as dimensões sociais do desenvolvimento humano e o agir pedagógico

22
As dimensões sociais do desenvolvimento humano e o agir pedagógico: linguagem e emancipação na escola The social dimensions of human development and pedagogical action: language and emancipation in schools Fábio Delano Vidal Carneiro Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin RESUMO O artigo apresenta a reflexão acerca dos fundamentos sócio-históricos do desenvolvimento humano trazida à tona pela corrente de pensadores que se convencionou denominar de Interacionismo Social. Essa corrente sustenta que a problemática da construção do pensamento consciente humano deve ser tratada paralelamente à problemática da construção dos fatos sociais e das obras culturais. Analisam-se os conceitos de significado e de representação e sua relação com o agir formativo escolar. PALAVRAS-CHAVE Desenvolvimento Humano; linguagem; agir formativo escolar. ABSTRACT The article presents the reflection upon the social-historical basis of human development brought about by the group of thinkers that is commonly named Social Interactionism. The Social Interactionism supports that the construction of human conscious thinking must be treated in parallel with the issue of the construction of social facts and cultural constructs. The concepts of meaning and representation are analyzed, as well as, its relation with the formative school action. KEY WORDS Human Development; language; formative school action.

Upload: fabio-delano

Post on 26-Nov-2015

50 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico: linguagem e

    emancipao na escola

    The social dimensions of human development and pedagogical action: language and

    emancipation in schools

    Fbio Delano Vidal CarneiroEullia Vera Lcia Fraga Leurquin

    RESUMOO artigo apresenta a reflexo acerca dos fundamentos scio-histricos do desenvolvimento humano trazida tona pela corrente de pensadores que se convencionou denominar de Interacionismo Social. Essa corrente sustenta que a problemtica da construo do pensamento consciente humano deve ser tratada paralelamente problemtica da construo dos fatos sociais e das obras culturais. Analisam-se os conceitos de significado e de representao e sua relao com o agir formativo escolar.

    PALAVRAS-CHAVEDesenvolvimento Humano; linguagem; agir formativo escolar.

    ABSTRACTThe article presents the reflection upon the social-historical basis of human development brought about by the group of thinkers that is commonly named Social Interactionism. The Social Interactionism supports that the construction of human conscious thinking must be treated in parallel with the issue of the construction of social facts and cultural constructs. The concepts of meaning and representation are analyzed, as well as, its relation with the formative school action.

    KEY WORDSHuman Development; language; formative school action.

  • 116 Nonada 17 2011

    As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico:

    linguagem e emancipao na escola

    Nossa reflexo dirigida aos educadores que, reconhecendo seu

    papel na formao de crianas e jovens, questionam-se acerca dos fun-

    damentos scio-histricos do desenvolvimento humano. Entendemos

    que aqueles que buscam saber as razes e os possveis resultados do

    agir pedaggico devem se perguntar constantemente sobre as relaes

    entre os sistemas de atividade humana externos escola, nos quais

    esses prprios educadores esto envolvidos.

    no substrato da vida prtica, do mundo das decises e interaes

    humanas que a escola encontra sua raison detre. A educao uma

    atividade intrinsecamente aplicada, referente e referida, agregadora de

    conceitos, noes e representaes advindos dos vrios contextos e

    grupos sociais. Sempre que se quis fazer uma educao neutra, acabou-

    -se por colaborar na manuteno do status quo social, na formao de

    pessoas no-crticas e subserviente, conduzidas e no condutoras de

    si (FREIRE: 1976).

    A educao pretensamente neutra coopera com a reproduo (BOR-

    DIEU: 1970/2008) das prticas sociais sejam elas justas ou injustas e

    com o que Freire chama de forma rebaixativa, ostensivamente desu-

    manizada de mentalidade que a massificao. O professor que se

    coloca numa posio de transmisso do saber como o fantico que

    rotiniza a mensagem do seu profeta. Na nossa conscincia ingnua

    banalizamos os conhecimentos criados pela humanidade, pois no co-

    locamos aos nossos alunos os problemas criadores que fizeram surgir

    esses conhecimentos.

    O problema do desenvolvimento um problema-criador. Primeira-

    mente, porque no se tem uma resposta sobre muitos dos seus aspectos.

    Sua definio fluida e to variada quanto s correntes da pedagogia

    e da psicologia que dela se ocupam. Do ponto de vista filosfico, po-

    demos falar de um desenvolvimento positivo? H um desenvolvimento

    negativo? Ao falarmos de desenvolvimento nos referimos ao indivduo

    ou a grupos de indivduos, pases ou sociedades? A questo do desen-

    volvimento se coloca mais sobre a criana ou o adulto tambm se de-

  • 117Nonada 17 2011

    Fbio Delano Vidal Carneiro e Eullia Vera Lcia Fraga Leurquin

    senvolve? O desenvolvimento acontece de forma individual ou coletiva.

    Longe de propor respostas definitivas a essas questes, apresentamos

    reflexes sobre o desenvolvimento trazidas tona por pensadores de

    uma corrente que se convencionou denominar de Interacionismo Social.

    A obra de tais pensadores acontece no perodode 1890 a 1940, tendo

    seu pice na dcada de 20 do sculo passado. Observa-se, no perodo

    citado, o surgimento paralelo e inarticulado de trabalhos buscando a

    articulao dessas cincias do humano como cincias do esprito/razo

    e do sociocultural, negando a abordagem dualista e positivista presente

    nas cincias da natureza de ento.

    Essa corrente hoje denominada de Interacionismo Social, pois,

    como afirmamos, poca no havia comunicao entre tais pensado-

    res, nem a formao de uma escola sustenta que a problemtica

    da construo do pensamento consciente humano deve ser tratada

    paralelamente problemtica da construo dos fatos sociais e das

    obras culturais.Consequentemente, os processos de socializao e

    individuao constituem duas dimenses complementaresdo MESMO

    desenvolvimento humano. (BRONCKART, 2004, p. 16).

