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1 2 1 Estudos de Sociologia, Araraquara, v .14, n.26, p.121- 140, 2009 TENDÊNCIAS CATÓLICAS: PERSPECTIVAS DO CRISTIANISMO DA LIBERTAÇÃO Flávio Munhoz SOFIATI * 1 RESUMO: O texto analisa as diferentes vertentes da Igreja Católica no Brasil, apresentando-as a partir de teóricos da própria Igreja das ciências sociais. Em seguida, discute-se a tendência ligada à Teologia da Libertação, chamada de Cristianismo da Libertação. Arma-se que o conceito de “Tendências Internas do Catolicismo” é mais apropriado para compreender os processos internos do catolicismo e que, atualmente, a Teologia da Libertação vem perdendo espaço no cenário religioso. Isso ocorre em virtude de questões internas – como o fortalecimento do movimento carismático – e externas – como o advento do neoliberalismo. Diante dessa situação, esse segmento assume uma nova postura de atuação, que tem como idéia central a construção de mudanças “de baixo para cima” e em longo prazo. Conclui-se que houve um recuo programático dessa tendência que passa a priorizar sua ação no interior da Igreja e a valorizar temas como espiritualidade, ecologia e cultura em detrimento da dimensão política. PALAVRAS-CHAVE: Sociologia da Religião. Catolicismo. T endências católicas. Teologia da libertação. Introdução A visita do Papa Bento XVI em 2007 ao Brasil, na ocasião da abertura da 5ª Conferência Geral do Episcopado da América Latina e Caribe , reacendeu o debate e a crítica acerca das posições conservadoras da Igreja Católica (IC). O discurso contra a legalização do aborto e a defesa de temas tradicionalistas, como o retorno da missa em latim, expressam objetivamente as posições de Roma. Além disso, a visita de Bento XVI teve o sentido de fortalecer a estratégia católica de recuperação de seus éis na América Latina. Dessa forma, demonstrou-se uma *  USP – Universid ade de São Paulo. Facu ldade de Filoso a, Letras e Ciências Humanas – Departamento de Sociologia. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. São Paulo – SP – Brasil. 05508-900 – avioso[email protected] 

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TENDÊNCIAS CATÓLICAS: PERSPECTIVASDO CRISTIANISMO DA LIBERTAÇÃO

Flávio Munhoz SOFIATI * 1

RESUMO: O texto analisa as diferentes vertentes da Igreja Católica no Brasil,apresentando-as a partir de teóricos da própria Igreja das ciências sociais. Em seguida,discute-se a tendência ligada à Teologia da Libertação, chamada de Cristianismo

da Libertação. Afirma-se que o conceito de “Tendências Internas do Catolicismo”é mais apropriado para compreender os processos internos do catolicismo e que,atualmente, a Teologia da Libertação vem perdendo espaço no cenário religioso.Isso ocorre em virtude de questões internas – como o fortalecimento do movimentocarismático – e externas – como o advento do neoliberalismo. Diante dessa situação,esse segmento assume uma nova postura de atuação, que tem como idéia centrala construção de mudanças “de baixo para cima” e em longo prazo. Conclui-se quehouve um recuo programático dessa tendência que passa a priorizar sua ação no

interior da Igreja e a valorizar temas como espiritualidade, ecologia e cultura emdetrimento da dimensão política.

PALAVRAS-CHAVE: Sociologia da Religião. Catolicismo. Tendências católicas.Teologia da libertação.

Introdução

A visita do Papa Bento XVI em 2007 ao Brasil, na ocasião da abertura da5ª Conferência Geral do Episcopado da América Latina e Caribe, reacendeuo debate e a crítica acerca das posições conservadoras da Igreja Católica (IC). Odiscurso contra a legalização do aborto e a defesa de temas tradicionalistas, comoo retorno da missa em latim, expressam objetivamente as posições de Roma. Alémdisso, a visita de Bento XVI teve o sentido de fortalecer a estratégia católica derecuperação de seus fiéis na América Latina. Dessa forma, demonstrou-se uma

*  USP – Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento

de Sociologia. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. São Paulo – SP – Brasil. 05508-900 –

[email protected] 

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simpatia do Papa aos movimentos católicos que estão tendo certo sucesso nessaestratégia, em particular a Renovação Carismática Católica (RCC).

Do outro lado da balança está a Teologia da Libertação (TL), as Comunidades

Eclesiais de Base (CEB´s), as pastorais sociais e da juventude que compõem o queLöwy (2000) chama de Cristianismo da Libertação. Esta se encontra numa crise deidentidade desde meados de 1990. Apesar do Papa não ter expressado publicamenteuma posição contrária a esses setores, essa permaneceu à margem de sua agendano Brasil, sendo que a RCC participou, organizou e articulou a maior parte de suasatividades. Por exemplo, na missa de beatificação do Frei Galvão, no Campo deMarte em São Paulo, todo o mobiliário do altar foi cedido pela Comunidade deVida Canção Nova; no Encontro com Jovens no Pacaembu, as bandas e os jovens

que falaram com o Papa eram carismáticos; e a visita na “Fazenda da Esperança”também foi articulada pelo movimento carismático. Além disso, Roma recentemente proibiu as atividades do padre jesuíta Jon Sobrino, um dos mais importantes teólogosda libertação em exercício.

Diante desses novos episódios, a proposta desse artigo é apresentar elementosque contribuam para a compreensão acerca dos rumos do catolicismo no Brasil, a partir da análise do chamado Cristianismo da Libertação. Propõe-se uma análisesócio-histórica que possa responder às seguintes questões: A teologia da Libertaçãomorreu? O que provocou sua crise no Brasil? Quais os elementos que objetivamentedemonstram essa crise? Dessa forma, este texto parte da apresentação das diferentestendências presentes no interior do catolicismo no Brasil. Em seguida, faz-se um breve resgate histórico do Cristianismo da Libertação a partir das conferênciasepiscopais latino-americanas de Medelín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo(1992). Por fim, analisa-se a conjuntura dos anos 1990 e a nova configuração católicano Brasil.

