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ISSN 2176-8765 Translatio Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga Vol. 7 (2015) - 01 - PANACCIO, C. Qu’est-ce qu’un concept (J. R. Molinari) - 11 - CORY, T. S. Aquinas on Human Self-Knowledge (R. M. S. Ribeiro) - 24 - CORDONIER, V., SUAREZ-NANI, T. (éds.). L’aristotélisme exposé. Aspects du débat philosophique entre Henri de Gand et Gilles de Rome. (G. B. Vilhena de Paiva) - 42 - WILSON, G. A. (ed.). A Companion to Henry of Ghent (G. B. Vilhena de Paiva) Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ) Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) • Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo (UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu Mazzola Verza (UFMG) Revisão: Gustavo Paiva

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ISSN 2176-8765

Translatio

Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval

e a Recepção da Filosofia Antiga

Vol. 7 (2015)

- 01 -

PANACCIO, C. Qu’est-ce qu’un concept (J. R. Molinari)

- 11 -

CORY, T. S. Aquinas on Human Self-Knowledge (R. M. S. Ribeiro)

- 24 -

CORDONIER, V., SUAREZ-NANI, T. (éds.). L’aristotélisme exposé. Aspects du débat

philosophique entre Henri de Gand et Gilles de Rome. (G. B. Vilhena de Paiva)

- 42 -

WILSON, G. A. (ed.). A Companion to Henry of Ghent (G. B. Vilhena de Paiva)

Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma

publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação

Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).

Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ)

Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) •

Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo

(UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu

Mazzola Verza (UFMG)

Revisão: Gustavo Paiva

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PANACCIO, C. Qu’est-ce qu’un concept. Paris: Vrin, 2011, 124 p.

(Coleção Chemins Philosophiques).

Júlia Rodrigues Molinari*

___________________________________________

O livro de Claude Panaccio faz parte da coleção “Chemins Philosophiques” da

Editora Vrin, que tem como objetivo realizar uma exposição breve e de fácil

compreensão sobre temas filosóficos de diversos campos, e como público alvo

estudantes de graduação, ensino médio ou leitores com pouco conhecimento no

assunto. Com o título “O que é um conceito?”, este livro pretende apresentar

de maneira simples e didática uma discussão atual sobre diversas teorias acerca

do que seriam os conceitos, e qual a relevância filosófica dessa noção.

O autor se propõe a analisar a noção de “conceito” partindo de uma

pequena apresentação de seu significado, seguida de uma descrição de como esta

ideia aparece em diversos autores, começando na antiguidade e passando por

alguns nomes medievais e modernos, para chegar nos desdobramentos de

discussões contemporâneas. O livro dá destaque, entre outros, a autores como

Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham, e retoma

algumas de suas noções, buscando mostrar sua relevância para questões atuais.

Panaccio já havia indicado, ainda, em outras obras, o desejo de realizar esse

procedimento de atualização dos textos de Ockham em relação a questões

sobre teoria do conhecimento, como é dito no prefácio do livro Ockham on

concepts.1 Assim, esta pequena obra parece estar incluída num projeto maior do

autor, de trazer o nominalismo ockhamiano acerca dos conceitos para as

discussões atualmente vigentes.

* Graduanda no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo sob orientação do prof. José Carlos Estêvão e bolsista da FAPESP. 1 PANACCIO, C. Ockham on concepts. Burlington: Ashgate Publishing Company, 2004.

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A argumentação é apresentada em um percurso compreensível, expondo a

noção de conceito como algo necessário para explicar certos modos de

comportamentos cotidianos dos homens, assim como para sustentar certas teses

dentro das ciências humanas e, entretanto, como uma noção cuja definição não

encontra ainda um consenso nos autores atuais, nem sequer uma teoria

completa que consiga solucionar todos os problemas inerentes a ela.

O livro é dividido em duas partes. A primeira consiste na exposição da

posição do autor, a partir da comparação de diversas teorias sobre o que é um

conceito; a segunda, apresenta duas pequenas traduções de textos de dois

autores, Guilherme de Ockham e Jerry A. Fodor, seguidas de comentários, a fim

de corroborar o que foi argumentado na primeira parte. A estrutura da

exposição é bastante didática, como bem pretende a obra, mas a dificuldade

aumenta conforme o autor chega a problemas que ainda não possuem uma

solução muito clara. Buscaremos aqui mostrar em linhas gerais o caminho da

exposição, realizando alguns comentários acerca da posição do autor.

O livro se inicia indicando que nosso pensamento é composto por

conteúdos complexos, que podem ser divididos em partes menores e unitárias.

Essas partes unitárias, elas mesmas indivisíveis, são identificadas como conceitos.

É afirmado que elas são capazes de serem combinadas de diversos modos em

pensamentos complexos, chamados de proposições, passíveis de serem julgados

verdadeiros ou falsos.

Os conceitos são, assim, de um modo mais técnico, unidades

subproposicionais, que podem ser combinadas umas com as outras de muitos

modos. Segundo Panaccio, essa noção de conceito percorreu a história da

filosofia ocidental. Aristóteles já identificava essa estrutura do pensamento,

quando chamava essas unidades de noêma (p. 8), e as considerava como as partes

que compõem todo pensamento abstrato. A palavra “conceito” é, em seguida,

vinculada ao vocabulário latino dos autores medievais, vocabulário este que

permaneceu em uso em detrimento do termo grego. De acordo com o texto,

também os medievais, a partir da leitura de Aristóteles, discutiram a existência, a

natureza e a origem dessas unidades que compõem o pensamento. Ainda, outros

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autores como Descartes, Locke, Kant e Frege são mencionados por Panaccio

como parte dessa discussão.

Mas o que parece haver de comum entre todos eles, segundo nosso

autor, é a concordância em asseverar que tais conceitos são aquelas unidades de

pensamento que aparecem na definição aristotélica como tendo a função de

compor uma proposição. Tendo estabelecido esse ponto de partida comum,

Panaccio afirma que atualmente essa discussão ainda não foi concluída, e faz

parte do campo da filosofia da mente e da psicologia.

Desse modo, ele começa propriamente a apresentar algumas questões

acerca do tema. Em primeiro lugar, é afirmado que a existência dos conceitos

não é algo postulado, nem também algo conhecido empiricamente, pois não é

possível haver qualquer tipo de apreensão ou percepção deles. Em vista disso, a

discussão sobre a existência dos conceitos se encontra num campo de hipóteses,

mas hipóteses que são criadas em vista de explicar certas coisas, estas sim

passíveis de serem percepções cotidianas. A tese central que precisa, portanto,

ser explicada e justificada nessa obra é aquela que afirma ser o pensamento

humano feito de proposições, que podem ser julgadas verdadeiras ou falsas, e

que são compostas por unidades subproposicionais chamadas conceitos.

Panaccio nos diz, então, que é preciso esclarecer a natureza e as

implicações dessa hipótese dos conceitos como unidades de representação

mental. Para isso, ele aponta três exigências que são características de uma teoria

dos conceitos e que nela precisam ser garantidas (p. 13):

1) Semântica: os conceitos devem ser estruturas mentais que

representam uma realidade;

2) Sintática: os conceitos devem poder ser combinados, compondo

proposições e julgamentos;

3) Epistemológica: a atribuição de conceitos como estruturas do

pensamento humano precisa explicar parcialmente o comportamento

humano, isto é, deve em alguma medida ser causa dele.

Assim, para que uma hipótese de conceitos como representações mentais

seja bem estruturada, é preciso que ela apresente argumentos para explicar e

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justificar esses três critérios apresentados. Tendo em vista isso, Panaccio

buscará, ao longo do livro, uma teoria que melhor dê razões suficientes para as

três exigências citadas, a partir da análise e comparação de teorias de diversos

autores da história da filosofia.

Supomos aqui que esses três critérios são apresentados para, de algum

modo, justificar a utilidade de se estabelecer uma teoria da cognição baseada na

hipótese da existência de conceitos. De alguma maneira, as exigências permitem

estabelecer explicações cujo uso, segundo o autor, se faz necessário em alguns

campos das ciências humanas e da vida prática cotidiana. Essa justificativa, de fato,

parece imprescindível, pois o autor indica que existem algumas teorias que

pretendem descartar a hipótese dos conceitos, buscando em seu lugar uma

explicação no campo da neurobiologia. Entretanto, entendemos que, se for

possível mostrar que esses três critérios podem ser sustentados, há de fato

alguma utilidade no desenvolvimento de uma teoria sobre os conceitos.

Ao argumentar que alguns pretendem descartar tal hipótese, Panaccio

apresenta argumentos de Guilherme de Ockham para, em primeiro lugar,

justificar hipótese da existência dos conceitos, antes mesmo de tentar satisfazer

seus três critérios. O procedimento aqui parece pertinente, ao levar em

consideração que, antes de se apresentar uma teoria dos conceitos, é preciso

justificar sua necessidade, indicando também outras propostas de explicações

atuais. Não obstante, ele não recusa a abordagem da neurobiologia, mas apenas

indica que uma teoria da cognição baseada em conceitos possui suas utilidades e,

por isso mesmo, não precisa ser descartada.

O fato de Panaccio utilizar um autor medieval para justificar este

argumento é, ademais, uma abordagem interessante. Ao tratar de Guilherme de

Ockham, ele mostra a relevância e atualidade de algumas discussões dos

medievais, algo que em muitos casos é ignorado por autores contemporâneos. A

posição de Ockham é contraposta a outras abordagens de soluções para o

problema da realidade dos conceitos, sendo escolhida como aquela que melhor

serve para o que Panaccio pretende sustentar.

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Um dos autores apresentado como possibilidade de solução é Tomás de

Aquino, cuja teoria estabelece que os conceitos são “objetos intencionais”, isto

é, objetos aos quais o pensamento se direciona e cuja existência difere do

próprio pensamento. Também a posição de Frege é explicada em linhas gerais,

mostrando que alguns afirmam a existência dos conceitos como entidades

abstratas independentes da mente e existentes em um “terceiro mundo” (nem

na mente, nem nas realidades externas a ela). Ambas são descartadas, optando-

se pela posição de Ockham, na qual os conceitos são atos de pensamento

realmente existentes, que não diferem do próprio pensamento nem existem num

mundo separado.

Segundo essa concepção, os conceitos são signos mentais que têm por

função representar coisas singulares e existentes. Estabelecido isso, Panaccio segue

sua exposição a partir dessa definição dos conceitos como representações

mentais que, segundo ele, é a mais utilizada atualmente pelos psicólogos e

filósofos ditos “cognitivistas” (“cognitivistes”, p 18). Ao longo da obra, ele cita

outros autores com posições em certa medida semelhantes a Frege, mas sempre

para mostrar que elas devem ser descartadas devido aos problemas que elas

acabam por gerar. Ainda, o primeiro apêndice do livro, que apresenta um texto

de Guilherme de Ockham, busca comentar com mais detalhes – agora a partir

do próprio texto do autor – essa definição dos conceitos como atos mentais

realmente existentes, capazes de representar coisas singulares.

Tendo em vista essa definição dos conceitos como atos ou estados

mentais que representam objetos singulares, o texto passa então a considerar

uma primeira função desses conceitos: a categorização da realidade. Essa função

consiste no nosso julgamento que classifica realidades que observamos a partir

de algum conceito. Por exemplo, se vejo um cavalo, julgo que ele faz parte do

grupo referente ao conceito de cavalo que já tenho em minha mente. A questão

posta é: como nós realizamos essa classificação, ou então, como nós vinculamos

uma certa realidade a um certo conceito que temos e não a outros? A pergunta

sobre o funcionamento da categorização levará à exposição de várias tentativas

de respostas, principalmente no campo da psicologia. Panaccio apontará os prós

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e contras, assim como a possibilidade de compatibilizar diversas teorias em uma

mesma explicação.

Mas os conceitos, para além da mera categorização, possuem uma função

semântica, isto é, não servem apenas para classificar, mas também representam

certas coisas da realidade (p. 36). Por isso, o passo seguinte apresentado pelo

livro é a investigação da dimensão semântica dos conceitos. Nesse capítulo,

procura-se estabelecer um modo de cumprir a primeira exigência apresentada

como condição para uma teoria dos conceitos: que eles possam representar, de

alguma maneira, uma realidade. Pergunta-se agora, portanto, como os conceitos

são capazes de representar outras coisas que não eles mesmos.

Uma primeira análise a ser feita consiste no fato de que, se

considerarmos que o estado mental de uma pessoa, e que corresponde a um

determinado conceito, é singular e distinto do estado mental de outra pessoa –

tese que já foi justificada ao se abandonar a ideia dos conceitos como entidades

abstratas independentes do pensamento −, então o conceito de algo (de cavalo,

por exemplo) em alguém deve ser diferente do conceito dessa mesma coisa no

pensamento de outra pessoa. Isso poderia levar à conclusão de que os conceitos

não são capazes jamais de representar as mesmas coisas para pessoas distintas,

pois cada pessoa possui um conceito realmente diferente de qualquer outra.

A dimensão semântica dos conceitos, porém, ao contrário da mera

categorização, permite evitar essa dificuldade. Panaccio afirma que, ainda que o

conceito de cavalo, por exemplo, seja diferente em cada uma das pessoas, visto

que são estados mentais distintos, em todos os casos ele possui a mesma função

semântica de representar todos os cavalos singulares. A função semântica é

identificada como uma capacidade de representação dos conceitos, vinculada a

uma universalidade na sua significação, que é sempre a mesma, não importando

que o conceito seja realmente distinto na mente de cada pessoa. Essa explicação

parece se assemelhar muito à teoria dos conceitos como signos naturais nos

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textos de lógica de Guilherme de Ockham, ainda que Panaccio não atribua essa

explicação a ele.2

Segundo Panaccio, os psicólogos se concentraram principalmente na

dimensão da categorização, inclusive realizando diversos experimentos empíricos

para tentar formular uma teoria mais precisa de como ela ocorre, mas deram

pouca ou nenhuma importância à dimensão semântica dos conceitos. A filosofia é

apontada aqui como aquela que deu destaque ao estudo da função semântica dos

conceitos, algo que Panaccio parece considerar de muita importância. Não é

dito, entretanto, que essa discussão semântica pareça se aproximar da discussão

sobre lógica nos autores medievais, em especial em Guilherme de Ockham. É

possível ver aqui, novamente (ainda que não de modo explícito), uma certa

atualização das discussões medievais para a atual concepção dos conceitos.

Supomos que o longo estudo dessas obras de lógica realizado por Panaccio em

alguma medida influenciou sua abordagem que destaca a função semântica dos

conceitos.

Podemos resumir a descrição do campo semântico dos conceitos em

duas perguntas: por que os conceitos representam semanticamente algumas

coisas do mundo e outras não? Ou ainda, por que meu conceito de cavalo pode

representar todos os cavalos do mundo, mas não todos os cães, por exemplo?

Não se trata mais de discutir como classificamos em uma categoria as coisas que

percebemos, mas sim de nos perguntarmos sobre a capacidade de significação

dos conceitos. Para tratar dessas dificuldades, Panaccio indica três possíveis

teorias: (1) a teoria da semelhança; (2) a teoria da causalidade; (3) a teoria da

finalidade. As vantagens e desvantagens das três são expostas, buscando qual

delas seria capaz de garantir também que as outras duas exigências iniciais sejam

satisfeitas. Por fim, a partir dessa comparação, Panaccio opta pela terceira, pois

considera que ela parece resolver melhor os problemas colocados e os critérios

2 Ockham define os conceitos como unidades de pensamento que surgem naturalmente na alma a partir de um processo apreensivo e que têm a capacidade de significar naturalmente aquelas coisas que causaram sua apreensão. Eles são, portanto, signos naturais singulares que têm uma função de significar universalmente quando colocados dentro de uma proposição. Cf. GUILHERME DE OCKHAM, Suma de Lógica [Suma de Lógica, parte I]. Tradução de F. Fleck. Porto Alegre, Edipucrs, 1999. cf. tb. PANACCIO, Ockham on Concepts, 2004.

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pré-estabelecidos, ainda que ela não seja uma teoria completamente consolidada.

Além disso, uma quarta posição, chamada de “inferencialista” (“inferencialiste”, p.

52) por Panaccio, é indicada e rapidamente descartada sem muitas explicações.

O segundo apêndice do livro, entretanto, apresenta um comentário que busca

recusar essa posição com um pouco mais de detalhes.

A teoria da semelhança aponta que há algo nos conceitos que se

assemelha às coisas que ele significa e por esse motivo ele é capaz de representá-

las. Essa teoria é identificada como sendo a posição dos autores antigos e

medievais, sendo chamada por Panaccio de “teoria clássica”. A teoria da

causalidade, por outro lado, diz que os conceitos são capazes de representar as

coisas que os causam, isto é, as coisas que produzem uma apreensão que levaria

ao surgimento do conceito no pensamento. Por último, a teoria da finalidade

defende que os conceitos representam as coisas segundo uma função que é

atribuída por nós a ele, isto é, que os conceitos podem ter diferentes finalidades

e representar as coisas segundo as finalidades que são a eles dadas. As duas

primeiras teorias são indicadas como insuficientes para explicar a representação,

enquanto que a terceira é dita não descartar as anteriores, mas sim abranger

uma explicação maior e, por isso mesmo, mais completa. A teoria da finalidade,

ademais, parece ser a escolhida por ser a que melhor garante a satisfação dos

três critérios apresentados inicialmente (semântico, sintáxico e epistemológico).

