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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS – SCH DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA VIRGÍNIA LOURENÇON DA SILVA “PULANDO DE CASA EM CASA”: UMA ETNOGRAFIA DA VILA MILITAR DE CASCAVEL CURITIBA 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS – SCH

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

VIRGÍNIA LOURENÇON DA SILVA

“PULANDO DE CASA EM CASA”: UMA ETNOGRAFIA DA VILA MILITAR

DE CASCAVEL

CURITIBA

2017

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VIRGÍNIA LOURENÇON DA SILVA

“PULANDO DE CASA EM CASA”: UMA ETNOGRAFIA DA VILA MILITAR

DE CASCAVEL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como

requisito parcial à obtenção do título de licenciada em

Ciências Sociais, do Curso de Ciências Sociais do Setor

de Ciências Humanas da Universidade Federal do

Paraná.

Orientadora: Profª. Drª. Eva Lenita Scheliga.

CURITIBA

2017

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Dedico essa monografia às pessoas que não

morreram, mas que ficaram encantadas: Vó

Rosa, Vô Chico, Vô Wilson, Vó Natália, Tia

Edna.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, à Eva Scheliga, por aceitar me orientar nesse

trabalho e seguir nessa empreitada que é a monografia, desde pré-projeto à

conclusão desse texto. Pelas orientações e conselhos, não restritos ao TCC. Pela

delicadeza e comprometimento em tudo.

Agradeço também ao Comandante da 15ª Brigada de Infantaria Mecanizada,

General Marcos de Sá Affonso da Costa, por ter concedido a realização da pesquisa

na vila militar de Cascavel. Ao Chefe de Estado-Maior do Comando da 15ª Brigada

de Infantaria Mecanizada Coronel José Tadeu de Freitas Queiroz por receber e

disponibilizar de seu tempo para avaliar o projeto de pesquisa. Grata também ao

Capitão Kirchmeyer por acompanhar todo o processo de chegada e negociação da

minha inserção em campo, recepção na Brigada e fornecimento de documentos

importantes para a elaboração dessa monografia.

A todas as famílias dos PNRs de Cascavel que participaram de alguma

forma da pesquisa e do meu dia-a-dia na vila. Agradeço principalmente à Dona

Margarida e à J. por também compartilharem memórias pessoais.

Agradeço à professora Ciméa Barbato Bevilaqua e à Tiemi Kayamori Lobato

da Costa por aceitarem o convite para compor a banca de arguição. Estou muito

honrada por poder discutir esse trabalho com vocês.

À professora Patricia Carvalho pelas discussões no Programa de

Voluntariado Acadêmico (PVA), por reconhecer da maneira mais doce todo meu

esforço e me fazer sentir capaz.

Ao professor João Rickli pelas aulas e orientações inspiradoras na Monitoria.

À professora Simone Meucci por me ensinar a importância do compromisso

intelectual e a beleza disso. Ao professor Rafael Faraco Benthien pelas aulas

inigualáveis e por sempre me incentivar.

Ao meu amigo Ramiro, pela generosidade infinita, amizade sincera e leal.

Pelas horas dedicadas a me escutar, ajudar e incentivar.

A todos os colegas, professores coordenadores e supervisores do PIBID –

Sociologia. Foram quatro anos de experiências substancialmente enriquecedoras ao

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lado de vocês. Grata também a todo o suporte financeiro vindo do programa. Por

meio dele pude permanecer em Curitiba e finalizar minha graduação.

Grata também a todos os estudantes dos colégios por onde passei (Leôncio

Correia, Algacyr Maeder, Elias Abrahão, João Paulo, Santa Gemma), porque muito

me ensinaram sobre a vida, sobre a educação, sobre lutar.

À turma 2013 de Licenciatura – Sabrina Freitas, Guilherme Schnekenberg,

Alana Lemos – pela amizade e companheirismo durante todos esses anos de

graduação.

Às amizades que construí na eterna “turma B” e que até hoje me

acompanham - Mylena Mattos, Carolina Calefi, Richard Roch, Nicole Martinazzo – e

aos demais colegas que, de alguma forma, estiveram presentes na minha vida

acadêmica e pessoal: Helen Kaliski, Henrique Valério, Tabata Soldan, Kamille Mattar,

Patrícia Dotti, Mayara Veloso, Marisa Rodrigues.

Aos amigos da graduação de Química pelo carinho de sempre: Emmanuelle

Carneiro e Tiago Wacheski.

À Bianca Elisa e Tio Luís, por ser minha família em Curitiba, afinal família é

também isso que construímos. Por serem suporte e amor em todos os dias

ensolarados e frios curitibanos.

Com todo meu amor, agradeço aos meus pais e ao meu irmão. Vocês foram

imprescindíveis, afinal essa monografia é resultado do esforço diário para me manter

estudando aqui. Obrigada por serem ombro amigo, colo que abriga, força que me

leva à frente. Amo vocês!

Agradeço também ao meu companheiro, Renan Issao, por estar presente

em todas as etapas desse trabalho: da tessitura da pesquisa à escrita. Por me “jogar

para frente” no sentido de me dar poder para seguir com minhas escolhas; por se

preocupar com minha saúde psicológica e física; por todo amor e companheirismo.

A todas as mulheres de minha família.

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RESUMO

Em diálogo com as referências da Antropologia dos Militares – campo de

estudos que, no Brasil, ganhou impulso especialmente com as pesquisas de Celso

Castro e Piero Leirner – esta pesquisa aborda o processo de ocupação dos Próprios

Nacionais Residenciais (PNR) a partir da visão das famílias que residem na vila

militar de Cascavel (Paraná). Essa cidade, conhecida por ser polo industrial e

agropecuário, é um dos municípios mais disputados pelos militares em seus

processos de transferência. Com um total de 230 residências, divididas em casas e

apartamentos, a vila é organizada por círculos hierárquicos e ocupada por parte do

contingente de profissionais. A partir dos dados oriundos de observações e

entrevistas realizadas com parte das famílias que moram na vila, busco explorar a

contraposição estabelecida entre os interlocutores desta pesquisa entre os dois

modelos de residências. Por meio da discussão dos atributos dados pelas famílias a

cada um dos modelos e dos diversos critérios e estratégias utilizadas por elas para a

seleção de moradias, busco analisar em que medida esses elementos se relacionam

com uma noção de “família militar”.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Lista de figuras

Figura 1: Região Militar em Cascavel............................................................30

Figura 2: Enumeração dos espaços militares e entorno................................31

Figura 3: Enumeração dos espaços militares e entorno................................32

Figura 4: Região cercada da vila militar.........................................................34

Figura 5: Vila de sargnetos e subtenentes.....................................................34

Figura 6: Vila dos oficiais superiores (região mais próxima aos quartéis).. . .35

Figura 7: Outras instituições militares no entorno da vila..............................36

Figura 8: Apartamentos ocupados por praças (sargentos e subtenentes)....36

Figura 9: Padrão construtivo de casa militar..................................................44

Figura 10: Padrão construtivo de casa militar................................................44

Figura 11: Padrão construtivo de casa militar................................................45

Figura 12: Padrão construtivo de casa militar................................................45

Lista de quadros

Quadro 1: Famílias entrevistadas..................................................................24

Quadro 2: Hierarquia Militar do Exército........................................................32

Quadro 3: Atibutos das casas e dos apartamentos.......................................58

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LISTA DE SIGLAS

AMAN - Academia Militar das Agulhas Negras

ECEME - Escola de Comando e Estado-Maior do Exército

EsSA – Escola de Sargentos das Armas

EsPCEx – Escola Preparatória de Cadetes do Exército

IG 50-01 – Instruções Gerais para a Administração dos Próprios Nacionais

Residenciais

IML – Instituto Médico Legal

PNR – Próprio Nacional Residencial

R-50 – Regulamento de Movimentação para Oficiais e Praças do Exército

6º BPM – 6º Batalhão da Polícia Militar

15ª Bda Inf Mec - 15ª Brigada de Infantaria Mecanizada

15º BLog – 15º Batalhão Logístico

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Sumário

INTRODUÇÃO..........................................................................................................9

CAPÍTULO 1 - O CAMPO E OS PROCESSOS DE NEGOCIAÇÕES....................12

1.1 A ESCOLHA DO LOCAL DE PESQUISA...................................................................12

1.2 MEDIAÇÕES FAMILIARES.....................................................................................15

1.3 DOS OFÍCIOS AO CRACHÁ..................................................................................18

1.4 ENTREVISTAS....................................................................................................22

1.5 ALGUNS DADOS DAS FAMÍLIAS MILITARES............................................................26

CAPÍTULO 2- A CIDADE DE CASCAVEL, OS ESPAÇOS E AS MORADIAS

MILITARES...........................................................................................................................29

2.1 CASCAVEL E A VILA MILITAR................................................................................29

2.2 A DISTRIBUIÇÃO DE CASAS.................................................................................38

CAPÍTULO 3 - A LÓGICA PRÁTICA DA OCUPAÇÃO DAS CASAS NA VILA

MILITAR................................................................................................................................43

3.1 RESIDÊNCIAS MILITARES EM CASCAVEL..............................................................43

3.2 A SELEÇÃO DAS CASAS E APARTAMENTOS...........................................................48

3.2.1 Apadrinhamento......................................................................................49

3.2.2 A fila........................................................................................................51

3.2.3 Segurança..............................................................................................53

3.2.4 Privacidade.............................................................................................55

3.3 DO ESPAÇO, SEGURANÇA E PRIVACIDADE AO IDEAL DE FAMÍLIA MILITAR................58

CONCLUSÕES.......................................................................................................61

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................63

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INTRODUÇÃO

Estudos sobre os espaços militares na Antropologia brasileira, como as vilas

militares, ainda são pouco abordados. De modo geral, Celso Castro (1990) e Piero

Leirner (1997), pioneiros no debate sobre área conhecida como antropologia dos

militares, intentam para a construção das identidades militares dentro das escolas de

formação, como a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e a Escola de

Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Esses contextos, pois, são espaços

privilegiados para se pensar a construção da identidade militar tanto Castro quanto

em Leirner.

Por meio da leitura dos trabalhos desenvolvidos por eles, é possível

reconhecer os ambientes como sendo militares quando localizam, primeiramente, as

escolas nos quais realizaram os trabalhos de campo. Segundo, porque mobilizam

um conjunto de símbolos que fazem parte da construção dessa identidade que

pretendem compreender e que, por sua vez, relacionam-se com os espaços

militares, como é o caso das fardas dos cadetes, por exemplo, que servem para

identifica-los nessa posição de “cadetes” dentro do grupamento da escola composto

por diversas patentes. Desta forma, por meio desse uniforme, como demonstram os

autores, tem-se certa previsibilidade quanto aos papéis desempenhados por esses

em relação ao restante do grupo. A previsibilidade nesse caso é importante por

conta do processo que esses sujeitos, relacionalmente aos que já passaram por

isso, estão inseridos e construindo a identidade militar. Nesse sentido, o estudo

sobre o espaço da escola também tem importância, já que é nele em que todo

processo de socialização e construção identitária ocorre.

Contudo, esse espaço não é tratado de maneira central, ou seja, os autores

se concentram na descrição do espaço como um dos elementos que possibilita esse

processo ocorrer e não para a construção dele em si.

Consoante a essa linha de estudo sobre a construção da identidade estão

algumas das orientandas de Castro e Leirner, como Fernanda Chinelli e Cristina

Rodrigues da Silva. Na dissertação desta (2010), por exemplo, há o destaque para a

relação entre Exército e família militar através da compreensão do que seus

interlocutores entendem pela categoria “família militar”, enquanto a primeira (2008)

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demonstra que a vida tanto dos filhos quanto das esposas de militares estão

associadas fortemente a vida que o marido constrói.

Nesses trabalhos mais recentes e diferentemente dos anteriores, novos

sujeitos foram tomados para entender outras identidades que não as militares. As

esposas e a família, por exemplo, passam a ser centrais nos estudos mais recentes

concomitantemente a espaços ainda não abordados. Contudo, ainda como em

Castro e Leirner, esses são onde as relações estão inseridas e não foco principal

das análises.

Mais especificamente sobre as vilas militares, não foi possível localizar

bibliografia que tratasse sobre o tema à luz da Antropologia brasileira. Identifiquei

apenas trabalhos nas áreas de História e Arquitetura e Urbanismo, dentre eles a

discussão de Carvalho (2014), na qual a autora sublinha a importância da vila militar

da Marinha em Natal (RN) dentro do conjunto de instituições militares (hospitais,

quartéis, escolas) no período da Segunda Guerra Mundial a partir da abordagem

sobre o aumento do efetivo da Marinha e as mudanças de estratégia da instituição

para ampliar a vila. Já Bonates e Valença (2010) também direcionam o olhar para as

vilas militares em contextos diversos no Brasil, mas destacam, dentre outras coisas,

os aspectos funcionais delas de modo geral. Já na História, diferentemente desses

dois trabalhos anteriores da Arquitetura e Urbanismo, o trabalho de conclusão de

curso elaborado por Campos (2011) intenta para a construção e investimento no

crescimento da vila militar do Rio de Janeiro, partindo do momento de criação e

aspectos funcionais das moradias e finalizando com a discussão sobre a criação de

bairros militares.

Portanto, após o levantamento bibliográfico sobre a Antropologia dos

militares, seguida dos estudos dos textos a respeito das vilas, notou-se a possível

contribuição ao tratar da vila militar ou, mais especificamente, a casa e suas

relações no contexto das vilas militares.

A fim de compreender como se dão os processos de organização espacial,

da negociação dos locais de moradia e a representação dos sujeitos frente aos

modelos de residências disponíveis em Cascavel, esta monografia passou a ser

desenvolvida. Para a incursão e discussão dessas questões, o texto se divide em

três capítulos.

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No primeiro capítulo, apresento a escolha do local de pesquisa; minha

posição, ao mesmo tempo, como estudante do curso de Ciências Sociais e membro

de uma família militar; o percurso de negociação para o início da pesquisa e a

utilização da entrevista como modo estratégico de aproximação, estabelecimento de

diálogo com os interlocutores e ponto de partida para a compreensão de algumas

questões referentes a esse campo, como, por exemplo, os processos de negociação

de residências militares.

Discutidos os aspectos metodológicos da pesquisa, no segundo capítulo o

objetivo é discutir e apresentar os espaços onde estão inseridos os sujeitos. Para

isto, primeiramente, será apresentada a cidade de Cascavel dentro do estado do

Paraná. Em seguida, a vila e outros espaços militares serão localizados dentro

cidade e como eles são organizados. Essa contextualização dos espaços será

realizada devido à discussão que será desenvolvida no terceiro capítulo: como os

agentes e os documentos oficiais tratam do processo de negociação e do que levam

em consideração nesse para a escolha do PNR no qual irão ou desejam morar.

