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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES - SCHLA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DECISO MARIO CESAR DALLA BONA As mil faces de um vírus: a Representação Social da gripe na revista Superinteressante (1988-2016) CURITIBA 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES - SCHLA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – DECISO

MARIO CESAR DALLA BONA

As mil faces de um vírus: a Representação Social da gripe na revista

Superinteressante (1988-2016)

CURITIBA

2016

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MARIO CESAR DALLA BONA

As mil faces de um vírus: a Representação Social da gripe na revista

Superinteressante (1988-2016)

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em

Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas,

Universidade Federal do Paraná, como requisito

parcial para a obtenção do título de Bacharel em

Ciências Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Alexandro Dantas Trindade

CURITIBA

2016

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MARIO CESAR DALLA BONA

As mil faces de um vírus: a Representação Social da gripe na revista

Superinteressante (1988-2016)

Monografia aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em

Sociologia no Curso de Graduação em Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas,

Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, pela seguinte Banca Examinadora:

Orientador: ________________________________

Alexandro Dantas Trindade

________________________________

Jose Miguel Rasia

________________________________

Leide da Conceição Sanchez

Curitiba, 19 de julho de 2016

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de primeiramente agradecer aos meus pais por terem provido aquilo

que nunca poderei pagar — que foi o carinho e a preocupação com meus caminhos.

Serei eternamente grato por terem endossado as escolhas que fiz.

Ao amigos de ciências sociais, em especial aqueles com os quais partilho o

“GRR2009”, dentre os quais, alguns guardo com especial carinho, em um caloroso

espaço de meu coração: Fernando M., Joelcyo, Lucas G. e Lucas R.

Ao curso de Ciências Sociais como um todo, que efetuou verdadeiras

revoluções em mim, e ao corpo docente que deixou marcas profundas no meu

amadurecimento intelectual, produzindo paixões e um entusiasmo com o conhecimento

que eu nunca sentira antes.

Aos amigos que fiz no tempo em que trabalhei na Biblioteca Pública do

Paraná, em especial ao William H. e à Alana C., que tornaram minha primeira

experiência de trabalho bastante prazerosa e construtiva.

Ao meu amigo Yuri A., com quem pude externar e corresponder grande parte

de minhas angústias existenciais, e com quem pude exercer, no tempo que sobrava,

algumas atividades literárias.

Ao meu orientador, Alexandro Trindade, por ter acreditado nesta minha

proposta e ter-se disposto a me acompanhar nesta jornada.

Ao professor Jose Rasia, pela oportunidade de frequentar, como observador, o

Grupo de Pesquisa em Sociologia da Saúde da UFPR e pelas indicações de leitura.

À Leide Sanchez, por ter confiado em me ceder o seu árduo trabalho de

doutoramento, e por ter me feito indicações bibliográficas valiosas.

Agradeço, por fim, com um sentimento da mais doce ternura, à minha amada

companheira Priscilla Z. Você me fez acreditar no amor e no seu poder de mover as

pessoas.

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RESUMO

O presente trabalho tem como objeto a análise das representações sobre o vírus da gripe

na revista brasileira de jornalismo científico Superinteressante, tendo como referencial

teórico a Teoria das Representações Sociais. Busca-se compreender como se inserem

em nosso cotidiano, na forma de instrumentos de interpretação, noções

reconhecidamente científicas, delineando quais são as condições favoráveis e os

processos sociais por meio dos quais este fenômeno se opera. Reconhecendo-se a

necessidade de haver uma mediação entre ciência e senso comum, pretendeu-se

caracterizar o jornalismo científico como um elemento mediador fundamental para a

circulação de saberes científicos no universo cotidiano. Nesse sentido, objetivou-se

identificar as estratégias, empregadas pela revista, de aproximação do discurso

científico ao universo do leitor leigo. Além disso, aceito o pressuposto de que as

Representações Sociais não constituem realidades estáticas, planejou-se fazer um

mapeamento das representações que se formam no interior da revista, dando especial

atenção aos processos de modificação, invenção e, também, permanências de

representações sobre o vírus da gripe no decorrer do tempo.

Palavras chave: Representações Sociais. Representações Sociais da gripe.

Superinteressante. Jornalismo científico. Sociologia

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ABSTRACT

This work’s object is the analysis of representations (based on the Theory of Social

Representations) of the flu virus in the Brazilian science journalism magazine

Superinteressante. It is our aim to understand how recognized scientific concepts are

introduced in our daily lives in the form of interpretation instruments, outlining the

conditions that are considered favorable to it and the social processes through which this

phenomenon operates. Recognizing the need for mediation between science and

common sense, it was intended to characterize scientific journalism as a key mediating

element for the penetration of scientific knowledge in our everyday universe. In this

sense, our objective was to identify the strategies employed by the magazine for

bringing scientific discourse closer to the lay reader’s universe. Also, assuming that

social representations are not static realities, it was planned to map the representations

that are formed inside the magazine, paying special attention to the processes of

modification, invention and permanence of influenza virus’s representations over time.

Key Words: Social Representations. Social Representations of the flu.

Superinteressante. Science journalism. Sociology.

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 – O CORPUS DA PESQUISA.................................................................51

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 9

2 O FENÔMENO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM SERGE

MOSCOVICI ........................................................................................................... 20

2.1 Trajetórias do conceito de “Representação Social” ................................................. 22

3 ASPECTOS TEÓRICOS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS. 31

3.1 O objeto por excelência da Psicologia Social: ciência versus censo comum .......... 31

3.1.1 O universo consensual .......................................................................................... 31

3.1.2 O universo reificado ............................................................................................. 32

3.2 Cognição social: por que se formam as Representações Sociais? ........................... 33

3.2.1 A objetivação ........................................................................................................ 35

3.2.2 A ancoragem ......................................................................................................... 36

4 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS ............................................................ 41

5 O JORNALISMO CIENTÍFICO NO BRASIL ..................................................... 44

5.1 Sobre a revista Superinteressante ............................................................................ 46

6 A REVISTA SUPERINTERESSANTE COMO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO

................................................................................................................................... 50

6.1 Representações do vírus da gripe na Superinteressante .......................................... 55

6.1.1 Subjetivação da gripe: o vírus (mal) intencionado ............................................... 57

6.1.2 Socialização negativa do vírus: identidade de grupo e desvio ............................. 61

6.1.3 A mutação como elemento de incerteza: o vírus de “mil faces” .......................... 63

6.1.4 Ancorando a guerra: um conflito surdo ................................................................ 72

6.1.5 Algumas considerações complementares sobre o material observado ................. 73

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 76

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 86

REFERÊNCIAS DE REVISTAS ................................................................................ 89

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1 INTRODUÇÃO

As representações individuais ou sociais fazem com que o mundo seja o que

pensamos que ele é ou deve ser. (MOSCOVICI, 1978, p. 59).

Existe um tipo de pessoa que se informa sobre ciência de uma maneira peculiar

— e este tipo é bastante comum. É mais seguro estabelecer que é comum na medida em

que o ambiente social onde ela habita enseje tal recorrência típica, não a sua qualidade

ou predisposição subjetiva. Na televisão, nos jornais e na internet se estabeleceu a

produção de uma quantidade imensa de informações que, sem um critério na seleção de

fontes confiáveis, buscam responder possíveis dúvidas das pessoas ou orientar uma

prática cotidiana mais “saudável”, mais “eficiente” ou mesmo mais “feliz”. As respostas

que emergem vêm no encontro de inquietações da seguinte natureza: o que devemos

comer? O que devemos evitar? Quais são os sintomas que indicam que tal pessoa sofre

desta ou daquela doença? É comum a presença, no nosso círculo de relações (de

parentesco, de amizade, de trabalho), daquela pessoa que se preocupa demasiadamente

com a sua saúde ou com a saúde dos outros que deseja o bem. Nestes casos, a linha que

separa a preocupação da neurose é tênue. A informação angariada através destes meios

na maior parte das vezes é descompromissada eticamente e formulada muito

rapidamente, de maneira irrefletida, em omissão perigosa das contradições inerentes à

produção de ciência, preocupada unicamente em expor, de maneira quase messiânica, as

possíveis contribuições salvadoras que a ciência pode dar no entendimento das coisas

com as quais nos relacionamos, em completa omissão em relação aos debates travados

no interior do campo científico. O que vemos é a veiculação de informações rasas, de

caráter normativo, de controle e alarmante, que abrem caminho para um sem número de

exageros e medos infundados. Tendências à patologização de qualquer indício de

desarranjo do corpo geram conjecturas, por exemplo, que associam a mais normal apatia

ou tristeza, comum nos dias em que se acorda “com o pé esquerdo”, a quadros

depressivos, e transformam uma disposição emocional passageira em objeto de grande

preocupação; ou aquelas que, observantes e receosas frente a qualquer tecnologia, veem

no micro-ondas, no simples agitamento das moléculas do alimento efetuado por ele, um

veículo de radiações e danos à saúde, ou no celular que repousa embaixo do travesseiro

uma fonte de tumores e distúrbios neurológicos. É claro que em alguns casos deve haver

algum nível de “verdade” científica, porém a questão não é esta.

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Preocupamo-nos, inicialmente, com a ausência de critério com que essas

informações são veiculadas pelos meios de comunicação, a partir de uma omissão

completa dos processos dialéticos de construção de uma “verdade” científica. Nestes

contextos, as pesquisas ainda em seus desdobramentos aparecem como “dados” ou

“achados”, incontestáveis e — dada sua origem na socialmente legitimada ciência —

portadoras da verdade. Reflexões ulteriores refinaram melhor esta nossa preocupação

inicial, e converteram, parcialmente, este caráter de denúncia em uma reflexão mais

analítica dos processos por meio dos quais se inserem, no nosso universo cotidiano,

noções científicas.

Assim, a faísca, a inquietação, provinda dos aspectos intuitivos expostos mais

acima, que acendeu a proposta deste trabalho se ilustra na seguinte — e bastante ampla

— questão norteadora: como e em que qualidade se introduzem, nas nossas noções

cotidianas, ideias e conceitos provindos do campo científico? Quais são as mediações

que permitem que conceitos reificados e especializados, científicos, penetrem no rol de

palavras que usamos no dia a dia? Pretendemos, neste trabalho, contribuir para uma

compreensão sociológica destes processos de influência da ciência em nossa vida

corrente.

A todo o momento estamos em contato com fenômenos, objetos ou

acontecimentos que podem divergir em diferentes graus daquilo que temos como

familiar1. Embora a esta altura do desenvolvimento científico o conjunto de fenômenos

e coisas completamente incompreendidos por nós tenha se estreitado, existem

verdadeiras áreas escuras no conhecimento social, seja porque não as tenhamos

compreendido completamente, seja por elas figurarem possibilidades ou eventos novos,

imprevistos. “De hábito, carecemos necessariamente de informações, de palavras, de

noções, para compreender ou descrever os fenômenos que aparecem em certos setores

do nosso meio ambiente.” (MOSCOVICI, 1978, p. 59).

A ciência, nesse sentido, atua um papel importante na vida moderna, ao ser o

principal motor desses “desbravamentos” das áreas obscuras, ao mesmo tempo em que

orienta e baliza grande parte das nossas ações, por influir discursivamente e moldar

tanto a forma como percebemos o mundo como a forma como nos relacionamos com

ele.

1 Berger e Luckman (2010, p. 62) afirmam que “o cabedal social de conhecimento diferencia a realidade

por graus de familiaridade”.

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O que acabamos de descrever não é característica exclusiva da ciência. Ela é

um dos aspectos em jogo dentro de um fenômeno social mais amplo, que opera na base

da nossa vida cotidiana, nos fornecendo conhecimentos e informando nossas práticas: as

Representações Sociais. Para darmos um primeiro passo no sentido de balizar uma

discussão sobre a relação entre o senso comum e a ciência, escolhemos a abordagem

clássica da psicologia social, conforme consolidada por Serge Moscovici.

Do rol de representações que mais influem na modernidade, a ciência exerce

certo protagonismo. Ela conseguiu penetrar com certa capilaridade a sociedade,

constituindo uma maneira importante, senão a versão predominante, de conceber um

grande número de temas2. Porém, as formulações que explicam o mundo provêm,

evidentemente, de inúmeros segmentos da vida social, não somente da ciência. Por

exemplo, a vida diária e a convivência podem produzir, no entrechoque subjetivo e no

exercício do diálogo, conjecturas, teorias e explicações, coerentes para quem as

produz, que podem ou não fazer menção a algum sistema de pensamento formal.

As religiões constroem narrativas sobre o mundo, as quais, apesar de já

estabelecida, são relativamente abertas à atividade interpretativa, o que dá vasão ao

surgimento e uma profusão de segmentos religiosos novos, de vertentes marginais às

religiões dominantes.

O Estado produz um amplo rol de materiais na forma de políticas públicas que

buscam informar as pessoas, ao mesmo tempo em que afirmam que a contribuição

individual e cidadã de cada um é importante para a superação de problemas. E assim por

diante. Tudo isso informa um amplo conjunto de representações que se conectam, se

repelem, e que — nunca isoladas — estão em constante relação. Tratam-se de processos

complexos de construção de representações, por meio de reinterpretações de elementos

antigos, incorporações criativas de elementos externos ou permanências no tempo.

Nestes processos podem se aglutinar representações diversas, aparentemente

contraditórias ou inconciliáveis — ao primeiro olhar. Isto porque, olhando-se mais

atentamente, no sentido de apreender sua funcionalidade social, o único requisito é que,

para aqueles que a partilham, ela confira coerência àquilo que se esforça em representar.

Em se tratando de Representações Sociais é impossível, nesse sentido, abstrair uma

2 Pode-se fazer uma reflexão importante sobre qual é o imaginário que suporta essa sobrevalorização

social do saber científico, que sobressai-se discursivamente sobre as outras narrativas sobre o mundo: “o

discurso predominante sobre a ciência, suas descobertas e criações, ainda está sustentado na concepção

moderna, que sobrepõe a razão empírica a todas as demais formas de conhecimento, ao mesmo tempo em

que enaltece o seu poder sobre a natureza.” (PECHULA, 2007, p. 220).

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pureza das representações, avaliando sua validade do ponto de vista de uma lógica

formal ou sua qualidade do ponto de vista do rigor científico, mas única e

exclusivamente segundo sua efetividade na tarefa de conferir cognoscibilidade aos

objetos para os quais se direciona o pensamento que representa.

Conforme aludido, na modernidade a ciência é um elemento integrante da

forma como vemos e representamos o mundo. Inseridos neste contexto dialógico

ciência/senso comum, com frequência podemos tecer comentários, com relativa

precisão científica, sobre os riscos à saúde do colesterol ou sobre os modos de

transmissão de gripe, os males do tabaco ou do sexo desprotegido, dentre muitos outros

temas.

A ciência, portanto, influi de maneira persistente, direta ou indiretamente, na

vida cotidiana, e suas produções são visíveis em muitos aspectos da vida social.

Podemos citar alguns exemplos. No domínio tecnológico, ela produz “novidades” —

estranhas em um primeiro momento — as quais devemos, de uma forma ou de outra,

“lidar”. A ideia do novo, do estranho ou do “não-familiar”, desperta sentimentos fortes,

seja de curiosidade, desejo em experimentar ou conhecer, seja de repulsa ou negação;

no entanto, ela sempre desperta algo. Guardadas as intenções subjacentes a estas

produções (geralmente indissociáveis a uma lógica de mercado), a “novidade” é um

elemento constante no contexto moderno atual, onde a tecnologia e os avanços

científicos superam-se a si mesmos a todo o momento. No campo das ciências humanas,

a ciência produz “estranhamentos”, por meio dos quais se revelam tanto o conteúdo

social da realidade e a sua historicidade, como demonstram que ela, a nossa sociedade,

não é a única forma de realidade social possível, ao localizá-la, contrastivamente, diante

da ampla variedade social e cultural da humanidade. Por fim, no domínio do

conhecimento social ela gera “familiaridades”, ao elucidar obscuridades da realidade

para o pensamento, mediante novas Representações Sociais — aqui inclusas as

representações científicas3.

No entanto, é preciso atentar para um ponto importante, que é, na verdade, um

dos pressupostos da Teoria das Representações Sociais, logo, deste trabalho: este

processo de penetração do discurso científico na sociedade não se dá de maneira direta.

Nossa preocupação se volta, a partir de então, aos processos de mediação que permitem

a comunicação entre ciência e senso comum. Implica fazermos um esforço no sentido

3 Para Moscovici, tanto senso comum como ciência são, em essência, formas de representação social.

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de identificar os elementos que modificam estes saberes ao ponto deles adentrarem o

cotidiano. Embora não seja do escopo deste trabalho preliminar algo da mesma

envergadura e importância, esta foi uma das principais questões que animaram a

pesquisa de Serge Moscovici sobre as Representações Sociais da psicanálise na França4.

Não se angaria a mesma experiência ao lermos um artigo científico daquela

provinda da leitura de um livro de romance. Guardadas, evidentemente, as exceções,

parece que quanto mais longe uma fonte de entretenimento fica do esforço de raciocínio

mais prazerosa ela é. Absorvidos por um cotidiano que cada vez mais requer uma

participação completa, “de corpo e alma”, nas dinâmicas alucinantes do dia a dia, e

somado a isto uma ciência que cada vez mais engrossa seus conhecimentos e se

especializa, a vida moderna impõe certos limites àqueles que, depois de um dia inteiro

de trabalho, ainda se dediquem a conhecer um pouco mais sobre o mundo.

Uma verdadeira barreira linguística é estabelecida entre a ciência e o público

mais amplo — e esta é uma questão que deverá ser enfrentado pela educação no Brasil5.

Isto porque, do ponto de vista formal, a ciência possui certas características que afastam

o texto da cotidianidade do leitor comum, daquilo que ele vê e ouve nas ruas. Segundo

Nociolli (2012, p. 470-471 apud CIAPUSCIO, 1997), são algumas destas

características: o vocabulário desprovido de ambiguidades e preciso, a tentativa de

expurgar do texto qualquer referência à subjetividade ou emoção do autor, sintaxe

simples. Isso tudo constitui um tipo de discurso especializado, construído a partir de

categorias convencionadas e que requerem conhecimento prévio. Isso só é possível

porque o cientista escreve para um público específico: seus pares, que também são

cientistas. O contexto em este texto é lido possibilita que este estilo, isto é, a relação

entre forma e conteúdo, sugira objetividade, que por sua vez aflui, na linha de produção

e validação da ciência, para a posterior análise e apreciação de outros

cientistas. Guardadas as exceções, estas produções, não obstante serem praticamente

destituídas de elementos que gerem uma experiência literária, afastam o texto e a sua

possibilidade de leitura do cotidiano do leitor comum.

Desta forma, não sendo de penetração imediata no senso comum, como se

encontram nele, então, noções reconhecidamente provindas da ciência? Para além da

4 MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. 5 Para um excelente panorama crítico da educação científica no Brasil e suas dificuldades, e sobre o

problema da pesquisa como instrumento de formação científica — mesmo na educação de base — ver:

DEMO, P. Educação científica. Boletim Técnico do Senac. Rio de Janeiro, v. 36, n.1, p.15-25, jan./abr,

2010. Disponível em: <http://www.senac.br/bts/361/artigo2.pdf>. Acesso em: 17 de junho de 2016.

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disseminação da educação como elemento importante neste processo, a mídia, o

jornalismo, mais precisamente aquilo que se convencionou chamar de jornalismo

científico, exerce um papel fundamental de mediação destes conhecimentos em relação

à sociedade moderna.

Recentemente, com a eclosão de uma situação pandêmica de gripe A (influenza

H1N1), em 2009, o assunto da gripe ganhou grande projeção nos meios de comunicação

de todo o mundo. Porém, a qualidade em que fora apresentada no Brasil ao grande

público pode ser objeto de inúmeras críticas, dado o grande alarde popular fomentado

por uma recorrência muito grande, nos textos, de ideias muito potentes, tais como a

ideia de morte, letalidade da doença, ou a ideia de uma doença pandêmica que, podendo

ser transmitida a qualquer momento para qualquer um, é um risco tão presente nas

coisas mais singelas da rotina que o pânico emerge, e surge como elemento que traduz

com grande clareza uma situação de vigilância constante, de reinvenção preventiva dos

nossos hábitos cotidianos, a fim de controlar o risco de se contrair a doença.

Identificamos como uma grande oportunidade compreender a circulação do

tema da gripe nos periódicos brasileiros, buscando com isso analisar, de forma

preliminar, a mediação da ciência pelo jornalismo, ao abordar a forma de tratamento

deste tema no meio jornalístico brasileiro.

A pergunta central da pesquisa se expressa, então, da seguinte maneira: como

as revistas de jornalismo científico tratam do vírus da gripe? Quais são as estratégias de

aproximação dos temas em questão, as metáforas e as analogias, ou seja, as

Representações Sociais, utilizadas para traduzir o discurso médico-científico para uma

linguagem mais acessível ao público mais geral, leigo?

Uma vez aceita esta pergunta, escolhemos a revista brasileira de jornalismo

científico Superinteressante6 para uma análise mais localizada desta relação triangular

(ciência-jornalismo-senso comum) no que se refere ao tema do vírus da gripe. A escolha

desta revista se deu por conta de dois importantes motivos: o primeiro deles é a sua

representatividade no cenário editorial brasileiro: ela é a maior revista do gênero

(jornalismo científico) em circulação no Brasil. O segundo é o fato dela ser uma

publicação singular, cujas publicações, apesar de interessarem um público bastante

heterogêneo, são particularmente efetivas em alcançar o interesse de um público mais

jovem, dado que o formato da revista, desde seus temas — geralmente objetos de

6 Vide capítulo 4.1., dentro do qual dedicamos espaço para falar especificamente sobre esta revista.

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grande interesse e curiosidade dos jovens, como a vida sexual7 ou conspirações, por

exemplo —, até o projeto gráfico, com cores fortes e chamativas, no qual se usa um

grande arsenal de instrumentos imagéticos, tais como infográficos e ilustrações, são

muito atrativas para um público jovem.

Ela é uma revista que, desde seu início, se propõe à tarefa de divulgar ciência e

“curiosidades”. Seu estilo é muito fecundo, quase que uma exacerbação daquela

natureza a que fizemos referência, onde se busca a adequação do discurso científico

para o universo do público leigo8. Exacerbação na proporção em que adota um tom

quase paradoxal, que aglutina duas formas discursivas peculiares e que são,

aparentemente, auto repelentes: uma caracterizada pela frieza impessoal e

criteriosidade, e outra pelo calor da informalidade e o descompromisso: ciência e senso

comum. Podemos ilustrar essa convivência com a seguinte passagem, retirada de um

dos vídeos do canal da Superinteressante no Youtube, intitulado “Manifesto SUPER”:

Pelo fim dos limites. Pelo fim do pensamento binário, tosco, simplista. A

gente acredita que pode ser uma coisa e outra. Em vez de achar que é sempre

preciso escolher um lado só. Queremos buscar o melhor de tudo. Sem limites.

A nova SUPER quer ser séria e divertida. Leve e profunda. Jornalismo e

literatura. Texto e design. Impressa e digital. Organizada e surpreendente.

Tradição e inovação. 9

Este tom descontraído e coloquial, enraizado na realidade cotidiana, se reflete

profundamente na maneira como são construídas suas matérias, de discurso muito

próximo àquilo que ouvimos nas ruas: povoada por muitas metáforas e analogias.

Povoadas, pode-se dizer, por Representações Sociais.