Nesse ponto do livro, parece haver uma excessiva simplificação na

divisão apresentada, ao indicar que os autores medievais se encontram

unicamente na teoria da semelhança. É certo que o tema da similitude é

abordado por diversos autores e utilizado como explicação para a relação entre

o nosso conhecimento e a realidade, mas não é apenas ele que compõe a

concepção de conhecimento conceitual no período medieval. A ideia de

causalidade, por exemplo, não somente surge como um passo necessário para a

apreensão do conceito em diversos autores que participaram da tradição dos

estudos de Aristóteles, como Tomás de Aquino e Duns Escoto, mas também

como aquilo mesmo que permite que os conceitos representem as coisas

apreendidas, na teoria dos signos naturais de Guilherme de Ockham.

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Ademais, a própria ideia de um conceito representar as coisas segundo

sua finalidade pode ser encontrada na lógica de Ockham, dentro da teoria da

suposição, como explicaremos a seguir. A “suposição” é a função que os

conceitos possuem dentro de uma proposição de significar segundo um modo

específico, isto é, de significar enquanto colocado no lugar de algo. Assim, um

conceito pode ter sua significação natural, ou seja, significar aquilo que o causou,

ou então supor por algo que não corresponda a isso, como por exemplo na frase

“cavalo é palavra”, na qual “cavalo” supõe não pelos cavalos singulares e

existentes no mundo, mas sim pela própria palavra. Poderíamos dizer,

anacronicamente (visto que Ockham não usa esse termo), que na frase indicada

o conceito tem a finalidade de representar algo outro que não aquilo que o

causou. Isso nos faz concluir que, pelo menos dentro do âmbito da lógica, um

conceito pode ter diversas “finalidades” de representar diferentes coisas.3

Questionamos a necessidade de Panaccio classificar os autores “clássicos”

exclusivamente na teoria da semelhança, visto que ele também conheceria os

pontos de convergência com as outras teorias, que acabamos de apresentar. A

divisão nos pareceu demasiadamente simplificada. Entretanto, talvez fosse a

intenção do autor não se aprofundar demais nessa classificação, dada a função

introdutória do livro.

Os dois últimos capítulos da obra são dedicados a desenvolver de modo

mais aprofundado a teoria da finalidade, apontando seus limites e seus

desdobramentos na discussão atual sobre os conceitos, que ainda não está

concluída. Um desses capítulos trata da dimensão lexical dos conceitos – qual a

relação deles com a linguagem e se eles podem se originar de palavras. O outro

trata dos conceitos naturais, conceitos que são resultados da nossa apreensão

natural da realidade (como “homem” e “cavalo”). Nesse capítulo, a segunda

exigência apontada inicialmente, a saber, a necessidade dos conceitos terem uma

função sintática, é abordada tendo em vista a teoria da finalidade. Panaccio

estabelece aqui a necessidade de algumas capacidades naturais ao nosso

3 Sobre os tipos de suposição, cf. GUILHERME DE OCKHAM, op. cit., pp. 315-320.

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pensamento (como a capacidade de combinar representações mentais em

proposições e julgamentos). Ainda neste último capítulo, Panaccio tenta mostrar

mais detalhadamente a dimensão epistemológica dos conceitos, tentando explicar

como eles têm um papel no comportamento humano. Por fim, é apresentada

uma conclusão pequena e organizada, retomando os pontos principais que foram

estabelecidos ao longo do livro.

A obra como um todo não dá demasiada atenção para explicações sobre

o processo cognitivo que levaria à formação dos conceitos, mas sim para a

função destes e a melhor maneira de defini-los, levando em consideração os três

critérios iniciais. Temas como possíveis teorias da cognição humana não são

abordados, pois, ainda que não sejam desvinculados do assunto do livro,

provavelmente escapariam ao seu escopo, que pretendia unicamente

circunscrever a temática dos conceitos.

Visto que o objetivo do livro era realizar uma apresentação introdutória

do tema, tal tarefa foi bem realizada, na medida em que a exposição foi feita de

modo didático e de fácil compreensão. O tema é exposto de maneira a se tornar

interessante e permitir explicações para certas situações cotidianas, com

exemplos muito claros e simples, o que aproxima o leitor da discussão, visto que

ela é situada dentro de um campo de conhecimento muito geral. Entretanto,

como consequência do próprio método utilizado, algumas explicações foram um

pouco vagas, e por isso mesmo, também inconclusivas. No geral, acredito que o

objetivo do livro foi atingido pois, além de ser uma leitura simples, ele leva

necessariamente a questionamentos cujas respostas não se encontram ali,

pressupondo uma pesquisa mais aprofundada.

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CORY, T. S. Aquinas on Human Self-Knowledge. Cambridge:

Cambridge University Press, 2013, pp. xi + 241.

Rodrigo M. S. Ribeiro*

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O conhecimento que um indivíduo pode ter de si próprio oferece uma tensão

singular: ao mesmo tempo em que diz respeito ao que pode haver de mais

íntimo e familiar (estados mentais, sentimentos, expectativas), pode parecer

profundamente misterioso, opaco, quando é perscrutado demoradamente. Com

efeito, ao mesmo tempo em que julgamos não nos haver nada mais íntimo que

nós mesmos, confundimos verdadeiras motivações com falsos impulsos, sendo

sumamente difícil distinguir em que afinal consiste este ‘eu’, que parece nos estar

permanentemente presente.

É frente a esta tensão que Therese Scarpelli Cory se dispõe a apresentar a

tentativa de Tomás de Aquino de imprimir alguma ordem e coerência a esta

mistura de claridade e opacidade que parece ser própria do autoconhecimento.

Em Aquinas on Human Self-knowledge, sua exposição divide-se em duas

grandes partes: na primeira, delineia o status quaestionis, procurando familiarizar o

leitor com o contexto intelectual em que Tomás formula e desenvolve suas

teses; para tanto, passa pelas abordagens aristotélica, neoplatônica e agostiniana,

bem como por elaborações do século XIII, e por mudanças presentes no

tratamento que o próprio Tomás dá ao problema. Na segunda parte, volta-se à

análise das teses tomistas sobre os modos de autoconhecimento tomados em

particular, procurando resolver as obscuridades que vêm a surgir no curso de

seu tratamento.

Merece especial louvor a destreza com a qual Cory consegue aliar a

preocupação didática ao alto rigor científico, constantemente indicando o peso

* Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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relativo dos conceitos e fazendo digressões que permitem explicitar algumas

ideias próprias da metafísica ou da psicologia do Aquinate úteis ao perfeito

entendimento de cada questão, sempre coligindo inúmeras passagens de todas as

obras de Tomás. Cory também demonstra profundo conhecimento da

copiosíssima literatura secundária; cada ponto levantado, se não é acompanhado

de rigorosa recensão bibliográfica, ao menos traz consigo em rodapé úteis

sugestões de leitura. Ademais, no que diz respeito ao tema do livro em

específico, é de se notar que a empreitada de Cory possui algo de original. Como

ela própria afirma, o interesse na teoria de Aquino sobre o autoconhecimento

foi relativamente pequeno ao longo do século XX. À parte da monografia Le sens

de la réflexion en Thomas d'Aquin (Paris: Vrin, 1991) publicada por François-Xavier

Putallaz, tal teoria tende a ser mencionada apenas de passagem ou mesmo

omitida, inclusive em escritos voltados para a psicologia e gnosiologia de Tomás.

É, pois, tendo em vista a relativa negligência no tratamento deste assunto que

Cory se propõe a analisá-lo com agudez e em um esforço sistemático, sem

declinar o enfrentamento de alguns problemas que, embora talvez já estivessem

prefigurados nos textos de Tomás, apenas mais tarde viriam a se tornar questões

filosóficas de pleno direito.

O livro inicia com algumas considerações sobre o problema do

autoconhecimento em geral, seguidas por outras também de caráter

introdutório, em que Cory aproveita para expor brevemente a teoria tomista do

conhecimento, bem como para alertar para as dificuldades próprias do estudo da

filosofia medieval em geral (sobretudo diferenças entre a abordagem, o método e

mesmo o vocabulário da filosofia da Idade Média em relação à contemporânea)1.

A partir desta introdução, Cory passa a delinear como se desdobrou o

debate medieval sobre o autoconhecimento até os dias de Tomás. Este é o tema

do primeiro capítulo.

1 Convém pontuar que Cory, seguindo Aquino, refere-se ao sujeito e objeto do autoconhecimento utilizando indiferentemente os termos 'alma', 'intelecto', 'mente', 'homem'. Para explicar este uso, aponta que embora o próprio Tomás afirme que aquele age de fato é o indivíduo humano, por vezes ele prefere se valer de um termo que diga respeito ao princípio interno da referida ação (neste caso, a alma ou uma de suas potências).

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A querela sobre o autoconhecimento teve um percurso semelhante a de

outras controvérsias caras à Idade Média: tem por fonte remota teses

agostinianas, sofre o influxo do neoplatonismo grego, da filosofia islâmica e, por

fim, dá-se o embate com o aristotelismo. Cory inicia a exposição apresentando

as máximas tidas pelos medievais do século XIII como ‘agostinianas’ e que

serviram de fundamento para boa parte dos debates sobre o autoconhecimento.

Formuladas a partir de teses presentes no De Trinitate, afirmam que “a mente

sempre conhece[ria] a si própria por si própria (per se ipsam) porque é

incorpórea” (isto é, não sendo corpórea, não se conheceria por meios do

sentidos, como ocorre com o conhecimento dos entes corpóreos, mas

voltando-se a si própria) e, ademais, que “a mente sempre entende a si própria,

embora nem sempre pense em si como distinta de outras coisas”. Esta seria a

tentativa agostiniana de conciliar as experiências de opacidade e intimidade que

temos para com nós mesmos. Cory aponta, no entanto, que como Agostinho

não especifica com clareza inequívoca qual é o tipo de autoconhecimento em

questão, abre-se espaço para controvérsias.

A segunda tradição textual que desempenhará importante papel no debate

tem origem árabe. Tanto o Liber de causis quanto a alegoria do Homem voador, de

Avicena, apresentam teses próximas às agostinianas, pois ambas as fontes

conceberiam o autoconhecimento como natural à mente. Sendo incorpórea –

afirmam – a alma necessariamente conhece a si própria apenas por ser o que é,

de modo que nunca estaria ignorante de sua existência e incorporeidade.

O terceiro texto da série provém do De Anima de Aristóteles e oferece

uma tese que vai em sentido muito diferente: “o intelecto é inteligível como os

outros inteligíveis”. Esta tese aristotélica foi recebida pelos medievais como

significando que o intelecto seria inteligível por meio de espécies, ou seja, tendo

por base abstrações feitas a partir de dados recebidos pelos sentidos.

Do confronto dessas tradições textuais surge um problema amplamente

debatido pelos medievais: o autoconhecimento advém de um conhecimento per

essentiam ou per speciem? Ademais, se aceitarmos que pode advir per speciem:

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como se daria este per speciem, se as espécies inteligíveis que recebemos são

apenas de objetos externos, algo que o intelecto certamente não é?

Reunidas as fontes e enunciados alguns dos problemas que surgem de sua

confrontação, Cory passa a recensear os debates de meados do século XIII,

explicando-nos as soluções propostas por João de la Rochelle, Guilherme de

Auvergne, Boaventura de Bagnoregio e Alberto Magno. Uma mesma ideia

perpassa estas teorias: a alma conheceria a si própria por sua essência, uma vez

que a alma é ela própria e deve estar portanto mais presente a si própria do que

qualquer outra coisa. Este autoconhecimento é tipicamente concebido, exceto

por Boaventura, como autoconhecimento ‘supra-consciente’, isto é,

perpetuamente atualizado fora do reino da atenção consciente. Por sua vez, o

autoconhecimento ‘dependente’ de espécies, em moldes aristotélicos, é

frequentemente rejeitado, ainda que seja timidamente reconhecido por Alberto

Magno.

Uma vez delimitado o status quaestionis à época de Tomás, no segundo

capítulo Cory passa a tratar das fases de maturação do pensamento de Tomás

sobre o problema do autoconhecimento. Distingue três fases, analisando os

textos que toma por representativos deste desenvolvimento.

A primeira fase compreende passagens do Comentários às Sentenças de

Pedro Lombardo. A tendência de Tomás nestes textos é defender as teses

albertianas sobre o autoconhecimento. Com efeito, é de se notar que se trata da

primeira e única vez que ele defende algum tipo de autoconhecimento que

poderia ser dito ‘supraconsciente’. Ainda, nesse mesmo contexto, é feita uma

distinção importante que haverá de influenciar os desdobramentos ulteriores das

teses tomistas: é preciso diferenciar o conhecimento de que a alma existe (an sit),

a autoconsciência; do conhecimento do que a alma é (quid sit), o que Cory chama

de autoconhecimento quiditativo.

A segunda fase compreende as exposições presentes no De veritate e na

Summa contra gentiles. No De veritate se encontra o tratamento mais detalhado

que Tomás dá ao autoconhecimento. Ali, além de insistir na distinção anterior

entre o conhecimento ‘pré-filosófico’, que pode ser chamado autoconsciência

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(pelo qual percebemos que a alma existe), e o autoconhecimento quiditativo da

alma (pelo qual entendemos a definição de alma humana), Tomás aprofunda as

subdivisões, chegando a quatro tipos de autoconhecimento, todos dependentes

da recepção de inteligíveis abstratos e que corresponderiam aos quatro meios

pelos quais a alma conhece a si própria: [1] por seus atos, [2] por sua essência,

[3] por uma espécie e, na expressão agostiniana, [4] pela contemplação de uma

verdade inviolável (intuendo inviolabilem veritatem). Mais detalhadamente, ao

percebemos que sentimos e entendemos, percebemos que há algo que sente e

entende, isto é, nestes próprios atos reconhecemos que a alma existe. Este tipo

de autoconhecimento é a autoconsciência atual, [1]. Uma vez que a alma, por sua

própria essência incorpórea, está presente a si própria, ela tem também em si

uma capacidade de conhecer a si própria. Esta disposição natural é chamada

autoconsciência habitual, [2]. Além disso, a apreensão da essência imaterial da alma

se dá a partir de um raciocínio feito sobre a natureza imaterial de uma espécie

inteligível apreendida. Trata-se do autoconhecimento quiditativo, [3]. Por fim, o

último tipo de autoconhecimento se dá ao se julgar, “contemplando a verdade

inviolável”, que a essência da alma foi corretamente apreendida, [4].

A última fase agrega textos do comentário ao De anima e da Summa

theologiae. Cory os une por julgar que foram escritos na mesma época,

descrevendo de modo idêntico a noção de autoconhecimento. No comentário

ao De anima, Tomás se confronta com a máxima aristotélica, segundo a qual o

‘intelecto é inteligível como os outros inteligíveis’. A interpretação que Tomás dá

é a seguinte: tanto o autoconhecimento quanto o conhecimento dos objetos

extramentais dependem da natureza do intelecto possível; ora, o intelecto

possível está apenas em potência na ordem dos inteligíveis, ou seja, é apenas

quando recebe alguma espécie no ato da intelecção que o intelecto possível

ganha atualidade e é somente ganhando atualidade que pode se tornar

efetivamente inteligível. Assim, a espécie inteligível não seria apenas aquilo pelo

que o objeto extramental a que diz respeito é conhecido, mas também aquilo

pelo que o próprio intelecto conhecedor se torna conhecido, na medida em que

se atualiza. Numa palavra, a expressão ‘o intelecto é inteligível como os outros

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inteligíveis’ não pode ser entendida como se significasse que o intelecto é

conhecido por uma espécie inteligível de si próprio. Na verdade, é como se cada

espécie inteligível tivesse uma dupla função: tornar inteligível o objeto a que

corresponde e tornar inteligível o intelecto que ora, ao conhecer, se atualiza.

No que diz respeito à evolução do pensamento de Tomás sobre este

assunto, Cory tem a pretensão de mostrar que a partir da exposição feita no De

veritate a teoria geral de Tomás sobre o autoconhecimento haveria se

cristalizado, embora continuasse se aperfeiçoando e sofisticando. No entanto,

algumas discrepâncias na maneira como as teses são apresentadas parecem

inviabilizar tal hipótese, pelo que o final do segundo capítulo é dedicado a alguns

esclarecimentos. Uma aparente contradição é a que se pode encontrar

confrontando excertos em que Tomás afirma que a alma conhece-se a si própria

por essência (De Veritate q. 10, a. 8) com outros que o negam (Summa Theologiae,

Ia, q. 87, a.1). Cory propõe como solução que aqui se trate de um uso

diferenciado para a expressão ‘per essentiam’ somado à ênfase diferente que cada

passagem possui. Assim, quando o conhecimento ‘per essentiam’ é afirmado,

tratar-se-ia apenas de uma referência ao modo próprio segundo o qual alguns

entes (por exemplo, atos mentais, hábitos, virtudes e o próprio intelecto) se

fazem atuais no intelecto, isto é, por seu próprio ser, por sua essência. Por sua

vez, quando Tomás nega que o autoconhecimento seja per essentiam, ele está

discutindo a fonte da inteligibilidade do intelecto. Ora, tal inteligibilidade não está

sempre e atualmente presente no intelecto, mas apenas potencialmente, sendo

preciso que a recepção de uma espécie inteligível o atualize.

Vencidas estas aparentes contradições, Cory resume o pensamento

maduro de Tomás afirmando que todo autoconhecimento depende do

conhecimento de inteligíveis extramentais. Disso, podemos, novamente,

esquematizar os quatro tipos possíveis de autoconhecimento dividindo-os em

dois grupos:

[I] Conhecimento de si próprio enquanto indivíduo (an sit). Trata-se da

autoconsciência, que pode ser dividida em [1] autoconsciência habitual (a auto-

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presença essencial da alma) e [2] a autoconsciência atual (conhecimento pré-

filosófico sobre o próprio agir);

[II] Conhecimento da alma sob aspecto universal (quid sit). Trata-se do

‘autoconhecimento quiditativo’, divisível em [3] a apreensão da essência da alma,

atingida por via argumentativa e [4] o juízo afirmando que a essência apreendida

de fato existe na realidade.

