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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES - SCHLA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – DECISO
MARIO CESAR DALLA BONA
As mil faces de um vírus: a Representação Social da gripe na revista
Superinteressante (1988-2016)
CURITIBA
2016
MARIO CESAR DALLA BONA
As mil faces de um vírus: a Representação Social da gripe na revista
Superinteressante (1988-2016)
Monografia apresentada ao Curso de Graduação em
Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas,
Universidade Federal do Paraná, como requisito
parcial para a obtenção do título de Bacharel em
Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Alexandro Dantas Trindade
CURITIBA
2016
MARIO CESAR DALLA BONA
As mil faces de um vírus: a Representação Social da gripe na revista
Superinteressante (1988-2016)
Monografia aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em
Sociologia no Curso de Graduação em Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas,
Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, pela seguinte Banca Examinadora:
Orientador: ________________________________
Alexandro Dantas Trindade
________________________________
Jose Miguel Rasia
________________________________
Leide da Conceição Sanchez
Curitiba, 19 de julho de 2016
AGRADECIMENTOS
Gostaria de primeiramente agradecer aos meus pais por terem provido aquilo
que nunca poderei pagar — que foi o carinho e a preocupação com meus caminhos.
Serei eternamente grato por terem endossado as escolhas que fiz.
Ao amigos de ciências sociais, em especial aqueles com os quais partilho o
“GRR2009”, dentre os quais, alguns guardo com especial carinho, em um caloroso
espaço de meu coração: Fernando M., Joelcyo, Lucas G. e Lucas R.
Ao curso de Ciências Sociais como um todo, que efetuou verdadeiras
revoluções em mim, e ao corpo docente que deixou marcas profundas no meu
amadurecimento intelectual, produzindo paixões e um entusiasmo com o conhecimento
que eu nunca sentira antes.
Aos amigos que fiz no tempo em que trabalhei na Biblioteca Pública do
Paraná, em especial ao William H. e à Alana C., que tornaram minha primeira
experiência de trabalho bastante prazerosa e construtiva.
Ao meu amigo Yuri A., com quem pude externar e corresponder grande parte
de minhas angústias existenciais, e com quem pude exercer, no tempo que sobrava,
algumas atividades literárias.
Ao meu orientador, Alexandro Trindade, por ter acreditado nesta minha
proposta e ter-se disposto a me acompanhar nesta jornada.
Ao professor Jose Rasia, pela oportunidade de frequentar, como observador, o
Grupo de Pesquisa em Sociologia da Saúde da UFPR e pelas indicações de leitura.
À Leide Sanchez, por ter confiado em me ceder o seu árduo trabalho de
doutoramento, e por ter me feito indicações bibliográficas valiosas.
Agradeço, por fim, com um sentimento da mais doce ternura, à minha amada
companheira Priscilla Z. Você me fez acreditar no amor e no seu poder de mover as
pessoas.
RESUMO
O presente trabalho tem como objeto a análise das representações sobre o vírus da gripe
na revista brasileira de jornalismo científico Superinteressante, tendo como referencial
teórico a Teoria das Representações Sociais. Busca-se compreender como se inserem
em nosso cotidiano, na forma de instrumentos de interpretação, noções
reconhecidamente científicas, delineando quais são as condições favoráveis e os
processos sociais por meio dos quais este fenômeno se opera. Reconhecendo-se a
necessidade de haver uma mediação entre ciência e senso comum, pretendeu-se
caracterizar o jornalismo científico como um elemento mediador fundamental para a
circulação de saberes científicos no universo cotidiano. Nesse sentido, objetivou-se
identificar as estratégias, empregadas pela revista, de aproximação do discurso
científico ao universo do leitor leigo. Além disso, aceito o pressuposto de que as
Representações Sociais não constituem realidades estáticas, planejou-se fazer um
mapeamento das representações que se formam no interior da revista, dando especial
atenção aos processos de modificação, invenção e, também, permanências de
representações sobre o vírus da gripe no decorrer do tempo.
Palavras chave: Representações Sociais. Representações Sociais da gripe.
Superinteressante. Jornalismo científico. Sociologia
ABSTRACT
This work’s object is the analysis of representations (based on the Theory of Social
Representations) of the flu virus in the Brazilian science journalism magazine
Superinteressante. It is our aim to understand how recognized scientific concepts are
introduced in our daily lives in the form of interpretation instruments, outlining the
conditions that are considered favorable to it and the social processes through which this
phenomenon operates. Recognizing the need for mediation between science and
common sense, it was intended to characterize scientific journalism as a key mediating
element for the penetration of scientific knowledge in our everyday universe. In this
sense, our objective was to identify the strategies employed by the magazine for
bringing scientific discourse closer to the lay reader’s universe. Also, assuming that
social representations are not static realities, it was planned to map the representations
that are formed inside the magazine, paying special attention to the processes of
modification, invention and permanence of influenza virus’s representations over time.
Key Words: Social Representations. Social Representations of the flu.
Superinteressante. Science journalism. Sociology.
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 – O CORPUS DA PESQUISA.................................................................51
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 9
2 O FENÔMENO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM SERGE
MOSCOVICI ........................................................................................................... 20
2.1 Trajetórias do conceito de “Representação Social” ................................................. 22
3 ASPECTOS TEÓRICOS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS. 31
3.1 O objeto por excelência da Psicologia Social: ciência versus censo comum .......... 31
3.1.1 O universo consensual .......................................................................................... 31
3.1.2 O universo reificado ............................................................................................. 32
3.2 Cognição social: por que se formam as Representações Sociais? ........................... 33
3.2.1 A objetivação ........................................................................................................ 35
3.2.2 A ancoragem ......................................................................................................... 36
4 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS ............................................................ 41
5 O JORNALISMO CIENTÍFICO NO BRASIL ..................................................... 44
5.1 Sobre a revista Superinteressante ............................................................................ 46
6 A REVISTA SUPERINTERESSANTE COMO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO
................................................................................................................................... 50
6.1 Representações do vírus da gripe na Superinteressante .......................................... 55
6.1.1 Subjetivação da gripe: o vírus (mal) intencionado ............................................... 57
6.1.2 Socialização negativa do vírus: identidade de grupo e desvio ............................. 61
6.1.3 A mutação como elemento de incerteza: o vírus de “mil faces” .......................... 63
6.1.4 Ancorando a guerra: um conflito surdo ................................................................ 72
6.1.5 Algumas considerações complementares sobre o material observado ................. 73
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 76
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 86
REFERÊNCIAS DE REVISTAS ................................................................................ 89
9
1 INTRODUÇÃO
As representações individuais ou sociais fazem com que o mundo seja o que
pensamos que ele é ou deve ser. (MOSCOVICI, 1978, p. 59).
Existe um tipo de pessoa que se informa sobre ciência de uma maneira peculiar
— e este tipo é bastante comum. É mais seguro estabelecer que é comum na medida em
que o ambiente social onde ela habita enseje tal recorrência típica, não a sua qualidade
ou predisposição subjetiva. Na televisão, nos jornais e na internet se estabeleceu a
produção de uma quantidade imensa de informações que, sem um critério na seleção de
fontes confiáveis, buscam responder possíveis dúvidas das pessoas ou orientar uma
prática cotidiana mais “saudável”, mais “eficiente” ou mesmo mais “feliz”. As respostas
que emergem vêm no encontro de inquietações da seguinte natureza: o que devemos
comer? O que devemos evitar? Quais são os sintomas que indicam que tal pessoa sofre
desta ou daquela doença? É comum a presença, no nosso círculo de relações (de
parentesco, de amizade, de trabalho), daquela pessoa que se preocupa demasiadamente
com a sua saúde ou com a saúde dos outros que deseja o bem. Nestes casos, a linha que
separa a preocupação da neurose é tênue. A informação angariada através destes meios
na maior parte das vezes é descompromissada eticamente e formulada muito
rapidamente, de maneira irrefletida, em omissão perigosa das contradições inerentes à
produção de ciência, preocupada unicamente em expor, de maneira quase messiânica, as
possíveis contribuições salvadoras que a ciência pode dar no entendimento das coisas
com as quais nos relacionamos, em completa omissão em relação aos debates travados
no interior do campo científico. O que vemos é a veiculação de informações rasas, de
caráter normativo, de controle e alarmante, que abrem caminho para um sem número de
exageros e medos infundados. Tendências à patologização de qualquer indício de
desarranjo do corpo geram conjecturas, por exemplo, que associam a mais normal apatia
ou tristeza, comum nos dias em que se acorda “com o pé esquerdo”, a quadros
depressivos, e transformam uma disposição emocional passageira em objeto de grande
preocupação; ou aquelas que, observantes e receosas frente a qualquer tecnologia, veem
no micro-ondas, no simples agitamento das moléculas do alimento efetuado por ele, um
veículo de radiações e danos à saúde, ou no celular que repousa embaixo do travesseiro
uma fonte de tumores e distúrbios neurológicos. É claro que em alguns casos deve haver
algum nível de “verdade” científica, porém a questão não é esta.
10
Preocupamo-nos, inicialmente, com a ausência de critério com que essas
informações são veiculadas pelos meios de comunicação, a partir de uma omissão
completa dos processos dialéticos de construção de uma “verdade” científica. Nestes
contextos, as pesquisas ainda em seus desdobramentos aparecem como “dados” ou
“achados”, incontestáveis e — dada sua origem na socialmente legitimada ciência —
portadoras da verdade. Reflexões ulteriores refinaram melhor esta nossa preocupação
inicial, e converteram, parcialmente, este caráter de denúncia em uma reflexão mais
analítica dos processos por meio dos quais se inserem, no nosso universo cotidiano,
noções científicas.
Assim, a faísca, a inquietação, provinda dos aspectos intuitivos expostos mais
acima, que acendeu a proposta deste trabalho se ilustra na seguinte — e bastante ampla
— questão norteadora: como e em que qualidade se introduzem, nas nossas noções
cotidianas, ideias e conceitos provindos do campo científico? Quais são as mediações
que permitem que conceitos reificados e especializados, científicos, penetrem no rol de
palavras que usamos no dia a dia? Pretendemos, neste trabalho, contribuir para uma
compreensão sociológica destes processos de influência da ciência em nossa vida
corrente.
A todo o momento estamos em contato com fenômenos, objetos ou
acontecimentos que podem divergir em diferentes graus daquilo que temos como
familiar1. Embora a esta altura do desenvolvimento científico o conjunto de fenômenos
e coisas completamente incompreendidos por nós tenha se estreitado, existem
verdadeiras áreas escuras no conhecimento social, seja porque não as tenhamos
compreendido completamente, seja por elas figurarem possibilidades ou eventos novos,
imprevistos. “De hábito, carecemos necessariamente de informações, de palavras, de
noções, para compreender ou descrever os fenômenos que aparecem em certos setores
do nosso meio ambiente.” (MOSCOVICI, 1978, p. 59).
A ciência, nesse sentido, atua um papel importante na vida moderna, ao ser o
principal motor desses “desbravamentos” das áreas obscuras, ao mesmo tempo em que
orienta e baliza grande parte das nossas ações, por influir discursivamente e moldar
tanto a forma como percebemos o mundo como a forma como nos relacionamos com
ele.
1 Berger e Luckman (2010, p. 62) afirmam que “o cabedal social de conhecimento diferencia a realidade
por graus de familiaridade”.
11
O que acabamos de descrever não é característica exclusiva da ciência. Ela é
um dos aspectos em jogo dentro de um fenômeno social mais amplo, que opera na base
da nossa vida cotidiana, nos fornecendo conhecimentos e informando nossas práticas: as
Representações Sociais. Para darmos um primeiro passo no sentido de balizar uma
discussão sobre a relação entre o senso comum e a ciência, escolhemos a abordagem
clássica da psicologia social, conforme consolidada por Serge Moscovici.
Do rol de representações que mais influem na modernidade, a ciência exerce
certo protagonismo. Ela conseguiu penetrar com certa capilaridade a sociedade,
constituindo uma maneira importante, senão a versão predominante, de conceber um
grande número de temas2. Porém, as formulações que explicam o mundo provêm,
evidentemente, de inúmeros segmentos da vida social, não somente da ciência. Por
exemplo, a vida diária e a convivência podem produzir, no entrechoque subjetivo e no
exercício do diálogo, conjecturas, teorias e explicações, coerentes para quem as
produz, que podem ou não fazer menção a algum sistema de pensamento formal.
As religiões constroem narrativas sobre o mundo, as quais, apesar de já
estabelecida, são relativamente abertas à atividade interpretativa, o que dá vasão ao
surgimento e uma profusão de segmentos religiosos novos, de vertentes marginais às
religiões dominantes.
O Estado produz um amplo rol de materiais na forma de políticas públicas que
buscam informar as pessoas, ao mesmo tempo em que afirmam que a contribuição
individual e cidadã de cada um é importante para a superação de problemas. E assim por
diante. Tudo isso informa um amplo conjunto de representações que se conectam, se
repelem, e que — nunca isoladas — estão em constante relação. Tratam-se de processos
complexos de construção de representações, por meio de reinterpretações de elementos
antigos, incorporações criativas de elementos externos ou permanências no tempo.
Nestes processos podem se aglutinar representações diversas, aparentemente
contraditórias ou inconciliáveis — ao primeiro olhar. Isto porque, olhando-se mais
atentamente, no sentido de apreender sua funcionalidade social, o único requisito é que,
para aqueles que a partilham, ela confira coerência àquilo que se esforça em representar.
Em se tratando de Representações Sociais é impossível, nesse sentido, abstrair uma
2 Pode-se fazer uma reflexão importante sobre qual é o imaginário que suporta essa sobrevalorização
social do saber científico, que sobressai-se discursivamente sobre as outras narrativas sobre o mundo: “o
discurso predominante sobre a ciência, suas descobertas e criações, ainda está sustentado na concepção
moderna, que sobrepõe a razão empírica a todas as demais formas de conhecimento, ao mesmo tempo em
que enaltece o seu poder sobre a natureza.” (PECHULA, 2007, p. 220).
12
pureza das representações, avaliando sua validade do ponto de vista de uma lógica
formal ou sua qualidade do ponto de vista do rigor científico, mas única e
exclusivamente segundo sua efetividade na tarefa de conferir cognoscibilidade aos
objetos para os quais se direciona o pensamento que representa.
Conforme aludido, na modernidade a ciência é um elemento integrante da
forma como vemos e representamos o mundo. Inseridos neste contexto dialógico
ciência/senso comum, com frequência podemos tecer comentários, com relativa
precisão científica, sobre os riscos à saúde do colesterol ou sobre os modos de
transmissão de gripe, os males do tabaco ou do sexo desprotegido, dentre muitos outros
temas.
A ciência, portanto, influi de maneira persistente, direta ou indiretamente, na
vida cotidiana, e suas produções são visíveis em muitos aspectos da vida social.
Podemos citar alguns exemplos. No domínio tecnológico, ela produz “novidades” —
estranhas em um primeiro momento — as quais devemos, de uma forma ou de outra,
“lidar”. A ideia do novo, do estranho ou do “não-familiar”, desperta sentimentos fortes,
seja de curiosidade, desejo em experimentar ou conhecer, seja de repulsa ou negação;
no entanto, ela sempre desperta algo. Guardadas as intenções subjacentes a estas
produções (geralmente indissociáveis a uma lógica de mercado), a “novidade” é um
elemento constante no contexto moderno atual, onde a tecnologia e os avanços
científicos superam-se a si mesmos a todo o momento. No campo das ciências humanas,
a ciência produz “estranhamentos”, por meio dos quais se revelam tanto o conteúdo
social da realidade e a sua historicidade, como demonstram que ela, a nossa sociedade,
não é a única forma de realidade social possível, ao localizá-la, contrastivamente, diante
da ampla variedade social e cultural da humanidade. Por fim, no domínio do
conhecimento social ela gera “familiaridades”, ao elucidar obscuridades da realidade
para o pensamento, mediante novas Representações Sociais — aqui inclusas as
representações científicas3.
No entanto, é preciso atentar para um ponto importante, que é, na verdade, um
dos pressupostos da Teoria das Representações Sociais, logo, deste trabalho: este
processo de penetração do discurso científico na sociedade não se dá de maneira direta.
Nossa preocupação se volta, a partir de então, aos processos de mediação que permitem
a comunicação entre ciência e senso comum. Implica fazermos um esforço no sentido
3 Para Moscovici, tanto senso comum como ciência são, em essência, formas de representação social.
13
de identificar os elementos que modificam estes saberes ao ponto deles adentrarem o
cotidiano. Embora não seja do escopo deste trabalho preliminar algo da mesma
envergadura e importância, esta foi uma das principais questões que animaram a
pesquisa de Serge Moscovici sobre as Representações Sociais da psicanálise na França4.
Não se angaria a mesma experiência ao lermos um artigo científico daquela
provinda da leitura de um livro de romance. Guardadas, evidentemente, as exceções,
parece que quanto mais longe uma fonte de entretenimento fica do esforço de raciocínio
mais prazerosa ela é. Absorvidos por um cotidiano que cada vez mais requer uma
participação completa, “de corpo e alma”, nas dinâmicas alucinantes do dia a dia, e
somado a isto uma ciência que cada vez mais engrossa seus conhecimentos e se
especializa, a vida moderna impõe certos limites àqueles que, depois de um dia inteiro
de trabalho, ainda se dediquem a conhecer um pouco mais sobre o mundo.
Uma verdadeira barreira linguística é estabelecida entre a ciência e o público
mais amplo — e esta é uma questão que deverá ser enfrentado pela educação no Brasil5.
Isto porque, do ponto de vista formal, a ciência possui certas características que afastam
o texto da cotidianidade do leitor comum, daquilo que ele vê e ouve nas ruas. Segundo
Nociolli (2012, p. 470-471 apud CIAPUSCIO, 1997), são algumas destas
características: o vocabulário desprovido de ambiguidades e preciso, a tentativa de
expurgar do texto qualquer referência à subjetividade ou emoção do autor, sintaxe
simples. Isso tudo constitui um tipo de discurso especializado, construído a partir de
categorias convencionadas e que requerem conhecimento prévio. Isso só é possível
porque o cientista escreve para um público específico: seus pares, que também são
cientistas. O contexto em este texto é lido possibilita que este estilo, isto é, a relação
entre forma e conteúdo, sugira objetividade, que por sua vez aflui, na linha de produção
e validação da ciência, para a posterior análise e apreciação de outros
cientistas. Guardadas as exceções, estas produções, não obstante serem praticamente
destituídas de elementos que gerem uma experiência literária, afastam o texto e a sua
possibilidade de leitura do cotidiano do leitor comum.
Desta forma, não sendo de penetração imediata no senso comum, como se
encontram nele, então, noções reconhecidamente provindas da ciência? Para além da
4 MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. 5 Para um excelente panorama crítico da educação científica no Brasil e suas dificuldades, e sobre o
problema da pesquisa como instrumento de formação científica — mesmo na educação de base — ver:
DEMO, P. Educação científica. Boletim Técnico do Senac. Rio de Janeiro, v. 36, n.1, p.15-25, jan./abr,
2010. Disponível em: <http://www.senac.br/bts/361/artigo2.pdf>. Acesso em: 17 de junho de 2016.
14
disseminação da educação como elemento importante neste processo, a mídia, o
jornalismo, mais precisamente aquilo que se convencionou chamar de jornalismo
científico, exerce um papel fundamental de mediação destes conhecimentos em relação
à sociedade moderna.
Recentemente, com a eclosão de uma situação pandêmica de gripe A (influenza
H1N1), em 2009, o assunto da gripe ganhou grande projeção nos meios de comunicação
de todo o mundo. Porém, a qualidade em que fora apresentada no Brasil ao grande
público pode ser objeto de inúmeras críticas, dado o grande alarde popular fomentado
por uma recorrência muito grande, nos textos, de ideias muito potentes, tais como a
ideia de morte, letalidade da doença, ou a ideia de uma doença pandêmica que, podendo
ser transmitida a qualquer momento para qualquer um, é um risco tão presente nas
coisas mais singelas da rotina que o pânico emerge, e surge como elemento que traduz
com grande clareza uma situação de vigilância constante, de reinvenção preventiva dos
nossos hábitos cotidianos, a fim de controlar o risco de se contrair a doença.
Identificamos como uma grande oportunidade compreender a circulação do
tema da gripe nos periódicos brasileiros, buscando com isso analisar, de forma
preliminar, a mediação da ciência pelo jornalismo, ao abordar a forma de tratamento
deste tema no meio jornalístico brasileiro.
A pergunta central da pesquisa se expressa, então, da seguinte maneira: como
as revistas de jornalismo científico tratam do vírus da gripe? Quais são as estratégias de
aproximação dos temas em questão, as metáforas e as analogias, ou seja, as
Representações Sociais, utilizadas para traduzir o discurso médico-científico para uma
linguagem mais acessível ao público mais geral, leigo?
Uma vez aceita esta pergunta, escolhemos a revista brasileira de jornalismo
científico Superinteressante6 para uma análise mais localizada desta relação triangular
(ciência-jornalismo-senso comum) no que se refere ao tema do vírus da gripe. A escolha
desta revista se deu por conta de dois importantes motivos: o primeiro deles é a sua
representatividade no cenário editorial brasileiro: ela é a maior revista do gênero
(jornalismo científico) em circulação no Brasil. O segundo é o fato dela ser uma
publicação singular, cujas publicações, apesar de interessarem um público bastante
heterogêneo, são particularmente efetivas em alcançar o interesse de um público mais
jovem, dado que o formato da revista, desde seus temas — geralmente objetos de
6 Vide capítulo 4.1., dentro do qual dedicamos espaço para falar especificamente sobre esta revista.
15
grande interesse e curiosidade dos jovens, como a vida sexual7 ou conspirações, por
exemplo —, até o projeto gráfico, com cores fortes e chamativas, no qual se usa um
grande arsenal de instrumentos imagéticos, tais como infográficos e ilustrações, são
muito atrativas para um público jovem.
Ela é uma revista que, desde seu início, se propõe à tarefa de divulgar ciência e
“curiosidades”. Seu estilo é muito fecundo, quase que uma exacerbação daquela
natureza a que fizemos referência, onde se busca a adequação do discurso científico
para o universo do público leigo8. Exacerbação na proporção em que adota um tom
quase paradoxal, que aglutina duas formas discursivas peculiares e que são,
aparentemente, auto repelentes: uma caracterizada pela frieza impessoal e
criteriosidade, e outra pelo calor da informalidade e o descompromisso: ciência e senso
comum. Podemos ilustrar essa convivência com a seguinte passagem, retirada de um
dos vídeos do canal da Superinteressante no Youtube, intitulado “Manifesto SUPER”:
Pelo fim dos limites. Pelo fim do pensamento binário, tosco, simplista. A
gente acredita que pode ser uma coisa e outra. Em vez de achar que é sempre
preciso escolher um lado só. Queremos buscar o melhor de tudo. Sem limites.
A nova SUPER quer ser séria e divertida. Leve e profunda. Jornalismo e
literatura. Texto e design. Impressa e digital. Organizada e surpreendente.
Tradição e inovação. 9
Este tom descontraído e coloquial, enraizado na realidade cotidiana, se reflete
profundamente na maneira como são construídas suas matérias, de discurso muito
próximo àquilo que ouvimos nas ruas: povoada por muitas metáforas e analogias.
Povoadas, pode-se dizer, por Representações Sociais.