    A ttulo de ilustrao, apresentamos, abaixo, uma figura que sintetiza

    a origem dessa corrente.

    Figura 1: Mapa do Interacionismo Social (1890 1940).

  • 118 Nonada 17 2011

    As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico:

    linguagem e emancipao na escola

    Apresentaremos, neste artigo, as reflexes dessa corrente acerca do

    desenvolvimento humano e dos processos-chave que influenciam esse

    desenvolvimento, a partir do eixo BIOPSICOSOCIAL e da relao entre

    o pensamento verbal e as obras culturais da humanidade.

    INTERACIONISMO SOCIAL: O DESENVOLVIMENTO DO HU-

    MANO A PARTIR DA COLETIVIDADE.

    Desenvolvimento humano deve ser apreendido numa perspectiva

    dialtica e histrica. A elaborao de instrumentos coletivamente en-

    gendrados (a linguagem, a escrita analgica, a tecnologia da informao

    etc.) tem possibilitado o surgimento e desenvolvimento das atividades

    sociais, econmicas, semiticas, culturais, entre outras, bem como a

    organizao coletiva destas atividades. Vygotsky aponta uma lista des-

    ses instrumentos simblicos ou psicolgicos: A linguagem, as diversas

    formas de contagem e clculo, os smbolos algbricos, as obras de arte,

    a escrita, os esquemas, os diagramas, os mapas, os planos, todos os

    signos possveis etc. (1931/1985, p. 37)

    A partir de 1985, com a vinda tona das obras de Vygotsky e seu

    subsequente estudo por parte de pesquisadores aglutinados pela Uni-

    versidade de Genebra, os princpios e problemticas do agir e desen-

    volvimento humanos e sua relao com os fatos da linguagem levaram

    ao estabelecimento da corrente Interacionista Sociodiscursiva.

    O ISD integra em sua anlise as dimenses sociais, discursivas e

    comunicativas das atividades de linguagem. Dessa forma, postula como

    necessria ao entendimento da expresso e dos processos lingusticos

    a reflexo acerca do agir humano e da sua relao com as atividades

    linguageiras que tornam possvel o agir coletivo, dando especial aten-

    o s intervenes formativas sejam elas naturais, espontneas ou

    formais. O ISD considera estas intervenes como as impulsionadoras

    de uma aprendizagem social de longo prazo mediante a qual os seres

    humanos so inseridos por seus pares nas formaes e prticas sociais

  • 119Nonada 17 2011

    Fbio Delano Vidal Carneiro e Eullia Vera Lcia Fraga Leurquin

    e nas atividades linguageiras pertinentes a estas prticas.

    O paradigma cientificista/positivista toma conta das prticas sociais

    legitimadas, dentre elas o ensino formal, cujas marcas so a no-reflexo,

    a supresso da individualidade, a transmisso em vez da produo de

    saberes. Por conseguinte, o currculo (o que se ensina) e a didtica

    (como se ensina) se conformam aos objetivos de produzir seres com

    muita informao, mas incapazes de lidar com o conhecimento.

    Por conseguinte, se temos em vista um agir pedaggico emancipat-

    rio, isto , que tenha como objetivo a promoo humana, a formao de

    pessoas capazes de agir no mundo de forma tica e transformadora,

    necessrio optar por uma racionalidade que v alm da instrumentalida-

    de. Para uma pedagogia fundada na totalidade do humano preciso criar

    uma esfera comunicativa em que o agir pedaggico seja interligado

    totalidade do saber integrado s atividades, prticas e formaes sociais.

    A atividade humana, sendo de carter eminentemente coletivo, o

    motor do desenvolvimento das capacidades individuais. (BRONCKART,

    1999, 2006, 2007, 2008). Dessa forma, a ao prtica e/ou verbal deve

    ser compreendida como unidade dinmica que integra capacidades men-

    tais e comportamentais, incluindo de forma clara o sentir e o pensar, o

    linguagear e o emocionar. A ao ao no mundo scio-histrico cuja

    dinmica se processa sob trs dimenses mutuamente relacionadas:

    1) Dimenso biopsicossocial: caracterizada pela dupla anco-

    ragem da espcie humana, ou seja, a ontognese do funcio-

    namento psicolgico humano fundamenta-se pela bagagem

    biocomportamental da espcie e pela aplicao prtica dos

    mecanismos gerais de interao com o meio (VYGOTSKY,

    1934/1996). A ao humana, mobilizada pelo entrelaamento

    de emoes (vivncia de desejos) e das conversaes coletivas,

    insere-se num contexto biolgico-cultural, ou seja, no mbito

    de uma biologia da humanizao (MATURANA. 1988).

    2) Dimenso sociossemitica: caracterizada pelo fato de os

    seres humanos e a organizao das suas comunidades depen-

  • 120 Nonada 17 2011

    As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico:

    linguagem e emancipao na escola

    derem da utilizao de capacidades semiticas especficas. Com

    suporte nessas capacidades, organizam-se mundos discursivos

    (HABERMAS, 1987) que nos permitem o compartilhamento das

    representaes no mundo e a reflexo sobre a atividade que

    nele se desenvolve. O mundo das conversaes o mundo do

    emocionar e do linguagear. Todo o desenvolvimento e mudana

    cultural so perpassados por mudanas no emocionar e nas redes

    de conversaes, cuja conservao permite a mudana mediante

    o surgimento de novas coordenaes do agir linguageiro humano.

    3) Dimenso socioformativa: ser introduzido no mundo das repre-

    sentaes, isto , no agir linguageiro, essencial sob dois pontos

    de vista. Em primeiro lugar, a pessoa humana, especialmente

    a criana, desenvolve-se nas interaes e intervenes sociais

    mediante o estabelecimento de redes de conversaes. Esse

    acolhimento, entretanto, no passivo por parte do indivduo.