Estas considerações finalizam a primeira parte do livro, dedicada ao

histórico da querela e ao desdobramento da questão no interior dos próprios

escritos do Aquinate. A segunda parte (capítulos três a oito) dedica-se a tratar

de atos do autoconhecimento em particular.

O terceiro capítulo trata do conteúdo da autoconsciência. O que se faz

manifesto àquele que pensa, no momento em que a consciência de si próprio se

faz atual? Após relembrar a noção tomista de autoconsciência, isto é, uma

experiência íntima, interna, que alguém tem de si próprio como indivíduo

existente, concretamente presente a si próprio em seus atos, Cory passa a

examinar se seria o conteúdo da autoconsciência apenas a existência ou se

também comportaria algo como um ‘eu’ ou um ‘eu mesmo’. Para ajudar a

resolver o impasse, ela propõe uma análise da autoconsciência como ‘percepção

indistinta’.

Percepções indistintas seriam aquelas cujos objetos são captados de tal

modo que sua essência não pode ser propriamente distinguida das demais coisas.

Esta incapacidade adviria de uma incompletude nos dados sensíveis, de uma

confusão na imaginação, ou mesmo de uma desorganização do conteúdo

intelecto (e.g., da falha ao distinguir entre o conteúdo essencial e o meramente

descritivo). Em todo caso, mesmo a percepção mais indistinta perceberá que seu

objeto é um ‘ser’. Perceber algo já é tê-lo por real, existente. Conquanto o

conceito de um ser não implique por si em um conceito de faticidade, captar

este objeto concretamente presente aqui e agora como ‘ser’ já seria considerar

que ele existe. Assim, o conteúdo do ato eventualmente percebido dependerá de

qual ato é realizado e quão distintamente a alma o percebe, de maneira que

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venha a julgar continuamente que ‘eu, agente, existo’ ou ‘eu, pensador, existo’, a

depender do ato percebido (movimentar o próprio corpo, pensar, etc.).

Cory demonstra assim não haver contradição entre o fato de Aquino fazer

a autoconsciência preceder o autoconhecimento quiditativo e afirmar como

regra geral que o conhecimento da essência de algo é ao menos logicamente

anterior ao julgamento de sua existência. O conhecimento de autoconsciência

não é puramente de uma existência, mas de um algo existente (ainda que este

‘algo’ seja profundamente vago e indistinto). A diferença entre estes dois

conhecimentos consistiria no fato de um ser indistinto quanto à essência,

tratando também de afirmar a existência; enquanto o outro daria a conhecer a

essência de modo distinto.

Depois de dedicar o capítulo anterior ao conteúdo da autoconsciência,

Cory, no quarto capítulo, passa a tratar do modo como ela se daria.

Apesar de não aparentar ser logicamente absurdo ter estabelecido que a

autoconsciência se dê como se dá o conhecimento de outras coisas, a princípio

não é tão fácil conciliar esta noção com a aparência de acesso privilegiado a si

própria que a alma parece gozar. Depender do conhecimento de objetos

extramentais não serviria como uma espécie de filtro? Não a faria menos íntima

e mais remota que a experiência das outras coisas? Não seria mais adequado,

portanto, pensar na autoconsciência atual como uma espécie de ‘intuição’?

O primeiro passo para decidir a questão é esclarecer – retomando o que

fora esboçado na primeira parte – que quando Tomás diz que o intelecto

conhece a si próprio como conhece outras coisas ele não quer dizer que a

autoconsciência seguiria todos os passos do conhecimento quiditativo dos

objetos extramentais (construção de fantasmas, abstração de espécie inteligível,

etc.). Com efeito, Aquino insiste que a espécie utilizada na autoconsciência é a

espécie do objeto extramental (e não portanto a espécie do próprio intelecto).

Ora, tendo isto sido estabelecido, Cory julga que o caráter ‘intuitivo’ da

autoconsciência possa se auferir avaliando se a autoconsciência possui o caráter

direto e imediato que, por exemplo, reconhecemos às percepções sensíveis

(estas tidas por arquétipo do ‘intuitivo’).

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Com efeito, segundo Cory, a autoconsciência seria até mais imediata que a

sensação (percepção sensível) na medida em que esta precisa que suas espécies

desempenhem tanto os papéis perfectivos, como também aquele de fazer

presente seus objetos, enquanto que na autoconsciência a espécie desempenha

apenas o papel perfectível, tornando o intelecto inteligível ao lhe dar forma. Ao

ganhar atualidade, o intelecto ganha inteligibilidade, não havendo mediações

discursivas neste processo. Ademais, é de se notar uma possível objeção ao

caráter direto do intelecto: se o conteúdo da autoconsciência é indistinto

(reduzido quase que apenas a apreensão do objeto enquanto ‘ser’) e vem por

meio de outras espécies, de onde adviria o ‘eu’ como possuidor do

conhecimento de ‘mim mesmo’? Cory responde mostrando como Tomás

relaciona atos e agentes: perceber um ato seria necessariamente perceber o

agente; e embora se possa perceber um efeito a partir de uma causa (sendo

entes distintos), não se pode perceber um ato à parte de um agente. O intelecto

conhece a si próprio como eu existente ou mesmo conhecedor, como sendo o

agente por detrás do ato respectivo (que não pode ocorrer sem agente).

Estabelecidos os termos em que se pode falar no caráter intuitivo da

autoconsciência, Cory dedica o quinto capítulo ao que chama de autoconsciência

habitual.

No De veritate, Aquino escreve que a alma habitualmente veria a si própria

per essentiam uma vez que sua essência está “presente a si própria”. Ora, para

enquadrar esta afirmação de modo consistente com as demais obras maduras de

Tomás – que aparentemente negam a possibilidade de um autoconhecimento per

essentiam –, Cory lembra que, sendo a alma intelectual (i.e. aquilo pelo qual o

homem conhece) ontologicamente idêntica a si própria, ela está naturalmente

ordenada à autoconsciência atual.

A autoconsciência seria então conatural à alma humana, de modo que a

autoconsciência habitual deve ser vista não apenas como um estado cognitivo,

mas como uma propriedade ontológica: aquilo que é ser uma alma intelectual

inclui estar ordenada à autoconsciência. Ora, sendo esta autoconsciência uma

‘primeira perfeição’, o ato mais natural do intelecto, esclarece-se o mistério da

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sensação de familiaridade que marca os atos de autoconsciência. Estando pré-

dispostos essencialmente para a autoconsciência, nunca nos voltamos a nós

mesmos como a algo estranho e novo, uma vez que a autoconsciência habitual

constitui uma ‘segunda natureza’ da alma.

Deste modo Tomás reconciliaria duas teses tidas por incompatíveis, isto é,

que [a] a alma está naturalmente presente a si própria e que [b] todo

conhecimento atual de si próprio depende da atualização do intelecto por via de

uma espécie. Por natureza, a alma é equipada para a autoconsciência, mas ao

mesmo tempo também naturalmente a alma intelectiva carece de disponibilidade

enquanto objeto, devido a sua falta de atualização (o intelecto está, por natureza,

em potência). É assim que Aquino também evita a referência a algum tipo de

autoconhecimento supraconsciente ou independente do conhecimento de

entidades extramentais, resguardando de todo modo o que poderia embasar a

sensação de familiaridade própria da autoconsciência.

O último tópico sobre a autoconsciência é abordado no capítulo seis. Cory

se pergunta se o desempenho de uma atividade intelectual meramente provê a

oportunidade para que eu considere a mim mesmo ou se, diferentemente,

necessariamente conheço a mim mesmo em todos os meus atos mentais.

Para responder a esta questão, Cory começa por descrever a dualidade

que julga haver nos atos intelectuais: parece que todo ato intelectual manifestaria

o objeto pensado extramental e o próprio sujeito pensante ao mesmo tempo,

um em relação ao outro. Esta seria a base para distinguir a autoconsciência

implícita da explícita, noções a partir das quais se poderá responder mais

adequadamente o problema levantado.

No que diz respeito à autoconsciência implícita, Cory faz uma precisão,

afirmando que não existe operação intelectual implícita. O que pode haver é a

inclusão implícita da inteligibilidade atualizada de uma entidade no conteúdo da

operação que ora considere outra entidade. Quando o intelecto é atualizado por

uma espécie, têm-se cumpridas todas condições para sua inteligiblidade (trata-se

de algo imaterial, em ato e presente ao intelecto). A partir desta constatação,

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Cory pode afirmar que em todo conhecimento per speciem há também um

conhecimento, implícito, referente ao intelecto que conhece.

Passando à autoconsciência explícita, Cory considera a explicação de

Tomás sobre como o intelecto pensa ou direciona a atenção para si próprio

enquanto conhecedor de algo. A dificuldade que logo encontra em sustentar a

possibilidade de um autoconsciência explícita advém do caráter aparentemente

problemático de se diferenciar psicologicamente duas operações distintas

(conhecer um objeto extramental e conhecer-se a si próprio enquanto

conhecedor) ao mesmo tempo em que se afirma que ambas têm por origem um

único e mesmo meio (a espécie do objeto extramental). Para solucioná-la, Cory

afirma que a extensão de pensamentos que eu posso ter é delimitada pela

espécie que uso, mas aquilo que penso dentro desta extensão é determinado de

acordo como eu escolho direcionar minha atenção.

Encerrado assim o tratamento especial que dá aos problemas suscitados

pelas teses de Tomás sobre a autoconsciência, Cory no sétimo capítulo passa a

discorrer sobre o que chama de autoconhecimento quiditativo, isto é, a alma

conhecer a própria natureza.

Foi visto que a autoconsciência pode nos dar vislumbres indistintos da

própria alma, mas alcançar um nível de claridade que permita revelar a totalidade

de sua natureza parece exigir um outro modo de conhecer.

A solução que Cory propõe baseia-se no intelecto refletindo sobre sua

ação enquanto experimentada internamente. Este processo se daria em quatro

passos: o primeiro passo consiste em determinar a natureza do objeto do

pensamento (i.e. que é ser um objeto do pensamento enquanto tal?),

identificando sua natureza universal (oposta, por exemplo, a um particular

sensível ou imagem generalizada). O segundo passo é determinar como o ato

intelectual deve ser de modo a poder captar tais objetos; se a essência dos entes

materiais pode ser conhecida apenas de modo universal (imaterial) então o ato

do intelecto também há de ser imaterial. O terceiro passo mostra que se o

intelecto produz um ato imaterial então deve ser ele também imaterial (isto é,

não opera por meio de um órgão material). O último passo é aquele pelo qual o

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inquiridor conclui a partir da natureza imaterial do intelecto a essência da alma

humana. Uma vez que um poder imaterial não poderia estar presente em um

ente totalmente corpóreo, a alma intelectual ela mesma deve ser imaterial e,

portanto, subsistente.

Assim como o mero fato de pensar sobre um objeto extramental

implicitamente manifesta o pensador como um agente-em-ato, também a

exploração racional de sobre o que consiste ser um objeto em última instância

revela aquilo que o agente-em-ato é.

O processo de atingir o autoconhecimento quiditativo revela-se então

como simplesmente o processo de ganhar conhecimento distinto da descrição

pré-filosofica indistintamente entendida da alma humana na qual o filósofo

começa sua inquirição.

No último capítulo, Cory se volta para a aplicação das teses do Aquinate a

três fenômenos relacionados à identidade pessoal que considera importantes: o

que chama de ‘ponto-de-vista subjetivo’, o ‘uso da primeira pessoa’ e a ‘unidade

diacrônica da consciência’. Cory também ressalta que o próprio Tomás não os

separa nem os distingue propriamente, nem tampouco é sua intenção se

aprofundar, mas apenas mostrar que há algo de valoroso por se explorar na

aplicação das teorias de Aquino sobre o autoconhecimento.

O ‘ponto-de-vista subjetivo’ seria a distinção entre o eu e o outro, e adviria

da natureza dúplice do conhecimento intelectual. Como foi visto, Aquino toma a

autoconsciência como a percepção de si-próprio-enquanto-agente, não enquanto

mero eu. Eu apenas apareço a mim mesmo como aquele que está conhecendo

algo e o único modo pelo qual algo conhecido por mim aparece para mim é

enquanto algo-conhecido-por-mim. Em suma: sujeito e objeto são

necessariamente concebidos como relativos, exigem-se mutuamente.

A questão seguinte seria determinar porque nos percebemos ‘na primeira

pessoa , e não como um mero ‘algo’. Como foi dito, para Aquino, quando penso

sobre mim mesmo não me vejo como outro, como estando ‘fora’, mas sempre

me conheço ‘de dentro’. Este caráter de conhecimento interior seria

experimentado como a primeira pessoa, sendo possível apenas em virtude da

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23CORY,T.S.,AquinasonHumanSelf-Knowledge

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imaterialidade do intelecto. Com efeito, o intelecto tem de se conhecer a partir

de uma perspectiva de primeira pessoa, pois não pode sair de si próprio para se

conhecer.

Por fim, a unidade da consciência através do tempo, isto é, a experiência de

subjetividade, do ‘eu’, como estável diacronicamente, se explicaria pelo concurso

de outra noção que subjaz à psicologia tomista: a memória intelectiva. Em suma,

a unidade da consciência através no tempo seria fruto de uma espécie de esforço

comum entre a autoconsciência implícita e a memória intelectual, por cuja união

me lembraria de objetos enquanto tendo sido manifestados a mim ao longo de

minha existência.

* * *

Aquinas on human self-knowledge não é uma leitura simples, o frequente uso

de termos técnicos e a natureza abstrata do tema podem torná-la árdua ao leitor

que não tenha tido um contato anterior com o Aquinate. Apesar disso, a grande

competência de Therese Scarpelli Cory ofusca estas dificuldades e, não fosse o

genuíno interesse que o assunto do livro ele próprio desperta, por si só já

bastaria para se recomendar a leitura.

Com efeito, se ainda há pouco tempo a preocupação com a questão do

autoconhecimento continuava sendo vista como própria da época moderna,

estudos como este tornam ainda mais patente que tal problema não era de todo

estranho aos medievais. Embora Tomás não trate a questão dando-lhe a

importância que alguns filósofos posteriores darão, nem tampouco se preocupe

em oferecer um estudo definitivo sobre ela, graças ao trabalho de Cory

podemos ver com clareza como Tomás ofereceu respostas contundentes sobre

muitos dos problemas que ainda demorariam alguns séculos para se tornarem o

centro do debate filosófico. O maior mérito de Therese Scarpelli Cory consiste

justamente em seu rigoroso esforço sistematizador, pelo qual antecipam-se as

respostas tomistas mesmo para aquelas questões que ainda não haviam sido

articuladas formalmente na época do próprio Tomás.

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CORDONIER, V., SUAREZ-NANI, T. (éds.). L’aristotélisme exposé.

Aspects du débat philosophique entre Henri de Gand et Gilles de Rome.

Fribourg: Academic Press Fribourg/Editions Saint-Paul, 2014, 266 p.

(Dokimion 38).

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________

I.

A crítica textual tem sido uma ferramenta fundamental na historiografia da

filosofia medieval desde o século XIX. Há poucos anos, Donald H. Reiman

destacou, no prefácio de Textual Editing and Critisicm de Erick Kelemen, o quanto

um leitor de literatura pode se beneficiar com a crítica textual1 – ela lhe

permitiria uma maior compreensão de uma peça literária (mais precisamente, no

caso de Reiman, poética) ao permitir acompanhar “o crescimento de um poema

desde seu início [the growth of a poem from its inception]”.2 Em outras palavras, a

crítica textual não somente permite um estabelecimento crítico de textos (o

que, por si só, já seria um ganho), mas igualmente possibilita uma melhor

compreensão literária desses textos.

Pois bem, o mesmo parece valer para as narrativas da história da filosofia

medieval. Nesse campo, a crítica textual permite o estabelecimento de edições

críticas e, ao fazê-lo, influi profundamente na interpretação filosófica ou teológica

que se poderá propor acerca do texto estabelecido. Talvez possamos dizer que,

também na historiografia da filosofia medieval, a crítica textual diz respeito não

somente à forma, mas – ao determinar a forma – também ao conteúdo.

Certamente, se deverá ressalvar os casos em que, por falta de fontes

manuscritas, a interpretação do conteúdo filosófico ou teológico de um texto se

torne capital para decisões quanto ao seu estabelecimento crítico. Em qualquer * Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES. 1 REIMAN, D. H. “Foreword”. In: KELEMEN, E. Textual Editing and Criticism. An Introduction. New York/London: W. W. Norton, 2009, pp. xiii-xvii. 2 Op. cit., p. xvi.

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25CORDONIER,V.,SUAREZ-NANI,T.(éds.),L’aristotélismeexposé

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caso, a necessária imbricação entre estabelecimento crítico e interpretação

filosófica ou teológica de um texto parece permanecer uma constante da crítica

textual na historiografia da filosofia medieval.