Diante deste produto, isto é, da matéria jornalístico-científica, podemos, neste
primeiro momento, levantar algumas reflexões à luz da Teoria das Representações
Sociais. De um lado, o cientista, no processo de pesquisa, possui na memória uma
cartilha normativa que arregimenta sua atividade, que o faz consciente dos elementos
simbólicos que podem conferir ou não validade aos seus resultados de pesquisa frente
7 Noccioli, ao falar sobre o prestígio que os temas tabu possuem na linha editorial da revista,
especialmente os relativos à sexualidade, diz: “[...] o conjunto de informação científica em relação a esse
tipo de assunto, justamente por seu caráter “interdito”, acaba por provocar ainda mais a curiosidade do
público ao qual se destina: leitores jovens e interessados em informações sobre aspectos da sexualidade
humana.” (NOCCIOLI, 2010, p. 5-6). 8 É temerário fazermos uma simplificação que confira aos leigos uma pretensa falta de conhecimento ou
incapacidade de entender conteúdos científicos. Nesse sentido, entendemos, aqui, como “leigos” não
aqueles que são necessariamente destituídos de tais capacidades, mas como aqueles que não são
especialistas. 9 Manifesto SUPER. SUPERINTERESSANTE. Youtube, 2015. Disponível em
< https://www.youtube.com/watch?v=QwIPxRpQxok>. Acesso em: 07 de junho de 2016.
16
ao colegiado formado por seus pares de profissão; de outro lado, o jornalista possui
tanto uma imagem ou representação do público leigo para o qual escreve10, e,
consequentemente, do que é possível de ser lido por ele — e nesse sentido, relê e
reelabora o que objetiva falar sobre ciência —, como uma imagem ou representação do
que é e do que representa a ciência — tanto o que ela representa para si (a figura do
jornalista) como para o seu leitor. É evidente, também, que em algum grau estão
entranhados os grandes interesses econômicos e políticos no estabelecimento das
pautas11.
Além disso, todos os lados desta relação também constroem representações
sobre a ciência, a atividade científica e o papel da ciência na sociedade; uma pesquisa
mais completa contemplaria todas essas dimensões do problema. Não conviria, neste
trabalho, uma genealogia que localize o cerne original de representações dessa natureza.
Suas pretensões são mais modestas. O que se representa sobre a ciência pode fazer parte
de estruturas sociais muito mais basilares de representações; para os fins deste trabalho,
o que importa é que elas existem e que, certamente, influem naquilo que lemos nos
artigos jornalísticos sobre ciência.
A revista, enquanto empreendimento capitalista, precisa fisgar o interesse de
um leitor em potencial, ou manter o interesse da pessoa que já a folheia, firmando a
cada página o interesse latente em se adquirir a próxima edição. Com a revista
Superinteressante não é diferente, e ela chega a ser emblemática nesse aspecto: suas
publicações são povoadas por imagens, infográficos e ilustrações por vezes caricatas,
jocosas, as quais remetem a uma ideia de leveza, não completamente descompromissada
com a informação, mas que não desconstitui o que o leitor está acostumado a ler e
experimentar no cotidiano — o que contrasta com a ciência, que busca descontruir as
aparências e descobrir o “oculto”12 àquilo que temos por certo ou como natural.
Nesse sentido, da parte do jornalismo, visto como parte de um processo
econômico, há um interesse orgânico em trazer para o campo de interesse do leitor
10 Para Bertolli Filho (2006, p. 17) “Uma discussão sobre o leitor torna-se fundamental, pois é a partir das
concepções nutridas sobre ele (o que implica também no conhecimento de suas necessidades) é que se
articula o texto jornalístico”. 11 Devemos reconhecer que os interesses econômicos, voltados para a produção industrial de notícias, são
um desafio real — sobretudo no contexto brasileiro, onde há baixa qualidade na educação científica —
para o estabelecimento de um jornalismo científico mais comprometido socialmente. 12 A revista Superinteressante, de certa forma, percebe esta característica “desbravadora” da ciência,
trazendo-a como um ponto de vista de fato desmistificador; no entanto, ela costuma traduzir isso
conferindo à atividade científica um caráter místico, esotérico, além de trazê-la de um ponto de vista
fortemente instrumental, como a solução por excelência de todos os nossos problemas.
17
assuntos que, num primeiro momento, podem não serem tão interessantes ou acessíveis
a ele. Isto faz parte de uma necessidade constante de produção industrial de notícias; na
falta de temas que de fato interessam o público geral, fabricam-se interesses a partir de
sinalizações que indiquem que aquilo que é objeto da matéria é, de fato, do interesse do
leitor. A falta de interesse geral, por se tratar de um tema inacessível, possui razões
objetivas: as produções da ciência formam uma verdadeira barreira cultural em relação
ao público mais amplo, dado o grau com que se especializou e o conhecimento prévio
requerido para compreendê-la, devido ao seu caráter cumulativo. Desta forma, as
produções científicas, postas como matérias jornalísticas, devem ser revestidas com
certos elementos representacionais e textuais que aproximem essas produções à
realidade cotidiana mais imediata do leitor.
No cotidiano somos pragmáticos e tendemos a ver as coisas sob um ponto de
vista instrumental: “Depois que a pedra foi transformada em machado e o sílex em fogo,
o homem sempre transformou as coisas e as criaturas em instrumentos úteis”
(MOSCOVICI, 1978, p. 174). É preciso dizer, simbólica ou textualmente, que, de
alguma forma, aquilo que se apresenta na matéria jornalística é, de um lado, verdadeiro
e legítimo, e de outro que aquilo impacta ou impactará o dia a dia do leitor. Articulam-
se aqui uma representação da ciência como portadora da verdade e um ponto de vista
que vê na ciência um instrumento voltado para o aprimoramento da prática cotidiana,
com um caráter normativo, discursivo. E mais: é preciso, nesse movimento de
familiarização, fazer referência ao universo de representações do leitor, para que ele, no
processo de associação de ideias, possa ler e compreender conteúdos potencialmente
estranhos, não-familiares, tendo como guia ou ponto de partida a mediação das
representações que lhe são familiares.
A familiarização é um processo identificado pela Teoria das Representações
Sociais. Para participarmos deste mundo de coisas e fenômenos, ou melhor, de “objetos
sociais” que nos circundam necessitamos de um mínimo de organização na forma de
uma série de conhecimentos os quais efetuem dois movimentos relacionados. O
primeiro deles consiste em constituir esses objetos sociais enquanto tais, dando-lhes um
nome, separando-os em categorias, e fornecendo-lhes, com isso, uma razão de ser, uma
explicação. De outro, conferida uma definição cognitiva e inteligível, forneça uma
presença — por vezes física — no mundo, ao localizá-los em relação a outros objetos
sociais, e os posicione frente ao mundo e em relação a mim.
18
Somos impelidos a pensar rapidamente quando confrontados com o estranho, e
a construir uma imagem mental sobre aquilo que nos causa estranheza. Nesse processo
de representação podem se aglutinar, para a composição de uma imagem coerente,
conforme o nosso cabedal de conhecimento, representações de várias ordens: religiosas,
econômicas, científicas, etc. Esses fragmentos da memória se aglutinam, formando a
partir do que conhecemos uma imagem coerente do desconhecido.
A ausência de familiaridade social com algum tema caracteriza inflexões
sociais importantes. Doenças que “surgem de repente”, especialmente as contagiosas,
sobre as quais possuímos algum ou nenhum conhecimento sobre, desconcertam e, no
limite, geram pânico. Cremos que situações como esta a que nos dispomos investigar
revelam um momento privilegiado onde todas as forças sociais se direcionam à
familiarização e à construção de representações. Eventos e situações de epidemia
passadas são evocados na memória coletiva, onde se recorre a certas estruturas de
representação formadas em tais contextos, de grande carga emocional, sedimentadas
com o tempo. Convém, acreditamos, fazer um mapeamento das representações que se
formam nestes processos, dando especial atenção à abordagem que a mídia escrita faz
em relação à gripe, de modificação, invenção e permanências de representações sobre a
gripe no decorrer do tempo, tendo como base empírica todas as produções da revista
Superinteressante referentes ao tema.
A estrutura deste trabalho foi dividida da seguinte maneira. No primeiro
capítulo, buscaremos trazer as principais contribuições que o estudo das Representações
Sociais trouxe para a sociologia, especificamente para a psicologia social, encabeçada
pela figura de Serge Moscovici. Contrastá-lo-emos à visão clássica durkheimiana acerca
das Representações Coletivas, a fim de ressaltar, na “nova” teoria de Moscovici, aquilo
que permaneceu e aquilo que foi reformulado, segundo o contexto atual moderno.
No segundo capítulo, de caráter teórico, levantaremos os principais conceitos
mobilizados por Moscovici para a investigação das Representações Sociais, guiando a
discussão para os principais processos sociais por meio dos quais se formam as
representações sociais, e os elementos que compõem um ambiente favorável a sua
criação na sociedade.
No terceiro capítulo, de caráter metodológico, traremos alguns apontamentos
acerca de algumas consequências importantes decorrentes de nossa escolha teórica, das
maneiras de nos aproximarmos do nosso objeto até os possíveis resultados a serem
esperados.
19
No quinto capítulo buscaremos fazer, de maneira não muito exaustiva, um
levantamento sobre alguns elementos necessários a uma história recente do jornalismo
científico no Brasil, levantando algumas de suas dificuldades e o contexto editorial do
campo atualmente. Em seguida, abordaremos os aspectos do surgimento da revista
Superinteressante: seus primeiros passos, os elementos para a constituição de sua
identidade e linha editorial, e sua representatividade no contexto editorial brasileiro.
No sexto e último capítulo dedicaremos exclusivamente às análises do material
empírico. Buscaremos, a partir de uma leitura pormenorizada, confeccionar categorias
nativas à revista, relacionadas às representações associadas ao vírus da gripe, na
tentativa de identificar os movimentos de familiarização mais recorrentes do tema na
revista.
20
2 O FENÔMENO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM SERGE
MOSCOVICI
As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam,
cruzam-se e cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um
encontro, em nosso universo cotidiano. A maioria das relações sociais
estabelecidas, os objetos produzidos ou consumidos, as comunicações
trocadas, delas estão impregnados. (MOSCOVICI, 1978, p. 41).
O estudo das Representações Sociais toma uma nova forma com a abordagem
da psicologia social de Moscovici — tema esse que foi posteriormente incorporado no
léxico das Ciências Humanas e da Sociologia em particular. Isto porque, ao expandir o
escopo da noção durkheiminana de Representações Sociais, ele fornece uma ótica muito
fecunda para analisarmos os processos de construção do conhecimento na esfera
pública. Para tanto, Moscovici localiza no relacionamento dialético entre as esferas do
conhecimento científico e do senso comum uma importante chave explicativa dos
processos de transformação e os dinamismos das Representações Sociais na
modernidade. Em se tratando da proposta temática desta pesquisa, esta perspectiva
fornece um rol de conceitos por meio das quais podemos identificar e interpretar o
problema da relação entre o jornalismo científico, de um lado, e as gripes virais, de
outro, a partir de uma ótica que, sobretudo, busca identificar as Representações Sociais
nas produções do jornalismo científico, em como elas se articulam com representações
correntes, do senso comum, visando uma adequação do discurso médico-científico ao
modelo de veiculação da informação para as massas.
Esta perspectiva mostra como o surgimento ou a reformulação de
Representações Sociais não se dá em um vácuo, ou surge de um nada, mas em um
universo representacional já construído — apesar de em constante mudança — e que é,
inevitavelmente, resgatado no momento deste surgimento ou mudança. Isto está
bastante atrelado à importância da memória coletiva nestes processos, e a certa
historicidade das Representações Sociais, as quais devem ser consideradas. A memória
coletiva guarda uma experiência vivida coletivamente, que, por sua vez, é definida pela
sua inserção em um momento histórico particular.
As representações são produto de contextos históricos e sociais específicos.
São, por isso, tanto mutáveis com o passar do tempo, logo, podem ser relidas,
reinterpretadas, modificadas, como podem constituir verdadeiras estruturas de
representação mais persistentes no tempo. Suas raízes na história de uma sociedade não
21
as congelam no tempo, mas convidam, segundo as alternâncias e eventualidades vividas
coletivamente, para que se mudem representações não mais adequadas; ao mesmo
tempo em que, confrontadas com o inaudito e o inesperado, apontam em direção a
certas estruturas de representação mais permanentes, trans-históricas, como fontes de
saber e interpretação do evento extra-ordinário.
O jornalismo que desbrava um conteúdo científico se orienta segundo aquelas
representações mais comuns, não necessariamente estruturais, mas compartilhadas por
um grande número de pessoas e identificáveis por qualquer um que se volte para a
leitura do seu texto. Elas fornecem, no discurso jornalístico-científico, uma
continuidade entre o cotidiano e aquilo que é lido, na medida em que não rompem — e
em grande medida reforçam — com aquilo que vemos e ouvimos no dia a dia. Assim,
por exemplo, podemos ver como um horizonte que, no desempenhar de sua função, o
jornalista tenta traduzir, ou melhor, decodificar uma representação científica formulada
a partir de conhecimentos e categorias que fazem sentido dentro de um universo
científico, mas que pode não fazer o seu sentido pleno para o leitor “leigo”, que não
partilha desse mesmo universo especializado. Neste movimento, onde o jornalista
transita pelas não-familiaridades tentando traduzi-las em termos familiares, supomos
que sua narrativa seja influenciada por representações correntes, de senso comum, por
analogias, metáforas e figuras de linguagem correntes que adequam o discurso sobre
ciência produzido ao contexto cotidiano do leitor. Estes elementos somados resultam
em matérias fáceis de ler, descompromissadas com o rompimento da continuidade entre
o discurso e a realidade vivida, mas que, acima de tudo, geram a sensação de que o
leitor está se informando sobre a ciência. Isso está, é claro, associado ao fato de ele
buscar adequar seu discurso à imagem que tem do seu público, ancorando-se em
representações familiares e, presumidamente, inteligíveis pelo seu público, que o faz
presumir o que faz e o que não faz sentido ao seu público alvo. É possível até mesmo se
inferir que esta relação não é meramente presumida, uma vez que aquilo que o jornalista
credita possuir certa inteligibilidade coincide com aquilo que o leitor considerará
inteligível, na medida em que ambos partilham do mesmo conjunto de Representações
Sociais, isto é, partilham de “um mundo que é comum a muitos homens” (BERGER;
LUCKMAN, 2010, p.40), dada que sua eficácia se assenta em um consenso social.
22
2.1 Trajetórias do conceito de “Representação Social”
Faz-se necessário, neste momento da exposição, para traçarmos um panorama
do contexto em que se pode dizer da “novidade” trazida pela Teoria das Representações
Sociais, uma breve recapitulação da abordagem clássica das Representações Coletivas,
consagrada por Durkheim, contrastando-a com aquela mais moderna, proposta por
Moscovici.
Com a sociologia de Durkheim foi formada a noção de que as Representações
Coletivas são uma categoria analítica, o resultado do pensamento e do método
sociológico que se direciona a uma realidade composta por fatos sociais e que busca
alocá-los nesta ou naquela categoria abstrata, com a finalidade de compreendê-la. Foi
amplamente criticada — por inúmeros autores — a presença, na sociologia de
Durkheim, de certa abordagem que, sob influência das tradições aristotélicas e
kantianas, confere aos fatos sociais um caráter estático. Este viés é, entretanto,
compreensível, dentre outros motivos, porque ele estava preocupado com as
funcionalidades mais imediatas, com os elementos da sociabilidade que, comunicando-
se entre si, produziam o “cimento” que impede que a sociedade se desconstitua e se
fragmente em indivíduos atomizados no decorrer do tempo. Além disso, é relevante
ressaltar que, em contraste com a sociedade moderna, esse tipo de abordagem foi
possível, na medida em que foi inscrita em um contexto histórico onde a tradição,
embora não engessasse a sociedade, impunha certos limites a uma mudança mais
acelerada e onde as sociedades eram menos complexas.
Moscovici nota esta diferença sensível, e propõe, para sinalizar um
rompimento com a visão tradicional de Representações Coletivas de Durkheim, o
conceito moderno e expandido de Representações Sociais. Segundo Guareschi (2000, p.
196)
Moscovici tinha consciência que o modelo de sociedade de Durkheim era
estático e tradicional, pensado para tempos em que a mudança se processava
lentamente. As sociedades modernas, porém, são dinâmicas e fluídas. Por
isso o conceito de “coletivo” apropriava-se melhor àquele tipo de sociedade,
de dimensões mais cristalizadas e estruturadas. Moscovici preferiu preservar
o conceito de representação e substituir o conceito “coletivo”, de conotação
mais cultural, estática e positivista, com o de “social”: daí o conceito de
Representações Sociais.
23
Assim, na concepção clássica, as Representações Sociais eram uma explicação
auxiliar para um conjunto de fenômenos sociais, sobrando espaço reduzido para uma
análise mais detalhada dos mecanismos internos, da estrutura e do funcionamento das
Representações Sociais em si mesmas: em Durkheim, as Representações Coletivas são
como o átomo o é para a física, isto é, irreduzíveis em partes mais elementares. Há um
aspecto convencional das representações que é pouco explorado em Durkheim, dada a
historicidade de suas ideias. Esse aspecto pouco explorado abre espaço para olharmos
não somente para as dinâmicas internas das Representações Sociais, que permitem a
construção e o estabelecimento de certo consenso, como os processos de mudança e
inovação das formas de pensamento e representação que emergem a todo instante na
sociedade moderna, e que impossibilitam que se fale em uma única representação
social, estática e bastante abrangente, mas em várias. E mesmo ao nível individual, a
coexistência de representações díspares não constrange uma à existência da outra:
podemos ter várias representações ao mesmo tempo, relativamente autônomas umas em
relação às outras. Nos dias de hoje, nesse sentido, poucas representações são
verdadeiramente coletivas13.
Esta diferença elementar nos previne de uma visão que privilegie o aspecto
sincrônico da vida social em detrimento do diacrônico, dos processos sociais de
mudança e de formação de novas Representações Sociais ao longo do tempo. Esta
diferença importante reside, em síntese, no tratamento da questão: Moscovici propõe
abordar como fenômeno o que era visto como conceito. (MOSCOVICI, 2007, p. 45).
Vistas como fenômenos, as Representações Sociais deixam de ser um instrumento de
explicação abstrata, e passam a ser algo que deve ser localizado como componente da
realidade, e, portanto, descrito e explicado.
Desta feita, as representações são um elemento necessário das relações sociais,
a verdadeira linguagem por meio da qual se dá a comunicação na vida cotidiana. Por
isso, em uma interação aparentemente dialógica, quando falamos sobre algo — isto é,
sobre um objeto — com alguém, há um terceiro elemento que serve de mediação, nesta
relação, na verdade, triangular: as Representações Sociais. Não há um acesso direto do
sujeito ao objeto, mas uma relação mediada: só vemos, em certa medida, o que as
Representações Sociais nos permitem ver. Isto porque ao pensarmos um objeto, não
13 Moscovici, no entanto, ao conceber uma tipologia das Representações Sociais, circunscreve a ideia de
representações hegemônicas, que nada mais são do que as Representações Coletivas, presentes em
Durkheim (SÁ, 1998) — embora haja uma diferença em relação a Durkheim: elas não são estáticas, mas
passíveis de mudança.
24
pensamos um objeto “puro”, mas um símbolo do objeto, sua representação; na ausência
de uma representação que o constitua enquanto objeto, torna-se ausente o objeto
mesmo.
As Representações Sociais exercem uma influência imponente no plano da
vida individual, prescrevendo e direcionando nossas ações. Elas fundam narrativas e
crenças, conhecimentos — científicos ou não — e formas de explicação do mundo e da
vida em sociedade as quais, de um lado, fornecem ao indivíduo a visão de um mundo
organizado, classificado/nomeado, logo, cognoscível, sem as quais ele ver-se-ia
desorientado e incapaz de posicionar-se socialmente nele; de outro, engendram entre os
indivíduos que comungam das mesmas Representações Sociais laços de solidariedade e
um sentimento de pertencimento, que sinalizam, no plano subjetivo, que eles “vivem no
mesmo mundo”. Por servirem como um norte, por meio do qual as pessoas orientam
suas ações, as Representações Sociais são, também, direcionadas para a prática, para o
estabelecimento de identidades sociais e o reforço de identidades dos grupos. Estes
aspectos fundamentais das Representações Sociais devem ser mais detidamente
explicados.
Para Moscovici as Representações Sociais exercem duas funções
fundamentais: convencionalizar as coisas com as quais nos relacionamos e prescrever
nossas ações, normatizando-as.
A primeira delas é fornecer aos objetos, pessoas ou acontecimentos, uma
linguagem comum, logo acessível e reconhecível pelas pessoas ou grupos em
comunicação, convencionalizando-as. Nesse sentido, as representações servem à
categorização do mundo de maneira a torná-lo cognitivamente inteligível e
comunicável. Elas fornecem uma espécie de “atlas” simbólico, por meio do qual as
pessoas se orientam e podem ver, para além da banalidade de uma luz vermelha, por
exemplo, um sinal que exige que ela pare o seu veículo. A antropologia fornece muitos
exemplos etnográficos de comportamentos humanos cujas convenções sociais variam
drasticamente de cultura a cultura — e até mesmo dentro de uma mesma cultura,
variando de grupo para grupo. Moscovici esforça-se em mostrar como o mundo de
elementos que experimentamos não é expressivo por si mesmo: ele se expressa somente
quando somado àquele terceiro elemento a que fizemos referência: às Representações
Sociais, que o controla, o separa em categorias e o envolve em significação. Sem a
mediação das Representações Sociais, este mundo fragmentar-se-ia em elementos
estranhos, ininteligíveis e, sobretudo, incomunicáveis: “Tudo o que permanece
25
inclassificável e não rotulável parece não existente, estranho e, assim, ameaçador...”
(FARR, 1984, p. 30 apud GUARESCHI, 2000, p. 201). A inexistência de
Representações Sociais poria termo à própria possibilidade de socialização, na medida
em que inexistiria uma linguagem comum.
Nesse sentido, dada nossa demanda por um mundo coerente, podemos pensar
que as Representações Sociais fornecem certa segurança ontológica, na medida em que
geram um mundo significativo, aparentemente definitivo e sem uma perspectiva de fim
iminente, a partir da relação simbólica entre a experiência vivida e as Representações
Sociais preexistentes. A esfera da prática cotidiana, nesse sentido, possui uma
participação importante no sentimento de que “a vida continua”. Estendendo ainda mais
essa visão, as Representações Sociais criam uma segunda natureza: elas reforçam e dão
embasamento a uma realidade social, lhes conferindo uma “aura” — confirmada pela
prática cotidiana — que assevera para a consciência que ela é assim porque
necessariamente é assim, ou seja, naturalizando-a.
Isto não significa dizer que o indivíduo assimila passivamente as imposições
externas. Em Durkheim, porém, inserido naquele contexto onde se buscava traçar um
campo sociológico, firmar a legitimidade da sociologia frente às ciências já constituídas,
a sociedade é de uma natureza diferente da realidade individual. Isto confere à
sociologia um objeto diferente das ciências naturais e psicológicas, pois afirma que,
mesmo a sociedade sendo constituída por indivíduos, os fatos sociais possuem uma
natureza sui generis, que é diferente da mera soma de indivíduos isolados. Isto, também,
afirma que os fatos sociais possuem uma externalidade que independe das consciências
individuais. Por outro lado, Moscovici, flexibilizando esta noção de Durkheim, acredita
que as Representações Sociais, antes de figurarem uma narrativa pronta, irretocável e
inalcançável, que exige que o indivíduo adeque suas ações a elas, as Representações
Sociais fornecem o “alimento para o pensamento” (MOSCOVICI, 2007, p. 45), de
modo que a mudança e a adaptação, principalmente na modernidade, são características
importantes do decurso temporal das representações dentro dos processos sociais. Elas,
ao contrário de enraizar, mobilizam, “chamam” para o debate, transformando os
membros passivos em ativos, em direção às ações coletivas e respostas em forma de
Representações Sociais. Mesmo no ato de comunicar uma representação, uma pessoa
pode reavaliar o que anteriormente pensara e dissera, adaptando suas ideias a um
contexto adverso ou à ocasião oportuna. Há uma concomitância, por assim dizer, que
permite a mudança na representação no decurso do próprio ato de representar.