    No quadro das aes formativas, sejam elas familiares, escolares

    ou de qualquer outra espcie, so desenvolvidas aes de forma-

    o ou de educao. A pessoa vai, portanto, se constituindo no

    decorrer de um longo processo de aprendizagem social, em que

    vai se introduzindo nas redes conversacionais, nas configuraes

    de acordos e desacordos de desejos e emoes impulsionadoras

    das aes prticas semiotizadas. Essas redes esto presentes

    em uma cultura que, a cada gerao, simultaneamente, conserva

    determinados modos de convivncia e cria outros, de acordo com

    modificaes no emocionar. A humanidade desenvolve-se ento

    com surgimento de outros modos de convivncia, conservados

    por intermdio de redes de conversao, nascidos da relao

    entre adultos/pares e as crianas em formao. segundo o

    modo que vivemos nosso emocionar - e em particular nossos

    desejos e, no de acordo com o nosso raciocnio, que vivero

    nossos filhos no mundo que geraremos eles e ns ao nos

    transformar. (MATURANA; VERDEN-ZLLER, 2004).

  • 121Nonada 17 2011

    Fbio Delano Vidal Carneiro e Eullia Vera Lcia Fraga Leurquin

    Com esteio nessas trs dimenses, e principalmente na dimenso

    socioformativa, pode-se afirmar que est clara a necessidade de investir

    esforos no cuidado com os aspectos formativo-educativos.

    Em seu aporte terico, o ISD se coaduna com as demais abordagens

    interacionistas no que tange aos pressupostos tericos e epistemolgicos

    resumidos na sequncia (BRONCKART, 2007, p. 23-24).

    a) A evoluo humana deve ser apreendida numa perspectiva dia-

    ltica e histrica, intermediada por instrumentos coletivamente engen-

    drados (a linguagem, por exemplo) que possibilitaram o surgimento

    e desenvolvimento das atividades sociais, econmicas, semiticas,

    culturais etc, bem como a organizao coletiva destas atividades.

    b) Dessa acepo, decorre o primado da scio-histria na ontognese

    do funcionamento psicolgico humano, caracterizado pela bagagem

    biocomportamental da espcie e pela aplicao prtica dos mecanismos

    gerais de interao com o meio.

    c) As atividades prticas/sociais so expressas como lugar precpuo

    da interao dos organismos humanos. Decorre da a necessidade de

    compreender tais atividades com base na dupla ancoragem das entidades

    psquicas que tornam essas atividades e a sua semiotizao possveis:

    1) os mundos formais de conhecimento nos quais se organizam as

    representaes coletivas (Habermas); e 2) a economia psquica pela

    qual se organizam as representaes individuais.

    d) A necessria articulao entre as atividades prticas e as ativida-

    des de linguagem. Os estatutos destas atividades so muito similares,

    visto que as atividades interacionais humanas so mediatizadas pela

    linguagem que, assumindo a funo de instrumento semitico, ao mes-

    mo tempo, possibilitam e orientam o agir social. Consequentemente,

    ambas se determinam e possibilitam mutuamente.

    Uma questo central a da relao pensamento-linguagem. O en-

    trelaamento do pensamento e da linguagem de h muito debatido

    por filsofos da linguagem, psiclogos e educadores. As principais

    questes que se fazem esto relacionadas natureza da relao entre

  • 122 Nonada 17 2011

    As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico:

    linguagem e emancipao na escola

    essas duas categorias notadamente caracterizadoras do ser humano.

    Sero completamente independentes entre si?

    Vygotsky debruou-se sobre o tema e, ao refutar as teorias associativistas

    e estruturalistas que o antecederam, abriu espao para uma nova aborda-

    gem epistemolgica sobre a questo. Partindo de uma anlise materialista-

    -dialtica, Vygostsky prope uma reflexo sobre o tema com suporte na

    busca de elementos comuns tanto ao pensamento quanto linguagem.

    Dessa forma, o principal elemento a ser analisado para que possamos

    compreender a relao pensamento/linguagem o significado. Vygotsky

    fundamenta essa proposta ao assinalar que a significao essencial

    para o intelecto, haja vista que atribuir significados consiste em fazer

    generalizaes, atribuir, assumir ou formular conceitos sobre objetos,

    pensamentos e aes. Simultaneamente, o significado crucial para a

    linguagem. Sem significado, a palavra no passa de smbolo vazio. No

    pode ser utilizada na atividade de linguagem, seja para comunicar-se seja

    para organizar o pensamento. A palavra sem significado no signo. O

    significado, portanto, unidade de anlise ideal para o pensamento verbal.

    Com essa constatao, Vygotsky (1934/2009) argumenta que, por

    meio da anlise do desenvolvimento do significado, possvel acessar

    conhecimentos acerca do desenvolvimento do pensamento e da lin-

    guagem humanas e da interao entre essas duas categorias. Aponta

    que o significado das palavras vai se modificando na medida em que a

    relao entre pensamento e linguagem, mediada pela interao social,

    vai se fazendo complexa. preciso frisar, no entanto, que os processos

    intelectuais e linguageiros so independentes, o que no significa que

    sejam apartados. Na voz de Vygotsky,

    No estgio inicial do desenvolvimento da criana, poderamos, sem dvida, constatar a existncia de um estdio pr-intelectual no processo de formao da linguagem e de um estdio pr-linguagem no desenvolvimento do pensamento. O pensamento e a palavra no esto ligados entre si por um vnculo primrio. Este surge, modifica-se e amplia-se no processo do prprio desenvolvimento do pensamento e da palavra. (1934/2009, p. 396).

  • 123Nonada 17 2011

    Fbio Delano Vidal Carneiro e Eullia Vera Lcia Fraga Leurquin

    preciso atentar, contudo, para a ltima parte desta citao. A est

    a pedra de toque da teoria de Vygotsky. O vnculo entre pensamento

    e palavra est no significado, pois este elemento comum s duas

    categorias e ncleo fundante do amlgama denominado pensamento

    verbal. sobre o desenvolvimento desse pensamento semiotizado que

    Vygotsky nos chama reflexo.