Com efeito, na introdução a L’art de généralités, Alain de Libera descreve

seu objeto como “la mémoire des textes”3 e, portanto, coloca o problema do que

seria precisamente esse texto:

Deve-se verdadeiramente se impressionar que um texto como a Isagoge, tão fundador quanto seja (e lembremos que Gilson não via aí, como todo mundo, senão um simples ‘formulário’), não exista em si? Formado na rude escola da Textkritik – o que se poderia chamar de crítica de Maas –, estamos bem posicionados para saber que, na falta de um autógrafo, um “texto” medieval não é senão uma conjectura, imaginada de uma Vorlage a outra até a ficção suprema do hiparquétipo. Mas esse não é o problema. Um texto bem estabelecido é um texto legível para nós – isso não faz dele, longe disso, um texto que exista em si nem, a fortiori, um texto que tenha sido outrora lido por outros. É preciso se resignar a isso; a tarefa do editor também possui por função tornar possível uma história da leitura, quer dizer uma história do sentido, ou mesmo do contrassenso. Um stemma codicum é um fio de Ariadne que seguimos menos para ir ao texto do que às razões, por princípio circunstanciais, de suas interpretações.4

Nessa passagem, ficam patentes duas consequências cruciais da crítica

textual para a historiografia da filosofia medieval. Em primeiro lugar, se o centro

dessa narrativa é o texto e este emerge tão relativizado da crítica textual, a

própria narrativa da história da filosofia medieval se torna um processo de

estabelecimento dos textos a partir dos quais ela própria será narrada. Em 3 LIBERA, A. de. L’art de généralités. Théories de l’abstraction. Paris: Aubier, 1999, p. 8. 4 Op. cit., p. 9: “Faut-il vraiment s’étonner qu’un texte comme l’Isagoge, si fondateur soit-il (et rappelons que Gilson, n’y voyait lui, comme tout le monde, qu’un simple ‘formulaire’), n’existe pas en soi? Dressé à la rude école de la Textkritik – ce que l’on pourrait appeler la critique de Maas – nous sommes bien placé pour savoir qu’à défaut de l’autographe, un ‘texte’ médiéval n’est qu’une conjecture, rêvée d’une Vorlage l’autre, jusqu’à la fiction suprême de l’hyparchétype. Mais ce n’est pas le problème. Un texte bien établi est un texte lisible pour nous, cela n’en fait pas, loin s’en faut, un texte qui existe en soi ni, a fortiori, un texte qui ait jamais été lu par d’autres. Il faut s’y résigner, la tâche de l’éditeur a aussi pour fonction de rendre possible une histoire de la lecture, c’est-à-dire une histoire du sens, voire des contresens. Un stemma codicum est un fil d’Ariane que l’on suit moins pour aller au texte qu’aux raisons, par principe circonstancielles, de ses interprétations” [grifos no original].

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26CORDONIER,V.,SUAREZ-NANI,T.(éds.),L’aristotélismeexposé

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outras palavras, a própria história da filosofia medieval sai relativizada deste

processo, uma vez que não parece mais haver distância entre o sujeito narrador

e o objeto narrado, pois a narrativa já é o estabelecimento do narrado. Por

outro lado – e essa é a segunda consequência –, o papel do narrador (do

historiador da filosofia medieval) termina grandemente enriquecido, uma vez que

seu trabalho não será mais somente a assimilação passiva de um percurso já

predeterminado – pelo contrário, o próprio historiador deverá estabelecer a

base textual do percurso a ser seguido antes de poder, de fato, colocar em

marcha sua narrativa.

Certamente, não será este o lugar de desenvolver todas essas dificuldades

(ou soluções...). Antes, preferi iniciar a presente resenha com essa breve reflexão

acerca da relação entre crítica textual e historiografia da filosofia medieval

porque me parece ser esse precisamente o tema a ser colocado pelo texto que

ora resenhamos, a saber, o livro L’aristotélisme exposée, editado por Valérie

Cordonnier e Tiziana Suarez-Nani, a partir de uma jornada de estudos

organizada pelo CNRS e realizada na Université Paris Diderot – Paris 7 em 2012

(p. ix).

Para complexificar ainda mais a narrativa histórica, o livro aborda a

história da filosofia medieval não somente a partir de problemas de crítica

textual, mas também a partir de uma discussão sobre intertextualidade – de fato,

na encruzilhada entre duas formas que esta última assume nos debates

escolásticos medievais: uma diacrônica e outra sincrônica (p. xii). “A primeira

forma de intertextualidade que ocorre no pensamento medieval é aquela que liga

o discurso a suas fontes fundamentais que são, sobretudo, a Escritura, Agostinho,

Boécio ou Aristóteles e aos intermediários pelos quais essas autoridades são

abordadas por seus leitores latinos (...)”5 (pp. xi-xii); a segunda “liga os textos

dos escolásticos àqueles de seus contemporâneos ou predecessores diretos”6 (p.

xii). É nessa encruzilhada entre intertextualidades diacrônicas e sincrônicas, as

5 “La première forme d’intertextualité à l’oeuvre dans la pensée scolastique est celle qui relie le discours à ses sources fondamentales que sont surtout l’Écriture, Augustin, Boèce ou Aristote, et aux intermédiaires par lesquels ces autorités sont abordées par leurs lecteurs latins (...)”. 6 “(...) relie les textes des scolastiques à ceux de leurs contemporains ou devanciers directs (...)”.

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27CORDONIER,V.,SUAREZ-NANI,T.(éds.),L’aristotélismeexposé

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quais (como o volume bem mostra) só se pode bem estabelecer por meio da

crítica textual, que se buscará compreender a complexa relação filosófica,

teológica e institucional entre dois dos principais nomes da Faculdade de

Teologia da Universidade de Paris no último quarto do século XIII: Henrique de

Gand (a. 1240-1293) e Egídio Romano (c. 1245-1316).

Como Valérie Cordonnier mostra na introdução ao volume (pp. xi-xxxii), a

relação entre os dois doutores foi primeiramente colocada como problema pelos

historiadores da filosofia medieval a partir de um verbete de 1911 escrito por

Marcel Chossat para o Dictionnaire de théologie catholique, no qual era dito que

Henrique de Gand, negando a distinção real entre essência e existência, se

contrapunha, precisamente, a Egídio Romano.7 Tão surpreendente quanto soasse

tal tese – um autor como Pierre Mandonet, por exemplo, estaria pronto a

admitir Tomás de Aquino como alvo da crítica do Doutor Solene8 –, a afirmação

de um debate entre Henrique e Egídio não foi mais abandonada pelos

historiadores. Pelo contrário, ela se viu reforçada (não só, mas principalmente)

pelos trabalhos de Jean Paulus e Edgar Hocedez ainda em meados do século XX

(pp. xvii-xix).9 Na segunda metade dos novecentos, essa tese se torna padrão e

adquire um lugar fundamental nos esforços editoriais para o estabelecimento

crítico dos Opera omnia de Egídio Romano e Henrique de Gand (p. xix). Com

isso, não somente a hipótese de um debate entre ambos os mestres se viu alçada

ao lugar de teoria padrão para a leitura dos seus textos, como também os

pontos de contato entre os dois autores foram muito ampliados – se, em

Chossat, considerava-se apenas a questão da distinção entre essência e existência

como ponto chave para a aproximação de Egídio e Henrique, em um texto atual

7 CHOSSAT, M. “Dieu (sa nature selon les scolastiques)”. In: Dictionnaire de Théologie Catholique. Tome 4. Letouzey e Ané Éditeurs, Paris, 1911, cols. 1152-1243 (cf. esp. cols. 1180-1). 8 MANDONNET, P. “Les premières disputes sur la distinction réelle entre l’essence et l’existence, 1276-1287”. Revue Thomiste (1910), pp. 741-65. 9 Cf. PAULUS, J. “Les disputes d’Henri de Gand et de Gilles de Rome sur la distinction de l’essence et de l’existence”. Archives d’histoire doctrinale et littéraire du moyen âge 13 (1940-2), pp. 323-58; HOCEDEZ, E. “Gilles de Rome et Henri de Gand sur la distinction réelle, 1276-1287”. Gregorianum 8 (1927), pp. 358-85; Id. “Le premier Quodlibet d’Henri de Gand, 1276”. Gregorianum 9 (1928), pp. 92-117; Id. “Deux question touchant la distinction réelle entre l’essence et l’existence”. Gregorianum 10 (1929), pp. 365-86; Id. “La condamnation de Gilles de Rome”. Recherches de théologie ancienne et médiévale 2 (1932), pp. 34-58.

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28CORDONIER,V.,SUAREZ-NANI,T.(éds.),L’aristotélismeexposé

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como aquele ora resenhado vemos que diversos são os campos em que ambos

se bateram (cf. pp. xx-xxxii).

O que salta aos olhos nessa breve narrativa – muito bem desenvolvida por

Cordonier, diga-se – da formação historiográfica da hipótese de um debate entre

Henrique de Gand e Egídio Romano é, justamente, a relevância da crítica textual

para a solução do problema. Desde Hocedez,10 já parecia claro que uma

coerente aproximação dos dois mestres dependeria de um retorno às fontes

manuscritas dos séculos XIII e XIV. Como notaremos em mais algumas

oportunidades, isso foi particularmente verdadeiro no que diz respeito ao estudo

de alguns dos manuscritos da biblioteca legada por Godofredo de Fontaines (c.

1250 – 1306/9) à Sorbonne no começo do século XIV (cf. p. xix). Ou seja, como

já dito, o mapeamento daquela complexa rede de intertextualidades que os

organizadores do volume pretendem estudar depende de um acurado e

complexo trabalho de crítica textual, de retorno aos manuscritos. Isso é o que

se tornará claro ao acompanharmos resumidamente as cinco contribuições a

L’aristotélisme exposé.

II.

No primeiro artigo do volume, intitulado “Le désir naturel de connaître. Autour des

Questions métaphysiques attribuées à Gilles de Rome” (pp. 1-28), Catherine

König-Pralong desenvolve diversos temas relacionados [i] à temática do desejo

natural pelo conhecimento (necessariamente abordada no início dos comentários

à Metafísica de Aristóteles) e da superioridade da metafísica enquanto forma de

conhecimento intelectual para homem, [ii] ao problema do subiectum da

metafísica enquanto ciência e [iii] às dificuldades concernentes à possibilidade de

conhecimento, para os homens, das substâncias separadas (p. 4). Tais temas são

propostos a partir das Questiones methaphisicales atribuídas a Egídio Romano (pp.

4-15) – uma atribuição que, aliás, não vem sem seus problemas (cf. pp. 2-4) –,

porém logo se nota que eles podem ser igualmente considerados a partir da

Suma das questões ordinárias de Henrique de Gand (pp. 15-23). Dessa maneira, o

10 Cf., e.g., HOCEDEZ, “La condamnation de Gilles de Rome”, 1932.

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29CORDONIER,V.,SUAREZ-NANI,T.(éds.),L’aristotélismeexposé

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que temos nessa primeira contribuição é uma apresentação do debate entre os

dois mestres tomando como ponto de vista o problema, posto metafisicamente,

dos limites do conhecimento humano e da finalidade do homem enquanto animal

que tende naturalmente ao conhecimento.

Ao que parece, a autora enxerga como ponto fundamental, na distância

que separa Egídio e Henrique quanto a tais temas, as suas diferentes concepções

de ‘naturalidade’ (naturalité). Como diz o próprio subtítulo da segunda parte do

escrito, Henrique de Gand teria operado uma “redefinição do campo da

naturalidade [rédefinition du champ de la naturalité]” (p. 15), o que

necessariamente o leva a concepções distintas daquelas de Egídio Romano no

que diz respeito a temas como o ‘desejo natural pelo conhecimento’, a ‘potência

natural para o conhecimento’ ou os ‘limites de um conhecimento natural’. O que

afastaria ambos seria a restrição ao conhecimento obtido ex puris naturalibus

operada pelo Doutor Solene em contraposição a uma ampla naturalização do

conhecimento científico proposta pelo mestre romano. Como conclusão, quiçá

no passo mais problemático do artigo, König-Pralong busca reduzir a distância

entre os dois autores àquela entre uma leitura ‘filosófica’ de Aristóteles e outra

‘teológica’: “não há dúvida de que Egídio tenha participado dessa leitura de

Aristóteles que naturaliza a antropologia em uma perspectiva filosófica, se ele

for, de fato, o autor de nossas Questiones methaphisicales. E é igualmente claro

que Henrique de Gand percebeu a coerência dessa leitura de Aristóteles que ele

julgou falaciosa e perigosa e que ele preferiu opor-lhe outra alternativa que não a

de Tomás de Aquino. Henrique estabeleceu, com efeito, condições de uma

teologia racional que permite ler, como teólogo [en théologien], verdadeiramente

e exaustivamente a metafísica e a ética de Aristóteles”11 (p. 23). Embora capte

muito bem a dupla intertextualidade proposta por Cordonier no início do

11 “Cependant, il ne fait pas de doute que Gilles ait participé à cette lecture d’Aristote que naturalise l’anthropologie dans une perspective philosophique, s’ils est bien l’auteur de nos Questiones methaphisicales. Et il est tout aussi clair qu’Henri de Gand a perçu la cohérence de cette lecture d’Aristote, qu’il l’a jugée fallacieuse et dangereuse, et qu’il a souhaité y opposer une autre alternative que celle de Thomas d’Aquin. Henri établi en effet les conditions d’une théologie rationelle qui permette de lire véritablement et exhaustivement la métaphysique et l’éthique d’Aristote en théologien (...)”.

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30CORDONIER,V.,SUAREZ-NANI,T.(éds.),L’aristotélismeexposé

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volume – de fato, estamos em uma encruzilhada de duas leituras diversas acerca

de um mesmo texto de Aristóteles –, a redução dessa complexa rede de textos

a uma oposições entre ‘filósofos’ e ‘teólogos’ soa simplista, como Martin Pickavé

notou em sua resenha do mesmo livro.12

De fato, essa simplificação excessiva ameaça mascarar precisamente o

complexo problema colocado pela contribuição de König-Pralong (e, de resto,

pelo volume como um todo), a saber, o papel fundamental da crítica textual para

uma narrativa da história da filosofia medieval. Esse caráter basilar da crítica

textual fica muito bem explicitado por uma pequena ressalva no trecho

supracitado: “...se ele for, de fato, o autor de nossas Questiones methaphisicales

[s’il est bien l’auteur de nos Questiones methaphisicales]”. No fim, toda a narrativa

da autora depende de uma decisão acerca da autoria de um texto que, no mais,

só possui uma edição incunábula lacunar de 1499 reimpressa em 1501 (p. 3) e,

portanto, reclama uma edição crítica. Enfim, decisões de crítica textual se

mostram aqui cruciais para a exposição do emaranhado de intertextualidades

sincrônicas e diacrônicas trazido à baila pela autora – qualquer simplificação do

tema é mais um disfarce do que uma solução. Isso fica ainda mais claro quando,

ao fim do artigo, são apresentadas como anexos diversas passagens similares das

Questiones methaphisicales atribuídas a Egídio Romano, do Super Ethicorum de

Alberto Magno e do De summo bono de Boécio de Dácia (pp. 26-28). Vemos que

a trama intertextual só se complexifica...

A contribuição seguinte é um artigo de Gordon A. Wilson denominado

“Le Contra gradus de Gilles de Rome et le Quodlibet IV, 13 d’Henri de Gand” (pp.

29-54).13 O autor, há alguns anos, herdou de Raymond Macken a direção da

edição e publicação dos Opera omnia de Henrique de Gand e, como fica claro no

capítulo de sua lavra, ele está plenamente a par dos recentes desenvolvimentos

12 PICKAVÉ, M. “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent. Critical Study of V. Cordonnier – T. Suarez-Nani (eds.), L’aristotélisme exposée...”. Recherches de Théologie et Philosophie Médiévales 81.2 (2014), pp. 387-98 (esp. pp. 390-1): “The picture emerging from König-Pralong’s comparison is that of the philosopher Giles, who allows metaphysics a relative autonomy, and the theologian Henry, for whom all philosophical disciplines are directed towards theology. I find this picture a bit too simplistic. After all, the texts on which her comparison is based are of a very different nature”. 13 Texto traduzido do inglês por Valérie Cordonier para o volume (cf. p. ix).

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31CORDONIER,V.,SUAREZ-NANI,T.(éds.),L’aristotélismeexposé

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crítico-textuais nos estudos acerca do gandavense. O tema abordado por Wilson

é algo a que ele vem se dedicando desde sua tese de doutorado defendida em

1975, a saber: o problema da descrição do homem enquanto composto e, em

particular, o chamado ‘dimorfismo’ defendido por Henrique de Gand (isto é, a

tese segundo a qual o homem teria duas formas substanciais – a forma do corpo

e a alma – informando sua matéria).14 Ora, a grande diferença entre seu texto de

doutoramento e o artigo do volume que ora resenhamos é precisamente o longo

caminho percorrido no campo da crítica textual como parte dos Opera omnia de

Egídio e de Henrique. Basta notar que, enquanto em 1975 a versão mais recente

disponível dos Quodlibeta do Doutor Solene para um trabalho a respeito do tema

era a edição de 1613 por Vital Zuccoli, em 2014 não somente Wilson pôde se

valer das edições críticas de diversos dos textos importantes para o assunto (em

particular, de Quodl. 4, q. 1315), mas também de significativos avanços no estudo

da tradição manuscrita das obras de Egídio e Henrique.

Tais avanços foram particularmente relevantes para o estabelecimento

das relações entre um conjunto de obras que, entre 1275 e 1289, versaram

sobre a composição e unidade do homem, nesta ordem: os Theoremata de

corpore Christi de Egídio Romano, os Quodl. 1, q. 4 e Quodl. 2, q. 2 de Henrique de

Gand, o Contra gradus de Egídio Romano, o Quodl. 3, q. 6 de Henrique de Gand,

o De unitate formae de Egídio de Lessines e, finalmente, o Quodl. 4, q. 13 de

Henrique de Gand. Após apontar brevemente o contexto histórico imediato em

que essa discussão se pôs na década de 1270, inclusive com referências à

atmosfera institucional particularmente explosiva de 1277 (pp. 30-7), Wilson se

volta para a relação entre o Contra gradus de Egídio e o Quodl. 3, q. 6 de

Henrique de Gand (pp. 37-42) – note-se, como lembra Pickavé em sua já citada

resenha, que o autor não se refere à possibilidade da distinção de duas redações

14 WILSON, G. A. Dymorphism and the metaphysical unity of man in Quodlibeta Magistri Henrici Goethal a Gandavo doctoris solemnis: socii sorbonici: et archidiaconi tornacensis cum duplici tabella. A dissertation submitted to the Department of Philosophy of the Graduate School of Tulane University in partial fulfillment of the requirements for the degree of Doctor of Philosophy, 1975. 15 HENRICI DE GANDAVO. Quodlibet IV. Ed. G. A. Wilson & G. J. Etzkorn. Leuven: Leuven University Press, 2011 (Henrici de Gandavo Opera omnia 8).