Ademais, serão abordadas as formas de representação da casa e apartamento a

partir do olhar de algumas famílias que lá vivem.

Portanto, o capítulo 1 e 2 trataram, respectivamente, das questões

metodológicas que envolveram o trabalho e de como são divididos os espaços

militares em Cascavel. Foi indicada também a maneira como os documentos

militares definem as políticas de negociação das casas na vila militar e como a

hierarquia militar está associada a esse processo, ou seja, como a posição de cada

um dos militares se relaciona com os locais possíveis nos quais poderão morar

orientados pelo círculo hierárquico, bem como abre um leque limitado de prováveis

vizinhos, etc. Já no terceiro capítulo procurarei explorar as lógicas práticas

envolvidas na ocupação das casas, isto é, o que os agentes apreendem sobre as

regras e como as mobilizam em sua vida cotidiana, bem como as formas de

representação da casa e apartamento.

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CAPÍTULO 1 - O CAMPO E OS PROCESSOS DE

NEGOCIAÇÕES

1.1 A escolha do local de pesquisa

Não só por verificar uma lacuna nos estudos sobre os militares esse trabalho

foi realizado. Toda a organização dos espaços, seja da vila ou dos quarteis,

conectada a uma hierarquia construída a partir dos concursos e do desempenho

desses profissionais dentro das escolas de formação de militares, me despertou o

interesse pelo tema. Desde criança convivi com a organização das fardas, coturnos,

insígnias de meu pai. Nasci em Apucarana, no norte do Paraná, e morei em vila

militar. Aos cinco anos fui para Plácido de Castro, no Acre, e continuei a morar neste

formato de casa. Já aos oito anos, minha família recebeu transferência para Curitiba.

Aqui nunca moramos em vila, devido a poucas moradias existentes quando

comparado ao número total de profissionais esperando para ocupa-las. Desde a

mudança para cá, sempre ocupamos casa civil. Continuei nessas, mesmo depois

das transferências seguintes recebidas pelo meu pai. Minha família continuava a

circular, diferentemente de mim, já que permaneci em Curitiba. Nos dois lugares que

vieram a morar - Tefé, Amazonas, e Cascavel, no oeste do Paraná – voltaram a

residir em contextos militares. Portanto, identifico dois movimentos: o de morar e

conviver com militares nesses espaços, sair da vila e se distanciar dela. Depois,

voltar a transitar nele quando visitava meus pais, não mais como moradora, mas

visitante.

Embora já tivesse certa convivência com esses espaços, sujeitos e com

aquilo que podemos chamar de “mundo militar”, a possibilidade de transformar isto

em experiência de pesquisa se tornava algo novo e exigia estranhamento ao que era

de certo modo familiar. As idas até Cascavel possibilitaram minha reinserção nas

vilas militares e auxiliaram no amadurecimento quanto à escolha do tema geral de

pesquisa que, por outro lado, parecia ir ao encontro dos questionamentos prévios

que tinha sobre o tema. Bourdieu (2005), em Esboço de auto-análise, coloca em

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diálogo sua trajetória pessoal e acadêmica. Destaco neste texto a relação entre

pesquisa e trajetória que, como Bourdieu demonstra, são esferas da vida que não

estão dissociadas completamente, mas podem dar pistas umas sobre as outras.

Nesse sentido, minha vivência nesse ambiente e proximidade a sujeitos militares

podem ter, junto à vida acadêmica, “indicado” o tema de pesquisa. Mas não apenas

por estas razões Cascavel tornou-se um lugar privilegiado para a observação e

estudo.

Quando o tema de pesquisa começou a ser definido, havia duas direções a

tomar, por razões distintas: escolher fazer a pesquisa em Curitiba ou em Cascavel1.

Curitiba, em relação a Cascavel, possui um número maior de quartéis, aparatos

militares (colégio, hospital, vilas) e duas das Forças Armadas: Exército e

Aeronáutica. A vila dessa corporação, por exemplo, fica no bairro Bacacheri, ao lado

do próprio quartel, o Cindacta II, e possui um número maior de residências quando

comparado aos quarteis do Exército que ficam no mesmo bairro (20º Batalhão de

Infantaria Blindado, 27º Batalhão Logístico, 5º Parque Regional de Manutenção).

Quanto às vilas militares do Exército em Curitiba, há poucas casas compreendidas

no mesmo espaço. A do bairro Boqueirão, por exemplo, é composta por residências

civis adquiridas ao longo do tempo e não segue, como a maioria, o “padrão de vila”

que é composta por casas com padrões construtivos parecidos e assentada no

mesmo espaço.

Observando os espaços do entorno do Cindacta II, decidi testar a

possibilidade de entrada ou não na vila e, como resultado, fui interrogada

intensamente por soldados que faziam a segurança na entrada: onde você deseja

ir? O que quer fazer na vila? Em que casa você vai? Quem conhece daqui? Tem

parente aqui? A autorização decisiva para entrada em campo também deveria

passar pelo crivo do posto mais alto do comando, a saber: o General, coincidindo

com as experiências diversas de outros pesquisadores em suas respectivas

tratativas em torno da autorização para a realização da pesquisa em contextos

militares:

1 Na organização e discussão sobre o exercício de pesquisa, também foi levado emconsideração a administração da agenda de atividades do curso de licenciatura em Ciências Sociais.

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Para dar início à pesquisa da AMAN, consegui autorização do general queocupava o posto mais alto do sistema de ensino do exército, a quem nãoconhecia. (CASTRO, 2004, p.85).

Decidi, então, agir por conta própria: a carta deveria chegar ao comandante;se não tinha informações sobre como proceder, iria pessoalmente procurá-lo. (SOUZA, 2009, p.214).

Esses levantamentos preliminares sobre os espaços militares em Curitiba

me levaram a considerar Cascavel como possibilidade. Se lá podia supor que

também me envolveria em mediações longas para garantir o acesso à instituição, ao

menos vislumbrava outros aspectos positivos para a realização deste exercício

monográfico.

Com um total de 230 residências, compostas por casas e apartamentos,

Cascavel representa um dos maiores conjuntos de moradias militares do país. Sua

organização respeita os círculos hierárquicos, o que significa que a posição dos

profissionais dentro da hierarquia dentro dos quarteis tem relação com a maneira

que a vila se estrutura. Além disso, a vila militar de Cascavel tem grande relevância

para os militares ao se pensar as vilas militares no contexto nacional. Nos processos

de transferências dos profissionais não é raro ouvir sobre a qualidade de vida na

cidade e sobre a composição de aparatos militares que dão suporte tanto na vida

profissional como pessoal, como a disponibilidade relativamente grande de casas

quando comparado com Curitiba, por exemplo, e a qualidade da saúde por conta da

equipe qualificada no posto de saúde no quartel.

A segurança da vila, diferentemente daquela da Aeronáutica observada em

Curitiba, é feita por meio da vigilância de soldados e não há a necessidade de

comprovantes e documentos que permitissem minha circulação. Outras razões

também forem importantes para a tomada de decisão por Cascavel: minha

autorização só precisaria ser concedida por um único general - em Curitiba eu

necessitaria, a princípio, receber a autorização de três Generais. O responsável pela

vila militar de Cascavel gozava de boa reputação, sendo reconhecido por sua visão

de “abertura” da instituição, ou seja, de fomento ao diálogo com outros sujeitos e

entidades. Ademais, a possibilidade de contar com a intermediação de meu pai para

a aproximação deste universo e alguma familiaridade anterior com os espaços

militares de Cascavel, que não só compreendia a vila, mas quartéis, igreja, clubes,

contavam também a favor deste local.

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Portanto, após observações rápidas das diversas localidades possíveis nas

quais poderia desenvolver minha pesquisa, decidi, com o aval da minha orientadora,

dar início às negociações com os responsáveis pela vila militar de Cascavel.

1.2 Mediações familiares

Num primeiro momento, no andamento da decisão do local de pesquisa, a

proximidade de um familiar que é militar foi, sem sombra de dúvida, relevante, no

sentido de oferecer informações e me fazer reconhecer mecanismos e condutas

relativas ao contexto no que está inserido desde sua experiência como soldado e

formação na Escola de Sargentos das Armas (EsSA).

No processo de escolha de local de pesquisa, por exemplo, meu pai - que foi

assim transformado em um “informante” privilegiado especialmente neste intervalo

de preparação para o trabalho de campo - ofereceu informações sobre as duas

cidades avaliadas como possível local de pesquisa, ponderando sobre a possível

dificuldade em realiza-la na vila da Aeronáutica devido as atividades relacionadas no

Aeroporto e quartel que ficam no mesmo espaço. Atentou também para a relevância

de ambas no quadro de cidades militares disponíveis para residir e atuar

profissionalmente. Curitiba, segundo ele, tem um número diverso de quartéis

localizados em áreas distintas da cidade os quais compõem a 5ª Divisão do Exército.

Por ser uma cidade na qual se assenta essa Divisão, possui três generais,

diferentemente de Cascavel que conta com um. Ainda, explicou como esses

comandos costumam lidar com, segundo sua fala, “pesquisas de fora”: de acordo

com ele, a negociação na capital demoraria mais tempo que na outra cidade, porque

a cadeia de comando é maior, justamente pelo número diverso de quarteis e que,

por isso, poderia demorar mais.

Sobre Cascavel, contou sobre a “cabeça mais aberta” do general e sobre o

interesse dos militares em viver nessa cidade por oferecer um número grande de

casas quando comparado com Curitiba e sobre a qualidade da saúde que o posto

oferece. Por isso, segundo ele, muitos profissionais que havia conhecido,

recomendavam a transferência para Cascavel.

Os conhecimentos compartilhados daquele meio e as conversas com ele

também variavam conforme as situações e etapas do trabalho: de que maneira

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entrar em contato com os militares; a importância do vocabulário e argumentação

nos documentos enviados; a maneira que deveria me portar e me vestir (sugestão

de roupas que não mostrassem muito os braços, o colo, as pernas, além de prender

meu cabelo) quando fosse me apresentar, retirar o crachá no quartel ou quando

realizasse as entrevistas nas casas.

Durante a pesquisa, cabe destacar que a posição de interlocutor privilegiado

inicialmente ocupada por meu pai foi sendo relativizada. Quando estabelecida

relações com famílias diversas e por meio da participação da “vida cotidiana da vila”

de Cascavel, aos poucos outros sujeitos passavam a ocupar esse lugar. As pessoas

com quem conversava passavam a indicar conhecidos seus, levando em

consideração que eu seria bem recebida ou que os indicados não se importariam de

conversar sobre os assuntos da minha pesquisa. Desta forma, posso dizer que se,

por um lado, a pesquisa não teve e não tem a pretensão de tomar a minha própria

rede familiar como objeto de estudo a exemplo do que fizeram Edlaine Gomes e Luiz

Fernando Dias Duarte, no livro Três famílias (2008), por outro, não é possível negar

o quanto a construção de meu objeto e as condições de acesso a meu campo são

dependentes da intermediação desta rede. Isso, aliás, é algo que tenho em comum

com outros pesquisadores deste campo: Castro (2009), por exemplo, quando trata

da negociação para a entrada na Aman, igualmente destaca a relação com seu pai

em momentos distintos da pesquisa. O primeiro, quando inicia esse processo;

depois, quando já está na instituição:

Relendo o diário de campo, cresce em importância a atuação de meu paicomo conselheiro e mediador para que a autorização fosse concedida.Quando decidi tentar a autorização para pesquisar na Aman, conversei comele para que me ajudasse a definir como o pedido deveria ser feito.(CASTRO, 2009, p. 20).

A partir da minha chegada à Aman, estive por conta própria. Meu paiacompanhou o restante da pesquisa de longe, trocando ideias comigoquando eu pedia e, como meu pai, torcendo incondicionalmente pelo meusucesso. (CASTRO, 2009, p. 21).

Ao mesmo tempo em que reconheço, portanto, que as mediações de um

“informante” privilegiado tão próximo puderam lançar luz sobre alguns aspectos da

rotina militar, sublinho o quão fundamental foi buscar confrontar sua perspectiva com

outras fontes, de modo a contextualizar suas informações. Desta forma, para

entender um pouco melhor deste universo militar e de que maneira poderia negociar

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a minha entrada em campo, iniciei uma busca por páginas e contatos dos quarteis e

militares de Cascavel. Pouca coisa foi encontrada, como número de telefones que já

haviam sido desligados, o endereço dos quarteis, a foto da fachada deles, notícias

gerais do município sobre as ações realizadas pelas instituições, como corridas e

visitas guiadas nos quartéis. Em seguida, no site do Exército Brasileiro, procurei por

alguma pista ou instrução sobre como entrar em contato em casos de pesquisa,

havia apenas informações mais gerais do Exército em si e não dos quarteis de

Cascavel.

Depois das tentativas por meio das buscas via internet, destaquei essas

ações ao meu pai. Fui informada que, principalmente por questões de segurança,

dados como esses não seriam facilmente encontrados à disposição do público. Foi

também meu pai quem insistiu que os trâmites para a autorização da pesquisa

deveriam ser iniciados através de ofícios. Durante nossas conversas, ele dizia

frequentemente: “todo contato com civil deve passar por ofício” ou “você tem que

enviar um ofício. É burocrático, mas é assim no Exército. Você precisa conversar

com alguém responsável pela parte de Relações Públicas”. Ainda, “no Exército tudo

é desenvolvido através de documentos, de ofícios, porque é seguro, nele você tem

que se identificar e através dele você consegue perceber o desenvolvimento dos

trâmites. Tem como você comprovar o que cada um fez durante o processo”.

Explicou-me também que esses ofícios enviados tem um tempo determinado para

serem respondidos e que até chegar à resposta final, passaria por profissionais

diversos para avaliação e discussão do caso que, em seguida, seria apresentado ao

general da guarnição que, por fim, permitiria ou não a realização da pesquisa.

Confrontando esta informação com a literatura, pude encontrar em Leirner

(2009) uma explicação: o encaminhamento de ofícios e demais documentos estaria

relacionado com uma conduta de prospecção:

O etnógrafo, como estrangeiro, tem que ser prospectado. Como issocomeça? Um primeiro passo é contato. É preciso, antes de tudo, uma cartaoficial da instituição do etnógrafo que passe por instâncias como orientador,chefe, unidade, universidade. Mas isso talvez não baste. Pede-se aoschefes imediatos do etnógrafo – orientador, chefe de departamento ouunidade – que de alguma forma indiquem seu próprio envolvimento noprocesso. (LEIRNER, 2009, p. 39).