    Em seus muitos trabalhos, Vygostky vai aprimorando a pesquisa sobre

    o tema e demarcando os conceitos que hoje continuam sendo investigados

    e ampliados pelos pesquisadores da Teoria Sociointeracionista: linguagem

    egocntrica, mediao, conhecimentos cientficos e espontneos.

    Os tericos do ISD, assim como Vygostky, defendem a premissa de

    que o desenvolvimento do pensamento discursivo no etrio, mas

    sim funcional e pautado pela ligao do pensamento que se realiza (e

    no apenas se exprime) na palavra com a ao ou tarefa que ambos,

    pensamento feito palavra, realizam na vida real.

    Vygotsky (1934/2010) atesta que a linguagem um instrumento de

    humanizao. instrumento porque a utilizamos secundariamente para

    elaborar os intrumentos psquicos de ao/compreenso no mundo. Rastier

    (2006) exprime, contudo, que a linguagem constitutiva do humano e por

    isso no pode ser um instrumento, mas um elemento do ser humano.

    A linguagem no possui uma funo, pois ela no um instrumento. Poderamos argumentar que ela serve a se adaptar ao meio, mas no caso do homem o meio essencialmente semitico, porquanto a cultura uma formao semitica. Em suma, a linguagem serviria para nos adaptarmos a um meio do qual ela constitui uma parte eminente: em outros termos, ela serviria para se adaptar a ela mesma[...] (2006, p. 9)1. Traduo nossa.

    Bronckart (2009) realiza uma sntese dialtica desse aparente para-

    doxo ao introduzir a sua ideia de nveis de ancoragem e estruturao do

    fato linguageiro. Dentre vrios possveis, ele prope trs, que explicar

    com detalhes posteriormente: 1) o nvel da lngua norma, isto , o das

    prticas textuais, nas quais se utiliza uma determinada lngua natural

    1 Le langage na pas de fonction, car il nest pas un instrument On pourrait arguer quil sert sadapter au milieu, mais chez lhomme le milieu est essentielle-ment smiotique, puis-que la culture est une formation smiotique. Bref, le langage servi-rait sadapter un milieu dont il consti-tue une part minente: en dautres termes, il servirait sadapter lui-mme, Rastier (2006, p.9)

  • 124 Nonada 17 2011

    As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico:

    linguagem e emancipao na escola

    na sua sincronia histrica especfica; 2) o nvel da lngua interna, nos

    termos de Voloshinov (1930/1981); e 3) o nvel da lngua como elabo-

    rao social ou lngua como sistema.

    Atualmente, essa formulao se configura como ncleo do pensamen-

    to do ISD sobre a ubiquidade da linguagem e acerca da possibilidade

    de distinguir modalidades de linguagens de acordo com o seu lugar de

    ancoragem, seja ele a interao (linguagem em ato comunicativo); a ln-

    gua natural socialmente estvel (lngua como representao coletiva);

    a lngua interna (como representao individual, isto , internalizada

    do meio social, mas atualizada microgenicamente)

    Baseando-se nas concepes de Sausurre, Vygotsky e Voloshinov

    (BRONCKART, 2009), o ISD aponta para a essncia dupla da linguagem:

    constituinte do humano e meio das interaes humanas - elemento e

    instrumento; realidade psquica e representao imaterial do material

    e do representacional.

    Como anota Bronckart,

    Os problemas de interveno prtica dos humanos em relao a outros humanos, principalmente, os relacionados educao e formao so centrais a toda cincia do humano, quer seu objeto se relacione mais especificamente s relaes desse agir humano com o mundo fsico (Teorias da Ao), com o pensamento (Psicologia), com a organizao social (Sociologia) ou com a linguagem. (Lingustica). (2004, p.14).

    Enfim, toda ao social semiotizada fruto de um fluxo mtuo de

    acolhimento do humano na esfera da coletividade, das prticas sociais.

    Essa entronizao permanente caracteriza, portanto, uma semntica da

    ao, cujos estudos inaugurados por Vygotsky ramificam-se e evoluem

    nos mais variados campos das cincias humanas e sociais.

    Toda ao humana situada, histrica e mediada pela linguagem,

    influenciada socialmente, organizada semioticamente e renovada coleti-

    va e/ou individualmente. As dimenses praxeolgicas e linguageiras do

    agir humano, assim como as representaes coletivas, so atualizadas

  • 125Nonada 17 2011

    Fbio Delano Vidal Carneiro e Eullia Vera Lcia Fraga Leurquin

    e modificadas durante o percurso das interaes. Nas prticas sociais,

    os actantes de um determinado agir-referente (BRONCKART, 2004)

    mobilizam-se em diversos graus de colaborao e comprometimento,

    mas sempre fazendo uso de pr-construtos, que constituem os termos

    de acordo lgico-semiticos e sociodiscursivos que limitam e ao mesmo

    tempo organizam as possibilidades de criao e de inovao ontolgica

    e gnosiolgica, dos agentes nas atividades, aes, tarefas e processos

    realizados pelo homem.

    O embate dialtico entre o que pr-construdo socialmente e a

    atualizao do agir praxeolgico-linguageiro o motor de propulso da

    conservao-mudana das obras culturais humanas (DURKHEIM,

    1898). Percebemos na linguagem, o exemplo maior desse dinamismo

    do humano. Por meio das atividades de linguagem, sempre conectadas

    a uma determinada prtica social, se encontram e se debatem novas

    formas de agir, de ser e de estar do humano no mundo. Saussure aponta

    para essa dade continuidade/ mudana como duas facetas complemen-

    tares do funcionamento da linguagem humana:

    [...] Gostaria de insistir sobre a impossibilidade radical, no apenas de qualquer ruptura, mas de qualquer sobressalto na tradio contnua da lngua desde o primeiro dia em que uma sociedade humana falou [...] (1891/2002, p. 163).2

    O pensamento verbal (VIGOTSKY, 1934/2010) est sempre expresso

    em um contexto. Situado, o pensamento se conecta s duas dimenses

    do agir humano: a ontolgica relacionada ao mundo fsico e a

    gnosiolgica nascida das interpretaes e significaes que os seres

    humanos engendram coletivamente acerca da dimenso ontolgica.