Diante deste produto, isto é, da matéria jornalístico-científica, podemos, neste

primeiro momento, levantar algumas reflexões à luz da Teoria das Representações

Sociais. De um lado, o cientista, no processo de pesquisa, possui na memória uma

cartilha normativa que arregimenta sua atividade, que o faz consciente dos elementos

simbólicos que podem conferir ou não validade aos seus resultados de pesquisa frente

7 Noccioli, ao falar sobre o prestígio que os temas tabu possuem na linha editorial da revista,

especialmente os relativos à sexualidade, diz: “[...] o conjunto de informação científica em relação a esse

tipo de assunto, justamente por seu caráter “interdito”, acaba por provocar ainda mais a curiosidade do

público ao qual se destina: leitores jovens e interessados em informações sobre aspectos da sexualidade

humana.” (NOCCIOLI, 2010, p. 5-6). 8 É temerário fazermos uma simplificação que confira aos leigos uma pretensa falta de conhecimento ou

incapacidade de entender conteúdos científicos. Nesse sentido, entendemos, aqui, como “leigos” não

aqueles que são necessariamente destituídos de tais capacidades, mas como aqueles que não são

especialistas. 9 Manifesto SUPER. SUPERINTERESSANTE. Youtube, 2015. Disponível em

< https://www.youtube.com/watch?v=QwIPxRpQxok>. Acesso em: 07 de junho de 2016.

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ao colegiado formado por seus pares de profissão; de outro lado, o jornalista possui

tanto uma imagem ou representação do público leigo para o qual escreve10, e,

consequentemente, do que é possível de ser lido por ele — e nesse sentido, relê e

reelabora o que objetiva falar sobre ciência —, como uma imagem ou representação do

que é e do que representa a ciência — tanto o que ela representa para si (a figura do

jornalista) como para o seu leitor. É evidente, também, que em algum grau estão

entranhados os grandes interesses econômicos e políticos no estabelecimento das

pautas11.

Além disso, todos os lados desta relação também constroem representações

sobre a ciência, a atividade científica e o papel da ciência na sociedade; uma pesquisa

mais completa contemplaria todas essas dimensões do problema. Não conviria, neste

trabalho, uma genealogia que localize o cerne original de representações dessa natureza.

Suas pretensões são mais modestas. O que se representa sobre a ciência pode fazer parte

de estruturas sociais muito mais basilares de representações; para os fins deste trabalho,

o que importa é que elas existem e que, certamente, influem naquilo que lemos nos

artigos jornalísticos sobre ciência.

A revista, enquanto empreendimento capitalista, precisa fisgar o interesse de

um leitor em potencial, ou manter o interesse da pessoa que já a folheia, firmando a

cada página o interesse latente em se adquirir a próxima edição. Com a revista

Superinteressante não é diferente, e ela chega a ser emblemática nesse aspecto: suas

publicações são povoadas por imagens, infográficos e ilustrações por vezes caricatas,

jocosas, as quais remetem a uma ideia de leveza, não completamente descompromissada

com a informação, mas que não desconstitui o que o leitor está acostumado a ler e

experimentar no cotidiano — o que contrasta com a ciência, que busca descontruir as

aparências e descobrir o “oculto”12 àquilo que temos por certo ou como natural.

Nesse sentido, da parte do jornalismo, visto como parte de um processo

econômico, há um interesse orgânico em trazer para o campo de interesse do leitor

10 Para Bertolli Filho (2006, p. 17) “Uma discussão sobre o leitor torna-se fundamental, pois é a partir das

concepções nutridas sobre ele (o que implica também no conhecimento de suas necessidades) é que se

articula o texto jornalístico”. 11 Devemos reconhecer que os interesses econômicos, voltados para a produção industrial de notícias, são

um desafio real — sobretudo no contexto brasileiro, onde há baixa qualidade na educação científica —

para o estabelecimento de um jornalismo científico mais comprometido socialmente. 12 A revista Superinteressante, de certa forma, percebe esta característica “desbravadora” da ciência,

trazendo-a como um ponto de vista de fato desmistificador; no entanto, ela costuma traduzir isso

conferindo à atividade científica um caráter místico, esotérico, além de trazê-la de um ponto de vista

fortemente instrumental, como a solução por excelência de todos os nossos problemas.

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assuntos que, num primeiro momento, podem não serem tão interessantes ou acessíveis

a ele. Isto faz parte de uma necessidade constante de produção industrial de notícias; na

falta de temas que de fato interessam o público geral, fabricam-se interesses a partir de

sinalizações que indiquem que aquilo que é objeto da matéria é, de fato, do interesse do

leitor. A falta de interesse geral, por se tratar de um tema inacessível, possui razões

objetivas: as produções da ciência formam uma verdadeira barreira cultural em relação

ao público mais amplo, dado o grau com que se especializou e o conhecimento prévio

requerido para compreendê-la, devido ao seu caráter cumulativo. Desta forma, as

produções científicas, postas como matérias jornalísticas, devem ser revestidas com

certos elementos representacionais e textuais que aproximem essas produções à

realidade cotidiana mais imediata do leitor.

No cotidiano somos pragmáticos e tendemos a ver as coisas sob um ponto de

vista instrumental: “Depois que a pedra foi transformada em machado e o sílex em fogo,

o homem sempre transformou as coisas e as criaturas em instrumentos úteis”

(MOSCOVICI, 1978, p. 174). É preciso dizer, simbólica ou textualmente, que, de

alguma forma, aquilo que se apresenta na matéria jornalística é, de um lado, verdadeiro

e legítimo, e de outro que aquilo impacta ou impactará o dia a dia do leitor. Articulam-

se aqui uma representação da ciência como portadora da verdade e um ponto de vista

que vê na ciência um instrumento voltado para o aprimoramento da prática cotidiana,

com um caráter normativo, discursivo. E mais: é preciso, nesse movimento de

familiarização, fazer referência ao universo de representações do leitor, para que ele, no

processo de associação de ideias, possa ler e compreender conteúdos potencialmente

estranhos, não-familiares, tendo como guia ou ponto de partida a mediação das

representações que lhe são familiares.

A familiarização é um processo identificado pela Teoria das Representações

Sociais. Para participarmos deste mundo de coisas e fenômenos, ou melhor, de “objetos

sociais” que nos circundam necessitamos de um mínimo de organização na forma de

uma série de conhecimentos os quais efetuem dois movimentos relacionados. O

primeiro deles consiste em constituir esses objetos sociais enquanto tais, dando-lhes um

nome, separando-os em categorias, e fornecendo-lhes, com isso, uma razão de ser, uma

explicação. De outro, conferida uma definição cognitiva e inteligível, forneça uma

presença — por vezes física — no mundo, ao localizá-los em relação a outros objetos

sociais, e os posicione frente ao mundo e em relação a mim.

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Somos impelidos a pensar rapidamente quando confrontados com o estranho, e

a construir uma imagem mental sobre aquilo que nos causa estranheza. Nesse processo

de representação podem se aglutinar, para a composição de uma imagem coerente,

conforme o nosso cabedal de conhecimento, representações de várias ordens: religiosas,

econômicas, científicas, etc. Esses fragmentos da memória se aglutinam, formando a

partir do que conhecemos uma imagem coerente do desconhecido.

A ausência de familiaridade social com algum tema caracteriza inflexões

sociais importantes. Doenças que “surgem de repente”, especialmente as contagiosas,

sobre as quais possuímos algum ou nenhum conhecimento sobre, desconcertam e, no

limite, geram pânico. Cremos que situações como esta a que nos dispomos investigar

revelam um momento privilegiado onde todas as forças sociais se direcionam à

familiarização e à construção de representações. Eventos e situações de epidemia

passadas são evocados na memória coletiva, onde se recorre a certas estruturas de

representação formadas em tais contextos, de grande carga emocional, sedimentadas

com o tempo. Convém, acreditamos, fazer um mapeamento das representações que se

formam nestes processos, dando especial atenção à abordagem que a mídia escrita faz

em relação à gripe, de modificação, invenção e permanências de representações sobre a

gripe no decorrer do tempo, tendo como base empírica todas as produções da revista

Superinteressante referentes ao tema.

A estrutura deste trabalho foi dividida da seguinte maneira. No primeiro

capítulo, buscaremos trazer as principais contribuições que o estudo das Representações

Sociais trouxe para a sociologia, especificamente para a psicologia social, encabeçada

pela figura de Serge Moscovici. Contrastá-lo-emos à visão clássica durkheimiana acerca

das Representações Coletivas, a fim de ressaltar, na “nova” teoria de Moscovici, aquilo

que permaneceu e aquilo que foi reformulado, segundo o contexto atual moderno.

No segundo capítulo, de caráter teórico, levantaremos os principais conceitos

mobilizados por Moscovici para a investigação das Representações Sociais, guiando a

discussão para os principais processos sociais por meio dos quais se formam as

representações sociais, e os elementos que compõem um ambiente favorável a sua

criação na sociedade.

No terceiro capítulo, de caráter metodológico, traremos alguns apontamentos

acerca de algumas consequências importantes decorrentes de nossa escolha teórica, das

maneiras de nos aproximarmos do nosso objeto até os possíveis resultados a serem

esperados.

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No quinto capítulo buscaremos fazer, de maneira não muito exaustiva, um

levantamento sobre alguns elementos necessários a uma história recente do jornalismo

científico no Brasil, levantando algumas de suas dificuldades e o contexto editorial do

campo atualmente. Em seguida, abordaremos os aspectos do surgimento da revista

Superinteressante: seus primeiros passos, os elementos para a constituição de sua

identidade e linha editorial, e sua representatividade no contexto editorial brasileiro.

No sexto e último capítulo dedicaremos exclusivamente às análises do material

empírico. Buscaremos, a partir de uma leitura pormenorizada, confeccionar categorias

nativas à revista, relacionadas às representações associadas ao vírus da gripe, na

tentativa de identificar os movimentos de familiarização mais recorrentes do tema na

revista.

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2 O FENÔMENO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM SERGE

MOSCOVICI

As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam,

cruzam-se e cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um

encontro, em nosso universo cotidiano. A maioria das relações sociais

estabelecidas, os objetos produzidos ou consumidos, as comunicações

trocadas, delas estão impregnados. (MOSCOVICI, 1978, p. 41).

O estudo das Representações Sociais toma uma nova forma com a abordagem

da psicologia social de Moscovici — tema esse que foi posteriormente incorporado no

léxico das Ciências Humanas e da Sociologia em particular. Isto porque, ao expandir o

escopo da noção durkheiminana de Representações Sociais, ele fornece uma ótica muito

fecunda para analisarmos os processos de construção do conhecimento na esfera

pública. Para tanto, Moscovici localiza no relacionamento dialético entre as esferas do

conhecimento científico e do senso comum uma importante chave explicativa dos

processos de transformação e os dinamismos das Representações Sociais na

modernidade. Em se tratando da proposta temática desta pesquisa, esta perspectiva

fornece um rol de conceitos por meio das quais podemos identificar e interpretar o

problema da relação entre o jornalismo científico, de um lado, e as gripes virais, de

outro, a partir de uma ótica que, sobretudo, busca identificar as Representações Sociais

nas produções do jornalismo científico, em como elas se articulam com representações

correntes, do senso comum, visando uma adequação do discurso médico-científico ao

modelo de veiculação da informação para as massas.

Esta perspectiva mostra como o surgimento ou a reformulação de

Representações Sociais não se dá em um vácuo, ou surge de um nada, mas em um

universo representacional já construído — apesar de em constante mudança — e que é,

inevitavelmente, resgatado no momento deste surgimento ou mudança. Isto está

bastante atrelado à importância da memória coletiva nestes processos, e a certa

historicidade das Representações Sociais, as quais devem ser consideradas. A memória

coletiva guarda uma experiência vivida coletivamente, que, por sua vez, é definida pela

sua inserção em um momento histórico particular.

As representações são produto de contextos históricos e sociais específicos.

São, por isso, tanto mutáveis com o passar do tempo, logo, podem ser relidas,

reinterpretadas, modificadas, como podem constituir verdadeiras estruturas de

representação mais persistentes no tempo. Suas raízes na história de uma sociedade não

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as congelam no tempo, mas convidam, segundo as alternâncias e eventualidades vividas

coletivamente, para que se mudem representações não mais adequadas; ao mesmo

tempo em que, confrontadas com o inaudito e o inesperado, apontam em direção a

certas estruturas de representação mais permanentes, trans-históricas, como fontes de

saber e interpretação do evento extra-ordinário.

O jornalismo que desbrava um conteúdo científico se orienta segundo aquelas

representações mais comuns, não necessariamente estruturais, mas compartilhadas por

um grande número de pessoas e identificáveis por qualquer um que se volte para a

leitura do seu texto. Elas fornecem, no discurso jornalístico-científico, uma

continuidade entre o cotidiano e aquilo que é lido, na medida em que não rompem — e

em grande medida reforçam — com aquilo que vemos e ouvimos no dia a dia. Assim,

por exemplo, podemos ver como um horizonte que, no desempenhar de sua função, o

jornalista tenta traduzir, ou melhor, decodificar uma representação científica formulada

a partir de conhecimentos e categorias que fazem sentido dentro de um universo

científico, mas que pode não fazer o seu sentido pleno para o leitor “leigo”, que não

partilha desse mesmo universo especializado. Neste movimento, onde o jornalista

transita pelas não-familiaridades tentando traduzi-las em termos familiares, supomos

que sua narrativa seja influenciada por representações correntes, de senso comum, por

analogias, metáforas e figuras de linguagem correntes que adequam o discurso sobre

ciência produzido ao contexto cotidiano do leitor. Estes elementos somados resultam

em matérias fáceis de ler, descompromissadas com o rompimento da continuidade entre

o discurso e a realidade vivida, mas que, acima de tudo, geram a sensação de que o

leitor está se informando sobre a ciência. Isso está, é claro, associado ao fato de ele

buscar adequar seu discurso à imagem que tem do seu público, ancorando-se em

representações familiares e, presumidamente, inteligíveis pelo seu público, que o faz

presumir o que faz e o que não faz sentido ao seu público alvo. É possível até mesmo se

inferir que esta relação não é meramente presumida, uma vez que aquilo que o jornalista

credita possuir certa inteligibilidade coincide com aquilo que o leitor considerará

inteligível, na medida em que ambos partilham do mesmo conjunto de Representações

Sociais, isto é, partilham de “um mundo que é comum a muitos homens” (BERGER;

LUCKMAN, 2010, p.40), dada que sua eficácia se assenta em um consenso social.

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2.1 Trajetórias do conceito de “Representação Social”

Faz-se necessário, neste momento da exposição, para traçarmos um panorama

do contexto em que se pode dizer da “novidade” trazida pela Teoria das Representações

Sociais, uma breve recapitulação da abordagem clássica das Representações Coletivas,

consagrada por Durkheim, contrastando-a com aquela mais moderna, proposta por

Moscovici.

Com a sociologia de Durkheim foi formada a noção de que as Representações

Coletivas são uma categoria analítica, o resultado do pensamento e do método

sociológico que se direciona a uma realidade composta por fatos sociais e que busca

alocá-los nesta ou naquela categoria abstrata, com a finalidade de compreendê-la. Foi

amplamente criticada — por inúmeros autores — a presença, na sociologia de

Durkheim, de certa abordagem que, sob influência das tradições aristotélicas e

kantianas, confere aos fatos sociais um caráter estático. Este viés é, entretanto,

compreensível, dentre outros motivos, porque ele estava preocupado com as

funcionalidades mais imediatas, com os elementos da sociabilidade que, comunicando-

se entre si, produziam o “cimento” que impede que a sociedade se desconstitua e se

fragmente em indivíduos atomizados no decorrer do tempo. Além disso, é relevante

ressaltar que, em contraste com a sociedade moderna, esse tipo de abordagem foi

possível, na medida em que foi inscrita em um contexto histórico onde a tradição,

embora não engessasse a sociedade, impunha certos limites a uma mudança mais

acelerada e onde as sociedades eram menos complexas.

Moscovici nota esta diferença sensível, e propõe, para sinalizar um

rompimento com a visão tradicional de Representações Coletivas de Durkheim, o

conceito moderno e expandido de Representações Sociais. Segundo Guareschi (2000, p.

196)

Moscovici tinha consciência que o modelo de sociedade de Durkheim era

estático e tradicional, pensado para tempos em que a mudança se processava

lentamente. As sociedades modernas, porém, são dinâmicas e fluídas. Por

isso o conceito de “coletivo” apropriava-se melhor àquele tipo de sociedade,

de dimensões mais cristalizadas e estruturadas. Moscovici preferiu preservar

o conceito de representação e substituir o conceito “coletivo”, de conotação

mais cultural, estática e positivista, com o de “social”: daí o conceito de

Representações Sociais.

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Assim, na concepção clássica, as Representações Sociais eram uma explicação

auxiliar para um conjunto de fenômenos sociais, sobrando espaço reduzido para uma

análise mais detalhada dos mecanismos internos, da estrutura e do funcionamento das

Representações Sociais em si mesmas: em Durkheim, as Representações Coletivas são

como o átomo o é para a física, isto é, irreduzíveis em partes mais elementares. Há um

aspecto convencional das representações que é pouco explorado em Durkheim, dada a

historicidade de suas ideias. Esse aspecto pouco explorado abre espaço para olharmos

não somente para as dinâmicas internas das Representações Sociais, que permitem a

construção e o estabelecimento de certo consenso, como os processos de mudança e

inovação das formas de pensamento e representação que emergem a todo instante na

sociedade moderna, e que impossibilitam que se fale em uma única representação

social, estática e bastante abrangente, mas em várias. E mesmo ao nível individual, a

coexistência de representações díspares não constrange uma à existência da outra:

podemos ter várias representações ao mesmo tempo, relativamente autônomas umas em

relação às outras. Nos dias de hoje, nesse sentido, poucas representações são

verdadeiramente coletivas13.

Esta diferença elementar nos previne de uma visão que privilegie o aspecto

sincrônico da vida social em detrimento do diacrônico, dos processos sociais de

mudança e de formação de novas Representações Sociais ao longo do tempo. Esta

diferença importante reside, em síntese, no tratamento da questão: Moscovici propõe

abordar como fenômeno o que era visto como conceito. (MOSCOVICI, 2007, p. 45).

Vistas como fenômenos, as Representações Sociais deixam de ser um instrumento de

explicação abstrata, e passam a ser algo que deve ser localizado como componente da

realidade, e, portanto, descrito e explicado.

Desta feita, as representações são um elemento necessário das relações sociais,

a verdadeira linguagem por meio da qual se dá a comunicação na vida cotidiana. Por

isso, em uma interação aparentemente dialógica, quando falamos sobre algo — isto é,

sobre um objeto — com alguém, há um terceiro elemento que serve de mediação, nesta

relação, na verdade, triangular: as Representações Sociais. Não há um acesso direto do

sujeito ao objeto, mas uma relação mediada: só vemos, em certa medida, o que as

Representações Sociais nos permitem ver. Isto porque ao pensarmos um objeto, não

13 Moscovici, no entanto, ao conceber uma tipologia das Representações Sociais, circunscreve a ideia de

representações hegemônicas, que nada mais são do que as Representações Coletivas, presentes em

Durkheim (SÁ, 1998) — embora haja uma diferença em relação a Durkheim: elas não são estáticas, mas

passíveis de mudança.

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pensamos um objeto “puro”, mas um símbolo do objeto, sua representação; na ausência

de uma representação que o constitua enquanto objeto, torna-se ausente o objeto

mesmo.

As Representações Sociais exercem uma influência imponente no plano da

vida individual, prescrevendo e direcionando nossas ações. Elas fundam narrativas e

crenças, conhecimentos — científicos ou não — e formas de explicação do mundo e da

vida em sociedade as quais, de um lado, fornecem ao indivíduo a visão de um mundo

organizado, classificado/nomeado, logo, cognoscível, sem as quais ele ver-se-ia

desorientado e incapaz de posicionar-se socialmente nele; de outro, engendram entre os

indivíduos que comungam das mesmas Representações Sociais laços de solidariedade e

um sentimento de pertencimento, que sinalizam, no plano subjetivo, que eles “vivem no

mesmo mundo”. Por servirem como um norte, por meio do qual as pessoas orientam

suas ações, as Representações Sociais são, também, direcionadas para a prática, para o

estabelecimento de identidades sociais e o reforço de identidades dos grupos. Estes

aspectos fundamentais das Representações Sociais devem ser mais detidamente

explicados.

Para Moscovici as Representações Sociais exercem duas funções

fundamentais: convencionalizar as coisas com as quais nos relacionamos e prescrever

nossas ações, normatizando-as.

A primeira delas é fornecer aos objetos, pessoas ou acontecimentos, uma

linguagem comum, logo acessível e reconhecível pelas pessoas ou grupos em

comunicação, convencionalizando-as. Nesse sentido, as representações servem à

categorização do mundo de maneira a torná-lo cognitivamente inteligível e

comunicável. Elas fornecem uma espécie de “atlas” simbólico, por meio do qual as

pessoas se orientam e podem ver, para além da banalidade de uma luz vermelha, por

exemplo, um sinal que exige que ela pare o seu veículo. A antropologia fornece muitos

exemplos etnográficos de comportamentos humanos cujas convenções sociais variam

drasticamente de cultura a cultura — e até mesmo dentro de uma mesma cultura,

variando de grupo para grupo. Moscovici esforça-se em mostrar como o mundo de

elementos que experimentamos não é expressivo por si mesmo: ele se expressa somente

quando somado àquele terceiro elemento a que fizemos referência: às Representações

Sociais, que o controla, o separa em categorias e o envolve em significação. Sem a

mediação das Representações Sociais, este mundo fragmentar-se-ia em elementos

estranhos, ininteligíveis e, sobretudo, incomunicáveis: “Tudo o que permanece

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inclassificável e não rotulável parece não existente, estranho e, assim, ameaçador...”

(FARR, 1984, p. 30 apud GUARESCHI, 2000, p. 201). A inexistência de

Representações Sociais poria termo à própria possibilidade de socialização, na medida

em que inexistiria uma linguagem comum.

Nesse sentido, dada nossa demanda por um mundo coerente, podemos pensar

que as Representações Sociais fornecem certa segurança ontológica, na medida em que

geram um mundo significativo, aparentemente definitivo e sem uma perspectiva de fim

iminente, a partir da relação simbólica entre a experiência vivida e as Representações

Sociais preexistentes. A esfera da prática cotidiana, nesse sentido, possui uma

participação importante no sentimento de que “a vida continua”. Estendendo ainda mais

essa visão, as Representações Sociais criam uma segunda natureza: elas reforçam e dão

embasamento a uma realidade social, lhes conferindo uma “aura” — confirmada pela

prática cotidiana — que assevera para a consciência que ela é assim porque

necessariamente é assim, ou seja, naturalizando-a.

Isto não significa dizer que o indivíduo assimila passivamente as imposições

externas. Em Durkheim, porém, inserido naquele contexto onde se buscava traçar um

campo sociológico, firmar a legitimidade da sociologia frente às ciências já constituídas,

a sociedade é de uma natureza diferente da realidade individual. Isto confere à

sociologia um objeto diferente das ciências naturais e psicológicas, pois afirma que,

mesmo a sociedade sendo constituída por indivíduos, os fatos sociais possuem uma

natureza sui generis, que é diferente da mera soma de indivíduos isolados. Isto, também,

afirma que os fatos sociais possuem uma externalidade que independe das consciências

individuais. Por outro lado, Moscovici, flexibilizando esta noção de Durkheim, acredita

que as Representações Sociais, antes de figurarem uma narrativa pronta, irretocável e

inalcançável, que exige que o indivíduo adeque suas ações a elas, as Representações

Sociais fornecem o “alimento para o pensamento” (MOSCOVICI, 2007, p. 45), de

modo que a mudança e a adaptação, principalmente na modernidade, são características

importantes do decurso temporal das representações dentro dos processos sociais. Elas,

ao contrário de enraizar, mobilizam, “chamam” para o debate, transformando os

membros passivos em ativos, em direção às ações coletivas e respostas em forma de

Representações Sociais. Mesmo no ato de comunicar uma representação, uma pessoa

pode reavaliar o que anteriormente pensara e dissera, adaptando suas ideias a um

contexto adverso ou à ocasião oportuna. Há uma concomitância, por assim dizer, que

permite a mudança na representação no decurso do próprio ato de representar.

