fragoso, joao. modelos explicativos economicos

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História (São Paulo) História (São Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 106 Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas de um ensaio Explanatory models from the called colonial economy and the idea of multi-continental monarchy: an essay notes ________________________________________________________________ João FRAGOSO * Resumo: O texto apresenta ideias debatidas no grupo Antigo Regime nos Trópicos do CNPq e com investigadores portugueses (Universidade de Lisboa, Universidade Nova de Lisboa e Universidade de Évora) sobre o Brasil e o império luso entre os séculos XVI e XVIII. Entre tais ideias temos a de Monarquia Pluricontinental, cuja intensão é de ultrapassar a tese da sociedade da América lusa como um simples canavial escravista submetido aos humores de um suposto capitalismo comercial e de um Estado Absolutista. Ao invés, disto, grosso modo, compreende-se as relações periferia e centro na Monarquia lusa (“metrópole e colônia”) pautadas na concepção de mundo predominante na Europa do Sul daquela época, qual seja uma visão corporativa e polissinodal. Segundo esta concepção o príncipe era a cabeça da sociedade, porém não se confundia com ela. Dai a possibilidade de existir negociações entre os Poderes locais, inclusive os das Conquistas ultramarinas, e o Poder Central. A ideia de Monarquia Pluricontinetal sublinha ainda que as histórias do Brasil e de Portugal da época moderna devem ser compreendidas através da dinâmica do império ultramarino luso. Ou seja, uma das chaves (mas, não a única) para a compreensão da sociedade americana eram os traços do Antigo Regime, tais como a hierarquia social estamental, a disciplina católica e o autogoverno dos municípios. Da mesma forma, para Portugal, aquele conceito implica em sublinhar a existência de um reino e de uma aristocracia dependentes do ultramar. A partir deste cenário o artigo desenvolve a hipótese de Antigo Regime nos trópicos. Através dela tenta-se ver as tensões e a dinâmica de uma sociedade baseada, ao mesmo tempo, no Antigo Regime católico e na escravidão africana. Um dos resultados de tal dinâmica era o entrelaçamento da hierarquia estamental com a mobilidade social na forma de grupos sociais saídos da escravidão (forros, mestiços etc) e de uma nobreza da terra (sem ser solar, mas baseada na conquista da terra e práticas costumeiras desta América). O texto ainda apresenta uma rápida discussão historiográfica e chama atenção para novas fontes empíricas. Palavras-chave: Monarquia Pluricontinental; América portuguesa; Antigo Regime * Professor titular do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta pesquisa conta com o financiamento do CNPq, CAPES e FAPERJ. Agradeço pelos comentários de Roberto Guedes e de Francisco Cosentino.

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  • Histria (So Paulo)

    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 106

    Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia

    Pluricontinental: notas de um ensaio

    Explanatory models from the called colonial economy and the idea of multi-continental

    monarchy: an essay notes

    ________________________________________________________________

    Joo FRAGOSO*

    Resumo: O texto apresenta ideias debatidas no grupo Antigo Regime nos Trpicos do CNPq e

    com investigadores portugueses (Universidade de Lisboa, Universidade Nova de Lisboa e

    Universidade de vora) sobre o Brasil e o imprio luso entre os sculos XVI e XVIII. Entre

    tais ideias temos a de Monarquia Pluricontinental, cuja intenso de ultrapassar a tese da

    sociedade da Amrica lusa como um simples canavial escravista submetido aos humores de

    um suposto capitalismo comercial e de um Estado Absolutista. Ao invs, disto, grosso modo,

    compreende-se as relaes periferia e centro na Monarquia lusa (metrpole e colnia) pautadas na concepo de mundo predominante na Europa do Sul daquela poca, qual seja

    uma viso corporativa e polissinodal. Segundo esta concepo o prncipe era a cabea da

    sociedade, porm no se confundia com ela. Dai a possibilidade de existir negociaes entre

    os Poderes locais, inclusive os das Conquistas ultramarinas, e o Poder Central. A ideia de

    Monarquia Pluricontinetal sublinha ainda que as histrias do Brasil e de Portugal da poca

    moderna devem ser compreendidas atravs da dinmica do imprio ultramarino luso. Ou seja,

    uma das chaves (mas, no a nica) para a compreenso da sociedade americana eram os

    traos do Antigo Regime, tais como a hierarquia social estamental, a disciplina catlica e o

    autogoverno dos municpios. Da mesma forma, para Portugal, aquele conceito implica em

    sublinhar a existncia de um reino e de uma aristocracia dependentes do ultramar. A partir

    deste cenrio o artigo desenvolve a hiptese de Antigo Regime nos trpicos. Atravs dela

    tenta-se ver as tenses e a dinmica de uma sociedade baseada, ao mesmo tempo, no Antigo

    Regime catlico e na escravido africana. Um dos resultados de tal dinmica era o

    entrelaamento da hierarquia estamental com a mobilidade social na forma de grupos sociais

    sados da escravido (forros, mestios etc) e de uma nobreza da terra (sem ser solar, mas

    baseada na conquista da terra e prticas costumeiras desta Amrica). O texto ainda apresenta

    uma rpida discusso historiogrfica e chama ateno para novas fontes empricas.

    Palavras-chave: Monarquia Pluricontinental; Amrica portuguesa; Antigo Regime

    * Professor titular do Departamento de Histria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta pesquisa conta

    com o financiamento do CNPq, CAPES e FAPERJ. Agradeo pelos comentrios de Roberto Guedes e de

    Francisco Cosentino.

  • Joo Fragoso

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    Com a multiplicao dos programas de Ps-Graduao em Histria no Brasil nas

    dcadas de 1970 e 1980, diversos aspectos dos antigos modelos explicativos da chamada

    economia colonial dominada comearam a ruir. Como os leitores sabem, estes modelos,

    construdos principalmente sob a pena de eruditos - como Caio Prado Jnior nos anos de 1940

    e, na dcada seguinte, Celso Furtado -, defendiam que a sociedade da Amrica lusa dos

    sculos XVII e XVIII fora construda com o propsito de fomentar a transio do feudalismo

    para o capitalismo na Europa, ou ainda com o intuito de viabilizar a revoluo industrial

    inglesa do sculo XIX (PRADO Jr., 1977; FURTADO, 1976).

    Portanto, para aqueles autores e ainda seus atuais seguidores, a terra brasilis e outras

    paragens do Novo Mundo presenciaram a instalao de estruturas sociais e econmicas

    subordinadas aos interesses dos comerciantes de praas, como Anturpia, do sculo XVI e

    depois, de Amsterdam e Londres. E estes comerciantes, no raro, foram definidos de forma

    caricatural pela sua avidez a lucros. Por serem elaboradas com o objetivo de possibilitar a

    produo e transferncia de riquezas para o Velho Mundo, as estruturas econmicas da

    Amrica deviam conter, ao menos, algumas caractersticas ou um sentido manifesto, como

    destacava Caio Prado: produzir mercadorias a baixos custos de modo a permitir na sua

    revenda lucros extraordinrios para o capital mercantil europeu; possuir um mercado que

    adquirisse manufaturados, de modo a fomentar a produo industrial europeia; ter por base a

    mo de obra africana e com isto ampliar o comrcio de homens e mulheres no Atlntico Sul,

    atividade controlada pelos negreiros europeus. Neste sentido, o trfico internacional de

    escravos criou a produo baseada na escravido africana na Amrica, como sublinhou

    Fernando Novais (NOVAIS, 1983).

    O resultado destas vontades do capitalismo comercial europeu seria a constituio, na

    Amrica lusa da passagem do sculo XVI para o XVII, grosso modo, de um grande canavial

    gerenciado por senhores de engenhos, porm dirigidos por um capital no residente, nas

    palavras de Celso Furtado. Assim, a economia colonial no tinha dinmica prpria, e seu

    destino dependia dos humores do mercado europeu. Outra consequncia seria a inexistncia

    de um mercado interno ou ainda de produes mercantis in loco voltadas para o

    abastecimento da Amrica. Estas atividades no podiam existir, pois colocariam em perigo o

    sentido da colonizao. Quando tais lavouras de abastecimento ou currais surgiam, isto se

    dava em razo dos interesses das atividades exportadoras. E, consequentemente, as produes

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    mercantis ligadas ao consumo interno estavam tambm subordinadas lgica das flutuaes

    do sistema econmico maior ao qual pertencia aquele imenso canavial.

    A estratificao social desta Amrica tambm derivava do sentido da colonizao.

    Desse modo, comportava fundamentalmente dois grupos: senhores e escravos africanos.

    Todos os demais grupos sociais da populao seriam personagens marginais daquele canavial.

    Nisto se resumia o que se entendia como sociedade escravista nos tempos modernos.

    Na dcada de 1970, os modelos de Caio Prado e Celso Furtado comearam a ser alvo

    de crticas em vrios ensaios, dentre os quais se destacaram os no campo do marxismo, os de

    Ciro Cardoso e de Jacob Gorender (CARDOSO, 1973; GORENDER, 1978).1 Ambos

    sublinharam ao menos duas fragilidades nos argumentos daqueles modelos, relatadas a seguir.

    O princpio teleolgico contido, principalmente, nas ideias de Caio Prado - este e

    outros autores explicavam a montagem da economia colonial, processos dos sculos XVI e

    XVII, a partir do que a economia brasileira era na dcada de 1940. Para Caio Prado, o Brasil

    de ento se resumia a uma economia agroexportadora caudatria dos interesses externos ou do

    imperialismo. Este mesmo princpio teleolgico, conforme seus crticos, encontrava-se na

    ideia de explicar o funcionamento da economia colonial seiscentista como decorrente do que

    ocorreria na Europa nos sculos seguintes, XVIII e XIX, leia-se: a Revoluo Industrial.

    Outra crtica se referia nfase dada circulao das mercadorias na determinao das

    formas sociais de produo. Ciro Cardoso e Jacob Gorender sublinhavam que o capital

    mercantil era incapaz de caracterizar ou gerar formas de produo, at porque comrcio e

    comerciantes so categorias anteriores ao Dilvio e Arca de No, ou seja, existentes em

    diferentes sistemas econmicos. Para estes dois autores, o procedimento correto seria atentar

    para a estrutura de produo. Da mesma forma, eles sublinharam a importncia de analisar a

    lgica das relaes sociais vividas naquelas sociedades. Em outras palavras, no somente

    existia vida inteligente na Europa do Renascimento, mas tambm na populao residente na

    sociedade da Amrica lusa de ento e dos sculos seguintes. Afinal, at que se prove o

    contrrio, senhores de escravos, ndios, escravos negros e mestios tambm possuam mais de

    dois neurnios e com eles agiam e interferiam na histria de suas comunidades.