26
A teoria de Moscovici abre uma brecha importante para a força criativa e
contestatória individual e do grupo, que pensa sobre si mesmo e sobre os outros, e que
podem produzir e comunicar suas próprias representações particulares segundo os
impasses e questões que eles mesmos colocam. Para Moscovici, aliás, a noção de
conflito assume uma importância fundamental na Teoria das Representações Sociais,
pois ela explica, em grande medida, os dinamismos e os processos de mudança nas
ideias e do pensamento de uma época, ao passo que também imuniza a análise de
qualquer interpretação que torne estática a atividade social e individual, que conceba,
tanto indivíduo como sociedade, como entidades que somente se reproduzem e
perduram no tempo, mas que não se reinventam ou se transformam. Há, segundo ele,
uma tensão, ao nível cultural e institucional, entre forças que conduzem à
individualização e outras que conduzem à socialização. Dado o substrato social das
Representações Sociais, elas trazem consigo as marcas desta tensão e, com efeito, sua
funcionalidade reside no fato delas conformarem e manterem esta relação nos limites do
suportável. O papel das representações partilhadas reside, em suma, em assegurar que a
coexistência indivíduo-sociedade seja possível. (MOSCOVICI, 2000).
As Representações Sociais são, também, a ponte que liga o indivíduo ao
ambiente social em que vive, e em grande parte é capaz de explicar o momento
contemporâneo de emergência de um pluralismo de representações, ao localizar tanto
indivíduo como sociedade em um vir a ser marcado pelas mudanças. Uma consequência
importante de estabelecer tal ligação é clarear o acesso dos indivíduos ao universo
social, fomentando essas próprias mudanças:
A necessidade de fazer da representação uma passarela entre os mundos
individual e social, de associá-la, em seguida, à perspectiva de uma sociedade
em transformação, estimula a modificação em questão. Trata-se de
compreender não mais a tradição, mas a inovação; não mais uma vida social
já feita, mas uma vida social em vias de se fazer. (MOSCOVICI, 2001, p.62)
Vistas como processos sociais, ao invés de produtos finais ou categorias
abstratas do pensamento, as Representações Sociais assumem um caráter cambiante,
modificando-se e reformulando-se com o passar do tempo, tendo a atividade social
cotidiana, isto é, a prática comunicativa, tanto dos grupos como dos indivíduos, como a
força motriz do surgimento e da profusão de representações de toda a sorte. Elas são, a
um só tempo, momentos de uma construção, que constantemente se reinventa, e formas
adquiridas, advindas de presenças mais estruturais da sociedade:
27
Reconhecendo-se que as representações são, ao mesmo tempo, construídas e
adquiridas, tira-se-lhes esse lado preestabelecido, estático, que as
caracterizava na visão clássica. Não são os substratos, mas as interações que
contam. (MOSCOVICI, 2001, p.62).
Assim, se por um lado os sujeitos são inscritos em realidades sociais e
históricas, de outro sua atividade prática renova a representação através da experiência:
“O sujeito psíquico, portanto, não está nem abstraído da realidade social, nem
meramente condenado a reproduzi-la”. (JOVCHELOVITCH, 2000, p. 78).
Com efeito, também estão imbricadas nos processos de relacionamento entre
representações relações de poder. Mesmo a mídia é um exemplo concreto de como as
representações de grupos relativamente pequenos têm o poder de se disseminar pela
sociedade, se misturar criativamente com ideias populares, com outras ideias vindas da
filosofia ou ciência, por exemplo, e virar algo componente do senso comum ou até
mesmo a visão hegemônica acerca de algum assunto. Vale dizer que o aspecto moderno
de multiplicação das representações é uma tendência consolidada, que vem na esteira de
um processo histórico e filosófico muito mais amplo — abordado, com grande
relevância, por Max Weber — de fragmentação da razão, das esferas de valor, onde as
instituições que centralizavam as questões acerca da legitimação e justificação do
conhecimento, tais como a Igreja e o Estado, foram diminuídas dramaticamente em sua
influência, de modo que uma miríade de novas representações (capitaneadas pela
disseminação da alfabetização e o surgimento da mídia de massa) e visões de mundo
viram solo fértil num ambiente de ampla descentralização e multiplicação dos centros
de poder que exercem estes instrumentos de legitimação (DUVEEN, 2007). O papel do
indivíduo neste contexto de descentralização é um aspecto importante desta
problemática. Grande parte da crítica contundente de Moscovici à abordagem clássica
durkheimiana reside na passividade que este último conferiu ao indivíduo, ao ver nele
um depositário das ideias e imposições de instituições sociais dominantes (Estado,
Igreja, até mesmo classe social). Além disso, a perspectiva moscoviciana dá espaço para
olharmos para o conflito entre grupos, visto que o consenso absoluto, modernamente
não sendo mais possível, incendeia um ambiente de alta combatividade entre
Representações Sociais: “[...] essa era se tornará conhecida como a era da representação,
em cada sentido desse termo.” (MOSCOVICI, 2007, p. 41).
28
Para Moscovici as ideias constituem verdadeiras materialidades na vida
comum, isto é, efetuam mudanças visíveis na realidade. Elas são um norte ou ponto de
referência, que por meio de processos de comunicação e emergência ou reintepretação
de representações pré-existentes, deixam de ser elementos do pensamento, e passam a
ser elementos da realidade, “objetos sociais”, que podem substituir, com grande
vivacidade e simbolismo, a própria realidade. Vale ressaltar que, para Moscovici, as
Representações Sociais não são um retrato fiel e preciso da realidade, e é precisamente
este aspecto que constitui a sua riqueza e alteridade. Elas são construções coletivas que
podem se referir a outros universos simbólicos ou realidades que não são,
necessariamente, a realidade concreta, a mais imediata.
A segunda funcionalidade das Representações Sociais é que elas têm um
caráter prescritivo bastante forte. Esta ideia deve bastante àquilo que Durkheim
inaugurou sob o conceito de fatos sociais. Para este, os fatos sociais são formas de
pensar e agir que se impõe com autoridade moral ao indivíduo, normatizando sua
prática. Eles emergem da sociedade como um verdadeiro construto a “pairar sobre
nossas cabeças”, e se firmam, por isso, como externalidades independentes da vontade
individual e dos grupos que lhe deram origem. Diferentemente de Durkheim, para
Moscovici este construto não se constitui, como em Durkheim, numa natureza diferente
do grupo que a originara, localizando-se para fora dele na realidade sui generis da
sociedade. Segundo a interpretação de Márcio de Oliveira
[...] para Moscovici, as representações nunca seriam de “outra natureza”: elas
seriam da natureza mesma dos grupos sociais que as criam, e sua eficácia –
tanto prática como simbólica – dependeria dessa inserção, e não poderia
jamais ter um sentido universal. (OLIVEIRA, 2004, p. 183).
Moscovici, além de quebrar com a ideia de uma sociedade que se projeta para
fora das existências individuais e grupais, em uma entidade inacessível, alude para a
necessidade de se pensar que as representações são fruto de múltiplos grupos —
sociedades menores — dentro de uma sociedade maior (OLIVEIRA, 2004), ao invés
uma sociedade unívoca a produzir Representações Coletivas.
Por isso, é bastante pequena, em Durkheim, a força que a atividade prática da
sociedade possui em acessar e, principalmente, modificar esta “externalidade” com o
passar do tempo, dado que, na sua teoria, prestigia-se a sincronia, isto é, as razões de
sua efetividade em um dado momento histórico, em detrimento da diacronia dos fatos
29
sociais — suas metamorfoses com o passar do tempo. Para Moscovici, ainda sob esta
influência, as Representações Sociais oferecem uma espécie de “cartilha” prescritiva
pronta, um “guia de primeira viagem”, que já encontramos feita quando nascemos, e
que exerce uma grande força sobre nós em toda a nossa vida, e que, não obstante,
permanecerá mesmo quando deixarmos de existir.
O importante é que elas sinalizam não somente o como devemos pensar, mas o
quê devemos pensar. Segundo ele, não podemos pensar sobre aquilo sobre o que não há
uma representação, visto que sem uma palavra referente ao objeto, um nome, não
podemos falar sobre ele. E também, na medida em que classificam a realidade, elas tem
uma função cognitiva importante — até mesmo no sentido fisiológico —, visto que são
capazes de
[...] cortar o fluxo incessante de estimulações para se conseguir chegar a uma
orientação e uma decisão sobre quais os elementos que nos são sensorial e
intelectualmente acessíveis. (MOSCOVICI, 1978, p. 113).
Berger e Luckman (2010) estudaram o fenômeno da cotidianidade sob a ótica
de uma fenomenologia do dia a dia. Na vida rotineira somos capazes de perceber e
pensar sobre um grande conglomerado de objetos, pessoas e acontecimento sem, no
entanto, um esforço penoso do pensamento, visto que partimos de um ponto: os
conhecimentos de senso comum, que dão forma e constroem esta realidade social:
A realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por
uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes da minha
entrada na cena. (BERGER; LUCKMAN, 2010, p.38. Grifos nossos).
Demonstraremos melhor o processo da construção de uma familiaridade com o
nosso meio social ao abordarmos os conceitos moscovicianos de ancoragem e
objetivação, e o papel que eles têm no processo de familiarização.
No contexto moderno, principalmente, apesar de surtirem uma influência
duradoura, as Representações Sociais estão em constante mudança, pois a todo o
momento elas são “re-pensadas, re-citadas e re-apresentadas” (MOSCOVICI, 2007, p.
37) por pessoas e grupos. Embora essas representações possam adquirir certa
externalidade estrutural, sedimentando-se em estratos mais profundos da memória
coletiva, o indivíduo e os grupos podem acessá-las criativamente, ou exercer influência
significativa no sentido de muda-las. Neste movimento Moscovici mostra um universo
30
da prática pouco explorado por Durkheim. É através da atividade prática e em meio às
alternâncias e desafios impostos pela vida do dia a dia que as coletividades modificam
suas representações, visando a adequação ao contexto adverso ou à necessidade.
Além disso, é nas relações que está a chave para a mudança nas
Representações Sociais, que se dá tanto com os indivíduos entre si, dos grupos entre si,
quanto com todos em relação à realidade social mais ampla, suas contradições inerentes
e suas contínua mudança14. Há, neste cenário, uma interação entre o individual e o
social que confere ao fenômeno das Representações Sociais o objeto por excelência da
psicologia social:
Elas [as representações] possuem um aspecto impessoal, no sentido de
pertencer a todos; elas são a representação de outros, pertencentes a outras
pessoas ou a outro grupo; e elas são uma representação pessoal, percebida
afetivamente como pertencente ao ego.” (MOSCOVICI, 2007, p.211)
Ao prestigiar esse aspecto dialógico das representações, a comunicação assume
uma importância central na teoria de Moscovici: é através dela, do exercício da
linguagem, que se veiculam esses saberes e se formam novos. Nesse sentido, as
representações são capazes de “corporificar ideias” (MOSCOVICI, 2007, p. 48), na
medida em que criam realidades compartilhadas.
14 Há, entretanto, um aspecto ideológico das Representações Sociais, que é apreendido por Moscovici, no
qual essas mesmas contradições da sociedade podem ser apaziguadas por Representações Sociais
contemporizadoras. A explicação é simples: a natureza das representações é social. Seu intuito é
conservar a realidade no sentido da manutenção de uma lógica cotidiana, firme, sem aludir a um fim ou
desestabilização daquilo que temos como familiar: “O caráter conservador da ancoragem que visa a
familiarização se deve, justamente, ao caráter sociocêntrico , sociomórfico delas.” (MOSCOVICI, 2007,
p. 207). Caberia aos críticos de Moscovici decidir se é este um problema da teoria ou da própria realidade
social. Mesmo se o problema refere-se a segunda alternativa, a própria teoria de Moscovici afirma —
mesmo que indiretamente — que a solução das mazelas e problemas sociais passa, inevitavelmente, por
uma mudança nas Representações Sociais que embasam a invisibilização destes conflitos.
31
3 ASPECTOS TEÓRICOS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
3.1 O objeto por excelência da Psicologia Social: ciência versus censo comum
As Representações Sociais fornecem uma linguagem comum, por meio da qual
podemos nos comunicar com os outros. Servem a propósitos cognitivos, na medida em
que ordenam o mundo, separando o imenso fluxo de objetos com os quais lidamos
cognitivamente em categorias distintas. Servem, também, como elementos para a
construção e manutenção das identidades dos grupos, dado que “criam tanto seus laços
de solidariedade, como suas diferenças.” (MOSCOVICI, 2007, p. 160).
Dentro desta realidade comum, ramificam-se, na teoria de Moscovici, duas
realidades distintas, mas que dialogam constantemente: o universo consensual e o
universo reificado. Elas representam a dialética dos dois lados a que nos propusemos
investigar: senso comum e ciência, respectivamente.
3.1.1 O universo consensual
O universo consensual é basicamente o da nossa vida cotidiana. Em nossa
sociedade (democrática), podemos: tecer comentários, exercer a faculdade de opinar,
discordar, teorizar sobre a vida e a sociedade, tudo isso livremente. Em instituições
como bares, clubes e associações, pessoas e grupos conversam. A atividade recorrente
de comunicação gera, com o tempo, “nós”, laços, uma base comum de significação
entre seus praticantes, de modo que símbolos, representações, ideias, etc., na medida em
que são mutuamente reconhecidas, podem ser partilhadas, comunicadas. O importante,
aqui, é que o caráter partilhado das representações não se dá por conta de sua autonomia
ou externalidade, ou porque sejam abrangentes, mas porque “são construídas e
relacionadas através da comunicação”. (MOSCOVICI, 2007, p. 209) É principalmente
no universo consensual que as vinculações se fortalecem e se produz aquele “cimento”
que era a principal preocupação de Durkheim; as práticas de comunicação oxigenam
relações que, deixadas ao relento, “morreriam”. Nesse universo, explicações plausíveis
e ideias partilhadas dão forma e significado à vida comum, e por não requererem uma
reflexão rigorosa quanto a sua natureza, respondem a interesses mais imediatos, que
requerem representações acessíveis a qualquer um que as procure. Podemos
exemplificar isso com um acontecimento banal tipo um acidente de trânsito. Ele, como
32
qualquer acontecimento, é fruto de relações causais altamente complexas. Assim, neste
acidente hipotético, a imprudência ou a negligência, ou melhor, a condição subjetiva
mesma do causador do acidente está atrelada a uma briga entre cônjuges, que produziu,
por sua vez, uma postura errática do motorista, que se viu imerso no mundo dos
pensamentos e se esqueceu da intensa demanda por atenção que o trânsito requer; a
briga do casal, o tema que a insuflou, está ligado a dificuldades financeiras, ligadas à
recém perda de emprego do marido, e assim por diante (e isso sem levar em conta as
condições de sinalização da via, o estado subjetivo do outro acidentado, etc.). No
entanto, andando na rua e subitamente confrontados com a situação adversa em questão,
somos impelidos a dar uma resposta contundente, que confira, de um lado, um sentido
ao acontecimento, e, logo, nos exige uma posição de valor em relação a ele, e de outro
uma explicação. Mesmo se optarmos em não opinar sobre o ocorrido e seguirmos
andando, esta seria uma forma de posicionamento social diante do fato. Não seria
exagero dizer que uma resposta ao acidente é quase automática, visto ela não ser
necessariamente consciente. Ela é, também, individual; porém, não se trata de um
indivíduo isolado: suas respostas são expressas por alguém inscrito em uma situação
social definida historicamente, e manifesta certas tendências e saberes presentes nos
grupos dos quais participa. Dessa forma, o que se ouve de “curiosos” nas redondezas de
um acidente nunca é um exaustivo relato daquela complexa e — convenhamos —
“chata” e sem graça teia causal, mas algo forte, significativo e categórico, às vezes
inflamado: “ele veio como um louco, e nessa velocidade poderia ter matado muita
gente!”. Em suma, as Representações Sociais são uma forma de conhecimento prático,
que também envolve o domínio emocional das pessoas: elas são “estruturas cognitivo-
afetivas” (SPINK, 1994), onde uma realidade não é analiticamente reduzível à outra,
mas complementares: razão e emoção andam juntas. É aqui, precisamente, no universo
consensual que residem, exclusivamente, as Representações Sociais.
3.1.2 O universo reificado
No lado oposto ao universo consensual, o universo reificado está ligado às
especializações, ao mérito e a autoridade que cada um tem de falar sobre x ou y tema. É
nele, amiúde, que a ciência se inscreve. Neste universo, o evento descrito mais acima,
do acidente de trânsito, almejar-se-ia destrinchar o fato em seus mais singelos
pormenores, em uma linguagem precisa, técnica e “descolorida”. Aqui a sociedade é
33
vista como composta de indivíduos desiguais, cuja desigualdade se refere a diferenças
de papéis e classes, ou, em outros termos, “quem pode falar do quê”. Há uma menor
fluidez, se compararmos ao universo consensual, e há, por conseguinte, uma maior
rigidez quanto a adequação de comportamentos, fórmulas linguísticas e informação
apropriadas para cada circunstância. Essa menor fluidez em relação ao universo
consensual se dá porque, no último, as representações formam verdadeiras “redes” de
ideias, metáforas e imagens que são associadas livremente e sem uma regra formal, isto
é, alheias ao domínio do método e da teoria. Por conseguinte, se por um lado acessamos
o universo consensual através das Representações Sociais, de outro é através das
ciências que compreendemos o universo reificado.
Por fim, o universo consensual e o reificado se influenciam mutuamente. O
conceito de Themata de Moscovici busca problematizar justamente o como o senso
comum — o universo consensual — interfere decisivamente no campo científico — o
universo reificado. Para ele, há uma primazia das Representações Sociais sobre o
universo reificado. Os Themata, ou processos de tematização, são ideias profundamente
ancoradas no imaginário de certos grupos: “ideias ambiente”, de modo que, na ciência,
eles constituem um Themata científico, na medida em que os temas e os resultados da
reflexão da ciência são moldados pelas Representações Sociais pré-existentes.
O universo reificado, por sua vez, penetra em vários interstícios do universo
consensual. Principalmente a ciência, no contexto moderno, fornece um amplo leque de
saberes e conhecimentos os quais, embora possam perder, neste deslocamento, aquela
rigidez conceitual própria do universo reificado, incorporam-se criativamente às
Representações Sociais existentes, constituindo maneiras enriquecidas, socialmente
efetivas de se pensar e categorizar o mundo e os seus fenômenos.
3.2 Cognição social: por que se formam as Representações Sociais?
Já aludimos a uma das propriedades cognitivas das representações, que é gerar
um mundo coerente no qual podemos viver em meio a outros com o sentimento de
segurança, pertencimento e sentido. Não obstante, existe um ambiente favorável para o
desenvolvimento de Representações Sociais, dentro do qual certas condições ensejam a
sua elaboração ou retrabalho, e que deve por nós ser levantado.
34
Em seu estudo sobre as representações da psicanálise na sociedade francesa da
década de 1950-60, Moscovici diz o seguinte sobre o processo de transformação de
conteúdos fornecidos pela ciência:
Esse investimento15 deve ser entendido, em primeiro lugar, no sentido de uma
busca incerta, contornando e tateando o objeto para ver o que ele tem de
insólito, de estranho. [...] No decurso desta domesticação, o objeto é
associado a formas conhecidas e reconsiderado através delas. (MOSCOVICI,
1978, p. 174).
A seguir, para explicar as importantes consequências deste processo, ele alude
para dois aspectos centrais, capazes de explicar com grande clareza o movimento de
familiarização e a incorporação e criação de novas Representações Sociais:
O dispêndio de energia que o mecanismo de investimento de um objeto social
acarreta integra-o no campo das produções do grupo ou do indivíduo.
Durante esse trabalho, ele constitui-se em fórmula capaz de resolver os
problemas ou de exprimi-los. A psicanálise torna-se um sistema de
interpretação e transforma-se numa linguagem que permite comunica-los.
Nesse estágio, ela deixa de ser aquilo “de que se fala” para se converter
naquilo “através de que” se fala”. (MOSCOVICI, 1978, p. 175. Grifos
nossos).
Assim, quando entramos em contato com uma nova forma de conhecimento, o
esforço em “tateá-la”, tentando reconhecer-lhe aquilo que tem de estranho, implica em
um “pensar sobre”, onde nossa consciência a “coisifica”, incorporando-a frente aos
outros objetos que conhecemos, e a traduz, na forma de imagens concretas, aquilo que é
conceito. A partir de um movimento associado, traçamos uma ligação entre este
elemento estranho e aquilo que conhecemos, e estas imagens concretas se traduzem,
novamente, em formas de pensar, categorizar e, até mesmo, “ver” o mundo: se
incorporam aos instrumentos que dispomos para interpretar a realidade e seus
problemas. Por isso, com a prática, elas passam de objetos sobre os quais se pensa, para
um componente, algo que faz parte do nosso conjunto de conhecimentos, isto é, uma
linguagem, ou “meio” através do qual se fala sobre algo.
Assim, para clarear a função das Representações Sociais na vida social,
Moscovici nos fornece a seguinte premissa: “[...] a finalidade de todas as representações
é tornar familiar algo não-familiar, ou a própria não-familiaridade”. (MOSCOVICI,
15 O investimento do qual ele fala é uma “aposta” que a sociedade faz em relação a certo conteúdo
científico; aposta porque eles podem tanto ser adotados e incorporados às formas conhecidas, ou
rejeitados.
35
2007, p. 54). Assim, é neste estado de inflexão, onde se efetua a passagem do não-
familiar para o familiar, que se revelariam, segundo a teoria de Moscovici, dois
momentos de um mesmo processo de produção de Representações Sociais: a
objetivação e a ancoragem.
3.2.1 A objetivação
Quando pensamos em algo criamos uma imagem deste algo, tornando-o um
objeto. Em última instância, o pensamento, por si só, não existe se não em referência a
alguma coisa:
A consciência é sempre intencional; sempre “tende para” ou é dirigida para
objetos. Nunca podemos apreender um suposto substrato da consciência
como tal, mas somente a consciência de tal ou qual coisa. (BERGER;
LUCKMAN, 2010, p. 37).
Pode-se inferir que, para que a consciência “pense”, é necessário um objeto
constituído enquanto tal. Assim, a objetivação coloca, ou reproduz, o elemento não-
familiar entre as coisas que nós podemos ver e tocar, isto é, no mundo dos objetos
preexistentes.16 Opera-se, ao nível do imaginário, um transporte dos elementos objetivos
para o meio cognitivo, onde podemos pensá-lo. Ou seja, efetua-se uma transição onde a
imagem deste objeto é assimilada e deixa de ser um elemento do pensamento, e passa a
constituir a própria realidade. Ao mesmo tempo, adquire-se certa distância em relação a
ele, de modo que reabsorvê-lo cognitivamente torne-se possível. No caso de um
universo teórico como a psicanálise, a objetivação significa “transplantar para o nível da
observação o que era apenas inferência ou símbolo”. (MOSCOVICI, 1978, p. 111).
O processo representacional, para Moscovici, no tocante ao momento em que
estabelecemos o primeiro contato com um conceito do universo reificado, implica num
processo de “percepção” do conceito, onde, por conta deste fato cognitivo, tal conceito
torna-se objeto da consciência que o percebeu.
Há, também, outro importante aspecto da objetivação. Na medida em que
incorporamos o conceito ao nosso dia a dia e conferimos a ele uma presença física,
passamos a percebê-lo como qualidade intrínseca do próprio objeto, e não mais como
16 E por isso que, em última instância, na teoria de Moscovici, sem uma representação sobre, não existe o
objeto passível de ser pensado, manipulado, controlado. O controle racional sobre os objetos é uma das
premissas para a elaboração de representações.
36
uma formulação do pensamento. Moscovici diz, em relação à penetração de noções
psicanalíticas na sociedade francesa: “[...] já não se diz apenas que um indivíduo é
teimoso ou brigão; diz-se também que é agressivo ou recalcado. [...] Naturalizar,
classificar — eis duas operações essenciais da objetivação”. (MOSCOVICI, 1978, p.