Tendência no catolic ismo brasileiro

 Na análise do catolicismo, parte-se da perspectiva de que há diferentesvertentes no interior da IC no Brasil, que podem ser analisadas a partir de teóricos da própria Igreja e autores das ciências sociais. O teólogo J. B. Libanio (1999) identificaquatro cenários presentes no interior da IC: uma Igreja da Instituição, uma Igrejacarismática, uma Igreja da pregação e uma Igreja da práxis libertadora. Na mesmadireção, Boff (1994) elenca quatro modelos: igreja como totalidade, igreja mãe e

mestra, igreja moderna e igreja a partir dos pobres. Já Gramsci (2001) e Löwy (2000)utilizam o termo tendência para descrever as diferenças existentes no interior daIgreja Católica: tradicionalistas, modernizadores conservadores, reformistas e os

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radicais. Enquanto Libanio (1999) e Boff (1994) enfatizam as diferenças eclesiais,Gramsci (2001) e Löwy (2000) identificam essas tendências a partir das relaçõessociais, principalmente as relações dos católicos com as várias formas de poder

 presentes na sociedade.Partindo das definições de Libanio (1999), a Igreja da instituição corresponde

ao cenário que impõe o aspecto institucional, isto é, prevalece a estrutura da Cúria,da Diocese e da Paróquia. Neste cenário há maior relevância do Direito Canônico, dalei, das normas, das regras, dos ritos e das rubricas. A doutrina tem cuidado especial.Predomina a tradição e o catecismo único, garantido pela autoridade. O clero éformado para ser mais ligado ao altar, ao sacramento, às celebrações, à organização paroquial. Há uma forte defesa da manutenção do celibato sacramental e um retorno

do clericalismo. O ensinamento moral é voltado para a família e a sexualidade; amoral social fica em segundo plano. Trata-se de uma religião assistencialista queevita o conflito com o Estado e procura conviver com ele defendendo seus própriosinteresses. A Igreja da instituição assume o lado racional da modernidade. Dianteda pós-modernidade ela tenta se manter estruturada e coesa, mas está na contramãodessa tendência que valoriza a autonomia, a individualidade e a experiência. É umaIgreja autoritária e pouco evangélica (LIBANIO, 1999).

Boff (1994) assinala que no movimento em que a Igreja hierarquiza eorganiza os carismas do Espírito, adquire uma investidura de poder, isto é, que ainstitucionalização do carisma dentro da IC não é mais que a manifestação da suafragilidade profética. Weber (2004, p.303) analisa a diferença entre o profeta e osacerdote e afirma que enquanto o primeiro é portador de um “carisma puramente pessoal”, o segundo “reclama autoridade por estar a serviço de uma tradiçãosagrada”. Significa que, no contexto da sociedade moderna, no momento em quea religião recorre ao poder e à dominação para se manter hegemônica ocorre seuenfraquecimento, com perda de sua legitimidade no interior do campo religioso. No cenário de Igreja descrito acima está presente uma prática eclesial voltada para

dentro e extremamente clerical. Segundo Boff (1994), trata-se da Igreja que se vêcomo totalidade: eclesiologia da Igreja, sociedade perfeita na qual Igreja e Reino seconfundem. Portanto, é um modelo conservador da IC e intimamente vinculado aoVaticano e à linha pastoral dos Papas João Paulo II e Bento XVI.

Um segundo cenário descrito por Libanio (1999) refere-se à Igreja

Carismática. Neste cenário ocorre o triunfo do carisma, da individualidade e daemoção. A teologia fica em segundo plano, havendo forte experiência do Espírito.Este cenário desvaloriza a proposta ecumênica. Libanio (1999) afirma que o lado

racional da fé cede lugar às vivências emocionais. A militância é deslocada cadavez mais para a mística. A Igreja carismática é uma Igreja da celebração, valoriza osmovimentos de espiritualidade, setor pastoral mais trabalhado. Há uma relativização

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da disciplina canônica que se torna secundária. A moral se volta para o indivíduo e adimensão político-econômica não tem relevância, prevalecendo o desenvolvimento dadimensão da compaixão e do amor. Segundo Libanio (1999), o clima atual é propicio

à Igreja carismática, que se adequou muito bem à pós-modernidade. Tal cenário émais religioso que cristão. Boff (1994) afirma que neste cenário predomina a Igrejamãe e mestra que se relaciona com o mundo a partir dos poderes estabelecidos,sendo uma Igreja que, ao estar próxima das classes dominantes, concretiza-se paraos pobres e não com os empobrecidos.

O terceiro cenário se refere à Igreja da Pregação. Libanio (1999) a descrevecomo uma Igreja da palavra com forte ênfase na doutrina, no conhecimento, na pregação e no ensino. Este modelo defende o aprofundamento da fé pela via do

saber. O centro desse cenário é o trabalho na catequese, o estudo da teologia, o processo de evangelização e o anúncio missionário. Há a consciência que o tempoda cristandade já terminou. Assim, assume-se uma atitude de evangelização emum mundo pluralista e complexo. Faz-se o diálogo entre fé e razão, trabalhando-sea esperança. Tem-se a compreensão de que as estruturas eclesiais são os maioresobstáculos da evangelização. Organizam-se cursos de teologia para leigos em váriosníveis com maior relevância do papel do teólogo, prevalecendo uma grande presençada Bíblia no meio do povo. Nesse cenário há uma valorização das celebraçõeseucarísticas com maior presença do leigo (LIBANIO, 1999).

 Neste cenário há a preocupação com o ensino religioso nas escolas, enfatizandoa dimensão humana e social da religião e o cultivo do ecumenismo e do diálogointer-religioso. A inteligência da fé só é possível com a utilização dos procedimentoslógicos, metódicos e epistemológicos que conduzem a razão em sua compreensão darealidade. A razão filosófica passa a ser o melhor lugar para “inculturar” a fé. Nessa perspectiva, a fé cristã tem o objetivo de iluminar as confusões religiosas presentesna sociedade. Libanio (1999) afirma que isso é feito a partir do resgate da unidadeentre teologia, espiritualidade e ministério e a articulação entre amor e verdade.

Para Boff (1994), este cenário vem ao encontro da sociedade do saber, pois uma prática eclesial de Igreja Moderna predomina no cenário da Pregação. A Igreja seapresenta como sacramento da salvação universal, está próxima da sociedade civil,denunciando os abusos do capitalismo numa perspectiva reformista. O Reino é oarco-íris sobre o Mundo e a Igreja. O Mundo é o lugar da ação de Deus e a Igrejaseu instrumento (LIBANIO, 1999).

O último cenário descrito por Libanio (1999) é a chamada Igreja da Práxis

Libertadora. Neste cenário a opção pelos pobres é o eixo estruturante de toda sua

ação. Há um deslocamento da moral sexual e familiar para o campo social: denomina-se Igreja da práxis, dos pobres e da libertação. A Igreja da práxis libertadora tem uma

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tradição muito recente de apenas quatro décadas1. Sua principal característica é manterligadas fé e vida, propondo-se fazer a animação espiritual das lutas populares. A Bíbliatem lugar de especial destaque, pois a proposta é fazê-la chegar à mão do povo, para

que esse conheça o projeto salvador de Deus e faça uma leitura militante da Bíblia.A leitura é feita em três momentos: a) Texto: principal elemento; b) Contexto: leiturafeita no interior da comunidade; c) Pré-texto: situação sócio-política e econômicadeterminada (LIBANIO, 1999).