    Neste instante, cabe um parntese para mencionar trabalhos mais recentes dos autores

    vinculados ideia de Antigo Sistema Colonial. Em 1997, o professor Fernando Novais

    escrevia: a escravido como relao social dominante (embora no exclusiva) repercute na

    esfera do cotidiano e da intimidade de maneira decisiva (...), [n]as relaes intraclasse

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    senhorial, [n]as relaes internas ao universo da vida dos escravos e [n]as relaes

    intermedirias entre senhores e escravos (NOVAIS, 1997). Aparentemente, tal passagem

    pode sugerir que Fernando Novais tenha mudado sua posio e aceitado a ideia central no

    conceito de um modo de produo escravista colonial, como Ciro Cardoso e Jacob Gorender

    tinham proposto, qual seja: a hiptese de compreender a dinmica da sociedade colonial a

    partir da estrutura social de produo vigente na dita sociedade colonial. Entretanto, mais

    adiante o professor Novais esclarece que a explorao colonial deve ser vista no interior do

    processo de formao do capitalismo, disso resultava que a colonizao tinha um carter

    essencialmente comercial, voltado para fora, mas, para alm disso, compunha um mecanismo

    de estmulo acumulao primitiva de capital mercantil autnoma no centro do sistema

    (NOVAIS, 1997). Deste modo, para o autor, a dinmica da dita sociedade colonial continuava

    sendo resultado de um suposto capitalismo comercial e a prpria escravido colonial, produto

    deste capitalismo e, como tal, da lucratividade do trfico atlntico de escravos (NOVAIS,

    1997). No sem motivo, que mais adiante seja sublinhado que a externalidade da acumulao

    aparece, pois, como estrutura bsica, no plano econmico, e definidora da colonizao. (...) ao

    mesmo tempo o sentimento dominante de viver em coloniais, ou seja, a sensao intensa e

    permanente de instabilidade, precariedade, provisoriedade(NOVAIS, 1997). Portanto, para

    o professor Novais, a escravido uma relao social fundamental, porm s pode ser

    compreendida no mago da externalidade da acumulao de riquezas engendrada pelo

    capitalismo comercial, cuja base, salvo engano, a Europa. Em outras palavras, a dita

    escravido colonial uma criatura deste capital comercial europeu, o mesmo ocorrendo com a

    sociedade da Amrica lusa.

    Em trabalhos recentes, tambm salvo engano, a professora Laura de Mello e Souza

    interpreta a escravido negra na Amrica lusa dos sculos XVII e XVIII de maneira

    semelhante do professor Novais e, portanto, de forma bem diferente ao proposto por Ciro

    Cardoso e Jacob Gorender. Pelo menos esta a impresso que se tem quando a autora associa

    a ideia de escravismo de capitalismo comercial. E, ainda, entendendo o conceito de

    exclusivo colonial como pea-chave, mesmo que nem sempre eficaz, que integrava,

    qualificava e definia as relaes colnia e metrpole.2 No mesmo trabalho, mais adiante a

    professora volta s hipteses do professor Novais ao se referir Minas Gerais do sculo

    XVIII, ao sublinhar a natureza arrivista das suas elites ou, ainda, quando enfatiza que as

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    divises em tal sociedade eram de classe, pois se fundavam no dinheiro (SOUZA, 2006,

    181).3

    Feito o dito parntese, voltemos sequncia cronolgica dos embates historiogrficos.

    Foi nas dcadas de 1980 e 1990 que as explicaes sobre a economia colonial assentadas na

    proeminncia do capital europeu receberam golpes decisivos. E isto ocorreu com a

    multiplicao das dissertaes de mestrado e teses de doutorado dos programas de Ps-

    Graduao, instalados no Pas nas dcadas de 1970 e 1980, como dito acima. Esses trabalhos

    demonstraram, a partir de slidas pesquisas empricas, a fragilidade de vrias certezas - em

    verdade, hipteses - da tradicional historiografia colonial. Esse o caso da nova leitura

    proporcionada para as relaes metrpole-colnia e dos links entre economia colonial e

    Europa de fins do sculo XVIII, quando Manolo Florentino (FLORENTINO, 1997;

    FRAGOSO, 1992; VERGER, 1987) demonstrou, em sua tese de doutorado, que o controle do

    trfico atlntico de escravos da poca no estava nas mos do capital mercantil europeu, mas

    de negociantes residentes na Amrica lusa. Pouco tempo antes, provei que outros segmentos

    da dita economia na passagem do sculo XVIII para o XIX tambm eram controlados pela

    mesma comunidade de negociantes da Praa do Rio de Janeiro. Alm disso, comeou-se a

    demonstrar que a economia era mais do que uma plantation exportadora, existia um circuito

    de mercados internos disseminados pela Amrica. Mesmo nas regies at ento vistas como

    aucareiras, como o recncavo baiano, observou-se a existncia de reas dedicadas lavoura

    mercantil de alimentos. O conjunto desses resultados colocou dvidas sobre uma srie de

    hipteses a respeito da dependncia.

    Da mesma forma, multiplicaram-se os estudos sobre sociabilidade entre cativos,

    especialmente sobre as famlias e a ao dos escravos, forros e pardos, que comearam a ser

    descortinados. Neste sentido temos os trabalhos de Silvia Lara sobre a ao dos escravos em

    Campos dos Goitacazes no sculo XVIII e de Sidney Chalhoub para a cidade do Rio de

    Janeiro do sculo seguinte. Ainda na dcada de 1980, Hebe Castro negava a natureza

    marginal ou de desclassificados sociais atribudos populao de homens livres pobres.

    Estudando um municpio da provncia fluminense do Oitocentos, ela demonstrava ao social

    destes homens e mulheres nas suas lavouras e comunidades, interagindo com as elites

    fundirias locais no mercado e diante do acesso terra. Em sua tese de doutorado, Castro

    voltaria a inovar ao apresentar a hiptese de que os pardos no deviam ser compreendidos

    como raa ou sinnimo de mestio de branco com preto. Para a autora, aquela cor indicava

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    uma construo social coeva, ou seja, era produto de agncias sociais de diferentes atores.

    Ainda nesta gerao, temos o pioneiro trabalho de Sheila Castro Faria, baseada em fontes

    cartorrias e registros paroquiais, que descortinou diversos traos da vida na sociedade do

    Setecentos no Norte Fluminense, tais como sistemas de casamento, mobilidade social e

    geogrfica, formas de acesso terra, etc. Seu trabalho de doutorado ainda hoje um dos

    poucos que foi capaz de estudar as interaes de diferentes estratos da sociedade (escravos,

    forros, senhores, comerciantes, etc.), procurando entend-los a partir de suas prticas culturais

    e econmicas (MATTOS, 1987, 1995; CHALHOUB, 1990; LARA, 1988; FARIA, 1998).

    Grande parte das investigaes h pouco citadas teve como objeto o Rio de Janeiro e

    So Paulo de fins do sculo XVIII e, principalmente, o sculo XIX. Apesar desse recorte

    temporal, aqueles trabalhos, inclusive o meu, possuam o velho vcio e a arrogncia da

    tradio ensasta brasileira, qual seja: a tentao de, a partir de investigaes de apenas um

    curto perodo e uma regio, explicar, por meio de esquemas lgicos, o conjunto temporal da

    sociedade escravista da Amrica lusa, inclusive seu vasto perodo colonial (de 1500 a 1822).

    Ainda hoje, diversos pesquisadores partem para estudar a Amrica lusa profunda com

    concepes construdas para o sculo XIX. Talvez bons exemplos disso sejam os estudos

    sobre elites sociais, plantations, mestiagem, sociabilidades escravas e alforrias. valido que

    tais ideias sejam hipteses iniciais, desde que se tenha certo cuidado para no cair, nas

    palavras do Professor Fernando Novais, no pior dos pecados do historiador: o anacronismo.

    Por exemplo, nunca demais lembrar que no sculo XIX a ideia corrente sobre escravido era

    diferente daquela vigente no sculo XVII.

    Por seu turno, comeam a surgir tambm investigaes predispostas a descobrir

    lgicas sociais diferentes das do Oitocentos. No caso, tendo como referncia as ferramentas

    tericas com as quais as sociedades europeias, africanas e indgenas lidavam, no Quinhentos e

    no Seiscentos, com os seus problemas. Hoje em dia, as pesquisas, por exemplo, sobre o Sul da

    Europa, os Aores ou o Reino do Benin dos sculos XVI e XVII j permitem saber com quais

    artefatos lgicos os aorianos, os minhotos e os mina lidavam ao chegarem s conquistas

    lusas na Amrica. Da mesma forma, os estudos sobre a histria indgena j nos fornecem

    indcios de como as diferentes populaes tupis lidavam com seus problemas.

    O grande passo dado nos ltimos anos para o conhecimento da Amrica lusa dos

    sculos XVII e XVIII foi o de reconhecer nossa ignorncia sobre os mesmos sculos. Afinal,

    foi com muito custo e depois de bastante tempo que percebemos que a Amrica no era um

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    simples canavial, habitado por prepostos do capital mercantil e semoventes (escravos),

    conectado humanidade apenas por rotas comerciais.

    Ainda pouco sabemos sobre a vida religiosa de Pernambuco da primeira metade do

    sculo XVIII e, menos ainda, sobre a organizao fundiria baiana do Seiscentos. Talvez um

    dos melhores indcios da nossa ignorncia e, portanto, da precariedade de nossas reflexes

    sobre as pessoas que viveram o Estado do Brasil, do Gro Par e do Maranho seja que s

    recentemente obtivemos uma estimativa populacional - para alm das anotaes dos viajantes

    - do Bispado do Rio de Janeiro em fins do sculo XVII. Segundo a Visita paroquial de 1687,

    compreendendo as povoaes situadas entre Porto Seguro, na atual Bahia, e Curitiba, no atual

    Paran, a populao que comungava era estimada em 35.802 almas, distribudas em

    freguesias e capelas curadas.4

    Em outras palavras, eram principalmente essas 35.802 pessoas que davam vida

    economia aucareira de base escravista, s lavouras de alimentos e aos currais de gado. Este

    reduzido nmero de habitantes assegurava a existncia de metade do territrio do Estado do

    Brasil de ento. Essa populao, inferior aos 100 mil habitantes de Npoles de fins do sculo

    XVI, estava em um territrio superior ao do imprio europeu dos ustrias da mesma poca.

    Porm, ainda pouco sabemos dos no catlicos, como os ndios bravos que ocupavam os

    arredores dos povoados citados. Ainda em 1767, segundo os mapas de Manuel Vieira Leo, o

    serto entre os rios Piabanha e Paraba estava infestado por aqueles ndios. Observe-se que

    estou me referindo regio atualmente ocupada por cidades fluminenses como Trs Rios,

    portanto, a poucas centenas de quilmetros da ento capital do Vice-Reinado do Brasil, o Rio

    de Janeiro.5 Em outras palavras, o entendimento da sociedade catlica habitada por aquelas

    35.802 pessoas s fica claro quando tambm pensamos a ao da populao que no

    comungava.