    Consequentemente, como acentua Dewey, O pensar real um processo;

    comea, continua; em suma, est em contnua mudana enquanto a

    pessoa pensa. [...] O pensar real sempre se reporta a algum contexto.

    (1933/1959, p. 80).

    A criao de mundos semiticos coletivos permitida com o advento

    do signo lingustico. Para Bronckart, as cristalizaes psquicas das uni-

    2 [] jinsisterais encore une fois sur limpossibilit radicale, non seulement de toute rupture, mais de tout soubresaut, dans la tradition continue de la langue depuis le premier jour mme o une socit humaine a parl [] (SAUSSURRE; 1891/2006, p. 163 apud BRONCKART, 2008, p. 26) TRADU-O NOSSA.

  • 126 Nonada 17 2011

    As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico:

    linguagem e emancipao na escola

    dades de intercmbio social (2008, p.31)3 conduzem, inelutavelmente a

    essa socializao do psiquismo que constituem a propriedade principal

    do funcionamento psicolgico propriamente humano.

    A representao no a construo de imagens mentais, mas de

    processos psquico-semiticos de alinhamento entre o mundo fsico e

    o mundo psquico (nas suas dimenses sociais e individuais). Elabo-

    rar representaes colocar em marcha ideias, critrios de validade,

    conceitos, crenas e fazer uso destes processos nas prticas humanas.

    Somos instados a representar sempre, pois temos de agir coletivamente,

    fazer sentido coletivamente.

    A formulao da semiose e, na sua forma lingustico-discursiva,

    os textos/discursos nos permitem pr em marcha essa dinmica e

    processos representacionais. No apenas como instrumento psquico

    no sentido vygotskyano, mas como tecido estruturante da dimenso

    gnosiolgica humana. A linguagem verbal , portanto, no apenas a

    voz dos pensamentos, mas o substrato aquoso, por onde caminham

    ideias coletivas; significados que, transformados em representaes

    mais estabilizadas, tornam possveis as obras culturais humanas e a

    complexidade das prticas sociais.

    A atividade linguageira sobre o ponto de vista da sua dimenso

    representativa est sempre em re-definio, isto , a cada interao

    relacionada quela atividade, novas significaes so adicionadas s

    representaes anteriormente estabilizadas, provocando dinmicas de

    atualizao e de conservao (confirmao) dessas representaes, que

    no se constituem em conceitos fixos, mas em construtos ativos, vivos,

    em constante movimento entrpico.

    Essa reflexo linguageira, esse pensar sobre a prtica e acerca do

    prprio pensar caracterizado pela ancoragem no agir referente, isto ,

    na situao real de atividade que enseja o texto. Podemos, ento, dizer

    que todo texto construdo sobre as bases de uma interao social que

    cria um quadro especfico de coordenadas fsicas e sociosubjetivas,

    em torno das quais a atividade se torna complexa e se preenche com

    3 cristallisations psychi-ques dunits dchange social (BRONCKART: 2008, p. 31) TRADU-O NOSSA.

  • 127Nonada 17 2011

    Fbio Delano Vidal Carneiro e Eullia Vera Lcia Fraga Leurquin

    normas, representaes e objetivos, ensejando sobre ela mesma uma

    recursividade linguageiro-praxeolgica. Enfim, agimos na e por meio

    da linguagem, a qual simultaneamente permite e delimita as interaes

    humanas que acontecem linguageiramente (BULEA, 2005).

    No diagrama a seguir, sintetizamos a relao entre as atividades

    prticas e linguageiras, remetendo, enfaticamente, ao fato de que am-

    bas so interdependentes e mutuamente determinantes. Disso decorre

    que a Linguagem no apenas mais uma das capacidades humanas,

    mas tambm uma megacapacidade constitudora mesmo do humano

    (sujeito), pois a partir dela que regulamos nosso agir e por ela nos

    tornamos conscientes desse agir, o que nos permite a elaborao de

    instrumentos psquicos de mediao com e sobre o mundo (objeto).

    Diagrama 1: Relao Prxis & Linguagem (adaptado de BRONCKART: 2008, p.45)

    Os mundos fsicos e scio-subjetivos organizam os valores das sig-

    nificaes. O psiquismo dos indivduos impregnado e organizado por

    essas significaes indexadas ou valoradas na interao com o meio.

    Constatamos a ubiquidade da linguagem e a possibilidade de distinguir

    modalidades de linguagens de acordo com o seu lugar de ancoragem,

    seja ele a interao (linguagem em ato comunicativo); a lngua natural

  • 128 Nonada 17 2011

    As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico:

    linguagem e emancipao na escola

    socialmente estvel (lngua como representao coletiva); a lngua

    interna (como representao individual, isto , internalizada do meio

    social, mas atualizada microgenicamente).

    Resta introduzir um conceito desenvolvido por Bronckart, Bulea e

    Fristalon (2004). Como j assinalamos, o objeto das cincias sociais e

    humanas o agir das pessoas. Nas prticas sociais, os actantes de um

    determinado agir-referente se mobilizam em diversos graus de colabora-

    o e comprometimento, mas sempre fazendo uso de pr-construtos, que

    constituem os termos de acordos lgico-semiticos e sociodiscursivos

    que limitam e ao mesmo tempo organizam as possibilidades de criao

    e de inovao ontolgica e gnosiolgica dos agentes nas atividades,

    aes, tarefas e processos realizados pelo homem.