Esta Igreja se estrutura particularmente em torno das CEB´s: substituição daestrutura paroquial por pequenas comunidades eclesiais. Seria uma Igreja formada por uma rede de comunidades autogovernadas e auto-sustentadas. A estrutura eclesialcêntrica dá lugar à estrutura em rede (LIBANIO, 1999). Essa Igreja respaldada nas

comunidades eclesiais e comprometida com a libertação dos empobrecidos pensa adialética de opressão e libertação, ou seja, a “[...] experiência de Deus será vivenciadano interior da opção pelos pobres, no compromisso com sua libertação” (LIBANIO,1999, p.115). Este cenário da IC cultiva uma forte presença das Conferênciasepiscopais de Medellín e Puebla.

Segundo Boff (1994), essa Igreja a partir dos pobres, em contraste com aideologia dominante, cultiva a solidariedade e o espírito comunitário: busca-se umacultura da solidariedade. Quer resgatar as utopias enquanto exploração de novas possibilidades e vontades humanas. Neste cenário predomina a prática da Igreja a partir dos excluídos na qual se aproxima fé e política, fazendo a opção preferencial pelos pobres. O Reino é a utopia cristã e o Mundo é o mundo dos pobres, que precisaser transformado. A Igreja é a portadora qualificada e oficial do Reino, mas nãoexclusiva (LIBANIO, 1999).

A proposta de Libanio (1999) e Boff (1994) em descrever as diferençasdo catolicismo por intermédio dos termos cenários  e modelos  – apesar de suaimportância para compreender o contexto interno da instituição – é, do pontode vista sociológico, limitada para a classificação dos diferentes segmentos. Ao

analisarmos os grupos organizados no interior do catolicismo nota-se que essesmodelos e cenários estão presentes de forma misturada nesses grupos, isto é, cadagrupo possui característica de dois ou mais cenários e modelos descritos por Libanio(1999) e Boff (1994). Portanto, utiliza-se o conceito de “Tendências Orgânicas doCatolicismo” como instrumento apropriado para compreender os processos internosda IC no Brasil.

Essas tendências são definidas por Löwy (2000) da seguinte maneira: 1)Tradicionalistas – composto por “um grupo muito pequeno de fundamentalistas, que

defendem idéias ultra-reacionárias e às vezes até semifascistas”; 2) Modernizadores

1  Este cenário surge com a experiência da Ação Católica Especializada na década de 1950.

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conservadores – composto por “uma poderosa corrente conservadora” extremamente“hostil à Teologia da Libertação e organicamente associada às classes dominantes”;3) Reformistas – composto pelos moderados “pronta para defender os direitos

humanos e apoiar certas demandas sociais dos pobres”; 4) Radicais – composta por uma “minoria pequena, mas influente” simpatizantes da TL e solidária aosmovimentos sociais (LOWY, 2000, p.66). Löwy constrói sua definição a partir daanálise de Gramsci (2001) que desenvolve uma conceituação das disputas internasna IC italiana, caracterizadas como distintas religiões presentes em seu interior.

Gramsci (2001) identifica que, desde o final do século XIX, há três tendências presentes no interior da IC: os integristas, os modernistas e os jesuítas que, por seruma congregação influente e coesa, é definida por Gramsci também como tendência.

Essas tendências representam camadas sociais do bloco católico e suas disputassão definidas como partidos internos que lutam pelo controle institucional da IC.Os integristas, “partidários da intransigência ideológica e política”, representam osegmento conservador da sociedade. Os modernistas são uma série de “correntes bastante heterogêneas”, divididas em duas forças principais: uma que se aproximadas classes populares, favorável ao socialismo, e outra que se aproxima das correntesliberais, favorável à democracia liberal (GRAMSCI, 2001, p.153). Portelli (1984)afirma que Gramsci também considera os jesuítas como uma corrente que se localizaao centro das duas tendências anteriores e que mantém o controle do Vaticano.

“Gramsci considera que a principal força dos jesuítas reside no controle da sociedadecivil católica e, antes de tudo, das organizações de massa católica – promovidasaliás pelos jesuítas – e principalmente a Ação Católica e das missões” (PORTELLI,1984, p.157).

Gramsci (2001, p.233) considera a luta dessas tendências internas como “lutasentre partidos”. Dessa forma, a unidade religiosa, principalmente dos católicos que procuram manter sua condição internacional, é aparente, pois oculta uma série dedivergências em relação à visão de mundo da IC. Porém, Portelli (1984, p.149)

afirma que Gramsci caracteriza como “normal” a luta de tendências pelo fato dessasserem “[...] a ilustração dos diferentes tipos de crise interna que toda superestruturaatravessa”. Todavia, o importante é ressaltar que Gramsci (2001) considera a possibilidade de transformação do conteúdo total da Igreja em determinadoscontextos. Essa possibilidade é central na análise do desenvolvimento histórico docatolicismo na América Latina, pois, como interpreta Portelli (1984, p.165), Gramsciconsidera que os conflitos internos entre os católicos representam a “[...] evoluçãoestrutural e ideológica do mundo leigo, e da subordinação da Igreja a este”.

Portanto, ao utilizarmos o referencial de Löwy e Gramsci para análise da IC,conclui-se que as tendências do catolicismo brasileiro podem ser definidas da seguintemaneira: 1) Tradicionalistas: compostas pelos movimentos Opus Dei, Tradição

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Família e Propriedade e Arautos do Evangelho; 2) Modernizadores conservadores:setor no qual se insere o Movimento de Renovação Carismática Católica; 3)Reformistas: no qual predominam as congregações que trabalham diretamente com

educação como, por exemplo, os lassalistas, redentoristas e maristas; 4) Radicais:composta pelos setores ligados à Teologia da Libertação como as CEB´s, PastoraisSociais, Pastorais da Juventude.

A formulação dessas diferenciações é necessária para compreender o localno qual está inserida a Teologia da Libertação em relação ao contexto eclesiásticoe social do catolicismo brasileiro. Nossa tese é que o Cristianismo da Libertação,em virtude das características presentes em seu processo de formação identificadosna análise do contexto histórico da Igreja brasileira, nos anos 1980, compunha a

tendência radical católica, mas, nos anos 1990, passa a se caracterizar cada vez maiscomo uma tendência reformista. Vejamos com esse processo se estabeleceu.