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A teoria de Moscovici abre uma brecha importante para a força criativa e

contestatória individual e do grupo, que pensa sobre si mesmo e sobre os outros, e que

podem produzir e comunicar suas próprias representações particulares segundo os

impasses e questões que eles mesmos colocam. Para Moscovici, aliás, a noção de

conflito assume uma importância fundamental na Teoria das Representações Sociais,

pois ela explica, em grande medida, os dinamismos e os processos de mudança nas

ideias e do pensamento de uma época, ao passo que também imuniza a análise de

qualquer interpretação que torne estática a atividade social e individual, que conceba,

tanto indivíduo como sociedade, como entidades que somente se reproduzem e

perduram no tempo, mas que não se reinventam ou se transformam. Há, segundo ele,

uma tensão, ao nível cultural e institucional, entre forças que conduzem à

individualização e outras que conduzem à socialização. Dado o substrato social das

Representações Sociais, elas trazem consigo as marcas desta tensão e, com efeito, sua

funcionalidade reside no fato delas conformarem e manterem esta relação nos limites do

suportável. O papel das representações partilhadas reside, em suma, em assegurar que a

coexistência indivíduo-sociedade seja possível. (MOSCOVICI, 2000).

As Representações Sociais são, também, a ponte que liga o indivíduo ao

ambiente social em que vive, e em grande parte é capaz de explicar o momento

contemporâneo de emergência de um pluralismo de representações, ao localizar tanto

indivíduo como sociedade em um vir a ser marcado pelas mudanças. Uma consequência

importante de estabelecer tal ligação é clarear o acesso dos indivíduos ao universo

social, fomentando essas próprias mudanças:

A necessidade de fazer da representação uma passarela entre os mundos

individual e social, de associá-la, em seguida, à perspectiva de uma sociedade

em transformação, estimula a modificação em questão. Trata-se de

compreender não mais a tradição, mas a inovação; não mais uma vida social

já feita, mas uma vida social em vias de se fazer. (MOSCOVICI, 2001, p.62)

Vistas como processos sociais, ao invés de produtos finais ou categorias

abstratas do pensamento, as Representações Sociais assumem um caráter cambiante,

modificando-se e reformulando-se com o passar do tempo, tendo a atividade social

cotidiana, isto é, a prática comunicativa, tanto dos grupos como dos indivíduos, como a

força motriz do surgimento e da profusão de representações de toda a sorte. Elas são, a

um só tempo, momentos de uma construção, que constantemente se reinventa, e formas

adquiridas, advindas de presenças mais estruturais da sociedade:

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Reconhecendo-se que as representações são, ao mesmo tempo, construídas e

adquiridas, tira-se-lhes esse lado preestabelecido, estático, que as

caracterizava na visão clássica. Não são os substratos, mas as interações que

contam. (MOSCOVICI, 2001, p.62).

Assim, se por um lado os sujeitos são inscritos em realidades sociais e

históricas, de outro sua atividade prática renova a representação através da experiência:

“O sujeito psíquico, portanto, não está nem abstraído da realidade social, nem

meramente condenado a reproduzi-la”. (JOVCHELOVITCH, 2000, p. 78).

Com efeito, também estão imbricadas nos processos de relacionamento entre

representações relações de poder. Mesmo a mídia é um exemplo concreto de como as

representações de grupos relativamente pequenos têm o poder de se disseminar pela

sociedade, se misturar criativamente com ideias populares, com outras ideias vindas da

filosofia ou ciência, por exemplo, e virar algo componente do senso comum ou até

mesmo a visão hegemônica acerca de algum assunto. Vale dizer que o aspecto moderno

de multiplicação das representações é uma tendência consolidada, que vem na esteira de

um processo histórico e filosófico muito mais amplo — abordado, com grande

relevância, por Max Weber — de fragmentação da razão, das esferas de valor, onde as

instituições que centralizavam as questões acerca da legitimação e justificação do

conhecimento, tais como a Igreja e o Estado, foram diminuídas dramaticamente em sua

influência, de modo que uma miríade de novas representações (capitaneadas pela

disseminação da alfabetização e o surgimento da mídia de massa) e visões de mundo

viram solo fértil num ambiente de ampla descentralização e multiplicação dos centros

de poder que exercem estes instrumentos de legitimação (DUVEEN, 2007). O papel do

indivíduo neste contexto de descentralização é um aspecto importante desta

problemática. Grande parte da crítica contundente de Moscovici à abordagem clássica

durkheimiana reside na passividade que este último conferiu ao indivíduo, ao ver nele

um depositário das ideias e imposições de instituições sociais dominantes (Estado,

Igreja, até mesmo classe social). Além disso, a perspectiva moscoviciana dá espaço para

olharmos para o conflito entre grupos, visto que o consenso absoluto, modernamente

não sendo mais possível, incendeia um ambiente de alta combatividade entre

Representações Sociais: “[...] essa era se tornará conhecida como a era da representação,

em cada sentido desse termo.” (MOSCOVICI, 2007, p. 41).

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Para Moscovici as ideias constituem verdadeiras materialidades na vida

comum, isto é, efetuam mudanças visíveis na realidade. Elas são um norte ou ponto de

referência, que por meio de processos de comunicação e emergência ou reintepretação

de representações pré-existentes, deixam de ser elementos do pensamento, e passam a

ser elementos da realidade, “objetos sociais”, que podem substituir, com grande

vivacidade e simbolismo, a própria realidade. Vale ressaltar que, para Moscovici, as

Representações Sociais não são um retrato fiel e preciso da realidade, e é precisamente

este aspecto que constitui a sua riqueza e alteridade. Elas são construções coletivas que

podem se referir a outros universos simbólicos ou realidades que não são,

necessariamente, a realidade concreta, a mais imediata.

A segunda funcionalidade das Representações Sociais é que elas têm um

caráter prescritivo bastante forte. Esta ideia deve bastante àquilo que Durkheim

inaugurou sob o conceito de fatos sociais. Para este, os fatos sociais são formas de

pensar e agir que se impõe com autoridade moral ao indivíduo, normatizando sua

prática. Eles emergem da sociedade como um verdadeiro construto a “pairar sobre

nossas cabeças”, e se firmam, por isso, como externalidades independentes da vontade

individual e dos grupos que lhe deram origem. Diferentemente de Durkheim, para

Moscovici este construto não se constitui, como em Durkheim, numa natureza diferente

do grupo que a originara, localizando-se para fora dele na realidade sui generis da

sociedade. Segundo a interpretação de Márcio de Oliveira

[...] para Moscovici, as representações nunca seriam de “outra natureza”: elas

seriam da natureza mesma dos grupos sociais que as criam, e sua eficácia –

tanto prática como simbólica – dependeria dessa inserção, e não poderia

jamais ter um sentido universal. (OLIVEIRA, 2004, p. 183).

Moscovici, além de quebrar com a ideia de uma sociedade que se projeta para

fora das existências individuais e grupais, em uma entidade inacessível, alude para a

necessidade de se pensar que as representações são fruto de múltiplos grupos —

sociedades menores — dentro de uma sociedade maior (OLIVEIRA, 2004), ao invés

uma sociedade unívoca a produzir Representações Coletivas.

Por isso, é bastante pequena, em Durkheim, a força que a atividade prática da

sociedade possui em acessar e, principalmente, modificar esta “externalidade” com o

passar do tempo, dado que, na sua teoria, prestigia-se a sincronia, isto é, as razões de

sua efetividade em um dado momento histórico, em detrimento da diacronia dos fatos

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sociais — suas metamorfoses com o passar do tempo. Para Moscovici, ainda sob esta

influência, as Representações Sociais oferecem uma espécie de “cartilha” prescritiva

pronta, um “guia de primeira viagem”, que já encontramos feita quando nascemos, e

que exerce uma grande força sobre nós em toda a nossa vida, e que, não obstante,

permanecerá mesmo quando deixarmos de existir.

O importante é que elas sinalizam não somente o como devemos pensar, mas o

quê devemos pensar. Segundo ele, não podemos pensar sobre aquilo sobre o que não há

uma representação, visto que sem uma palavra referente ao objeto, um nome, não

podemos falar sobre ele. E também, na medida em que classificam a realidade, elas tem

uma função cognitiva importante — até mesmo no sentido fisiológico —, visto que são

capazes de

[...] cortar o fluxo incessante de estimulações para se conseguir chegar a uma

orientação e uma decisão sobre quais os elementos que nos são sensorial e

intelectualmente acessíveis. (MOSCOVICI, 1978, p. 113).

Berger e Luckman (2010) estudaram o fenômeno da cotidianidade sob a ótica

de uma fenomenologia do dia a dia. Na vida rotineira somos capazes de perceber e

pensar sobre um grande conglomerado de objetos, pessoas e acontecimento sem, no

entanto, um esforço penoso do pensamento, visto que partimos de um ponto: os

conhecimentos de senso comum, que dão forma e constroem esta realidade social:

A realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por

uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes da minha

entrada na cena. (BERGER; LUCKMAN, 2010, p.38. Grifos nossos).

Demonstraremos melhor o processo da construção de uma familiaridade com o

nosso meio social ao abordarmos os conceitos moscovicianos de ancoragem e

objetivação, e o papel que eles têm no processo de familiarização.

No contexto moderno, principalmente, apesar de surtirem uma influência

duradoura, as Representações Sociais estão em constante mudança, pois a todo o

momento elas são “re-pensadas, re-citadas e re-apresentadas” (MOSCOVICI, 2007, p.

37) por pessoas e grupos. Embora essas representações possam adquirir certa

externalidade estrutural, sedimentando-se em estratos mais profundos da memória

coletiva, o indivíduo e os grupos podem acessá-las criativamente, ou exercer influência

significativa no sentido de muda-las. Neste movimento Moscovici mostra um universo

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da prática pouco explorado por Durkheim. É através da atividade prática e em meio às

alternâncias e desafios impostos pela vida do dia a dia que as coletividades modificam

suas representações, visando a adequação ao contexto adverso ou à necessidade.

Além disso, é nas relações que está a chave para a mudança nas

Representações Sociais, que se dá tanto com os indivíduos entre si, dos grupos entre si,

quanto com todos em relação à realidade social mais ampla, suas contradições inerentes

e suas contínua mudança14. Há, neste cenário, uma interação entre o individual e o

social que confere ao fenômeno das Representações Sociais o objeto por excelência da

psicologia social:

Elas [as representações] possuem um aspecto impessoal, no sentido de

pertencer a todos; elas são a representação de outros, pertencentes a outras

pessoas ou a outro grupo; e elas são uma representação pessoal, percebida

afetivamente como pertencente ao ego.” (MOSCOVICI, 2007, p.211)

Ao prestigiar esse aspecto dialógico das representações, a comunicação assume

uma importância central na teoria de Moscovici: é através dela, do exercício da

linguagem, que se veiculam esses saberes e se formam novos. Nesse sentido, as

representações são capazes de “corporificar ideias” (MOSCOVICI, 2007, p. 48), na

medida em que criam realidades compartilhadas.

14 Há, entretanto, um aspecto ideológico das Representações Sociais, que é apreendido por Moscovici, no

qual essas mesmas contradições da sociedade podem ser apaziguadas por Representações Sociais

contemporizadoras. A explicação é simples: a natureza das representações é social. Seu intuito é

conservar a realidade no sentido da manutenção de uma lógica cotidiana, firme, sem aludir a um fim ou

desestabilização daquilo que temos como familiar: “O caráter conservador da ancoragem que visa a

familiarização se deve, justamente, ao caráter sociocêntrico , sociomórfico delas.” (MOSCOVICI, 2007,

p. 207). Caberia aos críticos de Moscovici decidir se é este um problema da teoria ou da própria realidade

social. Mesmo se o problema refere-se a segunda alternativa, a própria teoria de Moscovici afirma —

mesmo que indiretamente — que a solução das mazelas e problemas sociais passa, inevitavelmente, por

uma mudança nas Representações Sociais que embasam a invisibilização destes conflitos.

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3 ASPECTOS TEÓRICOS DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

3.1 O objeto por excelência da Psicologia Social: ciência versus censo comum

As Representações Sociais fornecem uma linguagem comum, por meio da qual

podemos nos comunicar com os outros. Servem a propósitos cognitivos, na medida em

que ordenam o mundo, separando o imenso fluxo de objetos com os quais lidamos

cognitivamente em categorias distintas. Servem, também, como elementos para a

construção e manutenção das identidades dos grupos, dado que “criam tanto seus laços

de solidariedade, como suas diferenças.” (MOSCOVICI, 2007, p. 160).

Dentro desta realidade comum, ramificam-se, na teoria de Moscovici, duas

realidades distintas, mas que dialogam constantemente: o universo consensual e o

universo reificado. Elas representam a dialética dos dois lados a que nos propusemos

investigar: senso comum e ciência, respectivamente.

3.1.1 O universo consensual

O universo consensual é basicamente o da nossa vida cotidiana. Em nossa

sociedade (democrática), podemos: tecer comentários, exercer a faculdade de opinar,

discordar, teorizar sobre a vida e a sociedade, tudo isso livremente. Em instituições

como bares, clubes e associações, pessoas e grupos conversam. A atividade recorrente

de comunicação gera, com o tempo, “nós”, laços, uma base comum de significação

entre seus praticantes, de modo que símbolos, representações, ideias, etc., na medida em

que são mutuamente reconhecidas, podem ser partilhadas, comunicadas. O importante,

aqui, é que o caráter partilhado das representações não se dá por conta de sua autonomia

ou externalidade, ou porque sejam abrangentes, mas porque “são construídas e

relacionadas através da comunicação”. (MOSCOVICI, 2007, p. 209) É principalmente

no universo consensual que as vinculações se fortalecem e se produz aquele “cimento”

que era a principal preocupação de Durkheim; as práticas de comunicação oxigenam

relações que, deixadas ao relento, “morreriam”. Nesse universo, explicações plausíveis

e ideias partilhadas dão forma e significado à vida comum, e por não requererem uma

reflexão rigorosa quanto a sua natureza, respondem a interesses mais imediatos, que

requerem representações acessíveis a qualquer um que as procure. Podemos

exemplificar isso com um acontecimento banal tipo um acidente de trânsito. Ele, como

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qualquer acontecimento, é fruto de relações causais altamente complexas. Assim, neste

acidente hipotético, a imprudência ou a negligência, ou melhor, a condição subjetiva

mesma do causador do acidente está atrelada a uma briga entre cônjuges, que produziu,

por sua vez, uma postura errática do motorista, que se viu imerso no mundo dos

pensamentos e se esqueceu da intensa demanda por atenção que o trânsito requer; a

briga do casal, o tema que a insuflou, está ligado a dificuldades financeiras, ligadas à

recém perda de emprego do marido, e assim por diante (e isso sem levar em conta as

condições de sinalização da via, o estado subjetivo do outro acidentado, etc.). No

entanto, andando na rua e subitamente confrontados com a situação adversa em questão,

somos impelidos a dar uma resposta contundente, que confira, de um lado, um sentido

ao acontecimento, e, logo, nos exige uma posição de valor em relação a ele, e de outro

uma explicação. Mesmo se optarmos em não opinar sobre o ocorrido e seguirmos

andando, esta seria uma forma de posicionamento social diante do fato. Não seria

exagero dizer que uma resposta ao acidente é quase automática, visto ela não ser

necessariamente consciente. Ela é, também, individual; porém, não se trata de um

indivíduo isolado: suas respostas são expressas por alguém inscrito em uma situação

social definida historicamente, e manifesta certas tendências e saberes presentes nos

grupos dos quais participa. Dessa forma, o que se ouve de “curiosos” nas redondezas de

um acidente nunca é um exaustivo relato daquela complexa e — convenhamos —

“chata” e sem graça teia causal, mas algo forte, significativo e categórico, às vezes

inflamado: “ele veio como um louco, e nessa velocidade poderia ter matado muita

gente!”. Em suma, as Representações Sociais são uma forma de conhecimento prático,

que também envolve o domínio emocional das pessoas: elas são “estruturas cognitivo-

afetivas” (SPINK, 1994), onde uma realidade não é analiticamente reduzível à outra,

mas complementares: razão e emoção andam juntas. É aqui, precisamente, no universo

consensual que residem, exclusivamente, as Representações Sociais.

3.1.2 O universo reificado

No lado oposto ao universo consensual, o universo reificado está ligado às

especializações, ao mérito e a autoridade que cada um tem de falar sobre x ou y tema. É

nele, amiúde, que a ciência se inscreve. Neste universo, o evento descrito mais acima,

do acidente de trânsito, almejar-se-ia destrinchar o fato em seus mais singelos

pormenores, em uma linguagem precisa, técnica e “descolorida”. Aqui a sociedade é

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vista como composta de indivíduos desiguais, cuja desigualdade se refere a diferenças

de papéis e classes, ou, em outros termos, “quem pode falar do quê”. Há uma menor

fluidez, se compararmos ao universo consensual, e há, por conseguinte, uma maior

rigidez quanto a adequação de comportamentos, fórmulas linguísticas e informação

apropriadas para cada circunstância. Essa menor fluidez em relação ao universo

consensual se dá porque, no último, as representações formam verdadeiras “redes” de

ideias, metáforas e imagens que são associadas livremente e sem uma regra formal, isto

é, alheias ao domínio do método e da teoria. Por conseguinte, se por um lado acessamos

o universo consensual através das Representações Sociais, de outro é através das

ciências que compreendemos o universo reificado.

Por fim, o universo consensual e o reificado se influenciam mutuamente. O

conceito de Themata de Moscovici busca problematizar justamente o como o senso

comum — o universo consensual — interfere decisivamente no campo científico — o

universo reificado. Para ele, há uma primazia das Representações Sociais sobre o

universo reificado. Os Themata, ou processos de tematização, são ideias profundamente

ancoradas no imaginário de certos grupos: “ideias ambiente”, de modo que, na ciência,

eles constituem um Themata científico, na medida em que os temas e os resultados da

reflexão da ciência são moldados pelas Representações Sociais pré-existentes.

O universo reificado, por sua vez, penetra em vários interstícios do universo

consensual. Principalmente a ciência, no contexto moderno, fornece um amplo leque de

saberes e conhecimentos os quais, embora possam perder, neste deslocamento, aquela

rigidez conceitual própria do universo reificado, incorporam-se criativamente às

Representações Sociais existentes, constituindo maneiras enriquecidas, socialmente

efetivas de se pensar e categorizar o mundo e os seus fenômenos.

3.2 Cognição social: por que se formam as Representações Sociais?

Já aludimos a uma das propriedades cognitivas das representações, que é gerar

um mundo coerente no qual podemos viver em meio a outros com o sentimento de

segurança, pertencimento e sentido. Não obstante, existe um ambiente favorável para o

desenvolvimento de Representações Sociais, dentro do qual certas condições ensejam a

sua elaboração ou retrabalho, e que deve por nós ser levantado.

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Em seu estudo sobre as representações da psicanálise na sociedade francesa da

década de 1950-60, Moscovici diz o seguinte sobre o processo de transformação de

conteúdos fornecidos pela ciência:

Esse investimento15 deve ser entendido, em primeiro lugar, no sentido de uma

busca incerta, contornando e tateando o objeto para ver o que ele tem de

insólito, de estranho. [...] No decurso desta domesticação, o objeto é

associado a formas conhecidas e reconsiderado através delas. (MOSCOVICI,

1978, p. 174).

A seguir, para explicar as importantes consequências deste processo, ele alude

para dois aspectos centrais, capazes de explicar com grande clareza o movimento de

familiarização e a incorporação e criação de novas Representações Sociais:

O dispêndio de energia que o mecanismo de investimento de um objeto social

acarreta integra-o no campo das produções do grupo ou do indivíduo.

Durante esse trabalho, ele constitui-se em fórmula capaz de resolver os

problemas ou de exprimi-los. A psicanálise torna-se um sistema de

interpretação e transforma-se numa linguagem que permite comunica-los.

Nesse estágio, ela deixa de ser aquilo “de que se fala” para se converter

naquilo “através de que” se fala”. (MOSCOVICI, 1978, p. 175. Grifos

nossos).

Assim, quando entramos em contato com uma nova forma de conhecimento, o

esforço em “tateá-la”, tentando reconhecer-lhe aquilo que tem de estranho, implica em

um “pensar sobre”, onde nossa consciência a “coisifica”, incorporando-a frente aos

outros objetos que conhecemos, e a traduz, na forma de imagens concretas, aquilo que é

conceito. A partir de um movimento associado, traçamos uma ligação entre este

elemento estranho e aquilo que conhecemos, e estas imagens concretas se traduzem,

novamente, em formas de pensar, categorizar e, até mesmo, “ver” o mundo: se

incorporam aos instrumentos que dispomos para interpretar a realidade e seus

problemas. Por isso, com a prática, elas passam de objetos sobre os quais se pensa, para

um componente, algo que faz parte do nosso conjunto de conhecimentos, isto é, uma

linguagem, ou “meio” através do qual se fala sobre algo.

Assim, para clarear a função das Representações Sociais na vida social,

Moscovici nos fornece a seguinte premissa: “[...] a finalidade de todas as representações

é tornar familiar algo não-familiar, ou a própria não-familiaridade”. (MOSCOVICI,

15 O investimento do qual ele fala é uma “aposta” que a sociedade faz em relação a certo conteúdo

científico; aposta porque eles podem tanto ser adotados e incorporados às formas conhecidas, ou

rejeitados.

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2007, p. 54). Assim, é neste estado de inflexão, onde se efetua a passagem do não-

familiar para o familiar, que se revelariam, segundo a teoria de Moscovici, dois

momentos de um mesmo processo de produção de Representações Sociais: a

objetivação e a ancoragem.

3.2.1 A objetivação

Quando pensamos em algo criamos uma imagem deste algo, tornando-o um

objeto. Em última instância, o pensamento, por si só, não existe se não em referência a

alguma coisa:

A consciência é sempre intencional; sempre “tende para” ou é dirigida para

objetos. Nunca podemos apreender um suposto substrato da consciência

como tal, mas somente a consciência de tal ou qual coisa. (BERGER;

LUCKMAN, 2010, p. 37).

Pode-se inferir que, para que a consciência “pense”, é necessário um objeto

constituído enquanto tal. Assim, a objetivação coloca, ou reproduz, o elemento não-

familiar entre as coisas que nós podemos ver e tocar, isto é, no mundo dos objetos

preexistentes.16 Opera-se, ao nível do imaginário, um transporte dos elementos objetivos

para o meio cognitivo, onde podemos pensá-lo. Ou seja, efetua-se uma transição onde a

imagem deste objeto é assimilada e deixa de ser um elemento do pensamento, e passa a

constituir a própria realidade. Ao mesmo tempo, adquire-se certa distância em relação a

ele, de modo que reabsorvê-lo cognitivamente torne-se possível. No caso de um

universo teórico como a psicanálise, a objetivação significa “transplantar para o nível da

observação o que era apenas inferência ou símbolo”. (MOSCOVICI, 1978, p. 111).

O processo representacional, para Moscovici, no tocante ao momento em que

estabelecemos o primeiro contato com um conceito do universo reificado, implica num

processo de “percepção” do conceito, onde, por conta deste fato cognitivo, tal conceito

torna-se objeto da consciência que o percebeu.

Há, também, outro importante aspecto da objetivação. Na medida em que

incorporamos o conceito ao nosso dia a dia e conferimos a ele uma presença física,

passamos a percebê-lo como qualidade intrínseca do próprio objeto, e não mais como

16 E por isso que, em última instância, na teoria de Moscovici, sem uma representação sobre, não existe o

objeto passível de ser pensado, manipulado, controlado. O controle racional sobre os objetos é uma das

premissas para a elaboração de representações.

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uma formulação do pensamento. Moscovici diz, em relação à penetração de noções

psicanalíticas na sociedade francesa: “[...] já não se diz apenas que um indivíduo é

teimoso ou brigão; diz-se também que é agressivo ou recalcado. [...] Naturalizar,

classificar — eis duas operações essenciais da objetivação”. (MOSCOVICI, 1978, p.