    Durkheim, em seu texto seminal acerca das representaes indi-

    viduais e coletivas (1898/2009), aponta para esses diferentes nveis

    de actncia:

    Se, portanto, nos dado constatar que certos fenmenos podem ser causados somente por representaes, isto , se eles constituem os signos exteriores da vida representativa, e se, por outro lado, as representaes que assim se revelam so ignoradas pelo sujeito em que se produzem, dizemos que podem existir estados psquicos sem conscincia. (Op. cit. pp. 32 e 33)

    Paralelamente, nas prticas sociais correspondentes a determinado

    agir-referente, temos vrios actantes que se distinguem entre atores,

    envolvidos, comprometidos e conscientes da sua ao, e agentes, en-

    volvidos na ao, porm de forma no comprometida, sem clareza do

    seu papel ou funo, enfim de forma arbitrria. Na sequncia, exem-

    plificamos esse construto terico baseado no exemplo de uma aula de

    lngua materna. Em determinados momentos e em relao a certas

    aes, professor e alunos podem assumir papis de atores ou de meros

    agentes, dependendo do seu estado de envolvimento mais ou menos

    consciente nesta ou naquela ao durante a aula.

  • 129Nonada 17 2011

    Fbio Delano Vidal Carneiro e Eullia Vera Lcia Fraga Leurquin

    A prtica especfica (ou agir-referente) constituda com dimenses pra-

    xeolgicas e linguageiras. Nesse agir-referente, a ao se d principalmente

    por meio de textos, sendo a prpria aula uma espcie de gnero textual. Os

    gestos, aes e movimentos no conscientes se fundem s semiotizaes

    e interpretaes dessas aes. Pegar um lpis para escrever uma ao

    humana e, portanto, semiotizada, interpretada, pois todo gesto humano

    representado. O grau de impresso linguageira se eleva nas aes consti-

    tudas pela prpria produo dos textos. Agimos por intermdio dos textos,

    atingimos objetivos quer sejam eles conscientes ou no.

    O mesmo princpio dos graus de actncia se aplica ao agir argu-

    mentativo nos textos. A assuno de um papel de actante-ator ou

    actante-agente em uma ao de liguagem que d origem a um texto

    argumentativo est relacionada rede de parmetros discursivos es-

    tabelecida no e pelo texto.

    Enfim, como explica Bronckart:

    A forma e o contedo se fundem no discurso compreendido como fenmeno social: ele social em todas as esferas de sua existncia e em todos os seus elementos, desde a imagem auditiva at as manifestaes semnticas mais abstratas. (1999, p. 20).

    Diagrama 2: Decomposio de um agir-referente

  • 130 Nonada 17 2011

    As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico:

    linguagem e emancipao na escola

    Consequentemente, podemos fazer ligaes entre as operaes de

    linguagem realizadas nas aes de linguagem e os diversos aspectos

    da tecedura textual. Esses indcios lingusticos so evidncias das

    limitaes que a prpria lngua natural, utilizada pelo actante, im-

    pe. Em suma, suas escolhas ao elaborar o texto no so limitadas

    aos seus conhecimentos, ou s intenes e objetivos que, por acaso,

    queira atingir com determinado texto. O texto no uma produo

    mental, mas uma obra socio-semitica na qual h que se obedecer

    aos pr-acordos consignados na realidade das representaes indi-

    viduais e coletivas que so consultadas ao longo do processo de

    produo, a fim de que o texto seja constantemente avaliado segundo

    os critrios de validade das representaes que circulam na situao

    real de produo.

    No nos estamos referindo a modelos ou textos ideais, mas produ-

    es dinmicas que variam de um simples bilhete a um ensaio liter-

    rio. No importa o nvel de complexidade do texto, sua integridade

    maior do que a soma de suas partes e, portanto, todo texto, tomado

    como um todo, um construto ex machina. Opera como potncia das

    significaes a ele trazidas, vinculadas a diferentes amarras socio-

    semiticas. Esses parmetros so exatamente o que permitem ao texto

    fazer sentido dentro de uma determinada ao de linguagem.

    O discurso mais ntimo tambm dialgico: atravessado por uma

    audincia virtual, mesmo que a representao dessa audincia no

    esteja clara na mente do locutor. Como afirma Voloshinov:

    [] Ns no hesitamos a afirmar categoricamente que os discursos mais ntimos, so tambm em parte dialgicos: eles so atravessados pelas avaliaes de um auditrio virtual, de um auditrio potencial, mesmo se a representao de tal auditrio no aparea de forma clara no esprito do locutor. [] (1930/1981, p. 294).4

    As sincronias socio-semiticas nas quais se consubstanciam histori-

    camente as lnguas naturais constituem um nvel de actncia coletivo,

    4 nous nhsitons pas affirmer catgorique-ment que les discours les plus intimes sont eux aussi de part en part dialogiques: ils sont traverss par les va-luations dun auditeur virtuel, dun auditoire potentiel, mme si la reprsentation dun tel auditoire napparat pas clairement lesprit du locuteur. (Voloshinov, 1930/1981, p. 294) TRADUO NOSSA.

  • 131Nonada 17 2011

    Fbio Delano Vidal Carneiro e Eullia Vera Lcia Fraga Leurquin

    pois so produtos dos processos representacionais erigidos pelas gera-

    es anteriores que utilizam um vernculo especfico. Parece, ento, ser

    possvel afirmar que, muitas vezes, o que dizemos e escrevemos no

    fruto apenas das nossas escolhas, mas do emprstimo das represen-

    taes coletivas e da sincronia atual da lngua natural que utilizamos,

    as operaes, estruturas e parte significativa do contedo necessrias

    para elaborar um texto. Para compreender o agir linguageiro humano,

    preciso assumir a genericidade e actncia do social sobre o indivi-

    dual, ainda que neguemos um determinismo da dimenso social sobre

    a subjetiva. Na verdade, o humano quer participar do mundo humano

    para se humanizar e se percebe obrigado a entrar em acordo linguagei-

    ramente a fim de (sobre)viver praxiologicamente.