A prospecção, desta forma, é realizada através dos dados documentados,

tornados, assim, “oficiais”. Apresentar-se através do papel e não somente por meio

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da presença física, por exemplo, também dá ao comando tempo para diversas

ações: analisar o pedido; pesquisar a instituição ou sujeitos que formalizaram o

pedido; discutir entre os militares a possibilidade de aceite ou não; tomar as demais

providências que assegurem a realização da pesquisa.

1.3 Dos ofícios ao crachá

Voltando à bibliografia sobre pesquisas junto a militares pude encontrar

diversas referências aos trâmites para entrada em campo. Em comum, destaca-se

como esse processo de autorização da pesquisa é longo e, não raras vezes, sujeito

a revezes, como aponta Atássio (2009):

Entre os estudiosos de assuntos militares é conhecida a relutância dasinstituições militares em falar e expor o mundo da caserna aos civis. Muitasvezes o pesquisador, desconhecendo os trâmites legais, a hierarquia dacadeia de comando, a estrutura organizacional interna própria àsinstituições militares, ou seja, o “caminho das pedras”, tem o pedido deautorização para o estudo negado. Não são poucos os casos em que se faznecessário recorrer a inúmeras vezes e por caminhos diferentes para que aaprovação seja liberada. É também sabido que o tempo requerido para aaprovação da autorização pode ser longo e nessa espera o pesquisadorpassa por questionamentos sobre os objetivos do trabalho, os métodos aforma de divulgação do conteúdo, ou também o que despertou nopesquisador o interesse pelo estudo dos militares (ATÁSSIO, 2009, p. 175).

Como o trecho aponta, não são incomuns as dificuldades para entrar em

campo, a começar pelo encaminhamento da discussão sobre a pesquisa. Primeiro, o

tempo que esse processo leva pode variar conforme o conhecimento do pesquisador

sobre, como coloca Atássio, “o caminho das pedras”. No meu caso, a proximidade

com um interlocutor que conhecia esse caminho possibilitou a maneira como

negociar (via ofício) e a quem dirigir à documentação (responsável do setor de

Relações Públicas). Nesse sentido, reconhecer as etapas possíveis antes mesmo

delas se desenrolarem se torna, de certa forma, uma vantagem - como também foi o

caso de Castro (2009):

Nessa carta, datada de 14 de maio de 1987, descrevia minha condição dealuno de mestrado em antropologia e o tipo de pesquisa que gostaria derealizar na Aman. Meu pai, que era coronel da reserva do Exército, nãoconhecia esse general, mas me ajudou com dicas e contatos para que opedido chegasse até ele (CASTRO, 2009, p.19).

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As dicas, como o autor destaca mais vezes nesse texto, permitiram o acesso

dele ao campo, ainda mais nesse período adjacente ao fim da Ditadura Militar,

momento em que as instituições militares possuíam certa desconfiança em relação

às civis. Outros autores também revelaram outras formas de relações “próximas”

aos militares e que os ajudaram a se inserir no local de pesquisa, como Takahashi

(2009):

Considerando a dificuldade que existia, e ainda existe, para o acesso depesquisadores a instituições militares, o fato de ingressar, embora mantendoa condição de civil, no Quadro de Magistério da Aeronáutica possibilitou oconhecimento da rotina, em uma instituição militar, de áreas restritas aopúblico em geral e a obtenção de autorização para a realização da referidapesquisa. [...] Assim, o contato preliminar que fiz com oficiais superiores foiindispensável para a realização da pesquisa na academia. (TAKAHASHI,2009, p. 53).

Segundo Castro (2009), a relação de proximidade com sujeitos já inseridos

nessas instituições, faz deles potencial “amigo” do Exército e, por isso, “afastava do

estereótipo de um civil visceralmente hostil aos militares, como os militares

percebiam, não sem razão, boa parte da mídia e do mundo acadêmico” (2009, p. 27

e 28).

Para a minha negociação de entrada em campo foram enviados quatro

documentos por correio ao “Sr. Chefe de Estado-Maior do Comando da 15ª Brigada

de Infantaria Mecanizada Coronel José Tadeu de Freitas Queiroz”, responsável

pelas relações pessoais: uma carta me apresentando e esclarecendo as intenções

de pesquisa; uma carta apresentando minha orientadora e sua formação; um projeto

de pesquisa destacando o tema, os objetivos, a literatura já desenvolvida sobre o

assunto, a metodologia e quanto tempo desejava permanecer na vila como

pesquisadora; uma cópia do meu currículo lattes. Meu pai enfatizava, no período em

que organizava essa documentação, a importância dos argumentos que, primeiro,

mostrassem minha intenção e importância da pesquisa; os diferentes títulos e peso

das instituições que se relacionavam a mim e minha orientadora, como: “Doutora”,

“professora da Universidade Federal do Paraná”, “estudante de licenciatura em

Ciências Sociais”; ou seja, todo um conjunto de documentos que destacassem o

valor e seriedade do trabalho e que dessem o maior número de informações sobre

nós. A instituição não havia decidido ou informado quais documentos deveriam ser

enviados, mas nossa projeção do que seria “correto”.

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Depois de enviados os documentos em 30 de novembro, outro militar da

Brigada retornou o contato via telefone. Apresentou-se, informou sobre o

recebimento do ofício formalmente e começou a conversar comigo: primeiro,

perguntou minha idade, porque, segundo suas palavras, “era importante saber se

era uma pessoa madura”; depois, comentou ter achado interessante uma das

autoras citadas no projeto de pesquisa e que tratava da rede de fofocas entre as

mulheres (Chinelli) e, por último perguntou se tinha algum conhecido militar. Falei

sobre minha relação com meu pai: “sou filha do Basílio”, “do Tenente Basílio?”, “sim”,

“[risos] ah! o Basílio é meu amigo”. O tom da conversa se tornou mais descontraído

e, no final da ligação, disse que era importante saber quem eu era, que tipo de

relação tinha com o meio militar e que minhas respostas seriam levadas em

consideração na análise do ofício. Destaquei que minha relação seria apenas de

pesquisadora e que, para isso, precisava me aproximar das famílias militares. A

resposta final veio cerca de uma semana depois, autorizando a pesquisa e indicando

que eu deveria me apresentar na Brigada e pegar o crachá que fariam para mim.

Minha orientadora foi igualmente notificada por e-mail da autorização concedida.

Destaco nessa ligação o fato de ser reconhecida como alguém próxima da

instituição devido à filiação e a mudança no tom da conversa depois de informar isto.

Novamente remeto o leitor a Castro (2009), que chama a atenção para a marcação

dessa relação no contato e da aproximação resultante dela:

Uma estratégia consciente que usamos, os militares e eu, para diminuir oinusitado da pesquisa e da distância simbólica entre nós, foi sempre marcarmeu pertencimento à família militar. [...] Desde a carta-pedido marqueiminha condição de “filho de militar”. Os militares, por sua vez, sempretransmitiam a informação de que eu era “filho de um companheiro”. [...]Essas características biográficas me distinguem dos outros antropólogosque estudaram militares, e que narram suas experiências neste livro. Fazeparte da “família militar” implicava, em primeiro lugar, ser classificado commaior facilidade como um potencial “amigo do Exército” (CASTRO, 2009, p.27).

Chamo a atenção também para a organização hierárquica, a sistematização

dos documentos em ofício e a disposição dos nossos dados para ser enviada, a

linguagem escrita e falada, ou seja, o caminho de negociação até o início da

pesquisa. No processo para entrada em campo para estudo dos militares, segundo

Leirner (2009), o pesquisador precisa ser sabatinado, conhecido, porque evitam o

imprevisto:

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Hoje percebo que isso decorre de algo que esses nativos sempre mefalavam: “militar pensa prospectivamente”, tem que antecipar o inesperado.É verdade que antecipar o inesperado em seus quadros culturais não é umprivilégio de militares, havaianos o fizeram e muitos outros o fazem. Maspoucos fazem disso um exercício consciente que transforma categoriasculturais em pronta ação (LEIRNER, 2009, p. 39).

A ligação com o militar, por exemplo, vai ao encontro disso que trata Leirner.

Era importante me localizar e os questionamentos sobre idade, bibliografia e minha

relação com algum militar fez parte disso. O fato de ser filha de um profissional

desse meio também me colocava na posição de alguém próxima ou, como Castro

(2009) aponta, “amiga” e não “inimiga”. No contato inicial para a realização das

entrevistas experimentei me localizar de diversas formas e as reações a mim foram

diversas: quando me apresentava como “pesquisadora e filha do Basílio”, a

recepção costumava ser mais informal naquelas famílias em que o militar tinha uma

posição próxima ou acima na hierarquia em relação ao meu pai. Quando me

apresentava da mesma forma, mas o militar estava mais abaixo no ranque, o diálogo

tendia a ser mais formal. Em outros momentos, nos quais dizia ser apenas

“pesquisadora”, gerava, na maioria das vezes, um encontro mais desconfiado e

desconfortável. Nesses casos, geralmente eram lançadas muitas perguntas a mim,

porque o fato de ser pesquisadora talvez não ajudasse a me localizar como “amiga”

ou “inimiga”. Portanto, o comportamento das famílias em relação a mim num

primeiro contato mudava conforme minha apresentação e a como elas me

localizavam a partir disto. Essa posição era importante, porque também poderia

evitar imprevistos.

Por outro lado, apesar de me considerarem “amiga” por integrar uma família

militar, não participava diariamente do convívio dela. Depois de autorizada minha

pesquisa, o capitão que intermediou todo processo de negociação da pesquisa,

solicitou que me apresentasse na 15ª Brigada antes do início dela para que retirasse

uma identificação para a circulação na vila. Dia 31 de janeiro pela tarde fui até o

local indicado.

A Brigada faz parte de um do conjunto de quarteis do Exército que ficam no

mesmo terreno, separados por cercas e mata, e é o menor dentre eles. Está

localizado no vértice de encontro de duas ruas e há uma mata em frente que

camufla sua estrutura. Não só a mata parecia uma barreira para o acesso, mas toda

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a estrutura interna do quartel. Para chegar até a sala do capitão, passei por três

“áreas de identificação humanas” e averiguação dos meus de documentos pessoais:

primeiro, na guarita da entrada, por dois soldados; na porta de entrada do prédio,

por sete soldados e dentro da sala do capitão por um soldado. Dentro dessa sala

ainda havia outra sala na qual não se tinha acesso visual e nem físico, porque um

vidro fumê as separava e uma porta pequena permitia que apenas uma pessoa

atravessasse de uma a outra.

A Brigada, de modo similar ao contexto pesquisado por Moura (2003), possui

amplo controle sobre a entrada e saída de pessoas. As barreiras realizadas por

soldados me conduziam no espaço, bem como controlavam meu acesso a qualquer

outro. Abordada em cada delas por soldados, respondia qual o objetivo de estar ali e

quem eu era. Na sala em que esperava ser “atendida” um soldado fazia vigilância.

Em nenhum momento permaneci sozinha.

O desenvolvimento da pesquisa, contudo, não sofreu maiores restrições,

como descrevo a seguir.

1.4 Entrevistas

A estadia na vila militar para a realização do trabalho de campo durou cerca

de um mês e a entrevista foi o modo encontrado para me aproximar das famílias.

Conhecia visualmente algumas pessoas devido ao contato já existente dessas com

meus pais, enquanto a maioria das pessoas não reconhecia.

Ao total, 15 entrevistas foram realizadas no mês em que estive lá – entre

janeiro e fevereiro de 2017. Este período foi estratégico, porque nos meses de

dezembro e janeiro a vila militar tende a ficar mais vazia. A maioria das pessoas está

de férias ou envolvidas com a transferência, mudança, negociação das casas na

vila, ou seja, com tudo aquilo que envolve o deslocamento de um local a outro.

Militares que não foram transferidos geralmente recebem férias nesse período

também. Nesse sentido, no mês de fevereiro a vila costuma ser mais movimentada

que nesses outros dois, muito por conta do início do período escolar, da atribuição

dos postos de trabalho dos chegados e atividades nos quartéis. No processo de

autorização com o militar designado a tratar da realização da pesquisa, foi

combinado com ele que esta levaria um mês e que antes de qualquer contato com

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as famílias, deveria me apresentar na 15ª Brigada para retirar uma identificação que

deveria apresentar durante a realização da pesquisa.

Ao estudar a bibliografia a respeito dos militares, das esposas ou famílias,

autores diversos utilizaram a entrevista como estratégia de aproximação dos

agentes, tais como Silva (2010):

As entrevistas me permitiram conhecer e passar algum tempo com asfamílias. Quando fui realizar as entrevistas não percebi resistências quantoàs famílias quererem falar sobre elas, mas percebi haver um certo cuidadodos entrevistados com o que se falar sobre a família, similar à todapreocupação que a instituição também me passava sobre as famílias demilitares. (SILVA, 2010, p. 38).

As famílias entrevistadas tiveram comportamentos diversos. Enquanto

algumas agiam conforme Silva aponta no excerto, outras pareciam tranquilas com o

andamento da conversa. Se as famílias demonstrassem estar tranquilas em relação

à entrevista (e ao fato das entrevistas serem gravadas, mediante autorização),

prosseguia explorando alguns pontos de cada resposta. Caso demonstrassem

algum tipo de desconforto, abreviava a conversa e evitava adensar os poucos

pontos que levantavam.

Diferentemente de Silva (2010), destaco que as famílias entrevistas não

foram previamente escolhidas pelo comando como representantes da instituição.

Pude circular nas áreas da vila e abordar as primeiras famílias de modo aleatório. Ao

realizar gradativamente as entrevistas, as famílias passaram a me reconhecer como

alguém que estava realizando pesquisa ou então como “a filha do Basílio” e, aos

poucos, foram sugerindo que eu fosse em tais e tais casas, porque eram de famílias

com as quais tinham algum tipo de relação ou porque sabiam que eu seria bem

recebida lá. Em outras ocasiões, abordava famílias sem que houvesse qualquer tipo

de recomendação. O contato com as famílias não só ocorria no momento da

entrevista, mas se prolongou durante todo o período em que estive na vila,

abrangendo conversas nos espaços de lazer, nas casas, nos eventos promovidos

pelos quarteis, como a Corrida pela Paz.

O objetivo inicial da pesquisa era compreender a articulação entre unidade

doméstica e profissão, tomando como base as experiências de militares de

Cascavel. A hipótese era de que a relação entre público e privado não era

demarcada por fronteira rígida entre estas esferas. Nesse sentido, as perguntas da

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entrevista giravam em torno do tema proposto através de quatro blocos de questões,

que passo a descrever sumariamente.