113). Assim, mesmo que, possivelmente, as pessoas que usam tais termos não saibam

sobre sua origem científica, sua eficácia se refere a uma convenção que serve como

“indicador de um fenômeno material atestado” (MOSCOVICI, 1978, p. 111.). Eles

servem, ademais, para designar “manifestações ostensivas do real” (ibid. p. 111), e —

não mais sendo um conceito — passam a constituir a própria realidade.

3.2.2 A ancoragem

A ancoragem busca resgatar de dentro de uma constelação de categorias e

representações usuais, pré-existentes e de fontes, muitas vezes, heterogêneas, elementos

que confiram ao não-familiar uma linha que estabeleça um mínimo de coerência entre o

conhecido e o desconhecido. Nesse momento há muito pouca preocupação com

discrepâncias: a preocupação maior é tornar o absolutamente estranho em algo

minimamente cognoscível. Com efeito, é importante salientar que é nesse momento que

se estabelecem relações valorativas em relação ao objeto, onde, notadamente, prevalece

o predicado sobre o sujeito, que se fia com base na linha divisória que vai do normal até

o “aberrante”.

É, pois, no processo de ancoragem que classificamos e damos nome, retiramos

o estranho do seu anonimato, a partir daquilo que Moscovici chama de “protótipo”. O

protótipo nada mais é do que o representante puro de uma classe. O pensamento, então,

pergunta: “É ele como deve ser, ou não?” (MOSCOVICI, 2007, p. 66). Sob esse ângulo,

dar nomes não é uma atitude puramente intelectual, mas intencionada, valorativa e

social, onde se buscam formar opiniões, posicionamentos. Os momentos de grande

excitação e perplexidade, por isso, geram um contexto peculiar onde se forma, nas

palavras de Moscovici, uma “mania de interpretação” (MOSCOVICI, 2007, p. 70).

Disto resultam consequências interessantes, conforme ilustra o próprio autor em relação

ao diagnóstico clínico da loucura. Em um momento da história da psicanálise houveram

dois “protótipos” por assim dizer: o normal e o louco. Isso incomodava, pois havia um

meio de campo que não era nem louco, nem completamente normal, porém para o qual

não havia um termo que o delimitasse. Eis que surge o quadro clínico do “neurótico”,

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que é o meio termo entre a plena consciência e o pleno descontrole, o qual, além de

fazer parte do arcabouço explicativo da psicologia, “vazou” para o senso comum e serve

de explicação para as mais variadas manias e excentricidades — mesmo que seu rigor

científico inicial tenha se perdido.17 Um exemplo sintomático do caráter da ancoragem

nas Representações Sociais foram os primeiros momentos de contato da sociedade com

a AIDS. Diversas Representações Sociais associaram a doença a possíveis punições

divinas, ou como revezes naturais, oriundos da presumida promiscuidade dos

homossexuais; ou que viam a possibilidade de contágio através do mais simples toque

no doente, através do suor ou da saliva, associando a doença desconhecida com as

formas de contágio de doenças conhecidas, por exemplo (MOSCOVICI, 2007). Essas

representações ilustram, nesse caso específico, como a Representação Social de uma

doença engloba, através da ancoragem de representações guardadas na memória

coletiva, tanto uma dimensão mais geral, de representação de doença/saúde, como uma

moral/religiosa, uma dimensão da sexualidade, e uma biológica — todas entrelaçadas.

Ilustram, também, que grande parte das pessoas preferem explicações populares à

explicações científicas: “as pessoas aceitam acima de tudo aqueles fatos ou percebem

aqueles comportamentos que confirmam suas crenças habituais”. (MOSCOVICI, 2007,

p. 168). Em face da adversidade, do fato desconhecido, ou, na terminologia de

Moscovici, do “não-familiar”, são necessários o resgate de representações pré-existentes

para que se estabeleça um mínimo de coerência e se faça com que, de um lado, o fato ou

experiência atípico seja pensado e construído, e de outro para que uma certa visão

consensual seja estabelecida, a partir da qual os grupos sociais reforcem seus vínculos, e

até mesmo para que haja a continuidade da comunicação da ideia no interior do grupo.

Sem isso, este próprio elemento esquisito, não-familiar, não existe, não está presente: é

preciso representá-lo, dar-lhe materialidade e acessibilidade. O movimento que se revela

na produção de Representações Sociais é de trazer o objeto desconhecido, o

acontecimento extraordinário, do seu “não-lugar”, da sua desconcertante indefinição

para o ambiente seguro do universo consensual.

Assim, a objetivação transforma as coisas desconhecidas a partir do conhecido,

e as localiza no catálogo das coisas visíveis, ou seja, ela é voltada para fora e para os

outros, na medida em o primeiro passo para destituir a estranheza é pensar sobre o

estranho e, nisto, constituir um objeto, sua imagem concreta; a ancoragem, por sua vez,

17 Vale ressaltar, porém, que isso não significa perda de valor no que tange sua capacidade de representar

socialmente algo.

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é inteiramente baseada na memória, ou seja, ela é voltada para dentro, na medida em

que resgata elementos familiares e os associam ao elemento não-familiar, visando

conferir-lhe o mínimo de cognoscibilidade, a partir da conferência a ele de um nome e

um rótulo. Moscovici nos traz o resultado prático, a síntese de todo este processo de

construções de Representações Sociais:

As ideias já não são percebidas como produtos da atividade intelectual de

certos espíritos, mas como reflexos de algo que existe no exterior. Houve

substituição do percebido pelo conhecido. O hiato entre a ciência e o real se

reduz, o que era específico de um conceito se propõe como propriedade da

sua contrapartida no real. (MOSCOVICI, 1978, p. 112).

Nesse sentido, as Representações Sociais embasam praticamente todos os

aspectos do conhecimento usado na nossa vida cotidiana. No caso dos conhecimentos

científicos, eles passam de conceitos, acerca de objetos sobre o que se fala, para

elementos da constituição da própria natureza dos objetos, como características

intrínsecas a ele, por meio dos processos de objetivação e ancoragem.

Assim, as Representações Sociais são tão indissociável do nosso ser social, da

forma como vemos e interpretamos o mundo, que, a despeito do seu aspecto impessoal,

no sentido de pertencer a todos, elas são “percebidas afetivamente como pertencente ao

ego” (MOSCOVICI, 2007, p. 211, Grifos nossos). As formas cognitivas (o como) são

dependentes dos conteúdos (o que) pensamos, e não o contrário, na medida em que

pensamos segundo representações das coisas, não no objeto puro: elas são inscritas

dentro de um referencial, imagético e simbólico, pré-existente. Eis a relação piramidal a

que me referi anteriormente: não nos relacionamos com um objeto de maneira imediata,

mas por meio das representações que temos a respeito do tema, objeto ou

acontecimento.

Além disso, não há uma correlação que limite uma representação a apenas um

indivíduo, e o indivíduo a apenas uma representação. Os indivíduos possuem muitos

modos de pensar e representar, ou aquilo que Moscovici denomina de “polifasia

cognitiva” (MOSCOVICI, 2007). Não há uma unidade lógica ou cognitiva na nossa

vida mental. Podemos empregar maneiras de pensar diversas e até mesmo opostas. Isso

é um pressuposto da normalidade da vida cotidiana e da adaptação requisitada pela

prática rotineira, que requer flexibilidade frente a diferentes contextos. Além disso, as

representações podem assumir diversas funções: podem ser cognitivas, através dos

processos de ancoragem e objetivação, ou propriamente sociais, mantendo e criando

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identidades e equilibrando coletividades. Esse último aspecto, aliás — do papel das

representações na delimitação de identidades coletivas —, é capaz de revelar com

clareza aquilo que Oliveira (2004) — já citado — diz, contrastando Moscovici à visão

clássica, acerca do fato das representações não serem algo desprendido, externo à

sociedade e aos grupos que lhe deram origem: elas “nunca seriam de ‘outra natureza’:

elas seriam da natureza mesma dos grupos sociais que as criam [...]” (OLIVEIRA, 2004,

p. 183).

Do reconhecimento de que as Representações Sociais criam realidades coesas e

coerentes, que dão concretude e sentido para a vida cotidiana, Moscovici extrai um

componente ético e humanista, com repercussões epistemológicas muito fortes, bastante

presente, também, em Durkheim: todas as representações são racionais, não existem

“representações falsas”. Isso colide gravemente com certos pressupostos da ciência

moderna. Moscovici se insere em uma perspectiva construtivista que prestigia a

legitimidade do saber do senso comum, questionando, em última instância, o próprio

estatuto de objetividade, a possibilidade de conhecimento, e busca da verdade do campo

científico (SPINK, 1994). O campo científico, pois, possui uma tendência a rebaixar o

senso comum a um status inferior ao dela próprio, assumindo que crenças e

Representações Sociais popularizadas são feito ilusões, falsidades, a partir de uma

noção, combatida com certo protagonismo pela antropologia moderna, em que,

traçando-se uma linha evolutiva entre as formas de pensamento, a ciência seria o estado

mais avançado alcançado pela humanidade. Não cabe à sociologia este papel valorativo,

apenas o de reconhecer o fato sociológico de que se “todas [as pessoas] juntas

reconhecem seu grupo dessa maneira, então estamos lidando com uma realidade social”.

(MOSCOVICI, 2007, p. 178). E uma realidade social, vale dizer, onde não se representa

a coisa como um retrato fiel dela (tal como a ciência positivista buscou fazer), mas um

símbolo da coisa. É, então, sobre esses símbolos que as pessoas pensam. E na medida

em que essas representações fazem e conferem sentido a uma coletividade, são racionais

em relação ao seu referencial próprio. Nas palavras de Minayo (2000, p. 90), “todas [as

representações] respondem de diferentes formas a condições dadas da existência

humana”. Nenhuma delas pode ser critério de racionalidade em relação a nenhuma

outra. Assim, Moscovici equaliza os termos, e identifica ambos, ciência e senso comum,

como formas de representação social:

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A separação entre os dois universos, consensual e reificado, deve ser

abandonado: dentro de uma dimensão social, a ciência e o senso comum —

crenças em geral — são irredutíveis um ao outro, pelo fato de serem modos

de compreender o mundo e de se relacionar a ele. (MOSCOVICI, 2007, p.

199).

Segundo essa perspectiva é possível se tratar o senso comum como um

amalgama de representações: um universo “híbrido” (MOSCOVICI, 2007, p. 203),

onde ambas as esferas se interpenetram. E ainda: o universo reificado, científico, não

vai, ao cabo, suplantar o senso comum: o que vemos é um movimento de descida do

pensamento científico ao universo consensual, do senso comum, constituindo uma

verdadeira “ciência popular” (MOSCOVICI, 2007, p. 201), presença constante no

cotidiano, e uma forma de ciência contextualizada à realidade corrente do dia a dia, pois

transpõe, como vimos, para representações familiares um universo que poderia ser,

inicialmente, inacessível ou abstrato. Caímos, assim, diretamente no tema a que

propomos analisar: as estratégias de adaptação de um conhecimento advindo do

universo reificado para um universo consensual. É participação importante neste

processo de penetração do saber científico no mundo “híbrido” da vida cotidiana a dos

meios de comunicação, principalmente aquele representado pelo jornalismo científico.

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4 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

Orientaremos nossa pesquisa tendo por base o paradigma moscoviciano da

Teoria das Representações Sociais. Sá (1998) indica alguns desdobramentos necessários

para quem se proponha a enveredar pelo paradigma clássico de Moscovici na análise de

Representações Sociais. O primeiro deles, decerto óbvio, é que, ao analisarmos um

fenômeno representacional, isto é, uma forma de saber gerado através da comunicação

cotidiana voltado, por sua vez, para a prática e orientação de comportamentos,

extrairemos o próprio conceito de representação social. O segundo deles ocorre quando,

ao buscar a formação da representação, localiza-se o princípio básico das

Representações Sociais: a transformação do não-familiar em familiar. E a não-

familiaridade, ressalta Sá, pode não constituir um evento realmente novo — como o foi

teoria da psicanálise, à época de Moscovici, na França, ou o surgimento da Aids. Ela

pode se revelar, em conjuntos sociais específicos, na mais simples ocasião estranha,

como, por exemplo, uma doença a ameaçar a segurança de uma comunidade; no âmbito

individual, na vida rotineira, podemos experimentá-la frente uma situação diante da qual

nunca tivemos experiência parecida. A gripe, nesse sentido, embora não seja algo

realmente novo, é um elemento de instabilidade, no qual se pode tentar identificar as

possíveis qualidades que a tornam o núcleo ao redor do qual orbitam não-

familiaridades.

Todas estas situações ensejam o surgimento de Representações Sociais. E em

um contexto onde dialogam as noções científicas com o senso comum, por intermédio

da mídia, estamos preocupados com uma visão específica da ciência, que compreende

um universo específico: “Sua teoria [das Representações Sociais] é adequada à

investigação empírica das concepções leigas da ciência [...]. Ela não é apropriada, e nem

Moscovici defende que o seja, para compreender o mundo do cientista pesquisador.”

(FARR, 2000, p. 45).

De um ponto de vista metodológico, o paradigma da Teoria das Representações

Sociais é bastante flexível, permitindo a interlocução de diversos métodos segundo

aquilo que o próprio objeto requeira (Sá, 1998). No entanto, acreditamos que dentro da

proposta deste trabalho não serão necessários recursos adicionais aos propostos por

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Moscovici, à sua grande teoria18; o pressuposto de que as Representações Sociais

servem a contextos onde se transformam estranhamentos em elementos conhecidos já

nos move em uma direção interessante, heurística, para a identificação das situações

não-familiares que criam a ambiência para o surgimento de representações. Em outras

palavras, buscamos na Teoria das representações certas “lentes” por meio das quais

vejamos no caso do vírus da gripe, objetivado pela revista Superinteressante, as

situações que ensejam a criação ou o uso de Representações Sociais. Há, no entanto, um

aspecto importante que limita consideravelmente o escopo do presente trabalho: não

partimos em busca das representações presentes nos discursos das pessoas

concretamente, isto é, na vida cotidiana — algo acessível por meio de entrevistas e

observações. Foi o que Moscovici fez, em sua pesquisa sobre as Representações Sociais

da psicanálise na França: entrevistas em grupos sociais diversos e levantamentos sobre a

informação veiculada na sociedade, por meio de uma análise de conteúdo da

comunicação de massa. Constata Farr (2000, p.46) que

As representações estão presentes tanto “no mundo”, como “na mente”, e

elas devem ser pesquisadas em ambos os contextos. Os psicólogos sociais

fora desta tradição francesa de pesquisa tendem a sempre pesquisar apenas a

última, e não o primeiro.

Desta forma, o presente estudo se localiza no espaço público onde as notícias

são veiculadas, e não nas suas reverberações pessoais.

Além disso, Spink (2000) define diferentes tempos da circulação de ideias na

sociedade: “o tempo histórico, o tempo vivido dos processos de socialização e o tempo

da interação”. Ela resgata a noção de “escala”, presente em Moscovici, para buscar

delinear os possíveis níveis de abordagem nos estudos em Representações Sociais:

Há um mundo de diferença entre representações trabalhadas ao nível pessoa-

a-pessoa, ao nível das relações entre indivíduos e o grupo, ou ao nível da

consciência compartilhada da sociedade. Em cada um desses níveis as

representações têm um sentido diferente. (MOSCOVICI, 1988, p. 228 apud

SPINK, 2000, p. 155).

Cremos que constitui a preocupação central deste trabalho a “consciência

compartilhada da sociedade”, no sentido de uma abordagem da informação veiculada

pela mídia escrita em um espaço público. Mais precisamente: focamo-nos na 18 O autor chama de a grande teoria aquela representada por três correntes complementares: aquela de

Denise Jodelet, bastante fiel à teoria original de Moscovici; aquela mais sociológica, de Willem Doise e

aquela que enfatiza a dimensão cognitivo-estrutural das representações, de Jean-Clause Abric.

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informação veiculada por uma revista somente, relativa a um tema específico, e a linha

editorial capaz de representar.

Pressupomos que o jornalista possui um arcabouço de Representações Sociais

formado e em formação, de modo que constitui, na envergadura do processo de criação

de representações, a “ponta”, ou o final (na ausência de um termo menos limitante) de

uma rede representacional que o constituiu enquanto sujeito. Em algum grau se reflete

em seu discurso as Representações Sociais; nosso esforço é em identificá-las neste

contexto específico, de transito do jornalista pela não-familiaridade, imposta pelo

discurso científico, em direção ao universo consensual.

Além disso, a análise dos meios de comunicação de massa é capaz de trazer

com mais propriedade um dos aspectos do processo de construção de Representações

Sociais. Uma vez que tais veículos são capazes de transcrevem em imagens concretas

conteúdos abstratos da ciência, e os trazem, na forma de notícia, como objetos a serem

pensados pelo leitor, eles podem ilustrar — com maior clareza do que se estudarmos

sujeitos específicos — os processos de objetivação conceituados por Moscovici:

Além de [os meios de comunicação de massa] constituírem importantes

fontes de formação das representações no mundo contemporâneo, é neles —

na televisão, em especial — que melhor se configura a tendência à

concretização das ideias em imagens. (SÁ, 1998, p. 71).

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5 O JORNALISMO CIENTÍFICO NO BRASIL

Nesta sessão buscaremos trazer alguns apontamentos, não muito exaustivos,

acerca dos desenvolvimentos do jornalismo científico no Brasil, conferindo especial

atenção à mídia escrita e ao contexto editorial onde se insere a Superinteressante.

Segundo a interpretação de Oliveira (2002), uma das primeiras obras que

operava no sentido de uma divulgação científica genuína, no Brasil, foi Os sertões, de

Euclides da Cunha. A qualidade descritiva da obra, que não se esquiva de discutir temas

como a qualidade da terra, a água, a vegetação e os minerais da região de Canudos, com

a finalidade de uma melhor compreensão da realidade, coloca Os Sertões como obra

pioneira no gênero do jornalismo científico e ambiental no Brasil. (OLIVEIRA, 2002, p.

33).

Alguns momentos importantes na história marcaram o campo científico

brasileiro e os seus desenvolvimentos. A partir da década de 40, com o término da

segunda guerra mundial, a ciência passou a ganhar relevância do ponto de vista da

sociedade e do governo. É decisiva a criação, em 1948, da Sociedade Brasileira para o

Progresso da Ciência (SBPC), cuja finalidade foi agregar todas as sociedades científicas

do Brasil. O cientista brasileiro José Reis, um dos fundadores da SBPC, é amplamente

reconhecido como uma figura fundamental na história do jornalismo científico

brasileiro. Aqui, ele foi o primeiro a escrever sobre ciência na mídia impressa, fazendo-

o semanalmente em uma coluna dedicada ao assunto na Folha de São Paulo, desde

1947 até maio de 2002, ano em que veio a falecer.

Em 1951 foi criado o CNPq (Conselho Nacional de Pesquisas) — órgão que,

antes da fundação do Ministério da Ciência e da Tecnologia, fazia todas as

regulamentações das ações estatais relativas à ciência brasileira.

A revista Ciência Hoje, publicação da SBPC, fundada em 1982, logrou,

inicialmente, grande sucesso de vendas. Sua proposta sempre foi divulgar ciência à

sociedade, e conseguiu alcançar, num primeiro momento, grande aceitação do público.

No entanto, com o passar do tempo, alguns autores diagnosticam ter havido uma

transição, na revista, de uma linguagem acessível para uma cada vez mais técnica:

Del Vechio também aponta a linguagem hermética como um dos fatores que

têm impedido Ciência Hoje de alcançar integralmente o objetivo da

divulgação científica. Para ela a revista cada vez mais se distancia de seu

objetivo, limitando-se a um público cada vez mais específico e cada vez mais

especializado (GOMES, 2001, p. 106 apud PACHECO, 2008, p. 16).

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Com um propósito menos descontraído do que a Superinteressante, porém sem

deixar o interesse em veicular informações científicas em uma linguagem prática e

popular, em 1991 é lançada a revista Globo Ciência. Segundo Pacheco (2008), seus

temas, ciências e tecnologia, mostravam-se menos ressaltados do que aqueles que

abordavam inovações que afetassem diretamente o cotidiano do leitor, com o intuito de

aproximar o universo científico àquele do dia a dia do leitor. Esse projeto, porém, não se

sustentou, e em 1998 a revista passou a se chamar Galileu, numa jogada que a

aproximava bastante ao formato da Superinteressante. Segundo o então diretor da

revista à época desta mudança, Luiz Henrique Fruet, mediante pesquisa com leitores,

publicitários e anunciantes, constatou-se que a palavra ciência no título da revista

afastava potenciais leitores, os quais “mesmo sem conhecer o conteúdo da revista,

achavam que ela era dirigida a cientistas, ou a estudantes de física, ciências exatas [...]”.

(GOMES, 2001, p. 105 apud PACHECO, 2008, p. 17). A mudança de nome foi, na

verdade, uma mudança de roupagem, uma vez que os temas da revista permaneceram os

mesmos da Globo Ciência. No entanto, houve uma guinada significativa no sentido de

enriquecer as matérias com conteúdos visuais, semelhante ao que encontramos em

Superinteressante.

Mais recentemente, em 2002, foi fundada a Scientific American/Brasil, cujas

diretrizes seguiam o padrão americano, porém incorporando, também, artigos de

cientistas e jornalistas brasileiros. Diversas fundações estaduais de apoio à pesquisa

também passaram a publicar periódicos de divulgação científica: a Fapesp em São

Paulo, a Faperj, no Rio de Janeiro, a Fapemig, em Minas Gerais e a Fapeam no

Amazonas.

Segundo Massarani e Moreira (2012), por conta de interesses mercadológicos e

uma distorção da ideia do que vem a ser divulgação científica, particularmente na

Superinteressante e a Galileu se instaurou um contexto onde veiculam-se,

principalmente, artigos de pseudociência.

Segundo um diagnóstico preciso do jornalismo científico no Brasil, os autores

constatam que existe uma representação sobre o público leitor que embasa um modelo

peculiar de jornalismo científico, o qual se reflete no trato raso dos temas. Esse modelo

é chamada por eles de “modelo de déficit”:

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[O modelo de déficit] de uma forma simplista, vê a audiência como um grupo

de pessoas analfabetas em ciência que deve receber os conteúdos de um

conhecimento neutro. Esses conteúdos são compartilhados, muitas vezes, no

formato de verdadeiras “pílulas” que encapsulam o conhecimento científico.

Aspectos culturais, que são importantes em qualquer processo de

comunicação por levarem em conta o contexto das diferentes audiências, são

desconsiderados, assim como o são as interfaces mais gerais entre ciência,

cultura e sociedade. A divulgação da ciência se dá aqui predominantemente

de forma unidirecional, ignorando a necessidade de interações e trocas

efetivas com a audiência nos processos de comunicação pública e de

apropriação social do conhecimento. (MASSARANI; MOREIRA, 2012, p.

10-11).

5.1 Sobre a revista Superinteressante

“Superinteressante é essencial para cabeças que tem fome de conhecimento,

inovação é novidades. É feita para quem quer entender o mundo além do

óbvio.19”.

A revista Superinteressante não foi o primeiro empreendimento do grupo Abril

cuja proposta fora abordar ciência no campo editorial brasileiro. A primeira delas, a

revista Ciência Ilustrada, foi veiculada no Brasil do ano de 1981 a 1984. Suas

publicações eram um misto de traduções da Science Digest americana e conteúdo

próprio. Chegou a vender 80 mil exemplares, a despeito de não ter recursos próprios ou

publicidade.

A revista Superinteressante teve seu primeiro volume publicado em setembro

de 1987, 3 anos depois da descontinuação da Ciência Ilustrada, como um material

suplementar, incluído gratuitamente em todas as revistas do grupo Abril. O exemplar

tinha somente 16 páginas, porém alcançou cerca de 2 milhões de leitores sem custos

adicionais, e serviu de valioso marketing para o novo título que estava por vir.