O desenvolvimento do Cristianismo da Libertação

O Concílio Vaticano II (1962-1965) possibilitou o surgimento de novasformas de eclesialidades2 no interior da IC, além de contribuir com a consolidaçãode uma prática colegial e ecumênica da CNBB, incentivando o pensamento católico progressista e suas práticas pastorais. A Igreja latino-americana, no período doConcílio, teve presença comprometida na luta contra o subdesenvolvimento, pelaeducação de base e pelo processo de sindicalização. Beozzo (1994) afirma que aIgreja trabalhava pela consolidação de uma prática colegiada de seu episcopado euma prática de trabalho em equipe. Além disso, o papado de João XXIII, idealizadordo Vaticano II, caracterizou-se para o Brasil como o momento de grande crescimentodas dioceses em todo o país. João XXIII teve uma forte preocupação com a AméricaLatina e só no Brasil criou 32 dioceses e 6 províncias eclesiásticas, além de nomear 67

novos bispos (BEOZZO, 1994). Para o catolicismo brasileiro, o Vaticano II construiuuma nova autoconsciência, desenvolvendo a concepção de Igreja comunidade, Igreja povo de Deus. Esta nova concepção se via como uma Igreja missionária, aberta aomundo, ao ecumenismo e ao diálogo inter religioso. (CNBB, 1998).

A 2ª Conferência Geral do Episcopado Latino Americano, ocorrido emMedellín, na Colômbia, em 1968, significou a aplicação do Vaticano II para ocontinente latino americano. Beozzo (1994, p.118) afirma que Medellín dá um passoalém do Vaticano II, pois nessa conferência se esboçaram as diretrizes do que seria

2 Tipos de visão sobre o significado da mensagem Evangélica que leva à práticas diferenciadas no

interior da Igreja Católica.

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chamado de Teologia da Libertação, valorizaram-se as comunidades de base comoalternativa de estrutura e partilha da palavra, aprofundou-se a noção de justiça e paz, ligadas aos problemas da dependência econômica, colocando-se o empobrecido

no centro da refl

exão. Löwy (2000) avalia que, em Medellín, pela primeira vez nahistória da Igreja latino-americana, foram denunciadas as estruturas do capitalismo por terem suas bases na injustiça e na violação dos direitos fundamentais da população, afirmando a solidariedade da IC com a luta das classes populares. Souza(1982) afirma que esta conferência foi o resultado de três grandes linhas de trabalho presentes na Igreja da América Latina: a experiência da Ação Católica Especializada(ACE), principalmente suas juventudes; a prática de atividades preparatórias paraelaboração de uma pastoral de conjunto com planejamento da ação; e a existênciadas comunidades de base.

Medellín desloca o acento do desenvolvimento para a problemática dalibertação. Mainwaring (1989) afirma que, após Medellín, a Igreja latino-americanaexerceu influência significativa sobre o desenvolvimento do catolicismo mundial.Esta conferência define a juventude como grande força nova de pressão na sociedade,sendo um corpo social com idéias próprias e valores inerentes. Dessa forma, propõe-se que se favoreça a construção de uma pastoral de jovens nas Igrejas da AméricaLatina, possibilitando o intercâmbio das diversas experiências. Essas definiçõesforam fundamentais para o surgimento, na década de 1970, das primeiras articulações

de experiências das pastorais da juventude presentes no Brasil. Essas experiênciase outras relacionadas ao desenvolvimento do Cristianismo da Libertação foram possíveis em virtude da sistematização das experiências anteriores, principalmenteda esquerda católica dos anos 1960, a partir da Teologia da Libertação.

Gutiérrez (2000, p.16) define a TL como “expressão do direito dos pobres de pensar sua fé”. Afirma que essa teologia é a tentativa de leitura dos sinais dos tempossegundo a exortação de João XXIII e do Concílio Vaticano II. Dessa forma, a TL,expressão da maturidade da sociedade e da Igreja latino-americana, faz uma análise

estrutural da realidade. Segundo Gutiérrez (2000), há uma conjunção entre oraçãoe compromisso em que se propõe uma maneira de ser cristão na qual não é possívelseparar solidariedade com os pobres e oração. “A matriz histórica da Teologia daLibertação está na vida do povo pobre e de modo especial na vida das comunidadescristãs que surgem no seio da Igreja presente na América Latina” (GUTIÉRREZ,2000, p.32).

Todavia, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, instituição católicavoltada ao doutrinamento das igrejas nacionais, afirma que essa tendência católica,

ao utilizar termos e conceitos marxistas de forma acrítica, assume uma preocupaçãocom os empobrecidos e as vítimas de opressão que se torna excludente, colocando aevangelização em segundo plano. “A alguns parece até que a luta necessária para obter

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 justiça e liberdade humanas, entendidas no sentido econômico e político, constitua oessencial e a totalidade da salvação. Para estes, o Evangelho se reduz a um evangelho puramente terrestre” (SAGRADA CONGREGAÇÃO..., 1984, p.12). Nesse sentido,

a TL é uma negação prática da fé, já que as posições da “ideologia marxista” sãoincompatíveis com a “visão cristã do homem”. Para a Sagrada Congregação, a práxisdos teólogos da libertação é partidarista, marcada pela luta de classes e isso representauma perversão da mensagem cristã que visa em seu princípio de moralidade o carátertranscendente de distinção entre o bem e o mal.

 No entanto, Gutierrez (2000) defende que essa teologia propõe uma libertaçãototal que abarca três dimensões: política, humana e religiosa. A libertação políticaconsiste na libertação das situações econômicas e sociais de opressão; libertação

humana signifi

ca libertação interior, transformação pessoal; e a libertação religiosaé a libertação do pecado. Dessa forma, Gutiérrez (2000) mostra que o significadodo termo libertação possui três níveis: 1) aspirações das classes sociais e dos povosoprimidos, ou seja, libertação econômica, social e política; 2) aspiração pessoal,libertação dos homens/mulheres que assumem conscientemente seu destino; 3)aspiração religiosa, libertação de tudo que vai contra o projeto do Reino. Nessesentido, a TL parte do compromisso de abolir a situação de injustiça vivida pelo povo na América Latina.

 Na definição de Löwy (2000, p.56), a Teologia da Libertação “é expressão deum vasto movimento social que surgiu no começo da década de 60” do século XX,sendo o “produto espiritual” desse movimento presente no interior do catolicismo. Aidéia central dessa teologia é a “opção pelos pobres” e suas principais característicassão: a luta contra a idolatria, a libertação humana histórica, a crítica ao dualismotradicional, a releitura da Bíblia a partir da idéia de libertação, a crítica moral e socialao capitalismo, a utilização do marxismo como instrumento de análise da realidadee o desenvolvimento de comunidades de base (LÖWY, 2000). O termo “pobre”é definido pelos teólogos da libertação como um conceito de conotações morais,

 bíblica e religiosa, sendo mais amplo que a definição de classe trabalhadora. Nessesentido, os empobrecidos não são apenas as classes exploradas, mas também as raçasmenosprezadas e as culturas marginalizadas. Löwy (2000, p.124) interpreta que

 Na verdade, o termo corresponde à situação latino-americana, onde encontramos,tanto nas cidades como no campo, uma enorme massa de pessoas pobres, inclusivetrabalhadores, mas também desempregados, semi-empregados, bóias-frias,camelôs, marginais, prostitutas, etc. que são excluídos do sistema produtivo“formal”.