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do Quodl. 2 de Henrique, de tal modo que sua segunda redação já contivesse uma

primeira referência ao Contra gradus de Egídio (sem dúvida, essa possível adição

de uma referência de Henrique ao Contra gradus anterior a seu Quodl. 3 poderia

modificar significativamente a narrativa de Wilson).16 Por fim, o autor da

contribuição estuda o Quodl. 4, q. 13 de Henrique, mostrando como foram

relevantes para a sua complexa composição tanto o Contra gradus de Egídio

Romano como o De unitate formae de Egídio de Lessines, além da Suma teológica

de Tomás de Aquino (pp. 42-9). Após enumerar rapidamente suas principais

conclusões (pp. 49-50), Wilson apresenta como anexo um esquema da “structure

du Quodl. IV, q. 13 d’Henri de Gand” (pp. 51-4), um instrumento utilíssimo para

um leitor desse complexo e longo texto do Doutor Solene.

Se o texto de Wilson deixa clara não somente a complexa rede de

intertextualidades desenvolvida em pouco menos de cinco anos pelos mestres de

Roma e de Gand, mas também o problema crítico-textual (levantado aqui

indiretamente, é verdade) acerca da duplicidade ou unidade da redação do Quodl.

2 de Henrique, a contribuição seguinte, de Pasquale Porro, traz novamente à

baila ambas as temáticas historiográficas que viemos destacando até aqui:

intertextualidade e crítica textual. Com efeito, esse trecho – intitulado “Prima

rerum creatarum est esse: Henri de Gand, Gilles de Rome et la quatrième proposition

du De causis” (pp. 55-81)17 – depende, de saída, de uma decisão acerca da

atribuição de uma obra. Ora, sendo o tema principal agora a recepção (nas

palavras de Cordonier, um caso de intertextualidade diacrônica) do De causis

pelos nossos dois mestres, é preciso decidir a respeito da autoria do comentário

ao De causis transmitido no ms. Escorial, h-II-1, ff. 74ra-89va e outrora atribuído

a Henrique de Gand. Mais do que adotar a prudência defendida por Zwaenepoel,

16 PICKAVÉ, “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent...”, 2014, p. 392: “(...) unlike Robert Wielockx, Wilson makes no mention of the idea that Henry responded to Giles of Rome’s Contra gradus not only in Quodlibet III, but already in a second redaction of Quodlibet II. (The Contra gradus was written in reaction to the first version of Henry’s second Quodlibet.) So the reader may wonder whether Wilson disagrees with this thesis, which Wielockx has defended in his edition of Quodlibet II and elsewhere”. Para a posição de Wielockx, cf. a p. 185 do livro ora resenhado ou HENRICI DE GANDAVO. Quodlibet II. Ed. R. Wielockx. Leuven: Leuven University Press, 1983 (Henrici de Gandavo Opera omnia 6), pp. xviii-xx. 17 Texto traduzido do italiano por Valérie Cordonier para o volume (cf. p. ix).

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33CORDONIER,V.,SUAREZ-NANI,T.(éds.),L’aristotélismeexposé

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o editor do texto, quanto à sua atribuição,18 Porro parece seguramente

considerar a proposta da autoria de Henrique para esse comentário como

espúria, referindo-se a seu autor como “pseudo-Henri de Gand” ou simplesmente

como “l’auteur du commentaire de l’Escorial” (p. 59) – essa parece ser, ademais, a

posição padrão atualmente quanto à questão.19 A não atribuição desse texto a

Henrique de Gand faz com que o campo de pesquisa proposto por Porro

envolva basicamente cinco autores: o Pseudo-Henrique de Gand, Alberto Magno,

Tomás de Aquino (pp. 59-66), Henrique de Gand e Egídio Romano (pp. 66-78). A

relação entre esse autores é abordada após uma rápida introdução à

problemática suscitada pela quarta proposição do livro De causis e sua

proximidade ou distância com respeito à Elementatio theologica de Proclo (pp. 55-

9).

A dificuldade que surge a partir dessa quarta proposição do De causis e

que será atentamente pesquisada por Porro nos cinco autores enumerados há

pouco é assim resumida: “[a] quarta proposição se apresenta, assim, como um

verdadeiro curto-circuito ontoteológico – para retomar uma expressão

heideggeriana banalizada –, ou melhor como uma reduplicação do dilema

ontoteológico ao nível do ser supremo enquanto ser criado e não somente

tomado enquanto causa primeira: o ser que é a primeira coisa criada seria uma

forma universal (o ente em geral) ou seria o ente supremo, quer dizer,

notadamente a inteligência (quiçá somente a primeira inteligência?)”20 (p. 58).

Bem ao modo de Porro, o problema metafísico suscitado pela quarta proposição

18 ZWAENEPOEL, J. P (éd.). Les Quaestiones in librum De causis attribuées à Henri de Gand. Publications Universitaires – Béatrice Nauwelaerts: Louvain – Paris, 1974, p. 19: “Lorsque nous serons en possession de bonnes éditions des commentaires sur la Métaphysique et sur la Physique attribués au maître gantois, une comparaison approfondie de ces textes, de nos Quaestiones et des écrits théologiques permettra sans doute de voir plus clair dans ce délicat problème d’authenticité. En attendant, la prudence s’impose et mieux vaut rester dans le doute”. 19 Cf. WILSON, G. A. “Henry of Ghent’s Written Legacy”. In: WILSON, G. A. A companion to Henry of Ghent. Leiden – Boston: Brill, 2011, pp. 3-23 (esp. pp. 22-3). 20 “La quatrième proposition se présente ainsi comme un véritable court-circuit ontothéologique – pour reprendre une expression heidéggerienne rebattue –, voire comme une réduplication du dilemme ontothéologique au niveau de l’être suprême en tant qu’être créé, et non pas seulement de l’être pris comme cause première: l’être qui est la première chose créée est-il une forme universelle (l’étant en général), ou bien est-il l’étant suprême, c’est-à-dire notamment l’intelligence (voire seulement la première intelligence?)”.

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do De causis é reinterpretado à luz da noção de ‘ontoteologia’ que o comentador

italiano toma a Martin Heidegger.21

Para além desse pormenor, notemos que todo o problema posto pela

quarta proposição do De causis diz respeito à concepção de ‘ser’ eventualmente

adotada por seu leitor e à consequente concepção deste último a respeito da

relação entre o ser e o ato de criação. Não sendo este o lugar para apresentar

todas as posições que Porro encontra em seu trajeto, ressaltemos ao menos as

primeiras linhas de sua conclusão (pp. 78-9), logo antes de alguns textos e

esquemas apresentados em anexo (pp. 80-1): “[a] interpretação diferente que

Henrique e Egídio dão da quarta proposição do De causis depende,

evidentemente, de suas opções respectivas quanto à composição de ser e

essência, mas reflete também uma ambiguidade de fato presente no próprio Liber

e que já havia estado na origem de opções diversas no século XIII”22 (p. 78). Ou

seja, Porro quer ver no próprio De causis a razão para as diversas opções

interpretativas que surgem acerca dele nos duzentos. Essa ambiguidade (seja ela

própria do De causis ou derivada dos diferentes vieses de leitura do século XIII)

está profundamente ligada, como destaca o autor, às opções adotadas acerca da

distinção e relação entre ser e essência pelos leitores da quarta proposição do

livro De causis – em particular, esse é o caso da nossa dupla de mestres de

teologia. Assim, por meio do De causis, retornamos ao problema da distinção

entre ser e essência (além, é claro, da existência) que, como vimos no início, foi

o próprio estopim para a proposta, por Marcel Chossat, de que haveria ocorrido

um debate entre Henrique de Gand e Egídio Romano em fins do século XIII.

Em seguida, lemos a contribuição de Valérie Cordonier, com o título

“Une lecture critique de la théologie d’Aristote: le Quodlibet VI, 10 d’Henri de Gand

comme réponse à Gilles de Rome” (pp. 83-180). Aqui a autora busca apresentar a

recepção por parte de Egídio Romano e de Henrique de Gand do Liber de bona

21 Uma utilização semelhante de Heidegger pode ser lida em PORRO, P. Tomás de Aquino. Um perfil histórico-filosófico. Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2014, p. 287.22 “L’interprétation différente qu’Henri et Gilles donnent de la quatrième proposition du De causis dépend évidemment de leurs options respectives au sujet de la composition de l’être et de l’essence, mais reflète aussi une ambiguïté de fait présente dans le Liber lui-même, et qui avait déjà été à la source d’options diverses au XIIIe siècle”.

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fortuna, um tratado que, em fins do século XIII, já havia sido “integrado havia uma

boa dezena de anos ao corpo latino de obras de Aristóteles”, sendo “formado de

dois excertos tirados dos Magna moralia e da Ética a Eudemo traduzidos por

Guilherme de Moerbeke”23 (p. 83). Um problema que encontramos, de saída,

nesse artigo é o fato de Egídio Romano possuir o primeiro comentário

conhecido do Liber de bona fortuna – a saber, a sua Sententia de bona fortuna (cf. p.

96) – e Henrique de Gand não possuir nada semelhante. Essa dificuldade pode

ser suplantada com um princípio metodológico de leitura da obra de Henrique

de Gand que, como Pickavé lembra ao comentar esta quarta contribuição,24

encontramos na introdução ao volume de autoria da mesma Cordonier: “(...) a

Summa contém passagens semelhantes a ‘comentários’ em miniatura, centrados

em um ponto ou uma noção (...). Nos Quodlibets, igualmente, encontram-se

análises minuciosas de textos de Aristóteles, em particular daqueles que

acabavam de ser traduzidos para o latim por Guilherme de Moerbeke (e

integrados ao dito corpus recentius): assim, o Quodl. VI, q. 10 faz uma exegese

aprofundada da teologia sugerida pelo Liber de bona fortuna (...)”25 (p. xv). Se

aceitarmos esse princípio metodológico, é possível colocar lado a lado a Sententia

de bona fortuna de Egídio Romano e o Quodl. 6, q. 10 de Henrique de Gand como

comentários discordantes ao Liber de bona fortuna – mais precisamente, o

Quodlibet do Doutor Solene apresenta-se como uma resposta à interpretação de

Aristóteles proposta na Sententia de Egídio Romano.

Em poucas palavras, a problemática que se desenrola a partir da leitura

do Liber de bona fortuna diz respeito à relação entre Deus enquanto causa 23 “Une telle question, nouvelle dans le paysage scolastique, trouve sont origine dans le Liber de bona fortuna, un traité intégré alors depuis une bonne dizaine d’années au corpus latin des oeuvres d’Aristote et formé de deux extraits tirés des Magna moralia et de l’Éthique à Eudème traduits par Guillaume de Moerbeke”. 24 PICKAVÉ, “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent...”, 2014, p. 394: “Henry of Ghent is usually not taken serious as a commentator on Aristotle. We do not possess any Aristotle commentaries that we can attribute to him without any doubt. Yet, as Valérie Cordonier rightly notices in her excellent introduction to the present volume, some of Henry’s quodlibetal questions are sort of mini-commentaries on Aristotelian texts”. 25 “Ainsi, la Summa contient-elle des passages ressemblant à des ‘commentaires’ en miniature, centrés sur un point ou une notion (...). Dans les Quodlibets également, on trouve des analyses fouillées de textes d’Aristote, en particulier de ceux qui viennent d’être traduit en latin par Guillaume de Moerbeke (et intégrés audit corpus recentius): ainsi le Quodl. VI, q. 10 fait-il une exégèse approfondie de la théologie suggérée par le Liber de bona fortuna (...)”.

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primeira e a vontade enquanto causa livre. Seja de um ponto de vista metafísico

ou teológico, parece difícil sustentar simultaneamente a vontade como causa

segunda (com respeito à causa primeira divina) e como livre (não determinada

por algo outro). Toda essa problemática é levantada, justamente, pelo estudo

sobre o que significaria dizer de um homem que ele é ‘bem-afortunado’. Enfim, o

estudo da ‘boa fortuna’ termina por colocar em jogo justamente a tensão entre

uma concepção metafísica (mas, também, teológica) de mundo que o faz

depender de um agente primeiro e uma concepção de homem enquanto agente

livre. Todo esse espectro – bem amplo, diga-se de passagem – de problemas

filosóficos é estudado por Cordonier primeiro no próprio Liber de bona fortuna

que, sendo uma colagem de textos de Aristóteles, necessariamente traz consigo

problemas de análise interna (pp. 85-91), e a seguir na recepção dessa obra na

Suma contra os gentios (com referências a outras obras) de Tomás de Aquino (pp.

91-6). Em seguida, a autora se volta para o núcleo de sua contribuição: o estudo

de Quodl. 6, q. 10 de Henrique de Gand enquanto resposta à interpretação do

Liber de bona fortuna oferecida por Egídio Romano em sua Sententia de bona

fortuna (pp. 96-140), ao que se segue uma curta conclusão com os principais

resultados do artigo (pp. 140-2).

Como anexo a seu texto (pp. 143-80), Cordonier adiciona sete excertos

da Sententia de bona fortuna de Egídio Romano em uma versão provisória, fruto

de um trabalho de edição crítica em andamento (pp. 144-55), uma vez que o

texto possui somente edições dos séculos XV e XVI (pp. 159-60). Ao texto do

mestre romano, se seguem descrições dos manuscritos utilizados (pp. 156-9) –

uma recensão parcial e provisória da tradição manuscrita, segundo a autora (p.

156) – e a descrição da edição de 1507 da Sententia (pp. 159-60). Por fim, é

oferecido um longo estudo comparativo da tradição manuscrita e impressa

recenseada até agora (pp. 160-80), com especial atenção para a versão do texto

encontrada no ms. Paris, BnF lat. 16096, ff. 122r-123v (cf. pp. 159, 169-173 e

179-80). Esse manuscrito provém da já citada coleção de manuscritos legados à

Sorbonne por Godofredo de Fontaines. Estes têm sido fontes inestimáveis não

somente para o estudo do próprio mestre de Liège, mas também em razão do

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cuidado com que ele e seus colaboradores buscaram manter suas cópias de

textos atualizadas (registrando, muitas vezes, diversas versões de uma mesma

obra) e procuraram comparar criticamente passagens de diversos autores que

mantivessem debates entre si ou servissem de fonte um para o outro – é o que

ocorre com as lições de Egídio Romano e Henrique de Gand que encontramos

nessa biblioteca.

Com essa observação, entramos já na última contribuição ao volume, de

autoria de Robert Wielockx e intitulada “Henri de Gand et Gilles de Rome à la

lumière de la bibliothèque de Godefroid de Fontaines” (pp. 181-259). A meu ver, a

correta apreciação desse artigo depende de uma frase posta logo ao início do

texto: “[p]ara se apoiar em um texto estabelecido de maneira crítica, o recurso

aos manuscritos é indispensável [Pour s’appuyer sur un texte établi de façon critique,

le recours aux manuscrits est indispensable]” (p. 181). Assim como ocorria no texto

de Cordonier, também aqui há um princípio metodológico fundamental, pois

Wielockx justamente irá mostrar no decorrer de seu texto como uma edição

crítica pode ser enriquecida e corrigida pela consulta aos manuscritos

(recenseados ou não naquela edição) por parte do leitor. No presente caso, está

em jogo mais uma vez a biblioteca de Godofredo de Fontaines legada à

Sorbonne.

Sendo assim, na primeira parte de sua contribuição, o autor destaca os

resultados que já se pôde obter a respeito das obras de Henrique de Gand e

Egídio Romano, bem como acerca da relação entre ambos e Tomás de Aquino a

partir da consulta aos manuscritos de Godofredo (pp. 182-9).26 Torna-se

particularmente importante, nesse contexto, o problema das múltiplas camadas

textuais que se parece poder identificar em diversas obras do Doutor Solene a

partir das lições encontradas nos manuscritos legados por Godofredo. Essa

problemática é particularmente candente, por exemplo, com respeito a temas

como a noção de iluminação divina desenvolvida pelo gandavense e o dimorfismo

26 De fato, por diversas vezes nessa etapa de seu artigo Wielockx remete a AIELLO, A., WIELOCKX, R. Goffredo di Fontaines aspirante bacceliere sentenziario: le autografe “Notule de scientia teologie” e la cronologia del ms. Paris BnF lat. 16297. Turnhout: Brepols, 2008 (Corpus Christianorum. Autographa Medii Aevi 6).

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do homem igualmente asseverado por ele (pp. 183-6). Pickavé, na sua já

mencionada resenha, afirma que esse início desta última contribuição ao volume

“serve como uma boa lembrança de que a pesquisa sobre tópicos tão centrais

para Henrique como a doutrina da iluminação, a pluralidade de formas

substanciais ou a psicologia cognitiva não podem deixar de tomar em

consideração esses desenvolvimentos doutrinais”.27 A bem dizer, não me parece

que seja esse o resultado da apresentação de Wielockx. Antes, o que parece dela

derivar é o fato, muito mais importante metodologicamente, de que (sejam as

diferentes lições ou camadas textuais de uma obra fruto de desenvolvimentos

doutrinais ou não) não se pode ler textos medievais sem a consulta aos

manuscritos e, portanto, sem um cuidadoso trabalho de crítica textual. O ponto

aqui não é discutir a ocorrência ou não de mudanças doutrinais em um autor

escolástico (Henrique de Gand, no caso), mas antes destacar a centralidade da

crítica textual para a leitura de um autor. Desse ponto de vista, a contribuição de

Wielockx é, antes de tudo, um ensaio metodológico.