(DIEGUEZ, 2004). A partir de outubro do mesmo ano, passou a ser distribuída como

título independente, alcançando notável número de vendas e um rápido esgotamento nas

prateleiras das bancas de revista.

Inicialmente o grupo Abril, adquirindo os direitos de uma revista espanhola

chamada Muy Interessante — lançada em 1981 —, definiu como propósito inicial da

Superinteressante reproduzir integralmente as publicações desta publicação espanhola

por meio de traduções para o português brasileiro. Os temas da Muy Interessante iam

desde as ciências físicas e biológicas, até as ciências humanas. Devido a razões técnicas,

no entanto, dado que os fotolitos da revista estrangeira eram muito maiores do que os da

19 Superinteressante. Brand kit, 2016. Disponível para download em:

<http://publiabril.abril.com.br/marcas/superinteressante>. Acesso em: 02 de julho de 2016.

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revista brasileira, a Superinteressante viu-se obrigada a produzir suas próprias notícias.

Neste período inicial, onde a revista se firmava, ao mesmo tempo, frente à sociedade e

ao campo científico, seus esforços foram na direção de legitimar-se associando sua

imagem às ciências já fortemente constituídas: as naturais (NOCIOLLI, 2010, p.34). É,

no entanto, a partir da década de 90, quando a revista passa por uma reforma editorial,

que a publicação passa a abordar o tratamento de alguns temas específicos, objeto de

grande curiosidade popular, os quais vemos até hoje reverberar como lugar comum nas

capas da revista: religiões, fim da humanidade, paranormalidades, sociedades secretas,

pseudociências, dentre outros.

Novaes (2006) buscou explicar as possíveis razões para esta mudança editorial.

Segundo ele, este processo de mudança de agenda da revista Superinteressante, no qual

o interesse editorial passa a ser, cada vez mais, aquele ligado a temáticas espiritualistas

e místicas, é sintoma de um processo moderno mais abrangente, no qual a noção

positivista e cientificista de ciência se enfraquece na sociedade, a partir daquilo que

alguns autores chamam de crise da ciência na modernidade. A partir de uma análise

frequencial dos temas de capa da revista, desde sua fundação, em 1987, até 2004, o

autor localiza no período da promoção de Adriano Silva (2000-2005) ao cargo de

editor-chefe da revista o momento de consagração desta tendência. Paulatinamente a

linha editorial deixa em segundo plano aquele ponto de vista positivista da ciência, que

aborda temas das ciências naturais e tecnológicos, e passa a se voltar às ciências

humanas, às subjetividades, e aos temas espiritualistas20.

Segundo Flávio Dieguez, participante dos momentos iniciais da

Superinteressante — no qual se buscava uma identidade para a revista —, Almyr

Gajardoni, diretor da revista à época, propôs um projeto editorial que era, em sua

opinião, de “intuição perfeita”:

[Almyr] Basicamente imaginou uma revista de curiosidades, não de ciência,

mas que era alimentada em grande parte pelo noticiário científico e, melhor,

por reportagens, assuntos de atualidade da ciência. Veja que nossa primeira

capa era a recém-descoberta supercondutividade a “quente” (-96 C).

(DIEGUEZ, 2004).

Flávio Dieguez escreveu sobre o assunto da capa da primeira

Superinteressante, a número 1 de outubro de 1987, acerca dos supercondutores. Seus

20 A diferença estatística na frequência dos temas mostrou que um total de 74% do total de revistas,

produzidas na gestão de Adriano Silva, tratavam de temas relativos às ciências humanas e

subjetivividades; o restante, 26%, tratavam temas das ciências naturais.

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insights e estratégias de aproximação do tema supracitado são muito relevadores das

práticas da revista àquele tempo. Vejamos seu relato enquanto participante do processo:

Eu fiz a capa como freelance, já adotando uma linha que o êxito futuro da

revista mostrou estar correto: contei a teoria, o mecanismo básico do

fenômeno sem medo de assustar o leitor, mas ao contrário, tentado atraí-lo

para os segredos básicos da natureza; fiz isso dando muitos dados históricos,

da história das ideias (como se pensava que era, porque se viu que não podia

ser...), e em linguagem totalmente leiga, usando e abusando das ilustrações,

das analogias, das comparações com a mecânica (especialmente a dinâmica

árabe e arquimediana, pré-Galileu), que é a ciência intuitiva para, sei lá, 80%

dos leitores; também forcei a familiarização do fenômeno com o cotidiano:

comecei descrevendo a ’luta’ do garfo com a faca para mostrar as diferenças

entre uma cerâmica e um metal (um é duro e quebradiço, o outro flexível e

resistente, um é condutor, o outro resistência etc.), e dei uma receita: como

fazer um supercondutor em casa. (DIEGUEZ, 2004)

Atualmente, a revista logra grande sucesso de vendas dentro do rol das revistas

do grupo Abril. Isto já era prenunciado quando do seu lançamento no mercado editorial

brasileiro, ainda em 1987: os seus primeiros 150 mil exemplares, como revista

independente, esgotaram-se rapidamente, de modo que 65 mil novos exemplares foram

reimpressos. (NOCIOLLI, 2010). Segundo dados da ANER – Associação Nacional de

Editores de Revistas21, de janeiro a setembro de 2014, relativamente às revistas de

circulação mensal, a Superinteressante fica em segundo lugar dentre as revistas de

maior circulação do país, com uma circulação média, neste período, de 344.652

exemplares — ficando atrás somente da revista Cláudia, cuja circulação foi de 419.335

exemplares no mesmo período.

A revista, neste sentido, possui uma importância e representatividade grande no

campo do jornalismo científico brasileiro. No entanto, em contraste com o período

inicial da revista, podemos ver diferenças importantes:

Nesta época [década de 80] a revista tinha uma linguagem mais didática, mas

deve-se constatar que o público também era outro. Não havia acesso à

Internet, as redações começavam a se informatizar, e, consequentemente, as

publicações de ciência e tecnologia tinham um perfil mais explicativo.

(VERAS JÚNIOR, 2005, p.34)

Isto posto, porém, a Superinteressante adota atualmente múltiplas plataformas

para que seus usuários acessem seus conteúdos. Ela conta com uma versão digital da

revista, podendo ser lida em tablets e outros gadgets portáteis, como celulares e

21 Disponível em: <http://aner.org.br/dados-de-mercado/circulacao/>. Acesso em: 03 de julho de 2016.

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smartphones, com alcance de 70 mil exemplares de circulação22. Seu domínio na

internet conta com 4,6 milhões de visitantes únicos e 12 milhões de page views.23 Sua

página no Facebook conta com 3.8 milhões de “curtidas”24 e seu domínio no Twitter

conta com cerca de 2,73 milhões de seguidores25. O sucesso do projeto editorial da

revista Superinteressante se revela nos inúmeros outros títulos relacionados à revista:

Vida Simples, Aventuras na História, Revista das Religiões, Mundo Estranho, Bichos!,

e outros materiais, tais como CD’s, DVD’s e livros.

Diante disso tudo é possível se depreender que a revista possui uma ampla

audiência, e figura uma forte presença no mercado editorial brasileiro, principalmente

no campo do jornalismo científico.

22 Superinteressante. Brand Kit, 2016. O brand kit faz referência à origem dos dados brutos utilizados,

produzidos pelo IVC (Instituto Verificador de Comunicação). O acesso a eles pelo site do instituto,

porém, é restringido por senha. 23 Ibid. 24 Disponível em: <https://www.facebook.com/Superinteressante/>. Acesso em: 07 de junho 2016. 25 Disponível em: < https://twitter.com/revistasuper>. Acesso em: 07 de junho 2016.

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6 A REVISTA SUPERINTERESSANTE COMO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO

A constituição do corpus desta pesquisa se formou a partir de pesquisas no

arquivo online da revista Superinteressante. Nele estão arquivados os volumes da

revista que vão desde setembro 1987 até junho de 2016. No entanto, as revistas ali

disponibilizadas do ano de 2016 são parciais, de modo que somente uma parcela muito

pequena das matérias estão acessíveis, o que é, do ponto de vista da lógica do mercado,

compreensível. Assim, o recorte temático e temporal desta pesquisa, referente a estas

revistas impressas cujos conteúdos foram digitalizados por completo, constitui-se dos

artigos sobre a gripe criados desde setembro 1987 (fundação da revista) até dezembro

de 2015.

Foi possível se notar que a produção sobre a gripe não é constante: há uma

flutuação na recorrência do tema. Por exemplo, o ano de 2009 — período da eclosão da

pandemia do vírus H1N1 — conta com o maior número de matérias sobre a gripe de

toda a história da revista: 5 vezes o tema aparece: nas publicações de junho, agosto,

outubro e novembro (duas vezes).

A busca pelas amostras foi feita através de pesquisa no motor de busca do site;

nele, foram utilizadas as seguintes palavras chave: gripe, gripe A, H1N1, espanhola,

suína, aviária. Dos seus resultados, elencou-se um total de 30 artigos diferentes, cujo

fator de unidade era a temática da gripe em todas as suas variações. Dentre todos os

artigos, 3 deles constituíam material disponível somente online e foram publicados no

ano de 2016. Foram ignoradas as ocorrências de artigos onde tais termos apareciam,

porém não constituíam por si mesmos um assunto mais demorado, e sua aparição se

dava de maneira isolada.

Os exemplares advindos do arquivo online da revista não contam com

elementos gráficos ou ilustrativos, sobrando somente o texto do artigo para a consulta.

Algumas menções são feitas, no interior dos textos, sobre elementos iconográficos

suplementares presentes nas versões impressas. Agregar estes elementos à presente

pesquisa certamente a enriqueceria, dada a riqueza imagética da Super. Elas foram, no

entanto, deixadas de lado, uma vez que uma análise de caráter mais iconográfico

requereria certos refinamentos e uma abordagem em separado mais criteriosa, o que não

constitui nosso objetivo neste trabalho.

Online, a autoria dos textos é, com frequência, inserida após o título da

matéria, bastante próximo do corpo do texto. Em alguns dos artigos havia a menção

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ao(s) jornalista(s) responsável(is). No entanto, em outros não havia uma nomeação,

apenas a referência à “Redação Super” como produtora.

No decorrer das análises traremos diversos exemplos de representações

retirados dos artigos, com a intenção de: a) ilustrar, de um lado, o modo como ocorrem,

as características que as tornam representação; de outro, o momento no texto em que

aparecem, no sentido de abordar a estratégia empregada, e o sentido que adquirem ao

levarmos em conta o todo da sentença (frase); b) aludir ao momento, na história da

revista, em que as representações se fazem presentes.

Assim, para ilustrar certo processo e também fluidez, trazendo a temporalidade

da revista e as representações daquele momento, incluímos no quadro que segue

(Quadro 1), à primeira coluna da esquerda para direita, uma numeração por meio da

qual faremos menção, ao final da citação, ao período da revista em que as

representações foram localizadas, seguida do mês e do ano do artigo em questão. Desta

forma, o leitor poderá identificar o número do artigo dentro da ordem sistemática que

estabelecemos e remeter ao quadro 1 para a localização do artigo e a edição a que se

refere.

Ademais, o caráter pouco esquemático com que traremos tais exemplos da

revista, muitas vezes não respeitando uma ordem cronológica, serve a um propósito

importante dentro da sessão em que exporemos as análises: eles aludem ao fato de que

em diferentes momentos históricos da revista algumas representações se repetem,

revelando certa permanência de representações no trato do assunto. Mary Jane Spink

define o espectro temporal das representações em três tempos:

O tempo curto da interação que tem por foco a funcionalidade das

representações; o tempo vivido que abarca o processo de socialização — o

território do habitus (Boudieu, 1983), das disposições adquiridas em função

da pertença a determinados grupos sociais; e o tempo longo, domínio das

memórias coletivas onde estão depositados os conteúdos culturais

cumulativos de nossa sociedade, ou seja, o imaginário social. (SPINK, 2000,

p. 122. Grifos da autora).

A autora segue expondo que os enfoques em diferentes tempos privilegiam

diferentes aspectos das Representações Sociais:

Quanto mais englobamos em nossa análise o tempo longo — e, portanto, os

conteúdos do imaginário social — mais nos aproximamos das permanências

que formam os novelos mais estáveis das representações. No sentido oposto,

quanto mais nos ativermos ao aqui-e-agora da interação, mais nos

defrontaremos com a diversidade e a criação. (SPINK, 2000, p. 122).

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Cremos, a partir desta definição, que o presente trabalho se localiza em uma

abordagem de tempo mais longo, focando-se em conteúdos culturais mais arraigados a

uma experiência decantada, presente no imaginário social, e que decerto reverbera nas

construções da revista acerca do vírus da gripe.

Exposto o método de coleta de dados e as estratégias usadas pala ilustrar

empiricamente nossas análises, o corpus da pesquisa pode ser esquematicamente

disposto da seguinte maneira:

Quadro 1: O corpus da pesquisa.

Número Edição, mês e ano Título Autoria

01 5, Fevereiro de

1988 Ataque aos sintomas Sem autoria

02 24, Setembro de

1989 Gripes e Resfriados Artur Beltrame Ribeiro

03 31, abril de 1990 Vírus da gripe A vem

da China Sem autoria

04 52, Janeiro de 1992 Nova arma contra a

gripe Sem autoria

05 57, Junho de 1992 Atchiiim! Lúcia Helena de Oliveira

06 86, Novembro de

1994

Gripe se modifica

para matar Sem autoria

07 117, junho de 1997 Achado o culpado da

gripe de 1918 Sem autoria

08 132ª, Setembro de

1998 Gripe: Aaaatchim! Xavier Bartaburu

09 140, Maio de 1999 O fim do espirro Ivonete D. Lucírio

10 143, Agosto de

1999

Vírus da gripe: Falsa

inocência André Santoro

11 167, Agosto de

2001

A volta do vírus

assassino Lúcia Martins

12 216, Agosto de

2005

E se... houvesse uma

epidemia mundial de

gripe?

Martha San Juan

13 220, Dezembro de

2005

Gripe do frango: A

fúria das galinhas Reinaldo Lopes

14 229, Agosto de

2006

Mentiras da gripe

aviária Bruno Vieira Feijó

15 254, julho de 2008 Espirrou? A culpa é

dos asiáticos Cíntia Cristina da Silva

16 266, junho de 2009 O dilema do vírus Maurício Horta

17 268, Agosto de

2009 Donos do mundo

Alexandre Versignassi e Barbara

Axt

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Quadro 1: O corpus da pesquisa (continuação).

18 270, Outubro de

2009 A nova vacina Gisela Blanco

19 271, Novembro de

2009

É melhor pegar a

gripe suína agora,

antes da 2ª onda

Giselle Hirata

20 271ª, Novembro de

2009

Você não corre o

risco de contrair gripe

estando agasalhado

Sem autoria

21 278ª, Maio de 2010 Tão mortais quanto

misteriosas Reinaldo José Lopes

22 291ª, Maio de 2011 Vírus de laboratório Leandro Greco e Denise Barros

23 302, Março de

2012

Cientistas voltam a

trabalhar em

supervírus

Salvador Nogueira e Bruno

Garattoni

24 311ª, Novembro de

2012 Um vírus artificial Salvador Nogueira

25 314, Janeiro de

2013

Metanfetamina pode

curar a gripe Carol Castro

26 316, Março de

2013

Vírus aviário fica

mais agressivo Sem autoria

27 338, Outubro de

2014

As próximas

epidemias Salvador Nogueira

28 Online, 02/09/2015 Quer evitar a gripe?

Vá dormir Fábio Marton

29 Online, 07/04/2016

Tudo o que você

precisa saber sobre

H1N1

Helô D’Angelo

30 Online, 14/04/2016 As grandes epidemias

ao longo da história Sem autoria

Fonte: o autor (2016)

Finalmente, devemos salientar que de modo algum pretendemos encerrar, em

nossas análises, todos os aspectos envolvidos, direta ou indiretamente, nos fenômenos

observados. Uma abordagem completa do tema envolveria aspectos que fogem da mera

palavra escrita. Ela exigiria um olhar mais global, que articule, por exemplo, a atividade

individual do jornalista, suas ideias e sistemas de pensamento, o seu papel dentro do

círculo social de que participa, suas características enquanto sujeito, suas estratégias e

negociações na construção do conhecimento frente aos contextos onde são produzidas

estas notícias e aos contextos aos quais se direciona, as linhas editoriais e o regime de

trabalho das empresas de comunicação, suas representações sobre ciência e sobre a sua

atividade enquanto jornalista, dentre muitos outros. Ela levaria em conta, também, a

ponta de todo este processo: o consumidor que lê e consome a notícia, qual é a sua

relação — tanto afetiva como intelectual, cognitiva — com a notícia/revista, qual é a

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sua receptividade — se seus conteúdos são contestados ou representam, para ele, a

“verdade” —, quais são as representações que elas ajudam a construir no seu dia a dia,

qual seu papel na construção de saberes populares mais disseminados, etc. Isto tudo

pode ser feito ainda sob a ótica da Teoria das Representações Sociais. Por isso tudo,

dada a complexidade do tema, nosso recorte é reduzido.

Isto posto, o que propomos nestas análises é jogar luz em uma das facetas do

problema, isto é, olhar para o fenômeno das Representações Sociais na

Superinteressante sobre o vírus da gripe a partir de uma única perspectiva — diante de

muitos outros prismas e interpretações possíveis. Podemos afirmar, contudo, que a

abordagem deste problema que nos impusemos, o da palavra escrita, sob a ótica da

Teoria das Representações Sociais figura uma forma extremamente fecunda,

especialmente por se tratar, no nosso caso, de um objeto que é expressão tão clara,

altamente simbólica da relação da ciência com o senso comum: a sua linguagem é,

acreditamos, a do universo consensual. Esta abordagem consegue com grande proveito

alcançar as associações de ideias, as figuras de linguagem, as analogias com elementos

cotidianos e articulá-los na forma de narrativas sobre o real, maneiras de contar os fatos

e as pessoas e construir conhecimentos, cuja finalidade é, do ponto de vista do jornalista

— podemos inferir — a construção de uma situação favorável, que torne possível a

leitura e o entendimento da informação sobre ciência pelo maior número de pessoas

possível.

Não pretende-se, também, fragmentar os textos em partes menores ou núcleos

de sentido, tentando depreender a sua organização estrutural e a sua função, na forma de

uma análise clássica do discurso. Objetiva-se, ao invés disso, identificar certas ideias

gerais, recorrências e mudanças a animar estes textos, que operam na matéria

jornalística como elementos representacionais de familiarização, isto é, de aproximação

dos conteúdos escritos à sua possibilidade de leitura pelo leitor, que está informado por

suas experiências cotidianas e por suas Representações Sociais.

Desta forma, as análises a seguir são um esforço interpretativo, no sentido de

identificar nas manifestações por meio da palavra escrita Representações Sociais

alicerçando concepções de ciência, da atividade científica, do(s) vírus da gripe, dentre

outros objetos sociais. Neste sentido, por se tratar de uma atividade interpretativa, ela

não é, definitivamente, a única maneira de leitura dos textos analisados, muito pelo

contrário. Certamente será possível a identificação de outros movimentos, categorias ou

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estratégias, no interior dos textos, que podem ter passado despercebidos por nós, ou

mesmo nossa abordagem poderá se mostrar insuficiente.

Esclarecidos tais e pontos e tendo-se estes artigos da revista Superinteressante

em mãos, partiu-se para a leitura e análise dos textos, a partir do ponto de vista da

Teoria das Representações Sociais.

6.1 Representações do vírus da gripe na Superinteressante

É por isso que, ao se estudar uma representação, nós devemos sempre tentar

descobrir a característica não-familiar que a motivou, que esta absorveu.

(MOSCOVICI, 2007, p. 59).

Segundo a definição clássica de Moscovici das Representações Sociais, a

principal força que empurra as pessoas no sentido da confecção de Representações

Sociais é a ausência de familiaridade em relação a algo. Pedrinho Guareschi (2000), ao

estudar os cultos neopentecostais e as estratégias de ancoragem utilizadas pelos

pregadores para angariar dizimistas, identificou nos dramas cotidianos dos fiéis, nas

suas necessidades mais imediatas de sobrevivência, o grande campo onde se formam os

medos, as inseguranças, as suas não-familiaridades:

A grande angústia da população que frequenta essas igrejas não é tanto se

eles vão se salvar ou não, mas é ter comida, encontrar um emprego, poder

pagar o aluguel, sarar das doenças, poder educar os filhos. Esse é o seu

grande temor, o seu “não familiar” [...]. (GUARESCHI, 2000, p.211-212).

Como resultado, as pessoas buscam nos cultos uma resposta aos seus

problemas mais tangíveis e práticos, e os pastores, por sua vez, usam-se desta

linguagem, ancorando-se em formas de representação que coloquem um termo ou

atenuem as mazelas dos fiéis. As ancoragens servem, neste caso, como legitimação da

prática do dízimo, isto é, a uma função ideológica. Mesmo que concretamente a

realidade cotidiana do fiel não tenha mudado “da água para o vinho”, ao nível da

cognição e da interpretação do infortúnio, isto é, ao nível das representações, produz-se

certa familiaridade que os move, conferindo um sentido ao infortúnio e normatizando a

prática na direção de uma mudança patrocinada por Deus e mediada pelo pastor.

Trazemos isto porque, embora o tema não se relacione diretamente ao nosso,

esta passagem demonstra uma aplicação prática, uma maneira interessante de se

aproximar do problema das Representações Sociais. Ela permite que nos aproximemos

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de uma forma a entrever e identificar as situações, a ambiência de estranheza,

desconhecimento e de não-familiaridade onde são fertilizadas as Representações

Sociais.

No caso das representações da gripe na revista Superinteressante, então, a

pergunta que se impõe é a seguinte: quais são os elementos que conferem ao fenômeno

da gripe seu caráter não-familiar, que o tornam incontrolável racionalmente e que

produzem, ao seu tempo, estranhezas, incertezas e, no limite, medos? Essa pergunta é

fundamental, pois ela permite, dentro de nossas análises, a mobilização da noção de

ancoragem, e os processos de associação de ideias. Acreditamos que sejam dois os

principais fatores recorrentes no discurso da revista, a animar estas representações: a) a

mutação do vírus e o risco do surgimento de “novos” e mais letais e b) a relativa

aleatoriedade com que o vírus pode alcançar novas vítimas.

O primeiro destes movimentos localiza na mutação dos vírus — tendo por

base, muitas vezes, o conhecimento que a ciência tem da característica adaptativa do

mesmo — uma força inevitável, isto é, com o tempo, os vírus podem naturalmente

cambiar em sua composição química e, em contato com a vítima despreparada, pode

atuar sem grandes resistências do sistema imunológico. A partir deste elemento

desestabilizador, gerador de não-familiaridade, articulam-se diversas outras

representações mais marginais, menos recorrentes no trato da revista sobre o tema, onde

todas, ao seu modo, buscam conferir à incerteza da mutação e do risco dela advindo um

caráter menos desconcertante, mais familiar, por meio de Representações Sociais. Nem

que isso signifique, dentro da revista, em associações que ligam a mutação a eventos

que levariam a humanidade à extinção ou — em menor grau de nitroglicerina — aos

riscos da atividade científica na manipulação dos vírus, o que implica, conforme

veremos, em certas representações acerca do risco da atividade científica.

O segundo destes movimentos localiza na irregularidade, na relativa ação

errante do vírus que está presente “por aí”, que pode ser transmitido por — e para —

qualquer um, que está presente, ademais, no elemento invisível ar, a fundação de

representações que buscam “regularizar” ou “padronizar” a atividade do vírus,

conferindo à sua ação qualidades presentes em indivíduos psicológicos, isto é, dotados

de uma intencionalidade e racionalidade intrínsecas. Disto resultam, também,

representações mais marginais, como, por exemplo, aquelas que buscam socializar o

vírus, alocando-o em categorias ou grupos cujas ações são reconhecidamente sociais.