113). Assim, mesmo que, possivelmente, as pessoas que usam tais termos não saibam
sobre sua origem científica, sua eficácia se refere a uma convenção que serve como
“indicador de um fenômeno material atestado” (MOSCOVICI, 1978, p. 111.). Eles
servem, ademais, para designar “manifestações ostensivas do real” (ibid. p. 111), e —
não mais sendo um conceito — passam a constituir a própria realidade.
3.2.2 A ancoragem
A ancoragem busca resgatar de dentro de uma constelação de categorias e
representações usuais, pré-existentes e de fontes, muitas vezes, heterogêneas, elementos
que confiram ao não-familiar uma linha que estabeleça um mínimo de coerência entre o
conhecido e o desconhecido. Nesse momento há muito pouca preocupação com
discrepâncias: a preocupação maior é tornar o absolutamente estranho em algo
minimamente cognoscível. Com efeito, é importante salientar que é nesse momento que
se estabelecem relações valorativas em relação ao objeto, onde, notadamente, prevalece
o predicado sobre o sujeito, que se fia com base na linha divisória que vai do normal até
o “aberrante”.
É, pois, no processo de ancoragem que classificamos e damos nome, retiramos
o estranho do seu anonimato, a partir daquilo que Moscovici chama de “protótipo”. O
protótipo nada mais é do que o representante puro de uma classe. O pensamento, então,
pergunta: “É ele como deve ser, ou não?” (MOSCOVICI, 2007, p. 66). Sob esse ângulo,
dar nomes não é uma atitude puramente intelectual, mas intencionada, valorativa e
social, onde se buscam formar opiniões, posicionamentos. Os momentos de grande
excitação e perplexidade, por isso, geram um contexto peculiar onde se forma, nas
palavras de Moscovici, uma “mania de interpretação” (MOSCOVICI, 2007, p. 70).
Disto resultam consequências interessantes, conforme ilustra o próprio autor em relação
ao diagnóstico clínico da loucura. Em um momento da história da psicanálise houveram
dois “protótipos” por assim dizer: o normal e o louco. Isso incomodava, pois havia um
meio de campo que não era nem louco, nem completamente normal, porém para o qual
não havia um termo que o delimitasse. Eis que surge o quadro clínico do “neurótico”,
37
que é o meio termo entre a plena consciência e o pleno descontrole, o qual, além de
fazer parte do arcabouço explicativo da psicologia, “vazou” para o senso comum e serve
de explicação para as mais variadas manias e excentricidades — mesmo que seu rigor
científico inicial tenha se perdido.17 Um exemplo sintomático do caráter da ancoragem
nas Representações Sociais foram os primeiros momentos de contato da sociedade com
a AIDS. Diversas Representações Sociais associaram a doença a possíveis punições
divinas, ou como revezes naturais, oriundos da presumida promiscuidade dos
homossexuais; ou que viam a possibilidade de contágio através do mais simples toque
no doente, através do suor ou da saliva, associando a doença desconhecida com as
formas de contágio de doenças conhecidas, por exemplo (MOSCOVICI, 2007). Essas
representações ilustram, nesse caso específico, como a Representação Social de uma
doença engloba, através da ancoragem de representações guardadas na memória
coletiva, tanto uma dimensão mais geral, de representação de doença/saúde, como uma
moral/religiosa, uma dimensão da sexualidade, e uma biológica — todas entrelaçadas.
Ilustram, também, que grande parte das pessoas preferem explicações populares à
explicações científicas: “as pessoas aceitam acima de tudo aqueles fatos ou percebem
aqueles comportamentos que confirmam suas crenças habituais”. (MOSCOVICI, 2007,
p. 168). Em face da adversidade, do fato desconhecido, ou, na terminologia de
Moscovici, do “não-familiar”, são necessários o resgate de representações pré-existentes
para que se estabeleça um mínimo de coerência e se faça com que, de um lado, o fato ou
experiência atípico seja pensado e construído, e de outro para que uma certa visão
consensual seja estabelecida, a partir da qual os grupos sociais reforcem seus vínculos, e
até mesmo para que haja a continuidade da comunicação da ideia no interior do grupo.
Sem isso, este próprio elemento esquisito, não-familiar, não existe, não está presente: é
preciso representá-lo, dar-lhe materialidade e acessibilidade. O movimento que se revela
na produção de Representações Sociais é de trazer o objeto desconhecido, o
acontecimento extraordinário, do seu “não-lugar”, da sua desconcertante indefinição
para o ambiente seguro do universo consensual.
Assim, a objetivação transforma as coisas desconhecidas a partir do conhecido,
e as localiza no catálogo das coisas visíveis, ou seja, ela é voltada para fora e para os
outros, na medida em o primeiro passo para destituir a estranheza é pensar sobre o
estranho e, nisto, constituir um objeto, sua imagem concreta; a ancoragem, por sua vez,
17 Vale ressaltar, porém, que isso não significa perda de valor no que tange sua capacidade de representar
socialmente algo.
38
é inteiramente baseada na memória, ou seja, ela é voltada para dentro, na medida em
que resgata elementos familiares e os associam ao elemento não-familiar, visando
conferir-lhe o mínimo de cognoscibilidade, a partir da conferência a ele de um nome e
um rótulo. Moscovici nos traz o resultado prático, a síntese de todo este processo de
construções de Representações Sociais:
As ideias já não são percebidas como produtos da atividade intelectual de
certos espíritos, mas como reflexos de algo que existe no exterior. Houve
substituição do percebido pelo conhecido. O hiato entre a ciência e o real se
reduz, o que era específico de um conceito se propõe como propriedade da
sua contrapartida no real. (MOSCOVICI, 1978, p. 112).
Nesse sentido, as Representações Sociais embasam praticamente todos os
aspectos do conhecimento usado na nossa vida cotidiana. No caso dos conhecimentos
científicos, eles passam de conceitos, acerca de objetos sobre o que se fala, para
elementos da constituição da própria natureza dos objetos, como características
intrínsecas a ele, por meio dos processos de objetivação e ancoragem.
Assim, as Representações Sociais são tão indissociável do nosso ser social, da
forma como vemos e interpretamos o mundo, que, a despeito do seu aspecto impessoal,
no sentido de pertencer a todos, elas são “percebidas afetivamente como pertencente ao
ego” (MOSCOVICI, 2007, p. 211, Grifos nossos). As formas cognitivas (o como) são
dependentes dos conteúdos (o que) pensamos, e não o contrário, na medida em que
pensamos segundo representações das coisas, não no objeto puro: elas são inscritas
dentro de um referencial, imagético e simbólico, pré-existente. Eis a relação piramidal a
que me referi anteriormente: não nos relacionamos com um objeto de maneira imediata,
mas por meio das representações que temos a respeito do tema, objeto ou
acontecimento.
Além disso, não há uma correlação que limite uma representação a apenas um
indivíduo, e o indivíduo a apenas uma representação. Os indivíduos possuem muitos
modos de pensar e representar, ou aquilo que Moscovici denomina de “polifasia
cognitiva” (MOSCOVICI, 2007). Não há uma unidade lógica ou cognitiva na nossa
vida mental. Podemos empregar maneiras de pensar diversas e até mesmo opostas. Isso
é um pressuposto da normalidade da vida cotidiana e da adaptação requisitada pela
prática rotineira, que requer flexibilidade frente a diferentes contextos. Além disso, as
representações podem assumir diversas funções: podem ser cognitivas, através dos
processos de ancoragem e objetivação, ou propriamente sociais, mantendo e criando
39
identidades e equilibrando coletividades. Esse último aspecto, aliás — do papel das
representações na delimitação de identidades coletivas —, é capaz de revelar com
clareza aquilo que Oliveira (2004) — já citado — diz, contrastando Moscovici à visão
clássica, acerca do fato das representações não serem algo desprendido, externo à
sociedade e aos grupos que lhe deram origem: elas “nunca seriam de ‘outra natureza’:
elas seriam da natureza mesma dos grupos sociais que as criam [...]” (OLIVEIRA, 2004,
p. 183).
Do reconhecimento de que as Representações Sociais criam realidades coesas e
coerentes, que dão concretude e sentido para a vida cotidiana, Moscovici extrai um
componente ético e humanista, com repercussões epistemológicas muito fortes, bastante
presente, também, em Durkheim: todas as representações são racionais, não existem
“representações falsas”. Isso colide gravemente com certos pressupostos da ciência
moderna. Moscovici se insere em uma perspectiva construtivista que prestigia a
legitimidade do saber do senso comum, questionando, em última instância, o próprio
estatuto de objetividade, a possibilidade de conhecimento, e busca da verdade do campo
científico (SPINK, 1994). O campo científico, pois, possui uma tendência a rebaixar o
senso comum a um status inferior ao dela próprio, assumindo que crenças e
Representações Sociais popularizadas são feito ilusões, falsidades, a partir de uma
noção, combatida com certo protagonismo pela antropologia moderna, em que,
traçando-se uma linha evolutiva entre as formas de pensamento, a ciência seria o estado
mais avançado alcançado pela humanidade. Não cabe à sociologia este papel valorativo,
apenas o de reconhecer o fato sociológico de que se “todas [as pessoas] juntas
reconhecem seu grupo dessa maneira, então estamos lidando com uma realidade social”.
(MOSCOVICI, 2007, p. 178). E uma realidade social, vale dizer, onde não se representa
a coisa como um retrato fiel dela (tal como a ciência positivista buscou fazer), mas um
símbolo da coisa. É, então, sobre esses símbolos que as pessoas pensam. E na medida
em que essas representações fazem e conferem sentido a uma coletividade, são racionais
em relação ao seu referencial próprio. Nas palavras de Minayo (2000, p. 90), “todas [as
representações] respondem de diferentes formas a condições dadas da existência
humana”. Nenhuma delas pode ser critério de racionalidade em relação a nenhuma
outra. Assim, Moscovici equaliza os termos, e identifica ambos, ciência e senso comum,
como formas de representação social:
40
A separação entre os dois universos, consensual e reificado, deve ser
abandonado: dentro de uma dimensão social, a ciência e o senso comum —
crenças em geral — são irredutíveis um ao outro, pelo fato de serem modos
de compreender o mundo e de se relacionar a ele. (MOSCOVICI, 2007, p.
199).
Segundo essa perspectiva é possível se tratar o senso comum como um
amalgama de representações: um universo “híbrido” (MOSCOVICI, 2007, p. 203),
onde ambas as esferas se interpenetram. E ainda: o universo reificado, científico, não
vai, ao cabo, suplantar o senso comum: o que vemos é um movimento de descida do
pensamento científico ao universo consensual, do senso comum, constituindo uma
verdadeira “ciência popular” (MOSCOVICI, 2007, p. 201), presença constante no
cotidiano, e uma forma de ciência contextualizada à realidade corrente do dia a dia, pois
transpõe, como vimos, para representações familiares um universo que poderia ser,
inicialmente, inacessível ou abstrato. Caímos, assim, diretamente no tema a que
propomos analisar: as estratégias de adaptação de um conhecimento advindo do
universo reificado para um universo consensual. É participação importante neste
processo de penetração do saber científico no mundo “híbrido” da vida cotidiana a dos
meios de comunicação, principalmente aquele representado pelo jornalismo científico.
41
4 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Orientaremos nossa pesquisa tendo por base o paradigma moscoviciano da
Teoria das Representações Sociais. Sá (1998) indica alguns desdobramentos necessários
para quem se proponha a enveredar pelo paradigma clássico de Moscovici na análise de
Representações Sociais. O primeiro deles, decerto óbvio, é que, ao analisarmos um
fenômeno representacional, isto é, uma forma de saber gerado através da comunicação
cotidiana voltado, por sua vez, para a prática e orientação de comportamentos,
extrairemos o próprio conceito de representação social. O segundo deles ocorre quando,
ao buscar a formação da representação, localiza-se o princípio básico das
Representações Sociais: a transformação do não-familiar em familiar. E a não-
familiaridade, ressalta Sá, pode não constituir um evento realmente novo — como o foi
teoria da psicanálise, à época de Moscovici, na França, ou o surgimento da Aids. Ela
pode se revelar, em conjuntos sociais específicos, na mais simples ocasião estranha,
como, por exemplo, uma doença a ameaçar a segurança de uma comunidade; no âmbito
individual, na vida rotineira, podemos experimentá-la frente uma situação diante da qual
nunca tivemos experiência parecida. A gripe, nesse sentido, embora não seja algo
realmente novo, é um elemento de instabilidade, no qual se pode tentar identificar as
possíveis qualidades que a tornam o núcleo ao redor do qual orbitam não-
familiaridades.
Todas estas situações ensejam o surgimento de Representações Sociais. E em
um contexto onde dialogam as noções científicas com o senso comum, por intermédio
da mídia, estamos preocupados com uma visão específica da ciência, que compreende
um universo específico: “Sua teoria [das Representações Sociais] é adequada à
investigação empírica das concepções leigas da ciência [...]. Ela não é apropriada, e nem
Moscovici defende que o seja, para compreender o mundo do cientista pesquisador.”
(FARR, 2000, p. 45).
De um ponto de vista metodológico, o paradigma da Teoria das Representações
Sociais é bastante flexível, permitindo a interlocução de diversos métodos segundo
aquilo que o próprio objeto requeira (Sá, 1998). No entanto, acreditamos que dentro da
proposta deste trabalho não serão necessários recursos adicionais aos propostos por
42
Moscovici, à sua grande teoria18; o pressuposto de que as Representações Sociais
servem a contextos onde se transformam estranhamentos em elementos conhecidos já
nos move em uma direção interessante, heurística, para a identificação das situações
não-familiares que criam a ambiência para o surgimento de representações. Em outras
palavras, buscamos na Teoria das representações certas “lentes” por meio das quais
vejamos no caso do vírus da gripe, objetivado pela revista Superinteressante, as
situações que ensejam a criação ou o uso de Representações Sociais. Há, no entanto, um
aspecto importante que limita consideravelmente o escopo do presente trabalho: não
partimos em busca das representações presentes nos discursos das pessoas
concretamente, isto é, na vida cotidiana — algo acessível por meio de entrevistas e
observações. Foi o que Moscovici fez, em sua pesquisa sobre as Representações Sociais
da psicanálise na França: entrevistas em grupos sociais diversos e levantamentos sobre a
informação veiculada na sociedade, por meio de uma análise de conteúdo da
comunicação de massa. Constata Farr (2000, p.46) que
As representações estão presentes tanto “no mundo”, como “na mente”, e
elas devem ser pesquisadas em ambos os contextos. Os psicólogos sociais
fora desta tradição francesa de pesquisa tendem a sempre pesquisar apenas a
última, e não o primeiro.
Desta forma, o presente estudo se localiza no espaço público onde as notícias
são veiculadas, e não nas suas reverberações pessoais.
Além disso, Spink (2000) define diferentes tempos da circulação de ideias na
sociedade: “o tempo histórico, o tempo vivido dos processos de socialização e o tempo
da interação”. Ela resgata a noção de “escala”, presente em Moscovici, para buscar
delinear os possíveis níveis de abordagem nos estudos em Representações Sociais:
Há um mundo de diferença entre representações trabalhadas ao nível pessoa-
a-pessoa, ao nível das relações entre indivíduos e o grupo, ou ao nível da
consciência compartilhada da sociedade. Em cada um desses níveis as
representações têm um sentido diferente. (MOSCOVICI, 1988, p. 228 apud
SPINK, 2000, p. 155).
Cremos que constitui a preocupação central deste trabalho a “consciência
compartilhada da sociedade”, no sentido de uma abordagem da informação veiculada
pela mídia escrita em um espaço público. Mais precisamente: focamo-nos na 18 O autor chama de a grande teoria aquela representada por três correntes complementares: aquela de
Denise Jodelet, bastante fiel à teoria original de Moscovici; aquela mais sociológica, de Willem Doise e
aquela que enfatiza a dimensão cognitivo-estrutural das representações, de Jean-Clause Abric.
43
informação veiculada por uma revista somente, relativa a um tema específico, e a linha
editorial capaz de representar.
Pressupomos que o jornalista possui um arcabouço de Representações Sociais
formado e em formação, de modo que constitui, na envergadura do processo de criação
de representações, a “ponta”, ou o final (na ausência de um termo menos limitante) de
uma rede representacional que o constituiu enquanto sujeito. Em algum grau se reflete
em seu discurso as Representações Sociais; nosso esforço é em identificá-las neste
contexto específico, de transito do jornalista pela não-familiaridade, imposta pelo
discurso científico, em direção ao universo consensual.
Além disso, a análise dos meios de comunicação de massa é capaz de trazer
com mais propriedade um dos aspectos do processo de construção de Representações
Sociais. Uma vez que tais veículos são capazes de transcrevem em imagens concretas
conteúdos abstratos da ciência, e os trazem, na forma de notícia, como objetos a serem
pensados pelo leitor, eles podem ilustrar — com maior clareza do que se estudarmos
sujeitos específicos — os processos de objetivação conceituados por Moscovici:
Além de [os meios de comunicação de massa] constituírem importantes
fontes de formação das representações no mundo contemporâneo, é neles —
na televisão, em especial — que melhor se configura a tendência à
concretização das ideias em imagens. (SÁ, 1998, p. 71).
44
5 O JORNALISMO CIENTÍFICO NO BRASIL
Nesta sessão buscaremos trazer alguns apontamentos, não muito exaustivos,
acerca dos desenvolvimentos do jornalismo científico no Brasil, conferindo especial
atenção à mídia escrita e ao contexto editorial onde se insere a Superinteressante.
Segundo a interpretação de Oliveira (2002), uma das primeiras obras que
operava no sentido de uma divulgação científica genuína, no Brasil, foi Os sertões, de
Euclides da Cunha. A qualidade descritiva da obra, que não se esquiva de discutir temas
como a qualidade da terra, a água, a vegetação e os minerais da região de Canudos, com
a finalidade de uma melhor compreensão da realidade, coloca Os Sertões como obra
pioneira no gênero do jornalismo científico e ambiental no Brasil. (OLIVEIRA, 2002, p.
33).
Alguns momentos importantes na história marcaram o campo científico
brasileiro e os seus desenvolvimentos. A partir da década de 40, com o término da
segunda guerra mundial, a ciência passou a ganhar relevância do ponto de vista da
sociedade e do governo. É decisiva a criação, em 1948, da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC), cuja finalidade foi agregar todas as sociedades científicas
do Brasil. O cientista brasileiro José Reis, um dos fundadores da SBPC, é amplamente
reconhecido como uma figura fundamental na história do jornalismo científico
brasileiro. Aqui, ele foi o primeiro a escrever sobre ciência na mídia impressa, fazendo-
o semanalmente em uma coluna dedicada ao assunto na Folha de São Paulo, desde
1947 até maio de 2002, ano em que veio a falecer.
Em 1951 foi criado o CNPq (Conselho Nacional de Pesquisas) — órgão que,
antes da fundação do Ministério da Ciência e da Tecnologia, fazia todas as
regulamentações das ações estatais relativas à ciência brasileira.
A revista Ciência Hoje, publicação da SBPC, fundada em 1982, logrou,
inicialmente, grande sucesso de vendas. Sua proposta sempre foi divulgar ciência à
sociedade, e conseguiu alcançar, num primeiro momento, grande aceitação do público.
No entanto, com o passar do tempo, alguns autores diagnosticam ter havido uma
transição, na revista, de uma linguagem acessível para uma cada vez mais técnica:
Del Vechio também aponta a linguagem hermética como um dos fatores que
têm impedido Ciência Hoje de alcançar integralmente o objetivo da
divulgação científica. Para ela a revista cada vez mais se distancia de seu
objetivo, limitando-se a um público cada vez mais específico e cada vez mais
especializado (GOMES, 2001, p. 106 apud PACHECO, 2008, p. 16).
45
Com um propósito menos descontraído do que a Superinteressante, porém sem
deixar o interesse em veicular informações científicas em uma linguagem prática e
popular, em 1991 é lançada a revista Globo Ciência. Segundo Pacheco (2008), seus
temas, ciências e tecnologia, mostravam-se menos ressaltados do que aqueles que
abordavam inovações que afetassem diretamente o cotidiano do leitor, com o intuito de
aproximar o universo científico àquele do dia a dia do leitor. Esse projeto, porém, não se
sustentou, e em 1998 a revista passou a se chamar Galileu, numa jogada que a
aproximava bastante ao formato da Superinteressante. Segundo o então diretor da
revista à época desta mudança, Luiz Henrique Fruet, mediante pesquisa com leitores,
publicitários e anunciantes, constatou-se que a palavra ciência no título da revista
afastava potenciais leitores, os quais “mesmo sem conhecer o conteúdo da revista,
achavam que ela era dirigida a cientistas, ou a estudantes de física, ciências exatas [...]”.
(GOMES, 2001, p. 105 apud PACHECO, 2008, p. 17). A mudança de nome foi, na
verdade, uma mudança de roupagem, uma vez que os temas da revista permaneceram os
mesmos da Globo Ciência. No entanto, houve uma guinada significativa no sentido de
enriquecer as matérias com conteúdos visuais, semelhante ao que encontramos em
Superinteressante.
Mais recentemente, em 2002, foi fundada a Scientific American/Brasil, cujas
diretrizes seguiam o padrão americano, porém incorporando, também, artigos de
cientistas e jornalistas brasileiros. Diversas fundações estaduais de apoio à pesquisa
também passaram a publicar periódicos de divulgação científica: a Fapesp em São
Paulo, a Faperj, no Rio de Janeiro, a Fapemig, em Minas Gerais e a Fapeam no
Amazonas.
Segundo Massarani e Moreira (2012), por conta de interesses mercadológicos e
uma distorção da ideia do que vem a ser divulgação científica, particularmente na
Superinteressante e a Galileu se instaurou um contexto onde veiculam-se,
principalmente, artigos de pseudociência.
Segundo um diagnóstico preciso do jornalismo científico no Brasil, os autores
constatam que existe uma representação sobre o público leitor que embasa um modelo
peculiar de jornalismo científico, o qual se reflete no trato raso dos temas. Esse modelo
é chamada por eles de “modelo de déficit”:
46
[O modelo de déficit] de uma forma simplista, vê a audiência como um grupo
de pessoas analfabetas em ciência que deve receber os conteúdos de um
conhecimento neutro. Esses conteúdos são compartilhados, muitas vezes, no
formato de verdadeiras “pílulas” que encapsulam o conhecimento científico.
Aspectos culturais, que são importantes em qualquer processo de
comunicação por levarem em conta o contexto das diferentes audiências, são
desconsiderados, assim como o são as interfaces mais gerais entre ciência,
cultura e sociedade. A divulgação da ciência se dá aqui predominantemente
de forma unidirecional, ignorando a necessidade de interações e trocas
efetivas com a audiência nos processos de comunicação pública e de
apropriação social do conhecimento. (MASSARANI; MOREIRA, 2012, p.
10-11).
5.1 Sobre a revista Superinteressante
“Superinteressante é essencial para cabeças que tem fome de conhecimento,
inovação é novidades. É feita para quem quer entender o mundo além do
óbvio.19”.
A revista Superinteressante não foi o primeiro empreendimento do grupo Abril
cuja proposta fora abordar ciência no campo editorial brasileiro. A primeira delas, a
revista Ciência Ilustrada, foi veiculada no Brasil do ano de 1981 a 1984. Suas
publicações eram um misto de traduções da Science Digest americana e conteúdo
próprio. Chegou a vender 80 mil exemplares, a despeito de não ter recursos próprios ou
publicidade.
A revista Superinteressante teve seu primeiro volume publicado em setembro
de 1987, 3 anos depois da descontinuação da Ciência Ilustrada, como um material
suplementar, incluído gratuitamente em todas as revistas do grupo Abril. O exemplar
tinha somente 16 páginas, porém alcançou cerca de 2 milhões de leitores sem custos
adicionais, e serviu de valioso marketing para o novo título que estava por vir.
(DIEGUEZ, 2004). A partir de outubro do mesmo ano, passou a ser distribuída como
título independente, alcançando notável número de vendas e um rápido esgotamento nas
prateleiras das bancas de revista.