No primeiro bloco da entrevista, indagava-os sobre a formação do militar,

abordando desde o interesse pela profissão até o percurso dele dentro das

diferentes instituições de formação (como EsPCEx ou EsSA). Supunha inicialmente

que essas questões podiam trazer pistas, por exemplo, sobre a endogamia da

profissão de militar a que Castro (1993) se refere em A origem social dos militares,

ou seja, de que pertencer a uma família militar ou estar próxima desse mundo social

poderia motivar os sujeitos a seguir a mesma profissão. Por outro lado, tratar do

processo de formação dentro das escolas poderia dar indícios sobre a localização

dos militares dentro da cadeia hierárquica, uma vez que cada uma dessas

instituições os introduz em posições distintas, depois de formados, na cadeia de

patentes. A EsSA, por exemplo, gradua sargentos, enquanto a EsPCEx, oficias.

Alguns trabalhos, como é caso de Bonates e Valença (2009), destacam a

organização da vila associada à posição dos militares na cadeia de comando. Nesse

sentido, tratar sobre o processo de formação poderia dar dicas sobre a profissão e a

vila, assim como a articulação entre essas duas esferas. Contudo, essa fala poderia

ser monopolizada pelas experiências de um único sujeito, ou seja, do militar, já que

suas vivências na escola seriam tematizadas nesse bloco da entrevista.

Para que o diálogo se estendesse aos demais sujeitos da família, outras

perguntas foram elaboradas. Não só por isso, mas também porque a vila não é

ocupada unicamente por militares, mas por famílias. A própria noção da vila em si

traz associada a ela a noção de família: só militares que constituem família ou que

tenham dependentes financeiros - como irei explorar no capítulo 2 - é que participam

da distribuição de moradias na vila militar. Nesse sentido, no segundo bloco de

perguntas, a vida em Cascavel era tematizada através do direcionamento do olhar

para o processo de transferência e adaptação à cidade.

No terceiro bloco as perguntas tornavam-se mais específicas, já que

orientavam a conversa para vila e não mais para a cidade. Para isto, as famílias

eram indagadas sobre o período adaptação neste espaço e, em seguida, sobre o

processo de distribuição de casas orientadas por documentos e pelos militares

responsáveis por essa função, bem como para as ações das famílias nesse

processo. Ainda nesse bloco, as questões se direcionavam para a estrutura da casa

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em si: o que podiam modificar, as razões que as levaram escolher aquela e não

outra residência, as mudanças já realizadas, etc.

Já no último conjunto, as perguntas tentavam suscitar as compreensões

relativas a casas civis. No limite, se as famílias não conseguissem ocupar as

moradias na vila, qual a estratégia delas? E qual o papel da instituição, no caso o

quartel, nesses casos? Nesse sentido, pretendia apreender sobre a relação das

famílias com a caserna em casos de não ocupação da vila. Portanto, a intenção

nesse bloco era compreender a relação entre público e privado em outras situações.

Através do terceiro e quarto bloco de perguntas, pretendia compreender

como as famílias, a partir de sua relação com uma instituição estatal, construíam o

espaço ao mesmo tempo em que precisam respeitar certas regras de padronização

das residências via documentos. Ou seja, através da conversa sobre regras e

personalização dos espaços, busquei compreender como as famílias entrevistadas

articulavam as noções de público e privado.

Nos momentos da entrevista, todos os membros delas eram convidados a

participar. Nem todos aceitavam e alguns, mesmo estando presentes, preferiam não

responder as perguntas. De maneira geral, ao falar da formação do militar, das

transferências, da negociação das residências na vila, ou seja, dos aspectos que se

conectavam a vida profissional das e dos militares, esses tendiam a centralizar a

fala. Já nos momentos sobre a adaptação na cidade e na vila, sobre as vivências

entre outras cidades, a rotina da vila, os demais agentes familiares participavam

mais. No momento em que as conversas aconteciam nem sempre também todos os

membros estavam presentes.

Ao elaborar as perguntas da entrevista, parti das experiências de alguns

autores que estiverem em contextos militarizados e do que tinha como objetivo

principal. A estruturação e aplicação dela, por sua vez, apontaram para outro

caminho. Ao invés de realizar mudanças na entrevista, busquei então investir naquilo

que os interlocutores destacavam. Vale ressaltar ainda que, quando fui buscar minha

identificação na Brigada com o capitão que havia ficado responsável por discutir a

pesquisa comigo e recepcionar em Cascavel, havia no crachá a seguinte frase:

“Autorizada a realizar pesquisa com entrevistas nas áreas de Vilas Militares da

Guarnição de Cascavel, durante o mês de Fevereiro de 2017” (grifos meus).

Segundo ele, era importante ter a autorização porque tinham ocorrido casos de

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outros sujeitos entrarem na vila e mentirem sobre a concessão do comando da

instituição para, por exemplo, venda de panelas na vila. Os postos do comando,

segundo ele, tinham ficado preocupados com a situação e com a possível entrada

de outras pessoas dizendo terem sido autorizadas. Assim, a autorização expressa

no crachá garantiria o não incômodo das famílias com a possível repetição da

realização de atividades que não haviam sido autorizadas, mas, por outro, a

concessão do comando para que ela fosse realizada. Mesmo tendo esse documento

comigo em todos os momentos durante a abordagem, não o utilizei. Se me

perguntavam sobre a autorização do comando, respondia “sim, fui autorizada”.

Quando a pesquisa começou a ser realizada, notei que as famílias tendiam a

retratar mais os processos de ocupação dos espaços e os filtros que a orientavam,

como a representação coletiva dos tipos de residências, acesso as informações

sobre as moradias antes da negociação delas, por exemplo, que outros aspectos,

como os relativos à profissão. A partir disto, o tema da monografia foi sendo

gradativamente alterado, porque na relação com as famílias, elas se propunham a

discuti-lo mais que outros pontos abordados.

1.5 Alguns dados das famílias militares

De manhã e à tarde quase não se via pessoas circulando na vila, a não ser

no horário do almoço, momento em que o fluxo aumentava, principalmente pela

presença de mulheres e crianças. Essas com uniformes escolares e mochilas nas

costas, saíam da vila nesse horário. Através da rotina e do diálogo maior com meu

pai no início da pesquisa, descobri que os quarteis ofereciam almoço e os militares,

em sua maioria, frequentavam os refeitórios. Segundo ele, “é bom que os militares

participem da rotina e da vida de quartel, inclusive no momento do almoço”. Nas

garagens também quase não se encontrava carros e as casas pouco pareciam

“vivas”. Janelas e portas fechadas, alguns portões da garagem abertos.

Esse cenário, como fui notando ao longo dos dias em que estive na vila,

mudava a partir das 18 horas. As crianças voltavam das escolas, o número de

fardados e carros também aumentavam. Nesse sentido, o contato com as famílias

era mais propício a partir deste turno; os poucos contatos que estabeleci no horário

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do almoço era afoito devido ao envolvimento dos membros com a refeição ou por

utilizarem esse momento para resolver outras questões pessoais.

Uma adolescente e seu pai militar, sargento do 33, moradores da vila desde

2014, me contaram sobre a experiência de quererem morar em uma casa nesse

espaço. Esperaram três anos, nas suas palavras “pulando de casa em casa” civis,

até que um PNR fosse disponibilizado a eles. Para eles, a vila é “tranquila” e, por

isso, “é bom pros filhos”, para as crianças que saem para brincar. Outro militar,

sargento da área de comunicação do Batalhão Logístico e estudante de engenharia

em uma das faculdades particulares da cidade, morador de uma das casas que fica

mais próxima do parquinho e da quadra, também se refere à “tranquilidade da vila” e

à presença de crianças: “é essa a sensação... que você tá numa cidadezinha

pequenininha, as crianças brincam na rua aqui, não tem uma movimento muito

grande de carro”. Silva (2016) quando trata do fazer e desfazer das famílias, ou seja,

das dinamizações nas configurações das famílias a partir da discussão sobre a

profissão de militar do Exército em um contexto de uma vila localizada na fronteira,

discute a presença de crianças nesse espaço e circulação delas. Segundo Silva,

isso ocorre porque:

Diferente dos pais, os filhos/as de militares parecem circular com mais“facilidade” e “liberdade” nas casas tanto de oficiais quanto de sargentos, aopasso que as crianças também expressam mais abertamente umasinceridade, ou melhor, uma postura menos formal e comedida que a vividapelos pais com relação a outros adultos. (SILVA, 2016, p.114).

Assim, o comportamento das crianças observado pela autora é baseado em

maior liberdade tanto de circulação quanto de expressão de si. Como a vila acaba

por reproduzir a configuração hierárquica do quartel dentro da vila, de acordo com

Silva, parece haver um comportamento formalizado e esperado pela instituição da

família militar. O comportamento das crianças, nesse sentido, vai ao encontro do

mundo dos adultos.

Encontrava na vila de Cascavel, no horário do almoço, outras pessoas nos

PNRs, mas que preferiam não conversa nesse horário, porque precisavam “resolver

algumas coisas no centro” ou ir ao banco, por exemplo.

Portanto, essa diferença entre a presença de pessoas na vila e a maior

concentração após as 18 horas, contribuíram para que o contato entre mim e as

famílias ocorressem mais após esse horário que em outros nos dias da semana.

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Geralmente nesse horário, algumas famílias se reuniam em frente às casas, às

vezes com cadeiras na calçada. Encontrava mais crianças que adultos,

principalmente nas áreas de lazer comum, como parquinho e quadra esportiva. A vila

se transformava após as 18 horas. Nos finais de semana, em contrapartida, a

circulação de pessoas variava.

A maioria das famílias2 era composta por pai, mãe e filho(s). Os homens

nessas, em grande parte, eram os militares, enquanto as mulheres, esposas, eram

atuantes em áreas diversas: professora do ensino básico, advogada, dona de casa,

estudante universitária, revendedora de cosméticos. As mulheres militares com as

quais tive contato atuavam ou na área de saúde, como enfermeira, ou como

profissionais temporárias, na área de contabilidade, por exemplo.

A maioria dos homens militares são formados na Escola de Sargentos, em

Minas Gerais. Apesar dessa predominância, cada um deles terminou o curso nessa

escola em períodos distintos e obtiveram formações em áreas distintas:

comunicação, mecânica, dentre outras.

Já as mulheres que são militares são formadas na área de saúde e na área

de contabilidade. No Exército de modo geral, a atuação mais efetiva delas se dá

justamente nessas áreas, porque os concursos disponíveis se concentram mais

nestas funções. Esse quadro profissional pode vir a sofrer alterações já que,

recentemente, as mulheres passaram a ser admitidas na Escola Preparatória de

Cadetes do Exército (EsPCEx), instituição de formação de oficiais.

Por outro lado, as filhas e os filhos, frequentavam as escolas de ensino

básico ou universitário. A presença de universidades e faculdades reconhecidas, por

exemplo, são fatores que algumas das famílias utilizam para justificar o interesse

pela cidade de Cascavel, como aquela em que o militar ocupa a função de

assistência ao general e tem duas filhas universitárias.

2 Optei por tratar por nomes fictícios ou pela patente do militar ou por alguma auto-nomeação durante as conversas: “sou tenente da 15ª Brigada aqui de Cascavel”, “sou advogada”.Essa escolha se deu através de acordo realizado com esses agentes que, de alguma forma,participaram e contribuíram na realização da pesquisa.

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CAPÍTULO 2- A CIDADE DE CASCAVEL, OS ESPAÇOS E

AS MORADIAS MILITARES

2.1 Cascavel e a vila militar

Cascavel está localizada na região oeste do estado do Paraná e, segundo

censo do IBGE em 2010, é a quinta maior cidade do estado, com um total de

286.205 habitantes. Lá são encontrados três quartéis do Exército: a 15ª Brigada de

Infantaria Mecanizada, o 33º Batalhão de Infantaria Mecanizado e o 15º Batalhão

Logístico. Todos eles dividem uma mesma área, diferenciando-se uns dos outros

pela divisão do terreno e por suas funções. A vila militar atende a todos esses

quartéis, ou seja, todos os militares que trabalham neles têm direito à moradia na

vila. Contudo, como o número de residências (casas e apartamentos, no caso de

Cascavel) é menor do que a quantidade total de militares, há uma fila de espera pelo

Próprio Nacional Residencial (PNR), organizada por um dos departamentos desses

quartéis, intitulado de Prefeitura. De acordo com a Portaria, PNR “é a edificação, de

qualquer natureza, utilizada com a finalidade específica de servir de residência para

os militares da ativa do Exército” (BRASIL, 2008). Ainda,

Essas vilas nem sempre foram diretamente construídas pelas ForçasArmadas: algumas foram contratadas de terceiros, outras adquiridas comrecursos próprios ou por meio de alocação específica do governo federal ou,ainda, através de operações de Remanejamento Patrimonial [...]. Todas elassão mantidas com recursos públicos. Os PNRs são, portanto, depropriedade pública (da União), alocados para os militares sob autorizaçãoda Administração Militar. (BONATES, VALENÇA, 2009, p.4).

A vila e os demais espaços militares estão localizados na Região do Lago,

região central da cidade e paralela a rua principal de Cascavel, a Avenida Brasil

(pintada em cor rosa na imagem 1, abaixo), a qual corta a cidade de ponta a ponta,

incluindo o centro. Nesse sentido, pode-se encontrar um comércio intenso no

entorno da vila. Por outro lado, indo em sentido contrário a essa avenida e se

aproximando do Lago Municipal, nota-se que a quantidade de residências aumenta.

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Figura 1: Região Militar em Cascavel

Fonte: Google Maps

Cascavel é considerada por boa parte dos moradores de lá como a “capital

do oeste do Paraná” e cidade de grande interesse ou peruada3 pelos militares, isto

porque a consideram uma cidade média, mas com infraestrutura de “cidade grande”

por ter: universidade, faculdades reconhecidas, shopping, áreas de lazer, comércio

com lojas variadas, aeroporto. Além disso, a estrutura militar da cidade é

reconhecida pelos militares com os quais conversei pelo fato de possuir um grande

número de residências militares quando comparada a outras cidades de interesse,

como Curitiba; por ter uma equipe grande de profissionais dentro do quartel da área

de saúde e pelo atendimento rápido na unidade de saúde que fica dentro do

Batalhão Logístico; Hotel de Trânsito, unidade militar onde os recém-chegados

podem se hospedar até finalizar a mudança ou possibilidade de se alojar quando

algum profissional precisa resolver algum assunto em algum dos quarteis, por

exemplo.

