeiro sentido, para aquilo que não lhe é intencional, ao

contrário do segundo, que pode ser dito “teleologicamente orientado” (V.I.2, p.

498). Portanto, a partir dos sentidos de natureza, conclui-se que nada escapa a

ela, pois mesmo as monstruosidades podem ser entendidas como naturais no

primeiro sentido. Em suma, entra em jogo, na tentativa de solucionar o problema

daquilo que, aparentemente, escaparia à natureza, a distinção entre a natureza

particular e universal. O que escapa ao curso da natureza particular, como, por

exemplo, a morte que não é intencionada pela natureza própria de Zayd, não

escapa à natureza universal: “natureza universal e particular correspondem aos

dois aspectos através dos quais é possível observar o mundo sublunar, aquele

universal do fluxo e aquele particular do indivíduo” (V.I.2, p. 507).

Seria, como Lizzini sugere, o finalismo da natureza uma alternativa ao

determinismo? O finalismo vincula-se à concretização da existência da espécie

por meio dos indivíduos, cuja matéria recebe uma forma apropriada para isto, o

que permite a Avicena distinguir o que é intencionado pela natureza daquilo que

é uma consequência secundária: “é assim que da natureza subtrai-se a

responsabilidade sobre tudo isto que não entra na ordem primeira do fluxo das

formas e que, do ponto de vista do fluxo, não possui importância nem

significado” (V.I.2.1, p. 512). Deste modo, a natureza individual carrega em si uma

porção de acidentalidade que não pode ser atribuída à providência divina ('inaya),

sendo que esta confere existência à natureza universal, à espécie, enquanto

existir em uma matéria e ser acompanhado pelos acidentes que lhe seguem deve-

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se à natureza particular.

Por fim, pode-se dizer que as investigações que Lizzini desenvolve ao longo

da sua obra percorrem duas vias: uma que explora o termo fayd no contexto do

âmbito supralunar e temas correlatos e outra na qual o mesmo termo compõe a

explicação não apenas da origem da multiplicidade, mas também do modo pelo

qual Deus exerce sua providência. Na primeira, o fluxo é utilizado na

reelaboração do conceito de criação (ibda') adaptada à perfeição do primeiro

princípio. Deste modo, ao não pressupor um pré-requisito pelo qual confere

existência aos existentes possíveis, o criador mantém-se como a única causa que,

pelo fluxo, cria eternamente a partir da sua própria necessidade. Com respeito à

segunda via, dedicada ao mundo sublunar, é o fluxo das formas do intelecto

agente, tendo em vista uma matéria que a elas será dada como substrato, que

permite compreender outro tipo de conferir existência (hudut). Trata-se de um

ato temporal marcado pela presença destes três elementos indispensáveis:

intelecto agente, forma e matéria. Sendo assim, a multiplicidade se torna efetiva

quando, da intelecção que cada inteligência realiza de si, do seu princípio e do

existente necessário, origina-se, pelo fluxo de formas, um composto hilemórfico.

O livro de Lizzini é singular no que diz respeito aos estudos sobre Avicena,

pois se trata de uma obra de fôlego que abarca vários aspectos do sistema

aviceniano sob o fio condutor da noção de fayd a partir de obras como Ta'aliqat

e Mubahathat. Lizzini abre as portas para o sistema metafísico-cosmológico de

Avicena a partir de uma perspectiva até então pouco investigada, solucionando

alguns dos problemas que foram levantados contra a explicação aviceniana da

criação.