Inicialmente o grupo Abril, adquirindo os direitos de uma revista espanhola
chamada Muy Interessante — lançada em 1981 —, definiu como propósito inicial da
Superinteressante reproduzir integralmente as publicações desta publicação espanhola
por meio de traduções para o português brasileiro. Os temas da Muy Interessante iam
desde as ciências físicas e biológicas, até as ciências humanas. Devido a razões técnicas,
no entanto, dado que os fotolitos da revista estrangeira eram muito maiores do que os da
19 Superinteressante. Brand kit, 2016. Disponível para download em:
<http://publiabril.abril.com.br/marcas/superinteressante>. Acesso em: 02 de julho de 2016.
47
revista brasileira, a Superinteressante viu-se obrigada a produzir suas próprias notícias.
Neste período inicial, onde a revista se firmava, ao mesmo tempo, frente à sociedade e
ao campo científico, seus esforços foram na direção de legitimar-se associando sua
imagem às ciências já fortemente constituídas: as naturais (NOCIOLLI, 2010, p.34). É,
no entanto, a partir da década de 90, quando a revista passa por uma reforma editorial,
que a publicação passa a abordar o tratamento de alguns temas específicos, objeto de
grande curiosidade popular, os quais vemos até hoje reverberar como lugar comum nas
capas da revista: religiões, fim da humanidade, paranormalidades, sociedades secretas,
pseudociências, dentre outros.
Novaes (2006) buscou explicar as possíveis razões para esta mudança editorial.
Segundo ele, este processo de mudança de agenda da revista Superinteressante, no qual
o interesse editorial passa a ser, cada vez mais, aquele ligado a temáticas espiritualistas
e místicas, é sintoma de um processo moderno mais abrangente, no qual a noção
positivista e cientificista de ciência se enfraquece na sociedade, a partir daquilo que
alguns autores chamam de crise da ciência na modernidade. A partir de uma análise
frequencial dos temas de capa da revista, desde sua fundação, em 1987, até 2004, o
autor localiza no período da promoção de Adriano Silva (2000-2005) ao cargo de
editor-chefe da revista o momento de consagração desta tendência. Paulatinamente a
linha editorial deixa em segundo plano aquele ponto de vista positivista da ciência, que
aborda temas das ciências naturais e tecnológicos, e passa a se voltar às ciências
humanas, às subjetividades, e aos temas espiritualistas20.
Segundo Flávio Dieguez, participante dos momentos iniciais da
Superinteressante — no qual se buscava uma identidade para a revista —, Almyr
Gajardoni, diretor da revista à época, propôs um projeto editorial que era, em sua
opinião, de “intuição perfeita”:
[Almyr] Basicamente imaginou uma revista de curiosidades, não de ciência,
mas que era alimentada em grande parte pelo noticiário científico e, melhor,
por reportagens, assuntos de atualidade da ciência. Veja que nossa primeira
capa era a recém-descoberta supercondutividade a “quente” (-96 C).
(DIEGUEZ, 2004).
Flávio Dieguez escreveu sobre o assunto da capa da primeira
Superinteressante, a número 1 de outubro de 1987, acerca dos supercondutores. Seus
20 A diferença estatística na frequência dos temas mostrou que um total de 74% do total de revistas,
produzidas na gestão de Adriano Silva, tratavam de temas relativos às ciências humanas e
subjetivividades; o restante, 26%, tratavam temas das ciências naturais.
48
insights e estratégias de aproximação do tema supracitado são muito relevadores das
práticas da revista àquele tempo. Vejamos seu relato enquanto participante do processo:
Eu fiz a capa como freelance, já adotando uma linha que o êxito futuro da
revista mostrou estar correto: contei a teoria, o mecanismo básico do
fenômeno sem medo de assustar o leitor, mas ao contrário, tentado atraí-lo
para os segredos básicos da natureza; fiz isso dando muitos dados históricos,
da história das ideias (como se pensava que era, porque se viu que não podia
ser...), e em linguagem totalmente leiga, usando e abusando das ilustrações,
das analogias, das comparações com a mecânica (especialmente a dinâmica
árabe e arquimediana, pré-Galileu), que é a ciência intuitiva para, sei lá, 80%
dos leitores; também forcei a familiarização do fenômeno com o cotidiano:
comecei descrevendo a ’luta’ do garfo com a faca para mostrar as diferenças
entre uma cerâmica e um metal (um é duro e quebradiço, o outro flexível e
resistente, um é condutor, o outro resistência etc.), e dei uma receita: como
fazer um supercondutor em casa. (DIEGUEZ, 2004)
Atualmente, a revista logra grande sucesso de vendas dentro do rol das revistas
do grupo Abril. Isto já era prenunciado quando do seu lançamento no mercado editorial
brasileiro, ainda em 1987: os seus primeiros 150 mil exemplares, como revista
independente, esgotaram-se rapidamente, de modo que 65 mil novos exemplares foram
reimpressos. (NOCIOLLI, 2010). Segundo dados da ANER – Associação Nacional de
Editores de Revistas21, de janeiro a setembro de 2014, relativamente às revistas de
circulação mensal, a Superinteressante fica em segundo lugar dentre as revistas de
maior circulação do país, com uma circulação média, neste período, de 344.652
exemplares — ficando atrás somente da revista Cláudia, cuja circulação foi de 419.335
exemplares no mesmo período.
A revista, neste sentido, possui uma importância e representatividade grande no
campo do jornalismo científico brasileiro. No entanto, em contraste com o período
inicial da revista, podemos ver diferenças importantes:
Nesta época [década de 80] a revista tinha uma linguagem mais didática, mas
deve-se constatar que o público também era outro. Não havia acesso à
Internet, as redações começavam a se informatizar, e, consequentemente, as
publicações de ciência e tecnologia tinham um perfil mais explicativo.
(VERAS JÚNIOR, 2005, p.34)
Isto posto, porém, a Superinteressante adota atualmente múltiplas plataformas
para que seus usuários acessem seus conteúdos. Ela conta com uma versão digital da
revista, podendo ser lida em tablets e outros gadgets portáteis, como celulares e
21 Disponível em: <http://aner.org.br/dados-de-mercado/circulacao/>. Acesso em: 03 de julho de 2016.
49
smartphones, com alcance de 70 mil exemplares de circulação22. Seu domínio na
internet conta com 4,6 milhões de visitantes únicos e 12 milhões de page views.23 Sua
página no Facebook conta com 3.8 milhões de “curtidas”24 e seu domínio no Twitter
conta com cerca de 2,73 milhões de seguidores25. O sucesso do projeto editorial da
revista Superinteressante se revela nos inúmeros outros títulos relacionados à revista:
Vida Simples, Aventuras na História, Revista das Religiões, Mundo Estranho, Bichos!,
e outros materiais, tais como CD’s, DVD’s e livros.
Diante disso tudo é possível se depreender que a revista possui uma ampla
audiência, e figura uma forte presença no mercado editorial brasileiro, principalmente
no campo do jornalismo científico.
22 Superinteressante. Brand Kit, 2016. O brand kit faz referência à origem dos dados brutos utilizados,
produzidos pelo IVC (Instituto Verificador de Comunicação). O acesso a eles pelo site do instituto,
porém, é restringido por senha. 23 Ibid. 24 Disponível em: <https://www.facebook.com/Superinteressante/>. Acesso em: 07 de junho 2016. 25 Disponível em: < https://twitter.com/revistasuper>. Acesso em: 07 de junho 2016.
50
6 A REVISTA SUPERINTERESSANTE COMO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO
A constituição do corpus desta pesquisa se formou a partir de pesquisas no
arquivo online da revista Superinteressante. Nele estão arquivados os volumes da
revista que vão desde setembro 1987 até junho de 2016. No entanto, as revistas ali
disponibilizadas do ano de 2016 são parciais, de modo que somente uma parcela muito
pequena das matérias estão acessíveis, o que é, do ponto de vista da lógica do mercado,
compreensível. Assim, o recorte temático e temporal desta pesquisa, referente a estas
revistas impressas cujos conteúdos foram digitalizados por completo, constitui-se dos
artigos sobre a gripe criados desde setembro 1987 (fundação da revista) até dezembro
de 2015.
Foi possível se notar que a produção sobre a gripe não é constante: há uma
flutuação na recorrência do tema. Por exemplo, o ano de 2009 — período da eclosão da
pandemia do vírus H1N1 — conta com o maior número de matérias sobre a gripe de
toda a história da revista: 5 vezes o tema aparece: nas publicações de junho, agosto,
outubro e novembro (duas vezes).
A busca pelas amostras foi feita através de pesquisa no motor de busca do site;
nele, foram utilizadas as seguintes palavras chave: gripe, gripe A, H1N1, espanhola,
suína, aviária. Dos seus resultados, elencou-se um total de 30 artigos diferentes, cujo
fator de unidade era a temática da gripe em todas as suas variações. Dentre todos os
artigos, 3 deles constituíam material disponível somente online e foram publicados no
ano de 2016. Foram ignoradas as ocorrências de artigos onde tais termos apareciam,
porém não constituíam por si mesmos um assunto mais demorado, e sua aparição se
dava de maneira isolada.
Os exemplares advindos do arquivo online da revista não contam com
elementos gráficos ou ilustrativos, sobrando somente o texto do artigo para a consulta.
Algumas menções são feitas, no interior dos textos, sobre elementos iconográficos
suplementares presentes nas versões impressas. Agregar estes elementos à presente
pesquisa certamente a enriqueceria, dada a riqueza imagética da Super. Elas foram, no
entanto, deixadas de lado, uma vez que uma análise de caráter mais iconográfico
requereria certos refinamentos e uma abordagem em separado mais criteriosa, o que não
constitui nosso objetivo neste trabalho.
Online, a autoria dos textos é, com frequência, inserida após o título da
matéria, bastante próximo do corpo do texto. Em alguns dos artigos havia a menção
51
ao(s) jornalista(s) responsável(is). No entanto, em outros não havia uma nomeação,
apenas a referência à “Redação Super” como produtora.
No decorrer das análises traremos diversos exemplos de representações
retirados dos artigos, com a intenção de: a) ilustrar, de um lado, o modo como ocorrem,
as características que as tornam representação; de outro, o momento no texto em que
aparecem, no sentido de abordar a estratégia empregada, e o sentido que adquirem ao
levarmos em conta o todo da sentença (frase); b) aludir ao momento, na história da
revista, em que as representações se fazem presentes.
Assim, para ilustrar certo processo e também fluidez, trazendo a temporalidade
da revista e as representações daquele momento, incluímos no quadro que segue
(Quadro 1), à primeira coluna da esquerda para direita, uma numeração por meio da
qual faremos menção, ao final da citação, ao período da revista em que as
representações foram localizadas, seguida do mês e do ano do artigo em questão. Desta
forma, o leitor poderá identificar o número do artigo dentro da ordem sistemática que
estabelecemos e remeter ao quadro 1 para a localização do artigo e a edição a que se
refere.
Ademais, o caráter pouco esquemático com que traremos tais exemplos da
revista, muitas vezes não respeitando uma ordem cronológica, serve a um propósito
importante dentro da sessão em que exporemos as análises: eles aludem ao fato de que
em diferentes momentos históricos da revista algumas representações se repetem,
revelando certa permanência de representações no trato do assunto. Mary Jane Spink
define o espectro temporal das representações em três tempos:
O tempo curto da interação que tem por foco a funcionalidade das
representações; o tempo vivido que abarca o processo de socialização — o
território do habitus (Boudieu, 1983), das disposições adquiridas em função
da pertença a determinados grupos sociais; e o tempo longo, domínio das
memórias coletivas onde estão depositados os conteúdos culturais
cumulativos de nossa sociedade, ou seja, o imaginário social. (SPINK, 2000,
p. 122. Grifos da autora).
A autora segue expondo que os enfoques em diferentes tempos privilegiam
diferentes aspectos das Representações Sociais:
Quanto mais englobamos em nossa análise o tempo longo — e, portanto, os
conteúdos do imaginário social — mais nos aproximamos das permanências
que formam os novelos mais estáveis das representações. No sentido oposto,
quanto mais nos ativermos ao aqui-e-agora da interação, mais nos
defrontaremos com a diversidade e a criação. (SPINK, 2000, p. 122).
52
Cremos, a partir desta definição, que o presente trabalho se localiza em uma
abordagem de tempo mais longo, focando-se em conteúdos culturais mais arraigados a
uma experiência decantada, presente no imaginário social, e que decerto reverbera nas
construções da revista acerca do vírus da gripe.
Exposto o método de coleta de dados e as estratégias usadas pala ilustrar
empiricamente nossas análises, o corpus da pesquisa pode ser esquematicamente
disposto da seguinte maneira:
Quadro 1: O corpus da pesquisa.
Número Edição, mês e ano Título Autoria
01 5, Fevereiro de
1988 Ataque aos sintomas Sem autoria
02 24, Setembro de
1989 Gripes e Resfriados Artur Beltrame Ribeiro
03 31, abril de 1990 Vírus da gripe A vem
da China Sem autoria
04 52, Janeiro de 1992 Nova arma contra a
gripe Sem autoria
05 57, Junho de 1992 Atchiiim! Lúcia Helena de Oliveira
06 86, Novembro de
1994
Gripe se modifica
para matar Sem autoria
07 117, junho de 1997 Achado o culpado da
gripe de 1918 Sem autoria
08 132ª, Setembro de
1998 Gripe: Aaaatchim! Xavier Bartaburu
09 140, Maio de 1999 O fim do espirro Ivonete D. Lucírio
10 143, Agosto de
1999
Vírus da gripe: Falsa
inocência André Santoro
11 167, Agosto de
2001
A volta do vírus
assassino Lúcia Martins
12 216, Agosto de
2005
E se... houvesse uma
epidemia mundial de
gripe?
Martha San Juan
13 220, Dezembro de
2005
Gripe do frango: A
fúria das galinhas Reinaldo Lopes
14 229, Agosto de
2006
Mentiras da gripe
aviária Bruno Vieira Feijó
15 254, julho de 2008 Espirrou? A culpa é
dos asiáticos Cíntia Cristina da Silva
16 266, junho de 2009 O dilema do vírus Maurício Horta
17 268, Agosto de
2009 Donos do mundo
Alexandre Versignassi e Barbara
Axt
53
Quadro 1: O corpus da pesquisa (continuação).
18 270, Outubro de
2009 A nova vacina Gisela Blanco
19 271, Novembro de
2009
É melhor pegar a
gripe suína agora,
antes da 2ª onda
Giselle Hirata
20 271ª, Novembro de
2009
Você não corre o
risco de contrair gripe
estando agasalhado
Sem autoria
21 278ª, Maio de 2010 Tão mortais quanto
misteriosas Reinaldo José Lopes
22 291ª, Maio de 2011 Vírus de laboratório Leandro Greco e Denise Barros
23 302, Março de
2012
Cientistas voltam a
trabalhar em
supervírus
Salvador Nogueira e Bruno
Garattoni
24 311ª, Novembro de
2012 Um vírus artificial Salvador Nogueira
25 314, Janeiro de
2013
Metanfetamina pode
curar a gripe Carol Castro
26 316, Março de
2013
Vírus aviário fica
mais agressivo Sem autoria
27 338, Outubro de
2014
As próximas
epidemias Salvador Nogueira
28 Online, 02/09/2015 Quer evitar a gripe?
Vá dormir Fábio Marton
29 Online, 07/04/2016
Tudo o que você
precisa saber sobre
H1N1
Helô D’Angelo
30 Online, 14/04/2016 As grandes epidemias
ao longo da história Sem autoria
Fonte: o autor (2016)
Finalmente, devemos salientar que de modo algum pretendemos encerrar, em
nossas análises, todos os aspectos envolvidos, direta ou indiretamente, nos fenômenos
observados. Uma abordagem completa do tema envolveria aspectos que fogem da mera
palavra escrita. Ela exigiria um olhar mais global, que articule, por exemplo, a atividade
individual do jornalista, suas ideias e sistemas de pensamento, o seu papel dentro do
círculo social de que participa, suas características enquanto sujeito, suas estratégias e
negociações na construção do conhecimento frente aos contextos onde são produzidas
estas notícias e aos contextos aos quais se direciona, as linhas editoriais e o regime de
trabalho das empresas de comunicação, suas representações sobre ciência e sobre a sua
atividade enquanto jornalista, dentre muitos outros. Ela levaria em conta, também, a
ponta de todo este processo: o consumidor que lê e consome a notícia, qual é a sua
relação — tanto afetiva como intelectual, cognitiva — com a notícia/revista, qual é a
54
sua receptividade — se seus conteúdos são contestados ou representam, para ele, a
“verdade” —, quais são as representações que elas ajudam a construir no seu dia a dia,
qual seu papel na construção de saberes populares mais disseminados, etc. Isto tudo
pode ser feito ainda sob a ótica da Teoria das Representações Sociais. Por isso tudo,
dada a complexidade do tema, nosso recorte é reduzido.
Isto posto, o que propomos nestas análises é jogar luz em uma das facetas do
problema, isto é, olhar para o fenômeno das Representações Sociais na
Superinteressante sobre o vírus da gripe a partir de uma única perspectiva — diante de
muitos outros prismas e interpretações possíveis. Podemos afirmar, contudo, que a
abordagem deste problema que nos impusemos, o da palavra escrita, sob a ótica da
Teoria das Representações Sociais figura uma forma extremamente fecunda,
especialmente por se tratar, no nosso caso, de um objeto que é expressão tão clara,
altamente simbólica da relação da ciência com o senso comum: a sua linguagem é,
acreditamos, a do universo consensual. Esta abordagem consegue com grande proveito
alcançar as associações de ideias, as figuras de linguagem, as analogias com elementos
cotidianos e articulá-los na forma de narrativas sobre o real, maneiras de contar os fatos
e as pessoas e construir conhecimentos, cuja finalidade é, do ponto de vista do jornalista
— podemos inferir — a construção de uma situação favorável, que torne possível a
leitura e o entendimento da informação sobre ciência pelo maior número de pessoas
possível.
Não pretende-se, também, fragmentar os textos em partes menores ou núcleos
de sentido, tentando depreender a sua organização estrutural e a sua função, na forma de
uma análise clássica do discurso. Objetiva-se, ao invés disso, identificar certas ideias
gerais, recorrências e mudanças a animar estes textos, que operam na matéria
jornalística como elementos representacionais de familiarização, isto é, de aproximação
dos conteúdos escritos à sua possibilidade de leitura pelo leitor, que está informado por
suas experiências cotidianas e por suas Representações Sociais.
Desta forma, as análises a seguir são um esforço interpretativo, no sentido de
identificar nas manifestações por meio da palavra escrita Representações Sociais
alicerçando concepções de ciência, da atividade científica, do(s) vírus da gripe, dentre
outros objetos sociais. Neste sentido, por se tratar de uma atividade interpretativa, ela
não é, definitivamente, a única maneira de leitura dos textos analisados, muito pelo
contrário. Certamente será possível a identificação de outros movimentos, categorias ou
55
estratégias, no interior dos textos, que podem ter passado despercebidos por nós, ou
mesmo nossa abordagem poderá se mostrar insuficiente.
Esclarecidos tais e pontos e tendo-se estes artigos da revista Superinteressante
em mãos, partiu-se para a leitura e análise dos textos, a partir do ponto de vista da
Teoria das Representações Sociais.
6.1 Representações do vírus da gripe na Superinteressante
É por isso que, ao se estudar uma representação, nós devemos sempre tentar
descobrir a característica não-familiar que a motivou, que esta absorveu.
(MOSCOVICI, 2007, p. 59).
Segundo a definição clássica de Moscovici das Representações Sociais, a
principal força que empurra as pessoas no sentido da confecção de Representações
Sociais é a ausência de familiaridade em relação a algo. Pedrinho Guareschi (2000), ao
estudar os cultos neopentecostais e as estratégias de ancoragem utilizadas pelos
pregadores para angariar dizimistas, identificou nos dramas cotidianos dos fiéis, nas
suas necessidades mais imediatas de sobrevivência, o grande campo onde se formam os
medos, as inseguranças, as suas não-familiaridades:
A grande angústia da população que frequenta essas igrejas não é tanto se
eles vão se salvar ou não, mas é ter comida, encontrar um emprego, poder
pagar o aluguel, sarar das doenças, poder educar os filhos. Esse é o seu
grande temor, o seu “não familiar” [...]. (GUARESCHI, 2000, p.211-212).
Como resultado, as pessoas buscam nos cultos uma resposta aos seus
problemas mais tangíveis e práticos, e os pastores, por sua vez, usam-se desta
linguagem, ancorando-se em formas de representação que coloquem um termo ou
atenuem as mazelas dos fiéis. As ancoragens servem, neste caso, como legitimação da
prática do dízimo, isto é, a uma função ideológica. Mesmo que concretamente a
realidade cotidiana do fiel não tenha mudado “da água para o vinho”, ao nível da
cognição e da interpretação do infortúnio, isto é, ao nível das representações, produz-se
certa familiaridade que os move, conferindo um sentido ao infortúnio e normatizando a
prática na direção de uma mudança patrocinada por Deus e mediada pelo pastor.
Trazemos isto porque, embora o tema não se relacione diretamente ao nosso,
esta passagem demonstra uma aplicação prática, uma maneira interessante de se
aproximar do problema das Representações Sociais. Ela permite que nos aproximemos
56
de uma forma a entrever e identificar as situações, a ambiência de estranheza,
desconhecimento e de não-familiaridade onde são fertilizadas as Representações
Sociais.
No caso das representações da gripe na revista Superinteressante, então, a
pergunta que se impõe é a seguinte: quais são os elementos que conferem ao fenômeno
da gripe seu caráter não-familiar, que o tornam incontrolável racionalmente e que
produzem, ao seu tempo, estranhezas, incertezas e, no limite, medos? Essa pergunta é
fundamental, pois ela permite, dentro de nossas análises, a mobilização da noção de
ancoragem, e os processos de associação de ideias. Acreditamos que sejam dois os
principais fatores recorrentes no discurso da revista, a animar estas representações: a) a
mutação do vírus e o risco do surgimento de “novos” e mais letais e b) a relativa
aleatoriedade com que o vírus pode alcançar novas vítimas.
O primeiro destes movimentos localiza na mutação dos vírus — tendo por
base, muitas vezes, o conhecimento que a ciência tem da característica adaptativa do
mesmo — uma força inevitável, isto é, com o tempo, os vírus podem naturalmente
cambiar em sua composição química e, em contato com a vítima despreparada, pode
atuar sem grandes resistências do sistema imunológico. A partir deste elemento
desestabilizador, gerador de não-familiaridade, articulam-se diversas outras
representações mais marginais, menos recorrentes no trato da revista sobre o tema, onde
todas, ao seu modo, buscam conferir à incerteza da mutação e do risco dela advindo um
caráter menos desconcertante, mais familiar, por meio de Representações Sociais. Nem
que isso signifique, dentro da revista, em associações que ligam a mutação a eventos
que levariam a humanidade à extinção ou — em menor grau de nitroglicerina — aos
riscos da atividade científica na manipulação dos vírus, o que implica, conforme
veremos, em certas representações acerca do risco da atividade científica.
O segundo destes movimentos localiza na irregularidade, na relativa ação
errante do vírus que está presente “por aí”, que pode ser transmitido por — e para —
qualquer um, que está presente, ademais, no elemento invisível ar, a fundação de
representações que buscam “regularizar” ou “padronizar” a atividade do vírus,
conferindo à sua ação qualidades presentes em indivíduos psicológicos, isto é, dotados
de uma intencionalidade e racionalidade intrínsecas. Disto resultam, também,
representações mais marginais, como, por exemplo, aquelas que buscam socializar o
vírus, alocando-o em categorias ou grupos cujas ações são reconhecidamente sociais.
57
Ambos movimentos podem se cruzar, no sentido de construir um discurso
familiarizador coerente, de maneira que tais representações não são estanques.