Como segunda etapa de seu artigo, o autor propõe diversos (para

retomar seu termo) ‘documentos’ (documents) que ele analisará em seguida.

Esses documentos – sete, no total, mais os estudos acerca deles (pp. 190-253) –

são basicamente transcrições e releituras de textos de Egídio Romano e de

Henrique de Gand a partir de lições obtidas na biblioteca de Godofredo de

Fontaines não consideradas nas edições críticas originais ou, segundo o autor,

mal compreendidas e expostas nessas edições. Assim, no ‘Documento I’ (pp.

191-204), há uma tentativa de reconstituição da Reportatio in II Sent., q. 65 de

Egídio Romano. Nessa reconstituição, são destacados determinados trechos

relevantes de um ponto de vista doutrinal e crítico-textual – em particular, cinco

excertos que, diferentemente, do restante da questão, não são tomados

diretamente ao De malo, q. 6 de Tomás de Aquino. No ‘Documento II’ (pp. 204-

6), é mostrada a lição do mesmo texto encontrada no ms. Paris, BnF lat. 15819,

27 PICKAVÉ, “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent...”, 2014, p. 396: “It serves as a welcome reminder that research on topics so central to Henry as the doctrine of illumination, the plurality of substantial forms, or cognitive psychology cannot do without taking these doctrinal developments into account”.

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legado por Godofredo de Fontaines e, segundo Wielockx, não considerada por

Concetta Luna em sua edição da Reportatio in II Sent., q. 65 de Egídio Romano.28

O ‘Documento III’ (pp. 207-8) apresenta uma comparação linear entre a edição

de Reportatio in II Sent., q. 65 proposta no ‘Documento I’, a lição desse mesmo

texto encontrada no ms. BnF lat. 15819 e apresentada no ‘Documento II’ e,

finalmente, o De malo, q. 6 de Tomás de Aquino na edição leonina.29 O

‘Documento IV’ (pp. 208-11) é uma proposta de aparato crítico derivado da

comparação entre a edição de Reportatio in II Sent., q. 65 por parte de Luna e a

lição encontrada no ms. BnF lat. 15819. O ‘Documento V’ (pp. 211-5) é a

transcrição de um excerto de Quodl. 9, q. 5 de Henrique de Gand encontrado no

ms. Paris, BnF lat. 15350, ff. 137va-138ra, igualmente legado por Godofredo de

Fontaines – por um recurso tipográfico, busca-se destacar a possível ocorrência

de uma dupla camada textual neste excerto (cf. pp. 213-4). As discordâncias

entre o texto de Quodl. 9, q. 5 apresentado por Godofredo de Fontaines e a

edição crítica de Raymond Macken30 são apresentadas no ‘Documento VII’ (pp.

220-3). O ‘Documento VI’ (pp. 215-9) igualmente apresenta, a partir do ms.

Paris, BnF 15848 legado por Godofredo, diversas propostas de correções do

corpo do texto ou do aparato da edição crítica produzida por Macken para

Quodl. I, qq. 14-17.31 Como se vê, os documentos VI e VII tornam-se ferramentas

indispensáveis para uma correta utilização dos volumes 5 e 13 dos Opera omnia

de Henrique de Gand.

Por fim, a esses documentos são adicionados alguns estudos que buscam

mostrar, a partir dos textos (re)estabelecidos, a complexa relação entretida por

Egídio Romano com Tomás de Aquino e, possivelmente, com Henrique de Gand

em Reportatio in II Sent., q. 65. Esses estudos culminam, a meu ver, com a

28 AEGIDII ROMANI. Reportatio Lecturae Super libros I-IV Sententiarum. Reportatio Monacensis, Excerpta Godefridi de Fontibus. Ed. Concetta Luna. Roma: SISMEL, 2003 (Aegidii Romani Opera omnia 3.2). 29 THOMAE AQUINATIS. Quaestiones disputatae de malo. Ed. Pierre-Marie Gils. Roma/Paris: Commissio Leonina/Vrin, 1982 (Sancti Thomae Aquinatis Opera omnia 23). 30 HENRICI DE GANDAVO. Quodlibet IX. Ed. Raymond Macken. Leuven: Leuven University Press, 1983 (Henrici de Gandavo Opera omnia 13). 31 HENRICI DE GANDAVO. Quodlibet I. Ed. Raymond Macken. Leuven/Leiden: Leuven University Press/Brill, 1979 (Henrici de Gandavo Opera omnia 5).

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proposta de que se poderia encontrar vestígios do comentário às Sentenças do

Doutor Solene (texto não transmitido pela tradição manuscrita) na Reportatio de

Egídio Romano (cf. p. 251). Em sua resenha, Pickavé enxerga com reservas tal

conclusão32 e não posso deixar de seguir seu juízo, uma vez que, apesar da

enorme qualidade e utilidade do trabalho desenvolvido por Wielockx nesta

contribuição ao volume resenhado, os dados angariados por ele parecem muito

tênues para a magnitude daquilo que ele conclui, a saber, que a Reportio in II Sent.

de Egídio Romano seria um meio para a leitura do comentário às Sentenças de

Henrique. Tão tênues quanto sejam os argumentos em favor desta hipótese,

acredito que ela deva ser reservada para futuros desenvolvimentos.

Por fim, em uma terceira etapa de sua contribuição (pp. 253-9), Wielockx

propõe novamente revisões crítico-textuais – agora, à edição de Quodl. 10, q. 7

de Henrique de Gand, realizada uma vez mais por Macken.33 Não somente o

autor propõe, a partir do já citado ms. Paris, BnF lat. 15350 legado por

Godofredo de Fontaines, correções a esta edição e o preenchimento de lacunas

textuais que se encontram nela (pp. 253-4, 256-9), mas igualmente estuda as

consequências doutrinárias de tais correções no contexto dos debates entre os

mestres de Roma e de Gand (pp. 254-6). Ou seja, como ocorria na segunda

etapa desta contribuição, também agora o que Wielockx nos fornece é um

utilíssimo instrumento para uma leitura mais responsável de trechos do volume

14 dos Opera omnia de Henrique de Gand.

III.

Essas duas últimas contribuições ao livro L’aristotélisme exposé – isto é, a de

Cordonier e a de Wielockx – apontam mais claramente aquilo que constitui o

Leitmotiv de todo o volume: a necessidade da crítica textual para a compreensão

das redes de intertextualidades diacrônicas e sincrônicas que formam a base de

uma narrativa histórica (neste caso, uma narrativa de um período bem curto, de

poucos anos, da história da filosofia medieval). Dito isso, os demais artigos que 32 PICKAVÉ, “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent...”, 2014, p. 397. 33 HENRICI DE GANDAVO. Quodlibet X. Ed. Raymond Macken. Leuven – Leiden: Leuven University Press/Brill, 1981 (Henrici de Gandavo Opera omnia 14).

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compõem o livro igualmente trazem à baila – cada um a sua maneira – essa

mesma temática. Desse ponto de vista, parece-me, a obra como um todo coloca,

para o historiador da filosofia medieval, além de todas as importantes

contribuições aos estudos sobre Egídio Romano e Henrique de Gand,

fundamentalmente um problema metodológico e teórico, pois ela discute, no

limite, a própria relação entre a narrativa histórica e a possibilidade do

estabelecimento de uma base textual para tal narrativa. O resultado hiperbólico

desse questionamento – mas, sinceramente, não vejo como dele fugir – é o

princípio de Wielockx que lemos acima, segundo o qual “[p]ara se apoiar em um

texto estabelecido de maneira crítica, o recurso aos manuscritos é indispensável

[Pour s’appuyer sur un texte établi de façon critique, le recours aux manuscrits est

indispensable]” (p. 181). Longe de ser um truísmo, essa afirmação coloca em

dúvida a própria possibilidade de uma edição crítica, uma vez que ela caracteriza

qualquer texto criticamente estabelecido como um ‘trabalho em andamento’ –

uma edição crítica só será bem lida à luz dos manuscritos nos quais ela se baseou

(ou daqueles que ela deixou de considerar). Em resumo, o volume resenhado,

tomando por ocasião o estudo das relações de intertextualidade que se pode

reconhecer entre Henrique de Gand e Egídio Romano, põe dois níveis de

problemas metodológicos: [i] a necessidade basilar da crítica textual para que

seja possível uma narrativa da história da filosofia medieval e [ii] a insuficiência

inerente a qualquer resultado obtido pela mesma crítica textual. Essas são

questões que deverão ser discutidas para que seja possível uma melhor

compreensão teórica da própria historiografia contemporânea da filosofia

medieval.

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WILSON, G. A. (ed.). A Companion to Henry of Ghent. Leiden/Boston:

Brill, 2011, xi + 430 p. (Brill’s Companions to the Christian

Tradition 23).

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________

I.

Na contracapa do volume ora resenhado, lemos que “não houve síntese” das

posições de Henrique de Gand (a. 1240 – 1293) “desde o trabalho de 1878 de

Karl Werner, Heinrich von Gent als Repräsentant des christlichen Platonismus im

dreizehnten Jahrhundert”. Já em nosso Brill’s Companion, os “18 (NB: de fato, são

14) capítulos escritos por especialistas no campo oferecem: um resumo

[overview] crítico da pesquisa atual, os principais temas da vida e dos escritos de

Henrique e análises de como seu pensamento está sendo interpretado no

começo do século XXI”.1 Essa observação soa muito interessante, uma vez que

ela põe um problema, sem entretanto resolvê-lo. De fato, o último trabalho de

síntese do pensamento do Doutor Solene pode ser creditado a Werner, porém

a obra A Companion to Henry of Ghent, editada por Gordon A. Wilson, não nos

oferece de maneira alguma uma nova síntese. Pelo contrário, o que ela nos

oferta é uma descrição do estado da arte da pesquisa sobre Henrique de Gand,

no que diz respeito [i] ao trabalho de edição crítica de sua obra, [ii] à recepção

historiográfica de sua teologia e filosofia, [iii] à sua atividade universitária

enquanto mestre de teologia na Universidade de Paris entre 1276-1292/3, bem

como à sua atividade eclesiástica enquanto secular e [iv] à sua recepção na

escolástica do século XIV e no renascimento do século XV.

* Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES. 1 “(...) there has been no synthesis of his positions since Karl Werner’s work of 1878, Heinrich von Gent als Repräsentant des christlichen Platonismus im dreizehnten Jahrhundert. The 18 chapters written by experts in the field offer: a critical overview of current research, the major themes in Henry’s life and writings, and analyses of how his thought is being interpreted at the start of the 21st century”.

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Veremos mais atentamente o conteúdo do volume adiante, no item II.,

antes de apresentarmos algumas conclusões gerais à resenha (item III.). Por ora,

o que almejo é retornar à comparação proposta na contracapa do Companion e

buscar uma melhor contextualização da obra no conjunto dos estudos sobre

Henrique de Gand.

Excetuando as obras medievais, renascentistas e modernas sobre o

Doutor Solene (as quais não possuem o caráter historiográfico que nos

interessa), o primeiro grande texto sobre seu pensamento é o trabalho de

síntese de François Huet, publicado em 1838.2 Como notamos, quarenta anos

depois ele é seguido pela já citada obra de Karl Werner.3 Ambos são esforços de

síntese do pensamento de Henrique, os quais (como se nota com respeito a este

último, em particular, na contracapa do Companion) não tiveram sucessão por

outros estudiosos – e isso, por boas razões.

A partir de 1885, um cuidadoso estudo de Franz Ehrle4 redefine a datação

dos trabalhos de Henrique de Gand deslocando seu período de atividade

universitária como mestre de teologia para o último quarto do século XIII.

Desde então, o que encontramos a respeito do gandavense são estudos

pontuais, cada vez mais especializados, a respeito [i] de suas posições teológicas

e filosóficas e [ii] de sua atividade universitária e eclesiástica, a começar pelos

Études sur Henri de Gand, de Maurice de Wulf.5 Assim, lemos em Chossat (já

tendo por base a nova cronologia proposta por Ehrle) a hipótese da ocorrência

2 HUET, F. Recherches historiques et critiques sur la vie, les ouvrages et la doctrine de Henri de Gand. Gand. Paris: De Leroux/Paulin, 1838. 3 WERNER, K. Heinrich von Gent als Repräsentant des christlichen Platonismus in dreizehnten Jahrhundert. Wien: Carl Gerold’s Sohn, 1878. 4 EHRLE, F. “Beiträge zu den Biographien berühmter Scholastiker. 1. Heinrich von Gent”. Archiv für Litteratur- und Kirchegeschichte des Mittelalters 1 (1885), pp. 365-401; “Nachtrag zur Biographie Heinrichs von Gent”, pp. 507-508 [trad. francesa: Recherches critiques sur la biographie de Henri de Gand, dit le docteur solennel. Trad. par J. Raskop. Tournai: Casterman, 1887]. 5 WULF, M. de. Études sur Henri de Gand. Louvain/Paris: Uystpruyst-Dieudonné/Félix Alcan, 1894.

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de um debate entre Henrique de Gand e Egídio Romano,6 a qual teria profundo

impacto para a historiografia sobre a filosofia e a teologia de fins do século XIII.7

Por outro lado, o primeiro estudo de grande fôlego sobre a metafísica de

Henrique de Gand surge em 1938, com a tese de doutorado de Jean Paulus,

orientada por Étienne Gilson.8 Ela foi seguida vinte anos depois pela monografia

de José Gómez-Caffarena9 e encontrou ressonâncias, mais recentemente, no

volume escrito por Martin Pickavé10 sob forte influência de trabalhos de Jan

Aertsen.11 De 1968 em diante, os trabalhos de Raymond Macken começam a dar

as bases da edição crítica dos Opera omnia de Henrique12, cujo primeiro volume

surge publicado em 1979, junto a Bibliotheca manuscripta organizada por Macken,

isto é, dois volumes que elencam todos os manuscritos e dados disponíveis à

época a respeito da tradição manuscrita das obras do Doutor Solene.13 Desde

então, mantêm-se contínuos os trabalhos de edição crítica de suas obras

completas.

Paralelamente, a partir de meados do século XX, começam a ser

publicados inúmeros artigos acerca de elementos precisos do pensamento e/ou

da atividade institucional de Henrique de Gand. Esse enorme conjunto de artigos,

unido ao esforço de edição crítica dos Opera omnia, culminou, a meu ver, no

6 CHOSSAT, M. “Dieu (sa nature selon les scolastiques)”. In: Dictionnaire de Théologie Catholique. Tome 4. Paris: Letouzey e Ané Éditeurs, 1911, cols. 1152-1243 [cf. esp. cols. 1180-1]. 7 Cf., neste mesmo número da Translatio, a resenha de “CORDONIER, V., SUAREZ-NANI, T. (éds.). L’aristotélisme exposé. Aspects du débat philosophique entre Henri de Gand et Gilles de Rome. Fribourg: Academic Press Fribourg/Editions Saint-Paul, 2014, 266 p. (Dokimion 38)”. 8 PAULUS, J. Henri de Gand. Essai sur les tendances de sa métaphysique. Paris: Vrin, 1938. 9 CAFFARENA, J. G. Ser participado y ser subsistente en la metafísica de Enrique de Gante. Romae: apud Aedes Universitatis Gregorianae, 1958. 10 PICKAVÉ, M. Heinrich von Gent über Metaphysik als erste Wissenschaft. Studien zu einem Metaphysikentwurf aus dem letzten Viertel des 13. Jahrhunderts. Leiden/Boston: Brill, 2007. 11 Principalmente, no que diz respeito aos estudos acerca dos transcendentais produzidos por este último – no caso de Henrique de Gand, por exemplo o artigo AERTSEN, J. A. “Transcendental Thought in Henry of Ghent”. In: VANHAMEL, W. (ed.) Henry of Ghent. Proceedings of the International Colloquium on the occasion of the 700th anniversary of his death (1293). Leuven: Leuven University Press, 1996, pp. 1-18. 12 MACKEN, R. [S.]. Hendrik van Gent’s “Quodlibet I”. Tekstkritische uitgave. Weerlegging van een mogelijke eeuwigheid der wereld. 2 delen. Proefschrift tot het behalen van de graad van Doctor in de Wijsbegeerte. Leuven: Katholieke Universiteit Leuven, 1968. 13 Cf. HENRICUS DE GANDAVO. Quodlibet I. Ed. R. Macken. Leuven – Leiden: Leuven University Press – Brill, 1979 (Opera omnia Henrici de Gandavo 5); e MACKEN, R. Bibliotheca Manuscripta Henrici de Gandavo. I. Introduction. Catalogue A-P. II. Q-Z. Répertoire. 2 vols. Leuven: Leuven University Press, 1979.