    Por seu turno, como afirmei acima, aqueles nmeros sobre a populao catlica e a

    extenso do territrio, em tese sob a tutela da coroa portuguesa, conferem uma base mais

    slida para entender a sociedade americana lusa do sculo XVII. Ou melhor, aqueles nmeros

    comeam a nos dar pistas sobre a dinmica de tal sociedade, ou ainda o ritmo de

    sedimentao de relaes sociais que costumamos chamar de escravistas e estamentais.

    Afinal, uma coisa viver numa sociedade catlica, estamental e escravista, cuja S de seu

    Bispado tinha apenas trs mil almas, como ocorria em 1687. Outra coisa bem diferente , em

    1787, quando a mesma S confundia-se com uma cidade mercantil, capaz de, em apenas um

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    ano, receber do trfico atlntico de cativos cerca de 10.000 almas. Entre 1687 e 1787,

    portanto, a sociedade estamental e escravista, base do Bispado do Rio de Janeiro, adquiriu

    novos contornos sociais com a multiplicao da populao, a diversificao dos mercados

    locais e suas ligaes com a praa do Rio de Janeiro e o Atlntico. Provavelmente, a

    sociedade, entre 1687 e 1787, permaneceu estamental e escravista, porm seus ritmos eram

    diferentes dos de um sculo atrs. Basta lembrar que na ltima data os ndios bravos do serto

    circundavam uma praa mercantil que recebia do Atlntico ondas de minas, benguelas,

    cabindas, alm de minhotos, alentejanos, aorianos, etc.

    A nossa ignorncia ainda confirmada quando nos deparamos com testamentos de

    famlias de grandes traficantes de escravos e arrematadores de impostos do Rio de Janeiro de

    fins do sculo XVII que gastavam parte de suas fortunas em missas para a salvao de suas

    almas. Podemos ter uma ideia do significado destas decises pias sobre o funcionamento da

    economia desta cidade quando comparamos o valor declarado nas determinaes

    testamentrias (tera) feitas na freguesia da Candelria - rea habitada por donos de

    plantations e, principalmente, por grandes negociantes, nos anos de 1674 e 1675 - com o total

    dos bens (engenhos de acar, sobrados, terras) negociado nos cartrios da cidade. O

    equivalente a 40% do valor dos negcios registrados em cartrios iam para missas, igrejas e

    irmandades pias (FRAGOSO, GUEDES, no prelo). Assim, parte significativa da riqueza social

    era destinada para o alm-tmulo na forma de missas ou de vnculos. Ao que parece, esta

    economia tinha os seus investimentos comandados pelos mortos, e no tanto pelo capital

    mercantil europeu.

    Quanto Amrica lusa como mercado de manufaturados europeus, mais uma vez os

    testamentos podem nos ajudar. Na primeira dcada do sculo XVIII, camisas, vestidos,

    lenis e utenslios domsticos eram vistos como bens preciosos e doados como tal nos

    testamentos a entes queridos como filhos, irmos e amigos. Por exemplo, Catarina do Esprito

    Santo, esposa de Martim Correia de S, futuro sargento mor da tropa regular e fidalgo da casa

    real, ao morrer em 1703 doava sua roupa branca para suas irms.6 Estas eram filhas de um

    capito de fortaleza e dono de fazendas de cana, de modo que pertenciam a uma famlia rica

    para o padro da poca. Assim, ao que parece, o crescimento mercantil da cidade na poca,

    decorrente da descoberta do ouro das Minas e do aumento do trfico de escravos africanos,

    no implicou na disseminao de bens de consumo manufaturados j vulgarizados na Europa

    e em partes da Amrica inglesa como txteis. O padro de consumo e de mercado nesta

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    Amrica era ainda protoindustrial e o seria ainda por muito tempo, como mais uma vez os

    testamentos informam.

    Da mesma forma, os primeiros estudos baseados em registros de batismos de escravos

    de reas de plantation aucareira tendem a demonstrar que pensar em padro demogrfico

    escravo para estas reas , no mnimo, um problema complexo. Em outras palavras, nos

    batismos de escravos da freguesia de So Gonalo no Rio de Janeiro entre 1646-68 as mes

    escravas com pais livres representavam 12% do total das mes escravas presentes em tais

    registros, e as mes acompanhadas por pais cativos, outros 75%. Portanto, nesta freguesia as

    mes sem pais nomeados praticamente no existiam. Uma realidade bem diferente foi

    encontrada por Thiago Krause nos batismos de escravos da freguesia baiana de Santo Amaro

    da Purificao entre 1652 e 1676. Nesta rea e perodo, a quase totalidade era composta por

    pais desconhecidos e mes escravas desacompanhadas (KRAUSE, no prelo).

    Enfim, h indcios de que o mundo at ento escondido pelos modelos explicativos de

    meados do sculo XX era diferente e mais complicado do que uma economia exportadora

    comandada pelo capital mercantil no residente.

    ***

    A difuso dos programas de Ps-Graduao no Brasil foi contempornea de mudanas

    dramticas na historiografia internacional. Entre elas temos, nas dcadas de 1980 e 1990, a

    crtica ideia de Estado Absolutista como sinnimo de Antigo Regime, hiptese em voga

    desde o sculo XIX. Uma das consequncias desta crtica foi desencadear novas leituras sobre

    a sociedade europeia da poca moderna. Por exemplo, o Estado Leviat cedeu espao

    agncia dos poderes locais e de grupos como a nobreza. A mesma crtica tambm implicou

    uma nova leitura sobre a dinmica dos imprios ultramarinos, em especial os ibricos. Nesse

    ltimo caso, basta lembrar a lio que aprendi no ensino mdio sobre Mercantilismo. Esse era

    entendido como poltica econmica do Estado Absolutista e tinha como um dos seus

    principais aspectos a explorao das riquezas da fulgurante e jovem sociedade do Novo

    Mundo. Em fins da dcada de 1980, colocava-se dvida ideia de absolutismo, assim como a

    explorao econmica e a subordinao poltica impiedosa das, at ento, chamadas colnias.

    Em 1989, Antonio Manuel Hespanha publicava Vsperas del Leviathn. Instituiciones

    y poder poltico (HESPANHA, 1984; 1994), em que desenvolvia ideias apresentadas em

  • Joo Fragoso

    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 115

    trabalhos anteriores, entre eles o captulo Para uma teoria da histria institucional do Antigo

    Regime, impresso em 1984. Nesses textos foi desenvolvida a hiptese seminal, na qual

    Monarquia passa a ser entendida como a cabea da repblica, porm sem se confundir com

    essa, j que nela existiam outros poderes concorrentes: da aristocracia s comunas municipais.

    Era ela a cabea pensante, capaz de articular as jurisdies das vrias partes que

    compunham o conjunto do corpo social, seja no reino, seja no ultramar. Trs anos depois, J.

    H. Elliott, tendo como referncia o caso espanhol da poca moderna, expunha o conceito de

    monarquia compsita. Nele, a monarquia era algo constitudo por vrios reinos, sendo que

    cada um deles preservava, em grande medida, as caractersticas de sua existncia institucional

    prvia, estando no interior da monarquia (ELLIOT, 1992). Os vrios reinos eram, desse

    modo, preservados nos termos de suas formaes originais, com seus corpos de leis, normas e

    direitos locais. Cada uma dessas unidades mantm sua capacidade de autogoverno no interior

    de um complexo monrquico mais amplo. Nesse formato, o rei - o monarca - operava como a

    cabea do corpo social, constitudo pelos vrios reinos que eram regidos por suas regras,

    coadunadas com as leis maiores editadas pela coroa, como era o caso do Vice-Reino de

    Portugal e a edio das Ordenaes Filipinas em 1602, por exemplo.

    Do outro lado do Atlntico, em 1994, J. Greene, vivendo a mesma atmosfera

    revisionista, apresentava a noo de autoridade negociada como eixo nas relaes metrpoles

    e colnias, rompendo com isto a tradio da inexorvel subordinao poltica das chamadas

    colnias e de suas elites locais frente s autoridades metropolitanas europeias. (GREENE,

    1994). Com isso, chegavam histria poltica as crticas feitas por historiadores da economia

    teoria da dependncia aplicada histria econmica, que desde, ao menos, fins da dcada de

    1970 criticava a teoria da dependncia.7

    Sobre este tema, Bartolom Yun Casilla, numa publicao de 2010, lembra que a

    Amrica espanhola no sculo XVI no estava preparada para demandar produtos europeus.

    At finais do Quinhentos, por exemplo, o pagamento feito pelos indgenas no sistema de

    encomendas era em forma de produtos, entre eles os txteis, elaborados nas comunidades

    locais. Por volta de 1590, quando o contrabando ainda no era uma realidade, as exportaes

    espanholas para as ndias de Castela equivaliam ao comrcio de Crdoba da poca (YUN

    CASILLA, 2010). Por seu turno, muito menos a Europa da poca estava preparada, com uma

    estrutura manufatureira e comercial, para responder a uma possvel demanda americana. Cabe

    registrar que a Espanha do Quinhentos tinha uma rede urbana e manufatureira compatvel

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    com a de outras sociedades europeias do Quinhentos e do incio do Seiscentos. Nesse instante,

    bom lembrar que estamos tratando de uma Europa ainda fundamentalmente camponesa,

    95% da populao do continente vivia no campo e de suas atividades. Em 1600, estima-se que

    somente 11 cidades europeias possuam mais de 100.000 habitantes, entre elas, Lisboa e

    Sevilha (KAMEN, 1984, 34-35). Quanto ao comrcio europeu de ento, era marcado pelo

    descenso das vendas de manufaturados e o crescimento de produtos agrcolas (KRIEDTE,

    1985, 48). Considerando que os preos dos cereais seriam iguais a 100 no perodo 1501-1510,

    no curso do sculo XVI os preos dos gros, na Inglaterra, subiram para 425, no norte dos

    Pases baixos, para 318, e na Frana, para 651 (KRIEDTE, 1985, 67). Na mesma poca, os

    preos dos manufaturados apenas dobraram. Por conseguinte, estamos diante de uma Europa

    sacudida por crises de colheitas e com estrutura urbana/manufatureira sujeita aos caprichos de

    uma agricultura camponesa.

    Cabe destacar que, nesse contexto, segundo os nmeros acima, a presena das

    populaes americanas pouco contribuiu para reverter as dificuldades do mercado de

    manufaturados da Europa. Caso a Amrica tivesse aparecido como mercado para os

    manufaturados, com certeza os preos desses mais do que duplicariam. Ao menos nos sculos

    XVI e XVII, as populaes do Novo Mundo no criaram uma demanda que resultasse na

    multiplicao das manufaturas europeias.

    Enfim, voltando a Bartolom Yun, o sculo XVI e/ou o XVII ainda no era o XIX, em

    que o imprio ultramarino aparecer como apndice da economia nacional. S no Oitocentos,

    as colnias surgiram como mercado dos produtos metropolitanos e fonte de matrias-primas

    para a metrpole (CASILILLA, 2010, 222-223). No Quinhentos e no Seiscentos, o imprio

    ultramarino ibrico estava ligado no a um Estado Nacional, mas a uma monarquia

    compsita, portanto de base corporativa e polissinodal, cujos preceitos vinham da escolstica.