Intencionamos poder explicitar com maior clareza aquilo que aludimos mais acima, na
forma de uma introdução aos resultados da análise. A seguir, serão expostos com maior
riqueza de detalhes os processos de representação da revista sobre o tema do vírus da
gripe. Começaremos pelo primeiro destes movimentos: o vírus enquanto ser ontológico.
6.1.1 Subjetivação da gripe: o vírus (mal) intencionado
Uma das formas de apropriação do tema da gripe, na revista Superinteressante,
se realiza por meio de construções que se referem ao vírus como se este fosse um
indivíduo. Através de uma espécie de individuação — ou subjetivação — do vírus, a
revista pode tratá-lo segundo aquilo que conhecemos e lidamos continuamente no dia a
dia: as nossas relações interpessoais. Enquanto indivíduo, o vírus pode ser trabalhado no
texto de maneira metafórica, familiar: como alguém dotado de uma personalidade,
intencionalidade e moral. Isto figura uma forma de representação do vírus como um
ente psicológico e social, ao invés de uma entidade relativamente neutra, que respeita a
leis biológicas. Este esforço confere um sentido lógico e subjetivo — cuja razão é
relativamente identificável por quem foi socializado (todos nós, supostamente) — às
ações do vírus, ao invés de deixá-lo ao domínio de um desconcertante acaso biológico,
onde prepondera uma lógica oportunística e, de certa maneira, imprevisível. É
identificável, no movimento de deslocamento da explicação de uma ordem
característica do universo reificado (ciência) para uma do universo consensual (a vida
cotidiana) a produção de uma familiaridade maior com o tema a ser elucidado pelo
artigo. Desta feita, o vírus pode ser caracterizado como um indivíduo travesso, cuja
insensatez das ações se traduz em maior número de infectados; no limite, em mais
mortes:
(01) O vírus acaba circulando loucamente26 de uma espécie para outra e
aumenta a probabilidade de infectar humanos. (13, 12/05).
(02) Mas quem precisa montar um vírus em laboratório se os que estão por aí
na natureza já mostraram que podem fazer grandes estragos? É o caso do
chamado vírus H1N1, que tem aprontado das suas desde 1918, [...]. (22,
05/11).
26 Faremos uso do itálico nas exemplificações a fim de salientar pontos no texto capazes de ilustrar as
representações analiticamente identificadas.
58
(03) Contudo, induzindo mutações em laboratório, os cientistas conseguiram
produzir uma versão do H5N1 que se espalharia com a mesma eficiência da
gripe convencional – que infecta 700 milhões de pessoas no mundo por ano.
Imagine o estrago que o danado poderia causar, se saísse do laboratório. (24,
11/12).
Estas representações aludem a um aspecto psicológico do vírus: em (01), ele
pode ser caracterizado pela figura caricata do louco, cujas atitudes frenéticas e
hiperativas tornam maior a probabilidade de infectar pessoas. Em (02) as atitudes do
vírus são semelhantes a de indivíduos inconsequentes e em (03) se insere um adjetivo
popular psicologizante para referir-se a ele. Enquanto sujeito, o vírus também possui
disposições psicológicas e, por isso, é capaz de reagir emocionalmente a certas
situações:
(04) São estradas livres do policiamento dos cílios, em que outros agentes
infeciosos podem passar tranquilos. Como, por exemplo, o vírus da gripe, se
eventualmente estiver por perto. (05, 06/92).
E de efetuar, por meio de uma racionalidade de grupo, escolhas:
(05) Gangues de vírus preferem bombardear o organismo durante o inverno,
provocando as gripes e os resfriados. (05, 06/92).
Os vírus indivíduos, associados e orientando suas ações conforme a identidade
de sua gangue, “preferem” (05) atacar nos momentos de fraqueza, de maior
vulnerabilidade das suas potenciais vítimas. Não é a vulnerabilidade advinda do clima
frio, das práticas típicas desta época que reconhecidamente favorecem a transmissão do
vírus (ambientes fechados, tocar com as mãos contaminadas os olhos ou a boca etc.)
mas a escolha do vírus socializado que determinará qual será o alvo do ataque. Há,
nesse sentido, uma inversão da relação: o vírus animado por seus valores é quem ataca,
e não a vítima que, em situação de vulnerabilidade ou desatenção, enseja a situação
perfeita para a incubação. A diferença é que desloca-se o caráter casuístico próprio da
transmissão viral para uma lógica onde se insere uma intencionalidade subjacente às
malfadadas ações do vírus: em um caso a “ocasião faz o ladrão”, em outro o ladrão é
quem cria a própria ocasião.
Desta forma, lê-se no subtítulo de um dos artigos da revista sobre o tema, de
agosto de 1999, sobre o influenza: “O massacre dos inocentes”. Talvez um revelador
importante do desconcerto causado pela morte por conta do vírus da gripe seja o grande
59
paradoxo que é morrer sem ser culpado, sem ter causado para si mesmo este destino
final. O vírus, na revista, possui um elemento de culpa moral, pois ataca inocentes, isto
é, aqueles que não tem culpa.
Um movimento um pouco menos recorrente é o de subjetivação do corpo.
Ambas as noções que subjetivam o vírus e o corpo se articulam na construção de um
texto informativo, altamente tangível, em virtude dele fazer referência ao que lidamos
cotidianamente. Em grande medida, pode-se supor que ambos os processos de
subjetivação determinam um o outro com a finalidade de construir uma narrativa de
sujeitos que estão em interação. Isto porque, segundo esta lógica, um vírus sujeito não
poderia se relacionar dialogicamente, isto é, segundo uma relação intersubjetiva, com
uma parte do corpo vista unicamente sob o ponto de vista biológico:
(06) Metido nessa encrenca, a primeira reação do nariz é aumentar o volume
do líquido que recobre suas células — daí o fluido transparente que não para
de escorrer, quando alguém está resfriado. (05, 06/92).
(07) Sabe-se que o ataque é iminente, mas ele não tem data certa. O
organismo agradeceria se viesse só no ano que vem, quando as novas drogas
contra o influenza já estiverem nas prateleiras. Mas ninguém sabe se ele vai
ser assim tão cooperativo. (09, 05/99).
Em (06) o nariz pode ser representado como um indivíduo inserido em uma
situação complicada. O deslocamento se opera da seguinte maneira: a reação do nariz,
ou a forma como ele resolveria a situação passaria por um julgamento subjetivo, ao
invés de através de uma ordem biológica de causa (vírus) e efeito (coriza). Em (07),
tanto corpo como vírus aparecem subjetivados; a relação de um com o outro pode ser
explicada segundo a chave de uma negociação entre dois interesses conflitantes, na qual
o vírus, de um ponto de vista comportamental, aparece como o elemento de incerteza:
ninguém sabe se ele será cooperativo.
Nem só através de negociações se fiam a relação vírus/corpo. A ação
parasitária do vírus em relação à célula saudável é interpretada de maneiras menos
condescendentes:
(08) Como quaisquer vírus, os do resfriado escravizam o núcleo das células
que infectam. (03, 06/92).
(09) Mais resumido impossível: o código genético dos vírus de gripe [...]
contém apenas 8 genes [...]. Mas eles são mais do que suficientes para
“sequestrar” e bagunçar completamente as células que invadem, dando
origem a cópias de si mesmo e espalhando a epidemia. (13, 12/05).
60
(10) O que o vírus faz, então, é invadir a célula e tomar o controle das
operações. Transformá-la numa fábrica de novos vírus. Num zumbi a seu
serviço. (17, 08/09).
Em ambos os casos busca-se comunicar a submissão completa da célula em
favor da “vontade” de seu algoz, o vírus, através de metáforas potentes — justamente
para dar a ideia de que atingiu-se um ápice, uma absoluta ausência de controle da célula
sobre si mesma. Em (08) a privação dos direitos de “liberdade” da célula (liberdade aqui
pode ser entendida como a atividade normal dela) é cerceada segundo uma lógica
escravista, onde a célula torna-se propriedade do vírus, logo deve submeter-se à vontade
absoluta de seu proprietário. Em (10), o uso da célula pelo vírus é explicado evocando-
se a figura caricata do zumbi — ou “morto-vivo”, muito presente na cultura popular,
principalmente no imaginário do público jovem — cuja característica marcante é sua
ação errática, irracional, alheia a qualquer padrão comportamental aceito socialmente,
de modo que o que lhe resta é sua prática puramente instintiva. A figura do zumbi, no
sentido dos mortos-vivos canibais e descerebrados, já possui grande força atualmente,
aparecendo como tema em muitos meios de entretenimento. É interessante se notar a
analogia com o universo zumbi justamente na crescente deste momento (2009), onde se
consolida certo “fascínio” com os mortos-vivos, principalmente dentre os jovens — um
público potencialmente interessado na revista. É relevante em (09) como o próprio
jornalista, ao colocar o termo sequestrar entre parênteses (relativizando o uso do termo),
reconhece, de alguma maneira, que faz uso de uma metáfora ali. Poderíamos supor que
ele reconheça que um termo tal como este não seja necessariamente apropriado para a
explicação do movimento de sujeição efetuado pelo vírus em relação à célula, e por isso
acene, na frase, que se deve relativizá-lo, propondo um esforço do leitor em entendê-lo
em sua plenitude no sentido figurado.
Os movimentos de subjetivação observados conferem uma racionalidade
subjacente à ação do vírus, retirando sua ação impessoal, de certa forma
descompromissada e puramente fortuita, e atribuindo uma razão lógica, subjetiva, as
suas ações. Infere-se, por meio desta atribuição, as possíveis razões para que a
incubação do vírus tenha se efetivado — semelhante a como somos capazes de inferir,
mais ou menos bem, mediante observação de outros e a partir de nossa experiência na
61
socialização, as possíveis razões implícitas, que motivaram esta ou aquela ação das
pessoas.27
6.1.2 Socialização negativa do vírus: identidade de grupo e desvio
Se é possível subjetivar o vírus, também é possível socializar suas relações
com o meio onde este se encontra. O primeiro movimento citado confere a ele uma
personalidade cruel, destituído de qualquer virtude moral, associando-o à imagem e às
práticas de um bandido; o segundo confere a ele um conjunto de relações típicas da vida
em sociedade, conferindo-lhe uma identidade e situando-o como participante de grupos
sociais. Este último tipo de representação, na revista, aparece de maneira mais marginal
(se tivermos a subjetivação do vírus como parâmetro), através do uso de termos que
remetem a um universo social. Mesmo que ele, o vírus, represente a própria negação da
sociabilidade, na medida em que é desviante, sua prática inescrupulosa o alinha aos
interesses “criminosos” dos outros vírus, de modo que se formam grupos, “gangues” de
vírus. É ideal, e talvez a expressão mais forte, no sentido de ilustrar esta representação,
o artigo escrito pela jornalista Lúcia Helena de Oliveira, em Junho de 1992:
(01) Era uma noite fria e (por isso) tenebrosa. Bandidos das piores espécies
estavam de tocaia. A vítima parecia pressentir o perigo, já que sua face
empalidecia, enquanto o nariz ia se tornando cada vez mais vermelho, como
o de um palhaço. Porque o sangue corria para se concentrar ali, naquela área
empinada do perfil, oferecendo todo o seu calor. Era necessário aquecer o ar
aspirado, senão, a menos de 36 graus Celsius, ele danificaria os pulmões.
Além disso, o jato de gás frio estava atrapalhando o desempenho de milhões
de cílios, espalhados pelo corredor que conduzia à nobre região pulmonar,
aonde nenhum estranho deveria ter acesso. Em condições normais de
temperatura, feito excelentes policiais, esses cílios expulsaram diversos
microorganismos intrusos. No entanto, surpreendidos pela mudança do
clima, eles começavam a vacilar — era a hora ideal para os vírus do resfriado
e da gripe atacarem. E, no rastro deles, talvez viessem inimigos muito mais
ardilosos. (05, 06/92).
Noccioli (2010) chama este tipo de recurso linguístico-discursivo, próprio dos
processos de recontextualização28 do discurso científico, de “narrativização”. Por meio
27 Precisamos trazer uma passagem que nos causou certa perplexidade, justamente por parecer falar
exatamente sobre aquilo que nos propomos a entender como a subjetivação do vírus. Disse Moscovici que
o objetivo principal dos sistemas de representação é “facilitar a interpretação de características, a
compreensão de intenções e motivos subjacentes às ações das pessoas”. (MOSCOVICI, 2009, p. 70.
Grifos nossos). Seria a subjetivação o próprio meio de compreensão social da ação do vírus, através das
Representações Sociais?
62
de uma espécie de personificação, os elementos presentes no texto tornam-se
personagens, e suas ações são contadas na forma de uma narrativa. No nosso caso, essa
narrativa romantiza a incubação do vírus no corpo da vítima, inserindo um elemento
dramático na teia causal que leva ao estado de gripe.
Essa passagem (01) elenca uma série de imagens a fim de construir um cenário
de tensão crescente, no qual existe a iminência de uma emboscada. A gangue de vírus,
em tocaia, aguarda uma vítima para, no momento oportuno, atacá-la. A narrativa
prossegue, e se determina que a região pulmonar constitui uma área nobre, logo é
justificável a intolerância a indivíduos estranhos naquele ambiente. Ancora-se no
amplamente reconhecido medo e a vigilância rotineira, presente sobretudo nas classes
mais ricas, frente a violência urbana. O termo “intrusos” revela com clareza o contraste
e a carga negativa somada à imagem do vírus quando este se encontra em um ambiente
nobre, contrastando com sua imagem estigmatizada, de modo que se justifica, em
termos de um jogo de poder econômico e distinção social, a sua “expulsão” de lá.
Exemplos como este ilustram que, tivéssemos que desenhar um vírus bandido, além de
ser desviante ele seria, também, pobre.
O aspecto mais ou menos danoso — em relação ao resfriado comum — do
vírus da gripe pode ser medida segundo uma representação social acerca de grupos
criminosos de aspirações maiores:
(02) [...] é quase impossível prever qual será a próxima máscara do bandido,
ou seja, sua próxima mutação genética. Perto dele, aliás, a gangue do
resfriado, cuja ação se limita às redondezas do nariz, parece um grupo de
criminosos novatos. O vírus da gripe, afinal, não se contenta em estropiar as
células ciliadas das vias respiratórias. Seus passeios pelo resto do organismo
terminam em enormes desastres. De carona na circulação sanguínea, ele sai
jogando moléculas de toxinas por todos os lados, às quais o corpo reage
invariavelmente com a febre. (05, 06/92).
O vírus pode ser substituído metonimicamente através de um neologismo que
alude tanto para o caráter de “bandido” do vírus, socialmente rotulado, como para o seu
tamanho microscópico:
28 Adotando uma abordagem que se localiza dentro da tradição da análise de discurso em uma corrente
denominada “Análise do Discurso da Divulgação Científica” (ADDC), para Nocciolli a
recontextualização é o processo de adequação de um discurso especializado (ciência) para um público
amplo, heterogêneo e leigo. A definição da adoção deste ou aquele recurso discursivo é variável segundo
diferentes “parâmetros contextuais, tais como a situação comunicativa, os propósitos de quem produz o
texto e as características de seu interlocutor.” (NOCIOLLI, 2010, p. 15).
63
(03) É claro que você pode se prevenir tomando vacina. Mas, pela primeira
vez, temos aliados para enfrentar os microbandidos depois que eles atacam.
São duas substâncias, uma conhecida como zanamivir e a outra, pela sigla
GS4101, capazes de evitar que o influenza se multiplique. (09, 05/99).
Ou que mesclam o status biológico do vírus à imagem do malandro que lança
mão de recursos duvidosos para sobreviver:
Em lugar de óculos escuros, esses biomalandros se aproveitam da capacidade
de alterar levemente uma proteína de sua superfície, a hemaglutinina, para se
camuflar. (10, 08/99).
6.1.3 A mutação como elemento de incerteza: o vírus de “mil faces”
A recorrência da ideia de mutação nos textos da revista sobre a gripe é muito
grande: em praticamente todos os artigos se faz menção a este fenômeno. Ele emerge
como problema para a familiarização de diferentes formas, segundo as representações
empregadas. Contudo, em uma das primeiras vezes em que a ideia aparece, em
setembro de 1989, ela ocorre de maneira bastante peculiar. O artigo em questão traz um
modelo de texto menos comprometido com a simplificação de ideias e metaforizações, e
mais focado na produção de algo mais embasado em fatos científicos29. Ele é de tal
maneira diferente de todas as outras produções da revista sobre o tema que poderíamos
classificá-lo como o caso desviante (GILL, 2010, p. 265) de todo o corpus da pesquisa,
pois diverge do padrão de jornalismo científico que identificamos nela, compromissado
com a acessibilidade da informação. Isso se deve, provavelmente, ao fato de que o
redator do artigo, Artur Beltrame Ribeiro, seja médico livre docente.
Vejamos este caso em questão, onde primeiro aparece a ideia de “mutação”:
(01) As infecções pelo vírus A ocorrem, em geral, em surtos e podem causar
epidemias. Uma peculiaridade desse vírus é sua capacidade de modificar a
própria estrutura química. Após cada modificação surge um novo vírus tipo
A. (02,09/89).
(02) O problema é que os vírus que causam a gripe passam por variações
constantes na sua estrutura, fazendo com que uma vacina perca o efeito
protetor. (02,09/89).
29 Em um determinado momento o autor chega a usar o termo “laringotraqueobronquite” para referir-se às
possíveis consequências do vírus parainfluenza no corpo humano — algo extremamente raro em todo o
material analisado. Seria usado tal termo se o redator do texto fosse um jornalista?
64
Contrastemo-lo com o artigo referente à gripe produzido imediatamente após a
passagem anterior, publicado em abril de 1990:
(03) O vírus da gripe A, que constantemente muda de aparência, vem da
China, onde a população rural convive com grande número de patos e porcos.
(03, 04/90).
Neste mesmo artigo:
(04) De vinte em vinte anos, aproximadamente, o vírus da chamada gripe A
muda tanto de aparência que se torna irreconhecível ao sistema imunológico.
O organismo idoso ou com a saúde debilitada, ao ser surpreendido pelo vírus
de cara nova, não consegue preparar a sua defesa e por isso a doença
costuma ser fatal nesses casos. (03, 04/90).
Podemos perceber uma mudança significativa de representação: a partir de (04)
o vírus passa a possuir uma aparência, semelhante àquela que notamos nas coisas
visíveis. Mais precisamente, ele possui uma “cara” — que pode ser nova, no sentido de
desconhecida e não-familiar, ou velha, conhecida e familiar. Este é, também, um
mecanismo de socialização do assunto, que explica a mudança do vírus em termos de
um código socialmente construído: a aparência. Ao ancorar-se na ideia de aparência
física do vírus, a irreconhecibilidade dele por parte do sistema imunológico é explicada
segundo elementos que nos são familiares: o julgamento da aparência física baseada em
valores sociais, ao invés de explicações biológico-químicas. O próprio sistema
imunológico seria capaz de operar segundo sua capacidade de distinguir as múltiplas
aparências do vírus, no sentido de o reconhecer ou não, saber ou não responder as suas
ações perversas, etc. na chave de capacidades, inaptidões ou atributos psicológicos:
(05) O vírus da gripe foi o que mais matou no século XX. Ele usa disfarces
para enganar o corpo. (10, 08/99).
(06) A gripe do tipo A, a suína, é especialmente perigosa porque seu vírus
passa por mutações dramáticas. E a cada cepa surge uma doença para a qual
o sistema imunológico não sabe a resposta. (16, 06/09).
A mutação também pode ser apresentada como um ardil do vírus, que busca,
maliciosamente, disfarçar-se para passar despercebido pelo corpo:
(07) A gripe tem um único culpado. Mestre na arte do disfarce, ele é tão
mutante quanto o HIV, acusado pela Aids. Por esse motivo, os cientistas
penam atrás de vacinas eficazes, uma vez que é quase impossível prever qual
65
será a próxima máscara do bandido, ou seja, sua próxima mutação genética.
(03, 06/92).
(08) Esperto, ele se mascara a cada investida, como um bandido que não quer
ser reconhecido. Assim, sorrateiramente, engana as defesas do organismo e
causa as epidemias que fazem parte do nosso cotidiano [...]. (10, 08/99).
Senão um indivíduo “esperto” (08), o vírus subjetivado é dotado de tamanha
destreza no emprego das suas transformações e adaptações que se torna um perito na
arte de passar despercebido (07). O vírus mudado de aparência adota uma persona, um
disfarce. Associado à visão negativa acerca da figura desviante do bandido, a mutação
do vírus é associada a Representações Sociais relativas a indivíduos cujas ações estão à
margem da lei, ou seja, esta visão adota um aspecto moral e valorativo. Esta passagem
alude, também, àquilo que já buscamos identificar como subjetivação do vírus, onde ele
é visto como um indivíduo socializado, passível de sansões sociais (aqui (07), mesmo
que em relação à Aids, revelado com grande clareza pelo termo “acusado”), por efeito
de uma inadequação da conduta do vírus a prescrições sociais. A visão negativa de um
vírus bandido se associa à visão negativa, desestabilizadora, geradora de grandes
incertezas, sobre a qual é representado o próprio processo de mutação do vírus. No
limite, a mutação é uma prática ilícita de um vírus, em essência, criminoso:
(09) [...] nessa caminhada de 1918 para cá, o vírus da gripe H1N1, que
infecta não apenas humanos, mas aves e porcos, recombinou-se com outros
vírus de gripe e gerou outras pandemias, como a asiática, de 1957, que matou
cerca de 1,5 milhão de pessoas. Mais um pouco de recombinação genética e
apareceu o H3N2, a chamada gripe de Hong Kong, que ceifou quase 1
milhão de vidas. Mais um pouco ainda e, voilá, tem-se o H1N1 de 2009.
Tudo isso sem a necessidade de um laboratório para fazer o serviço sujo. (22,
05/11).
Seus passos são monitorados — dado que a adaptação o torna imune à
extinção:
(10) Escaldada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) monitora cada
passo do vírus. “Hoje é difícil que uma pandemia volte a acontecer”, avalia a
virologista Terezinha Maria de Paiva, do Instituto Adolfo Lutz, em São
Paulo. O assassino não foi preso, mas está sob vigilância. (10, 08/99).
Outras passagens buscam articular as noções de mutação e as que representam
a ação do vírus à noções que versam sobre a sua aumentada capacidade de matar a partir
das mutações:
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(11) Ou seja: o vírus dos bois passou por uma mutação genética na época das
primeiras criações e adquiriu o poder de invadir pessoas. Invadir e, agora,
matar sem dó. (17, 08/09).
(12) Em 1918, uma mutação do vírus da gripe se espalhou rapidamente pelo
mundo e, em questão de um ano, matou pelo menos 50 milhões de pessoas.
(27, 10/14).
Incapaz de sentir empatia por suas vítimas, e trabalhando a partir de uma
negação absoluta de princípios morais e éticos, o vírus “mata sem dó” (11). É reforçada
a imagem, diante de tudo o que já foi exposto sobre a subjetivação do vírus da gripe, de
que trata-se de um vírus “assassino”, no sentido doloso, intencional, do termo, e sua
arma é a mutação.
Os processos mesmos de mutação, de partilha de material genético entre vírus,
também é representado. Se eles compartilham uma mesma vítima, a mutação pode ser
representada como uma relação análoga à sexual:
(13) Mas a festa do influenza não parou por aí. Os porcos ficaram vulneráveis
à gripe humana e à aviária, além de terem a gripe exclusiva deles. Então até
hoje acontece uma suruba genética lá dentro. E versões novas e imprevisíveis
do vírus continuam aparecendo. É por isso que todo ano surge uma gripe
diferente, que o nosso sistema imunológico não conhece. (17, 08/09).
Neste mesmo artigo os porcos, por serem capazes de hospedar várias cepas do
vírus da gripe, são denominados “misturadores de vírus”. Essa narrativa é uma forma de
se aproximar do problema, não a única. Em outubro de 2014 essa problemática da troca
genética nos suínos foi apresentada de maneira menos jocosa:
(14) Em 2009, pareceu que a humanidade iria viver uma nova catástrofe.