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Por isso que, para Scott Mainwaring (1989), a TL e as práticas pastorais aela associadas são a contribuição original mais significativa na história da Igrejalatino-americana. A Igreja brasileira tem papel importante nesse processo pelo fato

de ser a responsável pela transmissão dessa teologia em novas abordagens pastorais.Teólogos da libertação, como os irmãos Leonardo e Clodovís Boff, afirmam que essetipo de teologia busca elaborar uma reflexão à luz da fé, orientando sua formação para a práxis3. Dessa forma, quem a pratica deve estar engajado no cotidiano dasclasses populares, pois o fruto da teologia se submete à crítica dessa ação, já que oteólogo se motiva por meio dela. A opção preferencial pelos pobres é o elemento quecaracteriza essa vertente teológica e sua proposta de evangelização. A prioridade da práxis é o ponto de partida para transformar a realidade.

Richard afi

rma que a TL não quer fundar outra Igreja, mas lutar por outromodelo de Igreja dentro do próprio catolicismo. Estrategicamente não deseja aconfrontação. Sua força, segundo Richard (2003, p.11), “[...] reside de forma positivaem nossa capacidade de ir construindo, desde baixo e em longo prazo, um modelo deIgreja fiel ao movimento de reforma iniciado no Concílio Vaticano II e em Medellín”.Assim, continua Richard (2003), busca-se devolver a Bíblia ao povo de Deus, isto é,colocar a Bíblia na mão, no coração e na mente do povo, possibilitando a autonomia para interpretar a Bíblia com fé, espírito e liberdade. Percebe-se claramente emRichard (2003) que, do ponto de vista político, os teólogos da libertação têm como

 principal meta a disputa de hegemonia no interior da IC. A opção em ser parte dainstituição visa sua transformação interna por intermédio de uma teologia e de ummovimento que responda às necessidades das classes populares presentes na AméricaLatina. Isso significa que essa disputa é também uma disputa política com conotaçõessociais, já que essa luta é pela definição da posição dessa instituição no contexto dasociedade civil e da relação com o Estado. Um exemplo desse processo de disputainterna foi a Conferência de Puebla.

Se Medellín representou a tradução do Vaticano II para a América Latina, a 3ª

Conferência Geral do Episcopado Latino Americano de Puebla (1979) corresponde aoaprofundamento desse modelo de Igreja. Por exemplo, em Puebla a juventude já não émais uma prioridade, mas uma opção preferencial assumida juntamente com a opção pelos pobres. “Medellín que denunciara o pecado e a violência institucionalizada, fezuma clara opção pelos pobres e incentivou a criação de comunidades de base. Pueblaretoma e confirma cada um destes pontos e os explicita ainda mais” (SOUZA, 1982, p.195). Todavia, Puebla foi um palco de disputas entre as tendências presentes nointerior da Igreja latino-americana e uma tentativa dos conservadores em retomar

o controle da instituição. Apesar disso, os resultados de Puebla retomaram os3  Práxis – do grego prâxis – ação. Conjunto de atividades humanas que tendem a criar as condições

indispensáveis à existência da sociedade, particularmente à atividade material.

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elementos definidos em Medellín, indo além ao fazer uma denúncia ainda maiscontundente da realidade social que havia se agravado nos últimos anos daqueladécada. Essa conferência definiu critérios de uma evangelização autêntica e viva,

tornando-se sinal do modelo de Igreja que assumiu a defesa dos empobrecidos docontinente na luta por uma sociedade justa, fraterna e igualitária. Puebla também potencializou o trabalho com as Comunidades Eclesiais de Base, que são constituídas por pequenos grupos de vizinhos que pertencem à mesma comunidade e se reúnemregularmente para “[...] rezar, cantar, comemorar, ler a Bíblia e discuti-la à luz desua própria experiência de vida” (LÖWY, 2000, p.83). Na década de 1970 havia 70mil comunidades eclesiais com 4 milhões de cristãos4. As Comunidades Eclesiaisde Base, com seu espírito comunitário, tornaram-se a saída para a crise de falta de padres na América Latina.

 Na opinião de Burdick (1998), as comunidades de base são menos numerosasque as igrejas pentecostais no Brasil. Para ele “As CEBs são congregações católicasnas quais o clero e os agentes de pastorais estão engajados, de uma forma ou deoutra, em esforços para despertar a consciência política e social” (BURDICK, 1998, p. 11). Porém, o autor ressalta que a penetração dessas comunidades entre os “fiéiscomuns e sofridos” é questionável por dois motivos: a) “A Igreja que os teólogose os agentes pastorais chamam de ‘uma igreja que está nascendo do povo’ estálutando com grande dificuldade para ser aceita pelo próprio povo”; b) “[...] enquanto

os teólogos concebem as CEBs como meio de instilar no povo uma mensagem delibertação politicamente ativa, tem ficado cada vez mais claro que muitos, senão amaioria, dos participantes das comunidades de base compreendem e respondem àmensagem de outras maneiras” (BURDICK, 1998, p.13-14).

 No primeiro motivo, há uma disputa de fiéis entre CEB´s e pentecostais, noqual os crentes possuem considerável vantagem, segundo Burdick (1998, p.21), por quatro questões principais: a) elas atingem o setor da classe trabalhadora maisinstruído, estável e de melhor situação financeira, enquanto que os pentecostais

atingem as camadas menos alfabetizadas e com maiores dificuldades econômicas,que são a maioria entre os empobrecidos; b) nessas comunidades não há espaço para discutir problemas pessoais como os enfrentados pelas mulheres donas decasa, mas os pentecostais voltam sua ação totalmente para a resolução desses tiposde aflições; c) as CEB´s não propõem um rompimento com o passado, mantendouma relação ambígua com o mundo, e os pentecostais propõem um afastamentototal dos valores mundanos, facilitando a absorção do conteúdo religioso; d) essascomunidades não conseguiram forjar um discurso contra o racismo, enquanto que

4  Oliveira (1996) afirma que a estimativa do número de CEB`s no Brasil é quase impossível de ser feita

em virtude das várias interpretações que se tem de comunidade eclesial. Ver Oliveira, 1996, p. 16. Sobre

a definição da quantidade de CEB´s na década de 1970, ver Valle e Pitta (1994).