3 Peruada significa que há muitos pedidos de transferência para Cascavel. Essas cidadesque são disputadas entre eles também são conhecidas como “cidades de interesse”.

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A figura abaixo (imagem 2) dá uma ideia geral tanto dos espaços militares

demarcados em vermelho (clubes, vilas de casas, quartéis) quanto à delimitação de

seu entorno conforme o destaque da Avenida Brasil, indicado pelo número 10, e o

Lago Municipal, por 11, pela cor amarela. A segunda imagem (Imagem 3) dá uma

ideia geral dos apartamentos, que compõem o conjunto de residências militares e foi

destacada da primeira devido ao tamanho e qualidade da imagem. Logo abaixo da

imagem, há uma tabela que associa a numeração com a identificação de cada um

dos espaços das duas figuras.

Figura 2: Enumeração dos espaços militares e entorno

Fonte: Google Earth

Legenda: Identificação dos espaços e do entorno da vila militar

1 33º Batalhão de Infantaria Motorizado2 15ª Brigada de Infantaria Mecanizada3 15º Batalhão Logístico4 Círculo Militar – Clube de Oficiais5 Clube de Subtenentes e Sargentos6 Capela Militar7 Casa do General 8 Conjunto de Casas dos Oficiais Superiores, Intermediários e Subalternos9 Conjunto de Casas da Vila Militar (casas de Praças, Oficiais (todas as patentes) e General)10

Avenida Brasil

11 Lago Municipal

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Figura 3: Enumeração dos espaços militares e entorno

Fonte: Google Earth

Legenda: Identificação dos espaços e do entorno da vila militar

3 15º Batalhão Logístico12 Apartamentos Militares

Como as imagens demonstram, os PNRs se dividem em três blocos: os

apartamentos, conjunto de casas da vila militar e de casas de oficiais superiores,

capitães e tenentes (primeiro e segundo). Cada um desses blocos respeita a

organização definida pelos círculos hierárquicos que, por sua, se relaciona com a

hierarquia do Exército (Imagem 3).

Quadro 1: Hierarquia Militar do Exército

Exército

Oficiais Generais

Marechal4

General de ExércitoGeneral de DivisãoGeneral de Brigada

Oficiais SuperioresCoronelTenente-coronelMajor

Oficiais Intermediários Capitão

Oficiais SubalternosPrimeiro-tenenteSegundo-tenente

4 Posto preenchido apenas em caso de guerra.

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Aspirante5

Praças ou graduados

SubtenentePrimeiro-sargentoSegundo-sargentoTerceiro-sargentoCabo6

Soldado

Isto é, a distribuição de casas nas vilas como um todo, inclusive a de

Cascavel, respeita o ranque da corporação e os círculos hierárquicos. Dentro de

todo o grupamento militar (corporação), considerando todos os quarteis da cidade, o

militar está alocado em uma posição. A organização espacial da vila militar respeita

essa disposição hierárquica de modo que espacialmente seja possível identificar

cada um dos conjuntos de casas para cada um dos círculos: moradias somente de

praças ou graduados, casas de oficiais subalternos, residências oficiais

intermediárias e assim por diante. Dentro de cada grupamento de casas – círculos

hierárquicos - ainda há a diferenciação das moradias. Assim, dentro bloco de casas

de oficiais superiores, por exemplo, há casas que são de majores, outras que são

dos tenentes-coronéis e aquelas que são dos coronéis. Ou seja, militares que

possuem a mesma patente tem grande probabilidade de serem vizinhos. Nesse

sentido, há um espraiamento da hierarquia existente dentro do quartel para a divisão

espacial de casas na vila militar.

Essa subdivisão dos espaços através dos círculos hierárquicos aproxima

militares de uma mesma patente. As imagens a seguir, destacam os conjuntos de

casas de cada um dos blocos, seguindo as patentes correspondentes:

5 Função ocupada por recém-formados pela Escola Preparatória de Cadetes do Exército(EsPCEx). Existem duas formas de construir uma carreira militar no Exército: através da Escola deSargentos (EsSA) e pela EsPCEx. Ambas exigem a realização de concurso composto por diversasfases (prova escrita, prova de saúde, teste físico e psicológico, não necessariamente nessa ordem),bem como a permanência na escola por determinado período: na EsPCEx são cinco anos e na EsSA,quatro. Depois de formados, o militar entra em posições distintas na hierarquia: aquele que segraduou nessa última, se insere como Terceiro-sargento, enquanto que a primeira lhe coloca naposição de Aspirante. Quando um militar formado na Escola de Sargentos e é promovido dentro dahierarquia, ele não passa pela condição de Aspirante, mas salta de Subtenente para Segundo-tenente. Logo, Aspirante é um posto ocupado apenas por recém-formados pela EsPCEx e não existeuma posição relativa para aqueles graduados na outra escola.

6 As patentes de soldado e cabo não participam do processo de distribuição de casas,porque são cargos ocupados a partir do Alistamento Militar Obrigatório e não por concurso, como é ocaso dos profissionais formados pela EsPCEX e EsSA. Esta questão será explorada no corpo dotexto desse capítulo quando forem tratados os requisitos necessários para ocupação dos PNRs.

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Figura 4: Região cercada da vila militar

Fonte: Google Earth

Figura 5: Vila de sargnetos e subtenentes

Fonte: Google Earth

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Figura 6: Vila dos oficiais superiores (região mais próxima aos quartéis)

Fonte: Google Earth

Como se pode observar, os PNRs são divididos em quatro grandes blocos.

Na primeira imagem (imagem 4), a vila com o maior número de residências: 80. Nela

se encontram diferentes círculos hierárquicos: residências de praças ou graduados,

oficiais inferiores, oficiais intermediários, oficiais superiores, militares que assistem o

General e a própria casa do general. Este é o único conjunto de PNRs cercados por

grades, destacando esse espaço militar do restante da cidade que a engloba. Só se

encontra ambientes de lazer nesse espaço também, como quadra esportiva,

parquinho, praça. A segunda imagem apresenta a vila de praças, enquanto a

terceira, a de oficiais superiores, intermediários e subalternos. Essas duas vilas são

as que mais se aproximam dos quarteis, bem como da região comercial do centro de

Cascavel. Mais próxima a essa parcela de casas também ficam outras instituições,

como o Instituto Médico Legal e de Criminalística; o 6º Batalhão da Polícia Militar (6º

BPM), a vila militar e os canis relacionados a essa instituição; a Delegacia de Polícia

Civil (imagem 7). Nesse sentido, as vilas do Exército fazem parte de uma rede militar

compreendida nessa região e que foi construída antes do alargamento do centro da

cidade que, por sua vez, englobou esse conjunto de instituições.

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Figura 7: Outras instituições militares no entorno da vila

Fonte: Google Maps

Figura 8: Apartamentos ocupados por praças (sargentos e subtenentes)

Fonte: Google Earth

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Por último, a imagem dos apartamentos (imagem 8) que são ocupados por

praças ou graduados e que são diferenciados entre A e B. São 40 unidades, com

79m2 de área útil do primeiro, enquanto os chamados B possuem 69m2 num total de

60 unidades.

As casas também possuem arquiteturas diferentes, porque foram

construídas em momentos diversos. Em conversa com uma ex-moradora da vila e

que atualmente vive em uma das casas do entorno, disse-me que na década de 80,

quando chegou em Cascavel, a vila dos oficiais (superiores, intermediários e

subalternos) e de praças já haviam sido construídas e por isso a arquitetura mais

antiga. Por outro lado, as moradias cercadas são o conjunto de casas mais recentes.

Mesmo este bloco não foi idealizado e erguido na mesma época. A região do Lago

também não era considerada central na cidade e o entorno, segundo ela, não era

ocupado e ainda havia muita vegetação e barro. Com a ampliação dos quarteis e

funções, o efetivo aumentava e a demanda por casas também. Ela via que cada vez

mais pessoas civis se interessavam por Cascavel e a cidade crescia, principalmente

pelo desenvolvimento da agricultura, agropecuária e indústria. Existia também um

ideal relacionado à construção das vilas de modo geral e em Cascavel não foi

diferente. Os arquitetos militares do Paraná as projetavam e as ampliavam a cada

investimento recebido do governo federal. Segundo Bonates e Valença (2009),

Os PNRs são produzidos – mesmo em pequeno número – até hoje, mas,como já tratado, a produção das infra-estruturas das Forças Armadas,inclusive dos PNRs, ocorreu, sobretudo, na primeira metade do século XXaté a década de 1960, coincidindo, portanto, com o desenvolvimento domovimento modernista que, no Brasil, teve seu período mais produtivo entre1930 e 1960 (BONATES E VALENÇA, 2009, p. 11).

Segundo as referências de minha interlocutora, as construções dos

primeiros conjuntos de casas podem coincidir com o final da Ditadura Militar. A 15ª

Brigada, o primeiro quartel do Exército instituído no município, foi estruturado na

segunda metade da década 80. Desta forma, enquanto outros lugares planejavam e

implementavam as políticas de moradias militares entre os anos 30 e 60, a 15ª

Brigada ainda não existia. Atualmente, além dos três quarteis, as obras para a

construção de um de Comunicação iniciaram. Com isto, novas moradias estão

sendo discutidas.

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2.2 A distribuição de casas

As Forças Armadas possuem um número de moradias militares, com

arranjos e arquiteturas diversas por todo o país. Só o Exército, por exemplo,

segundo Bonates e Valença (2009), tem a posse de 18.549 PNRs distribuídos no

território nacional, os quais foram construídos principalmente entre o início do século

XX e a década de 60, fruto de um projeto de modernização da corporação. Esse

processo, no entanto, não significou simplesmente a construção de casas militares,

mas sim de todo um aparato que inclui: quartéis, hotéis de trânsito, casas militares,

colégios militares, etc. Aliada a essa ideia de modernização também há outra que diz

respeito à característica da profissão: a transitividade. Como são transferidos

regularmente de uma cidade a outra, os militares, tanto da bibliografia estudada

quanto aqueles com quem dialoguei, justificam a importância das moradias devido

as constantes mudanças que os quarteis promovem periodicamente. Nesse sentido,

a transferência tem relação com a dinamização das vilas militares.

A transferência, segundo o Regulamento de Movimentação para Oficiais e

Praças do Exército (R-50), “é o ato administrativo que se realiza para atender a

necessidade do serviço e tem por finalidade principal assegurar a presença, nas

organizações militares (OM), do efetivo necessário à sua eficiência operacional e

administrativa” (Brasil, 1996). Esse ato administrativo de rotatividade de profissionais

em âmbito nacional periodicamente tem como objetivos, para além desses:

o caráter permanente e nacional do Exército; o aprimoramento constante daeficiência da Instituição; a prioridade na formação e aperfeiçoamento dosQuadros; a operacionalidade da Força Terrestre em termos de prontoemprego; a predominância do interesse do serviço sobre o individual; acontinuidade no desempenho das funções, a par da necessidade derenovação; a movimentação como decorrência dos deveres e obrigações dacarreira militar e, também, como direito nos casos especificados nalegislação pertinente; por interesse do militar, quando pertinente. (BRASIL,Decreto nº 2040, s/ pág.).

De modo geral, a transferência pode ser dividida em duas categorias: por

interesse próprio do profissional ou por serviço. No primeiro caso, o militar pode

solicitar a transferência por questões pessoais, como a não adaptação na cidade

para a qual foi enviado, por questões de saúde, familiares, dentre outras. Nessas

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situações, os quartéis podem ou não atender aos pedidos, avaliando caso a caso, e

os sujeitos ficam responsáveis pelos custos da mudança caso o pedido seja aceito.

Já no segundo, por serviço, é listado pelo militar 24 cidades, sendo a primeira pela

qual se tem mais interesse e a última menor, após cumprir o período mínimo - 2 a 4

anos, geralmente - de permanência no último local onde trabalhou e morou. Nessas

circunstâncias, o Exército dá uma ajuda de custo para realizar o deslocamento do

profissional e dos dependentes, caso tenha.

Concluído o processo de transferência, geralmente realizado no final do ano,

cada organização militar apresenta as listas de movimentados7, ou seja, daqueles

que sairão desta para outra e dos que serão incorporados, bem como estabelece as

datas de desocupação dos PNRs para os primeiros e período de apresentação do

militar que está chegando. Usualmente esse intervalo de saída das moradias,

mudança e apresentação ocorrem concomitantemente entre as instituições com a

finalidade de realizar manutenção nas casas, o que envolve a pintura, troca de

objetos estragados, como pia, vaso sanitário, vidro quebrado, dentre outros.

Associado a esse tempo total para a realização de todos trâmites relacionados a

mudança há uma ideia de tempo para se preparar para um novo ciclo. Independente

da cidade para a qual foram transferidas, as famílias militares possuem mais ou

menos o mesmo tempo para que esse processo inicie e seja concluído, como

apontou um Tenente, formado pela escola de sargentos (EsSA), morador desde

2015 de uma das residências designadas a militares que dão suporte ao general:

“[...] pra que a pessoa comece a ser transferida a partir de novembro atéjaneiro... normalmente a janela de transferência é dezessete de novembropor aí.... meados de novembro... até meados de janeiro”. (Tenente da 15ªBrigada, espécie de “assistente” do general).

A Prefeitura Militar de Cascavel é o órgão interno responsável por todas as

casas da vila militar, inclusive pela manutenção. Quando as famílias possuem algum

problema relativo à convivência com as demais, também devem se reportar a

Prefeitura. Um dos sargentos abordou tal tema:

“[...] só que agora centralizou criaram a Prefeitura Militar e é ela que faz amanutenção das casas ela que cuida dos PNR ... então eu tenho que ir atéa Brigada e fazer a minha reclamação alguma coisa lá pro chefe da

7 A ideia de movimentação é trazida pelos interlocutores quando tratam da transitividadeprofissional, do processo de transferência.

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Prefeitura Militar” (Sargento da área de comunicação do Batalhão Logísticode Cascavel).

Após o período de deslocamentos dos militares e dependentes, seguido dos

cuidados com as casas, a Prefeitura passa a promover diferentes movimentações

internas em relação ao número total de famílias militares que estão em Cascavel.

Primeiramente, é verificada a quantidade de famílias que permanecerão nas casas

nas quais já estavam. Quando um profissional não é promovido ou não registrou

nenhuma reclamação ou insatisfações em relação à moradia onde reside,

permanece no mesmo local. Nos casos em que há reclamações, os argumentos são

avaliados pela Prefeitura e, se aceito, ele tem direito a entrar na fila de espera

novamente para disputa de uma nova casa. Quase todos os militares participam da

fila espera quando chega à cidade, isto porque o número de moradias é inferior ao

total de trabalhadores dos três quarteis do Exército, “não atende cem por cento”,

como informou o Tenente que atualmente é um dos assistentes do general e que

ocupa uma das casas específicas a essas funções.