Começou a circular, vinda dos porcos, uma versão particularmente perigosa
do vírus influenza, o causador de todas as gripes. Os porcos têm uma
característica ruim: eles podem ser contaminados tanto pela gripe humana
quanto pela gripe aviária. Os dois vírus se encontram dentro do porco e
podem trocar genes entre si – gerando uma versão mais forte. Foi o que
aconteceu. O supervírus se chamava H1N1. (27, 10/14).
Com efeito, a mutação é tão simbólica da incerteza imposta por um vírus mais
forte, que ela pode servir como protagonista de uma relação de substituição metonímica:
(15) No entanto, recentemente, um grupo de cientistas da Universidade
Nacional da Austrália desenvolveu uma droga que parece ser eficaz em
bloquear a ação do mutante. (04, 01/92).
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Mesmo o corpo estando imunizado contra a gripe, o risco advindo da mutação
impõe limites à sensação de segurança auferida, e faz da atualização constante dos
métodos de prevenção e tratamento uma rotina:
(16) Os vírus da gripe ainda sofrem mutações o tempo todo, o que os torna
mais resistentes aos remédios e às vacinas. (08, 09/98).
(17) Como o vírus muda de cara, também se altera a vacina todo ano. Para
isso, os laboratórios colhem amostras das vítimas precoces – os gripados no
verão. Assim, sabe-se como será o vírus do inverno a tempo de preparar o
antídoto. (09, 05/99).
(18) Conforme o tempo passa, as pessoas vão sarando, adquirem imunidade e
o vírus da gripe some. Só que, no ano seguinte, ele reaparece em nova versão
— e derruba todo mundo outra vez. (15, 07/08).
(19) E são essas mutações que causam as epidemias mundiais de gripe –
porque resultam em novos subtipos do vírus, contra os quais ninguém possui
imunidade. (15, 07/08).
Neste mesmo último artigo (18-19), o discurso de autoridade de um médico
epidemiologista de Cambridge, Colin Russell, é trazido. No entanto, em seu discurso a
mutação também assume contornos de um embuste, do vírus em relação ao sistema
imunológico:
(20) “O influenza parece ter uma capacidade infinita de enganar o nosso
sistema imunológico”, admite Russell. (15, 07/08).
É interessante que, como em (20), o uso de metáforas não fica restrito, como
poderia se pressupor, aos jornalistas. David Emerson Uip, infectologista da
Universidade de São Paulo, em entrevista na Superinteressante de Junho de 1992, ao
falar sobre os riscos de novas epidemias de gripe, disse o seguinte:
(21) “Você nunca sabe qual a cara do vírus da gripe que vai atacar no Brasil,
no próximo inverno”, exemplifica. “Por isso, o certo é verificar como
aconteceu em outros países e tentar prever o futuro, descobrir quais vírus
entraram no país.” (05, 06/92).
Em passagem semelhante — embora pouco relacionada ao tema da mutação,
mas relevante para mostrar o uso de metáforas por especialistas — a pneumologista
Ilma Aparecida Paschoal, da Universidade de São Paulo, em entrevista ao mesmo
artigo, buscando explicar o funcionamento das estruturas ciliadas das vias aéreas, diz o
seguinte:
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(22) “Cada um deles se movimenta como o braço de um nadador”, descreve
a especialista. “Primeiro, estica-se para o alto, emergindo de uma camada de
água salgada; depois se encolhe, mergulhando novamente.”. (05, 06/92).
Em outra passagem, na mesma entrevista, para desconstituir uma primeira
impressão que se possa ter, de que os cílios podem ser análogos a “pelinhos”, ela diz:
(23) De fato, nem pensar em associá-los aos cabelinhos do nariz: os cílios,
invisíveis a olho nu, são estruturas vivas, que lembram a cauda dos
espermatozoides. (05, 06/92).
Ou, visando compor com imagens correntes a atividade dos cílios, ela diz:
(24) Segundo a médica, observadas no microscópio eletrônico, as tropas de
cílios parecem fazer uma ola, a onda que ergue a torcida nas arquibancadas
dos estádios. Contudo, quando a temperatura esfria de repente, é como se o
movimento passasse a ser realizado em câmara lenta. (05, 06/92).
É interessante observar, do ponto de vista da médica, a pressuposição de que,
para o público ao qual se destina, aquilo que formula já é uma representação social, isto
é, algo compartilhado por muitas pessoas. Uma noção do que vem a ser um
espermatozoide, o seu formato, o seu movimento, já existe — caso contrário a
representação não surtiria o efeito metafórico desejado. A médica é participante do
processo social de representação dos gametas. Ela é capaz de identificar, a partir do que
ouve e vivencia na sua prática, que essa noção é, de fato, disseminada, e poderá ser
compreendida por aqueles com os quais intenta falar. Eis uma representação que se
descolou de seu lugar de origem — a ciência — e penetrou o conhecimento do senso
comum, amplamente reconhecida.
Em alguns momentos o tema da mutação assume contornos dramáticos, em
grande medida por conta do tipo de comparação empregada, ancorada na memória
coletiva em relação experiências traumáticas de epidemia no passado:
(25) Chegou uma hora em que parentes das vítimas deixavam os corpos na
rua para ser recolhidos. Uma em cada 36 pessoas do mundo acabou morta.
Era a gripe espanhola, causada por uma versão mais letal desse mesmo vírus
de hoje, o influenza H1N1. (17, 08/09).
Em outros, para o tratamento do tema da mutação utilizam-se termos mais
descritivos:
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(26) Mas às vezes o influenza se programa para metamorfoses radicais. Aí,
ele vira um supervírus, muito mais feroz. (10, 08/99).
(27) Em lugar de óculos escuros, esses biomalandros se aproveitam da
capacidade de alterar levemente uma proteína de sua superfície, a
hemaglutinina, para se camuflar. (10, 08/99).
(28) Além disso, a domesticação aumentou muito a população desses
animais. Mais corpos para os vírus invadirem. E variações mais letais desses
micro-organismos começaram a aparecer no gado. (17, 08/09).
(29) De qualquer maneira, a velocidade com que a doença se espalhou e a
intensidade dos sintomas sugere que o vírus – que era do tipo H1N1, tal
como o da gripe suína – resultou de uma transformação nas formas de gripe
que existiam antes, e provavelmente também de uma mistura com vírus que
circulavam em animais, como aves e porcos. O problema é saber que
alteração foi essa. (21, 05/10).
“Metamorfose”, “variação”, “transformação” e “mistura” substituem as ideias
metafóricas de “cara” ou “máscara”. Em (27) usa-se de um conceito próprio da
ecologia, a “camuflagem”30, na mesma frase em que se usa o termo “biomalandros”.
Noções cognoscíveis pelo senso comum e de ciência — do universo reificado —
articuladas.
Em (26), pela primeira vez na revista, aparece o termo “supervírus” — aquele
que sofreu “metamorfoses radicais”:
(30) Dentro do porco, os dois vírus se combinaram e originaram um
supervírus, cuja molécula de hemaglutinina era completamente diferente da
dos vírus que normalmente atacavam o homem. A gripe provocada por esse
novo vírus, muito mais perigoso, causou a pandemia conhecida como gripe
espanhola. (10, 08/99).
Aqui, assim como em algumas das suas aparições subsequentes, o termo
“supervírus” significa aquele vírus que trocou material genético com outros, o que
ocasiona o surgimento de um tipo de vírus muito mais perigoso e adaptado às medidas
de tratamento e às imunidades naturalmente ou artificialmente (vacinas) adquiridas pelo
corpo. Com efeito, ele passa a substituir metonimicamente o termo vírus quando a
questão é a capacidade superior do vírus que sofreu “mutações radicais”:
30 “Camuflagem: ECO adaptação em que um organismo possui características que o confundem com o
meio onde vive.” HOUAISS, A.; FRANCO, F. M. M.; VILLAR, M. S. Grande Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 590.
70
(31) Mas já existe quem proponha uma solução extrema: a criação de um
supervírus, que juntaria as características de todos os tipos de influenza e
seria usado para estudos em laboratório. (15, 06/08).
(32) Mas, mesmo quando aparecem supervírus, a fatalidade deles tem sido
relativamente baixa. (16, 06/09).
(33) Os dois vírus se encontram dentro do porco e podem trocar genes entre
si – gerando uma versão mais forte. Foi o que aconteceu. O supervírus se
chamava H1N1. (27, 10/14).
Em certos momentos, o surgimento de “supervírus” pode estar atrelado aos
riscos da atividade científica de manipulação:
(34) Usando técnicas de manipulação genética, cientistas criam um
supervírus capaz de eliminar grande parte da humanidade. (23, 03/12).
(35) Cientistas poderiam hoje criar em laboratório supervírus que colocariam
em risco grande parte da população mundial. Correção: eles já fizeram isso.
(24, 11/12).
Risco presente mesmo que a intenção subjacente à manipulação seja,
justamente, combater os vírus:
(36) Quer dizer: a vacina disponível hoje é baseada em vírus de 2007. Os
médicos garantem que, mesmo assim, ela funciona. Mas já existe quem
proponha uma solução extrema: a criação de um supervírus, que juntaria as
características de todos os tipos de influenza e seria usado para estudos em
laboratório. (15, 06/08).
(37) Note que esse tipo de pesquisa, por mais benéfico que possa ser (os
cientistas queriam desenvolvê-la para já preparar uma vacina eficaz antes que
o supervírus surgisse naturalmente), atinge um nível de risco que talvez seja
inaceitável. (24, 11/12).
(38) Ninguém demonstrou isso de forma mais contundente que Yoshihiro
Kawaoka, um controverso cientista da Universidade de Wisconsin-Madison,
nos EUA. Ele pegou o H1N1 e, em laboratório, induziu-o a sofrer mutações
em ritmo acelerado. Acabou criando um supervírus – que é imune a todas as
vacinas conhecidas pelo homem. Kawaoka está tentando se antecipar à
natureza e criar vírus assassinos, bem como defesas contra eles, antes que as
epidemias estourem por aí. Mas e se os vírus escaparem? Ele diz que não há
perigo. (27, 10/14).
A atividade científica de manejo dos vírus possui um risco intrínseco. A
incubação de vírus, “por mais benéfica que possa ser”, trás uma carga de risco
“inaceitável” (37), “capaz de eliminar grande parte da humanidade” (34). Ou seja, a
despeito das ações científicas atuarem no sentido de combater o vírus, a manipulação do
mesmo e a possibilidade de que escape dos ambientes controlados dos laboratórios é,
também, um elemento gerador de incertezas e não-familiaridades.
71
Dado o grande potencial dos vírus em se modificar e gerar novos tipos, a ampla
variedade deles, presentes “nos rondando”, é, ora ou outra, citada no corpo dos artigos.
Ela é expressão em números desta grande capacidade do vírus de sofrer mutações:
(39) Pelo menos trezentos vírus diferentes podem causar um simples
resfriado. Não é de estranhar, portanto, que os cientistas tenham praticamente
desistido de encontrar a cura para essa doença. (01, 05/88).
(40) O resfriado é causado por mais de 200 vírus diferentes, que se
manifestam por sintomas semelhantes. A gripe é ainda mais complexa. Ela é
provocada por alguns vírus poderosos e traiçoeiros. (08, 09/98).
(41) Agora imagine: quando duas mutações de um mesmo vírus se encontram
no mesmo organismo, e isso aconteceu nas criações de porcos e galinhas, o
“casal” pode recombinar seus genes na forma de 256 vírus diferentes. E
esses vão se recombinando e recombinando dentro do corpo dos bichos. Aí
foi questão de tempo para surgir uma variação que infectasse o homem. (17,
08/09).
Em se tratando do tema da mutação do vírus, o aspecto do medo parece rondar
as representações deste tipo. Ele sintetiza o sentimento de desconforto constante em não
podermos controlar racionalmente os resultados da rápida adaptação viral:
(42) Há o medo de que o H5N1 se torne tão mortal quanto o vírus da gripe
espanhola e, pelo menos parcialmente, ele é fundamentado. A análise
genética sugere que o vírus de 1918 também veio de aves e sofreu poucas
mudanças para infectar pessoas. (13, 12/05).
(43) Não há garantia de que, contraindo a gripe agora, você estará a salvo da
2ª onda, talvez mais forte que a 1ª. O motivo é simples: pode ser que o vírus
volte com mutações, tornando inúteis os anticorpos desenvolvidos pelo
organismo de quem pegou a gripe suína nesta 1ª leva. (19, 11/09).
(44) O vírus está em permanente mutação, por isso o homem nunca está
imune. As vacinas antigripais previnem a contaminação com formas já
conhecidas do vírus. (30, 04/16).
O uso da expressão “poucas mudanças” (42) confere um teor alarmante à
sentença: a mínima mutação pode causar um episódio semelhante ao da gripe espanhola
de 1918. Não se discute os avanços da ciência que não permitem mais que isso aconteça
com aquela mesma intensidade, apenas compara-se. Em (43), cujo caráter é mais
informativo, com intenções também preventivas, a mutação do vírus impõe riscos que
retiram a segurança sentida por quem acredita que, pegando a gripe uma primeira vez,
estaria imunizado para sempre. Ele também revela uma desestabilização, insegurança,
na medida em que “não há garantia”. Em matéria de 2016 (44), “nunca” estamos
72
imunes, dada a mutação permanente, incontrolável, frente a qual o corpo mostra-se
incapaz de adaptar-se de maneira permanente.
Como vimos, a mutação do vírus embasa, dado seu caráter desconcertante,
desestabilizador, inúmeras estratégias de aproximação do problema biológico que é a
diferenciação química do mesmo através de adaptações com seu meio. Circulam a partir
dele noções que traduzem a incerteza da nova forma que a adaptação viral trará em
representações de caráter negativo, ou que levantam a completa fragilidade do ser
humano frente a uma doença que, inevitavelmente, não apenas certamente o atacará,
como também o fará sem uma resposta satisfatória do sistema imunológico. Circulam,
também, noções que reconhecem na própria atividade científica de manipulação dos
vírus, mesmo que bem aventurada, isto é, atuante em prol da superação deles, possui um
risco imanente de fugir do controle e causar um desastre.
6.1.4 Ancorando a guerra: um conflito surdo
A analogia com o universo militar constitui, na revista, um conjunto de
representações mais marginais. Ela se dá na forma de palavras que, podemos supor,
também são usados no universo especializado. No entanto, no contexto das frases,
termos como “combate” ao vírus aliado a termos como “invasores” ou “inimigos”, por
exemplo, assumem um caráter beligerante:
Nesse trecho da trajetória do ar pelo organismo, é possível encontrar cerca de
duzentos cílios de guarita, em uma única célula. (05, 06/92).
São estradas livres do policiamento dos cílios, em que outros agentes
infeciosos podem passar tranquilos. Como, por exemplo, o vírus da gripe, se
eventualmente estiver por perto. (05, 06/92).
“Para facilitar a chegada do exército defensor, os vasos sanguíneos se
dilatam, abrindo o caminho”, explica o médico otorrino Sung Ho Joo, do
Hospital Albert Einstein, em São Paulo. (05, 06/92).
Em seguida, começam os espirros e a tosse, duas formas de expulsar os vírus.
A guerra só termina quando as células do sistema imunológico entram em
cena para destruir os invasores. (08, 11/98).
São células feitas para matar, que atiram primeiro e perguntam depois. (17,
08/09).
E, quando isso [um vírus entra no corpo] acontece, rola uma operação quase
mágica: o linfócito começa a se dividir, gerando um exército de clones
especializados em destruir a célula contaminada com aquele vírus. [...] uma
vez que o exército de clones se forma, ele fica para sempre no seu corpo.
Continua fazendo patrulha para o resto da sua vida. (17, 08/09).
73
6.1.5 Algumas considerações complementares sobre o material observado
Julgamos relevante falar brevemente, nas linhas que seguem, a título de
curiosidade, sobre as estratégias da revista para prender ou alcançar a atenção do leitor.
Noccioli (2010) nota que, geralmente, na revista Superinteressante, o título das
reportagens aparece em forma de pergunta retórica, “remontando ao caráter
almanaquista da revista de satisfazer curiosidades a partir de perguntas e respostas”.
(NOCCIOLI, 2010, p. 65). De fato, pôde-se constatar tal estrutura de notícia com certa
recorrência. E mais: notou-se uma disposição que informa uma ideia de que a ciência é,
de fato, uma atividade desmistificadora. Por vezes, dentro dos artigos analisados, foi-se
no sentido da construção de uma experiência epifânica para o leitor, dizendo-o ou que
— supostamente — estava errado, ou que as concepções que — supostamente — tem
divergem demasiadamente daquilo que a ciência diz a respeito. Ou seja, presume-se que
a informação desconstruirá visões errôneas do leitor.
Neste mesmo contexto, algumas frases são construídas com um caráter
preventivo e prescritivo, trazendo a ciência médica como “acalento”, na medida em que
ela traz a resposta prática a problemas e angústias concretas. Estas são estratégias
efetivas para capturar o interesse do leitor, ao relacionar o conhecimento à sua qualidade
pragmática, aproximando o texto à realidade vivida.
Por exemplo:
Mas não desanime. Se a gripe chegar, lembre-se de que não há medicamentos
efetivos contra ela. Recorra ao repouso (santo remédio), muito liquido e
aspirina. (02, 11/89).
O frio está chegando e, junto com ele, a tosse e a febre. Mas alegre-se: este é
o último inverno em que seu corpo terá que lutar sozinho contra a invasão da
gripe. Novas drogas estão a caminho para acabar com a festa do vírus. (09,
05/99).
Então, se, no mês que vem, você se sentir indefeso com o frio, console-se. No
inverno seguinte, a Medicina já estará ao seu lado. (09, 05/99).
Qual foi a pior epidemia de todos os tempos? A Aids, que matou 22 milhões
de pessoas nas últimas duas décadas e devastou vários países da África? A
Peste Negra, surto de peste bubônica que arrasou a Europa entre 1347 e 1351
levando 25 milhões de pessoas e deixando mais de 1 000 cidades desertas?
Ou a gripe? A resposta certa, acredite, é a última. (11, 08/01).
Quando você estiver com a seringa espetada no ombro, vai estar participando
dessa história toda – e sua saúde estará a salvo. O que você não sabe é que,
ao tomar a vacina, você também estará se envolvendo numa nas histórias
mais polêmicas e misteriosas da medicina moderna. (18, 11/09).
74
Portanto, melhor seria encarar a gripe do que correr o risco de desenvolver
um câncer. Certo? Errado. (21. 05,10).
Mas calma, não é o fim do mundo: basta aprender a se proteger, saber mais
sobre as formas de transmissão e ficar atento aos sintomas para conseguir
tratar a doença o mais rápido possível. (29, 04/16).
Mas pode ficar tranquilo: a maioria dos casos de H1N1 é benigna, ou seja, as
pessoas, em geral, não morrem disso. (29, 04/16).
Um outro componente muito presente no material analisado é as proporções
escatológicas que uma pandemia poderia assumir, fiando-se a partir de especulações que
visam construir um cenário catastrófico. Trata-se, também, de um recurso para atrair a
atenção do leitor para um imaginário que vê com grande perplexidade o fim último das
coisas: da vida, do mundo, da humanidade etc. De um ponto de vista global,
praticamente todas as noções analisadas se articulam (algumas com maior grau de
afinidade, tais como a mutação) às perspectivas escatológicas, que buscam elucubrar ou
fazer pareceres proféticos de como ocorrerão novas epidemias. Elas irão acontecer, na
perspectiva da revista, e muitas vezes embasado em pareceres de especialistas, uma vez
que a mutação é um elemento biológico cientificamente reconhecido, inevitável, do
transito do vírus. Há uma estrutura notável nos textos, onde o teor das frases parece
acalmar o leitor com visões menos apocalípticas e racionais, porém, na sentença
seguinte surgem textualmente os “mas” ou as más notícias:
A fusão total é muito mais preocupante porque ela resulta em um organismo
contra o qual não há defesa nenhuma e que pode gerar uma variedade imensa
de combinações de genes. O pior é que, tendo acontecido em 1918, não há
razão nenhuma para descartar a possibilidade de que ocorra de novo. (11,
08/01).
Essas são apenas algumas das consequências possíveis se o mundo
enfrentasse uma epidemia generalizada da gripe do frango. Parece irreal?
Infelizmente, não é. A ameaça existe mesmo. (12, 08/05).
Quando uma supergripe chegar, serão necessários estoques de vacinas e
drogas antivirais, funcionários, hospitais, equipamentos. E poucos países têm
isso em quantidade. Por essas, a gripe suína pelo menos serviu de alerta para
quando a próxima pandemia vier. (12, 05/05).
O risco é real, mas o fato é que ninguém sabe quando – nem se – a doença
vai mesmo se tornar um problema sério para a saúde humana. Aproveitando
que a pandemia ainda não veio, [...]. (13, 12/05).
Os vírus mais letais são os menos contagiosos. Mas suas mutações não tiram
do caminho a possibilidade de que um deles mate milhões. (16, 06/09).
75
Até o fechamento desta edição a gripe suína não tinha arrasado o mundo. A
humanidade pode ter escapado desta vez – mas a pulga atrás da orelha não.
(16, 06/09).
Apesar de o sistema de saúde hoje ser bem melhor que o do começo do
século 20, os criadouros de vírus também são. [...] A [gripe] aviária acabou
controlada. A de hoje talvez não fique tão pesada quanto a espanhola. Mas
não dá para prever o que pode vir por aí. (17, 08/09).
É impossível prever a evolução da pandemia. Pode ser que o vírus permaneça
como está, sem sofrer mutação alguma, e não ofereça perigo maior do que já
oferece. Mas também pode ser que ele volte mais resistente, contagioso e
letal. (19, 11/09).
Usando técnicas de manipulação genética, cientistas criam um supervírus
capaz de eliminar grande parte da humanidade. Parece um roteiro de filme,
mas está acontecendo de verdade. (23, 05/12).
Gripe aviária, gripe suína, ebola. Isso foi só o começo. Para muitos cientistas,
o mundo irá viver uma grande epidemia — que afetará boa parte da
população mundial. E ela pode começar a qualquer momento. (27, 11/14).
A epidemia está sendo contida e, ao que tudo indica, não haverá uma
epidemia global. Mas o caso já é apontado pelos especialistas como um
ensaio do que está por vir. (27, 11/14).
E porque, ao contrário do HIV, por exemplo, ele mata depressa — o que
evita que a pessoa tenha tempo de espalhar a doença para muitas outras. Mas,
se ele sofrer uma mutação, [...] a humanidade não terá como escapar de uma
epidemia global. (27, 11/14).
Por isso, há cientistas trabalhando a todo vapor para tentar evitar que esse
cenário se concretize. Mas há uma variável incontrolável nessa história toda.
(27, 11/14).
76
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Só que, neste momento, as atenções se voltam mais que nunca para a gripe
porque espera-se uma epidemia séria em breve. A suspeita provém da
habilidade do vírus de se transformar. “De tempos em tempos, ele passa por
grandes mutações”, adverte André Vilela Lomar. As mudanças radicais
aparecem depois que o vilão invade animais como porcos e galinhas. Aí, a
nova geração volta para o homem com uma cara quase irreconhecível para o
sistema imunológico. E pega o nosso exército de anticorpos de surpresa. (09,
05/99)
Esta passagem, retirada da revista Superinteressante de maio de 1999,
demonstra com grande clareza, e de maneira sintética, a fluidez como se fiam a maior
parte dos textos da revista: representações sobre a iminência de novas epidemias, o
aspecto da mutação do vírus, o conteúdo moral de um vírus “vilão”, e as associações
com formações e atividades militares articulam-se de múltiplas maneiras, conferindo
significações muito ricas, em um mosaico de ideias e de representações conjugadas com
a finalidade de aproximar aquilo que é dito sobre ciência do universo do público leitor
mais geral.