    Isto provocava vrias consequncias na dinmica do imprio. Entre essas consequncias

    temos que o projeto espanhol para as conquistas - e acredito que tambm o portugus - era

    impelido por motivos que hoje chamamos de morais-religiosos. Por aquela poca, a

    preocupao da monarquia era difundir o que eles entendiam por civilizao crist no Novo

    Mundo, e no tanto o que chamamos hoje de capitalismo.

    Talvez, a partir desse novo quadro proposto por Casililla, se possa entender o porqu

    de a nobreza principal da terra da Amrica lusa, no Quinhentos e ainda no Setecentos,

    compartilhar ideias como a obrigao de deixar parte de seu patrimnio para o sustento de

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    capelas e irmandades. Na verdade, tais doaes, feitas em testamentos, literalmente faziam a

    sociedade americana ser considerada organizada por vivos e mortos, ou ainda que a disciplina

    social se movesse tambm a partir dos mortos,8 ou ainda considerar como ethos deveres como

    ocupar, povoar e defender as terras da Amrica em nome de sua majestade, sendo isso feito

    por engenhos de acar, pois eles garantiam a produo da riqueza necessria para aqueles

    fins. Por seu turno, as ideias mercantilistas s se difundiram principalmente no Setecentos

    (CASILILLA, 2010, 211). Ao mesmo tempo, nunca demais lembrar que a chamada

    Revoluo do Acar de Barbados, de 1640, fora produzida por uma sociedade inglesa,

    cuja lgica social e econmica j se comeava a pautar em prticas de relaes impessoais e

    do mercado livre (DUNN, 1972; HIGMAN, 2000; BLACKBURN, 2003; MENARD, 2006).

    A monarquia pluricontinental como hiptese de trabalho

    Ao contrrio da Monarquia dos ustria espanhis, nas terras lusas dos Avis - depois

    dos Bragana - existia apenas um reino e vrias conquistas disseminadas pela Amrica, frica

    e sia. Nas terras portuguesas o rei era, como na monarquia hispnica, cabea do corpo social

    e tambm no se confundia com ele. Leia-se: a exemplo de outras arquiteturas polticas da

    Europa Moderna, a portuguesa era polissinodal e corporativa, portanto existia concorrncia e

    negociao entre seus poderes. Entretanto, apesar desta semelhana devemos atentar paras as

    diferenas entre a coroa lusitana e suas contrapartes europeias. Na monarquia brigantina

    existiam as conquistas no alm-mar, e a organizao destas ltimas era feita pela

    administrao perifrica da coroa e, em especial, pelos municpios. Ou ainda, entre a coroa e o

    as elites locais situadas nos municpios das conquistas existiam negociaes e pactos polticos

    (CUNHA, MONTEIRO, 2005; FRAGOSO, GOUVA, 2009; MONTEIRO, 2010).

    Em outras palavras, no reino ou em Portugal, os poderes concorrentes na monarquia

    polissinodal consistiam na administrao da Coroa, no poder senhorial e no municipal. J nas

    conquistas, o poder senhorial, na forma das donatarias, progressivamente foi eliminado pela

    sua incorporao ao patrimnio rgio. Assim, na Amrica, como em So Tom e Prncipe e

    em Angola, o que prevaleceu foi o poder local e a administrao rgia realizada por meio do

    Governo Geral e depois, do Vice-Reino.

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    Por sua vez, isto implica em outra diferena com as ideias de Elliott. Sendo mais

    preciso, com autores, como Bartolom Yun Casilla, que aceitam a ideia de monarquia

    compsita para a Europa dos ustrias, porm tem suas dvidas para as conquistas americanas

    (YUN CASILLA, 2009, 13-14; ELLIOT, 2006, 195-196). Para eles, a Amrica espanhola

    aparecia como conquista ou como um imprio colonial de uma monarquia compsita; assim,

    no h razo para sublinhar a existncia de pactos e negociaes entre as elites crioulas (elites

    hispano-americanas) e Madri. J a ideia de monarquia pluricontinental tende a sublinhar tais

    acordos entre os que ocupavam os cargos honrosos da repblica (municpio) e a Coroa. A

    existncia destas negociaes e ajustes pode ser ilustrada por alguns exemplos.

    Em 1621, a cmara de Olinda tratava com a Coroa o sustento das fortalezas do

    Maranho, algo da responsabilidade da fazenda real. Na dcada de 1640, na Cmara do Rio,

    foram votados pelos camaristas - leia-se: a elite local - vrios subsdios voluntrios para o

    esforo de guerra contra os holandeses. O mesmo ocorreu na Bahia, onde a Cmara de

    Salvador passou a sustentar a tropa regular responsvel pela defesa do Estado. Deve-se

    sublinhar que estas negociaes ocorreram em momentos crticos para a monarquia lusa. Por

    esta altura, depois de 1640, uma nova dinastia (os Bragana) estava se afirmando

    politicamente e procurava ter legitimidade social na Europa e no ultramar, e isto ocorria em

    um ambiente em que Lisboa estava em guerra contra a Espanha e os holandeses. Assim, tais

    pactos entre as elites locais das conquistas e a coroa talvez possam ser vistos como um dos da

    monarquia pluricontinental brigantina. Outro momento que informa a existncia de tal pacto

    na base de tal monarquia, conforme estudos em curso de doutoramento de Simone Faria, o

    fato de a arrecadao dos quintos do ouro em Minas Gerais no sculo XVIII ser feita por

    integrantes das elites locais dos municpios daquela capitania. Isto significa que a arrecadao

    dos quintos no era realizada por oficiais rgios, mas por pessoas ligadas cmara municipal

    da conquista. No demais lembrar que a possiblidade de a coroa debelar as diversas revoltas

    nas Minas de Ouro no incio do sculo XVIII deveu-se ao dos potentados locais e seus

    escravos armados a favor de Lisboa (FRAGOSO; GUIMARES, 2007; MONTEIRO, 2009;

    FARIA, no prelo).

    Outra diferena entre a monarquia compsita de Elliott e a ideia de monarquia

    pluricontinental diz respeito ao sustento da Coroa e da nobreza de solar. Em Portugal, Sua

    Majestade e a primeira nobreza viviam de recursos oriundos no tanto dos camponeses

    europeus, como em outras partes do Velho Mundo, mas do ultramar, ou seja, das conquistas

  • Joo Fragoso

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    do reino e, em especial, dos indgenas e depois dos escravos africanos nas plantaes

    americanas. Tratava-se, portanto, de uma monarquia e de uma nobreza que tinham na

    periferia a sua centralidade e o seu sustento, e isto era feito pelo comrcio, tendo por base

    produtiva a partir do sculo XVII principalmente a escravido africana na Amrica.

    Por este e outros motivos, no interior da ideia sistmica de monarquia

    pluricontinental devemos sublinhar a ao dos municpios entendidos como repblicas.

    Especialmente nas conquistas, pois nelas estava a escravido e, portanto, o sustento da

    monarquia. Tanto em Portugal como nas conquistas, o municpio surgia como poder

    concorrente, pois os oficiais da Cmara eram escolhidos por um colgio eleitoral formado por

    homens bons, cabendo a eles o cuidado com o bem pblico. Ou seja, esses homens

    respondiam pela justia ordinria, pela administrao do mercado local e cuidados com a

    sade, entre outros assuntos do cotidiano da comunidade (MAGALHES, 1988; BICALHO,

    2003). No caso de Luanda do sculo XVIII, mesmo o suprimento da gua era matria dos

    oficiais camarrios, sendo tal jurisdio garantida por Sua Majestade. Na Amrica, o preo do

    acar do frete dos comboios para a Europa era decidido em negociaes feitas nas Cmaras.

    Em vrios momentos do sculo XVII, os camaristas do Rio de Janeiro, por exemplo,

    impediram sada das frotas de aucares dos portos de suas cidades, obrigando-as a aceitar os

    preos estipulados nas cmaras municipais. Este fenmeno demonstra no s o autogoverno

    dos municpios na gesto do bem comum, mas tambm informa sua interferncia poltica na

    economia. Nesta ltima situao, sendo mais preciso, temos a interferncia da poltica no

    mercado. Alis, a interferncia dos conselhos municipais no mercado era um fato corriqueiro

    no Antigo Regime.

    Por seu turno, infere-se do que acabamos de escrever que as Cmaras ultramarinas

    interferiam, alm da gesto das comunidades e da existncia poltica da monarquia

    pluricontinental, na dinmica do imprio ultramarino. Aqui no custa insistir na defesa do

    Maranho a partir de recursos da Cmara de Olinda, no incio do sculo XVII. Ainda no

    Seiscentos, na dcada de 40, a Cmara do Rio de Janeiro viabilizou a reconquista de Angola

    das mos dos holandeses e, com isso, a defesa do Atlntico sul luso. A estes exemplos

    juntam-se os esforos da Cmara de Salvador na tentativa da retomada de Mombaa (frica

    Oriental) das mos dos mulumanos (FRAGOSO, 2000; 2003; SANTOS, 2011.). Assim temos a

    ideia de um pacto entre a Coroa e as elites locais das Cmaras das conquistas americanas e da

    capacidade de ingerncia de tais conselhos na gesto do imprio ultramarino.

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    Annick Lemprire (2004) sugere, em texto sobre os poderes no Mxico

    Setecentista, uma estreita conexo entre a ideia de monarquia, universus, e a Cmara,

    repblica. Como afirmei h pouco, a municipalidade cuidava do bem comum, dos assuntos do

    dia a dia, cabendo Coroa defender e dirimir os conflitos dentro da monarquia. A hiptese de

    conexo e complementaridade entre tais conceitos parece-me essencial, especialmente para a

    Amrica lusa, pois evita confundir poder local com localismo. Ao mesmo tempo, no momento

    em que a Coroa conferia autonomia aos conselhos e assegurava a legitimidade das normas

    locais e de uma hierarquia social costumeira, possibilitava a fluidez da vida nas comunidades

    lusas espalhadas pelos vrios cantos do planeta. Aquele autogoverno dos conselhos dava um

    aparato institucional a uma monarquia que convivia, por se espalhar pelo mundo, com

    diversas realidades culturais e sociais, permitindo-lhe resolver os problemas comuns aos

    imprios ultramarinos e multiculturais. Basta lembrar que o imprio luso unia realidades to

    diferentes como as de So Tom no Golfo da Guin, de So Lus do Maranho, com o seu

    mar de populaes indgenas, e de Goa, com a sua civilizao milenar. Neste contexto, a

    flexibilidade da tratadstica escolstica (com sua ideia de autogoverno das repblicas), base da

    cultura poltica da monarquia lusa, dava a esta ferramentas tericas para lidar com as

    diferentes realidades municipais, como a possibilidade de mulatos serem homens bons em So

    Tom e de pardos aparecerem como grupo social no Rio de Janeiro (GUEDES, 2011).