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Ambos movimentos podem se cruzar, no sentido de construir um discurso

familiarizador coerente, de maneira que tais representações não são estanques.

Intencionamos poder explicitar com maior clareza aquilo que aludimos mais acima, na

forma de uma introdução aos resultados da análise. A seguir, serão expostos com maior

riqueza de detalhes os processos de representação da revista sobre o tema do vírus da

gripe. Começaremos pelo primeiro destes movimentos: o vírus enquanto ser ontológico.

6.1.1 Subjetivação da gripe: o vírus (mal) intencionado

Uma das formas de apropriação do tema da gripe, na revista Superinteressante,

se realiza por meio de construções que se referem ao vírus como se este fosse um

indivíduo. Através de uma espécie de individuação — ou subjetivação — do vírus, a

revista pode tratá-lo segundo aquilo que conhecemos e lidamos continuamente no dia a

dia: as nossas relações interpessoais. Enquanto indivíduo, o vírus pode ser trabalhado no

texto de maneira metafórica, familiar: como alguém dotado de uma personalidade,

intencionalidade e moral. Isto figura uma forma de representação do vírus como um

ente psicológico e social, ao invés de uma entidade relativamente neutra, que respeita a

leis biológicas. Este esforço confere um sentido lógico e subjetivo — cuja razão é

relativamente identificável por quem foi socializado (todos nós, supostamente) — às

ações do vírus, ao invés de deixá-lo ao domínio de um desconcertante acaso biológico,

onde prepondera uma lógica oportunística e, de certa maneira, imprevisível. É

identificável, no movimento de deslocamento da explicação de uma ordem

característica do universo reificado (ciência) para uma do universo consensual (a vida

cotidiana) a produção de uma familiaridade maior com o tema a ser elucidado pelo

artigo. Desta feita, o vírus pode ser caracterizado como um indivíduo travesso, cuja

insensatez das ações se traduz em maior número de infectados; no limite, em mais

mortes:

(01) O vírus acaba circulando loucamente26 de uma espécie para outra e

aumenta a probabilidade de infectar humanos. (13, 12/05).

(02) Mas quem precisa montar um vírus em laboratório se os que estão por aí

na natureza já mostraram que podem fazer grandes estragos? É o caso do

chamado vírus H1N1, que tem aprontado das suas desde 1918, [...]. (22,

05/11).

26 Faremos uso do itálico nas exemplificações a fim de salientar pontos no texto capazes de ilustrar as

representações analiticamente identificadas.

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(03) Contudo, induzindo mutações em laboratório, os cientistas conseguiram

produzir uma versão do H5N1 que se espalharia com a mesma eficiência da

gripe convencional – que infecta 700 milhões de pessoas no mundo por ano.

Imagine o estrago que o danado poderia causar, se saísse do laboratório. (24,

11/12).

Estas representações aludem a um aspecto psicológico do vírus: em (01), ele

pode ser caracterizado pela figura caricata do louco, cujas atitudes frenéticas e

hiperativas tornam maior a probabilidade de infectar pessoas. Em (02) as atitudes do

vírus são semelhantes a de indivíduos inconsequentes e em (03) se insere um adjetivo

popular psicologizante para referir-se a ele. Enquanto sujeito, o vírus também possui

disposições psicológicas e, por isso, é capaz de reagir emocionalmente a certas

situações:

(04) São estradas livres do policiamento dos cílios, em que outros agentes

infeciosos podem passar tranquilos. Como, por exemplo, o vírus da gripe, se

eventualmente estiver por perto. (05, 06/92).

E de efetuar, por meio de uma racionalidade de grupo, escolhas:

(05) Gangues de vírus preferem bombardear o organismo durante o inverno,

provocando as gripes e os resfriados. (05, 06/92).

Os vírus indivíduos, associados e orientando suas ações conforme a identidade

de sua gangue, “preferem” (05) atacar nos momentos de fraqueza, de maior

vulnerabilidade das suas potenciais vítimas. Não é a vulnerabilidade advinda do clima

frio, das práticas típicas desta época que reconhecidamente favorecem a transmissão do

vírus (ambientes fechados, tocar com as mãos contaminadas os olhos ou a boca etc.)

mas a escolha do vírus socializado que determinará qual será o alvo do ataque. Há,

nesse sentido, uma inversão da relação: o vírus animado por seus valores é quem ataca,

e não a vítima que, em situação de vulnerabilidade ou desatenção, enseja a situação

perfeita para a incubação. A diferença é que desloca-se o caráter casuístico próprio da

transmissão viral para uma lógica onde se insere uma intencionalidade subjacente às

malfadadas ações do vírus: em um caso a “ocasião faz o ladrão”, em outro o ladrão é

quem cria a própria ocasião.

Desta forma, lê-se no subtítulo de um dos artigos da revista sobre o tema, de

agosto de 1999, sobre o influenza: “O massacre dos inocentes”. Talvez um revelador

importante do desconcerto causado pela morte por conta do vírus da gripe seja o grande

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paradoxo que é morrer sem ser culpado, sem ter causado para si mesmo este destino

final. O vírus, na revista, possui um elemento de culpa moral, pois ataca inocentes, isto

é, aqueles que não tem culpa.

Um movimento um pouco menos recorrente é o de subjetivação do corpo.

Ambas as noções que subjetivam o vírus e o corpo se articulam na construção de um

texto informativo, altamente tangível, em virtude dele fazer referência ao que lidamos

cotidianamente. Em grande medida, pode-se supor que ambos os processos de

subjetivação determinam um o outro com a finalidade de construir uma narrativa de

sujeitos que estão em interação. Isto porque, segundo esta lógica, um vírus sujeito não

poderia se relacionar dialogicamente, isto é, segundo uma relação intersubjetiva, com

uma parte do corpo vista unicamente sob o ponto de vista biológico:

(06) Metido nessa encrenca, a primeira reação do nariz é aumentar o volume

do líquido que recobre suas células — daí o fluido transparente que não para

de escorrer, quando alguém está resfriado. (05, 06/92).

(07) Sabe-se que o ataque é iminente, mas ele não tem data certa. O

organismo agradeceria se viesse só no ano que vem, quando as novas drogas

contra o influenza já estiverem nas prateleiras. Mas ninguém sabe se ele vai

ser assim tão cooperativo. (09, 05/99).

Em (06) o nariz pode ser representado como um indivíduo inserido em uma

situação complicada. O deslocamento se opera da seguinte maneira: a reação do nariz,

ou a forma como ele resolveria a situação passaria por um julgamento subjetivo, ao

invés de através de uma ordem biológica de causa (vírus) e efeito (coriza). Em (07),

tanto corpo como vírus aparecem subjetivados; a relação de um com o outro pode ser

explicada segundo a chave de uma negociação entre dois interesses conflitantes, na qual

o vírus, de um ponto de vista comportamental, aparece como o elemento de incerteza:

ninguém sabe se ele será cooperativo.

Nem só através de negociações se fiam a relação vírus/corpo. A ação

parasitária do vírus em relação à célula saudável é interpretada de maneiras menos

condescendentes:

(08) Como quaisquer vírus, os do resfriado escravizam o núcleo das células

que infectam. (03, 06/92).

(09) Mais resumido impossível: o código genético dos vírus de gripe [...]

contém apenas 8 genes [...]. Mas eles são mais do que suficientes para

“sequestrar” e bagunçar completamente as células que invadem, dando

origem a cópias de si mesmo e espalhando a epidemia. (13, 12/05).

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(10) O que o vírus faz, então, é invadir a célula e tomar o controle das

operações. Transformá-la numa fábrica de novos vírus. Num zumbi a seu

serviço. (17, 08/09).

Em ambos os casos busca-se comunicar a submissão completa da célula em

favor da “vontade” de seu algoz, o vírus, através de metáforas potentes — justamente

para dar a ideia de que atingiu-se um ápice, uma absoluta ausência de controle da célula

sobre si mesma. Em (08) a privação dos direitos de “liberdade” da célula (liberdade aqui

pode ser entendida como a atividade normal dela) é cerceada segundo uma lógica

escravista, onde a célula torna-se propriedade do vírus, logo deve submeter-se à vontade

absoluta de seu proprietário. Em (10), o uso da célula pelo vírus é explicado evocando-

se a figura caricata do zumbi — ou “morto-vivo”, muito presente na cultura popular,

principalmente no imaginário do público jovem — cuja característica marcante é sua

ação errática, irracional, alheia a qualquer padrão comportamental aceito socialmente,

de modo que o que lhe resta é sua prática puramente instintiva. A figura do zumbi, no

sentido dos mortos-vivos canibais e descerebrados, já possui grande força atualmente,

aparecendo como tema em muitos meios de entretenimento. É interessante se notar a

analogia com o universo zumbi justamente na crescente deste momento (2009), onde se

consolida certo “fascínio” com os mortos-vivos, principalmente dentre os jovens — um

público potencialmente interessado na revista. É relevante em (09) como o próprio

jornalista, ao colocar o termo sequestrar entre parênteses (relativizando o uso do termo),

reconhece, de alguma maneira, que faz uso de uma metáfora ali. Poderíamos supor que

ele reconheça que um termo tal como este não seja necessariamente apropriado para a

explicação do movimento de sujeição efetuado pelo vírus em relação à célula, e por isso

acene, na frase, que se deve relativizá-lo, propondo um esforço do leitor em entendê-lo

em sua plenitude no sentido figurado.

Os movimentos de subjetivação observados conferem uma racionalidade

subjacente à ação do vírus, retirando sua ação impessoal, de certa forma

descompromissada e puramente fortuita, e atribuindo uma razão lógica, subjetiva, as

suas ações. Infere-se, por meio desta atribuição, as possíveis razões para que a

incubação do vírus tenha se efetivado — semelhante a como somos capazes de inferir,

mais ou menos bem, mediante observação de outros e a partir de nossa experiência na

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socialização, as possíveis razões implícitas, que motivaram esta ou aquela ação das

pessoas.27

6.1.2 Socialização negativa do vírus: identidade de grupo e desvio

Se é possível subjetivar o vírus, também é possível socializar suas relações

com o meio onde este se encontra. O primeiro movimento citado confere a ele uma

personalidade cruel, destituído de qualquer virtude moral, associando-o à imagem e às

práticas de um bandido; o segundo confere a ele um conjunto de relações típicas da vida

em sociedade, conferindo-lhe uma identidade e situando-o como participante de grupos

sociais. Este último tipo de representação, na revista, aparece de maneira mais marginal

(se tivermos a subjetivação do vírus como parâmetro), através do uso de termos que

remetem a um universo social. Mesmo que ele, o vírus, represente a própria negação da

sociabilidade, na medida em que é desviante, sua prática inescrupulosa o alinha aos

interesses “criminosos” dos outros vírus, de modo que se formam grupos, “gangues” de

vírus. É ideal, e talvez a expressão mais forte, no sentido de ilustrar esta representação,

o artigo escrito pela jornalista Lúcia Helena de Oliveira, em Junho de 1992:

(01) Era uma noite fria e (por isso) tenebrosa. Bandidos das piores espécies

estavam de tocaia. A vítima parecia pressentir o perigo, já que sua face

empalidecia, enquanto o nariz ia se tornando cada vez mais vermelho, como

o de um palhaço. Porque o sangue corria para se concentrar ali, naquela área

empinada do perfil, oferecendo todo o seu calor. Era necessário aquecer o ar

aspirado, senão, a menos de 36 graus Celsius, ele danificaria os pulmões.

Além disso, o jato de gás frio estava atrapalhando o desempenho de milhões

de cílios, espalhados pelo corredor que conduzia à nobre região pulmonar,

aonde nenhum estranho deveria ter acesso. Em condições normais de

temperatura, feito excelentes policiais, esses cílios expulsaram diversos

microorganismos intrusos. No entanto, surpreendidos pela mudança do

clima, eles começavam a vacilar — era a hora ideal para os vírus do resfriado

e da gripe atacarem. E, no rastro deles, talvez viessem inimigos muito mais

ardilosos. (05, 06/92).

Noccioli (2010) chama este tipo de recurso linguístico-discursivo, próprio dos

processos de recontextualização28 do discurso científico, de “narrativização”. Por meio

27 Precisamos trazer uma passagem que nos causou certa perplexidade, justamente por parecer falar

exatamente sobre aquilo que nos propomos a entender como a subjetivação do vírus. Disse Moscovici que

o objetivo principal dos sistemas de representação é “facilitar a interpretação de características, a

compreensão de intenções e motivos subjacentes às ações das pessoas”. (MOSCOVICI, 2009, p. 70.

Grifos nossos). Seria a subjetivação o próprio meio de compreensão social da ação do vírus, através das

Representações Sociais?

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de uma espécie de personificação, os elementos presentes no texto tornam-se

personagens, e suas ações são contadas na forma de uma narrativa. No nosso caso, essa

narrativa romantiza a incubação do vírus no corpo da vítima, inserindo um elemento

dramático na teia causal que leva ao estado de gripe.

Essa passagem (01) elenca uma série de imagens a fim de construir um cenário

de tensão crescente, no qual existe a iminência de uma emboscada. A gangue de vírus,

em tocaia, aguarda uma vítima para, no momento oportuno, atacá-la. A narrativa

prossegue, e se determina que a região pulmonar constitui uma área nobre, logo é

justificável a intolerância a indivíduos estranhos naquele ambiente. Ancora-se no

amplamente reconhecido medo e a vigilância rotineira, presente sobretudo nas classes

mais ricas, frente a violência urbana. O termo “intrusos” revela com clareza o contraste

e a carga negativa somada à imagem do vírus quando este se encontra em um ambiente

nobre, contrastando com sua imagem estigmatizada, de modo que se justifica, em

termos de um jogo de poder econômico e distinção social, a sua “expulsão” de lá.

Exemplos como este ilustram que, tivéssemos que desenhar um vírus bandido, além de

ser desviante ele seria, também, pobre.

O aspecto mais ou menos danoso — em relação ao resfriado comum — do

vírus da gripe pode ser medida segundo uma representação social acerca de grupos

criminosos de aspirações maiores:

(02) [...] é quase impossível prever qual será a próxima máscara do bandido,

ou seja, sua próxima mutação genética. Perto dele, aliás, a gangue do

resfriado, cuja ação se limita às redondezas do nariz, parece um grupo de

criminosos novatos. O vírus da gripe, afinal, não se contenta em estropiar as

células ciliadas das vias respiratórias. Seus passeios pelo resto do organismo

terminam em enormes desastres. De carona na circulação sanguínea, ele sai

jogando moléculas de toxinas por todos os lados, às quais o corpo reage

invariavelmente com a febre. (05, 06/92).

O vírus pode ser substituído metonimicamente através de um neologismo que

alude tanto para o caráter de “bandido” do vírus, socialmente rotulado, como para o seu

tamanho microscópico:

28 Adotando uma abordagem que se localiza dentro da tradição da análise de discurso em uma corrente

denominada “Análise do Discurso da Divulgação Científica” (ADDC), para Nocciolli a

recontextualização é o processo de adequação de um discurso especializado (ciência) para um público

amplo, heterogêneo e leigo. A definição da adoção deste ou aquele recurso discursivo é variável segundo

diferentes “parâmetros contextuais, tais como a situação comunicativa, os propósitos de quem produz o

texto e as características de seu interlocutor.” (NOCIOLLI, 2010, p. 15).

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(03) É claro que você pode se prevenir tomando vacina. Mas, pela primeira

vez, temos aliados para enfrentar os microbandidos depois que eles atacam.

São duas substâncias, uma conhecida como zanamivir e a outra, pela sigla

GS4101, capazes de evitar que o influenza se multiplique. (09, 05/99).

Ou que mesclam o status biológico do vírus à imagem do malandro que lança

mão de recursos duvidosos para sobreviver:

Em lugar de óculos escuros, esses biomalandros se aproveitam da capacidade

de alterar levemente uma proteína de sua superfície, a hemaglutinina, para se

camuflar. (10, 08/99).

6.1.3 A mutação como elemento de incerteza: o vírus de “mil faces”

A recorrência da ideia de mutação nos textos da revista sobre a gripe é muito

grande: em praticamente todos os artigos se faz menção a este fenômeno. Ele emerge

como problema para a familiarização de diferentes formas, segundo as representações

empregadas. Contudo, em uma das primeiras vezes em que a ideia aparece, em

setembro de 1989, ela ocorre de maneira bastante peculiar. O artigo em questão traz um

modelo de texto menos comprometido com a simplificação de ideias e metaforizações, e

mais focado na produção de algo mais embasado em fatos científicos29. Ele é de tal

maneira diferente de todas as outras produções da revista sobre o tema que poderíamos

classificá-lo como o caso desviante (GILL, 2010, p. 265) de todo o corpus da pesquisa,

pois diverge do padrão de jornalismo científico que identificamos nela, compromissado

com a acessibilidade da informação. Isso se deve, provavelmente, ao fato de que o

redator do artigo, Artur Beltrame Ribeiro, seja médico livre docente.

Vejamos este caso em questão, onde primeiro aparece a ideia de “mutação”:

(01) As infecções pelo vírus A ocorrem, em geral, em surtos e podem causar

epidemias. Uma peculiaridade desse vírus é sua capacidade de modificar a

própria estrutura química. Após cada modificação surge um novo vírus tipo

A. (02,09/89).

(02) O problema é que os vírus que causam a gripe passam por variações

constantes na sua estrutura, fazendo com que uma vacina perca o efeito

protetor. (02,09/89).

29 Em um determinado momento o autor chega a usar o termo “laringotraqueobronquite” para referir-se às

possíveis consequências do vírus parainfluenza no corpo humano — algo extremamente raro em todo o

material analisado. Seria usado tal termo se o redator do texto fosse um jornalista?

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Contrastemo-lo com o artigo referente à gripe produzido imediatamente após a

passagem anterior, publicado em abril de 1990:

(03) O vírus da gripe A, que constantemente muda de aparência, vem da

China, onde a população rural convive com grande número de patos e porcos.

(03, 04/90).

Neste mesmo artigo:

(04) De vinte em vinte anos, aproximadamente, o vírus da chamada gripe A

muda tanto de aparência que se torna irreconhecível ao sistema imunológico.

O organismo idoso ou com a saúde debilitada, ao ser surpreendido pelo vírus

de cara nova, não consegue preparar a sua defesa e por isso a doença

costuma ser fatal nesses casos. (03, 04/90).

Podemos perceber uma mudança significativa de representação: a partir de (04)

o vírus passa a possuir uma aparência, semelhante àquela que notamos nas coisas

visíveis. Mais precisamente, ele possui uma “cara” — que pode ser nova, no sentido de

desconhecida e não-familiar, ou velha, conhecida e familiar. Este é, também, um

mecanismo de socialização do assunto, que explica a mudança do vírus em termos de

um código socialmente construído: a aparência. Ao ancorar-se na ideia de aparência

física do vírus, a irreconhecibilidade dele por parte do sistema imunológico é explicada

segundo elementos que nos são familiares: o julgamento da aparência física baseada em

valores sociais, ao invés de explicações biológico-químicas. O próprio sistema

imunológico seria capaz de operar segundo sua capacidade de distinguir as múltiplas

aparências do vírus, no sentido de o reconhecer ou não, saber ou não responder as suas

ações perversas, etc. na chave de capacidades, inaptidões ou atributos psicológicos:

(05) O vírus da gripe foi o que mais matou no século XX. Ele usa disfarces

para enganar o corpo. (10, 08/99).

(06) A gripe do tipo A, a suína, é especialmente perigosa porque seu vírus

passa por mutações dramáticas. E a cada cepa surge uma doença para a qual

o sistema imunológico não sabe a resposta. (16, 06/09).

A mutação também pode ser apresentada como um ardil do vírus, que busca,

maliciosamente, disfarçar-se para passar despercebido pelo corpo:

(07) A gripe tem um único culpado. Mestre na arte do disfarce, ele é tão

mutante quanto o HIV, acusado pela Aids. Por esse motivo, os cientistas

penam atrás de vacinas eficazes, uma vez que é quase impossível prever qual

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será a próxima máscara do bandido, ou seja, sua próxima mutação genética.

(03, 06/92).

(08) Esperto, ele se mascara a cada investida, como um bandido que não quer

ser reconhecido. Assim, sorrateiramente, engana as defesas do organismo e

causa as epidemias que fazem parte do nosso cotidiano [...]. (10, 08/99).

Senão um indivíduo “esperto” (08), o vírus subjetivado é dotado de tamanha

destreza no emprego das suas transformações e adaptações que se torna um perito na

arte de passar despercebido (07). O vírus mudado de aparência adota uma persona, um

disfarce. Associado à visão negativa acerca da figura desviante do bandido, a mutação

do vírus é associada a Representações Sociais relativas a indivíduos cujas ações estão à

margem da lei, ou seja, esta visão adota um aspecto moral e valorativo. Esta passagem

alude, também, àquilo que já buscamos identificar como subjetivação do vírus, onde ele

é visto como um indivíduo socializado, passível de sansões sociais (aqui (07), mesmo

que em relação à Aids, revelado com grande clareza pelo termo “acusado”), por efeito

de uma inadequação da conduta do vírus a prescrições sociais. A visão negativa de um

vírus bandido se associa à visão negativa, desestabilizadora, geradora de grandes

incertezas, sobre a qual é representado o próprio processo de mutação do vírus. No

limite, a mutação é uma prática ilícita de um vírus, em essência, criminoso:

(09) [...] nessa caminhada de 1918 para cá, o vírus da gripe H1N1, que

infecta não apenas humanos, mas aves e porcos, recombinou-se com outros

vírus de gripe e gerou outras pandemias, como a asiática, de 1957, que matou

cerca de 1,5 milhão de pessoas. Mais um pouco de recombinação genética e

apareceu o H3N2, a chamada gripe de Hong Kong, que ceifou quase 1

milhão de vidas. Mais um pouco ainda e, voilá, tem-se o H1N1 de 2009.

Tudo isso sem a necessidade de um laboratório para fazer o serviço sujo. (22,

05/11).

Seus passos são monitorados — dado que a adaptação o torna imune à

extinção:

(10) Escaldada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) monitora cada

passo do vírus. “Hoje é difícil que uma pandemia volte a acontecer”, avalia a

virologista Terezinha Maria de Paiva, do Instituto Adolfo Lutz, em São

Paulo. O assassino não foi preso, mas está sob vigilância. (10, 08/99).

Outras passagens buscam articular as noções de mutação e as que representam

a ação do vírus à noções que versam sobre a sua aumentada capacidade de matar a partir

das mutações:

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(11) Ou seja: o vírus dos bois passou por uma mutação genética na época das

primeiras criações e adquiriu o poder de invadir pessoas. Invadir e, agora,

matar sem dó. (17, 08/09).

(12) Em 1918, uma mutação do vírus da gripe se espalhou rapidamente pelo

mundo e, em questão de um ano, matou pelo menos 50 milhões de pessoas.

(27, 10/14).

Incapaz de sentir empatia por suas vítimas, e trabalhando a partir de uma

negação absoluta de princípios morais e éticos, o vírus “mata sem dó” (11). É reforçada

a imagem, diante de tudo o que já foi exposto sobre a subjetivação do vírus da gripe, de

que trata-se de um vírus “assassino”, no sentido doloso, intencional, do termo, e sua

arma é a mutação.

Os processos mesmos de mutação, de partilha de material genético entre vírus,

também é representado. Se eles compartilham uma mesma vítima, a mutação pode ser

representada como uma relação análoga à sexual:

(13) Mas a festa do influenza não parou por aí. Os porcos ficaram vulneráveis

à gripe humana e à aviária, além de terem a gripe exclusiva deles. Então até

hoje acontece uma suruba genética lá dentro. E versões novas e imprevisíveis

do vírus continuam aparecendo. É por isso que todo ano surge uma gripe

diferente, que o nosso sistema imunológico não conhece. (17, 08/09).