Por isso mostrou-se difícil, no decorrer do capítulo referente às análises,
trazermos exemplos puros referentes às categorias nativas de Representações Sociais
que nos propomos a utilizar. Dificilmente são identificáveis passagens onde exista
somente uma representação isolada as animando. De fato, cremos que isto demonstra a
riqueza do material empírico a que nos dispusemos a analisar, onde há uma profusão e
entrelaçamento de inúmeras representações, e demonstra, também, que as diversas
articulações, além de revelarem a fluidez das representações que se comunicam entre si,
formam, não obstante, um texto coerente, de fácil apreensão, justamente por conta de
sua continuidade com aquilo que estamos acostumados a lidar no dia a dia.
Foi possível constatar-se, à luz da Teoria das representações sociais e em vista
do material empírico, que as estratégias representacionais adotadas pela revista
deslocam a explicação de um viés abstrato e própria do universo reificado, para uma
explicação mais imagética e concreta, referente ao universo familiar cotidiano por meio
de noções do universo consensual, ao conferir uma concretude tangível, isto é, acessível
por qualquer um, ao objeto em questão.
Constatou-se, também, a partir da ideia de que as Representações Sociais
emergem em resposta a situação de estranhamento ou descontrole, que os grandes
elementos propulsores das representações, nesse sentido, foram a) o fato de um vírus
77
mostrar-se capaz de mudar sua estrutura química tão rapidamente e tão constantemente,
impossibilitando à ciência seu controle racional, através de previsões, e b) o elemento
contingente, incerto, capaz de construir um sentimento de insegurança, que é a relativa
aleatoriedade com que a gripe pode “escolher” as suas vítimas, acessá-las por meio de
um elemento invisível — o ar — e de poder acometer qualquer um de nós, sem que
possamos estabelecer uma razão lógica previsível para isso — tais como uma culpa, que
possibilitaria uma explicação causal. A previsibilidade, neste último ponto, apesar de
poder ser delimitada do ponto de vista biológico, ou seja, tal gripado agiu de tal ou qual
maneira que possibilitou a incubação do vírus, não há uma razão ética, moral, ou
mesmo social, do vírus aplacar indivíduos presumidamente “inocentes”. A partir de um
esforço em conferir uma racionalidade subjacente à ação do vírus, esta pode ser
interpretada como advinda de um indivíduo mal, que ataca vítimas vulneráveis, e não
segundo uma relação de causa (ações que facilitam a entrada do vírus no organismo) e
efeito (o estado de gripe), que pode ser interpretada como — de um ponto de vista
moral e ético — neutra.
Diante disso tudo, mostrou-se extremamente fecunda ter como ferramenta de
análise do material empírico a Teoria das Representações Sociais. Sem dúvida, o
próprio pesquisador partilha destas representações, de maneira que, no decorrer das
leituras, mostrou-se possível se reapropriar criticamente destas representações
compartilhadas, a fim de problematizá-las, tentando ao máximo revelar-lhes o caráter
social.
A revista Superinteressante possui uma identidade muito característica,
revelando em sua linha editorial artigos com certa tendência a privilegiar assuntos
ligados a aspectos esotéricos e místicos da sociedade, geralmente associados a assuntos
que causam grande perplexidade e, por isso, curiosidade. Tais assuntos são objeto de
grande interesse do público em geral, tendo especial atratividade aos interesses da
parcela mais jovem. Porém, é temerário generalizarmos esta característica como se
fosse uma tendência, a qual outras revistas também seguem, antes de fazermos uma
análise comparativa da revista com outras do seu gênero. Um estudo deste tipo seria
capaz de revelar não somente as similitudes entre revistas brasileiras de jornalismo
científico, mas também as diferenças, as diversas maneiras de se aproximar dos temas,
os temas mais recorrentes, as diferentes representações que se criam acerca do público
leitor e da própria ciência etc. E se, afinal de contas, a diferença reside, principalmente,
quanto ao corpo de jornalistas responsáveis pela redação dos artigos, variando de revista
78
a revista, um estudo que coloque, qualitativamente, lado a lado, jornalista e artigo —
ressaltando suas especificidades de sujeito, sua relação com o objeto do artigo, o que
pensa a respeito, qual a sua relação com a instituição da revista, até que ponto ela influi
na sua produção e até que ponto o que escreve faz menção, sobretudo, àquilo que pensa
a respeito etc —, seria de grande valia para o campo do estudo das Representações
Sociais. Estudos assim levantariam tanto o aspecto da produção da mente (os artigos)
como o seu enraizamento nas subjetividades e grupos que lhe deram origem.
Uma outra abordagem, um tanto mais complexa, poderia comparar as revistas
brasileiras de jornalismo científico a outras, do mesmo gênero, de outras partes do
mundo, a fim de mostrar as modificações que o contexto social impõe às produções das
revistas, e como as revistas, em resposta, traçam estratégias de adaptação, ou mesmo
omissão31 dos temas fitados. Tais estratégias seriam capazes de mostrar — a partir de
uma imersão (mesmo que incompleta) do pesquisador ao universo de valores de uma
sociedade específica — como as Representações Sociais, isto é, as metáforas e
analogias que fazem sentido para nós, podem não o fazer para os outros povos.
É evidente que a revista, ao representar sobre o seu público leitor, homogeneíza
seus conteúdos, a fim de contemplar o — imaginado — público geral. Neste processo, a
revista passa ao largo de uma realidade, a rigor, diversa, altamente plural, como é a
deste país continental, o Brasil. Ignoram-se, por uma razão até compreensível, de
recorte, os regionalismos e as possíveis leituras diversas que seus textos poderão ser
objeto. Este é um problema, aparentemente, insolúvel, uma vez que se pode inferir que a
revista não somente é um empreendimento voltado para a cidade, como também é
centrada no eixo Rio-São Paulo. E não é um problema somente das revistas de
jornalismo científico, mas um problema da interdição que os meios de comunicação
hegemônicos e oligopolizados impõem aos meios alternativos.
O presente trabalho buscou mostrar a efetividade das representações analisadas
no interior dos textos e em relação ao contexto social, a partir de um exercício de
interpretação, sem se focar demasiadamente em um aspecto crítico. No entanto, é
impossível não sentir, ao fim das leituras do material empírico e das análises, certa
inquietação quanto à qualidade da informação sobre ciência veiculada na revista. O
problema da adaptação de um conhecimento reificado, científico, para o universo leigo,
consensual, ainda se impõe e, ao que tudo indica, permanece sem uma solução
31 Por exemplo, como seria tratado o tema da homossexualidade em sociedades mais tradicionais ou cuja
presença da religião é muito forte? Em casos assim, é possível que o tema nem entre em pauta.
79
satisfatória, que permita, de um lado, a transmissão de uma informação confiável sem
recorrer, no entanto, aos jargões científicos que afastam o leitor daquele conhecimento,
mas que, de outro, não perca um mínimo de rigor conceitual e critério, a fim de impedir
que o conhecimento se simplifique demasiadamente e emerja como produto de um
processo (científico) no qual a contradição e a sua construção dialética sejam deixados
em segundo plano — ou sequer sejam aventados. Isto porque, nos artigos analisados,
das vezes em que constatamos a existência de uma menção ao fato de um determinado
desenvolvimento científico ainda estar em “fase de testes”, ou que “resta testar sua
aplicabilidade em humanos”, praticamente nenhuma delas era feita no início ou no
corpo do texto: somente no final — ou na própria frase final.
O cenário escatológico, construído segundo profecias embasadas no
conhecimento científico sobre o vírus, são ainda mais inquietantes. Será esta uma forma
prudente de veiculação de informações científicas? A imagem que se tem é que a
revista, ou mais especificamente, alguns de seus jornalistas — especialmente os artigos
de Salvador Nogueira32 (vide Quadro 1) — buscam fisgar a curiosidade dos leitores à
qualquer custo, e o que, num primeiro olhar, pode parecer um exercício inocente de
imaginação sobre o fim da humanidade, poderá, talvez, traduzir-se como um medo real
no leitor. Isso é agravado ainda mais se levarmos em conta o contexto de baixa
educação científica no Brasil.
Pechula (2007) problematiza a veiculação de informações científicas na mídia
de massa. Em nosso contexto de “sociedade da informação”33, transforma-se o
conhecimento científico em informação sobre ciência, isto é, em notícia, de maneira
que, neste intenso fluxo de informações atual, ela é rapidamente veiculada. Esta rapidez,
no entanto, guarda problemas insolúveis sem que se problematize essa própria maneira
de informar e veicular conhecimentos científicos:
[...] a ciência é transformada em notícia; e a pesquisa, mesmo que ainda em
processo de formulação ou hipótese, é rapidamente divulgada. Contudo,
geralmente, é divulgada como descoberta, criação já acabada ou como início
de uma descoberta que alcançará o seu intento. O receptor, sem o saber,
torna-se consumidor desse tipo de informação que, transformado em notícia,
torna-se um fenômeno cotidiano e é consumido como as demais notícias. E,
assim como essas, a informação científica não possuirá aprofundamento,
32 A maior parte das passagens escatológicas no material analisado foram escritas por este jornalista — o
que pode significar que seja possível se traçar, com grande proveito, um perfil de jornalismo científico
particular a certos jornalistas. 33 “[Na sociedade da informação] vive-se cultural, política, científica e, principalmente, economicamente
em torno da circulação de informações.” (SIQUEIRA, 1999, p. 25 apud PECHULA, 2007, p. 217).
80
detalhes teórico-conceituais, o que impedirá a compreensão mais profunda da
informação recebida por parte do telespectador. (PECHULA, 2007, p. 117).
Como resultado, engendra-se uma visão ingênua da ciência, transformando-a
em espetáculo e “encantando-a” (PECHULA, 2007). Em outro trabalho, a autora
(PECHULA, 2001) buscou mostrar como a revista Superinteressante, junto a revistas
como Galileu — que partilham do mesmo propósito de informar sobre ciência de
maneira “descontraída” — reforçam um imaginário mítico-sagrado do discurso
científico-racional, onde, embora a informação possa referir-se, de fato, a conteúdos
originados no campo científico, os signos de apreensão usados na revista (imagens e
palavras) são de ordem mágico-religiosos:
[...] os veículos de comunicação de massa, quando se propõem a informar as
descobertas e invenções científicas, o fazem em nome do conhecimento
“dito” científico [...]. Entretanto, ao produzirem a informação acerca da
descoberta, ou criação científica, continuam utilizando alguns signos que
representam o mundo sagrado e mítico, que se expressam de forma
misteriosa e “mágica” e, às vezes, até profética, criando no telespectador, ou
leitor, um imaginário que dá continuidade às visões mítico-sagradas, porém
apresentadas em nome da produção científica, que assumem um papel
substitutivo da crença religiosa (mítica e sagrada) existente anteriormente.
(PECHULA, 2001, p. 206).
É claro que poderíamos levantar as possibilidades humanistas que este formato
de divulgação de ciência poderia trazer consigo, tais como o estabelecimento de uma
“ciência popular”, mais afeita a uma lógica social, isto é, prestigiando sua efetividade
dentro do cotidiano, operando como meio com o qual as pessoas interpretam o seu meio
e conferem coerência a ele, do que a uma lógica científica, que se preocupe com o rigor
e a descrição minuciosa. De fato, neste contexto, podem emergir conhecimentos
híbridos, de uma outra natureza, embasando ou enriquecendo saberes populares. No
entanto, este caráter simplificador, de releitura dos saberes científicos, usando-se de
figuras e caricaturas, metáforas e analogias, não terminaria servindo, justamente, como
o contrário daquilo proposto pelo método científico, que é a desconstrução daquilo que
temos como certo ou natural? Na medida em que, como vimos, associam-se a ideia de
um vírus à imagem de um indivíduo desviante, ou que vejam a agremiação de vírus
como se fossem gangues, não se reforçariam preconceitos e ideias correntes, referentes
a parcelas marginalizadas da sociedade? Seria esta uma contribuição jornalística
socialmente responsável para a construção de uma cultura científica, frente ao imenso
déficit educacional brasileiro no tocando à educação científica, ou um recurso
81
meramente adaptativo, onde se adequa o discurso a um contexto onde há pouca cultura
científica? Tudo isso ao invés de se focar em contribuir para uma maior consciência
crítica, reflexiva, frente aos avanços da ciência e da modernidade? O que fala mais alto:
um aspecto econômico, ditado pela busca da maior tiragem de revistas possível,
prestigiando um leitor que sente conforto ao ler aquilo que reforça o que já está
acostumado a ver e ouvir, ou um aspecto emancipador, através da busca pela produção
de um material provocador, que incite as pessoas para que reflitam à luz da ciência?34
Assim, estas estratégias de familiarização, na medida em que se baseiam em
Representações Sociais, endossam e reafirmam uma realidade social, muitas vezes
naturalizando certas noções preconcebidas de senso comum, que invisibilizam
problemas e que, retirando o aspecto contingente da cultura, naturalizam a sociedade tal
como ela é, envolvendo-a com uma aura de que é necessária, ou seja: ela é assim
porque deveria ser assim. Com efeito, isto alimenta, dentre outras coisas, ao lado de
noções religiosas como a de “destino”, por exemplo, certo fatalismo observável na
sociedade brasileira.
Essa situação não será facilmente superada, ainda mais no contexto brasileiro.
Ela se complexifica ainda mais a partir do momento em que consideramos que os
próprios leitores podem, num primeiro momento, não se interessar pelo discurso
puramente científico, dado, por um lado, o afastamento que este opera em relação ao
leitor, enveredando pela contramão daquilo que vemos e ouvimos no universo
consensual, e de outro por conta da falta de familiaridade do brasileiro com a ciência,
em geral, e a sua linguagem. Segundo pesquisa recente, citada por Massarani e Moreira
(2012, p. 9), há um grande interesse por parte do público brasileiro em geral em relação
à ciência — interesse muito próximo, estatisticamente, a temas como esporte e
economia. No entanto, ainda há pouco material a ser consumido relacionado à ciência e
tecnologia na televisão. Assim, conforme vimos no depoimento do diretor da revista
Galileu (capítulo 5, página 45), a própria palavra “ciência”, no Brasil, poderia assumir
uma conotação capaz de assustar e afastar potenciais leitores — o que não é difícil de se
intuir como sendo algo verdadeiro. Isto aceito, parece que o “buraco é mais embaixo”.
Não se trata tanto de uma falta de interesse, porém mais uma questão onde se alinham,
34 No Brasil, um outro problema que dificulta uma maior presença da ciência como reflexão crítica do
real nos meios de comunicação é o reduzido espaço concedido nestes meios às ciências humanas. Bertolli
Filho (2006, p. 6) diz: “Tornou-se ponto comum na mídia aceitar que as matérias integrantes das revistas,
cadernos e seções de ciência devem se reportar quase que exclusivamente às chamadas ciências básicas
(Física, Química e Biologia) e às ciências aplicadas (Engenharia, Medicina, Agronomia, dentre outras),
eliminando ou minimizando as possíveis matérias voltadas para as ciências humanas (Melo, 1985:140)”.
82
de um lado, uma baixa capacitação para a leitura de conteúdos científicos e, de outro, a
forma peculiar como se escreve sobre ciência nos meios especializados.
A solução desta questão passaria, inexoravelmente, por investimentos maiores
na educação, para a construção de subjetividades mais aptas à leitura e compreensão de
textos e conteúdos científicos, e a consequente desconstrução desta visão corrente de
ciência como “coisa de cientista”. Investimentos que busquem suplantar a ideia das
pessoas de que a ciência é uma instituição reificada, que não lhes diz respeito e separada
dos seus mundos — ideia esta representada, principalmente, pela figura caricata do
cientista de jaleco branco manipulando microscópios —, empobrecendo-a, ou que a veja
somente como uma “mão” impessoal que busca resolver problemas, mas como um
recurso importante e cada vez mais necessário, tanto para a compreensão e crítica do
real como para — num mundo cada vez mais competitivo — a inserção social nele.
Tais problemas, evidentemente, não são exclusivos da população mais geral,
“leiga”: eles se apresentam mesmo no âmbito dos próprios jornalistas. O
desconhecimento em ciência revela-se com a precariedade da formação acadêmica dos
jornalistas que atuam no campo científico. Ao nível da graduação, raras são as
universidades que oferecem disciplinas relativas ao jornalismo científico, mesmo que
em caráter optativo. As especializações nesta área, que passam a surgir somente a partir
da década passada, ainda mostram-se escassas frente à demanda dos meios de
comunicação e o interesse do público. (BERTOLLI FILHO, 2006).
No presente trabalho, foi aceito que o jornalista científico figura uma espécie
de tradutor, alguém que, transitando entre não-familiaridades, desloca o discurso
especializado de sua origem reificada adaptando-o a uma linguagem comum, por meio
de metáforas e analogia com elementos corriqueiros, com o intuito de que ele possa ser
lido e, sobretudo, entendido pelo maior número de pessoas possível. Estas estratégias
empregadas são, por vezes, repudiadas por cientistas, por inúmeros motivos — dentre
eles a facilidade em se incorrer em erros e simplificações. No entanto, segundo Bertolli
Filho (2006), tais analogias e metáforas mostram-se também efetivas nas formulações
da ciência, e são amplamente utilizadas como recursos nestes contextos:
Tomando-se como exemplo o discurso da imunologia, há mais de um século
os especialistas vêm utilizando um vasto arsenal de metáforas e isto se tornou
tão corriqueiro naquela área do saber que, sem qualquer constrangimento,
muitos pesquisadores não mais percebem o seu emprego, notando a presença
de tal dispositivo provisório da linguagem apenas nos textos e falas de outros
locutores (Löwy, 1996). (BERTOLLI FILHO, 2006, p. 5).
83
Com efeito, isto é capaz de fragilizar uma crítica mais contundente aos
métodos e estratégias adotadas pelo jornalismo científico. Alguns autores como
Zamboni (2001 apud BERTOLLI FILHO, 2006) acreditam que, ao invés de produzir
um discurso distorcido, degradado, o jornalismo científico produz um gênero de
discurso científico específico, cuja lógica e legitimidade são próprias. Como resultado,
formula-se um discurso autônomo, diferente daquele que o originou. Orlandi (2001)
defende que da relação entre estes dois discursos não emerge meramente uma somatória
dos dois, que pode ser criticada quanto ao seu maior ou menor valor em fidedignidade,
“mas uma articulação específica com efeitos particulares em um jogo complexo de
interpretação”. (ORLANDI, 2001 apud ROCHA, 2007, p. 47).
Ainda, admitir-se que, no processo de transmissão e popularização da ciência
pelos meios jornalísticos, agregam-se “contaminações” ou outras impurezas as suas
produções, pode levar-nos a enveredar por um caminho um tanto movediço. Essa
questão requer certos refinamentos e problematizações sem os quais se reforça uma
estratificação que separa, valorativamente, a ciência “genuína”, “pura” — e que serve
como instrumento de controle, da parte da classe científica, de sua própria imagem —
de uma ciência “vulgarizada”, “distorcida” ou “descaracterizada”. A ideia de
popularização pressupõe uma clara distinção entre “conhecimento científico genuíno” e
sua “circulação popular”. Isso constitui aquilo que Hilgartner (1990 apud BAUER,
2000) chamou de “visão dominante da popularização”. A classe científica endossa esse
ponto de vista dominante, que serve de instrumento discursivo para firmar a autoridade
científica e demarcar seu campo em contraste com os dos grupos a ele externos. Esse
campo se apresenta como uma arena cujas finalidades são políticas: “Tem-se a
impressão que se um traço particular da popularização favorece a causa do(a) cientista,
ele é “adequado”; se não favorecer o ponto de vista dele, ou dela, ele é inadequado”.
(BAUER, 2000, p. 238-239).
Assim, uma discussão sobre o processo de crescente afastamento do leitor leigo
do universo científico levaria em conta os processos de delimitação discursiva dos
campos. Para Rocha (2007), a fim de problematizar o lugar enunciativo da revista
Superinteressante, o processo de divulgação científica produz uma “‘exterioridade’ da
ciência, uma vez que o leitor da ‘ciência’ mantém o lugar da ciência como um lugar
ainda distante da sociedade.” (ROCHA, 2007, p. 44. Grifos nossos).
84
Como vemos, esta questão é muito mais complexa do que inicialmente pode
parecer. Inúmeros interesses discursivos, de delimitação de campos e de poder estão
imbricados nesta problemática, dificultando a formulação de uma solução, a partir do
estabelecimento de um diálogo mais próximo entre cientistas e jornalistas.
Por fim, uma breve reflexão acerca das possíveis implicações políticas da
Teoria das Representações Sociais. Sobre uma possível contribuição desta teoria para a
modificação e superação de problemas sociais, Maria Cecília Minayo diz o seguinte:
Por serem ao mesmo tempo ilusórias, contraditórias e “verdadeiras”, as
representações podem ser consideradas matéria-prima para a análise do social
e também para a ação pedagógico-política de transformação, pois retratam e
refratam a realidade segundo determinado segmento da sociedade.
(MINAYO, 2000, p. 110).
Conforme busquei mostrar, à luz da teoria de Moscovici, as Representações
Sociais constituem verdadeiras “lentes” por meio das quais decodificamos uma
realidade que é, a rigor, inexpressiva por si mesma; ela só é cognitivamente acessível
quando, mediando a relação do sujeito com uma objetividade — seja ela um “outro”,
um objeto inorgânico ou acontecimento factual —, estejam as Representações Sociais.
Elas são também históricas, na medida em que se baseiam em certas estruturas
simbólicas e de saber/poder que se modificam com o passar do tempo — seja sob
influência do conhecimento cumulativo advindo do progresso científico, seja por
acontecimentos ou processos históricos gradativos que abalem ou gerem fissuras
criativas em tais estruturas.
Assim, sendo tanto uma maneira com que vemos como, sobretudo,
reverberações de um momento histórico da maneira como vemos o mundo, as
representações sociais que se constituem como problemas sociais podem ser superadas
por meio de uma mudança nas representações. A educação possui, nesta tarefa, um
papel fundamental.
Em um contexto como o Brasil atual, onde se soerguem fundamentalismos de
toda a sorte, intolerâncias, preconceitos e desconhecimentos, o estabelecimento de uma
consciência social de que uma forma de ver o mundo não pode se sobrepor às demais
traria um grande fôlego para a luta política democrática, pelo alcance de direitos sociais
e reconhecimento das parcelas minoritárias da sociedade, e enriqueceria, se disseminada
para a população, o debate sobre temas sensíveis fundamentais para a superação de
nossos desatinos. Um primeiro passo importante nesse sentido foi dado com o
85
estabelecimento obrigatório da sociologia no ensino médio. Embora haja uma luta
crescente em oxigenar a legitimidade da sociologia nas escolas, é fundamental que tais
conhecimentos sejam justificados frente à sociedade, tanto por intervenção dos
cientistas sociais, como por meio de patrocínios institucionais que reforcem a sociologia
como disciplina obrigatória. A própria mídia poderia exercer influência positiva neste
sentido.
Em um mundo altamente informatizado, onde a convivência com o outro, com
outras culturas, é intensificada e colocada à distância de um clique, e onde a informação
é produzida sem parar e — como vimos — sem critério, e posta ao alcance de (quase)
todos, é preciso uma educação que prestigie duas frentes: primeiro, que consagre a
alteridade como parte da experiência humana, e que desconstrua Representações Sociais
que justificam e dão base social para os desequilíbrios brasileiros; em segundo, que
empodere as pessoas com uma postura reflexiva frente os descaminhos que os meios de
comunicação monopolistas impõem à sociedade brasileira, trazendo a ciência não como
“salvadora”, mas que estabeleça o pensamento crítico como rotina de filtragem do
imenso fluxo de informações — que são, muitas vezes, maculadas por intenções
políticas “camufladas”, desinformações inflamatórias e polarizantes.
86
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saber-sobre-h1n1>. Acesso em: 08 de junho de 2016.
______. As grandes epidemias ao longo da história. SP: Editora Abril, somente
online. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ciencia/as-grandes-epidemias-ao-
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