    Entretanto, os fenmenos acima ocorriam dentro de certos parmetros. A monarquia

    pluricontinental era polissinodal e corporativa, pois, como afirmei, tinha por base a tradio

    da escolstica. Aquelas prticas de autogoverno correspondiam a dado pensamento cristo e a

    sua disciplina social correspondente. Assim, em todos os municpios, de So Lus a Luanda,

    temos uma viso de mundo que interpretava e organizava a realidade social segundo os

    preceitos fornecidos pelo catolicismo. Basta lembrar a ideia da famlia como uma sociedade

    naturalmente organizada, que era compartilhada em Recife, Cabo Verde e Rio de Janeiro; ou

    ainda basta recordar a regra de que a escravido e suas relaes sociais de trabalho eram

    assuntos domsticos. Da mesma forma que, nas palavras de Hespanha, a ordem neste Antigo

    Regime catlico e escolstico era sustentada por uma disciplina social em que a obedincia

    era amorosa, portanto, consentida e voluntria. Este ltimo fenmeno estava presente em

    todos os municpios, apesar das diferenas dos costumes locais, dando-lhes, na falta de

    melhor expresso, uma uniformidade social.

  • Joo Fragoso

    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 121

    Em outras palavras, tal disciplina social difundida pelo catolicismo, por intermdio

    dos seus curas e das suas ordens religiosas, criava uma linguagem comum monarquia

    pluricontinental. Assim, os municpios, com seu autogoverno e hierarquias sociais

    costumeiras, disseminados pelo vasto imprio portugus, implicavam a existncia de histrias

    sociais diferentes, porm estreitamente conectadas. Na verdade, aquela disciplina social

    catlica, na poca moderna, conferia certa uniformidade monarquia pluricontinental. E aqui

    no custa insistir na ideia de obedincia, pois ela era capaz de exercer o papel dos

    mecanismos de controle visveis de um Estado absolutista. Aquela disciplina possibilitava que

    a subordinao s autoridades e, especialmente a Sua Majestade, se confundisse com o amor a

    Deus. Com isto, ela possibilitava que o autogoverno dos municpios fosse a base da

    monarquia polissinodal e corporativa.

    A isso se juntavam as relaes pessoais entre o rei e seus vassalos (entendidos como

    famlias), ou seja, o sentimento de pertencimento dado pela economia do dom, na feliz

    expresso de ngela Xavier e Antnio Manuel Hespanha (HESPANHA, XAVIER, 1993).

    Segundo essa moral, os servios prestados ao rei eram devidamente remunerados e assumiam

    a forma de concesso de terras e at de ofcios rgios. Estas relaes colocavam uma

    monumental mquina administrativa ultramarina em movimento e criavam formas sociais de

    produo. Como instrumento de gesto, as mercs dadas pelo rei permitiam o preenchimento

    de todos os postos da administrao militar e civil da coroa. Em outras palavras, o posto de

    Vice-Rei da ndia ou de Governador do Estado do Brasil, assim como o de provedor da

    fazenda real de Luanda, eram preenchidos mediante mercs concedidas por Sua Majestade.

    Os postulantes a estes cargos os recebiam ou no, conforme os servios prestados por eles e

    suas famlias monarquia.

    O funcionamento da mquina administrativa da monarquia pluricontinental, alicerado

    na economia das mercs, tende a ser demonstrado por uma pesquisa atual em curso, levada a

    cabo por diferentes universidades brasileiras e portuguesas. Tal projeto tem como objeto as

    comunicaes polticas entre as comunidades das conquistas e do reino com poder central

    entre 1600 e 1800. A equipe brasileira, at o momento, levantou mais de 25.000 missivas

    entre a Amrica lusa, Angola e So Tom e Prncipe com o Reino, e um dos resultados que

    comea a se delinear o domnio nas correspondncias de temas ligados a mercs,

    especialmente de ofcios rgios civis e militares (FRAGOSO, GUIMARES, 2007; MONTEIRO,

    2009).

  • Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas de um ensaio

    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 122

    Da mesma forma, as mercs, ao assumirem a forma de terras e privilgios no mercado,

    podiam modelar as economias sob a tutela da monarquia. Neste instante, mais uma vez,

    encontramos a interferncia da poltica na economia. Alm disso, aquela moral reforava os

    laos de dependncia/vassalagem: por meio deles o vassalo sentia-se pertencendo a uma

    arquitetura poltica que ultrapassava a freguesia, o municpio e que se confundia com a

    prpria monarquia.

    Esse sentimento de pertencimento via relaes pessoais com o rei traduzia-se nos atos

    das elites locais (nobrezas da terra) de mandar suas vivas e filhas para os conventos reinis e

    de pedir proteo a suas almas em missas rezadas em Lisboa. Esse, por exemplo, foi o caso de

    Francisco Teles Barreto9 que, mesmo com duas geraes no Rio de Janeiro, encomendou em

    testamento missas em Lisboa. O sentimento de pertencimento monarquia lusa pelas elites

    locais e a ideia da Amrica como conquista de um reino talvez possam ser ilustrados por uma

    carta de 1757 enviada por Pedro Dias Pais, fidalgo da casa real e guarda-mor da capitania de

    Minas Gerais, a Tom Joaquim da Costa Corte Real, ministro do Conselho Ultramarino e

    secretrio de Estado da Marinha e Ultramar: (...) meus pais vieram para este Estado a

    conquista e fizeram-no (...); parece de razo, que depois de tantos sculos e tendo ns

    cumprido to bem com o nosso dever, que nos recolhssemos a esse Reino (AHU, RJ, Castro

    Almeida, cx. 88, doc. 20.284, 24/07/1757).

    Claro est que tal citao apenas um fragmento e que so necessrias pesquisas com

    mtodos rigorosos e ampla base emprica para o entendimento deste aspecto do ethos da

    nobreza da terra. De qualquer forma, esta passagem coincide com o fato de as famlias da

    nobreza da terra compreenderem como seu dever para com a monarquia atitudes como

    ocupar, povoar e defender as terras da Amrica em nome de Sua Majestade. E isto seria feito

    por engenhos de acar, pois eles garantiam a produo da riqueza necessria para aqueles

    fins, assim como o sustento de suas famlias e do bem comum da repblica. Nesta parte da

    gesto dos negcios da elite das conquistas, no custa recordar o entrelaamento entre a

    economia e o que hoje chamamos de religio. Como vimos, parte da riqueza produzida nestes

    engenhos, como em outras paragens da economia das conquistas, no raro era destinado nos

    testamentos para a salvao da alma do testador e para o sustento de obras pias e religiosas.

    Ou seja, ao menos os testadores do Rio de Janeiro Seiscentista tendem a contrariar os adeptos

    da teoria da dependncia, para quem parte substantiva da riqueza feita pelos escravos nas

    plantaes americanas era destinada para o capital do alm-mar. Parece que o alm-tmulo

  • Joo Fragoso

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    cobrava uma parte maior da riqueza americana do que os comerciantes do Noroeste Europeu;

    como, alis, era de esperar numa economia do Antigo Regime catlico. Ou seja, algo

    semelhante ocorria nos testamentos lisboetas da mesma poca. O entrelaamento entre a

    disciplina social catlica e a gesto econmica um fenmeno que deve ser estudado com

    ateno, caso tenhamos a pretenso de entender a sociedade e a economia da Amrica Lusa

    antes do sculo XVIII.

    Ao mesmo tempo, devemos lembrar a presena de reinis nas Cmaras da conquista,

    em particular nos conselhos municipais de Minas Gerais; em algumas, podiam at compor a

    maioria dos camaristas10

    . E aqui no se trata de uma questo de privilgio dado pela

    naturalidade, mas tambm do fato destes reinis serem eleitos, o que implica o

    compartilhamento dos cdigos costumeiros da regio considerada. Ou ainda, os reinis

    homens bons nas cmaras da conquista americana provavelmente pertenciam a redes

    clientelares da localidade. Fenmeno que refora a ideia de uma monarquia pluricontinental,

    espalhada pelos quatro cantos da Terra, numa arquitetura poltica que ultrapassa as

    naturalidades. Homens bons nascidos na conquista ou no reino, em ambos os lugares, se

    percebiam como vassalos do rei.

    Por seu turno, a administrao perifrica da coroa, como a mquina poltica e

    administrativa gerada pelas mercs rgias, era tambm responsvel pela articulao do

    imprio; neste sentido que temos os Governos Gerais e depois os Vice-Reinados

    (CONSENTINO, 2009). Consequentemente, tais instituies eram essenciais na articulao

    do Atlntico Sul luso e da mesma forma eram espaos de circulao e sustento da nobreza

    reinol.11

    Cabe ainda lembrar que por meio das ddivas/mercs rgias o rei e sua administrao

    perifrica interferiam na gesto da menor unidade administrativa de um municpio, a

    freguesia, pela nomeao do oficialato das ordenanas. Ao menos no Rio de Janeiro, desde

    fins do sculo XVII, a escolha deste oficialato comeava por uma lista enviada pela Cmara

    ao Governador, que opinava sobre as qualidades dos candidatos antes de chegar s mos dos

    conselhos palacianos e ao rei. Portanto, os capites e demais mandatrios das ordenanas,

    apesar de terem funes na dimenso do Poder Local, tinham a universalidade de quem os

    nomeava, ou seja, o monarca (GIL, 2009). Esta informao, uma vez confirmada em outras

    pesquisas, refora a ideia de que poder local no se confundia com localismo.

    Ainda no campo das relaes monarquia pluricontinental e municpios

    ultramarinos, temos as teias de relaes de parentesco criadas pelas elites locais. Em outras

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    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 124

    palavras, as famlias das nobrezas da terra se movimentavam muitas vezes a servio da Coroa

    pelo vasto territrio da monarquia pluricontinental e, com isso, podiam criar redes parentais

    cujas extenses uniam diferentes municpios e capitanias. Mafalda Soares da Cunha, em texto

    ainda indito, chama a ateno para a conquista de Pernambuco que, no sculo XVI, fora

    realizada por agregados parentais, no caso os Albuquerque e Coelhos (CUNHA, no prelo).