Como o número total de militares dos quartéis de Cascavel é maior que o

número de residências na vila, então há uma fila de espera para cada tipo de casa

correspondente ao grupo de cada patente dentro da hierarquia. Essa fila de espera é

administrada pela Prefeitura Militar que, além de realizar essa distribuição, é

responsável pelas reformas nas residências a cada mudança realizada, bem como

pela manutenção da vila militar de maneira geral: jardinagem, pintura das casas e

dos ambientes comuns aos moradores, dentre outras. Alguns interlocutores

informaram que esta Prefeitura centralizou as atividades realizadas na vila, já que

anteriormente cada quartel tinha um número específico de casas e cada um deles

ficava responsável pelos cuidados. Isso causou alguns desconfortos, porque alguns

militares alegavam que as instituições tratavam de maneira distinta as casas, alguns

serviços eram melhores ou piores dependendo do quartel responsável. Nesse

sentido, a Prefeitura Militar de Cascavel administra e centraliza todas as atividades

em um único lugar, o que, segundo esses interlocutores, padronizou os serviços

ofertados e diminuiu o número de reclamações.

A distribuição de casas também respeita algumas regras. Primeiramente,

para concorrer a uma delas é necessário ter dependentes: cônjuge ou

companheiro(a); filho(a) menor de 21 ou 24 anos; menor sob guarda de militar por

determinação judicial em processo de tutela ou adoção; filho(a) inválido(a) ou

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interditado(a); filha viúva, separada judicialmente ou divorciada, menor de 21 ou 24

anos que sejam dependentes financeiros. Como estabelecido em documentos

oficiais do Exército, “há dependência econômica, [...], quando o valor máximo dos

rendimentos recebidos pelo(a) dependente não ultrapassar o valor do soldo do

soldado do efetivo variável8”. Assim, a noção de dependência econômica associada

à definição de quem são esses sujeitos que podem o não ser alocados nessa

categoria estabelecem quem são militares que poderão entrar no processo de

distribuição de casa. Quanto às idades de 21 anos e 24 anos, elas fazem parte do

critério de distribuição. Por exemplo, filhas e filhos, adotivos ou não, com idade até

24 anos, que são dependentes econômicos entram na categoria englobante definida

de dependência pelo Exército. Por outro lado, se esse mesmo filho ou filha, possuir

um rendimento mensal acima de 769 reais (salário atual do recruta ou soldado 9) e

tiver idade acima de 21 anos, então ele ou ela não será mais entendido como

dependente.

A fila de espera, como já apontado, leva também em consideração a

localização dos militares dentro da hierarquia, isto porque cada um só pode ocupar

casas que relacionam com cada uma das patentes. Além disso, as casas de praças

(sargentos e subtenentes) se aglomeram em regiões específicas da vila, seguindo

cada círculo hierárquico: praças (terceiros, segundos e primeiros sargentos e

subtenentes), oficiais subalternos (segundos e primeiros tenentes), oficiais

intermediários (capitães), oficiais superiores (majores, tenentes-coronéis e coronéis)

e general. Portanto, para cada círculo militar há uma fila espera, porque cada militar

concorre com outros que estão dentro do mesmo grupo do círculo. A cada

desapropriação, seguindo essas diferentes listas, o próximo da fila entra. Essa

organização realizada pela instituição foi uma maneira encontrada para solucionar a

disputa das casas da vila militar e respeita a ordem de chegada ou de apresentação

no quartel para o qual foi transferido. Através de um calendário organizado

anualmente, os quarteis estipulam as datas mínimas e máximas para que todos

aqueles que foram transferidos para os quartéis de Cascavel se apresentem como

os novos profissionais enviados à cidade. Assim, conforme vão chegando, vão

8 A expressão “o soldo do soldado do efetivo variável” se refere ao salário mensal recebidopelos recrutas ou soldados do Exército que, atualmente, tem o valor de 769 reais.

9 Ver mais em:http://www.defesa.gov.br/arquivos/2015/mes12/tabela_de_soldos_militares_ffaa.pdf.

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sendo perguntados se querem ou não entrar na disputa das casas na vila militar e,

caso desejem, vão sendo posicionados na fila por ordem de chegada.

Até este momento foram destacados os processos de

transferências/movimentações dos militares, assim como os modos de organização

espacial e disputa dos militares para acesso às moradias através da fila. Mas, como

os militares, que participam desse processo, entendem o percurso de ocupação da

casa e da vila, bem como as normas relacionadas à arquitetura da casa?

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CAPÍTULO 3 - A LÓGICA PRÁTICA DA OCUPAÇÃO DAS

CASAS NA VILA MILITAR

3.1 Residências militares em Cascavel

A princípio todas as casas do Exército são tomadas como iguais. Em

contrapartida, o documento que trata da distribuição das residências – IG 50-01

(Instruções Gerais Para a Administração dos Próprios Nacionais Residenciais no

Ministério do Exército) (Brasil, 2008) – não trata das diferenças, tomando como base

apenas as regras de distribuição. Contudo, vale ressaltar de que maneiras podem

ser aproximadas e afastadas.

Visualmente, as casas quando comparadas parecem se aproximar e

distanciar através das quadras construídas. Bonates e Valença (2009) tratam

também das diferenças entre as residências militares:

Em consonância com a lógica do “círculo de pares10”, as habitações tambémapresentam tipos e padrões construtivos diferenciados em função dapatente daqueles aos quais se destinam. Em outras palavras, as tipologiasrefletem a hierarquia dentro da corporação: os oficiais generais têm casasde melhor padrão construtivo que os oficiais superiores e assim por diante.Os PNRs do Exército, por exemplo, são divididos em cinco grupos: 1)oficial-general; 2) oficial superior; 3) capitão e tenente; 4) subtenente esargento; e 5) cabo, taifeiro e soldado. (BONATES; VALENÇA, 2009, p. 10).

Para esses autores, há relação entre hierarquia militar e tipos de casas que

ocupam. A distinção entre as diferentes patentes dentro do quarteis se espraia na

vida cotidiana dos militares e isto é organizado através, por exemplo, das divisões

espaciais das vilas por grupos de militares. Ainda, destacam que o padrão

construtivo se torna cada vez melhor quanto maior a patente dos profissionais.

Em Cascavel, essas relações não são tão imediatas, como apontadas por

Bonates e Valença (1999). Para isto, observemos alguns modelos de residências na

vila:

10 “Círculo de pares” tem o significado igual a “círculos hierárquicos”.

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Figura 9: Padrão construtivo de casa militar

Fonte: Acervo pessoal

Figura 10: Padrão construtivo de casa militar

Fonte: Acervo pessoal

Figura 11: Padrão construtivo de casa militar

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Fonte: Acervo pessoal

Figura 12: Padrão construtivo de casa militar

Fonte: Acervo pessoal

A primeira imagem representa um padrão construtivo de casas ocupadas por

sargentos que estão localizadas na região não cercada da vila e mais próxima de

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outras instituições, como Polícia Militar e IML. A segunda imagem representa outro

modelo de moradia, mas ocupadas por subtenentes e sargentos. A terceira e quarta,

retrata o modelo daquelas que são ocupadas por oficiais de modo geral. Nesse

sentido, podemos encontrar diferentes arquétipos de casas para um mesmo grupo

de patentes, como estas dos oficias. Nem mesmo há a diferenciação entre esses por

subalternos, intermediário e superior, seguindo a hierarquia militar, para cada tipo

casa.

A explicação para a diversidade de arquitetura destacadas, por exemplo,

pelo estilo da fachada, é explicada através de alguns relatos de moradores e ex-

moradores que distinguem os diferentes momentos de construção de PNRs. Dona

Margarida, por exemplo, morou na vila entre as décadas de 80 e 90 e atualmente

reside em uma das casas vizinhas. Acompanhou a construção de boa parte das

casas que ficam na região cercada da vila. Durante nossas conversas sempre

tratava dos “anos que chegou” e dos “anos de crescimento da vila”: nos primeiros,

odiava estar ali, porque “tudo só tinha mato e barro em volta da vila”, diferentemente

dos anos seguintes em que mais residências foram construídas. Desse momento em

diante passou a ter outra visão da vila, porque tudo era mais organizado e limpo.

Não era raro encontrar Dona Margarida cuidando das plantas, recolhendo algum lixo

que tivesse no chão e conversando com moradores. Portanto, suas histórias sobre a

vila focavam principalmente nas mudanças estruturais ocorridas e de como passou a

ter prazer em estar ali desde então.

Segundo ela, os PNRs eram construídos em conjunto: primeiro, eram

construídas um tanto de casas, depois outro bloco e assim por diante. Como na

elaboração do projeto residências havia uma ideia de sequenciamento linear de

casas para ocupação do maior espaço possível do terreno o qual o Exército era

proprietário, a estrutura da vila vai se tornando mais recente na medida em que

ficamos mais próximos da casa do general. Por outro lado, aquelas que ficam no

entorno dos quarteis, como é caso de boa parte das residências de oficiais, são mais

antigas. Portanto, a estética estaria mais associada ao período de execução de

projetos que visavam o aumento do número de residências que a diferenciação

hierárquica entre militares.

Como apontado por Dona Margarida, as casas foram construídas em blocos

ao longo dos anos e cada bloco de casas guardam estruturas iguais. No entanto,

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como o projeto de ampliação da vila foi se desenrolando ao longo do tempo e não de

uma única vez, alguns desses blocos possuem arquiteturas diferentes. Margarida

então destaca que como o número de profissionais praças é maior que os demais

círculos, as casas passaram a ficar mais disponíveis para esse grupo, já que o

número de residências na vila era ampliado. Desta forma, aumentava-se

proporcionalmente tanto o número de casas para sargentos e subtenentes, quanto

para as demais posições. Ou seja, os oficiais não foram “prejudicados” com essa

abertura. Ainda, ela diz que os apartamentos foram construídos para ser vendidos.

Mas, como o efetivo aumentava, foi decido que os apartamentos seriam destinados

aos praças também.

Já os apartamentos A e B se parecem muito, porque toda a estrutura dos

blocos é semelhante. Contudo, internamente são diferentes: são 40 unidades, com

79m2 de área útil do primeiro, enquanto os chamados B possuem 69m2 num total de

60 unidades. O tamanho das casas varia conforme os círculos hierárquicos, tendo a

menor casa um total de 89m2 de área útil e 296m2 de área total. Dona Margarida

também contou sobre a idealização dos apartamentos. Segundo ela, os militares de

Cascavel tinham como objetivo a arrecadação de dinheiro com a construção e venda

deles para civis. No entanto, como a vila possuía cada vez menos casas já que o

efetivo de militares aumentava periodicamente, chegaram ao consenso de

transformar os apartamentos em PNRs também.

Essa naturalização sobre o processo construtivo em blocos da vila abordado

por Dona Margarida não é uma visão singular sobre esse espaço, mas partilhada

com outros sujeitos também. No entanto, essa diferença não é dada, mas resultante

de um projeto no qual há inúmeras diferenças. Apesar de Dona Margarida destacar

essas “ondas” construtivas das residências, a organização espacial por círculos

hierárquicos e a associação de padrões construtivos e patentes ocupantes indicam

que, mais que a história das construções, há profissionais que são mais

beneficiados que outros devido aos tipos de residências destinadas a eles, como é

caso da vila de oficiais localizada na região mais próxima dos quarteis. Essas casas,

por exemplo, são maiores e com mais cômodos. O General, patente mais alta da

hierarquia em Cascavel, também ocupa a maior casa existente na vila. Desta forma,

é possível notar a diferença entre os PNRs através dos modelos, mas também o

favorecimento das graduações mais altas da hierarquia com casas maiores.

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Durante as entrevistas em Cascavel, quando perguntados sobre a forma de

distribuição das moradias na vila11, a diferenciação entre os círculos de pares foi

abordada por alguns membros das famílias, como por esses dois militares:

aqui na Vila Militar...como em toda Vila Militar é distribuída dentro doscírculos hierárquicos... (oficial da 15ª Brigada, assistente pessoal doGeneral, morador da vila desde 2014).

[...] aqui na vila...ela é dividida em setores né... tem a parte dos oficiais e aparte dos praças... (sargento da área de comunicação do BatalhãoLogístico, formado pela EsSA e morador da vila desde 2010).

Os dois excertos apontam para a representação das residências a partir da

organização delas dentro da vila e também de duas posições diferentes na

hierarquia: o primeiro, militar da Brigada, ocupa uma das casas destinadas a

patentes oficiais especiais que dão assistência ao general, enquanto o segundo é

sargento da área de comunicação no Batalhão Logístico. Por possuírem funções e

patentes diferentes, disputaram casas em regiões distintas mesmo morando na

mesma rua.

Portanto, comparativamente, a análise em Cascavel se aproxima e se afasta

ao que foi observado por Bonates e Valença (1999). Primeiro, se distancia, porque

os autores tratam da organização das casas por tipos padrões construtivos que, por

sua vez, estão relacionados a cada um dos círculos hierárquicos. Em Cascavel, esta

noção de estética de casas e patentes não se associam de modo imediato, já que

foram construídas em períodos distintos e não seguindo os círculos de pares. Por

outro lado, as análises se aproximam, porque nos dois contextos foram observadas

as disposições dos PNR as quais respeitam a hierarquia dentro dos quartéis.

3.2 A seleção das casas e apartamentos

11 Antes da realização do trabalho de campo, tinha como objetivo a discussão do modocomo às famílias observam e relatam a composição estrutural da vila, bem como as formas dedistribuição. Contudo, conforme a leitura desse capítulo, o leitor notará que a maioria das falasacionadas é de militares. Esta escolha foi realizada a partir dos dados obtidos, o que acabou por darmais enfoque a visão dos profissionais.

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De modo geral, quando as famílias chegam a Cascavel, não conseguem

ocupar as residências militares na vila. No processo de negociação dos PNRs, os

praças (subtenentes, primeiro-sargento, segundo-sargento e terceiro-sargento)

podem ocupar as diferentes filas de espera existentes para concorrer a: casas,

apartamentos A, apartamentos B. O número de residências por ser menor ao total

de profissionais que disputam os PNRs, faz com que os militares tenham que morar

em casas civis. Em contrapartida, os oficiais participam apenas da disputa da casa,

tendo também que passar pela fila de espera, porque, assim como para os praças, o

número de casas destinadas a eles é menor que o contingente. Os oficiais esperam,

em média, um ano para ocupar as casas um ano, enquanto os praças três anos. No

caso dos apartamentos, esses últimos conseguem aguardam menos tempo, em

torno de um ano para apartamento B e um ano e meio a dois para o A.