Neste mesmo artigo os porcos, por serem capazes de hospedar várias cepas do

vírus da gripe, são denominados “misturadores de vírus”. Essa narrativa é uma forma de

se aproximar do problema, não a única. Em outubro de 2014 essa problemática da troca

genética nos suínos foi apresentada de maneira menos jocosa:

(14) Em 2009, pareceu que a humanidade iria viver uma nova catástrofe.

Começou a circular, vinda dos porcos, uma versão particularmente perigosa

do vírus influenza, o causador de todas as gripes. Os porcos têm uma

característica ruim: eles podem ser contaminados tanto pela gripe humana

quanto pela gripe aviária. Os dois vírus se encontram dentro do porco e

podem trocar genes entre si – gerando uma versão mais forte. Foi o que

aconteceu. O supervírus se chamava H1N1. (27, 10/14).

Com efeito, a mutação é tão simbólica da incerteza imposta por um vírus mais

forte, que ela pode servir como protagonista de uma relação de substituição metonímica:

(15) No entanto, recentemente, um grupo de cientistas da Universidade

Nacional da Austrália desenvolveu uma droga que parece ser eficaz em

bloquear a ação do mutante. (04, 01/92).

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Mesmo o corpo estando imunizado contra a gripe, o risco advindo da mutação

impõe limites à sensação de segurança auferida, e faz da atualização constante dos

métodos de prevenção e tratamento uma rotina:

(16) Os vírus da gripe ainda sofrem mutações o tempo todo, o que os torna

mais resistentes aos remédios e às vacinas. (08, 09/98).

(17) Como o vírus muda de cara, também se altera a vacina todo ano. Para

isso, os laboratórios colhem amostras das vítimas precoces – os gripados no

verão. Assim, sabe-se como será o vírus do inverno a tempo de preparar o

antídoto. (09, 05/99).

(18) Conforme o tempo passa, as pessoas vão sarando, adquirem imunidade e

o vírus da gripe some. Só que, no ano seguinte, ele reaparece em nova versão

— e derruba todo mundo outra vez. (15, 07/08).

(19) E são essas mutações que causam as epidemias mundiais de gripe –

porque resultam em novos subtipos do vírus, contra os quais ninguém possui

imunidade. (15, 07/08).

Neste mesmo último artigo (18-19), o discurso de autoridade de um médico

epidemiologista de Cambridge, Colin Russell, é trazido. No entanto, em seu discurso a

mutação também assume contornos de um embuste, do vírus em relação ao sistema

imunológico:

(20) “O influenza parece ter uma capacidade infinita de enganar o nosso

sistema imunológico”, admite Russell. (15, 07/08).

É interessante que, como em (20), o uso de metáforas não fica restrito, como

poderia se pressupor, aos jornalistas. David Emerson Uip, infectologista da

Universidade de São Paulo, em entrevista na Superinteressante de Junho de 1992, ao

falar sobre os riscos de novas epidemias de gripe, disse o seguinte:

(21) “Você nunca sabe qual a cara do vírus da gripe que vai atacar no Brasil,

no próximo inverno”, exemplifica. “Por isso, o certo é verificar como

aconteceu em outros países e tentar prever o futuro, descobrir quais vírus

entraram no país.” (05, 06/92).

Em passagem semelhante — embora pouco relacionada ao tema da mutação,

mas relevante para mostrar o uso de metáforas por especialistas — a pneumologista

Ilma Aparecida Paschoal, da Universidade de São Paulo, em entrevista ao mesmo

artigo, buscando explicar o funcionamento das estruturas ciliadas das vias aéreas, diz o

seguinte:

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(22) “Cada um deles se movimenta como o braço de um nadador”, descreve

a especialista. “Primeiro, estica-se para o alto, emergindo de uma camada de

água salgada; depois se encolhe, mergulhando novamente.”. (05, 06/92).

Em outra passagem, na mesma entrevista, para desconstituir uma primeira

impressão que se possa ter, de que os cílios podem ser análogos a “pelinhos”, ela diz:

(23) De fato, nem pensar em associá-los aos cabelinhos do nariz: os cílios,

invisíveis a olho nu, são estruturas vivas, que lembram a cauda dos

espermatozoides. (05, 06/92).

Ou, visando compor com imagens correntes a atividade dos cílios, ela diz:

(24) Segundo a médica, observadas no microscópio eletrônico, as tropas de

cílios parecem fazer uma ola, a onda que ergue a torcida nas arquibancadas

dos estádios. Contudo, quando a temperatura esfria de repente, é como se o

movimento passasse a ser realizado em câmara lenta. (05, 06/92).

É interessante observar, do ponto de vista da médica, a pressuposição de que,

para o público ao qual se destina, aquilo que formula já é uma representação social, isto

é, algo compartilhado por muitas pessoas. Uma noção do que vem a ser um

espermatozoide, o seu formato, o seu movimento, já existe — caso contrário a

representação não surtiria o efeito metafórico desejado. A médica é participante do

processo social de representação dos gametas. Ela é capaz de identificar, a partir do que

ouve e vivencia na sua prática, que essa noção é, de fato, disseminada, e poderá ser

compreendida por aqueles com os quais intenta falar. Eis uma representação que se

descolou de seu lugar de origem — a ciência — e penetrou o conhecimento do senso

comum, amplamente reconhecida.

Em alguns momentos o tema da mutação assume contornos dramáticos, em

grande medida por conta do tipo de comparação empregada, ancorada na memória

coletiva em relação experiências traumáticas de epidemia no passado:

(25) Chegou uma hora em que parentes das vítimas deixavam os corpos na

rua para ser recolhidos. Uma em cada 36 pessoas do mundo acabou morta.

Era a gripe espanhola, causada por uma versão mais letal desse mesmo vírus

de hoje, o influenza H1N1. (17, 08/09).

Em outros, para o tratamento do tema da mutação utilizam-se termos mais

descritivos:

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(26) Mas às vezes o influenza se programa para metamorfoses radicais. Aí,

ele vira um supervírus, muito mais feroz. (10, 08/99).

(27) Em lugar de óculos escuros, esses biomalandros se aproveitam da

capacidade de alterar levemente uma proteína de sua superfície, a

hemaglutinina, para se camuflar. (10, 08/99).

(28) Além disso, a domesticação aumentou muito a população desses

animais. Mais corpos para os vírus invadirem. E variações mais letais desses

micro-organismos começaram a aparecer no gado. (17, 08/09).

(29) De qualquer maneira, a velocidade com que a doença se espalhou e a

intensidade dos sintomas sugere que o vírus – que era do tipo H1N1, tal

como o da gripe suína – resultou de uma transformação nas formas de gripe

que existiam antes, e provavelmente também de uma mistura com vírus que

circulavam em animais, como aves e porcos. O problema é saber que

alteração foi essa. (21, 05/10).

“Metamorfose”, “variação”, “transformação” e “mistura” substituem as ideias

metafóricas de “cara” ou “máscara”. Em (27) usa-se de um conceito próprio da

ecologia, a “camuflagem”30, na mesma frase em que se usa o termo “biomalandros”.

Noções cognoscíveis pelo senso comum e de ciência — do universo reificado —

articuladas.

Em (26), pela primeira vez na revista, aparece o termo “supervírus” — aquele

que sofreu “metamorfoses radicais”:

(30) Dentro do porco, os dois vírus se combinaram e originaram um

supervírus, cuja molécula de hemaglutinina era completamente diferente da

dos vírus que normalmente atacavam o homem. A gripe provocada por esse

novo vírus, muito mais perigoso, causou a pandemia conhecida como gripe

espanhola. (10, 08/99).

Aqui, assim como em algumas das suas aparições subsequentes, o termo

“supervírus” significa aquele vírus que trocou material genético com outros, o que

ocasiona o surgimento de um tipo de vírus muito mais perigoso e adaptado às medidas

de tratamento e às imunidades naturalmente ou artificialmente (vacinas) adquiridas pelo

corpo. Com efeito, ele passa a substituir metonimicamente o termo vírus quando a

questão é a capacidade superior do vírus que sofreu “mutações radicais”:

30 “Camuflagem: ECO adaptação em que um organismo possui características que o confundem com o

meio onde vive.” HOUAISS, A.; FRANCO, F. M. M.; VILLAR, M. S. Grande Dicionário Houaiss da

Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 590.

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(31) Mas já existe quem proponha uma solução extrema: a criação de um

supervírus, que juntaria as características de todos os tipos de influenza e

seria usado para estudos em laboratório. (15, 06/08).

(32) Mas, mesmo quando aparecem supervírus, a fatalidade deles tem sido

relativamente baixa. (16, 06/09).

(33) Os dois vírus se encontram dentro do porco e podem trocar genes entre

si – gerando uma versão mais forte. Foi o que aconteceu. O supervírus se

chamava H1N1. (27, 10/14).

Em certos momentos, o surgimento de “supervírus” pode estar atrelado aos

riscos da atividade científica de manipulação:

(34) Usando técnicas de manipulação genética, cientistas criam um

supervírus capaz de eliminar grande parte da humanidade. (23, 03/12).

(35) Cientistas poderiam hoje criar em laboratório supervírus que colocariam

em risco grande parte da população mundial. Correção: eles já fizeram isso.

(24, 11/12).

Risco presente mesmo que a intenção subjacente à manipulação seja,

justamente, combater os vírus:

(36) Quer dizer: a vacina disponível hoje é baseada em vírus de 2007. Os

médicos garantem que, mesmo assim, ela funciona. Mas já existe quem

proponha uma solução extrema: a criação de um supervírus, que juntaria as

características de todos os tipos de influenza e seria usado para estudos em

laboratório. (15, 06/08).

(37) Note que esse tipo de pesquisa, por mais benéfico que possa ser (os

cientistas queriam desenvolvê-la para já preparar uma vacina eficaz antes que

o supervírus surgisse naturalmente), atinge um nível de risco que talvez seja

inaceitável. (24, 11/12).

(38) Ninguém demonstrou isso de forma mais contundente que Yoshihiro

Kawaoka, um controverso cientista da Universidade de Wisconsin-Madison,

nos EUA. Ele pegou o H1N1 e, em laboratório, induziu-o a sofrer mutações

em ritmo acelerado. Acabou criando um supervírus – que é imune a todas as

vacinas conhecidas pelo homem. Kawaoka está tentando se antecipar à

natureza e criar vírus assassinos, bem como defesas contra eles, antes que as

epidemias estourem por aí. Mas e se os vírus escaparem? Ele diz que não há

perigo. (27, 10/14).

A atividade científica de manejo dos vírus possui um risco intrínseco. A

incubação de vírus, “por mais benéfica que possa ser”, trás uma carga de risco

“inaceitável” (37), “capaz de eliminar grande parte da humanidade” (34). Ou seja, a

despeito das ações científicas atuarem no sentido de combater o vírus, a manipulação do

mesmo e a possibilidade de que escape dos ambientes controlados dos laboratórios é,

também, um elemento gerador de incertezas e não-familiaridades.

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Dado o grande potencial dos vírus em se modificar e gerar novos tipos, a ampla

variedade deles, presentes “nos rondando”, é, ora ou outra, citada no corpo dos artigos.

Ela é expressão em números desta grande capacidade do vírus de sofrer mutações:

(39) Pelo menos trezentos vírus diferentes podem causar um simples

resfriado. Não é de estranhar, portanto, que os cientistas tenham praticamente

desistido de encontrar a cura para essa doença. (01, 05/88).

(40) O resfriado é causado por mais de 200 vírus diferentes, que se

manifestam por sintomas semelhantes. A gripe é ainda mais complexa. Ela é

provocada por alguns vírus poderosos e traiçoeiros. (08, 09/98).

(41) Agora imagine: quando duas mutações de um mesmo vírus se encontram

no mesmo organismo, e isso aconteceu nas criações de porcos e galinhas, o

“casal” pode recombinar seus genes na forma de 256 vírus diferentes. E

esses vão se recombinando e recombinando dentro do corpo dos bichos. Aí

foi questão de tempo para surgir uma variação que infectasse o homem. (17,

08/09).

Em se tratando do tema da mutação do vírus, o aspecto do medo parece rondar

as representações deste tipo. Ele sintetiza o sentimento de desconforto constante em não

podermos controlar racionalmente os resultados da rápida adaptação viral:

(42) Há o medo de que o H5N1 se torne tão mortal quanto o vírus da gripe

espanhola e, pelo menos parcialmente, ele é fundamentado. A análise

genética sugere que o vírus de 1918 também veio de aves e sofreu poucas

mudanças para infectar pessoas. (13, 12/05).

(43) Não há garantia de que, contraindo a gripe agora, você estará a salvo da

2ª onda, talvez mais forte que a 1ª. O motivo é simples: pode ser que o vírus

volte com mutações, tornando inúteis os anticorpos desenvolvidos pelo

organismo de quem pegou a gripe suína nesta 1ª leva. (19, 11/09).

(44) O vírus está em permanente mutação, por isso o homem nunca está

imune. As vacinas antigripais previnem a contaminação com formas já

conhecidas do vírus. (30, 04/16).

O uso da expressão “poucas mudanças” (42) confere um teor alarmante à

sentença: a mínima mutação pode causar um episódio semelhante ao da gripe espanhola

de 1918. Não se discute os avanços da ciência que não permitem mais que isso aconteça

com aquela mesma intensidade, apenas compara-se. Em (43), cujo caráter é mais

informativo, com intenções também preventivas, a mutação do vírus impõe riscos que

retiram a segurança sentida por quem acredita que, pegando a gripe uma primeira vez,

estaria imunizado para sempre. Ele também revela uma desestabilização, insegurança,

na medida em que “não há garantia”. Em matéria de 2016 (44), “nunca” estamos

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imunes, dada a mutação permanente, incontrolável, frente a qual o corpo mostra-se

incapaz de adaptar-se de maneira permanente.

Como vimos, a mutação do vírus embasa, dado seu caráter desconcertante,

desestabilizador, inúmeras estratégias de aproximação do problema biológico que é a

diferenciação química do mesmo através de adaptações com seu meio. Circulam a partir

dele noções que traduzem a incerteza da nova forma que a adaptação viral trará em

representações de caráter negativo, ou que levantam a completa fragilidade do ser

humano frente a uma doença que, inevitavelmente, não apenas certamente o atacará,

como também o fará sem uma resposta satisfatória do sistema imunológico. Circulam,

também, noções que reconhecem na própria atividade científica de manipulação dos

vírus, mesmo que bem aventurada, isto é, atuante em prol da superação deles, possui um

risco imanente de fugir do controle e causar um desastre.

6.1.4 Ancorando a guerra: um conflito surdo

A analogia com o universo militar constitui, na revista, um conjunto de

representações mais marginais. Ela se dá na forma de palavras que, podemos supor,

também são usados no universo especializado. No entanto, no contexto das frases,

termos como “combate” ao vírus aliado a termos como “invasores” ou “inimigos”, por

exemplo, assumem um caráter beligerante:

Nesse trecho da trajetória do ar pelo organismo, é possível encontrar cerca de

duzentos cílios de guarita, em uma única célula. (05, 06/92).

São estradas livres do policiamento dos cílios, em que outros agentes

infeciosos podem passar tranquilos. Como, por exemplo, o vírus da gripe, se

eventualmente estiver por perto. (05, 06/92).

“Para facilitar a chegada do exército defensor, os vasos sanguíneos se

dilatam, abrindo o caminho”, explica o médico otorrino Sung Ho Joo, do

Hospital Albert Einstein, em São Paulo. (05, 06/92).

Em seguida, começam os espirros e a tosse, duas formas de expulsar os vírus.

A guerra só termina quando as células do sistema imunológico entram em

cena para destruir os invasores. (08, 11/98).

São células feitas para matar, que atiram primeiro e perguntam depois. (17,

08/09).

E, quando isso [um vírus entra no corpo] acontece, rola uma operação quase

mágica: o linfócito começa a se dividir, gerando um exército de clones

especializados em destruir a célula contaminada com aquele vírus. [...] uma

vez que o exército de clones se forma, ele fica para sempre no seu corpo.

Continua fazendo patrulha para o resto da sua vida. (17, 08/09).

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6.1.5 Algumas considerações complementares sobre o material observado

Julgamos relevante falar brevemente, nas linhas que seguem, a título de

curiosidade, sobre as estratégias da revista para prender ou alcançar a atenção do leitor.

Noccioli (2010) nota que, geralmente, na revista Superinteressante, o título das

reportagens aparece em forma de pergunta retórica, “remontando ao caráter

almanaquista da revista de satisfazer curiosidades a partir de perguntas e respostas”.

(NOCCIOLI, 2010, p. 65). De fato, pôde-se constatar tal estrutura de notícia com certa

recorrência. E mais: notou-se uma disposição que informa uma ideia de que a ciência é,

de fato, uma atividade desmistificadora. Por vezes, dentro dos artigos analisados, foi-se

no sentido da construção de uma experiência epifânica para o leitor, dizendo-o ou que

— supostamente — estava errado, ou que as concepções que — supostamente — tem

divergem demasiadamente daquilo que a ciência diz a respeito. Ou seja, presume-se que

a informação desconstruirá visões errôneas do leitor.

Neste mesmo contexto, algumas frases são construídas com um caráter

preventivo e prescritivo, trazendo a ciência médica como “acalento”, na medida em que

ela traz a resposta prática a problemas e angústias concretas. Estas são estratégias

efetivas para capturar o interesse do leitor, ao relacionar o conhecimento à sua qualidade

pragmática, aproximando o texto à realidade vivida.

Por exemplo:

Mas não desanime. Se a gripe chegar, lembre-se de que não há medicamentos

efetivos contra ela. Recorra ao repouso (santo remédio), muito liquido e

aspirina. (02, 11/89).

O frio está chegando e, junto com ele, a tosse e a febre. Mas alegre-se: este é

o último inverno em que seu corpo terá que lutar sozinho contra a invasão da

gripe. Novas drogas estão a caminho para acabar com a festa do vírus. (09,

05/99).

Então, se, no mês que vem, você se sentir indefeso com o frio, console-se. No

inverno seguinte, a Medicina já estará ao seu lado. (09, 05/99).

Qual foi a pior epidemia de todos os tempos? A Aids, que matou 22 milhões

de pessoas nas últimas duas décadas e devastou vários países da África? A

Peste Negra, surto de peste bubônica que arrasou a Europa entre 1347 e 1351

levando 25 milhões de pessoas e deixando mais de 1 000 cidades desertas?

Ou a gripe? A resposta certa, acredite, é a última. (11, 08/01).

Quando você estiver com a seringa espetada no ombro, vai estar participando

dessa história toda – e sua saúde estará a salvo. O que você não sabe é que,

ao tomar a vacina, você também estará se envolvendo numa nas histórias

mais polêmicas e misteriosas da medicina moderna. (18, 11/09).

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Portanto, melhor seria encarar a gripe do que correr o risco de desenvolver

um câncer. Certo? Errado. (21. 05,10).

Mas calma, não é o fim do mundo: basta aprender a se proteger, saber mais

sobre as formas de transmissão e ficar atento aos sintomas para conseguir

tratar a doença o mais rápido possível. (29, 04/16).

Mas pode ficar tranquilo: a maioria dos casos de H1N1 é benigna, ou seja, as

pessoas, em geral, não morrem disso. (29, 04/16).

Um outro componente muito presente no material analisado é as proporções

escatológicas que uma pandemia poderia assumir, fiando-se a partir de especulações que

visam construir um cenário catastrófico. Trata-se, também, de um recurso para atrair a

atenção do leitor para um imaginário que vê com grande perplexidade o fim último das

coisas: da vida, do mundo, da humanidade etc. De um ponto de vista global,

praticamente todas as noções analisadas se articulam (algumas com maior grau de

afinidade, tais como a mutação) às perspectivas escatológicas, que buscam elucubrar ou

fazer pareceres proféticos de como ocorrerão novas epidemias. Elas irão acontecer, na

perspectiva da revista, e muitas vezes embasado em pareceres de especialistas, uma vez

que a mutação é um elemento biológico cientificamente reconhecido, inevitável, do

transito do vírus. Há uma estrutura notável nos textos, onde o teor das frases parece

acalmar o leitor com visões menos apocalípticas e racionais, porém, na sentença

seguinte surgem textualmente os “mas” ou as más notícias:

A fusão total é muito mais preocupante porque ela resulta em um organismo

contra o qual não há defesa nenhuma e que pode gerar uma variedade imensa

de combinações de genes. O pior é que, tendo acontecido em 1918, não há

razão nenhuma para descartar a possibilidade de que ocorra de novo. (11,

08/01).

Essas são apenas algumas das consequências possíveis se o mundo

enfrentasse uma epidemia generalizada da gripe do frango. Parece irreal?

Infelizmente, não é. A ameaça existe mesmo. (12, 08/05).

Quando uma supergripe chegar, serão necessários estoques de vacinas e

drogas antivirais, funcionários, hospitais, equipamentos. E poucos países têm

isso em quantidade. Por essas, a gripe suína pelo menos serviu de alerta para

quando a próxima pandemia vier. (12, 05/05).

O risco é real, mas o fato é que ninguém sabe quando – nem se – a doença

vai mesmo se tornar um problema sério para a saúde humana. Aproveitando

que a pandemia ainda não veio, [...]. (13, 12/05).

Os vírus mais letais são os menos contagiosos. Mas suas mutações não tiram

do caminho a possibilidade de que um deles mate milhões. (16, 06/09).

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Até o fechamento desta edição a gripe suína não tinha arrasado o mundo. A

humanidade pode ter escapado desta vez – mas a pulga atrás da orelha não.

(16, 06/09).

Apesar de o sistema de saúde hoje ser bem melhor que o do começo do

século 20, os criadouros de vírus também são. [...] A [gripe] aviária acabou

controlada. A de hoje talvez não fique tão pesada quanto a espanhola. Mas

não dá para prever o que pode vir por aí. (17, 08/09).

É impossível prever a evolução da pandemia. Pode ser que o vírus permaneça

como está, sem sofrer mutação alguma, e não ofereça perigo maior do que já

oferece. Mas também pode ser que ele volte mais resistente, contagioso e

letal. (19, 11/09).

Usando técnicas de manipulação genética, cientistas criam um supervírus

capaz de eliminar grande parte da humanidade. Parece um roteiro de filme,

mas está acontecendo de verdade. (23, 05/12).

Gripe aviária, gripe suína, ebola. Isso foi só o começo. Para muitos cientistas,

o mundo irá viver uma grande epidemia — que afetará boa parte da

população mundial. E ela pode começar a qualquer momento. (27, 11/14).

A epidemia está sendo contida e, ao que tudo indica, não haverá uma

epidemia global. Mas o caso já é apontado pelos especialistas como um

ensaio do que está por vir. (27, 11/14).

E porque, ao contrário do HIV, por exemplo, ele mata depressa — o que

evita que a pessoa tenha tempo de espalhar a doença para muitas outras. Mas,

se ele sofrer uma mutação, [...] a humanidade não terá como escapar de uma

epidemia global. (27, 11/14).

Por isso, há cientistas trabalhando a todo vapor para tentar evitar que esse

cenário se concretize. Mas há uma variável incontrolável nessa história toda.

(27, 11/14).

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Só que, neste momento, as atenções se voltam mais que nunca para a gripe

porque espera-se uma epidemia séria em breve. A suspeita provém da

habilidade do vírus de se transformar. “De tempos em tempos, ele passa por

grandes mutações”, adverte André Vilela Lomar. As mudanças radicais

aparecem depois que o vilão invade animais como porcos e galinhas. Aí, a

nova geração volta para o homem com uma cara quase irreconhecível para o

sistema imunológico. E pega o nosso exército de anticorpos de surpresa. (09,

05/99)

Esta passagem, retirada da revista Superinteressante de maio de 1999,

demonstra com grande clareza, e de maneira sintética, a fluidez como se fiam a maior

parte dos textos da revista: representações sobre a iminência de novas epidemias, o

aspecto da mutação do vírus, o conteúdo moral de um vírus “vilão”, e as associações

com formações e atividades militares articulam-se de múltiplas maneiras, conferindo

significações muito ricas, em um mosaico de ideias e de representações conjugadas com

a finalidade de aproximar aquilo que é dito sobre ciência do universo do público leitor

mais geral.