    Deve-se recordar que uma famlia, no Antigo Regime, podia reunir, alm dos consanguneos,

    os colaterais, criados e escravos. Portanto, uma famlia era uma instituio devidamente

    organizada e hierarquizada. Como tal, vrias famlias extensas eram capazes de reunir

    recursos e homens para empreendimentos como a ocupao de um territrio e, nele, a criao

    de freguesias e vilas. Talvez a montagem da Bahia e do Rio de Janeiro nos sculos XVI e

    XVII tenha seguido este padro de movimento de agregados familiares. Isso pelo menos o

    que sugere a presena de parentes de Mem de S na Bahia e no Rio de Janeiro (FRAGOSO,

    no prelo). Da mesma forma, h indcios do deslocamento de famlias extensas das Ilhas da

    Madeira e Aores para o Rio de Janeiro, originando-se a famlias da nobreza da terra. Cabe

    ainda estudar se tais famlias reiteravam no tempo os laos de aliana, via casamento, por

    exemplo, com seus parentes espalhados nos vrios cantos do imprio. Ao menos sei que a

    aliana entre os Albuquerque Maranho e os Gago da Cmara foi mantida por mais de duas

    geraes nos sculos XVII e XVIII, respectivamente, nobreza da terra em Pernambuco e

    Maranho.12

    As ideias acima so apenas hipteses baseadas em poucas pesquisas, sendo necessrio

    mais estudo. A complexidade do tema da nobreza principal da terra pode ser ilustrada pelas

    trajetrias de algumas de suas famlias no Rio de Janeiro. Segmentos das famlias Azeredo

    Coutinho, Teles Barreto e da j mencionada Gago da Cmara, no sculo XVII, enfrentaram os

    negociantes dos comboios reinis, negociaram com a Coroa os subsdios de guerra e

    receberam os Privilgios do Porto. No sculo seguinte, parte destas famlias voltou para o

    Reino, deixando para traz dois sculos de mandonismo local. Outros segmentos

    permaneceram na Amrica: mais uma vez indispensvel o estudo comparativo entre as

    diferentes capitanias.

    Assim, a partir dos parmetros vistos acima da monarquia pluricontinental e da viso

    corporativa da sociedade que devemos analisar a ideia de autonomia e autogoverno das

    Cmaras. Em outras palavras, a partir das prticas e ideias derivadas da escolstica que

    compreendemos a possibilidade de diferentes municpios conterem hierarquias sociais

  • Joo Fragoso

    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 125

    diversas e, por conseguinte, a elite local ter diferentes rostos, dependendo da dinmica social

    analisada. Em So Lus do Maranho do sculo XVII, rea recm-(re)conquistada pela

    monarquia lusa, o ingresso nos cargos honrosos da repblica pressupunha integrar as famlias

    conquistadoras, ou seja, as que a custa de suas fazendas lutaram contra os franceses.

    Provavelmente, descender de conquistadores no era pr-requisito para ingressar na nobreza

    da terra de vora, no Reino. J em So Tom e Cabo Verde dos sculos XVI e XVII, a

    direo da repblica podia estar nas mos dos homens brancos da terra, leia-se, pardos e

    mulatos, pessoas vindas da escravido. Na Recife do sculo XVIII, tais cargos eram ocupados

    por negociantes ligados aos tratos do Atlntico.

    Por seu turno, apenas o manejo da categoria municpio como repblica no garante a

    apreenso do dia a dia das sociedades da monarquia pluricontinental. Basta lembrar que a

    administrao do rs do cho do continente da capitania do Rio Grande do Sul no sculo

    XVIII no resultava apenas da cmara, mas tambm derivava do oficialato das tropas

    auxiliares. testa destas ltimas, o comandante Rafael Pinto Bandeira exercia mais jurisdio

    sobre as gentes da fronteira do que a Cmara do Rio Grande de So Pedro. Assim, o estudo do

    poder local merece maiores cuidados e investigaes.

    Outra dimenso de poder que organizava a vida social era a famlia, como sugerido

    acima. A famlia ou a oikonomia, como sublinha B. Clavero (1991), ou ainda a casa segundo

    documentos coevos, organizava a base da produo social no Atlntico Sul: o trabalho

    familiar e a escravido. Se o municpio cuidava do mercado, vigiava o abastecimento e

    interferia no preo de produtos como o acar, a famlia geria os afazeres dos currais, das

    fazendas de alimentos e dos engenhos de acar, entre outras empresas.

    Deste modo, nas missivas trocadas entre as autoridades das conquistas (fossem da

    administrao central perifrica, como os governadores, provedores da fazenda e oficiais da

    tropa paga, ou da cmara municipal) e a Coroa e seus conselhos superiores dificilmente

    apareciam temas como lavoura de alimentos, produo de acar e escravido. Nestas

    correspondncias eram mais comuns temas ligados administrao da justia, da fazenda, os

    religiosos e mesmo as festas. Em suma, a administrao do cotidiano, em grande medida,

    dependia da famlia e de sua hierarquia; parte das tenses das relaes sociais, como as

    derivadas da escravido, era resolvida neste mbito de relaes pessoais hierarquizadas.

    ***

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    Neste instante entramos em um assunto caro para a historiografia nacional, qual seja,

    as relaes entre o conceito de Antigo Regime e o da sociedade escravista. Como lembrou

    muito bem Laura de Mello e Souza, o conceito de Antigo Regime cria do sculo XIX e foi

    produzido em consonncia com o de Estado absolutista (SOUZA, 2006, 65). No sculo XX,

    especialmente em Pierre Goubert, quela ideia foi agregada a persistncia de traos do

    feudalismo, no caso, produo camponesa no mbito dos senhorios. Assim, inspirado

    especialmente na experincia francesa dos Seiscentos e Setecentos, o conceito de Antigo

    Regime passou a ser identificado, entre outros traos, pela centralidade poltica nas mos da

    coroa e por uma estrutura agrria dominada pela aristocracia e o campesinato. Entretanto,

    como vimos, esta argumentao terica comeou a sofrer fissuras com a difuso do conceito

    de monarquia polissinodal e de monarquia compsita.

    Portanto, no h por que repetir a argumentao j apresentada, mas to somente

    lembrar que o conceito de Antigo Regime catlico traduz-se na ideia de uma sociedade de

    estados, e no de indivduos. Assim, a famlia alargada, ou oikonomia, adquire papel

    fundamental na organizao social. Conforme B. Clavero, nesta poca a sociedade era

    formada pela integrao de famlias, identificada por relaes de patronagem e clientela.

    Assim, ao contrrio do que existe hoje nas sociedades complexas reguladas pelo mercado e o

    Estado, as relaes de parentesco e de clientela (patro-cliente) no surgiam como estruturas

    informais e paralelas s instituies formais e essenciais, como as burocrticas civis

    (previdncias sociais, reparties publicas, complexos industriais, etc.) para o funcionamento

    da ordem social. Algo bem diferente ocorria nos sculos XVI e XVII, quando o

    funcionamento bsico da sociedade no era garantido pelas relaes formais e impessoais das

    burocracias estatais, privadas e das empresas, mas principalmente pelas famlias e relaes de

    patronagem (fossem em meio a senhorios feudais, engenhos de acar, parquias, etc.). Era

    da alada da famlia alargada, por exemplo, a economia e o que chamamos hoje de

    previdncia social; esta ltima no sculo XVII, partilhada tambm pelas irmandades. Deste

    modo, na sociedade da poca moderna, as relaes clientelares e familiares no tinham o

    papel coadjuvante de hoje, mas eram as principais, que organizavam parte essencial da vida

    em sociedade.

    No Antigo Regime catlico, a famlia surgia como uma sociedade naturalmente auto-

    organizada, estruturada por relaes hierarquizadas entre pais e filhos e entre o pater e seus

  • Joo Fragoso

    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 127

    agregados e escravos; estas relaes de patronagem eram tambm construdas pelo dom e

    contradom. Portanto, a escravido neste Atlntico catlico era fenmeno do mbito

    domstico, no do rei nem do municpio. Caso usemos o conceito de Antigo Regime (nos

    trpicos) para entender das estruturas sociais da Amrica do sculo XVII, o que estamos

    chamando por o domstico, ou oekonomia, dizia respeito ao conjunto de temas que no ensino

    mdio aprendemos a chamar de sociedade escravista. No caso, refiro-me a lavoura, alforria,

    mestiagem, hierarquia social escravista, assuntos entendidos pelos senhores, cativos da

    Guin, pardos, etc., como sendo domsticos ou resolvidos sem ou com pouca interferncia das

    normas escritas pelo rei ou posturas municipais. Logo, aqueles sujeitos entendiam tais temas

    como da oikonomia da tradio greco-romana e no como economia (produo e circulao

    de riquezas) da ilustrao setecentista. Deste modo, a mestiagem, a alforria, a presena de

    uma elite das senzalas (estratificaes entre cativos) e seus resultados como a mobilidade

    social eram inicialmente produzidos no espao domstico, protegido das interferncias do rei.

    A partir disto chegamos a um dos conceitos centrais para a elaborao da hiptese de

    um Antigo Regime nos Trpicos: a hierarquia social costumeira, construda pela interao dos

    agentes sociais coevos. Estes agentes partiam para a ao portando valores transmitidos pela

    disciplina catlica (concepo corporativa e polissinodal da sociedade), porm modificados

    por suas experincias cotidianas. Um dos resultados de tal interao, por conseguinte, da

    existncia de tal hierarquia costumeira, foi a produo das camadas sociais identificadas como

    parda, mestia e/ou com a condio jurdica de forro. Estas camadas iro dar um trao

    peculiar escravido e ao conjunto da sociedade da Amrica lusa. Aqueles forros e seus

    descendentes personificavam relaes sociais derivadas no da ao do Estado, mas do

    mbito das interaes pessoais produzidas no meio da famlia, e no de qualquer famlia, mas

    da oekonomia que detinha a prerrogativa do autogoverno.

    Assim, a hierarquia social formada por aqueles homens e mulheres saiu do mbito

    domstico para subverter ou remodelar a ordem social e jurdica vinda da Europa e conhecida

    como estamental, na qual os cativos eram coisas. Para evitar equvocos: consideramos a

    hierarquia social costumeira, da qual o forro e o pardo eram tambm crias e criadores, como

    possibilidade dada pelo princpio do autogoverno, algo caro ao Antigo Regime catlico,

    compreendido como ordem social ou, se preferirem, como estruturas sociais. Os senhores,

    escravos e forros, quando em suas interaes, criaram hierarquia costumeira, fizeram-no

    conforme as orientaes valorativas dadas pela disciplina catlica e das relaes patro-

  • Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas de um ensaio

    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 128

    cliente delas derivada. Outrossim, nesta Amrica, a hierarquia social costumeira era

    estamental. Basta lembrar que muitos dos forros e seus descendentes adquiriam terras e

    escravos e passavam a usufruir de tal estado. Entretanto, continha a possibilidade de mudana

    de status, sendo isto dado no pelo rei, mas pela dinmica das relaes sociais dos agentes

    envolvidos na oikonomia.

    A organizao do trabalho cativo e as normas das relaes senhor/escravo ditavam-se

    pelas prticas costumeiras desenvolvidas no mbito familiar e das freguesias. Mas estas

    formas costumeiras obviamente resultavam da piedade catlica, das ordenaes do reino e

    das regras da Igreja Catlica, como os tratados sobre as maneiras de lidar com os escravos.