Quando chegam à cidade para onde foram transferidas, as famílias, na

maioria das vezes, não conhecem a vila, as casas, os quarteis. São orientadas no

momento do pedido de transferência pelas experiências de outras que já possuem

mais dados a respeito da cidade ou porque já moraram lá. Por ser também uma

cidade peruada ou disputada pelos militares, como é o caso de Cascavel, acaba

sendo reconhecida mais facilmente que outras cidades justamente por seus

“atributos”. Tenente da Brigada, com passagem por oito vilas, desde que se formou

na EsSA em 1988, quando perguntado sobre a adaptação na cidade e na vila, conta

que nunca tinha estado na cidade, mas que os militares como um todo possuem

interesse por Cascavel:

pois é... então Cascavel nós não conhecíamos né...nunca passado poraqui... mas as informações que tinha era que a cidade era muito boa... tantoque Cascavel hoje é uma das guarnições mais peruadas dos militares prapoder vir servir... tanto no âmbito dos Oficiais quanto no âmbito dosSargentos. (Tenente assistente pessoal do General, profissional da 15ªBrigada de Infantaria Mecanizada).

3.2.1 Apadrinhamento

O apadrinhamento também é outra forma de obter informações e a maneira

pela qual os militares se ajudam. Quando o quartel do Exército de Brasília publica o

resultado nacional das transferências, todos os profissionais sabem para qual

guarnição foram designados, dentro das vinte e quatro opções que listaram por

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ordem decrescente de interesse. Todo quartel também recebe esse resultado e a

listagem dos militares que foram transferidos para ele. Com esses nomes, alguns

militares são nomeados através um documento elaborado por um militar responsável

por isso. Segundo um sargento do 33º Batalhão que já quatro vezes foi transferido

para regiões diferentes do Brasil:

[...] o padrinho também anda com a gente pela cidade toda tambémconhecendo a cidade mostrando as casas... mas de início todo lugar que eufui quando eu fui pra Itaituba tinha um padrinho lá quando eu vim pra cátambém tive um padrinho... então tem sempre alguém já designado praajudar o militar que tá indo pra aquela cidade ali. (Sargento do 33º Batalhãode Infantaria Motorizado).

Assim, como aponta o militar, alguém já é designado para recepcionar e

apresentar, por exemplo, a cidade e as casas. O apadrinhamento seria uma maneira

de apresentar ao recém-chegado, segundo o oficial, assistente pessoal do General,

a cidade, a vila, o quartel, bairros que sejam “bons” para viver. Essa indicação ajuda

o “novato” a reconhecer os espaços mais rapidamente e aquele que é mais

experiente “fica à disposição” desse, como destaca um oficial da Brigada:

então por exemplo já teve um companheiro que veio pra cá... pro trinta etrês inclusive a gente tinha um amigo em comum eu nem era padrinho delee ele me ligou querendo saber onde é que tinha casa onde é que era bomonde é que não era e eu passei o que tinha à disposição pra ele de formaque o cara já vem estruturado muitas das vezes até o pessoal consegue atéreservar o aluguel de casa pra essas pessoas pra que ela fique mais fácil...ela chega aqui claro que a parte ela que vai tratar disso daí ... mas que apessoa já deixa mais ou menos direcionado pra ela... isso existe não só aquicomo em todas as guarnições... é de praxe fazer isso daí ... é nomeado né...um padrinho que é um militar ali normalmente do mesmo posto degraduação ou que tem alguma afinidade com aquele militar que tá vindo ...alguém que fala não esse é da minha turma deixa que eu vou ser opadrinho dele ... já tem uma afinidade às vezes a pessoa até recebe ele nacasa dele se ela tem uma afinidade maior ... e se não for dessa forma queele já deixa um hotel de trânsito reservado já veja ó tem casa nessa áreaaqui que tá próximo do quartel ... aqui tá tranquilo se você não conheceCascavel as escolas que tem é essa essa e aquela pros seus filhos isso daíé feito. (Oficial da 15ª Brigada de Infantaria Mecanizada, assistente pessoaldo General).

Essa relação, como destacado no excerto, não é fixa e pode ser negociada.

Quando o grupamento recebe a listagem de transferidos, os militares podem

verificar se nela há alguém próximo ou amigo e trocar com outro, caso outro seja o

padrinho. As famílias, de modo geral, também falam dessa relação como o modo de

se inserir no cotidiano da vila: quando chegam elas deixam os nomes para a disputa

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dos PNRs e precisam procurar por residências. O padrinho então indica bairros

considerados bons ou nos quais os alugueis sejam mais acessíveis ou ainda que

ofereçam lugares disponíveis ao redor do quartel, por exemplo. Também orienta

sobre as filas de espera, a situação das casas, os melhores locais para morar dentro

da vila. Assim, as informações sobre os PNRs circulam entre os militares.

Portanto, primeiramente, vale destacar que ser padrinho é uma função

delegada dentro dos quarteis. Por meio dessa relação formal designada, militares

recepcionam a nova família militar que está chegando. Essa proximidade pode ainda

viabilizar o estreitamento dos laços e, eventualmente, construir uma política de

vizinhança ou até mesmo relações de compadrio efetivo, com batizados de crianças.

Nesse sentido, apadrinhar os recém-chegados possibilita a produção de laços e

afinidades12.

O compadrio, desta forma, não é a primeira etapa seleção de casas ou

apartamentos, mas interfere na lógica prática de ocupação, uma vez que o

estabelecimento dessa proximidade ajuda essas famílias que chegam a apreender

algo sobre a vila e sobre a diferenciação entre os tipos de residências.

3.2.2 A fila

As casas e os apartamentos são os dois modelos de PNRs em Cascavel e a

diferença de área útil é a unidade objetiva tomada pelas famílias para retratá-los. A

preferência pelas casas é destacada por alguns dos militares, como por um sargento

nesses dois excertos:

bom nós chegamos aqui eu fui ... nós não tinha PNR disponível... nósficamos três anos aguardando o PNR... pulando de casa em casa... aí nósfomos parar ... mudamos pra cá em dezembro de dois mil e... catorze.

a gente preferiu casa aí... como casa ... geralmente as pessoas queremcasa aí demora um pouco mais pra ... apartamento logo no primeiro anoapareceu... no segundo ano surgiu apartamento aí a gente não quis aíesperamos casa... ficamos um pouquinho mais ... um pouquinho mais detempo a mais pagando aluguel.

12 Não pude nesse trabalho aprofundar a análise dessas relações de compadrio, masgostaria de assinalar esse ponto como importante para se pensar a lógica prática de seleção dePNRs.

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A predileção, como destaca, não se refere unicamente a família dele, mas a

outras também. Outro sargento, vizinho de frente desse, argumenta no mesmo

sentido:

tem esses três tipos de PNR... então quando eu vim pra cá eu opteiespecialmente por casa... porque nós morávamos em apartamento e ah...não vamos sair de um apartamento pro outro... aí olhamos você podia pularpassar a vez no caso três vezes cada um... por exemplo, chegou umapartamento tipo B ah...eu não quero.

Sua preferência pela casa se dava por não continuar a morar em um mesmo

tipo de residência. Em outros momentos, quando retornei a essa casa, conversei

com a esposa desse militar que relatou já ter morado na vila com os pais e que tinha

tido uma vivência muito boa ali. Quando se casou, deu preferência pela casa tanto

porque o espaço era maior que nos apartamentos quanto por essa memória. Em

outros diálogos, o casal retratava a importância do tamanho do espaço domiciliar e

da possibilidade maior de personalização dos espaços dela. Este, aliás, é um ponto

constantemente reiterado pelos diversos interlocutores: as casas sempre são

revestidas, a seus olhos, de maiores possibilidades de tornar aqueles ambientes

mais afinados com seus gostos pessoais.

A notória preferência pelas casas tem implicação sobre a maneira como

operacionalizam ou utilizam estrategicamente a fila de espera, sendo esta a primeira

etapa de seleção de casas e apartamentos:

então o militar ele entra na fila ... o primeiro pra sair pra ele dentro de umaordem de tempo é o apartamento B... se ele não quiser ... ele tem aoportunidade se não quiser aquele apartamento B ele pode rejeitar aqueleapartamento B e sai da fila do apartamento B e passa a concorrer ao A ecasa... quando chega o A ele não quiser ele abre mão daquele apartamentoA e passa a concorrer só a casa ... e se chegar na casa como já ocorreuaqui por algum motivo o militar ali naquela época ele não quiser pegar PNRele pode sair e se ele desejar ele entra na fila de novo... esse é o critérioaquiele pode retornar pra fila desde que ele vá entrar no final da fila como todomundo... ele não entra na posição que ele estava ... se por acaso o militarabriu mão da casa não tem problema... ele sai sem prejudicar ninguém vaipro final da fila e de novo começa a concorrer... apartamento B apartamentoA e casa. (morador da vila desde 2010).

As estratégias de utilização da fila para obtenção dos espaços onde se

reconheça possível obter mais vantagem pode ser representada pelo excerto

anterior no qual o militar destaca, por exemplo, a retirada do nome das listas para

concorrer apenas às residências de interesse. Isso demonstra também como os

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militares jogam com as possibilidades, mobilizando diferentes critérios de seleção

que incidem sobre a ordem de espera planejada pela instituição e sobre o modo

como as regras passam a ser vivenciadas.

Os lugares na fila passam a ser alvo de disputa e de negociações mais ou

menos implícitas, como indica o mesmo militar que do excerto anterior:

aquele cara ia passar na nossa frente... tu viu que ele ia passar na nossafrente depois de meio ano que ele pegou a casa aqui na esquina...tem queficar de olho.

A noção de “ficar de olho” aponta para a necessidade das famílias militares

em desenvolver certa perspicácia, mantendo atenção sobre quais casas serão

liberadas para que, então, consigam colocar em prática suas estratégias. Uma

família pode, portanto, recusar a oferta de um apartamento, continuar a morar em

uma residência civil e voltar para a fila, porque sabe que, daqui a um tempo, terá a

chance de ocupar um lugar que condiz mais com suas expectativas. Como exemplo

deste cálculo faço menção a um caso relatado por um militar: uma das melhorias

realizadas por sua família em sua atual casa foi a construção de uma piscina.

Atualmente, conta ele, alguns colegas esperam que ele peça transferência para

outra cidade e desocupe a casa para que então possam disputar a “casa da piscina”.

Em tom jocoso, conclui: “quando eu sair, vai ter briga por essa casa”.

3.2.3 Segurança

No entorno de toda região militar e entre as casas há guaritas nas quais

soldados realizam vigia durante vinte e quatro horas. Mesmo dentro da região

cercada da vila há um alojamento de soldados para estadia daqueles que foram

escalados para trabalhar ali. Quando o período de fiscalização se encerra, um grupo

de soldados sai desse quarto coletivo e percorre todas as guaritas, ponto a ponto, e

a troca de um sujeito por outro é feita. No final, toda a vila cercada é percorrida,

porque essas espécies de cabines brancas estão espalhadas por todo o espaço.

Nas outras partes da vila esse mesmo esquema de trabalho é seguido, com guaritas

e soldados. Em algumas ruas ainda há placas indicado “área militar”. Já os

apartamentos são cercados grades e na entrada se encontra uma única guarita.

Eles ficam num nível mais alto que a rua em frente e dela é possível enxergar os

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blocos e as garagens. A área dos apartamentos fica mais próxima ao Batalhão

Logístico em contraposição as casas, contíguas a Brigada, quartel onde comando

central está localizado.

A segurança nas casas e apartamentos era constantemente contraposta

pelos entrevistados como forma de justificar a preferência pelas primeiras unidades.

Nas casas, os militares principalmente costumam relatar um sentimento de

segurança por não haver roubos e pela tranquilidade em deixar os filhos circularem

pela vila, como se lê nos seguintes trechos das entrevistas realizadas com dois

militares, um sargento do 33 e o outro da Brigada, respectivamente:

essa segurança que nós temos aqui de ter a oportunidade de deixar osfilhos aqui a gente não se preocupa... igual...não só aqui como em outroslugares também né fica aquela preocupação...mas aqui na Vila uma dasgrandes vantagens é essa de poder deixar os filhos à vontade...sai deixao ...o portão fica aberto...não tem problema com roubo com nada...aindabem né...a principal vantagem é essa. (Sargento do 33º Batalhão deInfantaria Motorizado).

a maior vantagem que a gente tem é a tranquilidade de estar aqui dentro daVila...a segurança (Tenente assistente pessoal do General).

Ao lado do parquinho ou quadra, por exemplo, havia uma das guaritas em

uma das pontas mais alta e de onde se pode observar a extensão da vila. Não era

raro ouvir algumas mães confiarem o cuidado das crianças ao soldado que ficava

nessa área. Em algumas conversas entre elas em que estive presente, falavam:

“deixei ele ali...tem soldado na guarita” ou “o soldado olha”. Esses últimos, fardados,

destacavam-se pela postura de “estar em serviço”, mesmo em perspectiva com os

moradores militares. Responsáveis pelo cuidado com as casas e seus habitantes,

permaneciam com postura ereta e com cassetete a mão, enquanto os inquilinos à

paisana.

Ainda há quem concorde com essa visão e sentimento de segurança, mas

também apresente o sentido contrário da relação com a vizinhança composta por

conhecidos:

... se eu quiser sair aqui e deixar a casa aberta com certeza...provavelmente o vizinho vai vir fechar a porta pra mim se eu deixei a portaaberta então eu vejo muito essa segurança sabe?... e também uma... umafalsa segurança né porque a gente acaba deixando às vezes janela abertaah porque na Vila Militar nada vai acontecer... mas sinceramente assimdesvantagem eu não vejo nenhuma ... eu vejo a vantagem de tu estar... todomundo é conhecido tu conversa com todo mundo vai na casa tomar umchimarrão ... ah vamos fazer um churrasco ali chama ali o outro então todo

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mundo se conhece o que não vê numa cidade grande pode morar numapartamento nem conhece teu vizinho do lado né...(Sargento da área decomunicação do 15º Batalhão Logístico)

Nessa conversa também há a alusão à construção de laços de confianças,

de vínculos com a vizinhança sendo esse o suporte para o sentimento de

segurança. Por outro lado, destaca a noção de uma “falsa segurança”, ou seja, de

que ter conhecimento de quem sejam os vizinhos não é garantia total de segurança.