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nas igrejas pentecostais há um discurso contrário ao preconceito étnico. O segundomotivo se define pelo fato dos fiéis das comunidades de base absorver a mensagemdos teólogos da libertação de, pelo menos, quatro formas que variam conforme

as tendências políticas de seus vários ouvintes e que, segundo Burdick (1998),são identificados a partir da idéia que as pessoas têm do termo libertação. Há umgrupo que entende como libertação o ato de caridade, significando que o fiel devefazer a caridade e buscar a salvação transcendental. O termo libertação também éentendido enquanto rejeição e desvalorização dos mediadores espirituais (santos) eautoconfiança espiritual. Ocorre também a adaptação, por parte de alguns fiéis, dodiscurso da libertação que maquia a idéia de caridade mudando a forma com quedescreve o ato social, mas mantendo na prática a mesma atitude. Finalmente, háaqueles fiéis que fazem o discurso da TL, mas não o relacionam com sua prática nointerior da Igreja Católica e na sociedade.

Burdick (1998) enfatiza que todos esses membros das CEB´s, com suasdiferentes interpretações do significado da mensagem do cristianismo da libertação, permanecem afastados dos movimentos sociais. O autor afirma que essas pessoassão aqueles participantes que não exercem nenhum tipo de liderança na comunidade.Portanto, apenas as lideranças acabam absorvendo a mensagem da Teologia daLibertação de forma a colocar em prática em sua vida. “Estas são pessoas que falamfluentemente a linguagem da libertação orientada para os direitos; estão envolvidas

em algum movimento social, e constantemente explicam tal envolvimento emtermos liberacionistas” (BURDICK, 1998, p.153). Entretanto, o autor conclui queas pessoas comuns que participam das CEB´s “[...] aprenderam maior cooperação esociabilidade na comunidade, desenvolveram uma clara identidade como membrosde uma comunidade unida, e conceberam, pelo menos, uma tolerância maior pelos movimentos sociais” (BURDICK, 1998, p.148). Por esse motivo, mesmocom as dificuldades apontadas por Burdick (1998), as CEB´s tiveram um grandedesenvolvimento e, na opinião de Löwy (2000), foram as principais articuladoras

da luta pela democracia e pela emancipação social no Brasil.Todo o processo descrito acima perdura até os anos 1980. No final desta

década, os setores identificados com o Cristianismo da Libertação vivenciarammomentos de intenso engajamento social e político, participando dos vários processosdesencadeados naquele período: eleições, constituinte, governo civil. No entanto,no período seguinte começam a viver uma crise de perspectivas, em decorrência dofortalecimento do movimento pentecostal/carismático no interior do catolicismo etambém em virtude das profundas mudanças que o cenário nacional e internacional

 passava naquele momento: queda do Muro de Berlim,fi

m da União Soviética,vitória da direita nas eleições de 1989, crise da modernidade com advento da pós-modernidade e desenvolvimento do neoliberalismo no Brasil. Nesse sentido, busca-se

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agora destacar essa conjuntura e apresentar as mudanças ocorridas na sociedade eno interior da Igreja.

A nova confi guração católica no Brasil

Profundas transformações ocorreram em todo o mundo nas últimas décadas,afetando a cultura e influenciaram diretamente o comportamento humano. Algumasmanifestações dessa cultura pós-moderna se revelam na mudança de comportamentoem relação à natureza, à sociedade e na relação com a religião. Com o fim dosocialismo real, o capitalismo neoliberal passa a se apresentar como o único modelo

sócio-econômico viável para todo o mundo. Esse modelo postula a preeminênciado mercado e da livre concorrência em detrimento das utopias e projetos de futuro.Dessa maneira, o que vale é a ação imediata do indivíduo para solução do seu próprio problema. Essa conjuntura também está presente na IC em decorrência de práticas pentecostais por parte de setores que defendem uma renovação da Igreja a partir docarisma5. Nesse contexto, valoriza-se o lúdico, a música, o experiencial em detrimentodo estudo mais aprofundado da religião e de um embasamento teórico da missão daIgreja. O Cristianismo da Libertação entra em crise em virtude das conseqüênciasdessa situação pelo fato de ter como principal característica estimular o fiel a assumir

sua missão evangelizadora no meio em que vive. Na conjuntura neoliberal essa idéiaé desvalorizada, pois ocorre uma privatização da religião.

A consciência dos fracassos e limites da modernidade levou ao descontentamentodos indivíduos com o mundo. A racionalidade técnico-científica não conseguiuconstruir um mundo igualitário, livre e fraterno. Dessa forma, há uma crise no interiorda modernidade na qual o conjunto de suas características passa a ser chamada de pós-modernismo. Essa nova cultura insere a lógica da vida privada no cotidiano das pessoas: a proposta agora é satisfazer os próprios desejos e viver o presente sem

 preocupação com o futuro. O importante é sobreviver da melhor forma possível no presente. Enquanto a modernidade deu ênfase especial ao valor da vida e ao bem-estar coletivo, a pós-modernidade converte a vida privada na medida de todas ascoisas. Nega-se a existência de uma lei universal e busca-se um estilo individual.Para Santos (2001, p.235), “[...] a constelação ideológico-cultural hegemônica dofim do século parece apontar para a reafirmação da subjetividade em detrimento dacidadania”. Significa que o indivíduo passa a se preocupar mais com sua situaçãoespecífica do que com as questões que envolvem a coletividade como um todo. Santos

5  A Renovação Carismática Católica é atualmente o movimento pentecostal mais importante do

catolicismo.

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(2001) explica que o triunfo da subjetividade sobre a cidadania, isto é, do individualsobre o coletivo, desencadeou a negligência da cidadania de origem liberal que,de fato, demonstrou-se hostil à individualidade em virtude da ênfase na produção

e consumo que limita os espaços para o exercício da criatividade e da autonomia. Nesse sentido, a “crise é, em parte, a revolta da subjetividade contra a cidadania,da subjetividade pessoal e solidária contra a cidadania atomizante e estatizante”(SANTOS, 2001, p.249).

Essa conjuntura provoca uma mudança na concepção de ação dos agentessociais e também da própria IC. No entanto, o reflexo se dá principalmente noindivíduo que passa a pensar a luta social como uma luta que se trava no cotidiano, buscando a transformação imediata sem uma perspectiva utópica ou de futuro. Santos

(2001, p.259) constata que “[...] a emancipação por que se luta visa transformar oquotidiano das vítimas da opressão aqui e agora e não num futuro longínquo”. Nessaconjuntura caracterizada por uma nova relação entre subjetividade e cidadania quea TL passa a repensar seu método de formação. Foi essa situação que fez com que Nogueira (2001, p.120) perguntasse

Onde estariam as massas que em 1984 invadiram as ruas e praças do país exigindoeleições diretas já? Que saudaram a vitória e choraram a morte de Tancredo Nevesem 1985? Que, três anos depois, acompanharam com atenção os movimentos da

Constituinte? Que exigiram o impeachment  de Fernando Collor em 1992?