    Assim como aquelas prticas derivavam das fissuras daqueles cdigos. Por exemplo, as

    ordenaes do reino afirmavam que o escravo consistia em um semovente, ou seja, estava sob

    a tutela de seu senhor como os bois. J as Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia

    (publicadas em 1719) garantiam aos escravos o batismo e sublinhavam o compromisso do seu

    senhor em lhes dar direo e sustento moral. Em meio a estas fissuras normativas temos o

    desenvolvimento das relaes entre senhores e escravos, algo que, segundo a escolstica,

    ocorria no mbito domstico. Deste modo, a escravido da Amrica lusa no s foi produto da

    violncia das razias africanas, do trfico negreiro e do desenraizamento cultural e social de

    homens, mas tambm do Antigo Regime Catlico e de sua disciplina social. Neste instante,

    por exemplo, chegamos a uma das bases daquela disciplina: o batismo. Por meio dele os

    escravos estabeleciam parentescos rituais que podiam lhes permitir ingressar em redes de

    alianas formadas por pessoas de diferentes estados sociais e com isto ampliar seus recursos

    na oekonomia. Como afirmei, o batismo era uma medida de disciplina social e, portanto, de

    subordinao dos cativos e demais grupos ordem social, porm ao mesmo tempo ele podia

    contribuir para mudanas da mesma ordem, ou seja, para a multiplicao de suas fissuras.

    Outro grupo social produzido nas interaes dos agentes da Amrica lusa e

    caracterstico da hierarquia social costumeira desta foi a nobreza principal da terra. Isto ,

    potentados locais integrantes ou no da fidalguia de nascimento com domnio sobre o mando

    local, especialmente as cmaras municipais. Estas famlias descendiam, em grande medida, de

    ramos secundrios da pequena nobreza dos Aores, das Ilhas da Madeira, do reino ou, ainda,

    de soldados da fortuna. Nos sculos XVI e XVII elas capitanearam o processo de conquista da

    Amrica e de sedimentao da sociedade de Antigo Regime catlico. Portanto, tais famlias

    contriburam para implantao da administrao camarria, das irmandades e da

  • Joo Fragoso

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    administrao perifrica da coroa (provedoria da fazenda rgia, ouvidoria, juzo de rfos,

    etc.). Por estes servios, sempre custa de suas fazendas e famlias, a monarquia concedeu-

    lhes mercs, principalmente em terras, serventias de ofcios rgios e patentes de mando nas

    ordenanas. Repare-se que estes servios consistiam na preservao (defesa) e mando

    (governana) da repblica, leia-se, dos municpios e demais comunidades sob a tutela da

    monarquia. A reiterao desta relao de servios - mercs nas mesmas famlias de

    conquistadores - acabaria por constituir um dos eixos do ethos (viso de mundo) do grupo.

    Entretanto, a produo da nobreza principal da terra como mandatrios locais no se resumia

    relao de servios com a monarquia. Ao lado dela temos vrias outras prticas

    desenvolvidas pelas mesmas famlias no mbito do Poder local - portanto, do autogoverno das

    comunidades -, no caso, as relaes de alianas (especialmente casamentos entre si e com

    oficiais da coroa e fidalguia) e ainda as relaes de patronagem-clientela com ndios,

    escravos, forros, etc.

    Enfim, a nobreza da terra consistia em um estamento, sem ser nobreza solar, da

    hierarquia social costumeira do Antigo Regime na Amrica lusa que detinha mando no Poder

    local. A existncia deste grupo - de sua viso de mundo, das relaes de patronagem para com

    outros segmentos e prticas de acomodao em meio hierarquia estamental - pode ser

    ilustrada em seus depoimentos feitos em escrituras pblicas (portanto, aceitos pelo pblico e

    pela monarquia) no Rio de Janeiro de princpios do sculo XVIII. A identidade do grupo,

    derivada da histria da capitania, assim como a relao por ele mantida com a monarquia so

    exemplificadas no testamento de Julio Rangel de Souza, datado de 09 de maro de 1720.

    Nele, Rangel de Souza que se apresenta como homem nobre e proprietrio do ofcio de

    escrivo da cmara e judicial e notas desta cidade de que fez merc a meus avs pelos

    servios que lhe ficaram na povoao e conquista desta terra [no sculo XVI]. Declarava

    ainda que, na condio de solteiro, tivera um filho, Jorge de Souza, e no o reconhecia por ser

    homem nobre.

    Francisco Ferreira Travassos, no seu testamento de 26 de abril 1737, tambm afirmava

    que como solteiro tivera uma filha, de nome Helena Pimenta de Mello, e, semelhana de

    Rangel de Souza, no lhe dava o direito de herdar seus bens, por ela ser uma parda e ele, pai,

    homem nobre: meu pai e todos os meus parentes serviram na repblica desta cidade e sempre

    viveram a lei da nobreza. Portanto, para Rangel de Souza e Travassos, o estado de nobre da

    terra, mesmo sendo uma condio costumeira sem a chancela da coroa, os impedia de

  • Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas de um ensaio

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    reconhecer seus laos consanguneos com pessoas de menor qualidade; no caso de Travassos,

    explicitamente, pessoas ditas pardas. Ou seja, as normas costumeiras naquela terra, a exemplo

    do que acontecia na primeira nobreza do reino, proibiam a nobreza costumeira de se misturar

    com segmentos de menor qualidade, ou ao menos lhe impedia passar bens materiais e

    imateriais da sua famlia nobre, como se a ela pertencesse.

    Nestas circunstncias, a sada que os personagens acharam para proteger seus filhos

    foram as relaes de piedade paterna e de patronagem, expediente lhes conferido pelo Antigo

    Regime catlico. Rangel de Souza pede aos filhos legtimos que mantenham a estima pelo

    irmo natural. Travassos, como frisa no testamento, arrumou um marido (Manuel Barbosa),

    dotou sua filha e fez doaes em terras e dinheiro da tera testamentaria para ela e a neta.

    Assim, vemos a presena de regras oriundas da hierarquia social costumeira ditando

    comportamentos. Da mesma forma, observamos a centralidade das relaes de patronagem

    nas estratgias dos agentes da poca, inclusive na acomodao de situaes em meio

    hierarquia estamental costumeira. Fique claro que esta acomodao significou, por um lado, a

    preservao do estado da nobreza, porm tambm representou a ascenso social e material de

    filhos de escravas na mesma estratificao, via patronagem.

    Os testamentos tambm registravam alternativas de ao da nobreza em tal sociedade.

    Na mesma cidade e poca, em 10 de fevereiro de 1732, o coronel das ordenanas e cavaleiro

    da ordem de Cristo Miguel Aires Maldonado, homem solteiro, reconhecia os seis filhos forros

    tidos com duas escravas diferentes, de nomes Joana Cruz e Maria Aires. Alm disto, deixava

    seu engenho de acar para dois destes filhos, pardos, nascidos na escravido: o capito Joo

    Aires Maldonado e o Padre Vital Aires Maldonado. Diante das leis do reino, o coronel podia

    fazer tal escrito, pois era um homem solteiro (RIBEIRO, 2012). O que o impedia eram as

    normas do estado de nobre acima vistas, mas mesmo assim ele redigiu o testamento e este no

    foi contestado.

    Miguel Maldonado descendia nos dois costados de fundadores da repblica e da

    administrao perifrica da coroa (a provedoria da fazenda rgia, no caso). Seus antepassados

    tiveram por geraes um papel de mando no s na sociedade, mas no interior da nobreza da

    terra. A freguesia de So Gonalo entre 1690 e 1720 possua 32 engenhos, sendo ao menos

    seis de parentes de Aires Maldonado. Um dos seus irmos era juiz de fora no reino e outro

    servia em Angola. Ele prprio receberia do rei a carta patente de coronel das ordenanas de

    So Gonalo e cercanias, o que implicava compartilhar com outros dois coronis o comando

  • Joo Fragoso

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    geral das ordenanas da cidade, em tese, cerca de 1.800 homens em armas. Na poca, o Rio

    de Janeiro j era um dos principais portos negreiros do Atlntico Sul e porta de entrada para

    as Minas Gerais, conhecida ento como Morada do Ouro, porm a Cmara e as ordenanas

    permaneciam nas mos da nobreza principal da terra, ou melhor, de famlias como os Aires

    Maldonado. Portanto, Miguel Maldonado tinha alguns recursos para tomar aquelas atitudes: a

    sua famlia ser o topo da hierarquia estamental de natureza costumeira da regio. Tomando

    por base os registros paroquiais, parece que os parentes do coronel o apoiavam. Pelo menos

    foram testemunhas no casamento de uma das suas filhas pardas, de nome Isabel Tenreira,

    como sua av paterna.

    Porm, a histria do capito Joo Aires no teve um final muito feliz. Em 1737,

    portanto, seis anos aps a morte do coronel Miguel Maldonado, por deciso real o capito

    perdia sua patente sob a alegao de que a capitania das ordenanas devia ser composta por

    brancos13

    . Mesmo antes do falecimento de Miguel Maldonado, j existiam indcios de que a

    nobreza da terra no aprovava inteiramente um capito pardo em suas fileiras. E isto foi

    indicado ainda nas npcias de Joo Aires. Sua noiva era filha natural de um senhor de

    engenho, o capito Joo da Costa - um sujeito que tinha terras e escravos, porm sua famlia

    no pertencia nobreza principal da terra. Deste modo, apesar das credenciais dos

    antepassados paternos de Joo Aires, ele no foi aceito naquele grupo e com isto a sua posio

    de mando da Repblica era, no mnimo, precria. Ele adquiriu a riqueza material do pai,

    tornou-se dono de terras e de homens, algo que, afinal, qualquer um com dinheiro podia

    conseguir. Chegou mesmo a ter a patente de capito de ordenanas. Entretanto, a hierarquia

    social estudada no tinha por base uma sociedade liberal-mercantil, mas o Antigo Regime e,

    neste, as diferenas de qualidade social davam o tom da sociedade, ou seja: foi negada a Joo

    Aires a possibilidade de selar alianas com outras famlias da nobreza local e, com isto, sua

    entrada no grupo foi devidamente limitada.

    Pelo que acabamos de ver no podemos simplesmente resumir a ao de Miguel

    Maldonado em vida quanto ao filho Joo Aires como resultado de imposies de uma famlia

    de potentados sobre a sociedade. Se tais atitudes foram de desmando de um potentado, elas,

    mais adiante, foram devidamente coibidas e corrigidas.

    Na verdade, as diferenas entre as atitudes do coronel, do capito, de Julio Rangel e

    de Francisco Travassos foram as possveis da nobreza da terra em meio s tenses e

    incoerncias vividas pela sociedade de Antigo Regime nos trpicos, nas dcadas de 1720 e

  • Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas de um ensaio

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    1730. Em outras palavras, as prticas costumeiras nesta hierarquia social estamental

    permitiram, mesmo que temporariamente, a manuteno de um capito das ordenanas pardo.