Já em relação aos apartamentos, a percepção acerca da segurança entre os

moradores se alterava de modo considerável. Comentavam, com frequência, sobre

os roubos que lá aconteceram, “mesmo sendo um local militarizado”, mesmo em um

ambiente em que se tem “porta com porta” e mesmo que os roubos não tivessem

ocorrido com as suas famílias e sim com a de terceiros. A existência de uma guarita

de entrada também gerava reclamações. Um único ponto de vigilância, segundo os

relatos, não dava conta da extensão do condomínio e nem da quantidade de

moradores. Isso poderia, inclusive, ser um “facilitador” das ocorrências. Portanto, os

apartamentos eram vistos como não seguros, sendo esta percepção difundida na

rede de vizinhança.

Não só em Cascavel essa noção sobre os apartamentos serem menos

seguros era destacada. Silva (2016), a partir da pesquisa realizada em São Gabriel

Cachoeira, cidade de fronteira do estado do Amazonas, também discute essa

questão. A partir da fala de uma das moradoras, esposa de um dos tenentes-

coronéis, destacadas pela autora em sua tese é possível notar esse retrato:

[...] então assim, eu acho que outra coisa é que não tinha segurançanenhuma naquele prédio: todo mundo entrava, todo mundo saía. É muitagente, primeiro que não pode fechar o prédio porque ele tem um ladocomercial ali embaixo, então, você entra no prédio normalmente. A gente atéevitava de deixar a porta [aberta], tipo, tem aquela janelinha. Então às vezesa gente deixava a janelinha aberta porque se a porta batesse a gente ficavapresa, então a gente só enfiava o braço ali [na janelinha]. Então, a genteevitava, evitava porque se(...) como ali os civis que são do lado ali sabiamque não tinha segurança nenhuma, já foi roubado ali apartamento, jáentraram num apartamento... então assim, não tinha segurança não, nãotinha segurança nenhuma lá, nenhuma e nenhuma. (SILVA, 2016, p.87).

3.2.4 Privacidade

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Algumas intervenções, chamadas de “melhorias” pelas famílias, podem ser

realizadas nos PNRs, respeitando os limites estipulados pela Prefeitura Militar. O

campo de possibilidades de alterações nas casas é abordado pelo sargento do

BLog:

o jardim você pode fazer do jeito que você quiser não tem nada que fala quetem que ser assim só grama... então você pode passar aqui tu vê inúmerostipos de jardim né... mas a fachada da casa a parte estrutural da casa vocênão pode mudar nada [...] nenhuma casa é igual à outra principalmente naparte da churrasqueira que eles falam né... então cada um que chega vaifazer alguma melhoria ... ah um faz uma varandinha ali fora outro faz umachurrasqueira outro troca um gramado... então todo mundo que chega vaifazer alguma melhoria mas nada assim que mexa com na própria estruturaah quero trocar a janela da minha casa... não, não pode essa essas obrastem que ser via quartel. (Sargento da área de comunicação do 15º BatalhãoLogístico).

Assim, se a parte estrutural da casa não pode ser modificada – isto é, a

fachada precisa ser mantida-, outras mudanças podem ser realizadas, como no

jardim. A construção de churrasqueira, de piscina, a ampliação da garagem e a

horta, dentre outras, são consideradas por boa parte das famílias como “melhorias”

representativas do que consideram importantes para continuar a viver ali. Os

apartamentos, em contraste com as casas, tendem a ser menos procurados por não

possibilitarem tantas intervenções no espaço. As “melhorias”, portanto,

intensificariam mais a realização de tornar uma casa que segue um padrão militar,

ao qual deve ser “pouco alterado”, em um ambiente modificado conforme o gosto

das famílias. O lazer, nesse sentido, assume importância estratégica uma vez que é

através dele que as modificações se realizam.

Contudo, as alterações não devem “saltar aos olhos”, enquanto outras não

devem ser realizadas, a fim de fugir o menos possível do “plano diretor”:

estrutura da casa não é permitido mudar nada... sem projeto semautorização e assim se eu investir em alguma melhoria interna por exemploque não salte os olhos por exemplo eu não posso construir nada aqui fora...ah eu vou fazer uma casinha ali no fundo pra ter um lugar de visita nãoposso... muitas vezes acredito eu que até autorizem alguma coisa... masassim você... plantou lá você não pode tirar... mas a regra é eles nãoautorizam eles não autorizam porque se não começa a ficar longe, foge aoplano diretor que eles dizem as plantas das casas o mapa coisa e tal...agora melhorar uma cerca, plantar uma árvore ornamental no jardim,grama... isso você deve fazer ... cuidar do jardim você tem a obrigação ... sevocê não corta o mato aqui e o pessoal que mora nas esquinas limpar a

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calçada da rua também. (Tenente do 15º Batalhão Logístico, morador deuma das casas próximas a do General)

De acordo com o Tenente do BLog, há normas a serem seguidas para evitar

que as casas se modifiquem completamente; obrigações de limpeza e cuidado com

a estética – cuidar do jardim, limpar as calçadas -, ao passo que as modificações se

restrinjam a parte interna na casa, onde menos se identifique que isso ocorreu.

Vale destacar ainda que boa parte das “melhorias” são construções

implementadas do lado externo das casas, mas dentro do espaço privado da casa,

longe da rua. Se a arquitetura da casa precisa se manter “intacta” ao longo do

tempo, respeitando o código militar, o aumento do espaço domiciliar proporcionado

pela existência da área externa e privado, em contraposição a não existência dele

nos apartamentos, proporciona as famílias essa personalização conforme o gosto

pela edificação de áreas de lazer.

A noção de privacidade nas casas e apartamentos também era acionada

pelas famílias ao contarem sobre a rotina na vila. Como essa ideia parecia gerar

alguns desconfortos, porque ao falarem sobre se referiam a outros moradores e as

relações que possuem, o tema era abordado sobretudo no momento em que as

conversas não estavam sendo gravadas.

Algumas famílias, para não permanecer muito tempo em casas civis,

utilizavam-se da seguinte estratégia: assim que fossem chamadas para ocupar os

apartamentos, os fazia. Contudo, também permaneciam na fila para disputa das

casas, já que havia a preferência por elas por sentirem mais seguros, terem mais

espaço e por não encontrarem tanta privacidade como gostariam nos apartamentos.

Retratavam esse desconforto principalmente porque no condomínio conviviam com

“porta com porta, parede com parede”, “brigas”, “som alto”.

Um dos militares com quem conversei disse ouvir reclamações de alguns

militares no ambiente de trabalho sobre a convivência tão próxima com outros nos

apartamentos. “Nos casos de alguns ainda”, conta ele, isso “é mais tenso”, porque

há tanto convivência profissional, porque participam de uma sessão no quartel,

quanto pessoal por serem vizinhos no condomínio. Silva (2016) também discute a

falta de privacidade relatada pelas famílias que moram no Rio de Janeiro no prédio

da ECEME. Por conta do acirramento entre os militares durante o período de

formação de profissionais nessa escola por meio da qual atingirão os mais altos

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escalões do Exército, essa disputa e conflitos também podem ser levados para os

ambientes comuns dentro do prédio, não só pelos profissionais, mas também pelos

demais membros da família. A família militar sendo instituição incorporada à outra (o

Exército), acaba por introjetar o status do próprio profissional e participar das

disputas desse. A vigilância nesse processo, além disso, tem importância, porque é

através dela que obtém informações e garantem a manutenção da família militar.

Nas casas, principalmente as mulheres expressaram a sensação de terem

mais privacidade. Se, nos apartamentos, elas dispunham de poucas possibilidades

para mudar as estruturas ou de criar mecanismos de distanciamento de outras

famílias, nas casas podiam colocar toldos na garagem, por exemplo, dificultando a

visão de fora. Uma dessas mulheres, com quem tive mais contato durante o período

de pesquisa, havia comprado cortinas mais escuras e fechado a entrada da

garagem porque dava a ela mais privacidade.

Portanto, o sentimento de falta de privacidade é relatado tanto nos

apartamentos, quanto nas casas. Contudo, o que torna a casa mais privativa é

possibilidade de realizar algumas alterações que distanciam uns sujeitos dos outros

e garantem a não vigilância de outros.

3.3 Do espaço, segurança e privacidade ao ideal de família

militar

Os PNRs foram contextos importantes para pensar os atributos dados aos

dois modelos de PNRs disponíveis em Cascavel: as casas e os apartamentos. As

noções de espaço, segurança e privacidade articulam os principais argumentos dos

moradores para retratá-los e que podem ser resumidos pelo Quadro 2:

Quadro 2: Atibutos das casas e dos apartamentos

Casas ApartamentosPrivacidad

eSilêncio Barulho (“brigas”, “som alto”)

“Parede com parede, porta comporta”

Segurança Vigilância realizada pelos soldadose vizinhos

Pouca vigilânciaLugar onde roubos já

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aconteceram Espaço Maior

Maior possibilidade de alteração naestrutura

MenorA não possibilidade de alterar a

estrutura

A casa e o apartamento representam pares homólogos de PNR, cada um com

características opostas: se a primeira é o lugar de silêncio, do sentimento de

seguridade por conta da constante vigilância dos soldados e vizinhança e ambiente

de maior espaço, os apartamentos são, por outro lado, um espaço com barulho,

marcado pela proximidade dos ambientes (destacado pela frase de um dos

interlocutores: “parede com parede, porta com porta”), pouca vigilância e, quando

comparado com as casas, menor.

A família militar e o quartel na cidade de Cascavel parecem se construir

relacionalmente e, nesse vínculo, podemos destacar pontos em comuns valorizados

nessas instâncias. As residências são os contextos privilegiados para observação

desse vínculo interinstitucional, uma vez que elas representam tanto o local dado

pelo quartel para as famílias morarem quanto ambiente onde as famílias militares se

constituem justamente como “militares”. Ainda, se as residências são o local onde

essas famílias permanecem, algumas configurações de residências podem

favorecer mais ou menos o “ideal” de família, como foi observado em Cascavel.

A falta de privacidade nos apartamentos expressas, por conta da “porta com

porta, parede com parede”, por exemplo, é um dos argumentos principais utilizados

por algumas famílias que atualmente residem nas casas e que não quiseram

participar dos processos de disputa dos apartamentos. Além disso, “pouca vigilância”

e o tamanho menor dos apartamentos eram aspectos para retratá-los. Durante a

pesquisa, foi possível observar, em algumas situações de festa nos clubes, que

algumas famílias das casas conversavam sobre ocorridos nos apartamentos, como

brigas e reclamações devido ao som alto. Alguns militares também diziam ter ouvido

algumas histórias “não muito boas” sobre dos apartamentos.

Por outro lado, a casa é representada através de referenciais similares –

espaço, privacidade, segurança – mas com qualificações diferentes dos

apartamentos. Portanto, as características elencadas no Quadro 2, mais que

expressões sobre os PNRs, parecem adjetivar cada um deles. Por essa qualificação

positiva dada mais às casas, demonstradas pelas preferências dadas a elas, as

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famílias que as ocupam parecem atender mais o ideal de família militar que as que

ocupam o condomínio. Se a representação dos apartamentos é abordada através de

reclamações e de como o convívio é comprometido pela pouca vigilância e pelos

atritos vivenciados lá, então a ideia de união, apontadas por Silva (2016) como umas

características valorizadas pelo Exército, pode ser dificultada ou obscurecida por

essas relações vividas ali.

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CONCLUSÕES

No decorrer desse trabalho busquei, primeiramente, destacar o modo como

construí meu objeto e minha posição em campo, ponderando sobre o processo de

escolha do local de pesquisa, o percurso de negociação para a realização dela,

minha posição tanto como estudante de Ciências Sociais, “filha do Basílio”; e, por

fim, da utilização estratégica da entrevista como forma de aproximação das famílias

e de acesso ao entendimento sobre as vivências delas a partir daquele contexto.

Este percurso foi marcado pelo estabelecimento de diálogos com autores tanto

alinhados àquilo que foi intitulado por Castro (2009) como Antropologia dos Militares,

como àqueles que já desenvolveram pesquisas com famílias em áreas urbanas,

como Moura (2003).

Em seguida, especialmente à luz dos trabalhos de autores da arquitetura e

urbanismo sobre vilas militares e de documentos oficiais do Exército que regem os

processos de ocupação dos PNRs, discuti a localização dos espaços da região

militar do Exército de Cascavel, tanto em relação à cidade, quanto as demais

instituições militares do entorno. Pude, assim, debater a maneira como são

organizadas a vilas, bem como os modos de disputas das residências militares.

Concluo este trabalho destacando elementos que perpassam o processo de

negociação e ocupação das moradias destacados nos documentados, levando em

consideração a hierarquia, as filas de espera mas, sobretudo, o modo como os

sujeitos enxergam e atribuem valor aos dois modelos de habitações militares

presentes em Cascavel.

Através desse percurso monográfico, destaco que, primeiramente, dentro do

campo de possibilidades organizadas pelo quartel, as famílias utilizam de estratégias

para atender o máximo que podem suas expectativas em relação à moradia que

pretendem ocupar. O apadrinhamento nesse processo não é o primeiro critério de

seleção dos PNRs, mas é por meio dele que as famílias militares que chegam a

Cascavel podem começar a se situar e começar a apreender os mecanismos de

disputas. Fundada por uma relação formal mediada pelo quartel, o apadrinhamento

eventualmente pode aproximar as famílias até relações de compadrio, quando os

laços de afinidade se aprofundam.

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A fila de espera foi o modo percebido, no entanto, como o primeiro filtro de

seleção de militares que irão ocupar os PNRs. Concorrendo a tipos de residências

possíveis a cada uma das patentes, as famílias transitam de uma fila à outra, ao

mesmo tempo em que “ficam de olho” nas residências que serão desocupadas e

traçam suas estratégias. Os atributos das casas e preferência dela como residência,

para aqueles que estão na fila, parece ser o ponto gerador de certa perspicácia

pelas famílias na manipulação das regras que sustentam.

A privacidade também foi outo filtro de seleção das residências militares. As

casas foram notadas como o espaço valorizado em oposição aos apartamentos,

porque há nela mais espaços e estruturas privativas que podem ser modificados e

personalizados conforme o gosto das famílias. Essa possibilidade maior de

modificação do espaço da casa, por sua vez, tende a aumentar a sensação de

privacidade já que a alteração da estrutura, por exemplo, pode distanciar do olhar do

vizinho da frente através de construção de um toldo, como foi um dos casos

ocorridos na vila.

Portanto, as famílias militares, apesar de inseridas em um contexto pautado

por regras aparentemente rígidas, conseguem articular e negociar diariamente

através de estratégias e do desenvolvimento de certa perspicácia sobre elas,

“pulando de casa em casa”.

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