    AS CRIANAS FALAM DO MUNDO A PARTIR DE SI MESMAS E

    APESAR DA ESCOLA

    Em nossa recente pesquisa de doutorado, analisamos 120 textos de

    opinio de alunos do 5 ano do Ensino Fundamental, destinados ao

    Jornal Escolar da instituio em que estudavam. Os alunos-autores dos

    textos estudados no parecem se ancorar no discurso de adultos, sejam

    eles pais ou professores, para tomar suas decises e ancorar suas teses.

    Eles falam de um lugar que no adultocntrico. Sua posio discursi-

    va bastante autnoma, pois h a preponderncia da voz neutra e da

    prpria voz dos autores nas proposies analisadas.

    Quando alguma voz social referenciada, temos a presena dos pa-

    res outros alunos, amigos, irmos, primos parece-nos ser essa a sua

    comunidade de referncia. Apenas em dois dos textos analisados, vimos

    mencionados os pais e/ou a famlia. Esses traos lingusticos nos fazem

    refletir sobre as concepes de infncia e adolescncia e seu estatuto no

    conjunto das representaes sociais. Parece haver um descompasso entre

    as representaes que os adultos tm sobre a criana (ARIS, 1973; 1991)

  • 132 Nonada 17 2011

    As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico:

    linguagem e emancipao na escola

    e a prpria representao que a criana ou o jovem possui de si mesmo.

    Ns, os adultos em geral pais, professores responsveis pela

    educao das crianas, achamos que nossa influncia preponderante

    e sistemtica sobre a formao das crianas, mas a maior parte delas

    desenvolve de forma autnoma e assistemtica capacidades de ao

    no mundo. No que o mundo representativo e social no influencie

    as crianas. Ns que no prestamos ateno em como estas so

    influenciadas. No sabemos como internalizam e atualizam os instru-

    mentos psicolgicos superiores (VYGOTSKY 1931/1985). Talvez esse

    saber no seja possvel, dado que a prpria concepo de Zona de

    Desenvolvimento Proximal (VYGOTSKY 1934/2009) deve ser consi-

    derada como uma zona de contornos fluidos, cujos agentes e situaes

    que iro mediar o desenvolvimento se cruzam em suas influncias e

    manifestaes, assim como nas formas e resultados advindos dessa

    influncia (BROSSARD, 2002).

    Nesse mbito, seria de se esperar que as representaes scio-subje-

    tivas dessas crianas fossem marcadas por algum tipo de influncia do

    adulto com que passam quatro horas dirias o professor. Em nenhum

    dos textos analisados, contudo, o professor foi utilizado como referncia

    ou voz social. Sua presena ou meno completamente nula.

    Podemos interpretar isso no quadro geral de uma infncia que se

    referencia a si mesma, por vrias razes:

    1) os adultos, com a carga horria de trabalho semanal aumentada,

    estresse, sade em frangalhos, no so considerados o ideal a ser

    seguido. O jovem no olha mais para os pais ou professores com admi-

    rao, mas com medo de ficar igual a eles (BAUMAN, 2004);

    2) muitas crianas dessa faixa econmica, cada vez mais, so obrigadas

    a reunir capacidades de autonomia e sobrevivncia, perante a necessidade

    de cuidar dos irmos, ajudar no oramento domstico. Vivem com pouco

    e valorizam esse pouco. A eles so permitidos pouco tempo de inocncia

    e um rpido amadurecimento perante a situao socioeconmica de suas

    famlias e da regio onde moram (ANCED, 2004; 2011); e

  • 133Nonada 17 2011

    Fbio Delano Vidal Carneiro e Eullia Vera Lcia Fraga Leurquin

    3) inseridos numa sociedade do consumo, os adolescentes se colocam

    como principal alvo das propagandas e dos apelos comerciais. Eles sabem

    que para eles so dirigidas as campanhas publicitrias e os produtos da

    indstria cultural. O no acesso a esse desejo alimentado expe uma

    perversidade que torna as crianas vtimas de uma adultizao precoce

    e cujos valores so centrados na cultura do consumismo e do individu-

    alismo. Nessa cultura, cada um se basta, desde que possa ter e comprar

    (POCHMANN E AMORIM, 2004; PINHEIRO, 2009; BAUMAN, 2008).

    Postulamos uma viso de desenvolvimento que leve em conta as

    caractersticas histrico-culturais do ser humano. Na sua essencialidade,

    o ser humano desenvolve-se a partir da construo social de capacida-

    des psquicas que, mediatizadas pelas interaes, pouco a pouco vo

    se transformando em capacidades psquicas individuais.

    Cabe escola papel preponderante e especfico no desenvolvi-

    mento dessas capacidades. A concluso bvia a de que precisamos

    construir um agir escolar-formativo no qual aconteam situaes de

    interao entre seres humanos, voltados para a consecuo de ob-

    jetivos coletivos e individuais reais e concretos. Uma escola assim,

    na qual os saberes sejam enxergados a partir do seu contexto de

    produo e de uso ainda est longe de acontecer. Contudo, acredi-

    tamos que nunca tarde para se comear.

    REFERNCIAS

    ARIS, Philippe. LEnfant et la vie familiale sous lAncien Rgime. Paris: Seuil, 1973.

    ______. Histria Social da Criana e da Famlia, Rio de Janeiro: LTC, 1981.

    BAUMAN, Z. A Vida para o consumo: a transformao das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

    ______. Amor Lquido: sobre a fragilidade dos laos humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

  • 134 Nonada 17 2011

    As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico:

    linguagem e emancipao na escola

    BOURDIEU, P. A reproduo. Petrpolis: Vozes, 2010 (1970).