    Porm, os jogos e disputas sociais existentes em tal hierarquia acabaram por impor limites

    quele tipo de ao, sendo o resultado de tais enfrentamentos o surgimento de novas nuances

    na dita hierarquia social costumeira de base estamental. As atitudes daqueles senhores

    revelam, na verdade, verses de estratgias pelas quais a mestiagem entre livres e escravos

    minavam bases estamentais da hierarquia social de Antigo Regime. Neste instante, procuro

    sublinhar que a estratificao social presente nesta sociedade de Antigo Regime, baseada na

    escravido, no estava congelada, consistia em um processo gerativo resultado da ao de

    agentes com diferentes interesses. Assim, da mesma forma que existiam segmentos da

    nobreza da terra que procuravam promover seus filhos pardos, outros segmentos e as leis do

    reino tentavam impor limites a esta irrupo da estratificao estamental.

    Os rastros deste enfrentamento podem ser encontrados nos livros paroquianos

    de batismos de escravos das diferentes freguesias da capitania do Rio de Janeiro. No sculo

    XVII era relativamente comum registrar o nome do pai dos inocentes escravos, fosse ele livre,

    forro ou escravo; no sculo seguinte, o nome do pai progressivamente sumiu de tais livros.

    Entre 1725 e 1735, na freguesia de So Gonalo, foi registrado o nascimento de 485 crianas

    escravas, das quais 280, ou quase 60%, tinham a paternidade desconhecida. Algo bem

    diferente do corriqueiro na mesma So Gonalo de 1646 a 1668, perodo no qual nasceram

    644 crianas escravas das quais 574, ou 89%, tiveram sua paternidade registada. Mais para o

    final do sculo, entre 1680 e 1690, na freguesia S do Bispado do Rio de Janeiro, de um total

    de 398 inocentes cativos nascidos, 71% tambm tiveram seus pais nomeados. Portanto, as

    ltimas dcadas de vida do coronel Miguel Aires Maldonado foram marcadas por uma

    mudana sensvel nas prticas sociais, ao menos formais, desta sociedade. Entretanto, o cura

    que fora o instrumento do desaparecimento da paternidade destes inocentes deixou rastros de

    tal identidade.

    Daquelas 280 crianas sem paternidade, 79 foram designadas como pardas, e entre

    elas 30 apareciam como filhas de pretas do gentio da guin. Esta ltima notcia leva a crer que

    pai incgnito era dado como branco e provavelmente livre, pelo dito cura. Em outras palavras,

    estaramos diante no s da miscigenao resultado do intercurso entre pessoas de cores

    diferentes, mas de um intercurso entre pessoas de diferentes estatutos sociais. E ainda por tais

    registros, talvez aquele intercurso seja o indcio de relaes hierrquicas de amizade entre

  • Joo Fragoso

    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 133

    segmentos da escravaria com livres. Seja como for, aquelas 30 crianas insinuam a quebra da

    hierarquia social estamental de Antigo Regime na Amrica lusa. No custa lembrar que,

    segundo as Ordenaes Filipinas e a tratadstica da poca, o escravo no constitua um estado,

    no possua honra e, portanto, se resumia a uma coisa (HESPANHA, 2010, 60). Nas palavras

    de Hespanha: o cativo encontrava-se desprovido de qualquer estado civil, de cidadania ou

    famlia e, portanto, no era pessoa, mas antes, uma coisa. Aquelas crianas e as relaes

    sociais que elas representavam, deste modo, colocavam em dvida tal concepo corporativa

    de sociedade.

    A irrupo da hierarquia estamental de tipo antigo, resultado das relaes de pessoas

    com no pessoas ocorrido em So Gonalo entre 1725 e 1735, no pode ser vista como

    fenmeno atpico de uma freguesia marcada por licenciosidades. Como afirmei acima, na

    verdade, a figura do pai incgnito nos batismos de escravos era ento um fenmeno recente.

    Na S do Bispado, freguesia do Sacramento, pouco antes, de 1707 a 1711, de 449 batizados

    de crianas escravas, 101, ou 22%, tiveram homens livres nomeados por pais e entre eles

    pessoas da melhor qualidade da terra. Porm, neste ltimo perodo a presena do pai

    incgnito comeava a se alastrar: em mais da metade daquelas 449 anotaes, ou 236

    registros, no constava o pai. Saindo das freguesias localizadas no interior da Baa de

    Guanabara e indo para as situadas no litoral atlntico da capitania, a quebra das normas em

    princpios do sculo continuava. No caso, trata-se da freguesia de Campo Grande; das 272

    crianas cativas batizadas entre 1705 e 1727, 88 (32% do total) foram declaradas filhos de

    homens livres, e deles, 12 (4,4%) da nobreza da terra, descendentes de conquistadores e

    alguns cavaleiros da casa real.

    Assim, as prticas do coronel Aires Maldonado e de seus aliados ao promoverem Joo

    Aires Maldonado condio de senhor de engenho, vereador e capito de ordenanas podem

    ser vistas como um episdio marcante numa sociedade estamental ceifada de embates em

    torno da mestiagem entre pessoas e no pessoas. Tenses e embates que, quando da morte

    do nosso coronel, estavam tomando novos rumos. Um destes movimentos, nas dcadas de

    1720 e 1730, consistiu no desaparecimento dos livres e nobres enquanto pais, nos livros

    paroquiais de escravos. Com isto colocava-se um freio legal na mestiagem entre estados e

    no estados. Outro movimento foi o reaparecimento de livres e nobres, agora, na condio de

    padrinhos ou de aliados das mes escravas e, por intermdio delas, de suas redes de amizades

    e de parentesco.

  • Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas de um ensaio

    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 134

    O quadro 1 apresenta os inocentes escravos de pais incgnitos distribudos segundo a

    cor atribuda a suas mes e o status de seus padrinhos, em So Gonalo, entre 1725 e 1735.

    Como j vimos, os pardos de filhos de pretas do gentio da guin somavam 30, e foram

    batizados por 27 homens livres, dos quais quatro da nobreza da terra, e somente trs de seus

    padrinhos pertenciam s senzalas. No caso das mes pardas, todos os seus 27 compadres

    estavam fora do cativeiro e trs pertenciam nobreza. Algo diferente ocorre quando os

    inocentes eram dados apenas como crioulos ou nativos da Amrica, podendo seu pai ser

    escravo, livre ou nobre. Estes crioulos consistiam em 32, destes, 17, ou a maior parte, tiveram

    por padrinhos outros escravos. Portanto, supostamente, eles no foram includos em redes

    sociais formadas por livres e nobres da terra.

    Quadro 1: Padrinhos de inocentes, filhos de mes escravas e de pais incgnitos, So

    Gonalo 1725-1735

    Inocentes e suas

    mes

    Nmero de afilhados batizados por tipos de padrinhos

    escravo forro livre conquistador totais

    Filhos crioulos e

    mes pretas

    8 1 8 18

    Filhos crioulos de

    mes crioulas

    9 0 5 0 14

    Filhos pardos de

    mes pretas

    3 23 4 30

    Filhos pardos de

    mes crioulas

    0 0 0 0 0

    Filhos pardos de

    mes pardas

    0 1 23 3 27

    20 2 59 8 89

    Fonte: Cria de So Gonalo. Livro de Batismos de Escravos (1725-1740) PASTA 018.2

    Este quadro, por conseguinte, entre outros resultados, nos permite ver uma

    estratificao no interior das senzalas. Pois, uma coisa era ter como compadre homens livres e

    nobres e outra, ter por aliados escravos. Mesmo entre as mes de inocentes pardos e provveis

    pais livres, aquela estratificao estava presente. Basta ver que as mes designadas como

    pardas s tiveram livres por compadres, o que no ocorria com as da guin. Portanto, outra

  • Joo Fragoso

    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 135

    maneira de identificar tal hierarquia por meio da cor conferida s mes escravas. As

    escravas classificadas como pardas eram crioulas, naturais da terra, mas tambm, filhas da

    quebra estamental ou, se preferirem, resultado da miscigenao entre escravas e livres. E,

    portanto, em tese, pertenciam a um segmento constitudo por escravos e livres unidos por

    laos de amizade e de consanguinidade. A partir disto, podemos vislumbrar a possibilidade de

    redes de amizades como as presentes no quadro 2.

    Nele, temos 51 mes e seus 61 rebentos, todos afilhados de livres, ou seja, pessoas nos

    termos da tratadstica do Antigo Regime. Observe-se que isto ocorria independentemente da

    cor do seu filho e do status do pai, de ser escravo ou no. Neste caso s trabalhei com a cor

    conferida me escrava nos registros paroquiais e, portanto, com as relaes sociais que ela

    personificava. E estas eram diferentes das vividas pelas mes crioulas e pretas da guin. Alis,

    como j demonstrei em outros textos e em diferentes freguesias.

    Portanto, os quadros 1 e 2 demonstram a reformulao da hierarquia estamental de

    Antigo Regime nos trpicos. Os embates entre as normas legais e seus defensores com os

    escravos e seus cmplices da nobreza da terra resultaram na reformulao da hierarquia

    social. Esta no deixou de ser estamental, porm adquiriu novas feies e normas

    costumeiras. Entre as novidades de tal hierarquia temos a produo dos escravos pardos. Estes

    tinham o maior acesso a compadres livres e da nobreza e aos privilgios que estas alianas

    representavam. Neste ponto no podemos esquecer que a sociedade de Antigo Regime era

    comandada por relaes informais e entre estas, as de clientela. Assim, a frequncia das mes

    negras da guin com filhos pardos e de mes pardas terem livres e homens da nobreza da terra

    por compadres informa sobre a produo de uma norma costumeira neste Antigo Regime nos

    trpicos.

    Quadro 2: Distribuio por tipo de padrinhos conforme a cor e ou condio social da

    me. So Gonalo 1725-1735

    Nmero de afilhados batizados por tipos de padrinhos

    Mes escravas escravos forros livres nobreza da

    terra

    totais

    Pretas (150*) 62

    (86%)

    4 97

    (55%)

    7 170

    (63,4%)

    Crioulas (33*) 10 0 21 1 32

  • Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monarquia Pluricontinental: notas de um ensaio

    Histria (So Paulo) v.31, n.2, p. 106-145, jul/dez 2012 ISSN 1980-4369 136

    (14%) (12%) (12%)

    Pardas (51*) 0 2 58

    (33%)

    6 66

    (24,6%)

    Totais 72 6 176 14 268

    Fonte: Cria de So Gonalo. Livro de Batismos de Escravos (1725-1740) PASTA 018.2. * Nmero de mes

    O capito Joo Aires Maldonado e seus irmos no eram anomalias, mas sim

    personagens desta hierarquia estamental costumeira, resultado da irrupo nos trpicos da

    estratificao social do Antigo Regime europeu. Entre 1725 e 1735, na freguesia do capito,

    51 mes escravas pardas e 30 negras com filhos pardos apareceram nos livros paroquiais de

    batismos e elas representavam cerca de 1/3 das mes de cor, ou seja, o capito, enquanto

    pardo, no estava sozinho nesta sociedade.

    Com certeza, nem todos os m