De fato, os movimentos sociais, com suas mobilizações públicas, foramatingidos por essa nova conjuntura social, política e cultural. Nogueira (2001) fala deuma cultura de desencantamento, de minimização da política e, por conseqüência, aforte presença da ênfase em razões éticas e moralizantes em detrimento da ideologia. Neste sentido, a pós-modernidade despe a política de ideologia, tornando-a uminstrumento isolado na sociedade, ocorrendo, assim, um desencanto com a atividade

 propriamente política. Como enfatiza Ridenti (1992, p. 85) “Ao invés de perceber-se como sujeito político, que pode atuar para a transformação social, o cidadão em potencial prefere fechar-se em seu mundo privado, desencantado com a política”. Issoé explicado na nova conjuntura social, já que as principais características da cultura pós-moderna – a desconfiança do coletivo, do solidário e de tudo que signifiquecompromisso com os demais; a reivindicação da autonomia da pessoa humana;a valorização da criatividade e da subjetividade – desencadeiam essa situação. O pós-modernismo nega as utopias, sendo que nada mais fundamenta globalmente aexistência humana. Assim, evitam-se compromissos permanentes e propostas de projetos históricos, promovendo-se o imediatismo. Ocorre uma desvalorização dasnormas: vale mais o convencimento que a regra. Isso provoca o advento de uma

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ética do relativo, ou seja, ocorre a relativização das convicções éticas produzidas pelamodernidade. Essa nova conjuntura dificulta o modus operandi do Cristianismo daLibertação que passa a repensar seu método de ação a partir dos anos 1990.

Em meados da década de 1990, segundo pesquisa entre eleitores feita pela Vox Populi6 publicada no Jornal do Brasil, o quadro interno da IC no Brasil era o seguinte:as Comunidades Eclesiais de Base correspondiam a 1,8% dos eleitores, isto é, quasedois milhões de pessoas; a Renovação Carismática Católica era 3,8%, quase quatromilhões de pessoas; outros movimentos representavam 7,9%, aproximadamente oitomilhões; e os tradicionais (católicos que não participam de nenhum movimento ou pastoral) eram 61,4% dos entrevistados. O Censo de 19917 aponta que a juventudecorresponde a 19% da população, aproximadamente 28 milhões de pessoas. Este

mesmo censo mostra que 1% dos brasileiros mais ricos detinha 13,9% da rendanacional, enquanto que os 50% mais pobres só dispunham de 12,1%. Período degrandes mudanças políticas, sociais, religiosas e culturais, o início da década de1990 foi palco de uma crise de projeto hegemônico do cristianismo da libertação,trazendo como conseqüência uma crise do modelo de pastoral gerado na década de1970. A TL continuava importante, mas teve que se adaptar, criando novas maneirasde resistir. Sob esse novo contexto, inicia seu processo de revisão e parte para ummétodo mais integral do ponto de vista da formação e capacitação dos fieis que participam de suas organizações.

A 4ª Conferência Geral do Episcopado Latino Americano, ocorrido em SantoDomingo (1992), foi o reflexo dessa nova conjuntura. Esta conferência reafirma aopção preferencial pelos pobres, assumida nos anos 1960, em Medellín e proclamadana década de 1970, em Puebla. Apresenta a juventude como uma das principaisvítimas do contexto sócio-econômico de miséria vivido pelos países do continente. No entanto, o debate da inculturação e do processo de evangelização da AméricaLatina foram as questões que estiveram no coração das discussões em Santo Domingoque desloca o acento da problemática da libertação para o debate sobre a questão

da cultura. Beozzo (1994, p. 309) afirma que ocorreu nessa conferência “[...] umaimportante mudança na ‘leitura’ ou ‘releitura’ da realidade cultural e religiosa docontinente”. O problema de fundo em Santo Domingo não era mais o pobre e sualibertação, mas a cultura moderna e seu secularismo.

As palavras libertação e mártires foram abolidas dos textos da conferência eo método ver-julgar-agir, marca da Teologia da Libertação, foi oficialmente vetado pelos Bispos. Essa situação gerou, desde o início, muitos protestos de setores da Igrejalatina. Esses setores conseguiram mudar o tema da conferência proposto por Roma,

6  Jornal do Brasil, 13.02.1995, p. 03.7  Ver pesquisa IBGE (1991) sobre a renda nacional.

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Uma nova evangelização para uma nova cultura, pelo tema Nova Evangelização,

Promoção Humana e Cultura Cristã – Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre .Dessa forma, os bispos progressistas ainda puderam exercer uma pequena influência

sobre esse importante encontro latino americano. Todavia, os Bispos conservadoresque dominaram Santo Domingo defendiam, no texto de resgate dos 500 anos deevangelização, que a característica principal de todo o continente era sua tradiçãocatólica, que estabelecia as bases de sustentação para todas as outras realidades. SantoDomingo mudou a terminologia que definia o conjunto do continente que passoua ser chamado de América Latina e Caribe. A conferência também pediu perdãoaos povos afro-americanos pelo apoio dos católicos ao processo de escravização.Entretanto, mesmo com muito debate e polêmica, não foi aprovado o pedido de perdão aos povos indígenas. Nesse contexto de Igreja é que se insere o Cristianismoda Libertação nos anos 1990 do século XX. Sua crise e falta de perspectivas tambémsão decorrentes do difícil momento que os setores progressistas passavam em todaa América Latina.

Diante desse processo, na década de 1990, ocorre uma redefinição da “opção preferencial pelos pobres” por parte da TL, pois na sociedade atual a valorizaçãodos meios tecnológicos e científicos impede de se ver o fim – a defesa da vidahumana. Para Richard (2003) há uma primazia do valor de compra pelo valor deuso, além de uma crise ética: se não tem para todos, que pelo menos tenha para

mim. As conseqüências são: a exclusão humana e destruição da natureza. Apenas éconsiderado cidadão o que tem trabalho e participa do mercado, sendo que o Estadounicamente tem obrigações com seus cidadãos.

A razão da redefinição da opção preferencial pelos pobres, na perspectiva deRichard (2003), ocorre por conta da diversificação do significado dessa opção que passa a ser a defesa: 1) dos excluídos; 2) da natureza; 3) da mulher; 4) das minoriasétnicas e culturais. A práxis atual da TL afirma que a prática da libertação não sesitua tanto no campo político, mas sim de maneira preferencial no campo social.

Portanto, torna-se necessário reconstruir a política e repolitizar toda a sociedade. Nesse contexto de desinteresse pela participação política, os movimentos sociais buscam reconstruir novos poderes para reconstruir a nação, já que o Estado é pobre,corrupto e dominado pelas políticas neoliberais. Na visão dos teólogos da libertação,são dos movimentos sociais que nascem os novos movimentos eclesiais e teológicos. Nesse sentido, a proposta passa a ser a de construção de um novo modelo de Igreja,de baixo para cima e em longo prazo, pois o modelo tridentino tem muita estruturae poder, mas pouco Espírito e Teologia, resumindo-se em Papa, bispos, pároco.