Por isso mostrou-se difícil, no decorrer do capítulo referente às análises,

trazermos exemplos puros referentes às categorias nativas de Representações Sociais

que nos propomos a utilizar. Dificilmente são identificáveis passagens onde exista

somente uma representação isolada as animando. De fato, cremos que isto demonstra a

riqueza do material empírico a que nos dispusemos a analisar, onde há uma profusão e

entrelaçamento de inúmeras representações, e demonstra, também, que as diversas

articulações, além de revelarem a fluidez das representações que se comunicam entre si,

formam, não obstante, um texto coerente, de fácil apreensão, justamente por conta de

sua continuidade com aquilo que estamos acostumados a lidar no dia a dia.

Foi possível constatar-se, à luz da Teoria das representações sociais e em vista

do material empírico, que as estratégias representacionais adotadas pela revista

deslocam a explicação de um viés abstrato e própria do universo reificado, para uma

explicação mais imagética e concreta, referente ao universo familiar cotidiano por meio

de noções do universo consensual, ao conferir uma concretude tangível, isto é, acessível

por qualquer um, ao objeto em questão.

Constatou-se, também, a partir da ideia de que as Representações Sociais

emergem em resposta a situação de estranhamento ou descontrole, que os grandes

elementos propulsores das representações, nesse sentido, foram a) o fato de um vírus

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mostrar-se capaz de mudar sua estrutura química tão rapidamente e tão constantemente,

impossibilitando à ciência seu controle racional, através de previsões, e b) o elemento

contingente, incerto, capaz de construir um sentimento de insegurança, que é a relativa

aleatoriedade com que a gripe pode “escolher” as suas vítimas, acessá-las por meio de

um elemento invisível — o ar — e de poder acometer qualquer um de nós, sem que

possamos estabelecer uma razão lógica previsível para isso — tais como uma culpa, que

possibilitaria uma explicação causal. A previsibilidade, neste último ponto, apesar de

poder ser delimitada do ponto de vista biológico, ou seja, tal gripado agiu de tal ou qual

maneira que possibilitou a incubação do vírus, não há uma razão ética, moral, ou

mesmo social, do vírus aplacar indivíduos presumidamente “inocentes”. A partir de um

esforço em conferir uma racionalidade subjacente à ação do vírus, esta pode ser

interpretada como advinda de um indivíduo mal, que ataca vítimas vulneráveis, e não

segundo uma relação de causa (ações que facilitam a entrada do vírus no organismo) e

efeito (o estado de gripe), que pode ser interpretada como — de um ponto de vista

moral e ético — neutra.

Diante disso tudo, mostrou-se extremamente fecunda ter como ferramenta de

análise do material empírico a Teoria das Representações Sociais. Sem dúvida, o

próprio pesquisador partilha destas representações, de maneira que, no decorrer das

leituras, mostrou-se possível se reapropriar criticamente destas representações

compartilhadas, a fim de problematizá-las, tentando ao máximo revelar-lhes o caráter

social.

A revista Superinteressante possui uma identidade muito característica,

revelando em sua linha editorial artigos com certa tendência a privilegiar assuntos

ligados a aspectos esotéricos e místicos da sociedade, geralmente associados a assuntos

que causam grande perplexidade e, por isso, curiosidade. Tais assuntos são objeto de

grande interesse do público em geral, tendo especial atratividade aos interesses da

parcela mais jovem. Porém, é temerário generalizarmos esta característica como se

fosse uma tendência, a qual outras revistas também seguem, antes de fazermos uma

análise comparativa da revista com outras do seu gênero. Um estudo deste tipo seria

capaz de revelar não somente as similitudes entre revistas brasileiras de jornalismo

científico, mas também as diferenças, as diversas maneiras de se aproximar dos temas,

os temas mais recorrentes, as diferentes representações que se criam acerca do público

leitor e da própria ciência etc. E se, afinal de contas, a diferença reside, principalmente,

quanto ao corpo de jornalistas responsáveis pela redação dos artigos, variando de revista

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a revista, um estudo que coloque, qualitativamente, lado a lado, jornalista e artigo —

ressaltando suas especificidades de sujeito, sua relação com o objeto do artigo, o que

pensa a respeito, qual a sua relação com a instituição da revista, até que ponto ela influi

na sua produção e até que ponto o que escreve faz menção, sobretudo, àquilo que pensa

a respeito etc —, seria de grande valia para o campo do estudo das Representações

Sociais. Estudos assim levantariam tanto o aspecto da produção da mente (os artigos)

como o seu enraizamento nas subjetividades e grupos que lhe deram origem.

Uma outra abordagem, um tanto mais complexa, poderia comparar as revistas

brasileiras de jornalismo científico a outras, do mesmo gênero, de outras partes do

mundo, a fim de mostrar as modificações que o contexto social impõe às produções das

revistas, e como as revistas, em resposta, traçam estratégias de adaptação, ou mesmo

omissão31 dos temas fitados. Tais estratégias seriam capazes de mostrar — a partir de

uma imersão (mesmo que incompleta) do pesquisador ao universo de valores de uma

sociedade específica — como as Representações Sociais, isto é, as metáforas e

analogias que fazem sentido para nós, podem não o fazer para os outros povos.

É evidente que a revista, ao representar sobre o seu público leitor, homogeneíza

seus conteúdos, a fim de contemplar o — imaginado — público geral. Neste processo, a

revista passa ao largo de uma realidade, a rigor, diversa, altamente plural, como é a

deste país continental, o Brasil. Ignoram-se, por uma razão até compreensível, de

recorte, os regionalismos e as possíveis leituras diversas que seus textos poderão ser

objeto. Este é um problema, aparentemente, insolúvel, uma vez que se pode inferir que a

revista não somente é um empreendimento voltado para a cidade, como também é

centrada no eixo Rio-São Paulo. E não é um problema somente das revistas de

jornalismo científico, mas um problema da interdição que os meios de comunicação

hegemônicos e oligopolizados impõem aos meios alternativos.

O presente trabalho buscou mostrar a efetividade das representações analisadas

no interior dos textos e em relação ao contexto social, a partir de um exercício de

interpretação, sem se focar demasiadamente em um aspecto crítico. No entanto, é

impossível não sentir, ao fim das leituras do material empírico e das análises, certa

inquietação quanto à qualidade da informação sobre ciência veiculada na revista. O

problema da adaptação de um conhecimento reificado, científico, para o universo leigo,

consensual, ainda se impõe e, ao que tudo indica, permanece sem uma solução

31 Por exemplo, como seria tratado o tema da homossexualidade em sociedades mais tradicionais ou cuja

presença da religião é muito forte? Em casos assim, é possível que o tema nem entre em pauta.

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satisfatória, que permita, de um lado, a transmissão de uma informação confiável sem

recorrer, no entanto, aos jargões científicos que afastam o leitor daquele conhecimento,

mas que, de outro, não perca um mínimo de rigor conceitual e critério, a fim de impedir

que o conhecimento se simplifique demasiadamente e emerja como produto de um

processo (científico) no qual a contradição e a sua construção dialética sejam deixados

em segundo plano — ou sequer sejam aventados. Isto porque, nos artigos analisados,

das vezes em que constatamos a existência de uma menção ao fato de um determinado

desenvolvimento científico ainda estar em “fase de testes”, ou que “resta testar sua

aplicabilidade em humanos”, praticamente nenhuma delas era feita no início ou no

corpo do texto: somente no final — ou na própria frase final.

O cenário escatológico, construído segundo profecias embasadas no

conhecimento científico sobre o vírus, são ainda mais inquietantes. Será esta uma forma

prudente de veiculação de informações científicas? A imagem que se tem é que a

revista, ou mais especificamente, alguns de seus jornalistas — especialmente os artigos

de Salvador Nogueira32 (vide Quadro 1) — buscam fisgar a curiosidade dos leitores à

qualquer custo, e o que, num primeiro olhar, pode parecer um exercício inocente de

imaginação sobre o fim da humanidade, poderá, talvez, traduzir-se como um medo real

no leitor. Isso é agravado ainda mais se levarmos em conta o contexto de baixa

educação científica no Brasil.

Pechula (2007) problematiza a veiculação de informações científicas na mídia

de massa. Em nosso contexto de “sociedade da informação”33, transforma-se o

conhecimento científico em informação sobre ciência, isto é, em notícia, de maneira

que, neste intenso fluxo de informações atual, ela é rapidamente veiculada. Esta rapidez,

no entanto, guarda problemas insolúveis sem que se problematize essa própria maneira

de informar e veicular conhecimentos científicos:

[...] a ciência é transformada em notícia; e a pesquisa, mesmo que ainda em

processo de formulação ou hipótese, é rapidamente divulgada. Contudo,

geralmente, é divulgada como descoberta, criação já acabada ou como início

de uma descoberta que alcançará o seu intento. O receptor, sem o saber,

torna-se consumidor desse tipo de informação que, transformado em notícia,

torna-se um fenômeno cotidiano e é consumido como as demais notícias. E,

assim como essas, a informação científica não possuirá aprofundamento,

32 A maior parte das passagens escatológicas no material analisado foram escritas por este jornalista — o

que pode significar que seja possível se traçar, com grande proveito, um perfil de jornalismo científico

particular a certos jornalistas. 33 “[Na sociedade da informação] vive-se cultural, política, científica e, principalmente, economicamente

em torno da circulação de informações.” (SIQUEIRA, 1999, p. 25 apud PECHULA, 2007, p. 217).

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detalhes teórico-conceituais, o que impedirá a compreensão mais profunda da

informação recebida por parte do telespectador. (PECHULA, 2007, p. 117).

Como resultado, engendra-se uma visão ingênua da ciência, transformando-a

em espetáculo e “encantando-a” (PECHULA, 2007). Em outro trabalho, a autora

(PECHULA, 2001) buscou mostrar como a revista Superinteressante, junto a revistas

como Galileu — que partilham do mesmo propósito de informar sobre ciência de

maneira “descontraída” — reforçam um imaginário mítico-sagrado do discurso

científico-racional, onde, embora a informação possa referir-se, de fato, a conteúdos

originados no campo científico, os signos de apreensão usados na revista (imagens e

palavras) são de ordem mágico-religiosos:

[...] os veículos de comunicação de massa, quando se propõem a informar as

descobertas e invenções científicas, o fazem em nome do conhecimento

“dito” científico [...]. Entretanto, ao produzirem a informação acerca da

descoberta, ou criação científica, continuam utilizando alguns signos que

representam o mundo sagrado e mítico, que se expressam de forma

misteriosa e “mágica” e, às vezes, até profética, criando no telespectador, ou

leitor, um imaginário que dá continuidade às visões mítico-sagradas, porém

apresentadas em nome da produção científica, que assumem um papel

substitutivo da crença religiosa (mítica e sagrada) existente anteriormente.

(PECHULA, 2001, p. 206).

É claro que poderíamos levantar as possibilidades humanistas que este formato

de divulgação de ciência poderia trazer consigo, tais como o estabelecimento de uma

“ciência popular”, mais afeita a uma lógica social, isto é, prestigiando sua efetividade

dentro do cotidiano, operando como meio com o qual as pessoas interpretam o seu meio

e conferem coerência a ele, do que a uma lógica científica, que se preocupe com o rigor

e a descrição minuciosa. De fato, neste contexto, podem emergir conhecimentos

híbridos, de uma outra natureza, embasando ou enriquecendo saberes populares. No

entanto, este caráter simplificador, de releitura dos saberes científicos, usando-se de

figuras e caricaturas, metáforas e analogias, não terminaria servindo, justamente, como

o contrário daquilo proposto pelo método científico, que é a desconstrução daquilo que

temos como certo ou natural? Na medida em que, como vimos, associam-se a ideia de

um vírus à imagem de um indivíduo desviante, ou que vejam a agremiação de vírus

como se fossem gangues, não se reforçariam preconceitos e ideias correntes, referentes

a parcelas marginalizadas da sociedade? Seria esta uma contribuição jornalística

socialmente responsável para a construção de uma cultura científica, frente ao imenso

déficit educacional brasileiro no tocando à educação científica, ou um recurso

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meramente adaptativo, onde se adequa o discurso a um contexto onde há pouca cultura

científica? Tudo isso ao invés de se focar em contribuir para uma maior consciência

crítica, reflexiva, frente aos avanços da ciência e da modernidade? O que fala mais alto:

um aspecto econômico, ditado pela busca da maior tiragem de revistas possível,

prestigiando um leitor que sente conforto ao ler aquilo que reforça o que já está

acostumado a ver e ouvir, ou um aspecto emancipador, através da busca pela produção

de um material provocador, que incite as pessoas para que reflitam à luz da ciência?34

Assim, estas estratégias de familiarização, na medida em que se baseiam em

Representações Sociais, endossam e reafirmam uma realidade social, muitas vezes

naturalizando certas noções preconcebidas de senso comum, que invisibilizam

problemas e que, retirando o aspecto contingente da cultura, naturalizam a sociedade tal

como ela é, envolvendo-a com uma aura de que é necessária, ou seja: ela é assim

porque deveria ser assim. Com efeito, isto alimenta, dentre outras coisas, ao lado de

noções religiosas como a de “destino”, por exemplo, certo fatalismo observável na

sociedade brasileira.

Essa situação não será facilmente superada, ainda mais no contexto brasileiro.

Ela se complexifica ainda mais a partir do momento em que consideramos que os

próprios leitores podem, num primeiro momento, não se interessar pelo discurso

puramente científico, dado, por um lado, o afastamento que este opera em relação ao

leitor, enveredando pela contramão daquilo que vemos e ouvimos no universo

consensual, e de outro por conta da falta de familiaridade do brasileiro com a ciência,

em geral, e a sua linguagem. Segundo pesquisa recente, citada por Massarani e Moreira

(2012, p. 9), há um grande interesse por parte do público brasileiro em geral em relação

à ciência — interesse muito próximo, estatisticamente, a temas como esporte e

economia. No entanto, ainda há pouco material a ser consumido relacionado à ciência e

tecnologia na televisão. Assim, conforme vimos no depoimento do diretor da revista

Galileu (capítulo 5, página 45), a própria palavra “ciência”, no Brasil, poderia assumir

uma conotação capaz de assustar e afastar potenciais leitores — o que não é difícil de se

intuir como sendo algo verdadeiro. Isto aceito, parece que o “buraco é mais embaixo”.

Não se trata tanto de uma falta de interesse, porém mais uma questão onde se alinham,

34 No Brasil, um outro problema que dificulta uma maior presença da ciência como reflexão crítica do

real nos meios de comunicação é o reduzido espaço concedido nestes meios às ciências humanas. Bertolli

Filho (2006, p. 6) diz: “Tornou-se ponto comum na mídia aceitar que as matérias integrantes das revistas,

cadernos e seções de ciência devem se reportar quase que exclusivamente às chamadas ciências básicas

(Física, Química e Biologia) e às ciências aplicadas (Engenharia, Medicina, Agronomia, dentre outras),

eliminando ou minimizando as possíveis matérias voltadas para as ciências humanas (Melo, 1985:140)”.

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de um lado, uma baixa capacitação para a leitura de conteúdos científicos e, de outro, a

forma peculiar como se escreve sobre ciência nos meios especializados.

A solução desta questão passaria, inexoravelmente, por investimentos maiores

na educação, para a construção de subjetividades mais aptas à leitura e compreensão de

textos e conteúdos científicos, e a consequente desconstrução desta visão corrente de

ciência como “coisa de cientista”. Investimentos que busquem suplantar a ideia das

pessoas de que a ciência é uma instituição reificada, que não lhes diz respeito e separada

dos seus mundos — ideia esta representada, principalmente, pela figura caricata do

cientista de jaleco branco manipulando microscópios —, empobrecendo-a, ou que a veja

somente como uma “mão” impessoal que busca resolver problemas, mas como um

recurso importante e cada vez mais necessário, tanto para a compreensão e crítica do

real como para — num mundo cada vez mais competitivo — a inserção social nele.

Tais problemas, evidentemente, não são exclusivos da população mais geral,

“leiga”: eles se apresentam mesmo no âmbito dos próprios jornalistas. O

desconhecimento em ciência revela-se com a precariedade da formação acadêmica dos

jornalistas que atuam no campo científico. Ao nível da graduação, raras são as

universidades que oferecem disciplinas relativas ao jornalismo científico, mesmo que

em caráter optativo. As especializações nesta área, que passam a surgir somente a partir

da década passada, ainda mostram-se escassas frente à demanda dos meios de

comunicação e o interesse do público. (BERTOLLI FILHO, 2006).

No presente trabalho, foi aceito que o jornalista científico figura uma espécie

de tradutor, alguém que, transitando entre não-familiaridades, desloca o discurso

especializado de sua origem reificada adaptando-o a uma linguagem comum, por meio

de metáforas e analogia com elementos corriqueiros, com o intuito de que ele possa ser

lido e, sobretudo, entendido pelo maior número de pessoas possível. Estas estratégias

empregadas são, por vezes, repudiadas por cientistas, por inúmeros motivos — dentre

eles a facilidade em se incorrer em erros e simplificações. No entanto, segundo Bertolli

Filho (2006), tais analogias e metáforas mostram-se também efetivas nas formulações

da ciência, e são amplamente utilizadas como recursos nestes contextos:

Tomando-se como exemplo o discurso da imunologia, há mais de um século

os especialistas vêm utilizando um vasto arsenal de metáforas e isto se tornou

tão corriqueiro naquela área do saber que, sem qualquer constrangimento,

muitos pesquisadores não mais percebem o seu emprego, notando a presença

de tal dispositivo provisório da linguagem apenas nos textos e falas de outros

locutores (Löwy, 1996). (BERTOLLI FILHO, 2006, p. 5).

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Com efeito, isto é capaz de fragilizar uma crítica mais contundente aos

métodos e estratégias adotadas pelo jornalismo científico. Alguns autores como

Zamboni (2001 apud BERTOLLI FILHO, 2006) acreditam que, ao invés de produzir

um discurso distorcido, degradado, o jornalismo científico produz um gênero de

discurso científico específico, cuja lógica e legitimidade são próprias. Como resultado,

formula-se um discurso autônomo, diferente daquele que o originou. Orlandi (2001)

defende que da relação entre estes dois discursos não emerge meramente uma somatória

dos dois, que pode ser criticada quanto ao seu maior ou menor valor em fidedignidade,

“mas uma articulação específica com efeitos particulares em um jogo complexo de

interpretação”. (ORLANDI, 2001 apud ROCHA, 2007, p. 47).

Ainda, admitir-se que, no processo de transmissão e popularização da ciência

pelos meios jornalísticos, agregam-se “contaminações” ou outras impurezas as suas

produções, pode levar-nos a enveredar por um caminho um tanto movediço. Essa

questão requer certos refinamentos e problematizações sem os quais se reforça uma

estratificação que separa, valorativamente, a ciência “genuína”, “pura” — e que serve

como instrumento de controle, da parte da classe científica, de sua própria imagem —

de uma ciência “vulgarizada”, “distorcida” ou “descaracterizada”. A ideia de

popularização pressupõe uma clara distinção entre “conhecimento científico genuíno” e

sua “circulação popular”. Isso constitui aquilo que Hilgartner (1990 apud BAUER,

2000) chamou de “visão dominante da popularização”. A classe científica endossa esse

ponto de vista dominante, que serve de instrumento discursivo para firmar a autoridade

científica e demarcar seu campo em contraste com os dos grupos a ele externos. Esse

campo se apresenta como uma arena cujas finalidades são políticas: “Tem-se a

impressão que se um traço particular da popularização favorece a causa do(a) cientista,

ele é “adequado”; se não favorecer o ponto de vista dele, ou dela, ele é inadequado”.

(BAUER, 2000, p. 238-239).

Assim, uma discussão sobre o processo de crescente afastamento do leitor leigo

do universo científico levaria em conta os processos de delimitação discursiva dos

campos. Para Rocha (2007), a fim de problematizar o lugar enunciativo da revista

Superinteressante, o processo de divulgação científica produz uma “‘exterioridade’ da

ciência, uma vez que o leitor da ‘ciência’ mantém o lugar da ciência como um lugar

ainda distante da sociedade.” (ROCHA, 2007, p. 44. Grifos nossos).

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Como vemos, esta questão é muito mais complexa do que inicialmente pode

parecer. Inúmeros interesses discursivos, de delimitação de campos e de poder estão

imbricados nesta problemática, dificultando a formulação de uma solução, a partir do

estabelecimento de um diálogo mais próximo entre cientistas e jornalistas.

Por fim, uma breve reflexão acerca das possíveis implicações políticas da

Teoria das Representações Sociais. Sobre uma possível contribuição desta teoria para a

modificação e superação de problemas sociais, Maria Cecília Minayo diz o seguinte:

Por serem ao mesmo tempo ilusórias, contraditórias e “verdadeiras”, as

representações podem ser consideradas matéria-prima para a análise do social

e também para a ação pedagógico-política de transformação, pois retratam e

refratam a realidade segundo determinado segmento da sociedade.

(MINAYO, 2000, p. 110).

Conforme busquei mostrar, à luz da teoria de Moscovici, as Representações

Sociais constituem verdadeiras “lentes” por meio das quais decodificamos uma

realidade que é, a rigor, inexpressiva por si mesma; ela só é cognitivamente acessível

quando, mediando a relação do sujeito com uma objetividade — seja ela um “outro”,

um objeto inorgânico ou acontecimento factual —, estejam as Representações Sociais.

Elas são também históricas, na medida em que se baseiam em certas estruturas

simbólicas e de saber/poder que se modificam com o passar do tempo — seja sob

influência do conhecimento cumulativo advindo do progresso científico, seja por

acontecimentos ou processos históricos gradativos que abalem ou gerem fissuras

criativas em tais estruturas.

Assim, sendo tanto uma maneira com que vemos como, sobretudo,

reverberações de um momento histórico da maneira como vemos o mundo, as

representações sociais que se constituem como problemas sociais podem ser superadas

por meio de uma mudança nas representações. A educação possui, nesta tarefa, um

papel fundamental.

Em um contexto como o Brasil atual, onde se soerguem fundamentalismos de

toda a sorte, intolerâncias, preconceitos e desconhecimentos, o estabelecimento de uma

consciência social de que uma forma de ver o mundo não pode se sobrepor às demais

traria um grande fôlego para a luta política democrática, pelo alcance de direitos sociais

e reconhecimento das parcelas minoritárias da sociedade, e enriqueceria, se disseminada

para a população, o debate sobre temas sensíveis fundamentais para a superação de

nossos desatinos. Um primeiro passo importante nesse sentido foi dado com o

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estabelecimento obrigatório da sociologia no ensino médio. Embora haja uma luta

crescente em oxigenar a legitimidade da sociologia nas escolas, é fundamental que tais

conhecimentos sejam justificados frente à sociedade, tanto por intervenção dos

cientistas sociais, como por meio de patrocínios institucionais que reforcem a sociologia

como disciplina obrigatória. A própria mídia poderia exercer influência positiva neste

sentido.

Em um mundo altamente informatizado, onde a convivência com o outro, com

outras culturas, é intensificada e colocada à distância de um clique, e onde a informação

é produzida sem parar e — como vimos — sem critério, e posta ao alcance de (quase)

todos, é preciso uma educação que prestigie duas frentes: primeiro, que consagre a

alteridade como parte da experiência humana, e que desconstrua Representações Sociais

que justificam e dão base social para os desequilíbrios brasileiros; em segundo, que

empodere as pessoas com uma postura reflexiva frente os descaminhos que os meios de

comunicação monopolistas impõem à sociedade brasileira, trazendo a ciência não como

“salvadora”, mas que estabeleça o pensamento crítico como rotina de filtragem do

imenso fluxo de informações — que são, muitas vezes, maculadas por intenções

políticas “camufladas”, desinformações inflamatórias e polarizantes.

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