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Internaal Colloquium Hendrik van Gent, realizado pelo Centro De Wulf-Mansion da

Katholiek Universiteit Leuven (KUL) entre 15 e 17 de setembro de 1993, por

ocasião dos 700 anos da morte do autor14 – tal encontro deu origem a um

inestimável volume de artigos publicado em 1996.15 Mais alguns anos de pesquisa

sobre o autor irão possibilitar a organização na mesma instituição, entre os dias

12 e 16 de setembro de 2001, do colóquio Between Aquinas and Scotus: Henry of

Ghent’s Contribution to the Transformation of Scholastic Thought,16 que irá originar

mais um volume de artigos em 2003.17 Juntos, os volumes de 1996 e 2003

reúnem os principais estudiosos da obra de Henrique de Gand, cristalizando o

estado da pesquisa de então acerca do nosso mestre de teologia. Como vemos,

essas não são obras de síntese – muito pelo contrário. Elas apontam com muita

propriedade aquilo que foi objeto de estudo nos textos do Doutor Solene

(inclusive a necessidade de estabelecimento de uma bibliografia acerca dele, uma

vez que em fins do século XX os estudos sobre seu pensamento já haviam

atingido uma proporção considerável), mas também deixam de lado elementos

de sua carreira (por exemplo, os documentos relativos à sua atividade como

arcediago de Tournai). A meu ver, A Companion to Henry of Ghent se coloca na

tradição destas duas últimas coletâneas – ele oferece um resumo do estado da

arte, não uma síntese. Como diz Gordon Wilson no prefácio à obra aqui

resenhada, “[o]s artigos contidos neste volume pretendem ser uma introdução

ao pensamento de Henrique e, enquanto introdução, o volume não pode ser e

não é exaustivo. Pode-se facilmente apontar tópicos importantes para os quais

não foi dedicado explicitamente um artigo (...)” (p. x).18 Mais do que isso, esses

conjuntos de artigos não demonstram (de maneira salutar, me parece) qualquer 14 Cf. CARVALHO, M. A. S. de. “Colóquio internacional sobre o pensamento e a obra de Henrique de Gand”. Revista Filosófica de Coimbra 3 (1994), pp. 197-207. 15 VANHAMEL, W. (ed.) Henry of Ghent. Proceedings of the International Colloquium on the occasion of the 700th anniversary of his death (1293). Leuven: Leuven University Press, 1996, já citado acima, na nota 11. 16 Cf. CARVALHO, M. A. S. de. “A transformação do pensamento escolástico. Colóquio internacional sobre Henrique de Gand”. Revista Filosófica de Coimbra 20 (2001), pp. 461-72. 17 GULDENTOPS, G., STELL, C. (eds.). Henry of Ghent and the Transformation of Scholastic Thought. Leuven: Leuven University Press, 2003.18 “The articles contained in this volume are intended to be an introduction to Henry’s thought, and as an introduction the volume cannot be and is not exhaustive. One could easily point to important topics for which an article was not explicitly dedicated (…)”.

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intenção de unificação sistemática dos resultados obtidos nas pesquisas neles

apresentadas – pelo contrário, cada tema abordado por cada comentador é

sempre tratado por si mesmo, de maneira independente (salvo pequenas

remissões) dos outros textos do volume. Ou seja, estamos nas antípodas do que

víamos em Huet ou Werner.

Pois bem, se o volume ora resenhado é organizado por Gordon Wilson

da University of North Carolina at Asheville e não mais pela KUL, isso reflete o fato

de que a organização dos Opera omnia de Henrique de Gand atravessou o

Atlântico – algo como uma translatio studii Henrici ad Americas. Além disso, tal

volume não é resultado de um congresso, mas antes surge como componente da

coleção Brill’s Companions to the Christian Philosophy Tradition. Essas diferenças não

excluem, contudo, a clara aproximação entre nosso Companion to Henry of Ghent

e os volumes de 1996 e 2003 citados há pouco. Como dito, mais do que sínteses

do pensamento do Doutor Solene, o que encontramos nesses três conjuntos de

artigos é o estado da arte dos estudos sobre Henrique de Gand,

respectivamente, no início da década de 1990, de 2000 e de 2010. Se em sua

contracapa, lemos que o Companion ora resenhado nos mostra como o

pensamento do gandavense está sendo interpretado no começo do século XXI,

o grande volume de trabalhos recentemente produzidos sobre ele permite ser

mais preciso: temos aqui uma amostra do estado da arte da pesquisa acerca do

Doutor Solene na passagem da primeira para a segunda década do século XXI.

Parece-me, portanto, que o volume ora resenhado é mais bem

compreendido se o aproximarmos dos conjuntos de artigos provenientes dos

dois congressos organizados pela KUL do que de obras de síntese sistemática,

como aquelas de Huet ou Werner – esta última, em particular, citada na

contracapa do Companion em uma tentativa de aproximação, como vimos. Dito

isso, o que pretendo agora é oferecer ao leitor um resumo dos capítulos

presentes no volume – como veremos, ao fim não possuímos qualquer sistema

ou síntese, mas um apanhado de capítulos independentes que, juntos,

representam (ou buscam representar) o status quo das pesquisas sobre o

gandavense nas mais diversas áreas do estudo de suas obras.

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II.

Em seu curto e já citado prefácio ao Companion, Gordon Wilson (pp. vii-xi) –

editor da obra, como vimos – resume em poucas páginas o conteúdo dos artigos

que compõem o volume. Entretanto, há dois ponto fundamentais nesse prefácio:

[i] a já mencionada ressalva acerca da incompletude inerente à apresentação

introdutória da obra de Henrique de Gand;19 e [ii] a organização temática por

meio da qual são apresentadas as contribuições ao volume. Essa organização tem

por base a distinção de quatro tópicos, sendo o terceiro dividido em três sub-

tópicos, assim:

“Perspectivas históricas” [Historical Perspectives]

“A teologia de Henrique de Gand” [Henry of Ghent’s Theology]

“A filosofia de Henrique de Gand” [Henry of Ghent’s Philosophy]

“A. Metafísica” [A. Metaphysics]

“B. Epistemologia” [B. Epistemology]

“C. Filosofia moral” [C. Moral Philosophy]

“A influência de Henrique de Gand” [Henry of Ghent’s Influence]

Tais divisões são claramente indicadas no índice da obra (pp. v-vi), junto aos

artigos que compõem cada etapa. Decerto, a nomenclatura utilizada aqui pode

ser discutida – principalmente, o uso de ‘Epistemology’ nesse contexto parece

arriscado ou, pelo menos, parece ser tomado em um sentido bem amplo (ao

menos, ele mereceria alguma explicação, uma vez que autores como Richard

Rorty considerariam a epistemologia justamente como uma reflexão sobre o

conhecimento necessariamente posterior à escolástica tardo-medieval);20 em todo

19 Cf. a nota precedente. 20 RORTY, R. Philosophy and the Mirror of Nature. With a new introduction by Michael Williams, a new afterword by David Bromwich, and the previously unpublished essay “The Philosopher as Expert”. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 20092 [1979], pp. 131-9.

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caso, há que se admitir que essa tem sido uma utilização comum do vocábulo.21

Ademais, tal divisão mostra um claro viés de abordagem da obra de Henrique de

Gand – entre filosofia e teologia, o interesse do organizador parece pender

claramente para a primeira. Com efeito, enquanto somente dois artigos do

volume são voltados para temas teológicos, o triplo tem por interesse temáticas

filosóficas.

*

No primeiro bloco, encontram-se quatro artigos. Eles se voltam para as

obras de Henrique de Gand, para sua atividade institucional (particularmente, sua

relação com as condenações parisienses de 1277) e seu papel na recepção de

autores árabes no mundo latino.

Sendo assim, o primeiro artigo (pp. 3-23), “Henry of Ghent’s Written

Legacy”, de autoria do próprio Gordon Wilson (que, como mencionado, dirige

atualmente o projeto de estabelecimento crítico dos Opera omnia do Doutor

Solene), faz um apanhado dos principais resultados do esforço de edição crítica

da obra de Henrique de Gand que vem se desenvolvendo nas últimas décadas.

Ele reserva especial atenção às três principais obras atribuídas unanimemente ao

gandavense: os seus quinze conjuntos de Questões quodlibetais (pp. 4-13), a Suma

das questões ordinárias (pp. 13-7) e o Tractatus super facto praelatorum et fratrum

(pp. 17-8). Em seguida, fala-se um pouco sobre as demais obras aceitas como

textos autênticos de Henrique, algumas sobreviventes outras perdidas, e os

textos de atribuição apenas provável, inconclusiva ou já descartada (pp. 18-23).

Em seguida, no capítulo 2, Robert Wielockx discorre sobre “Henry of

Ghent and the Events of 1277” (pp. 25-61). Nessa contribuição, ele argumenta que

Henrique de Gand é uma das testemunhas privilegiadas do conturbado ano de

1277, que viu as famosas condenações de Paris (pp. 25-6) – lembremos que ele é

o único integrante hoje nominalmente conhecido da comissão formada pelo 21 Temos, para citar um único exemplo de enorme importância, o clássico TACHAU, K. H. Vision and Certitude in the Age of Ockham. Optics, Epistemology and the Foundations of Semantics, 1250-1345. Leiden/New York/København/Köln: Brill, 1988.

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bispo Estêvão Tempier para seleção dos artigos condenados.22 Além disso,

Henrique igualmente testemunhou os processos contra Egídio Romano (pp. 26-

30) – tanto em 1277-1279 (quando foi recusada a licentia docendi de Egídio),

como em 1285 (quando ele recebeu permissão para ensinar em Paris). Por fim,

Henrique também fornece informações sobre o lado institucional da disputa,

candente nesse período, sobre a pluralidade das formas no homem (pp. 30-2) e

acerca do processo instaurado contra certas posições de Tomás de Aquino e,

eventualmente, finalizado em 1285 (pp. 32-4). Wielockx destaca, em seguida,

certos temas nos quais a consideração desses evento se mostra particularmente

importante, como a individuação (pp. 35-6) e a localização (pp. 36-8) das

substâncias espirituais, a relação entre intelecto e vontade (pp. 38-41), a

multiplicidade da forma humana (pp. 41-50) e a própria noção de criação (pp. 50-

5). Por fim, Wielokcx nos oferece, como apêndice, um excerto em que

Godofredo de Fontaines responde, no ms. Paris, BnF lat. 15350, a argumentos de

Henrique em defesa da dupla forma no composto humano (pp. 58-61).23

Os dois artigos posteriores (capítulos III e IV), de Jules Janssens – “Henry

of Ghent and Avicenna” (pp. 63-83) e “Henry of Ghent and Averroes” (pp. 85-99) –,

mostram o débito de nosso mestre de teologia para com a filosofia produzida

em língua árabe (decerto, por meio de traduções arabo-latinas). No capítulo 3,

após um histórico dos comentários acerca da relação entre Henrique e Avicena

(pp. 63-5), Janssens propõe uma tipologia das citações de Avicena pelo Doutor

Solene que culmina na observação acerca da necessidade de se identificar a que

tradição manuscrita pertenceria a fonte de Henrique para a obra de Avicena – o

22 Cf. PORRO, P. “Posibilità ed esse essentia in Enrico di Gand”. In: VANHAMEL, W. (ed.). Henry of Ghent, 1996, pp. 211-53 (esp. p. 252).23 Robert Wielockx produziu, junto com Andrea Aiello, o principal estudo sobre os manuscritos de Godofredo de Fontaines legados à Sorbonne: AIELLO, A., WIELOCKX, R. Goffredo di Fontaines aspirante baccelliere sentenziario. Le autografe “Notule de scientia theologiae” e la cronologia del ms. Paris BnF lat. 16297. Turnhout: Brepols, 2008. Mais informações sobre o tema podem ser encontradas no artigo WIELOCKX, R. “Henri de Gand et Gilles de Rome à la lumière de la bibliothèque de Godefroid de Fontaines”. In: CORDONIER, V., SUAREZ-NANI, T. (éds.). L’aristotélisme exposé. Aspects du débat philosophique entre Henri de Gand et Gilles de Rome. Fribourg: Academic Press Fribourg/Editions Saint-Paul, 2014, pp. 181-259. Como já mencionado na nota 7, acima, este último volume é resenhado no presente número de Translatio.

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que ainda não se pôde fazer (pp. 65-7).24 No que tange a questões doutrinais, o

colaborador destaca como influências de Avicena sobre Henrique as discussões

metafísicas acerca [i] da noção de ‘ser’ (being), [ii] da distinção entre esse

essentiae e esse existentiae (pp. 67-73), [iii] da possibilidade de uma prova da

existência de Deus (pp. 73-7), [iv] da noção de relação (relation) no contexto do

debate sobre a potência de Deus (pp. 77-9) e [v] da noção de res (pp. 79-81) no

contexto da elaboração da doutrina dos transcendentais (transcendentals). Como

conclusão, Janssens alerta para o fato de que, embora a recepção de Avicena por

Henrique tenha sido amplamente estudada no que diz respeito à metafísica, o

mesmo não ocorreu no caso das “ideias psicológicas (psychological ideas)”

desenvolvidas pelo gandavense, onde noções como, entre outras, aquela de

‘distinção intencional’ poderiam remeter a Avicena (pp. 81-2); o mesmo, aliás,

ocorre no caso da noção de ‘mal’ (pp. 82-3).

O capítulo 4 começa pela observação de que, muito embora Henrique

tenha sido principalmente relacionado pela historiografia recente a Avicena, ele

igualmente muito se utilizou das obras de Averróis e das traduções arabo-latinas

de Aristóteles acompanhadas pelo comentários do pensador andaluz (pp. 85-6).

No que diz respeito a aspectos doutrinários, Janssens sublinha os temas nos

quais Henrique teria sido influenciado positivamente por Averróis (pp. 87-92) e

aqueles nos quais essa influência teria sido negativa – isto é, os casos em que

Henrique teria sido levado a discutir o pensador andaluz por dele discordar

completa ou parcialmente (pp. 92-8). Ao fim, resta que o “débito de Henrique

para com Averróis (...) não pode ser avaliado de uma maneira simples”25 (p. 98),

mesmo porque, na obra do Doutor Solene, “a enorme maioria das citações

derivadas de trabalhos de Averróis possui somente um significado limitado, isto

24 O comentário acerca de um outro estudo mais aprofundado sobre tipologia de citações escolásticas pode ser encontrado na resenha: PAZOS DE OLIVEIRA, M. B. “Resenha de: CALMA, D. Le poids de la citation: étude sur les sources arabes et grecques dans l'oeuvre de Dietrich de Freiberg, Fribourg CH: Academic Press Fribourg, 2010, 386 p”. Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga 6 (2014), pp. 1-7. 25 “Regarding Henry’s indebtedness to Averroes, it seems that it cannot be evaluated in a simple way”.

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é, elas não possuem – ou possuem muito pouco – impacto nos posicionamentos

(insights) mais profundos de Henrique”26 (p. 87).

*

Como visto, o segundo bloco de contribuições diz respeito às posições

teológicas defendidas por Henrique de Gand em sua obra. Essa etapa se compõe

somente por dois artigos. Um primeiro de caráter geral e um segundo no qual se

estuda a noção de trindade elaborada pelo Doutor Solene.

O primeiro desses artigos (capítulo 5) – “The Theologian Henry of Ghent”

(pp. 103-34) –, elaborado por Ludwig Hödl e traduzido do alemão para o inglês

por W. Duba e O. Ribordy (p. xi), enumera diversos temas teológicos de

maneira a formar um quadro geral das posições adotadas por Henrique de Gand

em sua teologia. Após uma rápida introdução aos aspectos básicos da divisão de

temas da Suma das questões ordinárias (pp. 105-7) e a localização desta última no

contexto das discussões de fins do século XIII acerca dos limites entre filosofia e

teologia que animaram a Universidade de Paris (pp. 107-8), Hödl discute a

caracterização de Deus por Henrique de Gand (pp. 108-16). A isso se segue a

enumeração de alguns temas cristológicos e eclesiológicos que se podem ler nos

Quodlibeta (pp. 116-25) e (no caso dos temas eclesiológicos), também, no

Tractatus super facto praelatorum et fratrum (pp. 125-32). Seu artigo termina com

uma menção aos gandavistae (pp. 132-4), isto é, aqueles autores que, em inícios

do século XIV, ainda se mostravam como seguidores de Henrique de Gand –

esse tema, aliás, já foi explorado por Hödl em outras oportunidades.27

De sua parte, na etapa seguinte – capítulo 6, “Henry of Ghent on the Trinity”

(pp. 135-50) –, Juan Carlos Flores discorre sobre a noção de trindade de

26 “The vast majority of quotations derived from works of Averroes have only a limited significance, i.e., they had no, or very little impact on Henry’s deepest insights”. 27 Cf. HÖDL, L. “Die Unterscheidungslehren des Heinrich von Gent in der Auseinandersetzung des Johannes de Polliaco mit den Gandavistae”. In: GULDENTOPS, G., STEEL, C. (eds.), Henry of Ghent..., 2003, pp. 371-86; e “Die Opposition des Johannes de Polliaco gegen die Schüle der Gandavistae”. Bochumer Philosophisches Jahrbuch für Antike und Mittelalter 9 (2004), pp. 115-77 – este último artigo é citado pelo próprio Hödl, no livro ora resenhado (p. 133, nota 108).

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52WILSON,G.A.(ed.),ACompaniontoHenryofGhent

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Henrique de Gand que, como ele próprio nos lembra, foi por ele estudada

profundamente em uma dissertação dedicada exclusivamente ao tema (cf. p. 135,

nota 2).28 Basicamente, o estudo se divide [i] em uma apresentação do pano de

fundo histórico da discussão sobre teologia trinitária (pp. 136-9), [ii] na

consideração das pessoas divinas e dos recursos filosóficos utilizados por

Henrique para explicitar a distinção e unidade entre elas (pp. 139-47) e [iii] na

análise da influência da teologia trinitária sobre a metafísica de Henrique,

principalmente no que diz respeito à noção de ‘relação’ (pp. 148-9).

Particularmente interessante, é a defesa de Flores do caráter fundamental da

noção de trindade para a concepção de criação desenvolvida pelo Doutor Solene

(cf. pp. 145-7).