    BRONCKART, J.-P., BULEA, E., BOTA, C. Le projet de Ferdinand de Saussure. Genve: Librairie Droz, 2010.

    BROSSARD, M. Approche socio-historique des situations d`aprentissage de l`ecrit In: BROSSARD, M; FIJALKOW, J. Apprendre l`cole: perspec-tives piagetiennes et vygotskiennes. Bordeaux: Presses Universitaires de Bordeaux, 2002.

    BULEA, E. Linguagem e Efeitos Desenvolvimentais da Interpretao da Atividade. Trad. Eullia Vera Lucia Fraga Leurquin, Lena Lcia Espndola Figueiredo, So Paulo: Mercado de Letras, 2010.

    BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: Por um interacionismo scio-discursivo. Trad. Anna Rachel Machado, Pricles Cunha. So Paulo: EDUC, 1999.

    ______. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas: Mercado de Letras, 2006.

    ______. Desarollo del lenguaje y didctica de las lenguas. Buenos Aires: Mio y Dvila, 2007.

    ______. O Agir nos discursos: das concepes tericas s concepes dos trabalhadores. Campinas: Mercado de Letras, 2008.

    ______. Genres de textes, types de discours et degrs de langue. Hom-mage Franois Rastier. Texto ! [En ligne], Dialogues et dbats. 2008. URL: http://www.revue-texto.net/index.php?id=86.

    ______. La vie des signes en questions. Des textes aux langues et retour. Confrence inaugurale du XXVe Congrs de lAssociation Portugaise de Linguistique, Lisbonne, Portugal, 2009, octobre.

    ______. Representation In: Dictionnaire de psychologie / publie sous la direction de Roland Doron et Francoise Parot. Paris: Presses univer-sitaires de France, 2011, 3 Ed., 2011.

    CALDAS, G. Mdia, escola e leitura crtica do mundo. Educao e Soc., Campinas, vol. 27, n. 94, p. 117-130, jan./abr. 2006. Disponvel em . Acesso em: 29 jun. 2008.

    CAMPOS ET ALLI, Atlas da Excluso Social v.2 So Paulo:Cortez, 2004.

    DEWEY, J. Evolution and Ethics Pages 34-54 in The Early Works of John Dewey 1882 - 1898, Vol. 5 (1895-1898) edited by Jo Ann Boydston. Carbondale & Edwardsville: Southern Illinois University Press (1972). Originally published in The Monist VIII, (1898): 321-341.Disponvel em: Acesso em 24/04/2011.

  • 135Nonada 17 2011

    Fbio Delano Vidal Carneiro e Eullia Vera Lcia Fraga Leurquin

    DURKHEIM, E. Representaes Individuais e Representaes Coletivas In: Filosofia e Sociologia. So Paulo, Ed. Martin Claret, (1898) 2006.

    FREIRE, P. Educao como prtica da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

    HABERMAS, Jrgen. Teoria de la accin comunicativa: racionalidad de la accin y racionalizacin social. Madrid: Taurus, 1987.

    IBGE, Censo Demogrfico 2010. Disponvel em: Acesso em 24 abr. 2011.

    MATURANA, H. R.;VERDEN-ZLLER, G. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano do patriarcado democracia. So Paulo: Palas Athenas, 2004.

    PINHEIRO, ngela. Criana e Adolescente no Brasil: Porque o Abismo entre a Lei e a Realidade. Fortaleza: Editora UFC, 2006.

    POCHMANN, Marcio; AMORIM, Ricardo Gomes. Atlas da Excluso Social. So Paulo: Cortez, 2004, vol. 2.

    RASTIER, F. De lorigine du langage lmergence du milieu humain. Marges linguistiques, 11, 2006.

    RASTIER, F.. Arts et sciences du texte. Paris: P.U.F. 2001

    UNICEF. Relatrio da situao da infncia e adolescncia brasileiras. Braslia: UNICEF, 2004.

    VOLOSHINOV, V.N. (1981b). La structure de lnonc. In: T. Todorov (Ed.), Mikhal Voloshinove le principe dialogique (pp. 287-316). Paris: Seuil [Edition originale: 1930].

    VOLOSHINOV (BAKHTIN). Marxismo e Filosofia da Linguagem, So Paulo: Hucitec, 1995.

    ______. Esttica da Criao Verbal. 4. Ed. So Paulo: Martins Fontes, 2003.

    ______. O freudismo. So Paulo: Perspectiva, 2007

    VYGOTSKI, L.-S. A construo do pensamento e da linguagem. Traduo de Paulo Bezerra. 2. Ed., So Paulo: Martins Fontes

    ______. Pense et langage. Paris: Editions sociales, 1985 (1934).

    ______. La Methode instrumentale en Psychologie In BRONCKART, J-P, SCHNEUWLY, B. Vygotski aujourdhui. Paris Delachaux et Niestl, 1985b (1931).

  • 136 Nonada 17 2011

    As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir pedaggico:

    linguagem e emancipao na escola

    FBIO DELANO VIDAL CARNEIRO

    Doutorado em lingustica. Advogado, professor de lnguas, supervisor de

    ensino do Colgio 7 Setembro. Membro pesquisador do Grupo GEPLA

    (Grupo de Estudos e Pesquisas em Lingustica Aplicada)/PPGL-UFC.

    E-mail: [email protected]

    EULLIA VERA LCIA FRAGA LEURQUIN

    Doutorado em Lingustica. Professora do PPGL/ UFC. Coordenadora

    do Grupo GEPLA.

    E-mail: [email protected]

    Recebido em 28/10/2011Aceito em 30/11/2011

    CARNEIRO, Fbio Delano Vidal; LEURQUIN, Eullia Vera Lcia

    Fraga. As dimenses sociais do desenvolvimento humano e o agir

    pedaggico: linguagem e emancipao na escola. Nonada Letras em

    Revista. Porto Alegre, ano 14, n. 17, p. 115-136, 2011.