Para Richard (2003) há uma crise atual do modelo tridentino: pedofilia, crise doministério sacerdotal, uso do poder religioso para abuso sexual. Porém, é esse modeloque prevalece após a Conferência de Santo Domingo em 1992. As pastorais sociais e

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da juventude sofrem influência dessa nova prática pastoral dos setores ligados à TL,redimensionando sua ação para a busca de um equilíbrio entre práticas eclesiais e práticas sociais, isto é, enfatiza sua participação no interior da IC por meio da ênfase

em uma formação voltada para a espiritualidade. Richard (2003) também afi

rmaque a Teologia da Libertação tem desenvolvido uma ética e espiritualidade da vidacomo valor absoluto, contra os valores da pura produtividade, eficácia e ganânciado sistema. Uma espiritualidade de resistência no interior do sistema atual. Dessaforma, possibilitou-se o nascimento de uma espiritualidade indígena, afro, própria damulher, dos jovens, campesina, etc. Uma espiritualidade do sujeito humano concretoque precisa de trabalho, terra, saúde, educação, participação. Sujeito que se define pela sua condição de classe, gênero, raça e cultura.

A espiritualidade da TL entra em contradição com as espiritualidades agnósticas,espiritualistas, desencarnadas, alienantes. Dessa forma contribui para reconstruçãoda consciência, da memória e da esperança; reconstrução de uma visão de mundoalternativo; das utopias. Adquire uma forma de resistência à dominação imperial,valorizando a importância do testemunho e do martírio. A mudança de ênfase dométodo de ação, do político para o espiritual, é influenciada decisivamente pelareorientação do cristianismo da libertação. Assim, a forte presença da individualidadeno contexto social, político, cultural e religioso impulsionou o processo de ação dossetores católicos pertencentes ao Cristianismo da Libertação para o aprofundamento

das questões pessoais, principalmente no campo da espiritualidade. Nesse sentido,o “pobre” genérico, dominado e explorado, passa a ser considerado a partir de suasespecificidades – jovem, mulher, grupo étnico, havendo uma mudança do eixo da política para o subjetivo/cultural.

Considerações fi nais

A 5ª Conferência Geral do Episcopado da América Latina e Caribe,realizada em Aparecida (Brasil) em 2007, aberta pelo Papa Bento XVI, aprofundouas decisões conservadoras estabelecidas na Conferência de Santo Domingo em 1992, pois as informações divulgadas sobre o documento apontam para essa direção e,além disso, o documento aprovado pelos bispos terá necessariamente que passar pelarevisão de Roma. Outro fato importante é que os teólogos da libertação tiveram uma participação restrita na conferência e organizaram um evento paralelo no mesmo período. Por esse motivo, a conjuntura eclesial para o próximo período deverá

ampliar as difi

culdades de existência da TL e o conjunto de pastorais e movimentosque compõem o que chamamos de Cristianismo da Libertação.

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Houve um recuo programático dos setores progressistas, todavia, estão aindamuito longe de agradar a Santa Sé. O fato é que, como buscamos mostrar, nos diasatuais a Teologia da Libertação vem perdendo espaço no cenário religioso em virtude

de questões internas – advento e fortalecimento do movimento carismático – eexternas – crise de paradigmas e da esquerda. O Cristianismo da Libertação é levadoa assumir, a partir dos anos 1990, uma perspectiva subjetiva da vida e de privatizaçãodos interesses do indivíduo, ou seja, as necessidades coletivas e políticas, presentesnos anos 1980, cedem lugar para o pessoal e cultural. Além disso, ao mesmo tempoem que se amplia o foco de atuação a partir da redefinição da noção de “pobre”, comovimos em Richard (2003), produz-se uma diluição da ação política do cristianismo dalibertação que passa a discutir questões amplas como, por exemplo, a problemáticada ecologia muito focada nos últimos tempos por Leonardo Boff.

Se nas décadas anteriores a prioridade era o social e o político com forte participação na sociedade civil, na década de 1990 há uma inversão desse processoao se propor uma ação voltada para o cotidiano e para o pessoal. As opções políticascontinuam as mesmas, isto é, continua-se defendendo a construção de uma novasociedade, chamada pela Igreja progressista como Civilização do Amor. Todavia,a ação é diferenciada: busca-se o equilíbrio entre política e espiritualidade, entrecoletivo e pessoal. Em conseqüência disso, o período atual é marcado pela priorizaçãode uma ação intra-eclesial e pela opção de debater aquilo que se aproxima do

 pessoal, do indivíduo. Daí a formação bíblica e litúrgica e a formulação de uma basemais espiritualista, destituída muitas vezes de uma análise social de base coletiva/comunitária.

Por fim, importante frisar que o presente ensaio buscou apresentar elementosque apontam para significativas mudanças no modelo de evangelização dos setoresligados ao cristianismo da liberação. Porém não se sabe até quando esses setoresresistirão à nova conjuntura do cenário religioso, pois não era esse o objetivo, massim analisar essa tendência para compreender os rumos tomados pela IC no Brasil.

A conclusão é que houve um processo de aprofundamento de uma prática muito preocupada com as disputas de fiéis no campo religioso em detrimento de um modelode evangelização preocupado com a situação social do indivíduo. Nesse processo predomina atualmente no interior do catolicismo brasileiro a prática eclesial dossetores reformistas e, principalmente, modernizadores conservadores – como aRCC – em detrimento dos setores radicais no qual ainda se identificam alguns setoresdo Cristianismo da Libertação.

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C ATHOLIC  T ENDENCIES : PERSPECTIVES  OF  THE  F REEDOM  

C RISTIANISM 

 ABSTRACT : The text analyzes different aspects of the Catholic Church in Brazil,

 presenting them through theories of the church, from social sciences. After that there

is a discussion about the tendency connected to the Theory of Freedom, so called

“Freedom Cristianism”. It is said that the concept of “Inner Theories of Catholicism”

is more appropriate to understand the inner processes of the Catholicism and that,

nowadays, the Freedom Theory has been loosing space inside the religious scenery.

This occurs due to inner reasons – such as the growing strength of the charismatic

movement – and also due to external reasons – as the ascending of Neoliberalism.With that, this segment gets to a new posture of action which has as central idea the

“from down to up” changes, during long terms. After all, there is the conclusion

about a programmed step back of this tendency, which starts emphasizing its action

inside de Church and valuing themes as spirituality, ecology and culture, for the

 political dimension.

 KEYWORDS: Religion sociology. Catholicism. Catholic tendencies. Freedom

theory.

REFERÊNCIAS

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Flávio Munhoz So fi ati 

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Recebido em setembro de 2008

Aprovado em outubro de 2008