*

O bloco seguinte do volume é dedicado ao estudo da filosofia de Henrique

de Gand e, como já notado aqui, ele compõe a maior parte do Companion. Esse

passo é divido em três subitens – metafísica, epistemologia e filosofia moral –,

cada um dos quais composto por dois capítulos. Desses, nos dois primeiros

subitens, o primeiro possui caráter mais geral e o segundo expõe algum(ns)

elemento(s) típico(s) da filosofia do nosso mestre de Gand.

Os dois artigos sobre metafísica são de autoria de Martin Pickavé (autor de

um dos mais importantes trabalhos recentes sobre a metafísica do Doutor

Solene).29 O primeiro (capítulo 7) é algo como uma introdução à metafísica de

Henrique de Gand: “Henry of Ghent on Metaphysics” (pp. 153-79). O tema tratado

de início é a relação entre física e metafísica, profundamente associada à

discussão sobre a superioridade da metafísica como ciência (pp. 154-9). A ele,

segue-se um estudo da temática de Deus como primeiro conhecido (primum

cognitum) – tema recorrente na historiografia sobre o Doutor Solene (pp. 159-

28 FLORES, J. C. Henry of Ghent: Metaphysics and the Trinity. With a critical edition of question six of article fifty-five of the Summa Quaestionum Ordinariarum. Leuven: Leuven University Press, 2006. 29 Cf. nota 10, acima.

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66). São considerados também o ser (being) e os “princípios, partes e

propriedade do ser (Principles, Parts, and Properties of Being)” (pp. 166-71; para a

expressão citada, cf. p. 166), bem como o campo de especulação filosófica sobre

Deus, parte da metafísica e que Pickavé denomina (anacronicamente, a meu ver)

como “Philosophical Theology” (pp. 171-9) – esta última etapa consiste

basicamente em uma consideração das diferentes provas da existência de Deus

propostas por Henrique de Gand.

O segundo artigo voltado para metafísica, o capítulo 8, é intitulado “Henry

of Ghent on Individuation, Essence, and Being” (pp. 181-209). No trecho do artigo

sobre a individuação (pp. 182-9), mostra-se como é complicado conciliar as

diversas referências, que encontramos em Henrique, à individuação como

elemento negativo e como elemento positivo na constituição do indivíduo; isso

leva à consideração tematicamente contígua da distinção entre essência e

existência (pp. 189-96) e da consequente distinção entre ‘ser de essência’ e ‘ser

de existência (pp. 196-201). A isso, se segue um estudo mais aprofundado da

própria noção de ‘ser de essência’ e sua posição basilar para a compreensão de

‘categoria’ (praedicamentum) desenvolvida pelo gandavense (pp. 201-4). Ao fim,

Pickavé extrai, ao modo de conclusão, algumas observações gerais sobre o que

foi visto (pp. 204-7) e esboça uma consideração acerca da influência de Henrique

em outros autores do fim do século XIII (pp. 207-9).

*

O conjunto seguinte de estudos sobre a filosofia de Henrique de Gand é

dedicado àquilo que o Companion denomina como sua ‘epistemologia’. Mais uma

vez, os dois artigos apresentados aqui distinguem-se pelo primeiro possuir uma

maior abrangência e o segundo se dedicar a um tema mais preciso.

No nono capítulo do volume – “Henry of Ghent’s Epistemology” (pp. 213-39)

–, Steven Marrone, já responsável por dois importantes estudos acerca da noção

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de conhecimento do Doutor Solene,30 considera o desenvolvimento da doutrina

da intelecção de Henrique, respeitando a cronologia da produção de suas obras.

Assim, ao estudo das primeiras questões da Suma (pp. 213-28), Marrone pospõe

um estudo de obras mais tardias, como Suma, art. 34 e Quodl. 4 (pp. 229-36). O

artigo encerra-se por um curto estudo de Quodl. 9, q. 15 (pp. 236-9). Para

Marrone, a sequência cronológica dessas obras é suficiente para mostrar que, “à

luz de sua cada vez mais elaborada metafísica da essência, parece que seus (sc. de

Henrique) dois níveis de conhecimento da verdade iniciais (sc. em suas obras

iniciais), um mais aristotelizante e o segundo mais agostiniano, efetivamente

colapsaram em um único” em suas obras mais tardias (p. 239).31 Em outras

palavras, Marrone vê como ponto fulcral do desenvolvimento da doutrina da

intelecção de Henrique a tentativa de solução da tensão entre a noção de

abstração (associada àquela de ciência silogística) e a de iluminação.

Em seguida, na décima contribuição ao volume – “Henry of Ghent on the

verbum mentis” (pp. 241-72) –, Bernd Goehring desenvolve alguns dos temas

que já apresentou mais pausadamente em sua tese de doutorado e em artigos

que, em parte, dela derivaram.32 Após uma introdução à origem filosófica da

noção de verbum (pp. 241-3) que se refletirá em um excurso sobre a noção de

verbum no De trinitate de Agostinho (pp. 252-5), ele mostra como a descrição de

conhecimento como ‘verbo’ coloca em jogo tanto a necessidade de uma

narrativa da formação desse verbo enquanto conhecimento intelectual (pp. 243-

30 MARRONE, S. P. Truth and Scientific Knowledge in the Thought of Henry of Ghent. Cambridge: The Medieval Academy of America Press, 1985; e The Light of Thy Countenance. Science and Knowledge of God in the Thirteenth Century. 2 vols. Leiden/Boston/Köln: Brill, 2001, pp. 259-388. 31 “For in the light of his increasingly elaborate understanding of the metaphysics of essence, it would appear that his two early levels for knowing the truth, one more Aristotelianizing and the second more Augustinian, had effectively collapsed into one. Knowing the truth as adequate to the requirements of Aristotle’s science entailed, on an objective plane, being open to conditions of existence revealed by and at work in Augustine’s paradigm for the shining of God’s intelligible light on the mind. To this way of seeing things, an Aristotelianizing philosophy of knowledge resonated with Augustine’s vision of God’s intimacy to all acts of human understanding”. 32 Cf. GOEHRING, B. Henry of Ghent on cognition and mental representation. A dissertation presented to the Faculty of the Graduate School of Cornell University in partial fulfillment of the requirement for the Degree of Doctor of Philosophy. August, 2006; “[...] intelligit se intelligere rem intellectam. Henry of Ghent on Thought and Reflexivity”. Quaestio 10 (2010), pp. 111-133; e “Henry of Ghent on Human Knowledge and Its Limits”. Quaestio 12 (2012), pp. 589-613. O próprio Goehring remete à sua tese de doutorado (p. 241, nota 2).

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8), como também a necessidade de uma discussão sobre o caráter de objeto

intelectual que algo assume ao ser concebido como verbo intelectual (pp. 249-

52). Entretanto, o termo ‘verbo’ não somente é utilizado por Henrique para

nomear o conceito simples, mas também tem por uso mais especializado a

nomeação do conhecimento proposicional definitório de um conceito (pp. 255-

60), o que pressupõe a possibilidade de uma passagem de um conhecimento

conceitual para aquele discursivo (pp. 261-4) e, destarte, uma noção de discurso

lógico racional – isto é, silogístico (pp. 264-7). Goehring encerra seu estudo [i]

pela leitura do resumo da discussão sobre o verbo apresentado pelo próprio

Henrique em Suma, art. 40, q. 7, onde este enumera as seis característica daquilo

que se nomeia como verbo (pp. 267-9) e [ii] por uma rápida consideração da

relação entre ‘verbo’ e ‘reflexão’ na doutrina da intelecção do gandavense (pp.

269-72). No fim, o autor parece ver como fruto dessa discussão a ênfase

emprestada por Henrique à atividade do intelecto na formação do

conhecimento: “Henrique percebe que são as habilidades ativas e construtivas do

agente que permitem a formação de conceitos que sejam mais distintos e

explanatórios do que os conceitos iniciais abstraídos do conteúdo

representacional nos fantasmas” (p. 272).33

*

Os artigos que se seguem são voltados para a discussão sobre a filosofia

moral de Henrique de Gand. O primeiro é, novamente, um estudo geral acerca

do tema. No entanto, agora, o segundo, mais do que uma análise de um tema

particular da ética do Doutor Solene, talvez seja melhor compreendido como um

estudo dos pressupostos dessa ética (um estudo meta-ético?), pois se volta para

a vontade enquanto potência divina e faculdade da alma humana.

Sendo assim, o capítulo 11 do livro intitula-se “Moral Philosophy in Henry of

Ghent” (pp. 275-314) e é assinado por Marialucrezia Leone, autora mais 33 “But Henry realizes that it is the agent’s active, constructive abilities that allow for the formation of concepts that are more distinct and explanatory than initial concepts abstracted from representational content in phantasms”.

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recentemente de um volume sobre o mesmo tema.34 Em sua contribuição ao

Companion, Leone começa por notar que Henrique não dedicou um trabalho

exclusivamente à ética, de maneira que se mostra necessário buscar na Suma e

nos Quodlibeta fontes textuais para tal estudo. Isso, porém, não significa que ele

não possua uma ética própria; pelo contrário ela considera que sua ética possui

traços característicos e originais. Tal ética possui dois elementos principais: [i] o

confronto entre a ética aristotélica e a fé cristã e [ii] a defesa do teólogo como

principal baluarte da ética, uma vez que toda lei se reduz, de uma maneira ou

outra, à lei divina ou natural (pp. 275-8). Com base nessas primeiras

observações, Leone se volta para a ética do Doutor Solene, estudando: a relação

entre vida ativa e vida contemplativa (pp. 278-81), a noção de ‘virtude’ (pp. 282-

301), alguns exemplos de estudos produzidos pelo gandavense sobre atos morais

precisos (pp. 302-10) e, finalmente, o próprio teólogo como garantia da ética em

Henrique (pp. 310-3). A autora encerra seu estudo enfatizando o caráter

“voluntarístico” (“voluntaristic”, termo que ela própria coloca entre aspas nas pp.

277 e 313) da ética de Henrique de Gand, embora a razão seja fundamental para

a ação virtuosa (pp. 313-4).

O segundo artigo sobre a filosofia moral de Henrique é de autoria de

Roland J. Teske e se intitula “Henry of Ghent on Freedom of the Human Will” (pp.

315-35).35 Nesse texto, o autor busca compreender a noção de vontade

produzida pelo Doutor Solene não a partir da especulação sobre a vontade

enquanto potência da alma humana, mas acompanhando o texto de Suma, art.

45, onde o gandavense especula acerca da vontade de Deus. Decerto, o estudo

da vontade de Deus em Henrique redunda na consideração de diversos

elementos fundamentais para a compressão da vontade humana. Ainda assim,

Teske utiliza sempre como fio condutor de sua exposição a discussão sobre a

34 LEONE, M. Filosofia e teologia della vita activa. La sfera dell’agire pratico in Enrico di Gand. Bari: Edizioni di Pagina, 2014.35 Esse artigo foi reproduzido como o capítulo 9 de TESKE, R. J. Essays on the Philosophy of Henry of Ghent. Milwaukee: Marquette University Press, 2012, pp. 199-220. Cf. nossa resenha deste volume: PAIVA, G. B. V. de. “Resenha de: TESKE, R. J. Essays on the Philosophy of Henry of Ghent. Milwaukee: Marquette University Press, 2012, 275 p. (Marquette Studies in Philosophy 76)”. Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga 6 (2014), pp. 19-30.

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vontade divina, de maneira que o vemos, por grande parte de sua contribuição,

seguir Henrique de perto nas quatro questões que compõem o citado artigo 45

da Suma (pp. 315-29). Com base nessa discussão, Teske se volta para o tema da

superioridade da vontade com respeito ao intelecto na obra de Henrique (pp.

329-34), concluindo ao enfatizar que a vontade (divina ou enquanto potência de

cada ser criado intelectual) é sempre concebida pelo Doutor Solene inserida em

uma hierarquia dos seres apetitivos, que os direciona para Deus, o qual, embora

possua uma vontade, se confunde com o próprio bem (pp. 334-5).

*

A última etapa do livro é voltada para algumas considerações sobre a

influência que Henrique de Gand teria exercido sobre pensadores posteriores.

Num primeiro artigo, continuamos ainda em um período próximo àquele da vida

de Henrique, pois é estudada sua relação com João Duns Escoto. Já em um

segundo momento, considera-se a repercussão da filosofia do Doutor Solene em

um autor bem mais tardio, a saber, Giovanni Pico della Mirandola.

No capítulo 13 do volume – “Henry of Ghent’s Influence on John Duns

Scotus’s Metaphysics” (pp. 339-67) –, Tobias Hoffmann estuda não somente a

influência negativa de Henrique de Gand sobre Duns Escoto (isto é, aqueles

pontos doutrinários nos quais este último se afasta daquele primeiro), mas

igualmente como, por meio dessa própria relação negativa, o Doutor Solene

termina exercendo uma influência positiva sobre as posições elaboradas pelo

Doutor Sutil: “é razoavelmente raro que Escoto siga Henrique sem mais, porém

mesmo quando ele critica a posição de Henrique o mais severamente, as visões

do Doutor Solene geralmente deixam traços significativos nas soluções do

próprio Escoto” (p. 339).36 Sendo centrado em temas metafísicos, o artigo se

volta para o papel de Henrique de Gand nas discussões de Duns Escoto sobre a

relação entre analogia e univocidade do conceito de ente (pp. 341-51) e sobre 36 “It is rather rare for Scotus to follow Henry unqualifiedly, but even where he criticizes Henry’s position most severely, the Solemn Doctor’s views usually leave significant traces in Scotus’s own solutions”.

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temas associados a este, como o subiectum da metafísica enquanto ciência (pp.

351-9), a possibilidade de uma prova metafísica da existência de Deus (pp. 359-

62) e a predicabilidade quiditativa do conceito de ente (pp. 362-6). No fim,

Hoffmann parece considerar que Henrique e Duns Escoto se aproximam por

ambos elaborarem uma filosofia na qual o conhecimento intelectual como um

todo, a metafísica, o discurso sobre Deus e a predicação são centrados no ‘ser’

enquanto conceito intelectual, muito embora cada autor o faça diferentemente

(pp. 366-7).

No décimo quarto e último capítulo, intitulado “Henry of Ghent and Giovanni

Pico della Mirandola: a Chapter on the Reception and Influence of Scholasticism in the

Renaissance”, Amos Edelheit disserta sobre a complexa relação entre o nosso

Doutor Solene e Giovanni Pico. Após notar que a relação entre os escolásticos

e os humanistas é bem pouco estudada – as análises existentes limitando-se, em

geral, aos autores mais centrais como Tomás de Aquino e Duns Escoto (p. 369)

–, Edelheit afirma que, em sua contribuição, busca compreender a influência do

Doutor Solene sobre Pico a partir das 13 teses daquele que este enumera em

suas 900 teses37 (p. 370). Com efeito, após notar a admiração que Pico nutria

pela escolástica (pp. 370-4) e enumerar as ditas 13 teses (pp. 374-5), o autor

busca mapear quais seriam as fontes de Pico no estabelecimento de tal listagem,

o que toma a maior parte do artigo (pp. 375-88). A isso se segue uma leitura dos

momentos em que Henrique de Gand surge citado por Pico na Apologia (pp. 388-

96). Como conclusão, Edelheit sublinha que um estudo mais acurado de outras

obras produzidas no Renascimento pode levar a uma maior aproximação entre

escolástica e humanismo, em particular no que diz respeito à influência que o

Doutor Solene teria exercido sobre este último (p. 397).

37 Cf. IOANNIS PICUS MIRANDULAE. “Conclusiones DCCCC quas olim Romae disputandae exhibuit” In: _________. Opera omnia Ioanni Pici Mirandulae. Basileae, 1557, pp. 63-113 [cf. pp. 66-7 – “[Conclusiones] Secundum Henricum Gandavensem XIII”].

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III.

Como vemos por esse resumo das contribuições que compõem A Companion to

Henry of Ghent, podemos perceber que, de fato, não estamos em presença de

uma síntese, mas antes de uma descrição do estado da arte da pesquisa sobre

Henrique de Gand. Aliás, note-se que, juntos, os volumes Henry of Ghent de

1996, Henry of Ghent and the Transformation of Scholastic Thought de 200338 e o

livro ora resenhado formam um claro panorama dos estudos desenvolvidos

sobre o Doutor Solene nas últimas três décadas. Por outro lado, há que

lamentar o fato de que no Companion não se tenha dado continuidade ao

estabelecimento da bibliografia sobre Henrique de Gand, que havia sido iniciada

na coletânea de 1996 e continuada naquela de 2003.39 No mais, só podemos

esperar que o esforço se repita na próxima década, pois esses volumes, para

além de apresentar o gandavense a novos leitores, também permitem aos que já

leem sua obra manterem-se a par dos últimos avanços na pesquisa acerca dela:

tanto no que diz respeito ao estabelecimento crítico desta obra, como no que

tange ao estudo histórico-filosófico de seu conteúdo filosófico e teológico.

38 Cf. notas 15 e 17. 39 A bibliografia do volume resenhado abrange somente os textos nele citados e não tem por objetivo atualizar os dados bibliográficos sobre Henrique de Gand já reunidos por outros estudiosos recentes. Para bibliografias recentes sobre Henrique, cf. : PORRO, P. “Bibliography” [até 1994]. In: VANHAMEL, W. (ed.). Henry of Ghent, 1996, pp. 405-34; e PORRO, P. “Bibliography on Henry of Ghent (1994-2002)”. In: GULDENTOPS, G., STEEL, C. (eds.), Henry of Ghent..., 2003, pp. 409-26. Além disso, é mantida online uma “Working Bibliography on Henry of Ghent”. Henry of Ghent Series website (endereço online: https://philosophy.unca.edu/sites /default/files/documents/HenryBibliographyWeb2015.pdf) [consultada em 19/12/2015].